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A INFELICIDADE DE ME CHAMAR VIRGILIO / C. Virgil
A INFELICIDADE DE ME CHAMAR VIRGILIO / C. Virgil

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

CHAMO-ME Virgílio Gheorghiu. A primeira grande e verdadeira desgraça da minha vida foi darem-me o nome de Virgílio. Ninguém escolhe o seu próprio nome. Sim: é mais tarde, mesmo muito mais tarde, que se sabe o nome que se tem. De toda a família, é-se o último a saber. Recordo-me, como se tivesse acontecido hoje, que em volta do meu berço as pessoas se agitavam, faziam-me sinais, e que todos, todos, ao aproximarem-se, pronunciavam a mesma palavra - soletrando-a, gritando-a, mimando-a, mussitando-a. Era a palavra Virgílio. Queriam que a aprendesse. Que a gravasse na memória. Que me apercebesse de que o meu nome era Virgílio. Que este nome me pertencia, como me pertenciam a carne e a própria vida.
(*) Neste livro fez-se uma única excepção ao critério de não traduzir os nomes próprios-e assim aparece Virgílio em vez de Virgil-, a fim de respeitar as analogias que o autor estabelece entre o seu nome e outros cuja tradução já está há muito consagrada em Portugal. *
Quando compreendi que me chamava Virgílio, fiquei orgulhoso. Era a minha segunda propriedade na Terra. Aceitei-a como se aceita um brinquedo. O corpo e o nome são as primeiras coisas que se adquirem e que se conservam durante toda a existência. com o corpo e o nome, vive-se e morre-se. Não há hipótese de nos separarmos deles. Quer na desgraça, quer na felicidade, mesmo que se perca tudo, o corpo e o nome permanecerão. Sempre. Virgílio era um nome de que gostava e deleitava-me a ouvi-lo proferir ao meu redor. De todas as palavras escutadas no começo da minha vida, a mais bela era certamente Virgílio. Sem dúvida porque toda a gente a pronunciava olhando-me com enlevo, com ternura, com alegria. com amor, pode-se transformar em música qualquer nome, por muito feio que seja.

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Mais tarde, apercebi-me de que, intrinsecamente, Virgílio é, na realidade, um belo nome. De uma beleza sóbria. Rígida. De uma beleza semelhante à dos abetos. À das montanhas. É um nome que se torna por vezes difícil de usar. Porque se recusa a toda a intimidade. A toda a familiaridade. É um nome que não se pode trazer todos os dias, em todas as circunstâncias, como não se pode trazer sempre e por toda a parte um chapéu alto. Virgílio é um nome que não admite qualquer diminutivo.
Muito mais tarde ainda, tomei conhecimento das raízes e do significado da palavra Virgílio. Significa castidade, pureza, virgindade. Os Gregos chamam à virgindade parthenia, palavra que quer dizer, literalmente, "proximidade de Deus", e os padres da Igreja louvaram-na sempre, afirmando que o que imortaliza os nossos corpos é a virgindade (1). Diz-se mesmo que o Senhor desceu à Terra e se fez homem a fim de revestir a carne humana com a armadura da virgindade (2). A virgindade é um adorno do Céu.
com o volver dos anos, soube também que Virgílio é o nome do maior poeta do império romano. Vivera no tempo em que Roma estava no apogeu. E era amigo pessoal do imperador. Não somente era o maior poeta do maior império da Terra, mas - mil anos depois da sua morte - o poeta que ultrapassou todos os outros no Universo. Dante Alighieri tomou-o como guia na sua Divina Comédia. Eis, portanto, duas glórias sobrepostas. A glória de Virgílio é dupla pelo facto de ser o guia de Dante.
Isto é a glória mundial de Virgílio. Há dois milénios, todos os alunos, da Patagónia ao Alasca e do Finisterra ao Japão, aprendem algo acerca de Virgílio. Mas no meu país natal, na Roménia, desfruta de uma glória maior que nos outros países do mundo. Na Roménia, a coroa de Virgílio é tripla. Porque nós, Romenos, que somos vinte milhões e vivemos num país redondo como a Lua, ao norte do Danúbio, nos Cárpatos, descendemos dos Romanos. O nosso nome o indica, porque entre romeno e romano
* (1) Método de Olimpo, p. 18, col. 277.
(2) Método de Olimpo, p. 18, col. 261. *
só há a diferença de uma única letra. E porque somos latinos e descendentes de Roma, consideramos Virgílio como uma espécie de compatriota. Pertence-nos, como todos os antepassados. E isto não acontece apenas com Virgílio
- meu homónimo-, mas com toda a herança romana. Por exemplo, a Loba, a célebre estátua da Loba que aleita os dois bebés, Rómulo e Remo. Em nenhuma parte da Terra se vê mais vezes esta estátua que na Roménia. Entre nós
- nesta antiga província romana - encontra-se em todas as grandes praças públicas, nos salões dos Ministérios, no Parlamento, no Banco Nacional. A Loba figura nas capas dos cadernos e dos manuais escolares, nas moedas e nas medalhas. Deus ordena nos dez mandamentos honrar pai e mãe. Ora, a Loba romana é a nossa mãe de leite. Vivendo longe de Roma, nas grandes cercanias orientais da Europa, rodeados de povos estrangeiros, sem parentes latinos na vizinhança, esforçamo-nos por conservar a imagem de Roma, nossa mãe, sempre presente diante dos nossos olhos. É quando estamos longe que guardamos contra o coração as fotografias dos pais. Não quando vivemos com eles. É por causa disso que, assim que se entra na Roménia, se ouvem exclusivamente nomes romanos. Se viajarmos de comboio, ouviremos, nas estações, pronunciar os nomes de Trajano, Lívio, Virgílio, Cícero, Lúcia, Aureliano, César, Ovídio, Horácio. Os nomes latinos ecoam em todas as ruas. Podemos lê-los em todas as páginas dos jornais,
nas montras das lojas, nas placas das ruas. Porque toda a gente na Roménia tem nomes romanos.
Quando soube que possuía não apenas um nome latino, como compete a um descendente de Roma, mas também o nome do maior poeta do Império Romano, senti-me orgulhoso. É humano ser-se orgulhoso daquilo que se possui. E mostrá-lo. E gabarmo-nos disso.
Mais de uma vez, graças ao meu nome latino, senti-me como um pavão ornado de penas multicores. E perguntei à mamã presbítera, minha mãe:
- Em que dia faço anos?
Convém dizer, antes de mais, que nós, os Romenos, nunca festejamos o dia do aniversário natalício, como se festeja noutros países da Terra. O nascimento fisiológico - o dia em que se sai do ventre da mãe-não é, a nossos olhos, um acontecimento que mereça atenção. Ou que se pense nele. Porque, logicamente falando, o nascimento fisiológico nada tem de excepcional para um ser humano. Nem de agradável. É um acontecimento que está longe de merecer que o transformem em dia de festa. Ou que se recorde todos os anos durante a vida. Ou que se dê a conhecer a data aos outros. O nosso nascimento fisiológico é idêntico ao nascimento de todos os animais ditos mamíferos. Lembrarem-nos a data do nascimento, é recordarem-nos que viemos ao mundo como os cães, os gatos, os vitelos. Não é um espectáculo bonito. Pelo contrário, é repugnante. E humilhante. De qualquer maneira, não é um acontecimento para conservar na memória. Tanto como as outras funções fisiológicas que efectuamos em segredo.
Mas não é unicamente porque o nascimento em nada nos distingue dos animais, porquanto chegamos à Terra pela mesma via das ratazanas, das vacas e dos burros, que evitamos com cuidado falar desse dia. Nem, tão-pouco, por pudor ou por orgulho. Nós não somos, decerto, mais orgulhosos que os outros povos da Terra - que cantam, dançam, convidam os amigos e festejam até de manhã, com música e champanhe, esse trabalho fisiológico. Não é unicamente por isso. Há uma razão mais profunda. É que nós, Romenos, somos não apenas os descendentes directos dos Romanos, mas também, e sobretudo, um povo cristão. O qualificativo de cristão é aquilo que possuímos de mais precioso na Terra. Visto que somos cristãos acima de tudo, para nós o nascimento fisiológico é não só um acto desprovido de beleza e semelhante à vinda ao mundo de todos os animais munidos de tetas, como nos recorda o mais doloroso acontecimento que sobreveio ao homem depois da sua criação. O nascimento fisiológico lembra-nos a suprema tragédia humana: a expulsão do Paraíso. Porque antes da queda dos nossos primeiros pais, Adão e Eva, a multiplicação pela via sexual era estranha ao homem. Na origem, o homem foi criado imortal. Ignorava o sexo, o parto, a dor, a morte. No Céu, não havia casamento. com efeito, porque não apareceu o casamento antes da queda? Porque não havia relações sexuais no Paraíso? Porque não havia, antes da maldição, as dores do parto? Porque tais coisas eram então supérfluas, e só se tornaram necessárias mais tarde, por causa da nossa fraqueza. Elas e tudo o resto (3). O sexo, a procriação, a doença, a velhice e a morte são punições para o homem. São Gregório de Nissa é tão explícito como São João Crisóstomo acerca do parto e do sexo: Quanto à divisão dos seres em homens e mulheres, foi feita depois da queda. Porque não se vá agora pensar que a divina e bem-aventurada natureza comporta uma divisão dos sexos. Mas, atribuindo ao homem o que pertencia à natureza animal, Deus conferiu à nossa espécie este modo de propagação, que não estava conforme com a excelência da sua criação primeira. Por isso é que Deus, segundo as Escrituras, criou inicialmente o homem à sua imagem (o que São Paulo nos ensina também quando diz que no homem novo não haverá macho nem fêmea) e só depois é que acrescentou os caracteres próprios à natureza animal, criando o homem e a mulher (4).
O nascimento por via sexual, por parto, semelhante ao dos animais, era portanto estranho ao homem antes da queda. Sexualmente, Adão só
* (3) São João Crisóstomo: A Virgindade, XV, 2, Padres Gregos, 48, col. 545.
(4) São Gregório de Nissa: Da Virgindade, XII, 4, P. G., 44, col. 181-A. *
conheceu Eva após a expulsão do Paraíso, quando esta foi condenada ao castigo do parto, por ter pecado (5).
O pecado introduziu-se por fraude, sob a forma de prazer. Mas a seguir a tal sentimento, vieram muito depressa a vergonha, o medo, e Adão e Eva não se atreveram a aparecer mais aos olhos do Criador, escondendo-se debaixo das folhagens, na sombra. Então, foram vestidos com túnicas de peles mortas e enviados para o exílio, para essa região doentia e penosa onde o casamento foi inventado a fim de nos consolar da morte (6).
O nascimento fisiológico, carnal, recorda-nos a expulsão do Paraíso. E o envergar das túnicas de pele (Génese, iII, 21), esses fardamentos penitenciários, é a nossa queda, relegando-nos para a categoria dos animais mamíferos. A multiplicação pela via sexual foi introduzida na natureza do homem tardiamente, como uma punição. A virgindade apareceu no princípio e anteriormente ao casamento, mas é pela razão indicada que o casamento foi adoptado mais tarde, sendo considerado como coisa indispensável, se bem que, se Adão tivesse permanecido na obediência, o casamento não teria sido necessário (7). E São João Crisóstomo diz, pela sua boca
* (5) São Gregório de Nissa: Da Virgindade, XII, 4, P. G., 44, col. 302-C.
(6) São Gregório de Nissa: Da Virgindade, XII, 4, P. G., 44, col. 302-C.
(7) São João Crisóstomo: A Virgindade, XVII, 5, P. G., 48, col. 546. *
de oiro: Deus não precisava do casamento para multiplicar os homens na Terra (8). Há inúmeras criaturas celestes que se multiplicam sem conhecer o sexo.
É isto o que nos recorda o dia do nascimento fisiológico. Festejando a data em que fazemos anos, seríamos como um forçado que celebrasse com música, foguetes e transportes de alegria o aniversário do dia e da hora em que o mandaram para a prisão, onde recebeu os ferros e o fardamento de recluso. Isto ultrapassa a nossa lógica. Não podemos festejar as desgraças e as catástrofes. Não podemos dançar e cantar para comemorar a condenação e o peso dos fardamentos penitenciários, terríveis túnicas de pele tecidas de paixões bestiais...
Eis, portanto, porque fazemos tudo para não nos lembrarmos do dia do nascimento animal.
Pessoalmente, nunca festejei o meu aniversário, como sói dizer-se. Ninguém, entre os meus conhecidos, o festejou. Esse dia, o dia do nascimento fisiológico, só tem importância, entre nós, para a polícia, a justiça, os departamentos do registo civil e do registo criminal. Aquilo a que chamamos o baixo mundo. São os mesmos serviços que se ocupam das impressões digitais do homem, do seu peso, da sua estatura, da cor dos seus cabelos, do tom da sua pele, do número dos seus dentes e de outros pormenores similares, os quais se inscrevem, algures, nos passaportes,
* (8) São João Crisóstomo: A Virgindade, XVII, 5, P. G., 48, col. 546. *
da mesma forma que nos recibos de venda e compra de cavalos, de vitelos e de cães. No baixo mundo, tais coisas são muito importantes. Para nós, a inscrição dos referidos pormenores abrange exclusivamente a natureza animal e terrestre, e sofremo-la da parte das autoridades que passam passaportes e bilhetes de identidade como uma consequência da nossa expulsão do Paraíso. É uma humilhação, entre outras. Como a doença. A velhice. A morte. A putrefacção. Meu pai, o venerável padre Constantino, de quem fui o primeiro filho, recusou-se a declarar o meu nascimento. Isso humilhava-o. Uma criança que nasce não é matéria para pesar, para inscrever em boletins, a registar, e pela qual se recebe em troca um recibo-como se fora mercadoria.
Mais tarde, vim a saber pela boca de mamã presbítera, minha mãe, como as coisas se passaram:
- Depois de te ter dado o nome de Virgílio, soberbo entre todos, pedi a teu pai que fosse declarar-te ao registo - disse ela. - Teu pai recusou. E o tempo passou. Um mês depois de nasceres, os polícias da aldeia vieram ao presbitério. com as suas carabinas, os seus revólveres, as suas baionetas, as suas botas e os seus ares ameaçadores. Dirigiram-se a teu pai para o algemar. Pô-lo a ferros, como se faz aos assassinos. Ameaçavam-no. Diziam-lhe que o atirariam para o fundo dum calabouço. Para a palha húmida. Tudo isto porque teu pai não declarara o teu nascimento no registo, como a lei, sob pena de prisão, ordena a todos os cidadãos. Desta vez, foi obrigado a declarar que tu existias. Que nasceras. De outro modo, não o teria feito. E tu viverias clandestinamente na Terra... Agora estás registado... Mas de maneira inexacta... No teu bilhete de identidade lê-se que nasceste a 15 de Setembro. Ora isso é falso. Tu nasceste a 9 de Setembro (9).
Fiquei extremamente satisfeito com este incidente. Não só me desembaraçara, através do baptismo, do homem-corpo, como a data do meu nascimento fisiológico não constava da certidão do registo civil. Porque é um dia para esquecer.
Se nós, descendentes dos Romanos dos Cárpatos, não festejamos o dia do nascimento fisiológico, celebramos, como desforra, numa alegria sem igual, com música, convidados e todo o fausto possível, a nossa festa onomástica. Quer dizer, festejamos o nome que recebemos no baptismo. Porque o dia do baptizado é o do nosso verdadeiro nascimento. Receber o baptismo, é receber a própria vida, é ser criado do nada (10). Porque é nele mesmo que vivemos e nos movemos e existimos (Actos dos Apóstolos, XVII, 28). O nascimento fisiológico é um
* (9) V. Gheorghiu: De la vingt-cinquième heure à 1'heure éternelle, p. 86.
(10) Nicolau Cabasilas: A Vida em Jesus Cristo, P. G., livro II. *
acontecimento deteriorado pela doença contraída no Paraíso (11).
O baptismo é um acto reparador. Restaura, regenera, cria-nos de novo. Os que são gerados e criados de novo pelo baptismo, já o tinham sido precedentemente, mas, desprovidos da sua primeira forma, reencontram-na graças a este novo nascimento - tal como o mármore de uma estátua deteriorada que o artista esculpe de novo a fim de lhe devolver a forma primitiva (12).
O meu nome, Virgílio - que usarei cá em baixo e na eternidade-, não o recebi no dia do nascimento devido ao parto de minha mãe, mas no do baptismo. O dia do meu verdadeiro nascimento. E o baptismo, além de outras denominações, chama-se também o Dia do Nome, ou Dia Onomástico. Eis em que consiste o dia do nosso aniversário. Porque, neste dia memorável, não recebemos o nome da boca do padre, nem da nossa mãe, mas de Deus, Nosso Pai Celeste e nosso criador. É Deus que desce do Céu e se debruça sobre nós. Dá-nos um nome. Reconhece um dos seus filhos. São João Crisóstomo é categórico: Quando és baptizado, não é o padre que te baptiza, mas o próprio Deus que te toca na cabeça com o seu poder invisível. Nem anjo, nem arcanjo, nem qualquer outro poder ousa aproximar-se e tocar-te (13).
* (11) São Sofrónio de Jerusalém: P. G., 87, col. 335-B.
(12) Nicolau Cabasilas: A Vida em Jesus Cristo, P. G., 150, livro II-A.
(13) São João Crisóstomo: Homilia sobre Mateus, P. G., 58, col. 507. *
Nesse dia, Deus torna-se nosso pai exclusivo. Tornamo-nos legalmente, para a eternidade, seu filho. É um nascimento incomparavelmente mais belo, mais nobre, que o miserável nascimento fisiológico. E a prova de que nesse dia é o próprio Deus que nos gera tocando-nos com a sua mão e outorgando-nos o nome pelo qual nos reconhecerá e que usaremos para a eternidade (porque do novo nascimento saímos imortais), é sempre São João Boca de Oiro que no-la dá: Não é unicamente a mão do padre que toca a cabeça do baptizado, mas também a mão direita de Cristo, como se depreende das palavras daquele que baptiza. O padre não diz: "Eu te baptizo fulano..." O padre diz: "É baptizado fulano...", mostrando assim que ele é somente o ministro da graça e que apenas empresta a sua mão (14).
Nesse dia, Deus diz-nos: Tu és meu filho, hoje te gerei (15). A máxima pela qual Deus condenava o homem à morte: Tu és pó e em pó te tornarás (16), é anulada pelo baptismo. Era uma máxima divina, e não podia ser quebrada pela humanidade. Encontrou-se um remédio. Que o homem morresse e ressuscitasse. E o baptismo é isso: a morte do homem condenado e a ressurreição do homem puro, novo.
* (14) São João Crisóstomo: Segunda Catequese Baptismal, 26, linha 12 (texto A. Wenger. Paris. 1957).
(15) Actos dos Apóstolos, XIII. 33.
(16) Génese, iII, 19.
(17) Santo Ambrósio: Sacramentos, II, 17. *
Para nós, cristãos romenos dos Cárpatos, o nascimento fisiológico não tem, portanto, qualquer interesse. Festejar o quê? Uma queda? Uma condenação? Uma expulsão e uma existência no exílio? A chegada à existência biológica sobre a Terra? Nasce-se num sítio da Terra que não se escolheu. Como não se escolheu a própria mãe, nem o pai, nem a língua que se falará com os outros homens.
É ilógico festejar estas coisas. Enquanto em relação ao outro nascimento, o do baptismo, acontece justamente o contrário. Sai-se das águas filho de Deus. É-se, legalmente, imortal, adoptado pelo Criador e herdeiro do Reino dos Céus. É-se mais que um príncipe do mundo. Mais que o filho de um imperador da Terra. Em vez de púrpura, a criatura é revestida de virtude, o mais real de todos os trajos. Em vez de ceptro, apoia-se sobre a bem-aventurada imortalidade. Em vez de um diadema real, traz a coroa da justiça, de modo que tudo nela manifeste a sua dignidade real, pela sua semelhança com a beleza do arquétipo (18). Está-se nu.
É-se pequenino. Mas, ao emergir das águas baptismais, possui-se tudo aquilo.
O baptismo anula a máxima Tu és pó e em pó te tornarás. Dissemo-lo já. Mas não é tudo. O homem não é simplesmente amnistiado e devolvido ao estado de inocência em que se encontrava antes da queda. Ele é mais que era antes.
* (18) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 136-D. *
O homem saído das águas baptismais é incomparavelmente superior a Adão. O baptismo é uma nova criação do homem, melhor que a primeira. Porque, aquando da criação do primeiro homem, Deus disse: "Dêmos-lhe uma ajuda." No baptismo - aquando desta nova criação-, nada de parecido. De que ajuda poderia necessitar aquele que recebe a graça do Espírito Santo e que é integrado no corpo de Cristo? O primeiro homem foi criado à imagem de Deus. O homem novo é unido a Deus. O primeiro homem dominava os animais. O homem novo é colocado acima dos Céus. O primeiro homem foi criado no sexto dia, mas o novo é criado no primeiro dia, porque, através do baptismo- que é a nossa ressurreição, a nossa páscoa, o nosso domingo pessoal-, regressamos ao primeiro dia, o dia em que foi criada a luz (19). Exactamente como os recém-nascidos, que, mediante a inscrição no consulado do seu país, qualquer que seja a longínqua região em que vêm ao mundo, se tornam cidadãos da sua verdadeira pátria, da metrópole, pelo baptismo, as crianças nascidas da mulher, na Terra, tornam-se cidadãs do Céu. Recebem os direitos dos cidadãos lá de cima, quer dizer, a imortalidade. E isto verifica-se em todas as igrejas, pequenas ou grandes, por muito pecador que o padre seja ou por muito miserável que se evidencie a condição do baptizado. Porque um acto consular,
* (19) São João Crisóstomo: Homilia sobre João, 25, P. G., 59, col. 150. *
um acto notarial, não depende das proporções do edifício em que se realiza o assento, nem do prestígio do cônsul que desempenha as funções de tabelião e de conservador do registo civil. Tal acontecimento é tão importante para nós - habitantes cristãos da grande cercania oriental da Europa - que seria vergonhoso aos nossos olhos celebrar o aniversário da vinda fisiológica ao mundo. Possuímos a data do nascimento espiritual. A que assistem, não apenas os vizinhos, os amigos e os nossos pais segundo a carne, mas todas as potências celestes. É um espectáculo maravilhoso, com uma assistência tão extraordinária, que nenhum homem, por mais rico que seja, jamais poderá contemplar no seu aniversário fisiológico. Eis o que diz Santo Ambrósio do baptismo: Os anjos viram aproximar-vos, e, de repente, viram resplandecer a condição humana, que outrora estava suja pela negra porcaria do pecado. Então, os anjos perguntaram: "Quem é aquele que sobe limpo no deserto?" (20) E os anjos, também eles, ficam admirados (21).
Pelo baptismo, nós, cristãos, tornamo-nos cidadãos da Jerusalém Celeste, que é a nossa verdadeira metrópole. As três imersões nas águas baptismais simbolizam os três dias que Cristo passou no túmulo. Debaixo da terra. Todo o ser baptizado sofre a morte de Cristo, a descida ao túmulo e a ressurreição. O homem
* (20) Cântico dos Cânticos, VIII, 5.
21 Santo Ambrósio: Sacramentos, IV, 2. *
nascido da mulher morre. E um homem novo ressuscita das águas. E o ressuscitado recebe o nome de cristão, que quer dizer ungido. Porque é marcado com óleo, com o sphragis, palavra que significa textualmente "selo". O óleo santo que marca o novo cristão é o selo do Espírito Santo. O Santo Crisma, a que chamamos Hagion Myron, contém efectivamente o Espírito Santo. Não é um símbolo. O Hagion Myron de que recebemos o selo é concedido com o maior cerimonial que existe adentro da Santa Igreja ortodoxa. Só o patriarca prepara o Hagion Myron, o Santo Crisma, o Grande Myron, de que recebemos o selo no baptismo, aceitando o nome de cristão. É feito de óleo e de trinta e oito essências aromáticas diferentes, que se acrescentam à medida que a cerimónia evoluciona. A preparação das trinta e oito essências e do óleo, realizada em ânforas especiais, de extraordinária beleza, começa na quarta-feira da sexta semana da Quaresma. As ânforas são transportadas para o recinto da igreja no sábado anterior ao dia de Ramos, o sábado da ressurreição de Lázaro. E a cerimónia da preparação, celebrada pelo próprio patriarca com todos os hierarcas, os padres e os fiéis, desenrola-se lentamente, todos os dias, e atinge o apogeu na Quinta-Feira Santa.
Outrora, pela antiga lei, só os imperadores, os reis e os profetas eram ungidos. Agora, todos os cristãos são ungidos. Cada cristão é um rei. Um filho de rei. Filho do maior rei do Cosmo, do Deus Criador do Céu e da Terra. Como o pão e o vinho, após a consagração, deixam de ser pão e vinho, passando a representar a carne e o sangue de Cristo, os óleos e as trinta e oito essências constituem, de verdade, o Espírito Santo. E é pelo Espírito Santo - materializado no Grande Myron - que somos marcados. com a alma e o corpo marcados pela unção do Espírito Santo, tal como outrora em Israel pelo sangue nocturno e protector dos recém-nascidos, que poderá acontecer-nos de lastimável? (22) Depois de teres recebido o selo santo - o sphragis -, se te sentares, fá-lo-ás sem medo, e se dormires, gozarás de um sono reparador (23).
No baptismo, pela mão do padre, é do Espírito Santo que recebemos o selo e é do próprio Deus-Pai que recebemos o nome, o nome que usaremos toda a vida e que será gravado na cruz do túmulo.
A nossa festa de aniversário - nossa, romenos e cristãos - é, portanto, o dia da nova criação, em que cada um de nós recebe o seu nome. É uma dupla festa onomástica. Porque recebemos dois nomes, nesse dia em que somos ungidos como os reis e os profetas do Antigo Testamento. Primeiramente, é a nossa festa onomástica, porque recebemos o nome de cristão. São Cirilo de Jerusalém explica-nos: Visto que sois admitido a receber o Santo Crisma,
* (22) São Gregório de Nazianzo: Orações, XL, 15.
(23) Provérbios, iII, 24. *
recebereis o nome de cristão, assim se justificando este chamamento (24). Recebendo o nome de cristão, o selo do Espírito Santo, o sphragis, somos marcados directamente por Deus, e esta marca significa que lhe pertencemos. Encontramo-nos sob a sua protecção. Põe-nos fora do alcance dos nossos inimigos. Porque todo o tesouro selado está em segurança. Uma ovelha que trouxer o selo do seu dono será respeitada. o anjo exterminador, outrora, poupava as crianças que traziam o sinal, e só feria as outras. Assim, os que estiverem marcados pelo sphragis recebido no baptismo serão reconhecidos pelos anjos e demónios como componentes da família de Cristo. Perante esse sinal, os demónios tremem, sentem-se desarmados e fogem. Os anjos, pelo contrário, são carinhosos junto do cristão
- junto do portador do sphragis-, como junto de um familiar (25).
São os anjos que preparam a água do baptismo: Purificados nas águas, sob a acção de um anjo, estamos preparados para o Espírito Santo. O anjo que preside ao baptismo pelas vias do Espírito Santo através da purificação do pecado (26).
Mas os anjos que participam no baptismo não se limitam unicamente a isto. Cantam, tal qual
(24) São Cirilo de Jerusalém: P. G., 33, col. 1092-C.
(25) São Cirilo de Jerusalém: P. G., 33, col 272-B; São Basílio o Grande: Homilia sobre o Baptismo, XIII, 4; São Gregório de Nazianzo: Orações, XI, 4.
(26) Tertuliano: Padres Latinos, I, col. 1206-A-B.
como um coro, na igreja, durante os ofícios. O anjo é uma criatura hinológica (27).
Se elevares os olhos - não os olhos da carne, porque a carne não vê as coisas celestes, mas os olhos do coração -, vereis os anjos que vos rodeiam no baptismo e que cantam. Elevai agora os olhos do vosso espírito, observai os coros dos anjos, o Deus Soberano do Universo no seu Trono, o Filho Monógeno sentado à sua direita e o Espírito Santo que está presente a seu lado, completando o seu ministério os Poderes e as Autoridades Soberanas.
São igualmente os anjos que inscrevem o nosso nome no Céu, do mesmo modo que os padres o inscrevem na Igreja. Por isso, sinto-me pouco à vontade quando me chamam pelos dois nomes. Tenho um único nome, aquele que recebi no baptismo. Os anjos inscreveram-no no Livro do Céu. É o meu nome de cidadão da Jerusalém Celeste. E é pelo nome de Virgílio que Deus me chamará no Julgamento Final. Quando comungo no altar, digo: "Eu, padre Virgílio, comungo." Não digo: "Eu, padre Gheorghiu..." Gheorghiu é um nome que Deus não conhece. Que não me pertence. Na penitência, quando me encontro de joelhos, sob o epitrakhelion, diante do ícone de Cristo Pantocrator, o padre confessor pergunta-me pelos pecados chamando-me padre Virgílio. Nunca sou Gheorghiu. É o nome de Virgílio que será
* (27) Pseudo-Atanásio: P. G., 28, col. 616-B. *
pronunciado, no dia da minha morte e do meu enterro, pelo padre, nas suas orações. É este nome, Virgílio, que será gravado na madeira da minha cruz tumular, no cemitério em que esperarei a ressurreição dos mortos e a vida eterna. Os meus fiéis, na igreja em que sou padre, meus filhos e filhas em Cristo, e todos os cristãos ortodoxos chamam-me sempre ((Pai Virgílio". Nenhum deles me chama "Pai Gheorghiu". Porque este não existe. Gheorghiu é um nome que pertence à minha vida terrestre, perecível, biológica, fisiológica. Gheorghiu é um nome que não tem significação, excepto para o baixo mundo, a sociedade, a história terrestre. Virgílio é um nome para a eternidade. Um nome recebido do Céu. Directamente de Deus. Porque Deus sabe dividir o seu povo de uma maneira justa e conveniente, não apenas por tribos, famílias e casas, mas também, individualmente, pelo NOME (28).
Por causa disso, Gheorghiu é um apelido que pertence à minha túnica de pele, à minha vida de exílio na Terra, e só é válido na Terra, nas alfândegas, no registo civil, nas juntas de recrutamento e na polícia.
Mas há ainda uma razão pela qual Deus me conhece somente pelo nome de Virgílio. Deus
- o meu criador que é o meu Grande Bispo do Céu - é também meu Pai. É o Pai de nós todos. E um pai chama os seus filhos pelo nome.
* (28) Oxígenes: Homilia sobre os Números, XXI. *
Mesmo cá em baixo, durante a nossa breve existência, os nossos pais segundo a carne, os nossos irmãos, irmãs e amigos chamam-nos pelo nome de baptismo. Meu pai e minha mãe chamaram-me sempre Virgílio. Nunca Gheorghiu. Portanto, como chamará Deus aos seus filhos senão pelo nome próprio? Pelo nome que receberam dele no baptismo? E os anjos, e as minhas filhas e filhos espirituais, e o meu confessor, e os meus superiores, todos os que me falam como a um irmão, como a um pai ou como a um filho, chamam-me Virgílio. Gheorghiu é um nome para os estranhos, para as autoridades do século, para o exterior. Sim, um nome para o baixo mundo. No âmbito da família, da Igreja e do Céu tenho um único nome - temos todos um único nome. O nosso nome eterno. Nome que é santo, porque é dado por Deus. E inscrito pelos anjos.
Mas, para além de tudo isto, há uma infinidade de razões pelas quais, em vez de celebrar o dia do nosso nascimento fisiológico, como a maioria dos cidadãos da Terra, celebramos a festa do nosso nome, a nossa festa onomástica.
Primeiro, o santo de quem usamos o nome faz parte integrante da nossa família e da nossa vida quotidiana. Recebemos o ícone do santo patrono no dia do baptismo e guardamo-lo a vida inteira, na parede oriental da nossa casa. E quando nos mudamos, levamos o santo. E no dia da nossa morte, põem-nos o ícone do nosso santo sobre o peito. E todos os que vierem despedir-se darão um beijo no ícone do santo posto sobre o nosso peito, inanimado no interior do caixão, como se dessem um beijo na nossa fronte viva. Porque, se nós morremos, eles, os santos, permanecem vivos mesmo na Terra, não apenas no Céu.
O santo de quem usamos o nome é simultaneamente o nosso intercessor no Céu. Estará entre os nossos defensores, no Julgamento Final, junto da Theotocos, a Mãe de Deus, e ao lado do nosso anjo da guarda.
Na nossa festa onomástica participam, primeiro, os nossos parentes segundo a carne
- pai, mãe, irmãos e irmãs. Mas, à cabeceira da mesa, no lugar de honra, está o padre da aldeia, o nosso pai espiritual. Porque foi pela sua boca que recebemos de Deus o nosso nome, o nome que festejamos nesse dia. É natural, pois, que ele presida. Há em seguida os nossos amigos, primos, vizinhos, camaradas de trabalho ou de escola. Todos são convidados para a nossa festa onomástica. Mas, invisível ao lado do padre, há o nosso santo protector, aquele de quem usamos o nome. E de quem se celebra também o nome nesse dia. O santo é um homem da Terra, que, tendo um corpo de carne e osso, conquistou o Céu. Um santo é um homem que vive simultaneamente na Terra e no Céu. É ao mesmo tempo cidadão dos dois reinos, o de cima e o de baixo. É um homem como nós, mas divinizou o seu corpo e a sua vida. E, em vida, tem direito a morar entre os anjos. A maioria dos santos está definitivamente no Céu, há séculos. Mas, no dia da sua festa e da nossa festa onomástica, descem à Terra, e esses habitantes do Céu são nossos convidados e vivem ao nosso lado, entre nós. Todos os anos, esperamos - sem jamais nos enganarmos - a descida do Céu do nosso santo patrono. Ele chega à nossa casa. Abriga-se sob o nosso tecto. E na nossa casa permanecerá, a nosso lado, durante todo o dia.
Mas não é tudo. O santo de quem usamos o nome nunca vem só. Seria de todo impossível que o nosso santo descesse do Céu e chegasse a nossa casa sozinho. A lógica opõe-se a tal hipótese. Claro, nós, os habitantes dos grandes arredores orientais da Europa, não somos muito instruídos. Mas não carecemos de sentido científico nem de lógica a ponto de acreditar que um santo pode descer do Céu e entrar em nossa casa sozinho. Não somos assim tão estúpidos. Se abrirmos a janela, é toda a luz do dia que entra em nossa casa. O Sol todo, e não um único raio. Não é preciso ser-se sábio para ver e saber isto. Ora, a santidade é exactamente como a luz. Entra, e então é toda a luz do dia que chega a nossa casa, ou não entra, e então ficamos completamente no escuro, com as portadas fechadas e as persianas corridas. Por ocasião da nossa festa onomástica, a nossa casa está aberta para o Céu. Como uma janela está aberta para deixar entrar a luz. Ou como uma porta está aberta para deixar entrar um hóspede esperado e querido. E não é apenas o nosso santo patrono que entra. Todo o Céu entra com ele na nossa casa. Ao mesmo tempo que ele. Porque o Céu, como a luz, é Uno. Indivisível. Não pode ser dividido, fragmentado. Portanto, não é um único santo que chega, mas o Céu todo, como a luz inteira, sem divisão, através de uma janela escancarada.
E nesse dia - no dia sublime da nossa festa onomástica-, graças ao santo que nos visita, temos de manhã à noite o Céu inteiro sob o nosso tecto. Toda a hierarquia celeste se encontra na Terra. Em nossa casa. Estão entre nós os Serafins. A santa denominação de serafins significa, para quem sabe o hebreu, aqueles que queimam, quer dizer, que aquecem. A denominação de querubim significa massa de conhecimento, quer dizer, derramamento de sageza (29).
Mas havia os tronos, as dominações, os anjos, os arcanjos... Afirma-se nas Escrituras que o número de anjos é de mil vezes mil e dez mil vezes dez mil, volvendo sobre eles próprios e multiplicando por eles próprios os números que conhecemos a fim de nos revelar claramente que o número de legiões celestes escapa à nossa medida. Tal é, na verdade, a multidão destes exércitos de bem-aventurados que não são deste Mundo (30).
* (29) São Dinis Areopagita: P. G., 111, 205-B, A Hierarquia Celeste, VII. I.
(30) São Dinis Areopagista: A Hierarquia Celeste, XIV, P. G., iII, col. 321-A. *
Evidentemente, eu não sabia o seu número. Mas tinha a certeza de que todos os habitantes do Céu estavam em nossa casa. Orígenes confirma-o, como todos os textos litúrgicos: Acerca dos anjos, eis o que é necessário que se diga: se o anjo do Senhor circula em volta daqueles que o temem, é provável, quando vários homens se reúnem legitimamente para glorificar o Senhor, que o anjo de cada um esteja com o homem que deve guardar e dirigir, de maneira que, na reunião dos santos, há duas Igrejas, a dos homens e a dos anjos (31).
No dia da sua festa onomástica, o homem recebe, na Terra, em sua casa, sob o seu tecto, durante um dia inteiro, todos os esplendores do Céu. Há os querubins de olhos inumeráveis, os serafins de seis asas, os anjos descalços, os anjos da guarda dos nossos pais, dos nossos amigos, da aldeia, da igreja... Mas isto não é tudo. com os anjos, descem do Céu os outros santos, os confessores, os mártires, os parentes mortos, os vizinhos enterrados há séculos perto de nós e todos os irmãos cristãos mortos na vizinhança ou que usam o mesmo nome que o nosso santo. Todos estão lá. Todos os habitantes de outrora. Porque todos são convidados para a nossa festa onomástica. Nesse dia de festa, o tecto da casa está aberto, como uma tampa levantada. O nosso tecto de telha-vã está fora do sítio, como a laje que cobria o túmulo de
* (31) Orígenes: De Oratione, XXXI, 5, Corbus graecorum scriptorum, iII, 399.
Cristo. A casa está aberta para o alto. E nós, pobres homens de barro, caminhamos ao lado dos anjos e misturamo-nos com eles, com os santos, com as divindades inumeráveis. E o Céu e a Terra estão na nossa casa, misturados como se misturam num estuário a água doce dos rios e a água salgada dos oceanos, para formarem uma só água. Porque a festa é dupla. O Céu celebra o santo, e a Terra celebra aquele que usa o nome do santo. E como qualquer santo já foi homem na Terra, e como aquele que usa o nome do santo estará um dia no Céu, o próprio Céu se mistura com a Terra. Constituem uma massa compacta, como a água e a farinha num único pão no fogo da Fé. O barro da Terra mistura-se ao azul do Céu. Há uma família única, simultaneamente no Céu e na Terra, em nossa casa, sob o nosso tecto. Nenhum dos nossos vizinhos deixa de visitar-nos nesse dia. Mesmo que não nos vote uma afeição especial. Mesmo que não seja particularmente nosso amigo: ainda assim virá. Chega com alegria. E regozijo. Porque sabe que estará na companhia dos anjos, dos querubins, dos santos, dos mártires e de todos os nossos parentes mortos e enterrados há séculos nos cemitérios romenos e ortodoxos que nos pertencem. Os cidadãos da Terra encontram-se subitamente na companhia dos cidadãos do Céu. E isso graças à festa onomástica. Como os Apóstolos, aquando da transfiguração de Cristo no monte Tabor tiveram um antegosto do que seria a sua vida futura no Céu, também nós, pobres cristãos da vertente oriental dos Cárpatos, temos no dia da nossa festa onomástica um antegosto da vida futura e do Céu. Quando tudo e todos se reunirem. Quando não houver nem Céu, nem Terra, nem Lua, nem Divisão. Porque não haverá mais Noite, nem Dia, nem Lua, nem Sol. Porque a luz de Deus cingirá tudo com o seu brilho, e os astros serão inúteis. E os dias e as noites serão inúteis, porque o Tempo será abolido. Então, viveremos acima dos tempos e dos séculos, na Eternidade. Como Deus. Na qualidade de filho de Deus. De herdeiro de Deus.
Eis o que é para nós, pobres moldávios da Roménia do Norte, longínquos descendentes de Roma, eis o que é para nós a festa onomástica.
Ao anoitecer, quando a festa termina, o Céu, como as águas da maré, retira-se para as alturas, e nós, nós permanecemos em baixo, com a nossa casa, a nossa vida, o nosso corpo de argila e as nossas misérias. É um momento vazio. Oco. Mas não de tristeza. Porque sabemos que o dia da festa é uma amostra das coisas que acontecerão depois de morrermos. E que tais coisas nunca mais terão fim. Porque a nossa vida futura será uma festa onomástica ininterrupta.
Por agora, no crepúsculo da festa, quando o Céu se retira da Terra, consolamo-nos olhando a nossa casa e dizendo para connosco: aqui andaram os anjos. E vemos com ternura as cadeiras em que os antepassados, ao tornarem à Terra, descansaram durante o dia. E os leitos cujas mantas foram tocadas pelos santos e as cortinas das quais se aproximaram as asas dos anjos, dos arcanjos e dos serafins. Porque todos, todo o dia, foram nossos hóspedes, nossos convivas: participaram da nossa vida, tocaram nas coisas e nos utensílios da nossa existência quotidiana. Acontece-nos nesse dia o mesmo que aconteceu aos Apóstolos no caminho de Emaús, quando comeram com Cristo. Também nós bebemos, comemos e rimos com os anjos e os santos.
Mas, para além disto, há também o aspecto estritamente terrestre, prático, humano, da festa onomástica. Qualquer criança, por mais pobre que seja, no dia da sua festa onomástica, está vestida da cabeça aos pés, talvez não com roupas novas, mas pelo menos limpas. O que é o mesmo. A camisa, a camisola, o lenço, estão limpos e cheiram a alfazema, a água fresca e a sol. Na véspera da festa onomástica, a criança é lavada, cortam-lhe as unhas, o cabelo. Tudo brilha nela. Porque, como o homem é um animal composto, há uma pureza de corpo e uma pureza de alma que é preciso conservar incólumes, porque a devoção embacia-se e murcha em contacto com a impureza do corpo (32). E ele está em companhia de personagens celestes. Certamente, há uma multidão de pessoas, a
* (32) Santo Ireneu de Lião: Demonstração da Publicação Apostólica, I, 2. *
maioria das pessoas da Terra, que duvida da existência das personagens imateriais, porque não as viu com os olhos da carne. Mas, se nunca se ouviu uma música de Bach, de Brahms ou de Beethoven, não se tem o direito de afirmar que tal música não existe. Isso quer dizer que se é ignorante. Mais nada. Se não se souber ler o chinês, o francês e o inglês, não se tem o direito de dizer que a escrita nas línguas chinesa, francesa e inglesa não existe. Há pessoas que nunca viram o mar. Desgraçadas delas se teimam em afirmar que o mar, o oceano, não existe e que só acreditam naquilo que viram, ouviram e tocaram. Sucede a mesma coisa com as pessoas que não conhecem o Céu. Negam. E isso é extremamente alógico e acientífico. Sobretudo num século que se orgulha da sua ciência. Nós, descendentes dos Romanos, que vivemos na vertente oriental dos Cárpatos - na Moldávia-, alimentamo-nos mais do Céu que da Terra. Como poderia um trabalhador duvidar da existência do campo de onde tira o milho, as batatas e toda a sua alimentação? No dia da nossa festa onomástica, como na santa e divina liturgia do domingo, passamos por cima das coisas terrenas e abrimos, amplamente, o Céu (33).
E o Céu é, sem dúvida, a nossa aldeia. Como o nosso campo de milho. Como a nossa casa. Tocamo-lo. Vivemos nele. Mas há também os
* (33) São Sofrónio: P. G., 87, col. 3339-D, e São João Crisóstomo: P. G., 35, col. 1085-B. *
presentes. As dádivas que se recebe. De toda a parte e de todos. Em nossa casa somos extremamente pobres. Jamais algum dos meus amigos de infância recebeu bonecas, comboios eléctricos, bolas ou bombons. Nenhum brinquedo. Os brinquedos são para os ricos. Nós somos pobres. Os proletários da terra. Mas, presentes, recebemo-los a rodos. Presentes muito preciosos. Que não custam dinheiro. Cada um recebe, no dia da sua festa onomástica, uma dose substancial de ternura. Uma dose de amor suplementar. Uma quantidade de carícias. De beijos. De ternos afagos. E isto é oiro. Do puro. Que vale mais que o oiro e os diamantes. São coisas que nos aquecem o coração, nos avermelham as faces e nos fazem brilhar os olhos. Somos felizes. Não necessitamos de mais nada. Nem de bicicletas. Nem de cavalos de pau. Todos os nossos amigos e parentes trazem-nos palavras de amor, de ternura, de amizade, olhares de simpatia, sorrisos. E apertos de mão. Dão-nos beijos na fronte e nas faces. Não beijos como os de todos os dias. Porque são beijos que queimam a pele como sinetes de ternura. Beijos sonorosos. Porque não são beijos furtivos, mornos e silenciosos. Os beijos que recebemos ouvem-se ao longe. Porque são beijos dados carnalmente, com os lábios, como as palavras. Os amigos da mesma idade apertam-nos a mão, admirativamente, como se tivéssemos alcançado uma vitória no estádio. Somos festejado o dia inteiro, como os heróis que regressam de uma guerra ou de uma expedição.
E sentimo-nos bem. Porque é agradável sermos festejado. Ser admirado. Ser aplaudido. E receber de toda a parte testemunhos de amizade e de ternura. E de amor. E de gentileza. Os sensatos arrecadam esses testemunhos recebidos durante as festas onomásticas para lhes saborear a recordação, ao longo da velhice, nos momentos terríveis de solidão, de desencorajamento e de abandono. Há velhos que, à noite, sozinhos, se recordam das suas festas onomásticas como se abrissem caixas onde guardassem as condecorações, os vestidos de baile e as cartas de amor de outrora. As festas onomásticas constituem, realmente, um capital de que se pode retirar uma ração de ternura e de amor nos dias de ódio, de solidão e de abandono. Capital inesgotável, porque formado de recordações imperecíveis.
Durante o ano escolar, no dia da sua festa onomástica, o rapaz ou a rapariga recebe, logo no começo da aula, as felicitações da professora ou do mestre-escola. Em seguida, os condiscípulos oferecem-lhe um lápis, um caderno, um raminho de flores, e cantam uma canção a propósito. Depois, o aluno abandona a aula. Porque o dia da sua festa onomástica não é um dia útil. É um domingo pessoal. E toda a gente lhe oferece qualquer coisa.
Desde o princípio, sobretudo na escola, apercebi-me de como é terrível uma pessoa chamar-se Virgílio. Porque, para um homem que se chama Virgílio, não há festa onomástica. Todos os dias do ano são iguais. Em nossa casa, o tecto nunca se abria para deixar passar, em minha honra, o meu santo que habita o Paraíso, rodeado de anjos, arcanjos, querubins e serafins. Para mim, o Céu nunca descia à Terra. Porque eu-Virgílio-não tinha festa onomástica. Nunca tive. E é quase certo que partirei deste mundo sem tê-la.
Certamente, para os outros rapazes, isso não teria tido a mesma importância. Para mim, era um drama. Porque nós - descendentes de Rómulo e de Remo, amamentados pela Loba-, que vivemos na vertente oriental dos Cárpatos, nos grandes arredores do leste da Europa, somos muito, muito pobres. E quando se é pobre, uma pessoa agarra-se a tudo, por mais insignificante que seja, a fim de saborear um pouco de felicidade. Os pobres da Terra são - nós somos como os náufragos que se agarram a uma garrafa vazia que flutua nas ondas, pensando que deste modo salvarão as suas vidas. Jamais a sede de felicidade poderá ser extirpada do homem. E porque não temos felicidade material, agarramo-nos às felicidades gratuitas. Os pobres vivem exactamente como eu próprio vivi, durante dois anos, nas prisões americanas, para expiar o crime de haver sido alto funcionário romeno. E como não podia viver na prisão sem beleza, recortava todas as reproduções de pinturas nos jornais que os soldados americanos atiravam dos miradouros e das torres de vigia, depois de os lerem. Assim, em dois anos, reuni uma colecção das obras-primas de todos os museus do mundo. Em papel de jornal. Uma colecção pouco maior que um livro. Era o meu museu de bolso. O meu museu de prisioneiro. E, diariamente, para não ver mais o cinzento das paredes, das fardas dos prisioneiros, o cinzento dos dias, o cinzento das almas e dos olhares, observava as reproduções dos quadros recortadas dos jornais. Assim, eu tinha cores ali, ali onde tudo era triste. Tinha todas as cores e todas as paisagens do mundo nos dois metros da minha cela. Era mais ou menos parecido - de um outro ponto de vista - com as nossas festas onomásticas. Nós, os pobres, que sofríamos trezentos e sessenta e quatro dias por ano, esperávamos a festa do nosso nome com uma avidez que só conhecem os viajantes do deserto em busca de um oásis na imensidade da areia escaldante e seca. Todos tinham direito a este dia de festa. Sem dinheiro. Todos, excepto eu. Porque estava privado de festa onomástica. A única esperança dos pobres, o ser-se festejado, estava-me vedada. Chamava-me Virgílio. E Virgílio não tem festa onomástica. Esta crueldade parecia-me tão injusta, tão imerecida, tão dura de suportar, que tentei encontrar um meio de lhe escapar. A fim de me proporcionar também uma festa para o meu nome.
- Não insistas mais - ordenou mamã presbítera, minha mãe. - Tu não tens festa onomástica.
- Toda a gente a tem - disse eu.
Toda a gente, mas tu não!
- injusto - disse por entre lágrimas.
- Justo ou injusto é um facto. Ninguém pode modificá-lo!
Porque é que eu, de todos os habitantes da aldeia, sou o único que não tenho festa onomástica?
Informara-me antes e era verdade. Todos os habitantes da aldeia - homens e mulheres, crianças e velhos - tinham a sua festa, todos menos eu. Excepção única. Não havia quem me acompanhasse no infortúnio.
- Diga-me, mãezinha, porque não tenho festa onomástica?
- Porque não há um São Virgílio no calendário. Compreendes? Sim ou não?
- Não há São Virgílio?
O meu espanto era total. Nunca imaginara que houvesse nomes despojados de santos patronos. E eis que havia um. É era o meu: Virgílio.
- Porque me chamam Virgílio, se não há um São Virgílio? - perguntei em lágrimas.
- É o teu nome. Não é um nome cristão. Não está no calendário. Usas um nome pagão.
Que não tivesse festa onomástica, para fazer entrar um dia por ano o Céu em nossa casa, era o cúmulo da desgraça, era uma injustiça. Que me queimava como um ferro em brasa. Ouvir dizer que usava, ainda por cima, um nome pagão, era de mais! Que não tinha a minha festa, já o sabia. Que o meu nome estava fora da lei, tal facto era de todo em todo uma novidade.
Porque ser pagão, parricida, fora-da-lei, eram coisas semelhantes dentro da minha pequena cabeça. Era excessivo para uma criança poder suportar tamanha infelicidade. Soluçando, perguntei:
- Porque é que Deus, que é bom e filantropo, não fez um São Virgílio? Porque é que Deus deixou o meu nome, um nome tão belo, sem santo patrono? Deus, que fez dezenas de Pedros santos, e Joões, e Andrés, e Nicolaus... Que perderia se fizesse também um São Virgílio?
- Tudo o que Deus fez está bem feito - disse minha mãe. Ela era muito nova. Contava vinte e poucos anos. Eu era o seu primeiro filho. Possuía um carácter intransigente. Indomável. As suas frases eram como o ferro aquecido no fogo. As suas palavras queimavam-me as orelhas e penetravam-me na carne como pregos.
- Se te oiço pronunciar outra vez o nome de São Virgílio, arranco-te as orelhas. É um sacrilégio pôr a palavra santo ao lado de um nome pagão. Isso abre-te a porta do Inferno. E a mim também. Porque, até aos sete anos, a mãe é responsável pelos pecados dos filhos. Queres mandar a tua mãe para o Inferno pronunciando essa palavra que eu não quero repetir?
Calei-me. Para a minha mãe não arder no Inferno por culpa minha. Mas, no fundo do coração, perguntava-me como é que Deus, que fizera bem todas as coisas e que nunca comete um erro, pudera criar nomes sem santos?
- Não é Deus que faz os santos - disse minha mãe, adivinhando-me o pensamento. - Não se deve julgar Deus.
-Então, quem os faz, mãezinha, se não é Deus? Deus faz todas as coisas. Ele faz com certeza também os santos.
- Tais discussões não são para a tua idade. Falar dessas coisas acorda e excita os diabos. Cala-te e não recomeces.
Já lá vai quase meio século. Mesmo hoje, não posso julgar minha mãe. Muito menos condená-la. Ela era ignorante. Mas não se tratava da ignorância com o sentido que habitualmente se dá a esta palavra. Minha mãe não frequentara escolas superiores, não tirara qualquer curso. Mas não era uma ignorante. Era, sim, uma teodidacta. Porque, tal como há autodidactas, pessoas que aprendem sozinhas, sem professores e sem irem à escola, mamã presbítera, minha mãe, não se instruíra nem na escola nem por si própria, mas através de Deus. Era realmente uma teodidacta. Uma verdadeira teodidacta. Era como Abba Teodora, que, ao discutir com alguém, era como um gládio (34). Ela só tinha uma ideia, a ideia de Deus, porque sabia que o começo de todos os males e de todos os pecados é a distracção (35). E nunca se separava da sua ideia de Deus. Ela tinha - a pobre mamã presbítera -
* (34) Apotegmas dos Padres, Arsénio, 31.
(35) Apotegmas dos Padres, Poemen, 43. *
uma fé tão grande que poderia deslocar sozinha não apenas as montanhas do meu país, os Cárpatos, como todas as montanhas da Terra. É evidente que a sua fé não era a dos doutores em teologia. Por vezes, ela encontrava-se não fora da Igreja, mas mais longe e em maior profundidade. A sua ignorância era feita de simplicidade pura. Não a simplicidade que o mundo encara como estupidez: era a limpidez de um pensamento uno e simples, que ouve a palavra de Deus sem a julgar e a recebe sem se interrogar, como a criança recebe as palavras da ama, como a criança recebe o ensinamento do professor sem julgar e fiscalizar o que lhe dizem... Porque a medida do nosso espírito é demasiado pequena para que consigamos explicar os mistérios divinos: portanto, é somente através da fé e da simplicidade que o homem pode entendê-los e recebê-los... Foi assim que procedeu Abraão: ele não se tornou juiz das palavras que lhe dirigiam (36).
- Porque me puseste um nome pagão, chamando-me Virgílio? - perguntei.
Subitamente mamã presbítera parou. Interrompeu o trabalho e ficou imóvel. Como que petrificada.
- Foste tu que escolheste o nome de Virgílio? - insisti. - Um nome pagão. Para dá-lo ao teu filho. Tu que és tão crente...
Ela não se mexia. Estava embotada. Como a
* (36) Filóxeno de Mabbug: Homilia, IV, 74. *
estátua de sal de que fala a Bíblia. Em seguida, humildemente, com timidez, hesitante, disse:
- O que tu dizes é verdade... Fui eu que escolhi o nome de Virgílio. Eu. A tua mãezinha. Fui eu que te pus esse nome pagão...
Falava como na confissão. Como diante de Deus. Como no Julgamento Final. com uma única preocupação. Não mentir. Mas com a certeza de que era demasiado tarde, de que já nada podia emendar. Ela podia pedir perdão. Mas tinha consciência de que não merecia tal perdão.
- Fui eu, na verdade, que te escolhi o nome de Virgílio. Esse nome pagão. Eu...
- Porque o fizeste, mãezinha? - retorqui. - Tornaste-me desgraçado para toda a vida. Muito desgraçado. Porquê?
- Não pensei no teu nome, quando o escolhi
- disse ela. - Não pensei em nada. Como poderia pensar no teu nome, se não pensava em nada?
Nunca mentia.
- Escolheste o meu nome de entre milhares de nomes sem pensar? - perguntei.
- Sem pensar!
- Fazer uma escolha significa pensar!
- Juro-te que não pensei em nada. Escolhi Virgílio. É verdade. Mas não tinha nenhum pensamento na cabeça. Estava vazia. Por terror. Por medo. Podes pensar nalguma coisa quando vês a casa em chamas ou quando cais à água sabendo que te vais afogar?... Nos momentos de terror, tem-se medo e mais nada. E era assim que eu estava, quando escolhi o teu nome- Não pensava. Só sentia medo.
Meu pai, sorrindo, dizia sempre, para a mãezinha: "Mesmo que possuísses um dia tudo o que existe na Terra e no Céu, faltar-te-ia a lógica Porque a lógica não pode aderir a tua cabeça. A lógica é o contrário de ti própria."
Era verdade. No fundo, não ser lógico quer dizer pensar de maneira diferente dos outros. Mas os santos também não são lógicos segundo a lógica do mundo. Não são lógicos conforme o...
- Mãe, não digas coisas dessas!... Não é possível que tivesses escolhido o nome do teu primeiro filho sem pensar, quer dizer, sem veres o que fazias...
Vou-te contar como as coisas se passaram:
Tu nasceste no dia seguinte ao da minha festa onomástica, a 9 de Setembro, dia de São Joaquim e de Santa Ana. Sugeriram-me que te chamasses Joaquim. Recusei. É nome que não me agrada. Então, teu pai disse: "Chamemos-lhe Vassily". O pai dele chamava-se Vassily. Mas quando ouvi pronunciar o nome de Vassily, fiquei aterrorizada. Era o dia do teu nascimento. Ainda estava doente. De cama. Padecia. E quando disseram Vassily diante de mim, comecei a gritar e a tremer de medo. compreendes?
- Não compreendo - respondi. - porque razão se adoece quando se profere o nome de Vassily? Significa Basílio. É um dos três hierarcas, um dos três grandes doutores da nossa Santa Igreja.
- Olha para aqui e compreenderás.
Mamã presbítera mostrou-me o ombro esquerdo. Tinha uma cicatriz imensa. Negra. Um rasgão na pele. Até então nunca vira o ombro de minha mãe. E não sabia que ela tinha um rasgão na pele. Uma cicatriz horrorosa.
- Quando era pequena, mais pequena do que tu, tínhamos em casa, em Jerusalém, um cão-lobo. Um belo cão. Era o meu companheiro de brincadeiras. Durante toda a minha infância brinquei com ele. Seguia-me sempre. Protegia-me. Dormia ao pé da minha cama. Tinha o pêlo cinzento como as nuvens. Um pêlo muito luzidio. Como o aço. Um dia, enraiveceu. Fugiu de casa. Vagueou dias e noites, a correr, sem se alimentar, sem beber, sofrendo. Depois, uma noite, regressou a casa. Entrou no meu quarto e começou a morder-me, arrastando-me para o pátio. Acorreram com tochas. Para me salvar. Então vi o cão, que se chamava Vassily, o meu cão, com a boca cheia de espuma e de sangue, o pêlo sujo, a pele rasgada. Estava mais feio e mais enraivecido do que o Diabo. As pessoas mataram-no. À minha frente. com paus. Forquilhas. Para mim, que ainda trago o medo no coração e as escoriações na carne, Vassily é o nome de um cão raivoso. Feio. Terrível. Aterrador. Que me dilacera à noite. Compreendes agora? Como poderia apertar nos meus braços, acariciar e amamentar uma criança, o meu filho, se se chamasse Vassily? Para mim, tal nome é sinónimo de terror. De morte. De dor. Senti piedade. Até às lágrimas.
- Um nome qualquer, mas não Vassily - disse ao teu pai. - Vassily nunca. Se queres um nome que comece pela letra V, chamemos-lhe Virgílio. É a inicial do nome do teu pai. O nosso primeiro rapaz chamar-se-á Virgílio. Dizia tudo isto, sem pensar em nada... Compreendes porque te chamas Virgílio?
Beijei a mão de minha mãe.
- Mais tarde, mãezinha, não pensaste que Virgílio é um nome pagão? Que não há São Virgílio? Que jamais teria o meu dia onomástico e o ícone do meu santo sobre o peito, no túmulo? Não pensaste em tudo isto, tu que tens uma fé tão grande?
- Não - disse ela. - Não pensei em nada. Só me sentia feliz por não te chamares Vassily. E por não ser constrangida a apertar Vassily nos meus braços...
Estava esclarecido. No respeitante às razões de minha mãe. Não lógicas. Mas emocionalmente válidas. Isso, apesar de tudo, não me consolava de usar um nome pagão, de ser privado da festa do meu patrono e santo protector no Céu. E perguntei a meu pai:
- Tu que és padre, filho de padre, neto de padre, como pudeste dar ao teu primeiro filho um nome pagão?
- O teu nome é pagão, sim - respondeu meu pai. - Mas esse nome, Virgílio... Virgílio é um nome romano. E um romeno é obrigado a usar um nome romano.
- O principal é ser cristão e não romano - retorqui. - Na Santa Igreja de Cristo só há um povo. Não há romenos, nem franceses, nem espanhóis... Todos formam o povo santo.
- Exacto - disse o meu pai. - Mas nós, os Romenos, nunca seríamos cristãos se não fosse os Romanos. Somos os descendentes de Roma, os sucessores de Rómulo e Remo que mamam na Loba em todas as praças públicas. Se, ao longo dos dois milénios da nossa história, apenas por um curto momento nos esquecêssemos de que somos romanos, descendentes de Roma, cessaríamos automática e irrevogàvelmente de ser cristãos. De pertencer ao povo santo. Somos cristãos e filhos de Deus e herdeiros do reino justamente porque descendemos de Roma.
- Os Eslavos, os Finlandeses, os Alemães também são cristãos. Não é preciso ser romano ou romeno para pertencer ao povo santo de Cristo. Cristo não distingue raças nem nações.
- Certo. Cristo não estabelece diferença entre as raças. Mas se nós somos cristãos, Virgílio, é unicamente porque permanecemos romenos. Não devemos esquecê-lo. Nenhum romeno deve esquecê-lo. Durante dois milénios, só conhecemos aqui, nas margens do Danúbio, nos Cárpatos, no nosso país latino e redondo como a Lua, as desgraças da história. Nunca fomos independentes - excepto algumas dezenas de anos. É pouco, meio século de liberdade para dois milénios de história. Há dois mil anos que cada geração sofre uma ou várias invasões vindas do leste. Da Ásia. Centenas de povos bárbaros passaram e continuarão a passar através do nosso solo, encarcerando-nos, roubando-nos, matando-nos - e, sobretudo, obrigando-nos a modificar a nossa fé, os nossos costumes e a nossa língua. Se esquecêssemos que a nossa ama de leite é a Loba de Roma, sofreríamos constantes mutações. Teríamo-nos tornado muçulmanos com a invasão turca, que durou cinco séculos. Teríamo-nos tornado judeus com a invasão dos Cazares que assolaram o nosso país, godos com os Godos. Teríamo-nos tornado pagãos com os Hunos. A cada invasão teríamos mudado de Deus, de língua, de costumes e de nome. Serias Ali ou Moâmede com os Muçulmanos. Abraão ou Moisés com os Judeus. Átila ou Tamerlão com os Hunos... E, em resultado de tantas mutações, em resultado de nos tornarmos noutra coisa, chega-se ao vazio. Mudando de identidade segundo as circunstâncias, perde-se a identidade por completo. Tornamo-nos nada. E o nada não pode ser cristão (37). Para ser cristão, é preciso ser e, depois, ser livre. E liberdade significa identificação com a sua própria natureza ".
"Por isso, e a fim de conservar a nossa fé em Cristo, devíamos primeiro permanecer romenos.
* (37) São Gregório de Nissa: P. G., 46, col. 101-D. *
Manter a nossa identidade. A nossa origem romana. A nossa língua romana. Não que pertencêssemos absolutamente ao mundo romano. Nenhum homem é parte constitutiva de algo. Um homem é, em si mesmo, a natureza inteira. Cada homem é um todo. Nunca uma parte constitutiva de algo. E deve permanecê-lo. É a sua identidade. È para salvaguardar a nossa identidade acima de tudo, devia-se pôr entre nós os nomes de César, Virgílio, Ovídio, Lívio, e recusar, com o risco da própria vida, os nomes dos invasores. Era uma questão de vida ou de morte. Mais até: era uma questão de ser ou de não ser. Os nomes, a fé, os costumes, são coisas do espírito. Mas nós não nos podíamos defender com fortalezas, com muros, com cidades de granito contra as hordas bárbaras vindas do leste. Todos os nossos meios de luta e de defesa são espirituais. Mas o espírito é mais forte que todos os materiais da Terra. O que edificámos em espírito durou. E dura. E durará, não somente até ao fim do mundo, mas por toda a Eternidade. Eu sei que tens um nome pagão. Que não tens santo no calendário. Que estás privado da festa onomástica. Que o Céu nunca desce com o teu santo patrono até nossa casa. Mas deves suportar esse sacrifício. É-te imposto. Como os pregos na carne de Cristo. A fim de que Cristo permaneça entre nós. E Cristo não poderá permanecer entre nós se não formos homens idênticos a nós próprios. Se perdermos a nossa identidade e se nos tornarmos em nada. O nada não é cristão. No Julgamento Final, teremos orgulho de falar a Cristo na língua de Virgílio. Língua latina que aprendemos com os santos cristãos de Roma, condenados, por causa da sua fé, a trabalhar como forçados nas minas de oiro e de prata da Roménia. Tu deves amar o teu nome, Virgílio. É muito belo.
- É verdade que Virgílio é um nome belo. Mas, mesmo assim, é um nome pagão. Não está no calendário.
Subitamente, acudiu-me uma ideia ao espírito e fiz a meu pai a mesma pergunta que fizera à mamã presbítera:
- Porque é que Deus não deu a nenhum santo esse belo nome de Virgílio? Porque é que Deus deu todas as espécies de nomes aos santos e nunca, a nenhum, o nome de Virgílio?
- Não é Deus que dá os nomes aos santos - gritou mamã presbítera, entrando de rompante no quarto onde falava com meu pai. - Os nomes dos santos, são as mães que os dão. As pobres mães. Como eu. E como todas as mães da Terra.
- Então, porque é que não há um São Virgílio no calendário? - perguntei.
-Porque todos os homens que usaram o nome de Virgílio foram pervertidos, miseráveis, carne para o Inferno. Todos os Virgílios foram nulos. Pó. Que em pó se tornaram.
- Todos os homens que usaram o nome de Virgílio foram miseráveis? - perguntei. Era mais uma desgraça. Parecia que este nome só trazia desgraças. Primo, faltava no calendário. Secundo, era pagão. Tertio, fora usado por miseráveis. Exclusivamente por miseráveis.
- Então, os Virgílios foram todos uns fora-da-lei?
- Todos - respondeu minha mãe. - Se alguns Virgílios receberam honrarias, receberam-nas de Satã. Porque todos serviram o Diabo. Nenhum foi capaz de servir a Deus e de santificar o seu nome. Nem tornar-se santo. Ou fazer milagres. Há dezenas de santos com o nome de Pedro, dezenas de santos com o nome de João, Nicolau, André... Todos os nomes foram santificados. Porque houve santos entre os que os usaram. Porém, nenhum São Virgílio. Nenhum. É uma pena para o género humano. Porque, na realidade, é um belo nome. Mas foi unicamente usado por miseráveis e voluptuosos. Que apodreceram no túmulo. Porque os ossos e a carne dos santos nunca apodrecem. Os ossos dos santos tornam-se relíquias santas... E os santos, não somente operam milagres em vida, como continuam a operá-los por intermédio dos seus ossos... E os objectos e o nome que lhes pertenceram continuam a socorrer e a ajudar a pobre humanidade...
As duras palavras que mamã presbítera pronunciara acerca dos que tinham usado o meu nome trespassaram-me o coração. E desde a infância mais tenra que procuro conhecer as pessoas que se chamaram Virgílio. Fui ajudado por meu pai, que era um homem admirável, instruído, venerável e apaixonado pela beleza. Assim, graças a ele, conheci, mesmo antes de saber ler e escrever, as obras de Virgílio. Virgílio estava longe de ser um miserável, como afirmava minha mãe. Virgílio fora o maior poeta da latinidade. Fiquei muito triste ao saber que o grande Virgílio nascera um pouco antes da chegada de Cristo à Terra. É que morrera antes da conquista dos Imortais, meus antepassados, pelas legiões de Roma. A morte de Virgílio, a criação do povo romeno e a vinda de Cristo verificaram-se mais ou menos ao mesmo tempo. Admirava Virgílio. Era o maior poeta do maior império do mundo. Mas não era um santo. E o maior dos poetas é pouca coisa comparado com um santo... Um poeta de génio tem direito a estátuas, a monumentos, a efígies, a medalhas. Como os maiores heróis da Terra. Como a Loba que amamenta Rómulo e Remo. Mas nenhum poeta tem direito a ser pintado sobre um ícone. Unicamente os santos, como Cristo, como a Theotocos, a Mãe de Deus. Porque Deus é luz. E os santos - só os santos-são os filhos da luz (38).
A cabeça dos poetas pode ser, tal como a dos heróis, coroada de flores. Ornada de coroas de folhas de oiro, de prata, ou de diademas de pedras preciosas. Mas todas estas coroas que ornam a cabeça dos poetas, dos génios ou dos heróis
* (38) São Lucas, XVI, 8. *
são feitas com materiais criados. Por mais preciosas que sejam, são coisas criadas. A cabeça dos santos, como a cabeça de Cristo e a de sua Mãe, a Theotocos, está rodeada por uma auréola. E as auréolas não são feitas de coisas criadas. As auréolas que envolvem a cabeça dos santos nos ícones são formadas da luz incriada de Cristo. É a mesma luz incriada que rodeou e transfigurou o corpo de carne e osso de Cristo no monte Tabor. É a mesma luz que transfigura a carne e os ossos dos santos, mesmo cá em baixo, e que transfigurará a nossa carne e o nosso corpo, depois de morrermos, à segunda chegada de Cristo. Todos os santos estão, aqui na Terra, luminosos e em glória. Como Cristo no monte Tabor. Desembaraçando-se dos pathos, das túnicas de pele recebidas aquando da expulsão do Éden, desde o começo da sua vida terrestre, tornam-se semelhantes ao que seremos todos no Paraíso. Se bem que tenham um corpo, os santos vivem na Terra como os anjos que não têm carne nem osso. Já aqui, tornam-se depósitos do tesouro e morada pura de Deus (39). E as Santas Escrituras dizem também: As almas dos justos estão na mão de Deus e a morte não as tocará (40). Porque a morte dos santos é um sono e não uma morte. Foram experimentados neste século, viverão na eternidade (41). Os seus corpos são os
* (39) Levítico, XXVI, 12.
(40) Sabedoria, iII, 1.
(41) Salmo XLVIII, 10. *
templos do Espírito Santo... Eles são Luz e Vida (42).
Um poeta pode instruir o mundo. Pode elevar o mundo. Um poeta pode desvendar as verdades mais secretas da humanidade e mostrar os caminhos aos contemporâneos, aos descendentes e à raça humana. Há grandes génios, como Homero, Esquilo, Eurípides, Shakespeare, que viverão tanto quanto a Terra durar e até ao fim dos séculos. Há também pintores e escultores. E criadores de música. E glórias da ciência. Todos operam maravilhas. Mas os santos são superiores. Incomparavelmente superiores. Porque, sendo unicamente amor, vida e luz, os santos não elevam apenas a humanidade. Instruem-na, dirigem-na, ajudam-na, socorrem-na e, sobretudo, sobretudo amam-na. Os santos protegem-nos na existência e prestam-nos auxílio. Intercedem por nós no Céu. Os santos sofrem connosco, por nós, em nosso lugar. Tomam com alegria o nosso fardo e infortúnio. Nenhum poeta, por maior que seja, nenhum génio, pode dizer como o bem-aventurado Pai Agathon: Se, ao encontrar um leproso, eu pudesse trocar o meu corpo pelo dele, sentir-me-ia muito feliz, porque esta é, na verdade, a caridade perfeita (43). Os santos são aqueles que nutrem um único sentimento relativamente a todo o género humano: a caridade (44). Para um santo,
* (42) São João Damasceno: A Fé Ortodoxa, cap. XV.
(43) Apotegmas dos Padres, Agathon, 26.
(44) São Máximo o Confessor: P. G., 91, col. 1205-A. *
todos os homens são Um. A caridade perfeita não divide a única natureza humana segundo as diferenças das disposições morais. Encarando em absoluto esta unidade, ama todos os homens igualmente, os calorosos como amigos, os cobardes como convém amar inimigos, sem se enfadar, suportando os aborrecimentos que ocasionam sem ressentimentos. Não recusando até sofrer por eles, caso seja possível. Ela nunca se separa da atitude que lhe é peculiar: os FRUTOS
DA CARIDADE ESTÃO SEMPRE AMADURECIDOS PARA TODOS OS HOMENS IGUALMENTE (45).
Nos grandes poetas, nos génios, é o homem que se manifesta. Mas nos santos é o próprio Deus que está presente. Se procurarmos Deus, ele manifestar-se-á, e se o guardarmos, ele permanecerá em nós (46).
Um santo despreza o seu corpo de carne e sacrifica a vida terrestre para socorrer os seus semelhantes. Imola-se para tornar felizes os seus semelhantes. E também ele se torna feliz tornando-se melhor. Porque isso é a vida dum santo: melhorar de instante a instante. Permanecendo inteiramente homem segundo a natureza, na alma e no corpo, o santo torna-se inteiramente Deus, pela graça e esplendor divinos e pela glória beatificante que lhe cabe (47). Por obra dos santos, a osmose entre o Céu e a
* (45) São Máximo o Confessor: Centúrias sobre a Caridade, I, 71.
(46) Apotegmas dos Padres, Arsénio, 10.
(47) São Máximo o Confessor: P. G., 91, col. 1088-C. *
Terra é uma coisa realizada. Porque Deus fez-se homem a fim de que o homem se pudesse tornar Deus (48). Deus desceu do Céu, é a katabasis (descida), para que o homem suba ao Céu, é a anabasis (subida). Deus tomou um corpo de carne, tornando-se sarcóforo (um portador de carne), para que o homem se torne teóforo e pneumatóforo (um portador de Deus e do Espírito Santo). Isto realiza-se nos santos. Graças aos santos, Deus desceu, sofreu a humilhação da descida, a kenose, e o homem subiu, e chegou à theosis, à deificação.
Por causa disso, apesar da imensa admiração que tive desde muito novo por Virgílio e pelos grandes poetas, essa admiração nunca foi total. Perante a estátua de mármore de Virgílio, como perante as estátuas de Shakespeare, de Homero e de Ovídio, detenho-me. Tiro o chapéu. Fico em sentido. Respeitosamente. Admirativamente. Feliz por pertencer à raça humana que gerou tais génios. Fico extático de admiração diante deles, como diante do cume do monte Branco. Como diante do oceano e como diante da beleza do firmamento durante as noites estreladas. Mas a minha admiração não vai mais além. Perante a perfeição, é preciso parar sempre. Porque a perfeição consiste em algo acabado. A santidade, essa não é uma perfeição acabada. Como assinala São Gregório de Nissa,
* (48) Santo Ireneu: P. G., 7, col. 1120; Santo Atanásio: P. G., 25, col. 192-B; São Gregório de Nazianzo: P. G., 37, col. 465; São Gregório de Nissa: P. G., 45, col. 65-D. *
a perfeição, segundo as ideias gregas, consiste em algo acabado. Ora a virtude é essencialmente avançar. É preciso, portanto, modificar a nossa ideia de perfeição e, se se quiser conservar este nome aplicado ao nosso ideal, dever-se-á dizer que A PERFEIÇÃO CONSISTE NUM PROGRESSO coNTÍNuo (49). A natureza dos anjos e das almas não conhece limites e nada a impede de progredir (50). A virtude e a santidade só têm um limite: o ilimitado (51). No respeitante à virtude, aprendemos com o próprio Apóstolo que a sua perfeição tem apenas um limite, que é não ter limite algum (52).
Visto que sei estas coisas, é normal que a minha admiração, por maior que seja, cesse quando se encontra perante a perfeição criada. É uma beleza e uma perfeição que têm limites. Diante de um santo, pelo contrário, não me detenho extático. Diante do ícone de um santo, diante da santidade, dobro os dois joelhos. Curvo-me. Toco a terra com a fronte. Prosternando-me. E rezo. Beijo a terra. E a madeira na qual está pintado o santo. Pedindo-lhe socorro. Ajuda. Protecção. Pedindo-lhe amor e caridade. Porque a sua beleza, perfeição e amor não têm limites. Um santo não é grande unicamente na Terra, mas também no Céu. Um santo não é grande unicamente nos séculos dos séculos e até
* (49) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 300-D.
(50) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 792-D.
(51) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 301-B.
(52) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 300-D. *
ao fim do mundo. É grande na Eternidade... A sua beleza e caridade e grandeza são as de Deus... Sem limites... Não se pode, portanto, comparar as duas belezas. Nem as duas grandezas.
Era muito novo quando se me apresentaram estes problemas. Estava na idade de brincar. Mas, porque possuía um nome pagão, o nome do maior poeta da latinidade pagã, porque não tinha festa onomástica, porque era desgraçado, demandava uma compensação dizendo que um poeta de génio vale um santo. Depois descobri que não era sequer possível compará-los. Desde então, tenho procurado compreender a minha infelicidade. E aperceber-me do que faz a grandeza do santo e a grandeza do homem. Concluí que um homem não pode ser realmente grande, por maior que seja na Terra, se não for um santo.
Fui obrigado a compreender todas estas coisas porque tinha a pouca sorte de me chamar Virgílio. Meu pai, padre jovem, ajudava-me. Tanto quanto podia. Mas ele não podia muito. Primeiro porque era jovem. Depois porque era um pobre padre-operário. E em terceiro lugar, não podia ajudar-me o suficiente porque não sofria como eu do facto de ter um nome pagão. Então, eu próprio me tornei, como mamã presbítera, um teodidacta, um homem que só tem Deus por mestre. Compreendi também que a única verdadeira grandeza do homem era a santidade. Virgílio é grande para os que tiveram a felicidade de ler os seus livros. Mas um santo não necessita de ser traduzido e lido para ser grande. Um santo está unido a Deus. É um portador de Deus. E Deus está em toda a parte. E sempre. é para todos. Sem que seja traduzido, lido, visto ou conhecido. Deus é para o mau e para o bom, para o grande e para o pequeno, para o vencedor e para o vencido. E os santos são tudo e estão em toda a parte. Sempre. A sua grandeza não tem limites e é incomparável. Porque nada nem ninguém se pode comparar a Deus nem aos que dele são portadores.
É por causa disso que os santos têm em volta da cabeça o círculo de luz, a auréola, o nimbo. É a divindade. A luz de Deus.
Compreendi, portanto, antes dos sete anos, que nunca encontraria consolação, privado como estava de um nome santo.
Um dia, procurei meu pai para discutir com ele acerca da infelicidade de me chamar Virgílio. Meu pai não dizia, como a mamã presbítera, que as discussões teológicas excitam os diabos. Tentou responder-me da melhor maneira possível.
- Pai - disse, beijando-lhe a mão. De joelhos. com reverência e uma certa intimidade. Porque, se era meu pai segundo a carne, era também padre. Portanto, meu pai espiritual. Concebera-me duas vezes. Era pai de todos os homens da Terra e eu não podia usar com meu pai de intimidade idêntica à que as outras crianças usam com os seus. Havia uma grande distância entre nós. Apesar de estarmos ligados pela carne. Porque nada é maior sobre a Terra, a seguir aos santos, do que os padres. Imaginem que os milhares de homens que vivem neste momento sobre a Terra caem de joelhos e oram. A sua oração não vale a de um padre. Porque o padre tem na cabeça o fogo descido no Pentecostes sobre os Apóstolos: o sacerdócio. E o sacerdócio é tão divino como o nimbo dos santos nos ícones. São Cosme de Etólia escreve: Se encontrardes um padre e um rei, honrai antes o padre. Se encontrardes um padre e um anjo, honrai ainda o padre. O padre é superior aos anjos... Quanto a mim, nada mais tenho que dizer-vos acerca dos padres. O meu dever, quando os encontro, é inclinar-me perante eles, beijar-lhes as mãos e pedir-lhes orações pela minha saúde. Se todos os seres humanos começassem a rezar a Deus, ELES NÃO PODERIAM REALIZAR O MISTÉRIO DA CONSAGRAÇÃO DAS HÓSTIAS. MAS UM ÚNICO PADRE, MESMO PECADOR, PODE REALIZÁ-LO PELA GRAÇA DO ESPÍRITO SANTO (53).
O facto de meu pai ser padre fazia que eu lhe dedicasse uma mistura de amor e veneração.
- Pai, a mãezinha afirma que todos os Virgílios que viveram antes de mim foram miseráveis, porque nenhum conseguiu ultrapassar a condição humana e tornar-se santo. É verdade?
- Miseráveis, não - respondeu meu pai. - Foram homens. Pecadores e sem desejo de
* (53) São Cosme de Etólia: Sermões (Edição Aue. Kantiotis, p. 138). *
regressar ao estado original, à santidade. Mas nós somos todos semelhantes. Os Virgílios não foram piores que outros que usaram nomes diferentes...
- Pai, eu quero fazer-te uma pergunta muito séria e muito grave: como se deve proceder para se ser santo?
Esperava a resposta com a respiração suspensa. Dependia dessa resposta ser ou não ser santo. Poderia eu completar o calendário acrescentando-lhe o belo nome de Virgílio que lhe falta, nome ilustre mas que ninguém santificou?
- Que é que ele te pergunta, o meu filho?
- gritou mamã presbítera. Ela entrou na sala onde eu falava com meu pai como era seu hábito. Colérica. Quando menos se esperava. As suas aparições eram como erupções vulcânicas. Como tremores de terra. Como ciclones desencadeados em pleno dia, subitamente, arrancando árvores, destruindo tudo, deixando o Sol a brilhar sobre os estragos. Mamã presbítera era uma tempestade móvel. Um vulcão que nunca irrompia no mesmo sítio.
- Que te pergunta ele, o teu filho? - repetiu. - Pede-te outra vez explicações sobre as coisas santas? Avisei-o de que iria para o Inferno. Porque os homens ignorantes, se falam de teologia, acordam os diabos.
- Ele não falava de teologia, querida presbítera- disse meu pai, sorrindo. Calmo. Instruído.
- Parece-me que ouvi a palavra santo - retorquiu mamã presbítera. - Falar de teologia não é falar de santos? E tu consentes que se acorde o Diabo, aqui, debaixo do nosso tecto, no presbitério...
- Não era teologia. Era uma brincadeira, querida presbítera. Virgílio perguntava-me, muito simplesmente, que é que um homem deve fazer para se tornar santo. Mais nada. É uma pergunta que agrada a Deus.
- E quem é que quer tornar-se santo? Não ele, espero!
- Ninguém, querida presbítera. Infelizmente, já ninguém quer ser santo. É apenas uma pergunta inofensiva, como tantas que os rapazes fazem às vezes.
- Então, já que foi a ti que to perguntou, responde-lhe que nos nossos dias ninguém, absolutamente ninguém, se torna santo. Nos nossos dias, os homens tornam-se assassinos, ladrões, ministros, soldados, taberneiros... Todos adoptam os ofícios do Diabo. Ninguém se torna santo nos nossos dias. Deves dizer a verdade a esse rapaz. A fim de que ele conheça o mundo em que irá viver...
Mamã presbítera afastou-se. Como as tempestades. Fechando as portas com violência. Transportando para outro lado as calamidades.
- O que a mãezinha disse não é verdade - disse-me meu pai.
- Então uma pessoa pode tornar-se santa, como antigamente, mesmo nos nossos dias, pai?
- perguntei. Estava corado de felicidade. Porque eu queria, se ainda fosse possível nos nossos dias, adquirir a santidade, tornar-me num santo. Inscrever no calendário o nome de São Virgílio, Para felicidade dos anjos, dos outros santos e dos rapazes que mais tarde se chamassem Virgílio. Que não viveriam, como eu, sem festa onomástica.
Claro que se pode ser santo nos nossos
dias! - disse meu pai, com calma.
Aproximei-me dos joelhos de meu pai. Envolto na sua sotaina, que não estava ainda esfiapada pelos anos porque havia pouco tempo que desempenhava o sacerdócio, era erecto, flexível como uma túlipa negra. Uma túlipa negra muito bela.
- Deus sempre quis transformar os homens em deuses, santificando-os, divinizando-os - disse meu pai (54). - Deus misturou o seu sangue com o nosso para fazer de nós, os homens, um ser unificado com ele (55).
- Isso era antigamente, pai, mas nos nossos dias, nos tempos em que vivemos, já não há santos.
- Nos nossos dias é mais fácil do que antigamente - respondeu meu pai. - Deus não permite que a nossa geração seja afectada pelo Diabo como eram as gerações dos nossos antepassados, porque Deus sabe muito bem que os
* (54) São Diádoco de Photice: P. G., 65, col. 1146-D.
(55) São João Crisóstomo: P. G., 49, col. 260. *
homens, hoje, são fracos e não podem sustentar combates como antigamente (56).
Isto deu-me uma coragem enorme. Estava decidido. Tinha de tornar-me santo, por muito que custasse. Mas tudo que lia dizia-me que para se vir a ser santo era preciso sofrer, estar seguro de si, ser enterrado vivo, ser lançado às feras. Era preciso viver no deserto, comendo gafanhotos e raízes, habitar grutas na montanha, com os ursos, os lobos e outros animais selvagens... A vida de alguns santos emocionara-me a tal ponto que já escrevera um pequeno poema acerca da santa que cortara os dois seios com um gládio porque se recusara a negar Cristo. E um outro poema, mais longo, sobre São Máximo Confessor, esse nobre secretário do imperador de Bizâncio que abandonara as vestes de oiro e os palácios de mármore para se tornar monge. São Máximo tinha uma obra muito bela e uma grande eloquência. Cortaram-lhe um braço para que não pudesse escrever a verdade e cortaram-lhe a língua pela raiz para que não pudesse falar mais no Evangelho... Começara também outro poema sobre São João Damasceno, que fora secretário do sultão de Damasco; a sua palavra era de oiro e o seu estilo de grande poeta e de grande filósofo. Um dia, o sultão ordenou-lhe que cortasse a mão direita com um golpe de iatagã, a fim de que não pudesse escrever mais versos sobre a Mãe de Deus. Mas a Nikopeia,
* (56) Apotegmas dos Padres, António, 23. *
a vitoriosa Rainha do Céu, desceu à prisão, apanhou a mão cortada do seu poeta e colou-lha. Mais tarde, como recompensa e recordação da que recuperara, São João Damasceno ofereceu ao ícone da Virgem do seu mosteiro uma mão de prata. Por isso, na igreja da nossa aldeia havia uma Theotocos com três mãos, a Trichereoussa, cópia da do ícone à qual o santo damasceno oferecera uma mão de prata.. - Depois de todas estas histórias, apercebi-me de que é quase impossível ser-se santo. Mas eu decidira tentá-lo a todo o custo. Tinha como máxima uma frase de Orígenes, impressa na capa de um livro de orações: Vale mais morrer na estrada em busca da vida perfeita do que não partir (57).
- Tornar-se santo é a coisa mais natural que um homem pode realizar na Terra - disse meu pai.
- Mas não é extremamente difícil, impossível até, alcançar a santidade? - perguntei.
- Não. É coisa natural. A mais natural para o homem. Temos todos, todos, o dever de nos tornarmos santos. Ordenam-nos que nos tornemos santos. Como afirma São Basílio o Grande: O homem é uma criatura que recebeu ordem de se tornar Deus (58).
Confiava em absoluto no meu pai. Primeiro, como pai segundo a carne. Como homem superior
* (57) Orígenes: Homilias sobre o Êxodo, V, 4; Corpus graecorum scriptorum, VI, 189.
(58) São Basílio o Grande: P. G., 36, col. 560-A. *
aos outros pela sua natureza angélica e como pai espiritual, como padre, como co-autor do meu novo e verdadeiro nascimento, o do meu baptismo.
- Sabes tu, Virgílio, o que é um santo?
- Claro que sei - disse. - É um homem que está no Céu. E do qual vemos a imagem nos ícones. Rodeada da luz que se chama nimbo.
- Exacto. Mas um santo é um homem. E um homem, sabes o que é um homem? É uma criatura que procura a felicidade. O homem é isso. Essencialmente, todos os homens, ao longo da vida, limitam-se a procurar a felicidade. Os santos e os assassinos, os ladrões e os afortunados, os pecadores e os virtuosos - todos os homens que viveram, vivem e viverão na Terra empenham-se numa única coisa: procurar a felicidade. O que diferencia os homens é unicamente a maneira, o sítio e os meios que escolhem para se tornarem felizes. É nisso que o santo é diferente do assassino. Porque ambos, quer o santo, quer o assassino, limitam-se a procurar a felicidade. Procuram-na, apenas, de maneiras diferentes.
Eu era poeta. Tinha sete anos. Não compreendia tudo. Principalmente porque tudo era novo para mim. Inesperado. Depois, o medo paralisava-me. Porque, se minha mãe, a admirável mamã presbítera, entrasse naquele momento, se ouvisse meu pai dizer que os santos e os assassinos são homens que procuram igualmente a felicidade, tal facto teria ocasionado um drama. Irreparável. Pior que o fim do mundo. Porque minha mãe não admitiria nunca que se pronunciassem na mesma frase as palavras assassino e santo. Para ela, o sagrado, o santo, estava tão separado do mal e do profano como o azeite da água, o Céu da Terra, o branco do negro... Felizmente, mamã presbítera nada ouvira. A trovoada não caiu sobre mim nem sobre meu pai. Pelo menos desta vez.
- Pai, tu que és padre, podes afirmar que é fácil uma pessoa tornar-se santa? Mesmo perante o mundo inteiro? Ou tu dizes-me isso porque sou uma criança?
- Não, di-lo-ia a qualquer pessoa. Porque tornarmo-nos santos, ser deificado, não significa ser transformado no que não éramos, mas ser renovado gloriosamente pela transformação naquilo que éramos antes (59). Tornar-se santo é reencontrar a sua própria natureza. O estado primitivo do homem era a Felicidade e o Paraíso. Procurando tornar-se santo, tenta tornar-se melhor e mais feliz como lhe foi destinado por natureza.
- Se isso é assim tão fácil, por que razão há tão poucos santos na Terra? Porque é que tu, por exemplo, que és meu pai segundo a carne e segundo o espírito, nunca tentaste sê-lo?
Olhava-o. E dizia para comigo que ele teria
* (59) São Diádoco de Photice: P. G., 65, col. 1148-A. *
sido o mais belo santo da Igreja. Tão belo como o arcanjo que está pintado nas portas diaconais do iconostase...
- Responde, porque não tentaste tu tornar-te santo? Tu dizes que é tão fácil... Responde!
- Ninguém quer tornar-se santo - disse meu pai. - Nem eu próprio o quis. Isso nunca me passou pela cabeça.
Estava assombrado. Porque havia falta de lógica. Porquê aceitar ser soldado quando se pode ser general? Porquê ser lacaio quando se pode ser imperador? Se a santidade está ao alcance de toda a gente, porque é que toda a gente quer ser tudo, menos santo? Fiz a mesma pergunta, depois, a todos os rapazes da aldeia. A seguir aos da cidade. A todos os meus condiscípulos, na escola. Aos universitários. Aos seminaristas. Aos padres. Aos bispos. Ninguém, ninguém, até este momento, desde que existo, me disse que queria tornar-se santo. E ninguém pensou nisso. Nunca. Tal coisa afigura-se-me o cúmulo do absurdo. A mais terrível falta de lógica. Nos nossos dias, quer-se viajar no espaço, ir à Lua, e a Marte, e a Vénus, e a Mercúrio. A toda a parte. É belo. É muito elevado. Mas ao Paraíso, que é ainda mais elevado e mais belo, ninguém quer ir. Ninguém quer tornar-se santo.
- Porque não quiseste ser santo? Porque é que nem sequer pensaste nisso?
Meu pai, que nunca mentia, respondeu-me:
- Pensei, meditei e decidi, primeiro, passar nos exames do seminário. Em seguida tornar-me padre. Depois dar um bom exemplo aos meus filhos e aos meus fiéis. Os meus pensamentos e os meus sonhos eram imediatos. Diz-se que se sonha sempre com algures. Mas este algures nunca é muito alto. Nem muito longe. Algures é sempre do outro lado da estrada. Algures é a casa do vizinho. A cidade. A capital. Nunca se sonha com um algures longínquo. Por exemplo, o Paraíso, o Céu. Tornar-me santo? Tenho quase vergonha de o confessar. Nunca pensei tornar-me santo. Nem eu nem nenhum dos homens que encontrei na minha vida. Nunca. Pensa-se e sonha-se no imediato. com o que se tem debaixo dos olhos, ao alcance dos sentidos...
Seguiu-se um longo silêncio. Meu pai sentia-se humilhado pela primeira vez na sua vida. E muito profundamente. Por minha causa. Porque eu, que era poeta e tinha sete anos, lhe dissera verdades amargas.
- Renunciaste a ser santo sabendo de antemão que podias sê-lo? - perguntei.
- Todos os homens renunciam a algo de formidável... Renuncia-se a ser santo para se ser cura, moleiro ou militar... Isso é devido ao nosso estado de decadência geral.
Meu pai tinha quase as lágrimas nos olhos. Não se viam. As lágrimas verdadeiras não se vêem. Adivinham-se pelo brilho do olhar. Ele apercebia-se do seu fracasso. Desperdiçara a vida. E sabia-o por mim. Porque lhe mostrava que ele, tal como os outros, se assemelhava aos herbívoros que comem unicamente o que encontram perto do focinho. Ninguém tem a coragem da grande, da verdadeira aventura do homem, que é o Céu, o Paraíso. O máximo da aventura humana é outro continente, ou outro oceano, ou outro planeta... É terrivelmente pouco. Humilhante. Para nós que somos filhos de Deus.
Porque Deus, o Criador, nos edificou para as grandes empresas. Não para objectivos e tarefas mesquinhas. Tomemos a posição vertical do homem. A posição do homem é direita, em direcção ao Céu. Ele olha para cima. Esta atitude torna-o apto para o comando e simboliza o seu poder real. Entre todos os seres, só o homem é feito assim, ao passo que o corpo de todos os outros animais se inclina para a Terra. Para indicar claramente a diferença de dignidade que há entre os seres curvados sem o poder do homem e esse poder acima deles colocado. Entre os animais, com efeito, os membros anteriores do corpo são os pés, porque a inclinação do corpo exige um apoio dianteiro. Na constituição do homem, tais membros tornaram-se mãos. Para uma posição vertical, bastava um único apoio, o qual, graças aos pés, permite uma sólida estabilização (60).
- Pai, como explicas que o homem, criatura
* (60) São Gregório de Missa: P. G., 44, col. 144-B. *
livre e soberana, como Deus e os anjos, possa contentar-se com tarefas de escravo?
-É o Diabo que nos impede de olhar o Céu e nos obriga a fixar os olhos na Terra e nas questões mesquinhas... Quando os Judeus eram escravos, no Egipto, o faraó designou-lhes uma tarefa que os constrangia a permanecerem de olhos fixos na Terra, sem nunca olharem o Céu. É o que nos sucede. Para os impedir de verem o Céu, os faraós obrigavam os Judeus a fabricar tijolos. Também nós, todos os homens, fabricamos tijolos a vida inteira, e, ao fazê-lo, quer dizer, olhando unicamente a Terra, nada distinguimos do firmamento. O Demónio procura minar a nossa natureza e destruí-la. Deste modo, esforça-se por impedir os que estão sob o seu império DE OLHAREM PARA o CÉU, PELO QUE, OBRIGANDO-OS A FABRICAR TIJOLOS, FÁ-LOS INCLINAR-SE PARA A TERRA.
Estava assombrado. As actividades humanas, quase todas ou absolutamente todas, estavam assimiladas à fabricação de tijolos. Não há nobreza nas criações, nas actividades humanas? Claro, na minha idade, eu não compreendia tudo. Mais tarde, porém, muito mais tarde, apercebi-me de que toda a actividade estritamente humana, sem abertura para o Céu, não passa de fabricação de tijolos. Nada de verdadeiramente válido subsiste. Qualquer actividade humana, por mais alta e genial que seja, está contida em certos limites. Tal como os tijolos estão contidos nos moldes. E tudo o que está dentro de certos limites não é nem virtude nem santidade (61).
- Todos nós fabricamos tijolos - disse meu pai. - Como os escravos judeus sob o jugo do faraó. O que nos impede de ver longe. Acima de nós próprios. O que nos impede de ver Deus. Mas há mais. Tudo o que pertence aos gozos materiais é feito necessariamente de terra e de água, quer se trate dos prazeres do ventre ou do que diz respeito às riquezas (62). Como os tijolos. A mistura destes dois elementos forma a lama, a qual merece o nome que tem.
- Pai, quero confessar-te uma coisa - disse eu. - Desejo tornar-me santo. Dar um São Virgílio ao calendário. Pensas que terei forças para tanto?
- Claro que tens possibilidade de te tornares santo. Deus colocou o destino nas nossas mãos. É na nossa vontade que reside a nossa salvação (63).
- Que devo fazer?
- Mas tu, realmente, queres ser santo?
- Sim - respondi, enchendo a boca com este "sim". Como se enche a boca quando se come compota. Respondi com todo o meu coração. Cheio da minha pessoa. Tal como um violino, no qual não vibram só as cordas, mas também toda a madeira. - Farei tudo que for preciso.
* (61) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 301-A.
(62) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 344-A.
(63) São Máximo o Confessor: P. G., 90, col. 953-B. *
E então tornar-me-ei santo, não é verdade? Não me estás a mentir?
- Não.
- Que devo fazer, pai, para começar a tornar-me santo? Para tornar-me São Virgílio?
- Para começar e para acabar, e sempre, só deves fazer uma coisa. Uma única. E és um santo.
- Para construir uma casa, uma estrada, uma cadeia, muitas coisas são precisas - disse eu.
- Não é possível que uma coisa só baste para se ser santo. Tu dizes-me isso porque sou uma criança. Tu não me levas a sério.
- Sim! Eu levo-te muito a sério - respondeu meu pai. - De ânimo leve não se pode falar de santidade. Mesmo quando se fala com uma criança.
- Então diz-me que devo fazer para me tornar santo? Para haver um São Virgílio no calendário? Quero começar já. Agora mesmo...
- Para te tornares num santo, só tens uma coisa a fazer: AMAR os TEUS INIMIGOS.
- Não é verdade - disse eu. - Tão pouca coisa para me tornar num santo do calendário? Amar os inimigos chega?
- Chega.
- Amarei os meus inimigos a partir de agora como amo o meu pai e a minha mãe, como amo Deus e a mim mesmo.
Estava maravilhado. Nunca imaginara que era tão fácil ser santo. Estava revoltado por tão poucas pessoas o terem sido quando era tão fácil.
Quando só uma coisa bastava fazer: AMAR os INIMIGOS.
- O começo será difícil - disse meu pai. - Porque é o homem que deve escolher. A princípio, é como o barqueiro que, para sair do porto, deve remar. Deve contar unicamente com a sua vontade e as suas forças. Mas depois chega a graça, a ajuda de Deus, que nos impele, como o vento impele os navios... Soprando nas velas.
Sentia-me feliz. A minha carreira e o meu destino, na Terra e no Céu, no Tempo e na Eternidade, estavam decididos. Seria um santo! E nada me deteria. Porque eu sabia - meu pai ensinara-mo - que parar de correr nas estradas da virtude é começar a correr nas do vício (64).
E sabia também que a vida de santidade é suficientemente rica para se socorrer a si própria em todas as vicissitudes da viagem (65).
Mas a minha felicidade não durou muito.
- Não posso começar imediatamente a minha luta pela santidade - disse a meu pai, depois de muito pensar. E chorava. Como nunca chorei na minha vida. - Eu nunca serei um santo, meu pai, não haverá nunca um São Virgílio no calendário... Não posso amar os meus inimigos...
- Não? - perguntou meu pai. Ele sabia que é uma coisa impossível quando só se dispõe de forças humanas. Na Terra, Cristo, sozinho, conseguiu amar realmente os seus inimigos. Mas
* (64) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 300.
(65) Orígenes: Corpus graecorum scriptorum, IV, 34. *
meu pai estava admirado de que eu me tivesse apercebido tão depressa das dificuldades. Porque é mais fácil suportar o martírio do que amar os inimigos.
- Porque é que não podes amar os teus inimigos? - perguntou ele.
- Porque não tenho nenhum inimigo, pai... - disse. Como poderia amar uma coisa que não tinha... Chorava. Estava desesperado. Por não ter inimigos. Para os amar. Porque era ainda muito jovem para ter inimigos. Mesmo inimigos pequeninos. Não tinha nenhum. A minha tentativa para tornar-me santo desmoronava-se. Por não ter inimigos a quem amar. O que me parecia mais terrível ainda era o desespero de não os vir a ter. Toda a noite supliquei a Deus que me desse, a mim também, um inimigo. Ao menos um. Para poder amá-lo e tornar-me santo. Mas no dia seguinte eu continuava sem inimigo. Procurei em vão. Por toda a parte. O dia inteiro. E à noite, perguntei, com desespero, a meu pai:
- Pai, pensas que eu conseguirei ter ao menos um inimigo na Terra?... Ou Deus privar-me-á para sempre de inimigos? Nesse caso, o caminho da santidade está fechado para mim. Sem inimigo, não se pode ser santo.
- Isso é a única coisa que nunca faltou a nenhum homem, desde que o mundo é mundo. E qualquer homem, seja ele quem for, tem sempre inimigos. Ainda que o seu amor não os possa conceber.
- Então, tens a certeza de que terei também um dia inimigos?
- Tê-los-ás, sem dúvida! Mais depressa do que imaginas!
Adormeci feliz. E dormi bem. Foi a noite mais bela da minha vida. Nessa noite, sonhei que os meus inimigos chegavam às centenas. Precisava tanto deles! Porque sem inimigos não havia santidade!
Bios Kai Politeia
ESPERAVA com impaciência que Deus satisfizesse as minhas orações quotidianas dando-me um inimigo. Por enquanto, continuava sem o ter. Evidentemente que o podia arranjar. Não há nada mais fácil. Para o conseguir, até nem é preciso fazer nada. Mas Deus poupou-me ainda. Deus amou sempre os pequeninos. Não desprezeis os pequeninos, ordenou o próprio Cristo. Declaro-vos que os seus anjos, nos Céus, vêem a todo o momento a face de meu pai que está nos Céus1 (.)
Esperava confiado a chegada do meu primeiro inimigo. Para responder com amor à sua inimizade. E conquistar a santificação do meu nome. Inscrever o nome de São Virgílio no calendário. Estava convencido de que para tornar-me santo só era preciso uma coisa: AMAR os INIMIGOS. Claro, há inúmeras maneiras de atingir a santidade. A propósito disso, perguntei a meu pai:
- Porque é que os santos enveredaram por
* (1) São Mateus, XVIII, 10. *
tantos caminhos para chegar ao Céu? Por exemplo, os estilitas que viviam no alto duma coluna, os anacoretas que vivem no deserto comendo gafanhotos. Porque é que para se ser santo, só é preciso amar os inimigos?
- Indiquei-te o caminho mais duro, o mais seguro e o mais directo, o amor pelos nossos inimigos. Mas há tantas santidades possíveis nos Céus como destinos pessoais na Terra. Há tantas uniões com Deus como seres humanos. Isto supondo que cada um estabelece uma relação absolutamente única com a divindade. Mas a suprema prova para atingir a santidade é amares o teu próprio inimigo.
Esperava, portanto, esse inimigo a pé firme. O primeiro da minha vida, graças ao qual inscreveria o meu nome no calendário. E que me daria, não uma coroa de folhas de carvalho, como se dá às crianças que tiveram boas notas na escola, mas uma coroa de luz, que cercaria a minha cabeça para a eternidade. E que nunca se extinguiria, porque o próprio Céu, o Sol, a Lua e os astros acabarão. O Céu abrir-se-á, as suas portas, fechadas desde a origem dos tempos, recuarão e deixarão ver as realidades supracelestes (2). Isso acontecerá imediatamente depois de a Lua e o Sol se apagarem como velas. Tal coroa
- o nimbo da santidade - permanecerá. Diz-se que as crianças têm falta de lógica. Mas eu não me envergonho de haver decidido, em pequeno,
* (2) Eusébio de Cesareia: P. G., 24, col. 596-C, e P. G.,
24, col. 188-B. *
tornar-me santo. Em vez de querer ser outra coisa. Mesmo hoje, e aqui, num país lógico por excelência, o de Descartes, onde vivo no exílio há um quarto de século. Não. A minha decisão de tornar-me santo era lógica. Como a geometria. Como a matemática. De acordo com todos os dogmas da Igreja do Oriente e do Ocidente. Tinha apenas uma dificuldade: o facto de não ter inimigos. Para os amar.
- Se se amar todos os homens da Terra com um amor igual e irrepreensível, não é a mesma coisa que amar os inimigos? Sobretudo, se não se os tem?
- Isso é uma armadilha do Diabo... - respondeu meu pai. - O amor que se dedica aos milhares de homens que existiram, existem e existirão na Terra não vale o amor que se dedica a um único homem, o amor que dedicares àquele que te fez mal. Amar os outros é fácil. Mas amar o que espeta pregos na tua carne, o que te arranca a língua ou te vasa os olhos! É esse que é necessário amar, se desejas o nimbo da santidade. O inimigo autêntico. Não os que te não molestaram ou que não te fizeram o mal supremo. A filantropia, o amor dos homens, e a filadelfia, o amor dos teus irmãos, não passam de palavras vãs, se entre os homens e os irmãos que tu amas não incluíres aquele que te dá a morte e te espeta pregos na carne. Isso é o ágape, o amor cristão. É um amor igual em relação a todos os seres humanos, acrescido do amor particular pelo teu inimigo mortal. Um amor gratuito. Espontâneo. Igual ao amor por ti mesmo e ao amor que votas aos teus amigos.
O sofrimento que deveria provocar-me automaticamente o meu primeiro inimigo, no momento da sua chegada, no dia em que Deus mo enviasse, aterrorizava-me. Todas as crianças têm medo do sofrimento físico. Pensava em São Máximo Confessor, a quem tinham cortado a língua e o braço direito. No poeta São João Damasceno, a quem ordenaram que cortasse a mão direita para não escrever mais poesias à Theotocos. Mas enchia-me de coragem. E, apesar da coragem, vacilava à ideia do sofrimento físico. Perguntava a mim próprio se minha mãe teria podido amar o cão raivoso que lhe dilacerara o ombro durante a noite. E eu disse a meu pai que, apesar do meu desejo de santidade, tinha medo da dor.
- Até Cristo teve medo da dor! - disse ele.
- Recordas-te de como ele chorou no monte das Oliveiras?
O sofrimento infunde sempre medo. Por isso é que a recompensa dada àqueles que o suportam é imensa, eterna, e sem igual. Mas, para os que amam Deus, tudo se torna fácil. Até os nossos inimigos serão simpáticos se amarmos mais Deus do que o nosso prazer (3).
- Pai, não quero enveredar por um caminho que está acima das minhas forças. Pensas realmente
* (3) São Máximo o Confessor: Centúrias sobre a Caridade, I, 71. *
que Deus descerá um dia do Céu a fim de me ajudar a atingir a santidade, a mim, Virgílio Gheorghiu?
- Certamente. E mais! Deus virá morar em ti, como se mora numa casa. Se tu quiseres. Porque Deus habita realmente em nós se o recebermos... Tornamo-nos na habitação de Deus se formos até ele, depois de cortarmos com as preocupações terrestres (4).
Tinha uma tal confiança nas palavras daquele que era duas vezes meu pai - segundo a carne e segundo o espírito - que, a partir desse momento, adquiri a certeza de que, se amasse o meu inimigo, ganharia a santidade. A partir desse momento, eu tive a certeza de que tudo dependia exclusivamente da minha vontade. Porque a salvação depende da nossa vontade (5).
Claro, ficaria sempre sem festa onomástica. E isso pesava-me, mas, se chegasse a amar o meu inimigo - aquele que ainda não conhecia-, conquistaria a santidade. E Deus viria habitar-me. Não unicamente na minha casa. E não apenas um dia por ano, no dia da minha festa onomástica. Deus desceria e habitaria no meu corpo, como na sua própria morada. Tomar-me-ia - eu! no abrigo, no templo e na casa de Deus. Para sempre. Até ao fim dos séculos. Este sonho sublime iluminava a minha infância. E porque é preciso prepararmo-nos sempre para o que se vai fazer mais tarde, eu preparei-me
* (4) São Basílio o Grande: Cartas, II, 4.
(5) São Máximo o Confessor: P. G., 90, col. 953-B. *
-Para tornar-me santo. De que serve dedicarmo-nos a um oficio se não procurarmos aprendê-lo bem? (6)
Comecei, portanto, a ler tudo acerca dos santos, acerca da sua vida maravilhosa e dos seus milagres. Do mesmo modo que os rapazinhos, quando querem ser marinheiros, lêem tudo o que se refira ao mar, aos barcos e às viagens fantásticas. A vida dos santos, os seus nomes, a data da sua festa, foram as minhas leituras preferidas. Decidira tornar-me como eles. Desde que era senhor da minha vontade, seria ilógico não tentar segui-los. E mesmo agora, passado meio século, já grisalho, vivendo exilado num país cartesiano, numa época em que os homens crêem em tudo, excepto na existência dos anjos e do Paraíso, não me envergonho de tal aspiração. Nunca encontrei leitura mais apaixonante, mais extraordinária do que aquela que fala da vida dos santos. Nenhum facto sensacional relatado nos nossos dias pela imprensa e pela televisão ultrapassa em novidade e importância o que já li e aprendi na vida dos santos. Eis, por exemplo, o último facto sensacional que perturba o mundo, na altura em que escrevo estas páginas: Um médico da África do Sul retirou o coração a um doente e enxertou-lhe o coração de um mestiço. Aos sete anos, já conhecia tais enxertos médicos na vida dos santos. Eis um, que se assemelha ao da África
* (6) Apotegmas dos Padres, Poemen, 130. *
do Sul. O papa Félix (526-530) construíra em Roma uma igreja, a que deu o nome de Miranda, dedicada aos santos médicos Cosme e Damião, também denominados, no calendário, por doutores anárgiros (doutores sem dinheiro), porque nunca recebiam honorários. O diácono da nova igreja usava o nome de Justiniano, como o meu actual patriarca da Roménia, porque entre os Romanos e os Romenos os padres, os patriarcas e os diáconos tomam muitas vezes o nome de Justiniano. O diácono Justiniano tinha uma perna doente. A carne apodrecia. Não havia remédio possível. Uma noite, os dois santos médicos, patronos da igreja, desceram do Céu até à casa do diácono Justiniano, examinaram a perna doente enquanto ele dormia e viram que era impossível curá-lo. Era absolutamente necessário um enxerto. Eis como a cena é descrita na vida dos santos: O diácono Justiniano tinha uma perna minada por um cancro. Então, o piedoso diácono, durante o sono, viu São Cosme e São Damião aparecerem-lhe com unguentos. E um dos santos disse para o outro: "Onde encontraremos carne fresca para substituir a carne apodrecida que vamos cortar?" O outro santo respondeu: "Enterraram hoje um negro no cemitério de São Pedro. Tomemos uma das suas pernas e dêmo-la ao nosso servidor e diácono." E os dois santos doutores assim fizeram. Deram ao diácono Justiniano a perna do negro e enterraram no túmulo deste a perna do doente. E o diácono, ao acordar, vendo-se curado e com uma perna negra em vez da perna doente, contou a sua visão e o milagre que se seguira. Acorreu imediatamente uma grande multidão ao túmulo do negro. Abriram-no e verificaram que lhe faltava uma das pernas e que em seu lugar se encontrava a perna branca do diácono Justiniano da santa igreja de Miranda (7).
Evidentemente que no tempo do diácono Justiniano não havia nem jornais nem televisão, nem repórteres fotográficos para divulgar o êxito do enxerto. Mas houve, um pouco mais tarde, o pintor Fra Angélico que pintou a cena do enxerto da perna negra do morto no corpo do diácono branco, um quadro de grande beleza que se encontra no retábulo de São Marcos, em Florença, no Museu de São Marcos. Antigamente, eram os pintores que desempenhavam o ofício dos fotógrafos e dos cineastas.
Eis, portanto, porque continuo a ler, como aos sete anos, com paixão, a vida dos santos. Encontra-se lá tudo o que se passa no Céu e na Terra, no Tempo e na Eternidade. Uma das primeiras coisas que me chamou a atenção no calendário foi a desigualdade entre os santos. Revoltei-me tanto contra a desigualdade dos santos do calendário, como me revolto hoje contra a desigualdade das raças e das classes. No calendário, existiam, na minha opinião, não classes privilegiadas e outras indigentes, mas
* (7) Jacques de Voragine: A Lenda Doirada, São Cosme e São Damião, 27 de Setembro. *
verdadeiras castas impenetráveis. Havia santos nobres e santos proletários, e até santos párias. . - Não - explicou-me meu pai. - Todos os santos são iguais. Porque qualquer santo é um homem que, desde a sua vida terrestre, se tornou templo e habitação de Deus. E aquele que é habitado por Deus tem tudo.
- Porque há então - disse eu - santos inscritos no calendário a tinta vermelha e outros, a maioria, a tinta preta? Não é um privilégio?
- A cor da tinta foi sempre um privilégio. Um sinal de nobreza. Pertença de uma casta superior. O imperador de Bizâncio assinava com tinta de ouro. Alguns dignitários da sua corte tinham o direito de assinar com tinta vermelha. E os meros funcionários assinavam com tinta de cor vulgar.
Meu pai explicou-me então que há santos, como São Nicolau, São Constantino, Santa Helena, que estão assinalados no calendário a tinta vermelha, sendo o nome precedido de uma cruz da mesma cor para indicar que nesse dia a festa do santo terá a mesma liturgia e a mesma solenidade que aos domingos.
- Não é desigualdade?
- Não - respondeu meu pai. - A grandeza dos santos é igual, porque todos são portadores de Deus. com os santos sucede a mesma coisa que sucede com as igrejas. Há catedrais maiores que palácios de reis e imperadores, há igrejas que são do tamanho de choupanas. Mas, quer seja de pedra ou de oiro, grande como uma montanha ou pequena como uma cabana de pastor, qualquer igreja representa a cópia exacta da verdadeira Igreja do Céu. Porque todas as igrejas da Terra não passam de cópias da Igreja de Cima. Cada um constrói a igreja terrestre com os meios de que dispõe, segundo o gosto da época, segundo o estilo adoptado no país e segundo a fortuna dos séculos. Mas Cristo está uniformemente presente, tanto na igreja-choupana como na igreja-catedral. Não há diferença. com os santos sucede a mesma coisa. Há cidades que amam um santo mais que outro, prestando-lhe um culto mais faustoso. Isso não quer dizer que o consideremos maior que os outros. Ou diferente. Não. Porque seria impossível. A luz divina é a mesma em toda a parte e em todos os santos, como Cristo é o mesmo e igualmente vítima e padre em todas as igrejas, sobre todos os altares, de oiro ou de madeira. A cidade de Tessalonica foi salva uma vez por São Demétrio e por isso festejam-no como seu patrono mais faustosamente que a outros. Os Eslavos honram mais São Vladimiro, os Romenos, São Nicolau... Cada santo homem honra o santo do qual possui o nome mais que aqueles cujos nomes são usados pelos outros homens. Não há injustiça nem desigualdade!
Fiquei tranquilo. Como há uma única Igreja, há uma santidade única. De qualquer modo, teria preferido ver o nome de São Virgílio escrito a tinta vermelha e precedido de uma cruz. Os santos inscritos no calendário a vermelho têm direito à liturgia do domingo. Nesses dias, respeita-se o descanso dominical. As escolas fecham, os sinos repicam. É dia feriado. Há uma segunda categoria de santos, os que, se bem que inscritos no calendário a tinta preta, têm o nome precedido de uma cruz. Também a estes cabe a liturgia do domingo. Mas não obrigatória. Habitualmente, só os mosteiros celebram a divina liturgia dos santos cujo nome é precedido de uma cruz preta.
Os santos da terceira categoria são aqueles que não têm nenhuma cruz a preceder-lhes o nome. Na sua festa, trabalha-se como nos dias vulgares e as igrejas permanecem fechadas. Mas não é a última categoria. Há santos de condição ainda mais humilde. Os que não têm um dia inteiro só para eles. Os que partilham o seu dia de festa com vários santos. Sucede o mesmo com um doente pobre que, no hospital, não é admitido sozinho num quarto, mas com um, dois ou três outros doentes. Chega a haver cinco, seis, dez santos no mesmo dia. Como numa enfermaria.
Tinha pena desses santos, porque sabia perfeitamente que a sua santidade em nada diferia da dos outros, porque Deus é como a luz do Sol, que é igual para os santos a tinta vermelha e a tinta preta, para os santos que beneficiam dum dia inteiro de festa e para os santos que estão amontoados na mesma folha do calendário.
Meu pai, que era muito jovem e compreendia o meu desgosto, porque nós, os pobres, não podemos ver nenhuma desigualdade, verdadeira ou falsa, sem nos sentirmos pessoalmente atingidos, explicou-me um dia que os maiores santos são os que não figuram no calendário.
- Os santos anónimos são os maiores. Festejam-se uma vez por ano. Todos. No Dia de Todos-os-Santos. Porque a santidade maior é a que não é conhecida, excepto de Deus. A santidade está oculta. Pudica. Não se mostra aos outros. Nada do que é visível é bom (8).
O desejo de todos os santos era passarem despercebidos no mundo. Não queriam ser conhecidos. Porque nada do que é visível é eterno, e o que se vê é passageiro, e o que não se vê é eterno. A partir desse dia, a minha maior veneração foi votada aos santos anónimos, àqueles cujo nome brilha no Céu, mesmo sem os homens o saberem. Sem que figurem no calendário.
- Claro, não tens festa onomástica - disse meu pai. - Mas como tens a certeza de que entre os santos forçados, os cristãos de Roma que foram mandados para as minas da Roménia no primeiro, no segundo e no terceiro século do cristianismo e que morreram no fundo das minas, acorrentados, por causa da sua fé em Cristo, não houve santos mártires chamados Virgílio, Trajano, Ovídio, Domiciano, César? Porque eram todos romanos, os melhores de Roma. Mas os seus nomes e santidades
* (8) Santo Inácio de Antioquia: Carta aos Romanos, iII, 4. *
só Deus conhece. Os homens, via de regra, ignoram o melhor. E o calendário é uma coisa humana- OS santos mais admiráveis são com certeza desconhecidos. Porque os melhores são úteis não para o presente, mas para toda a eternidade. Non ad praesens sed in aeternum pródesse meliora (9).
Há, portanto, no domínio da santidade, igualmente, a vala comum. Desde então, o dia mais santo do calendário, para mim, passou a ser o Dia de Todos-os-Santos, os santos Theognostoi, os santos ignorados pelos homens, unicamente conhecidos por Deus, e que repousam no Céu, mas que, cá em baixo, estão na vala comum dos desconhecidos. Sem nome. Sem sepultura individual!
Outra coisa que me impressionou, aos sete anos, foi o facto de nas edições gregas da vida dos santos estar sempre escrito: BIOS KAI POLITEIA [deste ou daquele santo]. Não era como em romeno: A Vida e os Milagres do Santo X. Porque politeia não significa milagre.
- Bios, em grego, significa vida - explicou-me meu pai. - Diz-se biologia, ou ciência da vida, biografia, ou história da vida, etc. Bios, na vida dos santos, não tem grande importância. A palavra significa mais ou menos a mesma coisa que a data do nascimento fisiológico. Na vida dum santo, lê-se como se chamavam a mãe, o pai, a aldeia natal e em que ano e dia nasceu...
* (9) Santo Agostinho: De Sancta Virginitate, 46. *
Na vida dum santo há tudo o que se relaciona com a sua existência terrestre, social, histórica. Coisas que só interessam na Terra. Temporalmente. Por isso, nas bios e politeiai dos nossos santos omitimos quase tudo o que se relaciona com a data do seu nascimento fisiológico. Ignora-se mesmo o século e o país em que viveram. Bios é o que os santos têm de comum com os animais, porque até os seres mais inferiores - os protozoários - têm uma bios, uma vida. Porque não foi graças à sua bios, à sua existência animal, que se tornaram santos. Nem devido aos acontecimentos históricos, nem tão-pouco às condições sociais. Nós, na vida dos santos, preferimos ir além de tudo o que diga respeito à bios do santo. Vida fisiológica, cor dos olhos, peso, altura, o século em que viveu, o nome do imperador que dominava o mundo ou o nome do país em que nasceu. O que faz um santo, não é a sua bios, a vida exterior, a existência fisiológica, mas a sua politeia.
- Isso quer dizer os milagres que os santos operam? - perguntei.
- Não. A politeia é a maneira, a técnica, o conjunto dos utensílios empregados pelos santos a fim de alcançarem a felicidade, tornando-se melhores, unindo-se a Deus, começando a deificar-se na Terra. Um santo é um homem que, sendo cidadão da Terra, é ao mesmo tempo cidadão do Céu. Ao longo da mesma vida, ele possui as duas cidadanias. A segunda, a celeste, é normalmente reservada ao homem depois da morte. Mas os santos são os privilegiados que podem possuir esta dupla cidadania logo na vida terrestre...
De novo me apercebia da grandeza da santidade. Que não se compara a nada nem a ninguém. Porque o santo está em toda a parte.
- E qual é a politeia que faz o santo?
- A politeia é a vida interior, moral, virtuosa, e todos os meios utilizados na sua realização... É a politeia que faz o santo. Como a festa onomástica, que é o verdadeiro dia de aniversário.
- A politeia é, portanto, respeitar os mandamentos?
- Também não - respondeu meu pai. - A politeia é o método pessoal, diferente, que cada santo adopta, após ter executado todos os mandamentos, para atingir a perfeição. Há uma infinidade de politeiai. Porque cada santo tem uma. E muda a sua politeia quando encontra outra melhor. Tal como se muda de ferramenta, ao encontrar-se uma mais adequada. O padre Dióscoro, um anacoreta do deserto, todos os anos adoptava uma politeia diferente. Por exemplo, durante um ano, a sua politeia era limitar-se a comer frutos e legumes (10). Santo Epifânio enviou um dia um mensageiro a casa de Abba Hilarião para lhe fazer este pedido: ((Vem para que nos vejamos antes de deixar o
* (10) Apotegmas dos Padres, Dióscoro, 1. *
corpo.)) E quando ele chegou, alegraram-se muito os dois. Durante a refeição, trouxeram uma ave. Epifânio deu-a a Abba Hilarião. Então, este disse: "Desculpa, mas, desde que vesti o hábito, nunca mais comi carne morta)), a que o santo respondeu: "Eu, desde que vesti o hábito, ainda não deixei ninguém adormecer com razões de queixa de mim e também ainda não me deitei ressentido." Hilarião retorquiu: "Desculpa, a tua politeia é melhor do que a minha". (11)
A melhor, a suprema politeia, é extirpar de si a inimizade. Amar os amigos e os inimigos com amor igual.
Compreendi que a politeia é um comportamento admirável introduzido na vida. E como o tom é que faz a música, é a politeia, o pormenor da vida íntima, que faz o santo. Não os milagres. Todos os sucessos quotidianos, as vitórias contra a matéria, em nome da primazia do espírito, são politeiai. O conjunto das teiai chama-se catorthoma. As politeiai pertencem ao domínio do espírito e da vontade. Porque não é à carne que devemos a vida conforme a lei (12). Assim, aquele que quiser realmente alcançar a santidade deve utilizar todas as espécies de politeiai. Exactamente como o escultor utiliza todas as espécies de instrumentos para criar uma estátua de mármore. É mais ou menos o mesmo
* (11) Apotegmas dos Padres, Santo Epifânio, bispo de Chipre, 4.
(12) São Paulo: Epístola aos Romanos, VIII, 12. *
trabalho. com a diferença que um trabalha sobre a matéria e o outro sobre o espírito. Soube mais tarde das palavras de Plotino, que recomenda que trabalhemos a nossa própria vida cortando na própria carne, exactamente como o escultor talha o mármore. Regressa a ti mesmo. O que quer dizer, olha para ti mesmo, diz Plotino. Se não vires ainda a beleza em ti, procede como o escultor diante duma estátua que deve embelezar. Ele tira uma parte, raspa, limpa, e vai polindo até a estátua mostrar um rosto belo. Tal como o escultor, retira o supérfluo, endireita o que estiver de esguelha, varre o que for sombrio, a fim de torná-lo brilhante, e não pares de esculpir a tua própria estátua até que o clarão divino da virtude se manifeste, até veres a temperança sentada no seu trono sagrado (13).
É o conjunto destas politeiai, destas operações virtuosas, sempre renovadas e sempre mais subtis, que forma a vida dum santo. Assim se torna num ícone. Porque, quando o trabalho se encontra adiantado, a luz divina desce sobre ele, como fogos de projectores miraculosos, e ele brilha mais que a Lua e o Sol. Fica despido de tudo que é pesado, feio, material, terrestre, e torna-se, não somente à imagem, mas à semelhança de Deus (14). Como fora criado na origem. E Deus reconhece-se nele. E habita nele...
* (13)Plotino: Enéadas, I, 6, 9, 7.
(14) Génese, I, 26. *
Estava deslumbrado com tais perspectivas. E comecei a trabalhar-me, como o escultor trabalha a sua estátua. Era muito pequeno. O material era novo. Podia modelá-lo. Meu pai esperava, como todos os pais da Terra, que o seu filho realizasse o que ele não conseguira realizar na vida. E dizia-me que na criação espiritual, na criação de nós próprios, tornamo-nos pais de nós mesmos. O nascimento espiritual não deriva de uma intervenção estranha, como acontece com os seres corporais que são produzidos do exterior. É o resultado de uma escolha livre e assim tornamo-nos, em certa medida, nos nossos próprios pais, autocriando-nos, exactamente como queremos ser, pela nossa vontade, forjando-nos segundo o modelo que escolhêramos. E temos possibilidade de nascer para uma vida superior (15).
Os outros seres devem o seu nascimento ao impulso dos pais, ao passo que o nascimento espiritual depende da vontade daquele que nasce... É, portanto, o autor do seu próprio nascimento. Diz-se, com efeito, que o ser nascido desta maneira escolheu livremente os seus pais (16).
Estava corado de felicidade, sabendo que renasceria numa outra vida. Porque a nossa existência terrestre, na vertente oriental dos Cárpatos, era terrível. Insuportável. Era a pobreza.
* (15) São Gregório de Nissa: P. G. 44, col. 328.
(16) São Gregório de Nissa: P. G., 45, col. 97-D e 100-A. *
A miséria. E eu sabia que podia transformar tudo isso. Ganhar a cidadania do Céu. Habitar o Céu e vivendo na Terra.
Todas as politeiai, a catorthoma, todas as virtudes e méritos adquiríveis, por mais brilhantes que sejam, nada valem sem o ágape. Sem o amor. Sem a caridade (17).
- A única coisa que conta, é amar o nosso inimigo - disse meu pai. - No dia em que conseguires amar o teu inimigo, atingirás a perfeição. E a santidade.
- Mas, por que razão amar particularmente o inimigo e não todos os homens?
- Porque no amor, a caridade perfeita não divide a única natureza humana segundo as diferenças que existem nas disposições morais. Visando sempre e somente essa unidade, ela ama todos os homens de igual modo, os calorosos e os amigos. Os cobardes como convém amar os inimigos, fazendo-lhes bem sem enfado e suportando os aborrecimentos que provocam sem mostrar ressentimentos. Sofrendo por eles, se as circunstâncias o exigirem, na intenção de conquistar amigos, caso seja possível. Nunca se desviando da atitude que lhe é peculiar. Os frutos da caridade estão ao alcance de todos os homens. Também Nosso Senhor Jesus Cristo mostrou a sua caridade não apenas por nós, mas sofrendo por toda a humanidade e dando a todos,
* (17) São Paulo: Primeira Epístola aos Coríntios, XIII. *
igualmente, a esperança da ressurreição (18). Se se quiser ser santo, semelhante aos anjos, é preciso saber primeiro que o estado do anjo é o amor. O ágape. A caridade (19).
- Eu quero ser santo - disse eu. - Conseguirei?
- Nada to impede!
- Mas ainda não tenho inimigos. Nenhum. E a minha súplica mais fervorosa é pedir ao menos um, e o mais depressa possível.
E, esperando a aparição do meu primeiro e tão desejado inimigo, comecei a escrever a minha bios. A minha vida. Que era muito curta. Aos sete anos, uma vida cabe em meia dúzia de linhas. Isso não tinha qualquer relação com a politeia. Porque a minha politeia fora firmemente escolhida: Amar os meus inimigos como a mim mesmo. Para os amar, era preciso tê-los. E escrevi, enquanto esperava, a parte sem importância da minha biografia, da minha vida terrestre. Parte que a maioria dos hagiógrafos omite. Como se omite, a justo título, o aniversário do nascimento fisiológico.
* (18) São Máximo o Confessor: Centúrias sobre a Caridade, IV, 61.
(19) São João Clímaco: P. G., 88, col. 1160-B.
Os antepassados, brancos como a neve fresca...
A minha bios, a história da minha vida até aos sete anos, era muito curta. Menos longa que um soneto. Não tem importância nenhuma para os meus projectos de santidade. Porque é uma simples bios, uma simples vida terrestre, sem politeia. Apesar disso, escrevo-a exclusivamente devido à sua pequenez e sobretudo por causa da sua brancura.
Nasci numa aldeia, na vertente oriental dos Cárpatos, a dois mil quilómetros a leste de Paris, ao norte da Roménia, na província da Moldávia. A aldeia chama-se Rasboeni. Não nasci exactamente em Rasboeni, mas num dos seus numerosos lugarejos, que se chama Valea Alba, palavras que significam Vale Branco. O distrito onde se encontra a comuna de Rasboeni chama-se Neamtz.
Nasci a 9 de Setembro de 1916. No meio da Primeira Guerra Mundial, que começara em
1914. Quando nasci, a guerra durava, portanto, havia dois anos, e todos os grandes povos do mundo combatiam. Aquando do meu nascimento, em 1916, o meu país, a Roménia, entrou também na guerra. Era um dos raros, quase o único país desta região que gozava de paz. Mas como a guerra era mundial, toda a gente devia participar nela. Era humilhante ficar de fora. Sobretudo para um país pequeno. Porque os países pequenos, como as pessoas modestas, passam a vida a imitar os grandes. Os suburbanos imitam os do centro da cidade, os pobres imitam os ricos e os pequenos imitam os grandes. A Roménia, como país pequeno, devia automaticamente imitar os grandes impérios. Bater-se como eles. Deixar de permanecer em paz. Era humilhante não seguir a moda. Havia, porém, um grande dilema. A Roménia nada tinha a ganhar na luta, nem do lado dos Austríacos, nem do lado dos Aliados. Teria sido, certamente, mais sensato continuar na neutralidade. Mas como arranjar tal coragem? Devia-se combater. Pouco importava contra quem. O principal era declarar a guerra a alguém, cessar de ser retrógrado, participar dos grandes movimentos da história. Não se pode usar vestido comprido quando todas as mulheres usam vestidos curtos e vice-versa. A Roménia devia entrar na guerra. Não se pode fugir à moda. Sem ser ridículo. Sem a desaprovação geral. A maioria dos países - mesmo na Segunda Guerra Mundial - bateram-se exclusivamente porque era de bom tom.
Conta-se que, no Governo romeno, havia dois grupos: uns queriam lutar ao lado da Áustria, outros contra a Áustria. Só se estava de acordo, por unanimidade, acerca da impossibilidade de continuar em paz. E porque não podia decidir-se, através da lógica e dos documentos, a escolha do inimigo, utilizou-se uma moeda. Se fosse "coroas", auxiliar-se-ia a Áustria, se fosse "caras" ir-se-ia contra ela. Assim, tornámo-nos aliados dos Russos, que ocuparam imediatamente metade do território moldavo.
Meu pai, muito jovem, era o cura de Rasboeni. Eu era, portanto, dois anos mais novo que a Primeira Guerra Mundial. E quando esta terminou, contava dois anos de idade e de guerra. As primeiras palavras que ouvi na Terra foram palavras de guerra. De miséria. De morte. De luto. De derrota. Ocupação. Órfãos. Viúvas...
É normal que só se oiça tais palavras se se vem ao mundo em plena guerra. E que guerra! A mundial! A primeira!
O segundo pormenor que diz respeito à minha pequena vida terrestre é o facto de ter nascido numa aldeia que se chama Rasboeni. O que significa, literalmente, os guerreiros, ou a aldeia dos guerreiros. Nesta aldeia dos guerreiros é que meu pai era cura desde 1914. Desde que saíra do seminário. Mas o lugarejo onde ficava o meu presbitério natal chamava-se Valea Alba, Vale Branco. Logo no começo, assim que pude abrir os olhos, ver as coisas e os rostos, assim que vi o lugarejo do meu presbitério natal, perguntei-me porque lhe chamavam Vale Branco.
Este lugarejo situava-se na vertente oriental de um vale. Era vulgar. Todos os nossos antepassados construíram as aldeias que nos legaram na vertente oriental. Voltadas para oriente. Como se constróem as igrejas. Sempre com o norte protegido como por um muro. Exactamente como se protege as costas e os ombros com um manto, virando a face para o Sol e para a luz. Era possível, portanto, chamar-se habitualmente vales a todas as aldeias e lugarejos. Porque todas as povoações são construídas da mesma maneira. Mas o que me surpreendia, olhando o meu lugarejo natal, era que se chamasse Vale Branco. Porque nada, excepto as paredes das casas caiadas, como, aliás, era comum, nada era branco. O Vale Branco era verde como todos os vales, coberto de flores na Primavera, cor de cobre no Outono, branco no Inverno e cor de cinza escura no fim do Inverno. O nome Vale Branco não lhe assentava, porque branco, só o era no tempo da neve, como todo o resto do país.
- Porque chamam ao lugar Vale Branco, pai? - perguntei.
-Porque houve um tempo em que o foi completamente... Como o Pólo Norte e o Pólo Sul, que são sempre brancos. Ou como os picos das grandes montanhas que estão eternamente cobertos de neve. No entanto, o nosso vale não era branco por causa da neve. Mas por causa dos nossos antepassados...
- Nós temos antepassados brancos? - perguntei, interrompendo meu pai, que prosseguiu:
-... e por causa dos nossos inimigos. Que também eram brancos. Como os nossos antepassados.
Era para mim uma grande surpresa saber que tinha antepassados brancos. Claro, nós, os Romenos, descendemos da Loba e de Rómulo e de Remo; portanto, somos de raça branca. Mas somos menos brancos do que os Ingleses ou do que os Suecos, os quais, por mimetismo, foram buscar à neve a cor da pele e dos cabelos. Nós somos brancos, mas latinos. Portanto, mediterrâneos. Portanto, de tez um pouco azeitonada... Ouvindo meu pai dizer que os meus antepassados eram brancos, imaginava que eram brancos como o açúcar, como a neve, ou como uma folha de papel... Era possível. Logicamente, porque não? Era normal que tivessem perdido a brancura com o tempo, vivendo em terras miseráveis e espezinhadas. Como os flocos de neve, as estrelas de gelo, que, ao caírem no chão, perdem a brancura sublime e tornam-se lama...
Pensei que a mesma coisa acontecera aos meus antepassados. Tinham caído do céu. Brancos como a neve. E foram espezinhados pelos inimigos e tornaram-se da cor da terra, tais como eram agora... Mas meu pai garantira-me que os inimigos também eram brancos... Ora, eu sabia que os inimigos nunca vinham do Céu, mas do leste. Não podiam, pois, ser brancos. Por isso, aos meus ouvidos de criança-poeta, as palavras inimigo e branco não ligavam. Do mesmo modo que não se pode dizer que o Diabo é branco. O inimigo é como o Diabo, é preto.
O Vale Branco fora, durante anos e anos, branco todo o ano. No Verão como no Outono e como na Primavera. E no Inverno, a neve branca caía sobre o branco do vale. Era o branco dos nossos antepassados e dos nossos inimigos. Igualmente brancos. Eram os seus ossos.
Meu pai extasiava-se sempre perante a beleza das narrações. Porque era crente e o que ama a Deus ama automaticamente a beleza. O que é um filoteos, um amoroso de Deus, é, por força, um filocalos, um amoroso da beleza. Meu pai explicou-me por que razão o Vale Branco
- Valea Alba - fora durante alguns anos exclusivamente branco. Mais branco do que o monte Branco e os picos cobertos de neves eternas.
Foi cerca do fim do século xiv. Nessa época, os Turcos, tendo conquistado o império bizantino, a África e o Oriente, partiram à conquista da Europa, ao mesmo tempo pela Espanha e pelos Balcãs. Os Turcos passaram várias vezes o Danúbio e conquistaram parcialmente os países romenos. Quando os exércitos muçulmanos, os terríveis janízaros, chegaram ao Moldava e ao Hosanna, ou Osana, no distrito de Neamtz, a norte da Moldávia, sobre a vertente oriental dos Cárpatos, a Moldávia era governada por um príncipe extremamente corajoso que se chamava Estêvão o Grande. Era um homem pouco corpulento, mas profundamente crente e amante da beleza. Chamando à Moldávia os maiores arquitectos da Geórgia, da Arménia, de Constantinopla, da Itália e da Suécia, mandou construir quarenta grandes igrejas e mosteiros. Ainda hoje, no pronaos, à entrada dessas igrejas, se podem admirar os frescos que representam Estêvão o Grande, rodeado da família, vestido de oiro, de veludo e de seda, com a coroa da Moldávia, apresentando de joelhos à Santíssima Mãe de Deus ou ao Cristo Pantocrator o modelo, do tamanho dum cofrezinho, da igreja que acabava de construir. Este príncipe cometeu muitos pecados, como todos os homens. Por exemplo, amava desmesuradamente as mulheres. Mas as suas qualidades de cristão, de moldavo e de homem eram tão grandes e elevadas como os seus pecados. Propusera-se deter o avanço dos Muçulmanos e manter a Moldávia cristã, tal como era desde a extinção do povo dos Imortais e desde a criação da Roménia pelos descendentes dos Romanos. Mas o exército do príncipe moldavo Estêvão o Grande era muito pequeno e o exército turco numeroso como a erva dos campos e as folhas das árvores da floresta. O príncipe usou de todas as espécies de estratagemas para deter o avanço dos Muçulmanos. Mas em Rasboeni, não longe do rio Hosanna, os Moldavos, comandados pessoalmente por Estêvão o Grande, foram, não apenas vencidos, mas literalmente engolidos pelas vagas imensas, incontáveis, dos invasores.
Estêvão, o indomável, não se deixou apossar pelo desânimo. Não. Buscou novos alentos. Agigantou-se. Lutou. E requisitou todo o gado do país: bois, vacas, carneiros, ovelhas. E edificou com eles uma barragem viva. Os Turcos, porém, passaram por cima da barragem de carne viva como as águas furiosas passam por cima das barragens de pedra, espezinhando-a com as ferraduras dos seus cavalos. Estêvão o Grande não cedeu. Mobilizou os seres vivos do país moldavo- os velhos, as mulheres e as crianças - e com eles ergueu outra barragem viva. As mulheres bateram-se com os punhos, com machados, com forquilhas. E até com os filhos, que manejavam como mocas. Mas os Turcos passaram mais uma vez... A nova barragem de carne viva fora transformada em barragem de carne morta. Espezinhada. Então, Estêvão o Grande, o Corajoso, reuniu todas as serras que existiam no país e, numa única noite, cortou pela raiz todos os pinheiros e carvalhos das florestas, ao norte de Rasboeni, mantendo-os, no entanto, de pé. Depois, quando o exército turco penetrou nos bosques, fizeram tombar as árvores. E, assim, o exército foi completamente esmagado pelos carvalhos e pelos pinheiros. Não houve em Rasboeni nem vencido nem vencedor. Morreram todos. E os abutres vieram dos quatro cantos do mundo, porque nunca, desde que a Terra existia, se vira tantos mortos amontoados. Os cadáveres dos moldavos, dos turcos, dos animais, formavam uma camada de muitos, muitos metros de altura. O Inverno chegou e cobriu de neve o vale. Ficou tudo branco. Mortos os exércitos, os homens e os animais foram cobertos pelo mesmo sudário de neve caído do Céu. Houve um longo, terrível Inverno. Como nunca se vira. Porque o vento do norte não queria parar de soprar e de uivar. O vento, que fora a única testemunha do massacre, uivou, chorando os mortos de Rasboeni, todo o Inverno... E prolongou o Inverno tanto quanto pôde... Para chorar os mortos o mais tempo possível. Porque nunca houvera tantos mortos. E o vento não podia parar de chorar. Mas, logo que Deus restabeleceu as coisas, o Inverno passou. Como passam todas as coisas na Terra. È a Primavera chegou. A vertente oriental dos Cárpatos reverdeceu, floresceu, e o Céu tornou-se azul. Excepto em Rasboeni e em Valea Alba. Lá, a neve não se derretia. Tudo permanecia branco. Mais branco que no Inverno. E quanto mais o Sol brilhava sobre o vale, mais essa neve, em vez de se fundir, persistia. Como persiste no monte Branco. E outros picos cobertos de neves eternas. Os viajantes muito pobres - porque os sobreviventes, no país moldavo, eram raros admiravam-se de ver o vale de Rasboeni coberto de neve em pleno Verão. No segundo Verão, via-se de longe o vale de Rasboeni sempre branco. Então, percebeu-se que não era neve. Eram os ossos dos soldados romenos, mortos para deter os invasores turcos. Eram os seus ossos, descarnados, que brilhavam ao Sol. Os ossos tornavam o vale e as colinas completamente brancos, como se estivessem cobertos de neve fresca. Por isso é que tive antepassados brancos. Nas narrações de meu pai. Mas, o que é ainda mais assombroso, é que os ossos dos invasores turcos eram iguais. Nenhuma diferença entre os agressores e os agredidos. Os seus ossos tinham a mesma pureza. A mesma brancura. E os ossos das crianças e das mulheres eram tão brancos como os dos soldados. E os ossos dos cavalos, dos carneiros, dos bois, misturados com os dos homens, tinham a mesma brancura. E todas estas ossadas dos antepassados cristãos, dos invasores muçulmanos, das crianças pequeninas, das mulheres, dos velhos, das ovelhas, dos cavalos, todas, absolutamente todas, eram iguais. E brilhavam ao Sol. Como neve de prata.
Passado algum tempo, quando toda a gente soube que existia uma terra, a de Rasboeni, onde os vales se conservavam brancos havia quatro anos, veio vê-la de perto. Quis-se enterrar os cristãos. Mas não havia nenhum processo de distinguir os ossos dos cristãos dos ossos dos muçulmanos. Seria sacrilégio enterrar os muçulmanos com cerimónias cristãs. Blasfematório misturar os ossos dos animais com os dos homens. Deixaram-se, portanto, todas as ossadas que não se podiam apartar e separar. Sob o Sol. Branqueando as colinas. E, decorridos mais uns anos, os ossos, tanto os dos cristãos como os dos pagãos, os dos agressores e os dos defensores, os dos animais e os dos homens, todos os ossos deixaram de ser brancos. Tornaram-se da cor da terra. Cor do pó. E em pó se tornaram. À semelhança de todo o pó da Terra. Sem deixar entrever que era um pó de ossos de homens, de animais, de cristãos, de pagãos, de invasores e invadidos... Era uma terra parecida com qualquer outra. E notou-se depois que, de todo o país da Moldávia, esta terra feita de ossos era a mais fértil. E o príncipe Estêvão o Grande ofereceu-a aos seus melhores guerreiros. Quatro séculos mais tarde, meu pai, ao sair do seminário, foi nomeado cura em Valea Alba de Rasboeni. A sua primeira paróquia. A sua primeira igreja. Era um posto provisório. Porque, anos mais tarde, transferiram-no para uma paróquia pobre, no vale de Hosanna. E lá ficou. Porque era uma paróquia que nenhum outro cura reclamava.
Durante a nossa estada em Rasboeni e em Valea Alba, soube que a igreja de meu pai e as paredes do presbitério tinham sido construídas com essa terra que outrora fora ossos. E assim, posso dizer que vi a luz abrigado pelos meus antepassados e inimigos, que eram as paredes do meu quarto. Morei dentro dos meus antepassados e dos seus inimigos que se tinham tornado terra, depois tijolos e paredes. Ajoelhava-me sobre eles. Quando brincava com terra, brincava com os meus antepassados. E até no sabor das cerejas eu os sentia. Sem poder saber quais eram os antepassados, os inimigos ou os animais. Durante toda a minha infância, alimentei-me dos antepassados, e bebi-os. Tal como na igreja se bebe e come o corpo de Cristo. Porque eles eram fontes, campos, estradas. Em Rasboeni, no Valea Alba, minha aldeia natal, bebi e comi os antepassados. Todos os que me precederam... Foram brinquedos, flores, bocadinhos de erva e paredes e frutos... E uma pátria, a minha pátria. Onde, ao comer uma maçã, se come os que nos precederam. Unidos: amigos e inimigos. Nas mesmas cores. Na mesma flor. No mesmo fruto.
É também por causa disso que o exílio para mim é duro. Habituei-me a alimentar-me e a dessedentar-me nos que foram meus pais, ou nos inimigos dos meus pais. E em terra estrangeira, isso não existe. E esse todo é que constitui uma pátria terrestre. Em Rasboeni, no Valea Alba, na minha aldeia natal, tudo estava como nós estaremos um dia no Paraíso, amigos e inimigos: misturados, inseparáveis e unificados.
Porque se chama Neamtz ao meu distrito natal?
NUMA bios-numa vida terrestre-torna-se indispensável mencionar o nome do distrito natal. O meu chama-se Neamtz. É um nome de origem eslava. As hordas bárbaras que assolaram durante dois milénios a nossa terra latina deixaram-nos muitas palavras da sua língua. As palavras são as recordações clássicas que os ocupantes abandonam nas terras de ocupação. Porque as lágrimas que eles fazem chorar não se vêem. E os homens que matam tornam-se pó. Mas as palavras do ocupante permanecem. Para sempre. Para alguns eslavos, a palavra Neamtz significa alemão, mas significa também estrangeiro. Talvez porque os primeiros estrangeiros encontrados pelas hordas eslavas, ao dirigirem-se para oeste, fossem Germânicos. Mas talvez também porque, no seu espírito, o alemão é estrangeiro por excelência, aquele que é completamente diferente. Para os Eslavos, estrangeiro significa, primeiro que tudo, o que está privado de palavra. O estrangeiro é um ser humano privado do dom da linguagem. Porque todas as palavras que um estrangeiro pronuncia não têm qualquer significação para os que desconhecem a sua língua. Os estrangeiros, aos olhos dos Eslavos, são, de certo modo, iguais aos pássaros e aos animais. Porque os animais e os pássaros, tal como os estrangeiros, emitem sons, mas sons que não têm absolutamente nenhuma significação para o ouvido humano.
O meu distrito natal chama-se, já o disse, Neamtz. O distrito das pessoas que não têm o dom da palavra. A origem do nome parece perfeitamente clara. Os invasores eslavos, ao chegarem à vertente oriental dos Cárpatos, encontraram os meus antepassados, que falavam o latim. Os Eslavos concluíram que a linguagem latina não era uma linguagem humana, porque não era compreendida pelos Moscovitas. Assim, todos os que proferiam palavras latinas eram iguais aos pássaros e aos animais, logo privados do dom divino da palavra humana, que era única, insubstituível, e que era o russo. Mas, não obstante, ou, antes, por causa da sua lógica excessiva, tal explicação é falsa. O nome do meu distrito tem outra origem. Depois da ocupação de Constantinopla pelos Turcos, os cristãos do império bizantino procuraram refúgio em toda a parte. Para salvar a vida e a fé. Os Bizantinos, do maior ao mais humilde, dos imperadores aos simples soldados, desejavam acabar os seus dias tonsurados, após haverem recebido um hábito e um nome de monge. Mas os Muçulmanos ocupavam o império. As igrejas estavam transformadas em mesquitas. Os Bizantinos tentaram fundar outra capital algures. Primeiro em Salonica. Mas os Turcos expulsaram-nos também de lá. Tentaram ressuscitar o império cristão do Oriente, com a capital sucessivamente em Okrida, Arta, Moscovo, Tarnovo, Kiev... Foram escolhidas dezenas de cidades, ao acaso da desgraça e da vagabundagem, para se tornar na terceira Roma, a capital de Bizâncio. Nunca resultou. Porque o império romano do Oriente, o império bizantino, morrera. Em compensação, os Bizantinos conseguiram, ajudados pelas catástrofes da história e pela sua incapacidade, realizar alguma coisa na Terra. Tornaram-se monges. Então foram construídos uma infinidade de mosteiros, lavras, skyts, paraclisses, collibes, nos arredores de Constantinopla, no monte Olimpo, no monte Atos, no Epiro, no Pindo, em Kiev... Os mais felizes dos refugiados, os que se tornaram monges, realmente, e completamente, separados do mundo, foram os que arribaram às florestas imensas, soberbas e sem fim do meu distrito natal de Neamtz... Ali tornou-se possível isolarem-se do mundo. Viveram como eremitas. Como anacoretas. Ou em comum. Durante longos séculos. Foi lá, nas florestas de Neamtz, que viveu meio século o starets Paissy, um eslavo que viera do monte Atos e que introduziu a oração do Coração, a Filocalia e a restauração monacal, com a instituição dos starets, no mundo inteiro da ortodoxia. Paissy de Neamtz foi o primeiro starets verdadeiro. Os eremitas eram incontáveis em Neamtz. As florestas da região eram unicamente habitadas pelos javalis, os lobos, os ursos e os eremitas. Estes monges praticavam a oração contínua e a solidão, recusando-se ou evitando falar... À companhia dos homens preferiam, certamente forçados também pela história e pela natureza, a companhia dos anjos e de Deus. E porque evitavam falar, chamavam-lhes os Mudos, os Hesiquiastas, os Calados, os Silenciosos, os Neamtz...
Mas eram mudos e sem palavras porque queriam. Não porque não se fizessem entender pelos estrangeiros ou porque não os compreendessem. Pelo contrário: mesmo hoje, em todos os grandes mosteiros e instituições monacais de Neamtz, o higumeno, o superior, deve saber, no mínimo, duas línguas, celebrando-se, habitualmente, a divina liturgia em eslavo, grego ou romeno... Em todas as línguas do mundo ortodoxo. Houve, a seguir à queda do império bizantino, um tal florescimento de espiritualidade cristã nas montanhas do meu distrito natal, Neamtz, que até a toponímia mudou... O rio que atravessa o distrito dos hesiquiastas, dos silenciosos, dos eremitas, chama-se Hosanna (1) (em romeno pronunciamos Ozana). É a oração por excelência, o grito que implora a Deus: Salva-nos agora, Senhor. Há em Neamtz sítios que se chamam Agápia,
* (1) São Mateus, XXI, 15, 19; Salmo CXVIII, 25. *
o que significa amor cristão: ágape (2). Outros, Kyralessa, o que significa, resumido, Kyrie eleiS (3). Localidades e famílias chamam-se Acatistas, que é o nome do mais belo hino da igreja ortodoxa (4). Mas ainda mais comovedor que esta substituição dos nomes dos homens, dos rios, das florestas e dos sítios pelos nomes da liturgia, do Evangelho e da oração, é o facto de os monges bizantinos terem trazido, não somente o seu saber teológico, a sua espiritualidade, a sua fé, mas também a nostalgia do império perdido. Nas igrejas de Neamtz e de toda a Moldávia, pintou-se, entre outras cenas bíblicas, a tomada de Constantinopla pelos Turcos. Ao lado da queda de Jerusalém. Os monges refugiados nas florestas não esqueceram os irmãos que vivem nos mosteiros e nos skyts e noutros sítios de Jerusalém e lugares santos... Sob o domínio dos pagãos. Uma lenda moldava conta que as andorinhas, ao abandonarem a Moldávia no Outono, levam no bico uma espiga de trigo e deixam-na cair no monte Atos. Ou em Jerusalém. Para que os hieromonges, os padres sagrados desses lugares de sofrimento, tenham com que fazer farinha para as hóstias... Isso, na minha opinião, é absolutamente verdade. Todas as prosphorai, todas as hóstias utilizadas nos
* (2) V. Gheorghiu: Os Imortais de Agápia, editado pela Livraria Bertrand, bem como as duas obras que se seguem.
(3) V. Gheorghiu: O Crime de Kyralessa.
(4) V. Gheorghiu: A Condottiera. *
altares e nos santuários dos mosteiros do monte Atos, de Constantinopla, de Jerusalém, todo o pão que se transforma, na liturgia, no Corpo de Cristo, é originário da Roménia. Todas as hóstias eram confeccionadas com o trigo que as andorinhas colhiam na Moldávia, antes de partirem, no Inverno, para os países quentes. Fomos fornecedores de prosphorai, de hóstias, para toda a cristandade oriental, durante mais de um milénio. Graças às andorinhas que levavam o nosso trigo, por cima das cabeças cingidas com o fez encarnado dos turcos ocupantes, aos altares das nossas santas igrejas... Mas o trabalho das andorinhas não era suficiente. Os monges começaram a ajudá-las. E no Outono, quando elas colhiam as espigas de trigo nos campos da Roménia, para levá-las aos cristãos infelizes, a fim de que estes pudessem comungar, no Outono, os monges, imitando as andorinhas, carregavam machos com sacos de trigo e, caminhando de noite, através de ravinas e florestas, transportavam o nosso trigo para o monte Atos e depois para Jerusalém, no monte Sinai, e para todos os sítios onde faltava o trigo para as hóstias. E para onde faltava o pão para os cristãos. Foi graças às andorinhas e aos monges que a Roménia se tornou na fornecedora das prosphorai da cristandade do Oriente, da Palestina, dos Balcãs e da Ásia Menor... Enviámos também todas as nossas colheitas. Privando-nos nós próprios delas. Para que as prosphorai, as hóstias, nunca faltassem nos lugares santos de Jerusalém, do monte Atos, da Grécia. com o tempo, e graças ao exemplo sublime das santas andorinhas, os monges bizantinos organizaram-se. Em data fixa, como as andorinhas, entregavam trigo para as prosphorai dos lugares santos e do monte Atos. Porque as andorinhas faziam a entrega das espigas anualmente. Regularmente. Os monges arranjaram processo de proceder de igual modo. Melhor ainda do que os pássaros. com a cumplicidade dos gregos que eram altos funcionários junto dos sultões, conseguiram a autonomia - como se lhos tivessem cortado do corpo - de alguns territórios da Roménia. Declararam-nos extraterritoriais. Eram os mais ricos. Ofereceram-nos aos mosteiros de Jerusalém, do Sinai, da Palestina, do monte Atos, do monte Olimpo... Eram de facto as propriedades, os domínios dos santos lugares, situadas na Roménia... Mas beneficiavam de extraterritorialidade e, como é normal, a colheita dos domínios era enviada aos proprietários... Muito pouco tempo depois, toda a vertente oriental dos Cárpatos pertencia aos mosteiros do monte Atos e de Jerusalém... Os escravos negros da América usavam sempre o nome dos donos. Dos seus proprietários. Não tinham nome próprio. Assim, entre nós, viu-se aldeias, lugarejos, florestas, vinhas, pomares, mudarem de nome. E usarem o dos donos, que eram Jerusalém, Sinai, Pantocrator, Panaghia. Nomes de mosteiros. Existiam aldeias que se chamavam Theotocos, Nikopeia, Metokhia, Trisagion, um lugarejo que se chamava Plebea, palavra latina que designa o baixo povo, a plebe, uma espécie de servos. Mas esta plebe, estes servos pertenciam havia pouco a uma igreja de Jerusalém e adoptaram o nome do seu novo dono. Foi por isso que minha mãe nasceu em Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna. Um belo lugar para se nascer. Como cristão, sentia-me muito orgulhoso por a minha mãe ter nascido em Jerusalém, mesmo sabendo que esta Jerusalém devia apenas o nome ao facto de os seus habitantes serem os escravos da Jerusalém-a-Grande. Criança-poeta, sentia-me feliz, ao abrir os olhos, por o pico de segunda grandeza das nossas montanhas se chamar Panaghia, a Santíssima Virgem Maria. Por atravessar uma floresta que era perto da nossa casa e que se chamava Nikopeia, o que quer dizer Virgem Vitoriosa... Ia-se dar de beber aos cavalos ao Hosanna, Deus, salva-nos agora. Tinha-se primos em Trisagion, em três vezes santo, em Allehtan, em Kyralessa... Esta toponímia sagrada encantava a criança-poeta que eu era e o cristão. Claro, havia também o reverso da medalha. Mas fechava-se os olhos. Os monges, os hesiquiastas, os anacoretas bizantinos refugiados tinham-nos trazido os seus livros santos, as obras dos padres da Igreja e toda a tradição espiritual do Evangelho. Durante séculos, só se pôde imprimir livros cristãos nas tipografias de Neamtz e da Moldávia. Um grande número de livros litúrgicos dos Arménios, dos Georgianos e dos Gregos foram impressos entre nós. Em Neamtz. Os mais célebres livros gregos são os de São Simeão de Tessalonica, morto em 1418, exactamente antes da conquista da sua cidade pelos Turcos, cuja obra foi impressa em Jassy, capital da Moldávia (5). Em princípio, só o patriarca ecuménico de Constantinopla tinha o direito de possuir mosteiros extraterritoriais. O direito de stavropegion, palavra que vem de pegnumi (fixar) e stravos (cruz), o que quer dizer: fixar a cruz em terra estrangeira e construir uma igreja e um mosteiro, que, por consequência, ficavam sob a sua direcção e propriedade. com o tempo, porém, todos os mosteiros da Palestina, dos lugares santos, adquiriram propriedades, os metoikiai, os skyts, na Moldávia, em Neamtz...
Todo o meu país pertencia aos estrangeiros, a coberto dos bens eclesiásticos. No entanto, a vida espiritual era florescente. A espiritualidade dos hesiquiastas impressionou de tal maneira os judeus que habitavam na vertente oriental dos Cárpatos, ao nosso lado, que também eles criaram algo de semelhante: o movimento místico e espiritualista judeu, o Hassidismo, que nasceu ao mesmo tempo e no mesmo sítio, na minha terra, na vertente oriental dos Cárpatos. Como o movimento dos staretsy, criado por Passy em Neamtz, que punha em evidência a espiritualidade sobre a santidade e
(5) São Simeão de Tessalonica: De Fide, ritibus et mysteriis eclesiasticis graece, editado em Jassy em 1683, reproduzido nos P. G., 155. *
a caridade pessoais, também o Hassidismo dos Judeus criou os zadik, que são uma espécie de starets e de santos.
Não compreendia totalmente tudo isto. Mas sabia que vivia numa montanha cheia de santidade chamada Neamtz, não porque fosse alemã ou porque os habitantes fossem estrangeiros, mas porque entre nós se preferia o silêncio à palavra. E a companhia de Deus, a solidão, à sociedade. Nasci, portanto, no distrito dos homens mudos, dos silenciosos, dos imobilistas, dos hesiquiastas, dos eremitas e dos anacoretas... Mas, simultaneamente, sabia que, graças a estes monges e às andorinhas, fornecíamos, havia quase um milénio, o trigo para o pão do sacrifício, a farinha para as hóstias, para todas as liturgias e para os altares dos santuários dos lugares santos... E porque, no fim de contas, a nossa função era fornecer o trigo para as hóstias de Jerusalém, de Anastásia, do Sinai, do monte Atos, de Panaghia, de Pantocrator, acabámos, nas aldeias, nos lugarejos, nos campos, nas florestas, por nos dedicarmos exclusivamente a tal tarefa. E nós próprios começámos a usar os nomes dos lugares santos que fornecíamos de hóstias... E de víveres. Porque os víveres faltavam aos que estavam sob a dominação muçulmana... E ao ouvir estas coisas, acerca das terríveis acções dos Turcos e dos Muçulmanos, convencera-me de que o inimigo que Deus me enviaria um dia, para me experimentar, para ver se eu podia amar o meu inimigo e conquistar um lugar no calendário, com o nome de São Virgílio, seria certamente um turco. Eles dominaram-nos durante cinco séculos. E profanaram os lugares santos a fogo e sangue. O meu futuro inimigo, de acordo com o que aprendera até aos sete anos, só podia ser um turco. Um muçulmano. Era o inimigo por excelência dos cristãos.
Os Turcos, nossos invasores e ocupantes
durante séculos, não são nossos inimigos - repetia-me meu pai. - São nossos irmãos. Especialmente os Turcos. Nunca durante a ocupação que durou cinco séculos e foi violenta, nunca nenhum cristão digno deste nome ousou matar um turco... Nunca. Porque sabia que mataria um irmão.
- Um inimigo, porque eles eram nossos ocupantes e nossos inimigos, não é verdade?
- Eram nossos ocupantes, nossos invasores, e eram também nossos filhos e irmãos... E nunca se matavam. Fazia-se-lhes bem. Em segredo. Tanto quanto se podia. Apesar de serem turcos. Apesar da sua crueldade. Porque não se queria proceder como Caim, que matou Abel, seu irmão...
- Os Turcos não são nossos irmãos de sangue, como Abel era de Caim... Descendemos de Rómulo e Remo, e a nossa mãe de leite é a Loba de Roma que deu o seio às duas crianças, nossas antepassadas. Os Turcos vêm das estepes da Ásia, como todos os bárbaros...
- Os Turcos são nossos irmãos de sangue...
- dizia meu pai. - E mamaram no seio da Loba de Roma, tal como nós. Mais, mamaram no seio da nossa mãe... Sabes o que é a pedomazoma, a que os Turcos chamam devchirmê, que significa o tributo das crianças?
- Não - respondi.
Era normal que não soubesse. Contava menos de sete anos. Mas meu pai elucidou-me. Mais tarde, acerca da pedomazoma, e a propósito da minha data de nascimento real - 9 de Setembro de 1916 - e da falsa data que está registada na minha certidão de nascimento - 15 de Setembro-, escrevi:
Meu pai não declarara o meu nascimento na repartição do registo civil da minha aldeia. Por isso, os polícias quiseram prendê-lo e pô-lo a ferros. Deu então uma data falsa, a fim de evitar as perseguições que disso resultariam. Tudo isto era de facto verdade. Mas também era verdade que nascer, no meu país, era um perigo terrível. Um perigo de morte para uma criança. Só o soube muito tempo depois. Durante cinco séculos, o meu povo sofreu a ocupação muçulmana. Os Turcos, após terem conquistado o país, passaram os habitantes à espada. Como é hábito de todos os conquistadores. Em seguida, saquearam o país, incendiaram as cidades e as aldeias e provocaram estragos terríveis. Como todos os conquistadores em todas as épocas. Passado algum tempo, notaram que ainda havia habitantes, aqueles que se tinham escondido durante os massacres e que saíam agora dos esconderijos.
Os Turcos reuniram os sobreviventes e perguntaram-lhes se queriam mudar de religião, tornarem-se muçulmanos. Os renegados e os apóstatas usufruiriam de largos benefícios. Mais, tornar-se-iam cidadãos do império otomano e gozariam de todos os privilégios reservados aos súbditos da Porta Sublime.
Explicaram depois aos Romenos vencidos que podiam também permanecer cristãos, como no passado. Que escolhessem. Mas, se continuassem cristãos, teriam de pagar um imposto extremamente pesado - um imposto quatro, cinco e mesmo seis vezes mais pesado. Não obstante serem muito pobres e não disporem de recursos por causa da guerra e das sucessivas pilhagens, todos os romenos, sem excepção, responderam que queriam permanecer cristãos enquanto vivessem. Responderam que pagariam o tributo, qualquer que ele fosse, para permanecerem cristãos. E em caso de necessidade, cortariam na sua carne para pagar o imposto. Pagaram, efectivamente, duas vezes, três vezes, dez vezes o tributo, em mel, em grãos, em cavalos, em carneiros, em cera, em frutos, em oiro, em cobre, em prata. Mas sobretudo, sobretudo pagaram o terrível, o horroroso tributo de sangue exigido pelos ocupantes turcos. Eram as crianças pequeninas, do sexo masculino, que transformavam em janízaros ou eunucos, e crianças do sexo feminino, que transformavam em mulheres de harém ou em mulheres de soldados. O invencível corpo de elite do exército turco, os janízaros - criado em 1334 e dissolvido em 1826 -, era composto exclusivamente por crianças cristãs, entregues como tributo pelos países cristãos.
Todas as mães da nossa terra tinham de pagar, mais dia menos dia, o terrível tributo, dando ao ocupante o próprio filho. Isto foi feito regularmente, durante mais de cinco séculos, pelo meu povo. Sem nenhum desfalecimento. Para que pudesse continuar cristão (6).
Tal era o pedomazoma, o devchirmê, o imposto pago aos ocupantes em crianças recém-nascidas.
- Percebes agora porque é que o Turco não pode ser nosso inimigo, mesmo que nos mate, mesmo que nos corte a cabeça com um machado?
- Não - respondi.
- Nenhum homem piedoso, nenhuma mulher, sobretudo as mulheres e sobretudo nas nossas montanhas, jamais ousou, durante os cinco séculos de ocupação, matar com as suas mãos um soldado ocupante. Porque todos os soldados ocupantes, todos os janízaros, eram crianças cristãs educadas, treinadas, vestidas à turca, armadas e lançadas sobre nós para nos dizimarem. E se se matava um desses turcos que semeava a morte e o terror, tinha-se quase a certeza de matar o filho que se dera, como imposto,
* (6) V. Gheorghiu: A Vigésima Quinta Hora (editado pela Livraria Bertrand), seguido De La vingt-cinquième heure à 1'heure éternelle.
aos cobradores de crianças. Todos os soldados turcos eram nossos filhos segundo a carne, nossos primos, irmãos... E não se tinha coragem de repetir o assassínio de Caim... De matar os nossos irmãos. E os nossos filhos. Então, fazia-se barragens de corpos humanos. Como em Rasboeni. Fazia-se tudo para detê-los. Mas não se ousava matá-los.
((Preferia-se deixar-se matar. Não fora unicamente o Evangelho, o Senhor, que nos ensinara que o inimigo também é nosso irmão. Fora também a história que o ensinara aos Romenos. .. Eis porque cristão é sinónimo de romeno. Dizer: um romeno cristão é um pleonasmo. Se tivesses visto as mulheres romenas diante do exército de janízaros... Os Turcos matavam-nas selvàticamente, e elas morriam de olhos fixos nos matadores, tentando reconhecer neles os seus filhos, os bebés que lhes tinham arrancado dos braços ao nascer...
Chorei ao ouvir esta história de pedomazoma... As noções de amigo e inimigo, desde o começo da minha vida, modificaram-se por completo. Foi a história e não apenas o Evangelho que nos ensinou a poupar um inimigo mortal e a perdoar-lhe, em vez de matar o nosso irmão ou o nosso filho...
- E é sob o uniforme do inimigo mais cruel e mais sangrento - acrescentou meu pai - que o teu irmão se apresenta em tua casa para te tirar a vida... Então, nesse momento, é que é preciso coragem para não o odiar, para não o matar, mas para amá-lo como filho ou como irmão, porque ele é-o na realidade. Quase sempre. Simultaneamente.
Decidi-me, pois, a esperar que o meu primeiro inimigo viesse, de algures, da Turquia, onde os habitantes eram, no fundo, meus irmãos de sangue. Também eles eram filhos de leite da Loba. Meus irmãos. Não somente meus, mas também de Rómulo e Remo. E amar um turco - que é seguramente um inimigo mortal - é, no fundo, amar o próprio irmão. O que não era suficiente para ganhar a santidade. E eu queria a todo o custo ganhá-la. Para o nome de Virgílio. Necessitava, portanto, de um inimigo. Verdadeiro. Não de um irmão disfarçado de turco e que eu amaria. Queria o nimbo da santidade. Porque os próprios irmãos toda a gente os ama. Mas os inimigos, são apenas os cristãos que os podem amar com um amor verdadeiro e santo...
- Mas se não for turco, quem será o primeiro inimigo da minha vida? De onde virá? E com que rosto?
E esperava, impaciente, esse inimigo, o primeiro da minha vida, graças ao qual me tornaria São Virgílio!
Como me tornei aos sete anos pajem-cavaleiro da Rainha do Céu
EM redor da minha aldeia natal existiam, escondidos no fundo das pradarias, nas clareiras, no fundo dos vales, atrás dos picos rochosos, inumeráveis mosteiros com nomes muito santos. Havia grandes mosteiros, como Neamtz, Agápia, Varatec. Havia lavras, skyts, collibes. Grutas habitadas por anacoretas, por eremitas e por santos.
Toda esta vida monacal era completamente separada da nossa vida, de nós, que habitávamos as aldeias e os lugarejos. Para os monges constituíamos o mundo. com um cambiante pejorativo. Que se justificava. Os monges, os anacoretas, os eremitas, viviam no Céu. Chama-se mesmo ao hábito dos monges o hábito angélico.
Eu penso - diz São Bernardo - que em função da perfeita renúncia ao mundo que exige, a vida monacal, devido à vida espiritual singularmente elevada que favorece e pela qual nos alcandoramos acima de todos os géneros de vida, torna os que a professam e amam semelhantes aos anjos e diferentes dos homens.
Reconstitui no homem a imagem de Deus, configura-nos a Cristo no instante do baptismo (1). Os monges realizam na Terra o trabalho, a actividade que os anjos realizam no Céu (2). Nós, os habitantes das aldeias e dos lugarejos, vivíamos com estes anjos terrestres, com os monges e os eremitas no mesmo espaço geográfico, na mesma vertente oriental da montanha, apenas a alguns quilómetros uns dos outros. Mas eles, os anjos da Terra, os monges, viviam em mosteiros rodeados de espessos muros. Intransponíveis. Como os castelos fortificados. Viviam escondidos. Nunca os víamos. Entre nós, os habitantes do mundo, e os habitantes dos mosteiros existia, na realidade, uma distância maior do que aquela que separa o Céu da Terra.
Os anjos que viviam na Terra eram diferentes de nós. Eram-nos superiores. Nunca fazíamos perguntas sobre a sua santa vida nos mosteiros. Por piedade. Por temor sagrado. Nunca dos detínhamos a reflectir na natureza de Deus. Basta à religião saber que Deus existe (3).
Mas havia ainda outra distância entre nós e os monges. Meu pai teve de deixar Rasboeni e tornar-se cura de uma aldeia que fora, alguns anos antes, um lugarejo de escravos dos mosteiros. Era uma paróquia à medida de meu pai. Por isso nunca mais a deixou. Porque meu
* (1) São Bernardo: P. L., 182, col. 889.
(2) Santa Hildegarda: P. L., 197, col. 486.
(3) * São João Crisóstomo: P. G., 49. col. 743.
pai, tal como meu avô, como todos os nossos antepassados, foram curas, servos e escravos dos mosteiros. No princípio, entre meu pai que era cura e o mosteiro que era proprietário dos servos, a distância não era intransponível, como entre o Céu e a Terra. Porque a Terra e o Céu misturam-se, todos os domingos e todos os dias de festa, no seio dos cristãos, durante a liturgia. Mas no domínio social, entre o mundo angélico dos mosteiros e nós, que lhe pertencíamos, a distância era absolutamente intransponível. No domínio social, nunca havia mistura entre o Céu e a Terra. Era uma distância social e histórica. Imensa. Sem nada de comum com a distância que separa o Céu e a Terra. Que separa Deus da sua criatura. Era a distância intransponível que existe entre o proprietário e o escravo. Entre o proprietário e a propriedade. E nós éramos, alguns anos antes de eu nascer, propriedade dos mosteiros. Existiam cicatrizes. Vestígios. Por toda a parte.
Havia vários séculos que a minha família fornecia curas para os escravos dos mosteiros. Os monges eram, pela sua profissão, habitantes do Céu. E, devido às escrituras de propriedade que possuíam relativamente às terras e aos escravos, estavam duplamente no Céu. Nós estávamos duplamente na Terra. Colados à Terra. Não éramos monges nem proprietários. Não obstante, havia coisas comuns entre nós e os monges. Ainda que praticamente nunca nos encontrássemos. Nem tão-pouco nos conhecêssemos, Sendo vizinhos. Mas quando se mora no mesmo espaço, uma pessoa pode deleitar-se porque bebe a água das mesmas fontes, porque respira o mesmo ar puro das mesmas florestas. Em conjunto, sofríamos as trevas das mesmas noites e gozávamos a luz do mesmo Sol. Nas nossas aldeias miseráveis, que tinham os nomes de todos os lugares santos aos quais pertencíamos de corpo e bens e para os quais trabalhávamos, nascíamos e morríamos ouvindo os sinos dos mosteiros. O som chegava-nos aos ouvidos através dos bosques. Como que coado pela ramagem. E também as orações dos mosteiros. Porque trabalhávamos todos os dias da semana e entre nós, nas igrejas da aldeia, celebrava-se a santa e divina liturgia unicamente aos domingos. Mas os monges celebravam-na todos os dias. E rezavam os sete ofícios litúrgicos todos os dias. E todas as noites. E nós aproveitávamo-los também de longe. Sem ser monges. E isso mudava a nossa vida. Porque respirávamos não apenas o ar dos pinheiros e dos cumes - um ar tão forte como o álcool-, mas também a atmosfera das orações. E, segundo os que têm experiência, a atmosfera desempenha papel deveras importante no progresso da vida espiritual. Há quatro forças que modificam o estado do corpo, fornecendo assim ao espírito pensamentos apaixonados ou não: os anjos, os demónios, a atmosfera e a alimentação (4).
* (4) São Máximo o Confessor: Centúrias sobre a Caridade, II, 92. *
No que respeita à alimentação e à atmosfera, não corríamos perigo. Éramos uns privilegiados. A atmosfera era pura e a alimentação nunca nos provocou indigestões! E porque se contava também com os anjos, tinha-se todas as razões para esperar, confiados, o Paraíso.
Quanto a mim, aos sete anos, idade em que decidira santificar o nome que usava, realizei a minha primeira politeia, a minha primeira catorthoma. Um acontecimento da minha pequena existência que não abrangia unicamente a minha bios, a minha vida animal e terrestre, mas a minha vida espiritual, a minha politeia! A vida na qual o homem é senhor e soberano de si mesmo-e livre, como só Deus e os anjos e os homens são livres no universo; a vida na qual o homem se pode tornar no seu próprio pai. A vida espiritual. Tal politeia fez que eu me tornasse, realmente, aos sete anos, pajem da Mui Gloriosa Rainha do Céu, a Platytera, a Nikopeia, a Parthenia, a Panaghia, nossa Mãe, a Theotocos... Fui pajem e cavaleiro da Rainha do Céu, da que cantam na liturgia que é Platytera ton ouranon, mais vasta que os Céus.
Nesse tempo, quando era criança, convidava-se a visitar a nossa aldeia a Mui Santa Rainha do Céu, a Mãe de Deus. Nos meses de Verão. Gostar-se-ia de convidar a Rainha do Céu todos os verões. Em Julho ou em Agosto. Claro. Mas o convite sair-nos-ia terrivelmente caro. Por isso, devido à nossa pobreza, convidava-se a Rainha do Céu de dois em dois ou de três em três anos. E ela permanecia entre nós todo o dia e toda a noite.
A Mãe de Deus era uma mulher. Porque se o homem foi expulso do Paraíso por causa de uma mulher, Eva, Deus desceu à Terra e Deus tornou-se sarcóforo - portador de carne humana- graças a outra mulher, à Santíssima Virgem. E, graças à encarnação, para nós, os homens cá de baixo, as portas do Céu e da deificação são grandes, largas. Graças à encarnação e à aquiescência da Rainha do Céu, temos a possibilidade de nos tornarmos Deus, porque Deus se tornou homem. Sempre graças a Maria, à Theotocos, que é também a nossa melhor intermediária no Céu. Mas o mais extraordinário é que a Theotocos, a Mãe de Deus, foi a primeira a mostrar-nos que nós, os homens, podemos transfigurar-nos e subir ao Céu. Por isso dizemos que ela é mais venerável do que os querubins e mais gloriosa, incomparavelmente mais gloriosa, que os serafins. Ultrapassou o tempo e entrou com o seu corpo na Eternidade. Todos sabemos que a Mãe de Deus subiu ao Céu com o corpo terrestre. Como Cristo. Então, como aparecia ela na nossa aldeia? Porque ela não vinha, como os outros santos, invisível, quando celebrávamos a festa onomástica e durante a liturgia. Não. A Mãe de Deus vinha em pessoa, realmente, à nossa aldeia. Como um ser de carne e osso. Era assim que a recebíamos. E eu fui seu pajem.
Maria está no Céu, onde é Rainha. Mas está também, materialmente, na Terra. Perto da minha aldeia. No mosteiro de Neamtz. Onde está presente no seu ícone. Da mesma maneira que o Corpo e o Sangue de Cristo estão presentes no cibório e no cálice durante a Eucaristia. Sabemos que o santo evangelista Lucas, que foi não apenas o autor do Evangelho que tem o seu nome, mas também grande médico e grande pintor, executou o retrato da Mãe de Deus. Mostrou o ícone à Santíssima Virgem. E esta ficou maravilhada. Na igreja dizem-nos: Quando, pela primeira vez, Lucas, o anunciador dos mistérios evangélicos, pintou o teu ícone e to trouxe a fim de que o reconhecesses e lhe conferisses o poder de salvar os que te veneram, alegraste-te. Tu que és misericordiosa e nos salvaste, tu foste como a boca e como a voz do ícone. Da mesma maneira que concebeste Deus, da mesma maneira, olhando o ícone, disseste com autoridade: A MINHA GRAÇA E A MINHA FORÇA ESTÃO com ESTA IMAGEM (5). E o ofício acrescenta: E nós cremos que o disseste, Nossa Soberana, e QUE ESTÁS CONNOSCO ATRAVÉS DESTA IMAGEM (6).
Eis as razões por que temos a certeza de que a Santíssima Virgem, a Rainha do Céu, está no seu ícone, pintada por São Lucas. Ela está ali, realmente. com a sua graça. A sua força. O ícone é a sua boca. A sua voz.
Não temos, nas nossas igrejas, nem quadros
* (5) Ofício das Vésperas, a 26 de Agosto.
(6) Ofício das Vésperas, idem. *
religiosos, nem pinturas religiosas. Nem arte plástica. O ícone da Santíssima Virgem e Rainha do Céu não é uma pintura. Mas a reprodução piedosa da que pintou São Lucas. E a Rainha do Céu está realmente nesse ícone.
Claro, se nos pedirem provas históricas, arqueológicas, científicas, acerca do facto de São Lucas ter efectivamente pintado o ícone e acerca das palavras que a Virgem pronunciou ao olhá-lo, responderemos que não necessitamos de nenhuma prova arqueológica ou científica. Não. Responderemos que estamos tão certos dos motivos que não necessitamos de nenhuma prova arqueológica ou histórica. As provas são úteis em relação às coisas de que se duvida... Mas nós não temos qualquer dúvida quanto ao facto de Cristo estar presente, em sangue e carne, no cálice, e que a voz, a Graça e o Poder da Rainha do Céu estão no ícone pintado por São Lucas, do qual possuímos cópias nas igrejas.
Como se encontra aqui, no fundo das florestas, na vertente oriental dos Cárpatos, em Neamtz, a Rainha do Céu? Veio com os Bizantinos, pouco antes da conquista de Bizâncio pelos Turcos. O imperador João VIII Paleólogo veio ao mosteiro de Neamtz em 1424 e trouxe o ícone de prata da Rainha do Céu, sabendo que aqui, entre nós, estaria ao abrigo dos ataques pagãos. E desde esse dia, a Mãe de Deus está à sombra dos nossos pinheiros, na vertente oriental dos Cárpatos, em Neamtz, a alguns quilómetros da minha aldeia, sobre o rio Hosanna.
Todos os anos, quando podemos juntar dinheiro suficiente para a festa, convidamos a Mãe de Deus. Quase todas as aldeias, por mais pobres que sejam, a convidam de tempos a tempos. Porque a Rainha do Céu não se recusa a descer até aos pobres. Até aos servos. Às pequenas igrejas. Ela não é como os grandes deste mundo, como os príncipes e como os ricos... A Rainha do Céu é como os anjos e como o próprio Céu, que se aproximam de nós sem reservas, sem reparar que cheiramos mal, como todos os pobres, que comemos mal, que estamos à mercê de todas as misérias e desgraças... Não. A Rainha do Céu e os anjos, quando descem até nós, tratam-nos como iguais. Como amigos. E ordenam-nos, como Deus nos ordenou, que digamos Tu, com audácia, com parrhesia, com liberdade de palavra. E como Deus nos convida a sermos familiares com ele, tratando-o por Tu e por Pai, também a Rainha do Céu, ao descer à nossa aldeia, nos convida a tratá-la por Tu e por Mãe...
Avinda da Rainha do Céu à aldeia permanece como o mais importante acontecimento que eu já vivi. Tinha sete anos. A aldeia, nas margens do rio Hosanna, ou Ozana, é muito pobre. Havia muito tempo que era exclusivamente habitada pelos escravos dos mosteiros. Escravos dos quais os meus antepassados tinham sido os curas. Mas é uma aldeia muito antiga. Longe, muito longe, no passado, os Imortais habitavam-na, esses Dácios que pensavam ser eternos e que a morte física não passava da mudança do homem da Terra para o Céu (7).
Antes dos Romanos, os Imortais viveram ali, e depois dos Romanos chegaram os santos monges, anacoretas e eremitas. Estes mergulharam na montanha, onde deixaram, unicamente, os seus servos e escravos. Há, portanto, quatro camadas na aldeia: os Imortais, os Romanos, os monges santos silenciosos e, por fim, os escravos dos monges. Quando tinha sete anos, a escravatura já havia sido abolida. As terras já não pertenciam aos monges, mas aos mercadores estrangeiros, que nos exploravam até ao osso. A aldeia desaparecia aos poucos. Porque toda a gente queria viver algures longe dela. Mesmo assim, éramos algumas centenas de pessoas a receber a Rainha do Céu.
Os preparativos começavam um ano antes. Era preciso juntar dinheiro. É imprescindível salientar aqui que a recepção custava muito cara. Sobretudo considerando os nossos meios de existência. Os estatísticos de passagem divulgaram, como curiosidade, que se comprava, por aldeia, cerca de uma caixa de fósforos de cinco em cinco anos. Para não desperdiçar o lume, cobria-se este à noite com cinzas, a fim de que ele se mantivesse aceso até de manhã. Havia gerações que não se comprava sal. Era
* (7) V. Gheorghiu: Lê Peuple dês Immortels. *
muito caro. Descobrira-se, a dezenas de quilómetros, na montanha, fontes de água salgada. E trazia-se a água de trenó, no Inverno, em tonéis. Esta água servia para dessedentar os animais e temperar a comida. A colher de madeira de que nos servíamos era confeccionada por nós. Só muito mais tarde vi sal granulado. Para mim, o sal era líquido!
Não era, portanto, uma aldeia muito rica que a Rainha do Céu visitava por vinte e quatro horas. Era a aldeia dos mais pobres dos pobres. Começava-se a juntar dinheiro com um ano ou dois de antecedência. Alguns dias antes da chegada da Rainha do Céu, caiavam-se todas as casas, cortavam-se os espinhos, as vergônteas mortas, arrancavam-se as ervas más, nivelavam-se os caminhos... Meu pai saía para o cemitério em volta da igreja, e sobre a erva verde dos túmulos, com a ajuda das virgens e das velhas, limpava os candelabros e as lamparinas de metal. Para que o metal brilhasse aquando da chegada da Rainha. Cobria-se tudo de flores. A fim de tapar a miséria. Porque era a Rainha do Céu que viria. Não uma imagem.
E para a receber, enviava-se ao seu encontro uma escolta de cavaleiros. Reuniam-se os mais belos cavalos. Lavavam-nos nas águas geladas do Hosanna. Faziam-lhes brilhar o pêlo. Depois, em lugar das selas - porque selas nunca havíamos tido, os invasores levavam-nas regularmente- ajaezavam-nos com belos tapetes. A seguir, os jovens mais belos da aldeia apresentavam-se vestidos de branco, em trajo nacional, bem lavados. Para se ser cavaleiro da guarda da Rainha do Céu, devia-se ser belo, jovem e puro. Devia-se também jejuar um dia inteiro. Então, algumas dúzias de cavalos montados por jovens de flores no chapéu, vestidos de branco e impecáveis de limpeza, iam buscar a Rainha do Céu à aldeia onde se encontrava. E desta vez, por milagre, pela primeira vez desde que o lugarejo existia, escolheu-se, para ir a cavalo buscar a Rainha e servir-lhe de escolta, não apenas cavaleiros, mas também um pajem. E fui eu. Sabia-se que eu seria, mais tarde, o padre da aldeia. Sabia-se do meu desejo de tornar-me santo. Tal encontro com a Mãe de Deus e Rainha do Céu não podia ser mais útil a ninguém do que a mim. Ao que desejava tornar-se São Virgílio. E mais, eu tinha um amor desmesurado por cavalos. Antes de saber verdadeiramente andar, já sabia montar bem a cavalo. Montava, aos sete anos, a cavalo, a trote, a galope. Podia manter-me de pé, cavalgar de todas as maneiras. Sabia que mais tarde, quando fosse padre, já não podia montar a cavalo. E aproveitava. Todos os cavalos da aldeia me conheciam. Gostava deles. Banhava-me nu, a cavalo, nas águas do Hosanna. E cada vez que passava diante duma casa onde havia um cavalo, diziam-me:
- Virgílio, não queres levar o meu cavalo ao Hosanna a beber água?
Isso dava-me prazer. E ao cavalo também.
Porque não há felicidade maior para os cavalos do que serem montados por crianças (8).
Por todas estas razões, escolheram-me não como cavaleiro, claro, porque um cavaleiro da Rainha do Céu deve ser um adolescente, mas como pajem. E como eu tinha um cavalo branco, e como era o mais novo, colocaram-me à cabeça do cortejo. Senti-me feliz como nunca mais me sentiria em toda a vida. Porque sabia que era realmente pajem da Rainha do Céu. E que, ao ir ao seu encontro com os cavaleiros da aldeia, encontrá-la-ia. E ela olharia para mim. E eu, descendo do cavalo, cairia de joelhos diante dela. E ela dir-me-ia qualquer coisa... Não sabia o quê. Mas uma palavra pronunciada pela Rainha do Céu seria, para mim, como uma pedra preciosa, um marco imperecível.
Nesse dia havia sol. De manhã muito cedo estava tudo pronto. Os cavalos, enfeitados com colares de flores silvestres e de rosas, estavam com os seus cavaleiros defronte da igreja. Deu-se o sinal de partida. Dirigimo-nos para oeste, ao longo do Hosanna, cuja água brilhava como um espelho. Tínhamos o sol pelas costas. A nuvem de poeira que os cavalos levantavam seguia-nos como uma cauda de vestido. Não era branca, por causa do sol, e viamo-la flutuar, semelhante a uma nuvem de oiro atrás de nós. Todos os cavalos estavam ferrados de fresco.
* (8) V. Gheorghiu: A Casa de Petrodava (editado pela Livraria Bertrand). *
Ouvia-se as ferraduras, na pedra da estrada, como o som dos anafis, como o som das trombetas. Ia-se depressa. A trote. Apesar de cedo. E os nossos corações batiam e faziam o mesmo ruído, no peito, que as ferraduras dos cavalos na estrada salpicada de margaridas e de pétalas de rosas. Estávamos comovidos. Todos. Sobretudo eu. O único pajem da Rainha do Céu, que os cavaleiros da Rainha tinham permitido que cavalgasse à cabeça do cortejo. E ouvia também o coração do meu cavalo. E os corações dos cinquenta cavalos que formavam o esquadrão da Mãe de Deus baterem, em cadência, com os nossos corações e os cascos. E os que estavam atrás de nós viam que os cascos ferrados dos cavalos, tocando a pedra e o granito da estrada, faziam saltar faíscas, grandes como estrelas... Formávamos uma bela escolta, ao ritmo dos tambores dos nossos corações, acompanhada por uma nuvem de oiro e estrelas saídas dos cascos dos cavalos... Avançava-se para oeste. Em frente eram os Cárpatos. A montanha era azul, alta até ao Céu, exactamente como os iconostases nas nossas santas igrejas ortodoxas. E, ao avançar para o iconostase dos Cárpatos, não teríamos ficado surpreendidos se víssemos o muro azul dos Cárpatos abrir-se, tal como se abrem, durante a liturgia, as portas santas do iconostase, na igreja, para deixarem sair o Rei dos reis, que avançaria para nós... Mas, após uma boa hora de cavalgada na floresta, onde os pinheiros pareciam de guarda, direitos como hussardos, nas aldeias, nos vales, nas clareiras, que se chamavam Theotocos, Sinai, Pantocrator, vimos diante de nós outra nuvem de oiro: os cavaleiros da aldeia dos acatistas que acompanhavam a Rainha do Céu. Encontrámo-nos a meio caminho. A cavalaria que precedia a Virgem, a cavalaria da aldeia dos acatistas, efectuou uma manobra e alinhou dos dois lados da estrada. Esperámos imóveis, sobre os cavalos. Não muito tempo. Porque, logo que os cavaleiros acatistas se alinharam de ambos os lados da estrada, vimos a carruagem negra, brilhante, puxada por quatro cavalos negros, onde estava a Rainha do Céu. Demos meia volta e tomámos o lugar da vanguarda que se retirara. Agora, éramos nós que íamos à cabeça do cortejo. Nesse momento, de um lado e do outro da estrada, em todas as aldeias, havia homens, crianças, mulheres com roupas de festa que se ajoelhavam. E sabíamos que atrás de nós havia a carruagem da Rainha do Céu que precedíamos algumas dezenas de metros. A trote. E à cabeça do esquadrão dos cavaleiros estava o pajem da Mãe de Deus. Um pajem de sete anos. E era eu que a guiava para a nossa aldeia. Os sinos de todas as igrejas, na montanha, repicavam. Os clarins rivalizavam com os sinos, com o ruído dos cascos, com o bater do coração dos cavalos, dos cavaleiros e do pajem. E tínhamos o sol pela frente, que nos iluminava e à Rainha, Antes de entrarmos na aldeia, encontrámos todos os habitantes ajoelhados de um e outro lado da estrada. Recebiam com cânticos a Rainha do Céu. Parámos diante da igreja. Tecto e paredes engalanados. A toda a volta, as cruzes de madeira do cemitério. Túmulos de relva aparada de fresco. Polvilhados de flores. Descemos dos cavalos e alinhámo-nos dos dois lados do caminho que conduz à igreja. De joelhos, enquanto o povo cantava o hino acatista. E vi de perto a carruagem da Rainha do Céu. Os quatro cavalos negros, animais de puro sangue, luzidios como a seda, estacaram. Arreios de coiro brilhante e de prata. Os cocheiros da Mãe de Deus eram dois monges. Jovens. com uma longa barba. Castanha. Trazendo kalimakva e cinto de coiro. Como todos os monges do Oriente. Atrás da carruagem da Virgem vinha uma segunda, menos brilhante, negra também, puxada por dois cavalos e com um único monge-cocheiro. Desta carruagem desceram dois monges. Muito belos. com gestos pios, tal como as pessoas da corte imperial, abriram as portas da carruagem da Mãe de Deus. Vi que tudo, no interior, estava forrado de veludo vermelho. Havia um pedestal - coberto de veludo também - e no pedestal um trono, onde se sentava a Rainha do Céu, de prata, com olhos de pedras preciosas, com pérolas, jóias de oiro. Os dois monges-servos da segunda carruagem eram um monge sagrado e um diácono sagrado. Ajudados por duas raparigas da aldeia e por adolescentes, desceram o ícone de prata da Rainha do Céu. Eu estava de joelhos. Vi os seus olhos de brilhantes. Comovido, só ouvi os sinos. Os cânticos. E vi também, através das lágrimas, meu pai paramentado e os sete padres vindos das aldeias vizinhas, a fim de receberem na nossa terra a Rainha do Céu.
Durante toda a noite, a Rainha do Céu permaneceu na nossa igreja. Na nossa aldeia. Num pedestal de veludo vermelho. Diante das portas santas. No meio da igreja. Depois de ter devolvido o meu cavalo ao proprietário, vim prosternar-me aos pés do ícone. E com os meus ouvidos ouvi estas palavras da sua boca: A minha graça e a minha força estão com esta imagem. Em seguida, meu pai e os sete padres que o acompanhavam cantaram: E nós cremos que o disseste, Nossa Soberana, e que estás connosco através desta imagem.
Toda a manhã, toda a tarde e quase toda a noite permaneci na igreja. Não me cansava de olhar o esplendor da Rainha do Céu, porque sabia que ela estava na imagem. Ninguém na aldeia pregou olho. A Rainha do Céu estava entre nós. Abriram-se as portas dos estábulos e tiraram-se os cabrestos aos animais. Os vitelos e os carneiros mamaram nas mães. Livremente. Como no dia de Páscoa. Porque, como continuar com os cães presos, com o gado fechado, como continuar a ordenhar as vacas e a fazer trabalhar os animais de carga como nos outros dias, agora, que não apenas o Céu mas a Rainha do Céu estavam connosco? Sob o tecto da nossa igreja. Todos os aldeões vieram pedir o que necessitavam. Pediu-se saúde para os doentes, pediu-se marido para as solteiras. E boas colheitas e vitelos para as vacas estéreis... Tudo quanto se pode pedir a uma Soberana, a uma Rainha e a uma Mulher que viu crucificar o Filho e que conhece as dores e as lágrimas, as injustiças e os sofrimentos... Mas pediu-se principalmente à Nossa Mãe, à Mãe de Deus, à Rainha do Céu, que viesse socorrer-nos no dia do Julgamento Final, na Parúsia, na segunda exaltação de Cristo... Porque, para nós que nada temos na Terra e nada esperamos dela, a nossa fé e a nossa esperança estão no Céu a partir do dia do Julgamento Final, na Parúsia. Esperamos receber o nosso perdão. E isso só será possível graças à Rainha do Céu. E aproveitámos para lho pedir. com lágrimas. De joelhos. Durante vinte e quatro horas. Sem interrupção.
No dia seguinte, a Mãe de Deus saiu da igreja. Celebrou-se a liturgia ao ar livre. Pedindo a paz. E a remissão dos pecados.
E, após um dia e uma noite de felicidade, formou-se a escolta e conduziu-se a Soberana, com aparato de realeza, para outra aldeia. Estava de novo, como à chegada, pajem a cavalo no esquadrão da escolta da Mãe de Deus e Rainha do Céu.
Foi, de toda a minha vida, o maior, o mais glorioso de todos os dias. Passou meio século. Durante um quarto de século vivi no exílio. Separado do meu povo, mais uma vez invadido pelas hordas vindas do leste. Vivi em Paris e orava pelos meus, de que não tinha notícias, como pelos mortos. Porque só os mortos não dão nenhum sinal de vida. Lá, na Roménia, os sobreviventes oravam por mim, julgando-me morto, porque nada sabiam a meu respeito. Estavam separados do mundo. Do mundo inteiro. E consideravam, também, todos os de quem estavam separados como mortos.
Mas, ao longo do Verão de 1966, encontrei, em carne e osso, pela primeira vez depois de um quarto de século, um bispo romeno. Era o metropolita da Moldávia, monsenhor Justin Moisesco, superior de todos os mosteiros, lavras, skyts, grutas, monges, eremitas e anacoretas que vivem na vertente oriental dos Cárpatos, em Neamtz. Muitas centenas de parentes meus segundo a carne eram vivos (soube-o ulteriormente) e alguns eram padres. Párocos de aldeia. Como sempre, havia séculos. Meu irmão é padre. Minha irmã é casada com um padre. Meu pai continua a dizer missa. Mas, ao encontrar o metropolita Justin Moisesco, em Genebra, no Concílio Ecuménico, não lhe perguntei nada acerca de meu pai, nem acerca dos meus parentes. A minha primeira pergunta foi para a Rainha do Céu.
- Que perguntas tu? - disse o metropolita.
- A Rainha do Céu, monsenhor, ainda desce às nossas miseráveis aldeias?
- Ah, não... - disse o metropolita. - Isso acabou há muito tempo.
- Ela está lá, em Neamtz, e já não vai às nossas pobres aldeias, ao menos uma vez de dois em dois anos, ou de três em três? Era tão belo. Tão consolador. A única coisa bela das nossas vidas: a visita da Platytera, a que está mais alta do que os Céus...
- Não, ela já não vai às aldeias. É proibido.
- Mas a Rainha do Céu está sempre em Neamtz?
- Sempre - respondeu secamente monsenhor Justin, metropolita da Moldávia.
- Se ela lá está, mas não desce às aldeias, então foi porque proibiram...
- Claro. As saídas da Theotocos para fora dos muros dos mosteiros estão interditas.
- A Rainha do Céu, a Mãe de Deus, está portanto presa?
- Presa? Que palavra essa!... - disse o metropolita.
Havia vinte anos que o metropolita era deputado do Partido Comunista na Assembleia. Não podia falar como eu. Como os homens livres.
- Prenderam a Mãe de Deus!... Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Sabia que desde 23 de Agosto de 1944, desde a ocupação do meu país até 1966, milhões de homens do meu povo tinham sido mortos, presos, torturados... Mas não sabia que se prendera também a Mãe de Deus. Não. Isso era inconcebível. Prender a Rainha do Céu.
- Ela não está presa... - acrescentou o metropolita... - Está no seu altar, dentro dum armário. No mosteiro.
Isto era ainda mais forte! No meu último romance (9), escrevi a história de um grande poeta romeno que permaneceu, durante a ocupação bolchevista, isto é, durante vinte anos, escondido num armário... Mas ouvir dizer que a Mãe de Deus, a Rainha do Céu, estava, desde a ocupação, detida no mosteiro de Neamtz, era de mais. Ela! A Mãe de Deus! Ela que está mais alta que os querubins! Ela que é maior que os serafins! Ela! A Rainha dos Céus! Presa e escondida num armário? Era demasiado! Inacreditável!
E eis que, em vez de invocar a Mãe de Deus, a fim de que ela conceda a graça e a liberdade aos Romenos, tenho a tentação de invocar Cristo, a fim de que ele conceda a liberdade à sua própria Mãe, à Rainha do Céu, que vive prisioneira como a maioria dos romenos, que vive escondida num armário... Mas abstenho-me de rezar pela libertação da Mãe de Deus. Não. Uma rainha sofre com o seu povo. E se a Mãe de Deus aceitou - ela que é Rainha do Céu e da Terra, ela que pode fazer tudo na Terra e no Céu-, se aceitou em deixar-se prender em Neamtz, se vive fechada num armário e permitiu que lhe arrancassem os olhos de brilhantes a golpes de baioneta, como se conta, é porque ela ama o povo romeno. E quer sofrer
* (9) V. Gheorghiu: A Condottiera. *
com ele. Como sofreu a cruz por seu filho. Porque ela é a Nikopeia, a Vitoriosa. E vencerá. com todo o seu povo. Como se venceu em nome da cruz. Tudo. Sempre. Assim acontecerá um dia. Não ouso rezar pela libertação da Mãe de Deus, da Rainha do Céu, prisioneira num armário, no mosteiro de Neamtz. Ela está na prisão com o seu povo, romeno e cristão, como uma verdadeira rainha.
Porque têm os nossos padres mulher e filhos, enquanto noutros lugares são celibatários?
POR ocasião da visita que a Rainha do Céu fez à nossa aldeia, surgiram na minha cabeça de criança novos problemas. Havia séculos que todos os homens da minha família, com raras excepções, eram curas nas aldeias onde moravam os escravos dos mosteiros. Era-se padre de pai para filho. Como no Antigo Testamento. Padres proletários. Padres-cavalos. Que serviam o Senhor com os pés percorrendo a montanha e levando a palavra divina, os sacramentos e a oração. A toda a parte onde fosse necessário. Soube mais tarde que o cavalo é o emblema dos doze Apóstolos, que estão também atrelados ao carro da Igreja... Foi assim que eu sempre vi o meu pai e todos os outros padres da minha família (1).
Os padres eram animais de carga. Os cavalos de Cristo. Mas o monge e o diácono que acompanhavam a Rainha do Céu, o hieromonge e o
* (1) V. Gheorghiu: La Cravache. *
hierodiácono, possuíam carruagem própria e eram diferentes dos padres que eu conhecera. Diferentes dos nossos padres proletários, que andavam a maior parte do tempo de sotaina e descalços. Claro que os dois monges transportados em carruagem faziam parte do séquito da Rainha das rainhas. Eram nobres. Não eram padres camponeses. Como o meu pai. E os meus tios. E os meus primos. E os meus avós. Mas, além das suas funções junto da Rainha dos Céus, outro aspecto os tornava diferentes. Primeiro, quase nada diziam. Se falavam, era em voz muito baixa. Depois, estavam alojados no presbitério e recusavam-se a comer connosco à mesa. Comiam sós. E muito pouco. Soube que é a regra monástica que recomenda aos monges: Vigia para que nunca te encontres à mesa com mulheres... (2) Não olhavam em torno, como fazem habitualmente os estranhos que entram na nossa casa. Quase nem viam onde punham os pés. Sempre de olhos baixos. Quando fores obrigado a ver gente (e gente, neste caso, era o presbitério), afasta-te para melhor manteres o silêncio. Não deixes os olhos desviarem-se de um lado para o outro e entretém-te com pensamentos puros ou medita nos Salmos (3).
Quando minha mãe e as mulheres da aldeia perguntavam aos monges se precisavam de alguma coisa, eles, os seguidores da Rainha do Céu,
* (2) Abba Isaías de Tebaida, Regra 1.
(3) Abba Isaías de Tebaida, Regra 17. *
nem sequer erguiam os olhos e respondiam que não lhes faltava nada. Mais tarde, soube que eles deviam proceder assim: Logo que entres numa cidade ou aldeia, conserva sempre os olhos baixos, para que, ao regressares à tua cela, os objectos que vistes não te voltem ao espírito para te tentarem... Tão-pouco olhes de frente as pessoas do sexo oposto. Nem mesmo as suas vestes (4).
- São padres-monges! - explicou meu pai.
- Hieromonges. Monges sagrados.
A meus olhos, ser padre-monge ou monge sagrado era, segundo todas as aparências, completamente diferente de ser padre como o meu pai ou como os outros padres camponeses. Mas, durante a santa e divina liturgia, vi que os padres-monges usavam paramentos idênticos aos do meu pai e que celebravam o mesmo ofício. E, porque ele era mais novo, o padre-monge fora o penúltimo no altar, durante a celebração.
- Um padre-monge não é mais importante que um padre de aldeia que tem mulher e filhos? - perguntei ao meu pai.
- Só há um único sacerdócio. Um só - respondeu.
- Mas há padres-monges e padres camponeses. Os monges são mais santos...
- Qualquer homem, monge ou não monge, é digno do sacerdócio. Esqueceste a oração do
* (4) Abba Isaías de Tabaida, Regras 40 e 41. *
ofertório - disse meu pai. - Está escrito: porque servir-vos é coisa grande e temível para os próprios poderes celestes. Mas, no entanto, por causa do vosso inefável e incomensurável amor pelos homens, haveis-vos tornado homem sem modificar o vosso ser divino, haveis-vos tornado no nosso Grande Padre e haveis-nos confiado o ministério desse sacrifício sem sangue, vós, o Senhor do Universo. Só vós, com efeito, Senhor, nosso Deus, só vós sois santo e só vós repousais em toda a santidade. Purificai a minha alma e expurgai o meu coração dos maus pensamentos, tornai-me digno, pela virtude do vosso Espírito
SantO, A MIM, QUE VÓS HAVEIS REVESTIDO com A GRAÇA DO SACERDÓCIO, PARA ME TERDES AQUI, DIANTE DO VOSSO ALTAR... (5)
"O padre-monge diz exactamente a mesma oração que o padre casado. Porque são ambos homens, subordinados, portanto, ao pecado, e ambos são padres, pois receberam a graça do sacerdócio... Não há diferença entre um padre casado e chefe de família e um padre-monge que vive só... Não há nem padre bom, nem padre mau. Revestido da graça do sacerdócio e tendo o poder do Espírito Santo, todos os padres são iguais (6). Um padre bom nada recebe a mais, e um padre mau nada recebe a menos. Para um e outro, o mistério da transubstanciação
* (5) A santa e divina liturgia de São João Crisóstomo: Oração do Ofertório.
(6) V. Gheorghiu: De la vingt-cinquième heure à l'heure éternelle. *
cumpre-se não pelo mérito do ministro consagrador, mas pela palavra do Criador e pela virtude do Espírito Santo (7).
- É a primeira vez que vejo um padre que não é casado e que não tem filhos. Um padre celibatário. Um padre-monge - disse eu a meu pai. - Pensava que eles fossem superiores aos outros...
- O santo concílio de Gangres, que se efectuou sob a presidência do Espírito Santo, como todos os sínodos, no ano de 340, no qual participaram todos os bispos do Ocidente e do Oriente, pois em 340 os ortodoxos e os católicos não estavam separados, esse santo sínodo lançou o anátema sobre todo aquele que pensasse que a comunhão recebida de um padre celibatário é melhor que a comunhão recebida das mãos de um padre casado... Porque há um único Grande Padre, Cristo. Uma única Igreja e uma única comunhão (8).
- Os padres-monges são, mesmo assim, mais santos que os padres que vivem em sociedade... Basta olhar para o monge sagrado. É puro como um ícone. Não olha nem para o rosto nem para as vestes das mulheres. Por consequência, é lógico que ele seja mais santo que um padre que tem mulher e filhos...
- Não - disse meu pai. - O seu sacerdócio não é melhor que o de um padre casado.
- Dizes isso porque és casado... - respondi.
* (7) São Paschase Radbert. P. L., 120, col. 1312.
(8) Concílio de Gangres: Cânone 4. *
- Os factos e a lógica são contra as tuas afirmações.
- Não - insistiu meu pai. - Um padre-monge não é superior a um padre casado. Não sou eu que o digo. Nem é por ser casado que o afirmo. Mas porque foi o próprio Senhor quem o disse. Tudo o que Deus faz é bom, concordas?
- Claro. Tudo o que Deus faz é bom.
- Deus, ao tornar-se sarcóforo, ao encarnar, escolheu doze apóstolos, antes de pregar e de formar a sua Igreja, não é verdade?
- Sim - respondi. - E no Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os doze apóstolos sob a forma de línguas de fogo. E esse fogo é o Espírito Santo que conduz a Igreja por intermédio dos apóstolos e dos seus sucessores, os bispos e os padres... Achas que Deus escolheu bem os seus apóstolos?
- Sim. Tudo o que Deus faz está bem feito.
- Pois bem, entre os doze apóstolos que o Senhor escolheu não havia apenas homens castos, puros, celibatários, ascetas. Entre os doze apóstolos havia também homens casados. Homens que tinham família, mulher, filhos, sogra... Já que o próprio Cristo escolheu alguns apóstolos entre as pessoas casadas, como poderia a nossa pobre Igreja terrestre tentar fazer melhor que Deus, excluindo os homens casados do sacerdócio? Se um homem casado foi digno de ser apóstolo de Cristo, por que motivo então não seria digno de ser cura de aldeia?
Nunca pensara antes que entre os doze apóstolos de Cristo havia pessoas casadas. Porque Cristo teria podido escolher apenas celibatários. Pessoas que levariam a vida angélica dos monges, como São João Baptista, como João o Evangelista e outros... Mas, na verdade, Cristo escolhera também homens casados entre os seus doze apóstolos. Primeiro, Pedro. Era casado. A mulher e a sogra seguiram-no, seguindo também Cristo. E Deus entrou na casa da família de Pedro. Viu a sogra de Pedro doente e deitada na cama. Cristo tocou-lhe numa das mãos. Curou-a. E a sogra de Pedro preparou a refeição para o Senhor (9). Diz-nos o Evangelho, algures, que os doze estavam com Cristo e que havia também mulheres com eles (10). Lê-se também nas Epístolas de São Paulo: Acaso não temos nós poder para levar por toda a parte uma mulher crente, assim como também os outros apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Pedro? (11) Mais: um dos primeiros apóstolos que Cristo escolheu e ao qual ordenou que o seguisse era um homem casado que tinha já quatro filhas. Era o santo apóstolo Filipe (12). Além do Evangelho, temos outros testemunhos sobre os filhos dos apóstolos. Eis um dos mais antigos: O apóstolo Filipe permaneceu em Hierópolis com suas filhas.
* (9) São Mateus, VIII, 14-15.
(10) São Lucas, VIII, 2.
(11) São Paulo: Primeira Epístola aos Coríntios, IX, 5.
(12) São Mateus, X, 4; São Marcos, iII, 18; São Lucas, VI, 14; Actos dos Apóstolos, I, 13. *
Papias, que vivia nesse tempo, conta que soube uma história maravilhosa acerca das filhas de Filipe (13).
Compreendi então que as labaredas desceram do Céu sobre a cabeça dos doze apóstolos, sem olhar a casados ou a celibatários. E que a Igreja é una. Que o sacerdócio é o mesmo. Quer se seja casado ou monge, é-se igualmente digno de ser apóstolo e padre, porque foi Cristo quem o estabeleceu. Durante a sua vida terrestre. Ele próprio.
Mas o principal, o mais importante, é que Cristo, no dia em que fundou a Igreja terrestre, não escolheu o mais puro, o mais casto dos apóstolos, mas um homem casado. Porque foi Pedro que Cristo escolheu, dizendo-lhe: Tu és Pedro e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja (14). A partir desse dia, deixei de estabelecer diferença entre padres casados e padres-monges. Porque seria idiota, para nós, homens, pretender fazer melhor que Deus. Excluir da graça do sacerdócio aqueles que Deus não excluiu da dignidade suprema, a dos apóstolos!
Muito tempo depois de a Rainha do Céu ter partido da nossa aldeia e após a minha primeira politeia (a minha participação como pajem na escolta equestre da Mãe de Deus), comecei a preocupar-me com um outro problema. De todas as vezes que olhava para minha mãe, a minha piedosa mãe, que estava sempre colérica
* (13) Eusébio de Cesareia: História Eclesiástica, iII, 39.
(14) São Mateus, XVI, 18-19. *
na sua simplicidade de teodidacta, perguntava a mim próprio porque é que Cristo não escolhera mulheres para apóstolos? Teriam elas algo de indigno, de inferior? Porque é que o Senhor escolhera exclusivamente homens? Eis a razão de as mulheres terem sido privadas do sacerdócio: porque Cristo as excluiu das fileiras dos apóstolos. E, se se é mulher, é impossível ser-se padre (15).
Eu sabia que aquele que tenta compreender a incompreensibilidade de Deus só atrai os demónios. Mas, ao pensar na Rainha do Céu, na Mãe de Deus, que se encontra no Céu, acima de todos os santos e de todos os poderes celestes, mais alto que os anjos, os serafins, os querubins, a autoridade e os tronos, pode-se falar realmente de uma exclusão da mulher da Igreja? Maria, a Virgem, não foi apóstolo do seu filho. Nem ela, nem nenhuma mulher. É verdade. Mas Maria foi a Mãe de Cristo. É muito mais grandioso, mais divino, mais sublime, trazer Deus no ventre que ser seu apóstolo. Hoje, como sempre, as mulheres não são padres, mas trazem na sua carne aqueles que o serão. Como a Santa Imaculada Virgem trouxe Cristo. É uma participação muito maior, mais sublime, a suprema participação no sacerdócio. Porque elas, as mulheres, trazem no ventre e alimentam ao seio aqueles que serão bispos, patriarcas, padres, santos... Se possuem esta graça suprema,
* (15) São Paulo: Primeira Epístola aos Coríntios, XIV, 34, e Santo Epifânio: Panarion, XXIX, 2. *
necessitarão as mulheres de outra, menor? Tudo o que Deus fez está bem feito. Disse-o o próprio Criador, após cada um dos seus actos da criação: E Deus viu que isso era bom (16).
A encarnação de Deus no ventre da Virgem deificou-a, a ela também, concedendo-lhe o supremo lugar junto do Senhor! As mães cujos filhos recebem o sacerdócio não são também deificadas pela graça concedida aos seus filhos? Em todas as ordenações, eu vejo com os meus próprios olhos a chama do sacerdócio, a qual desce como uma língua de fogo sobre a cabeça do novo padre. Mas essa chama ilumina, transfigurando-as, a mãe, a esposa e as filhas daquele que recebe a santa luz. É assim que as mulheres participam no sacerdócio. Integralmente. com toda a sua carne. Totalmente.
* (16) Génese, cap. 1. *
Os judeus chamaram-me "o Malaky"
No final do ano memorável em que fui pajem da Rainha do Céu, devia começar a frequentar a escola. Ia fazer sete anos em Setembro. Além da morte, nenhum outro acontecimento da vida terrestre tinha tanta importância a meus olhos. Depois da morte, o homem cessa de fazer o bem e o mal. Tão-pouco se pode arrepender. A morte é um acontecimento grave. Ter sete anos não é menos grave. Antes, não nos confessamos. Porque não temos pecados. É a partir dos sete anos que se adquire a prerrogativa da realeza, reservada apenas aos anjos e aos homens: fazer o bem ou o mal. Todo o mal e todo o bem é o resultado de uma escolha livre. Para escolher é preciso ser livre e razoável. E, se praticarmos o mal e o bem antes dos sete anos, os nossos actos não são nem bons nem maus, porque não dispomos de discernimento, de raciocínio. Nada se tem para se confessar. Claro que somos cristão, filho de Deus pelo baptismo, mas incapaz de pecar ou praticar actos virtuosos. Porque não possuímos discernimento.
O facto de eu começar, a partir do mês de Setembro de 1923, a cometer pecados (porque não há nenhum homem que não peque), modificava radicalmente a minha existência. A partir de Setembro de 1923, já não pude tocar com os lábios a colher da comunhão, na qual havia o corpo e o sangue de Cristo, sem previamente me ter confessado. Várias vezes, antes dos sete anos, eu implorara a meu pai que me confessasse a mim também, para ser perdoado de certos actos que me pesavam na consciência. Ele recusara dizendo que tudo o que se faz antes dos sete anos não é nem bem nem mal, e que são os pais que terão de responder perante Deus. Depois dos sete anos, tudo o que se faz é registado. É-se responsável pelos nossos actos. Por todos os nossos actos. Estava aterrorizado, sabendo que não se pode viver sem pecados. E que eu havia de os cometer. Depois de Setembro de 1923, a página branca do meu livro de vida no Céu enegreceria todos os dias com a lista dos meus pecados. Voluntários. Involuntários, cometidos em pensamento ou em actos. Havia algures em minha casa, escondido pela minha mãe - pois não era aceite oficialmente pela Igreja-, um ícone onde estavam representados todos os pecados e as penas em que eles incorriam no Inferno. Eu conhecia essas penas. E, claro, tinha medo dos meus futuros pecados. Mas, ao mesmo tempo, estava impaciente por atingir a idade dos sete anos. Porque se o pecado devia inevitavelmente enegrecer a minha vida, eu também seria capaz de virtude. E da maior das virtudes - o amor pelos meus inimigos-, que conduziria, com a ajuda do Céu, à santidade. Também isso me seria possível depois dos sete anos. Antes, não. Pois, se o mal não me era imputado, o bem também não. O raciocínio, o discernimento e a liberdade são o que o homem possui de melhor. E, mais tarde, compreendi o dito de São Tomás de Aquino: A inteligência acompanha a eternidade (1). O discernimento, ou seja, a inteligência e a liberdade de fazer o que a minha inteligência e o meu raciocínio me dizem, são as duas coisas às quais devo agarrar-me. Sem me perder. A virtude consiste em ser livre, e ser livre é ser idêntico à sua própria natureza (2). A minha natureza de homem é dupla. Cabe-me a mim escolher, a partir da idade dos sete anos, seguir as minhas inclinações, tornar-me imortal e santo, ou tornar-me mortal. Porque, pela sua natureza, o homem não é mais mortal do que imortal. Se tivesse sido criado imortal desde o princípio, teria sido criado Deus. Por outro lado, se tivesse sido criado mortal, parecer-lhe-ia que Deus fora a causa da sua morte. O homem não foi, portanto, criado nem mortal nem imortal, mas CAPAZ DE SER UM ou OUTRO. Assim, dirigia-se
* (1) São Tomás de Aquino: Súmula Teológica, I, Qu. 57, art. 3.
(2) São Gregório de Nissa: P. G., 46, col. 101-D. *
ele na via da imortalidade seguindo os mandamentos de Deus? Devia, então, receber a imortalidade como recompensa e tornar-se Deus. Desviava-se na direcção das obras de morte, desobedecendo a Deus? Ele próprio se tornava na causa da sua morte. Deus, na verdade, criara o homem livre e senhor de si próprio (3).
Sim, eu tomava à letra todas estas coisas. Todas. E à letra continuo a tomá-las. Sabia que a partir de Setembro de 1923 dependia da minha vontade ser deificado e tornar-me Deus ou poeira. Ser um santo ou um nada. O que me enchia de orgulho, mas também de um medo terrível do pecado. Havia muito tempo que sabia ler e escrever. Mas no mês de Setembro de 1923 tinha de ler e escrever oficialmente. Ia tornar-me num aluno. Comprei nas lojas dos judeus da aldeia os cadernos e os lápis muito antes de as aulas começarem. E, enquanto esperava na loja dos judeus, sofri a minha primeira ofensa. Rosa, a filha do lojista, agarrou-me nos seus braços. Ela tinha uns vinte anos. E era muito branca e ruiva. Os seus cabelos pareciam cobre. Porque os nossos judeus, aqueles que vivem na vertente oriental dos Cárpatos, não têm nada que ver com a raça semita, mediterrânea, oriental. São os restos judaizados dos antigos invasores germânicos, da mesma raça dos Escandinavos e dos Alemães. São altos e
* (3) São Teófilo de Antioquia: Livros a Antolycus, livro II. *
louros, com uma pele branca sardenta. Rosa era singularmente ruiva e branca. Tal e qual como a valquíria que mais tarde vi na ópera. Ela aperta-me com força contra o seio branco e opulento e, beijando-me na face, diz:
- £ um malak... Um lindo malak.
Desfiz-me em lágrimas. Corri para casa e chorei o dia inteiro. Havia muita gente na loja. Todos tinham ouvido o que a Rosa dissera. E todos, a partir desse momento, principalmente as crianças, me alcunharam de o Malak. Sentia-me muito infeliz. Esforcei-me por não odiar a Rosa, mas não era capaz. A humilhação de me chamarem Malak era excessiva. Insuportável.
- Estou desejoso pelo mês de Setembro - disse a meu pai. - Para ter sete anos. E confessar-me a ti.
- Cometeste crime tão monstruoso para a tua consciência te pesar assim tanto? - perguntou meu pai.
Desfiz-me novamente em lágrimas.
- Se o crime é assim tão horrível, posso confessar-te umas semanas antes de fazeres os sete anos... Quem mataste?
- Não matei ninguém - respondi.
Não percebia que meu pai troçava de mim. Acrescentei.
- Eu que me propus, como sabes, amar de todo o coração os meus inimigos, encontro-me agora cheio de ódio.
- Contra quem?
- Contra os judeus! E principalmente contra a Rosa. É um sentimento mais forte que eu. Odeio-os. Não é verdade que estou perdido? O pecado do ódio vai-me devorar.
- O ódio ao próximo é tão terrível como o assassínio - disse meu pai. - É realmente grave.
Meu pai continuava a troçar de mim. Do que eu não me apercebia. Sentia-me demasiado infeliz pelo facto de odiar a Rosa. E os judeus. Eles eram meus semelhantes. Apesar de serem, na verdade, tão pouco semelhantes a nós... Biblicamente, porém, são nossos irmãos. Nossos semelhantes. Mesmo louros, ou ruivos, ou negros... E eu odiava a Rosa, a ruiva.
- Que te fez a Rosa para a odiares? - perguntou.
- Chamou-me Malak-? disse eu, chorando sentidamente. - Toda a gente que estava na loja ouviu. Todos se riram de mim. Desde então, os garotos da aldeia, quando me vêem na rua, gritam: Malak! Malak! Virgílio o Malak...
- É por causa disso que tu odeias a Rosa e os judeus?
- Não é só por isso - respondi. - Toda a aldeia me chama Virgílio o Malak... O mais feio dos nomes... E tudo por causa dos judeus.
Meu pai pegou num dos seus manuais de seminarista, forrado de papel azul, e disse-me:
- Lê isto...
- Não posso ler, porque os meus olhos estão cheios de lágrimas.
- Limpa as lágrimas e lê - ordenou meu pai.
Limpei as lágrimas. Não eram apenas as lágrimas que me cegavam, mas também a dor. Sentia-me tão humilhado por me chamarem Malak... Tinha vergonha de mim mesmo ao pensar que o Malak era eu.
- Agora podes ler! Lê em voz alta.
- Não posso - disse eu.
- Então lê comigo em voz alta. Isto é o dicionário destinado aos seminaristas e aprovado pelo santo sínodo. Anjo significa em grego mensageiro. Pois os anjos são os mensageiros de Deus. Os judeus chamavam aos anjos malak...
Li em voz alta com meu pai. Mas os meus pensamentos estavam noutro sítio...
- Em vez de estares reconhecido à Rosa, porque ela te fez um grande cumprimento chamando-te anjo, tu tens-lhe ódio... Os judeus, ao dizerem Virgílio é um malak, dizem Virgílio é um anjo...
- E os garotos da aldeia que não conhecem a língua judaica e que me perseguem gritando Virgílio o Malak?
- Pois bem, eles chamam-te, sem saberem, Virgílio o anjo... Foi assim que te chamaram os judeus.
Limpei os olhos e li. com os meus próprios olhos. Era verdade. Malak significa anjo na língua dos judeus. E para me consolar, escrevi numa folha de papel branco: Anjo diz-se em hebreu: malak.
Eu tinha grande respeito pela escrita. Fora meu pai quem mo inspirara.
- A escrita é uma coisa sagrada - explicara-me ele. - A caligrafia é um ritual. O mais sagrado dos rituais. Porque aquele que escreve indica simbolicamente com os dedos e a pena o mistério da Santíssima Trindade, da encarnação, da descida ao túmulo e da ressurreição de Cristo.
- Indica-se simbolicamente todos esses santos mistérios escrevendo simplesmente?
- Exacto... - disse meu pai.
- Mesmo escrevendo coisas que não são religiosas, imita-se, ao escrevê-las, a paixão e a ressurreição de Cristo?
- Mesmo escrevendo coisas sacrílegas, indicamos, simbolicamente, pela caligrafia, o mistério da morte e da ressurreição de Cristo...
Sentia-me muito feliz por ouvir tais palavras. Porque no meu presbitério tínhamos um tinteiro, onde havia sempre tinta, e tínhamos também caneta e papel para escrever. Coisa rara. Que não era habitual. Nenhuma outra casa possuía tinta, papel e os acessórios indispensáveis para escrever. Mas, sendo o meu pai padre, quer dizer, cônsul do Grande Rei do Céu na Terra, devia inscrever, ao mesmo tempo que os anjos nos livros do Céu, os nomes das crianças baptizadas, dos cristãos que se casavam e dos defuntos.
Mas eu não suspeitava do alcance simbólico da caligrafia.
- Toda a escrita, qualquer que seja o seu conteúdo - disse meu pai-, é uma teologia... Indica, primeiro, o símbolo da Santíssima Trindade. Está dito: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele; e nada do que foi feito, foi feito sem ele (4). Quando escreves uma palavra, tu mesmo crias a tua própria palavra, como Deus criou o Filho. A seguir, o verbo que escreves adquire forma nas letras da tua caligrafia. Como Cristo ao assumir a forma de homem. Depois, o verbo, o logos, a palavra, gerada por ti, morre, nas linhas das letras caligrafadas, como Cristo morreu na cruz... Mais tarde, tu mesmo lerás, ou um outro lerá, a tua palavra escrita. E a palavra criada do nada por ti, e posta em letras pela caligrafia como Cristo posto no túmulo, ressuscitará no pensamento de outro homem.
As palavras que se escrevem podem tornar-se em casas, se são escritas por arquitectos; em máquinas, se são escritas por inventores; em lágrimas ou em gritos de alegria se são escritas por poetas... Toda a caligrafia é um símbolo da criação saída do nada, da morte e da ressurreição pelo Verbo... Toda a caligrafia é uma teologia, um conhecimento de Deus...
* (4) São João, I, 1-3. *
Desde esse dia, qualquer letra escrita ou impressa me lembra - sempre - o túmulo de Cristo. Escrever é para mim não apenas um dever, um prazer, mas também um acto sagrado. Mesmo sabendo que foi um professor de caligrafia do seminário que inventou esta telegumena, esta teologia pessoal da caligrafia, a fim de estimular os alunos, ela embeleza a arte de escrever e em nada prejudica a fé ou a Igreja... Quanto a mim, a simbólica da ressurreição na escrita e a teologia da caligrafia enalteceram o meu coração de poeta de sete anos. Era na idade em que eu ia começar a cometer pecados e actos virtuosos e cumprir, segundo a minha livre escolha, o bem ou o mal... Era na idade em que já não poderia comungar sem primeiro me confessar e em que estive quase a ponto, não de encontrar, mas de inventar o meu primeiro inimigo na pessoa de Rosa a judia, que me chamara Malak. Fora um equívoco, mas isso provou-me que é quase impossível amar um inimigo. Se não podia amar os judeus, que quase cheguei a odiar por me terem chamado Malak, como poderia amar o meu verdadeiro inimigo? Um inimigo verdadeiro, que me bateria, me cravaria pregos na carne, como os soldados cravaram pregos na carne de Cristo? Como poderia eu amá-lo? Eu que, por uma das mais belas palavras do mundo, estivera a ponto de cair em pecado, de odiar o meu próximo, o que equivale a matá-lo? Sentia-me inquieto pelo meu futuro e pela minha vida eterna.
Redobrei, pois, de atenção. E a minha atenção, levada ao exagero, conduziu-me a outro pecado muito grave. Que ia provocando a morte de meu pai e fazendo cair a desgraça sobre a nossa casa e sobre mim próprio. Eis o que se passou.
O "pão nosso de cada dia"
de um pequeno comedor de milho
SENTIA-ME deveras contente por ainda não ter sete anos. E por saber que a minha cólera contra a Rosa e os judeus que me alcunharam de Malak não seria inscrita na lista dos meus pecados. Ainda que não tivesse sentido ódio pela Rosa, uma cólera terrível se apoderara de mim contra ela. E a cólera é também um pecado grave. Menos grave, é certo, que o ódio, mas nos livros dos Padres está escrito: Um homem tomado de cólera, mesmo que ressuscite um morto, não é do agrado de Deus (1). E eu queria evitar todo o pecado. Sobretudo depois do mês de Setembro, quando as minhas acções começassem a ser inscritas no Céu, no livro da minha vida, pelos anjos. Aliás, mesmo antes de Setembro, permaneci em constante estado de alerta. Mas a atenção que esse estado de alerta me exigia para atingir a perfeição deu mau resultado. Todos os domingos, à hora terceira, quer dizer, pelas nove horas da manhã, a hora em
* (1) Apotegmas dos Padres, Agaíhon, 19. *
que Cristo foi crucificado (2) e também a hora em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos, começa a santa e divina liturgia em todas as igrejas ortodoxas da Terra. Os próprios doentes não ousam permanecer deitados, ao domingo, durante as horas da liturgia. Os que entram na igreja, entram, na realidade, no Céu. Paulo, o santo apóstolo, declara que os cristãos que chegam à igreja, chegam simultaneamente ao cimo do monte Sião e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial e ao congresso triunfante de muitos milhares de anjos e às igrejas dos primogénitos cujos nomes estão inscritos no Céu (3). Na assembleia litúrgica estão presentes aqueles que nos precederam e que hoje estão mortos, os que vivem e os que hão-de nascer. Porque, na igreja, o tempo não existe durante a liturgia. Ir ao domingo à liturgia é, com efeito, sair de casa e ir ao Céu. Deixar o que nos rodeia, as coisas, os seres da Terra, para nos encontrarmos na companhia do universo inteiro, com Deus, escutá-lo, olhá-lo, comê-lo e bebê-lo. Tornarmo-nos no que somos por natureza: filhos de Deus e deificados.
Durante o ofício da santa e divina liturgia há a oração Senhorial. É o nome que se dá ao Padre Nosso, ao Pater. É a mesma oração para todos os cristãos da Terra - sejam eles católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos... As palavras desta pequena e bela oração são as próprias
* (2) São Marcos, XV, 25.
(3) São Paulo: Epístola aos Hebreus, XII, 22-23. *
palavras de Cristo. Por isso lhe chamam Oração Senhorial.
Na igreja reúnem-se todos os fiéis - o sinaxe -, que devem recitar ou cantar a Oração Senhorial. Mas, para dar maior importância, maior solenidade e beleza à única oração que contém as palavras do Senhor, o Pater é cantado pelo coro, quer dizer, pelas pessoas da assembleia que melhor saibam cantar. Depois, para dar ainda maior importância à Oração Senhorial, é a personagem de mais elevada categoria social entre as que se encontram na igreja quem a recita. Se a liturgia for celebrada num mosteiro, é o superior, o higumeno, quem o faz. Se houver na igreja um bispo, é o bispo. Se houver um patriarca ou um metropolita, é o patriarca ou o metropolita quem recita ou canta o Padre Nosso. Nas catedrais das grandes metrópoles é o rei ou o imperador, no caso de pertencer ao sinaxe... Em Londres, em Paris, em Nova Iorque, se se entrar, no momento da Oração Senhorial, numa igreja grega, pode-se ver um senhor de porte imponente e pleno de segurança a ler o Padre Nosso. É o embaixador, o ministro plenipotenciário ou o cônsul-geral da Grécia que desempenha o cargo e a quem cabe a honra de dizer a Oração Senhorial. Porque é ele quem representa todo o povo... Isto passa-se assim em todos os países ortodoxos. Nós tínhamos, na nossa aldeia, onde meu pai era cura, uma igreja toda construída de madeira. Meu irmão mais novo, Nicolau, que também é padre, acaba de me enviar (em 1968) uma fotografia da igreja do meu pai. Pouco maior que uma casa de pastor em um refúgio na montanha. Mas os hábitos são os mesmos. Infelizmente, o nosso lugarejo é muito pobre. Muito. Há pobreza em toda a parte. Não existem boas vozes. A língua, os lábios e as mãos dos pobres são pesados como os machados de que nos servimos para cortar as árvores. Somos pobres em individualidades. Igualmente na miséria. Como constituíssemos apenas um lugarejo, não possuíamos câmara municipal. Se assim fosse, o presidente é que deveria dizer o Padre Nosso. Não tínhamos guarda-fiscal. Nem polícias. Como nos faltavam por completo individualidades importantes no plano social, procurou-se a grandeza no plano moral. E concluiu-se que o homem mais importante da aldeia, aquele a quem deveria ser confiado o cargo de dizer o Padre Nosso, seria o mais puro. O mais casto. Aquele que tivesse menos pecados. E decidiram que o Padre Nosso seria dito por uma criança de sete anos. Era ela a mais importante individualidade de toda a aldeia. O maior teólogo. Pois é a pureza que faz do homem um teólogo, um conhecedor de Deus.
Assim, nesse Outono de 1923, foi a mim que coube a elevada honra de recitar a Oração Senhorial no meio da igreja. Recita-se o Pater defronte das portas reais. Usualmente, defronte do santuário e no meio do naos - a nave da igreja -, encontra-se um tapete sobre o qual está figurada uma águia. Esta águia, por vezes, está representada num mosaico, ou gravada no chão. É aí que se encontra o bispo no momento da sua sagração. A águia - ou o aetos, como lhe chamam os Gregos - simboliza aquele que paira acima do mundo terrestre, que vive nas alturas, que conhece a pureza, a magnanimidade, e que está perto do Céu. Por conseguinte, depois de me ter preparado durante todo o sábado, lavando-me, rezando e jejuando, encontrei-me no domingo com os dois pés assentes no aetos. Na águia. No meio da igreja. À minha esquerda estava o ambon, o púlpito. Este simboliza o túmulo de Cristo sobre o qual apareceu, de pé, o anjo encarregado de anunciar às mulheres a ressurreição do Senhor. Ao subir para o ambon a fim de ler o Evangelho, o diácono representa esse anjo. Outrora, subia-se ao púlpito também para pregar. Mas, por humildade, já nenhum padre ousa subir, como o anjo, ao túmulo vazio para pregar. É somente o Evangelho - a palavra sagrada-que é lido no ambon. Eu ali estava, portanto, com os meus pezitos sobre a águia, à espera de ouvir a oração - o ekphonese- dita pelo padre.
E tornai-nos dignos, Senhor, de ousarmos com audácia e sem incorrer em condenação, chamar-te Pai, a ti, o Deus do Céu, e dizer...
Nessa altura, com a voz estrangulada pela emoção e pela piedade, comecei a Oração Senhorial: Pai nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia... Aqui, parei. Empalideci. Eu era um poeta de sete anos, decidido a tornar-me num santo. E, além de outras coisas necessárias à santificação, existe o dever de não mentir. E sabia que, se continuasse a Oração Senhorial, mentiria... E parei, para não mentir. Eu sabia que sendo homem, era por excelência uma criatura livre, autónoma, prerrogativas divinas que apenas os homens e os anjos possuem. Era responsável pelos meus actos e opções. E devia escolher depressa, agora, sem perder um segundo: mentir, e continuar a recitar o Padre Nosso, ou parar. Recusar dizer o Padre Nosso. A única oração que o próprio Deus nos ensinou. O dilema era terrível. Por um lado, havia o ícone de Cristo. Em frente de mim. Via-o, à direita das portas reais, sobre o iconostase. Maior do que eu. Ele. Deus. O autor das palavras que eu não ousava pronunciar. Porque as achava contrárias à verdade... Podia Cristo ensinar-nos uma oração contrária à verdade? De qualquer modo, procedi como um filho de Deus, como um homem livre de escolher, e recusei-me a continuar o Pater... As palavras não correspondiam à verdade. Se as dissesse, cometeria o pecado da mentira. Aqui, no meio da igreja, quer dizer, em pleno Céu. Diante dos degraus do altar que simbolizam a escada de Jacob (4).
* (4) São Sofrónio de Jerusalém: P. G., 87, col. 98. *
Atrás de mim, os camponeses apiedaram-se da minha emoção. E assopraram-me em voz baixa as palavras que se seguiam. Julgando, os pobres, que as esquecera. Que estava atemorizado. Como os miúdos. Ouvi atrás de mim as vozes roucas dos velhos que diziam: O pão nosso de cada dia nos dai hoje... O pão nosso de cada dia nos dai hoje... O pão nosso de cada dia... Outras vozes se juntaram, pensando que eu não ouvia. Sussurravam cada vez mais alto... O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Todo o sinaxe - todas as pessoas que estavam na igreja -, homens, mulheres, crianças e velhos, diziam como um disco rachado: O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Gritavam todos. À minha volta. Atrás de mim. E eu, pálido, de lábios cerrados, recusei-me a dizer como eles... Não queria mentir. Eles pensavam que eu me esquecera do Padre Nosso. E o meu pobre pai, atrás do iconostase, também pensava o mesmo. Mas não era verdade. Eu sabia o Padre Nosso. É uma oração que ninguém esquece. Mesmo quando se deixa de a dizer. Mesmo quando se deixa de rezar. Mesmo quando se deixa de ter fé. Porque o Padre Nosso, a Oração Senhorial, é a primeira oração que uma criança aprende de cor. Dos lábios da mãe. Mas é mais que uma oração o que se aprende de cor. É como a própria fé. Uma coisa que não se aprende nos livros. A fé é como o calor. Não se tem calor lendo tratados sobre o calor. Não se tem fé lendo estudos de teologia. A fé é exactamente como o calor.
Transmite-se. Recebemo-la da nossa mãe. com o calor do seu seio. Do seu leite. Dos seus lábios. É nessa altura que se começa a ter fé. Como se deixa de ter frio ao tocar em qualquer coisa quente. A fé, para mim, é, em primeiro lugar, o calor da minha mãe. É a própria vida. Porque a fé e os dons do Espírito Santo transmitem-se. A quirotonia, a ordenação, faz-se pela imposição das mãos. As mãos do bispo, que possuem o fogo do Espírito Santo, tocam na nossa cabeça e transmitem-nos o fogo do Espírito Santo e o fogo do sacerdócio. Não aprendemos a fé cristã, nem eu nem os meus, na escola ou no catecismo. Nem em outras escolas. Ela foi-nos transmitida, directamente com a vida, pela nossa mãe. E da mesma maneira que nos transmitiu a vida, criou a nossa carne, a partir da sua própria vida e da sua própria carne... O Padre Nosso é a primeira oração da nossa fé. É a oração que nos torna teólogos. Porque, para nós, o teólogo não é aquele que leu muitos livros sobre Deus e as coisas sagradas. Não, o teólogo é aquele que reza. Se se reza, é-se teólogo (5). E o Padre Nosso é a oração por excelência.
Voltei-me para os que me gritavam aos ouvidos, para toda a gente da minha aldeia, porque nunca ninguém faltava à liturgia, mesmo que estivesse doente, e pretendi explicar-lhes que eu não esquecera o Padre Nosso. Porque não
* (5) Evágrio o Pôntico: Tratado da Oração, 60. *
nos podemos esquecer de viver. E para mim, rezar é viver. O Padre Nosso é a minha vida. Sou eu próprio. Como podiam eles ser tão estúpidos para acreditar que eu esquecera o Padre Nosso? E porque gritavam e mentiam eles, aqui, na igreja? O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Eu não queria mentir também. Quando tenho razão, não cedo, mesmo que todo o universo seja de opinião contrária. A verdade não é uma questão de número. E a verdade era que nem eu, nem as pessoas que se encontravam na igreja, atrás de mim, nem o meu pai, nem o padre, nem ninguém na minha aldeia e nas aldeias vizinhas, jamais tínhamos comido pão diariamente. Ou semanalmente. Ou mesmo, sequer, uma vez por mês. Nós nem ao menos podíamos jurar que comíamos pão uma ou duas vezes por ano... E quando só raramente se come pão na vida, como é que se pode vir para o meio da igreja - para o Céu-dizer: O pão nosso de cada dia?
- Nós não temos pão quotidiano, Senhor - disse eu em voz baixa. E retirei-me. E toda a gente em coro continuou, lamuriando, o Padre Nosso: O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Refugiei-me por detrás da igreja. Na relva do cemitério. E chorei. Olhando para o céu azul daquele domingo. E falei com Deus. com temeridade, com parrhesia: "Como poderia eu mentir-te? Tu bem sabes, meu Pai do Céu, que nós, pobres moldavos, que vivemos à beira do rio Hosanna, em Neamtz, na Moldávia, tu bem  sabes que nós não somos suficientemente ricos para comer pão todos os dias. Porque havemos de pedir uma coisa que não temos? Que nunca tivemos? Que, talvez, nunca haveremos de ter? E porque é que havemos de fingir que temos esse pão todos os dias, dando a entender que não fazemos mais do que pedir para não sermos privados dele de hoje em diante? Não, Tu ensinaste-nos a não mentir. Porquê vir à igreja e mentir-te? Nós, que te amamos. E ninguém te pode mentir, porque tu vês tudo. Em toda a parte!"
Chorei. Reflecti. Angustiei-me. Perguntava a mim mesmo se não deveria ter procurado uma solução melhor. Porque há sempre, em todas as circunstâncias, uma solução melhor. O facto de não a encontrarmos, não significa que ela não exista.
O que é certo é que, se eu tivesse afirmado perante Deus, no meio da igreja, que comíamos pão todos os dias, todos nós, a gente da aldeia, e eu, e o meu pai, e os outros moldavos, eu teria mentido. E mentir não é uma boa solução. Poderia ter dito a verdade. Mas então, modificaria a Oração Senhorial. Cometeria um sacrilégio. A fim de corresponder à verdade, poderia ter dito: O pão nosso de cada dia nos dai hoje, pão que nós comemos duas ou três vezes por ano... Ou: Dai-nos pão de tempos a tempos... Mas não se pode modificar uma oração. Sobretudo a única oração que nos foi ensinada directamente pelo Senhor (6). Claro, se eu tivesse tido a coragem para modificar a Oração Senhorial pedindo: dai-nos pão todos os dias, Deus o daria. Isso é certo. Porque foi dito: Tudo o que vós pedirdes ao meu Pai em meu nome vos será concedido (7).
Ainda hoje tenho a certeza de que Deus, o Nosso Pai do Céu, graças à minha prece, nos teria dado pão. Por milagre. A todos nós. Quotidianamente. Mesmo que esse pão tivesse de cair do Céu. Deus já fez isso, outrora, no deserto. com os judeus. Também podia fazer o mesmo, aqui, na vertente oriental dos Cárpatos. Connosco. com os Romenos. Mas eu não pedi ao Senhor esse pão quotidiano. Apesar da certeza que tinha de obtê-lo. Porque nós, os montanheses de Neamtz, de Baia, de Suceava, de Bucovina, nunca nos poderíamos ter habituado a comer pão todos os dias. Não. Mesmo que esse pão tivesse caído do Céu. Nós não o teríamos comido. Comer todos os dias pão, tanto quanto quiséssemos, teria sido para nós uma luxúria. Uma comezaina. Um deboche. Um exagero.
O pão é caro. Demasiado caro para nós. Acima das nossas posses. Seria um pecado comer uma coisa tão cara. Como se comêssemos prata, oiro, pedras preciosas. À colher. Contava-se que havia gente que comia pão todos os dias. Ouvimo-lo dizer.
* (6) São Mateus, VI, 9-13, e São Lucas, XI, 2-4.
(7) São João, XVI, 23. *
E sussurrava-se até que havia gente que comia pão, não só quotidianamente, mas várias vezes ao dia... Verificarei mais tarde que tal gente existe.
Nas minhas montanhas isso é inconcebível. Claro que na nossa terra se cultiva o trigo. Mas cultivamo-lo como se cultivam as flores raras. Por prestígio. Pela beleza. E principalmente por piedade. Porque sabemos que o grão do trigo é o símbolo do rosto de Cristo. Mas não se pode falar de uma autêntica cultura de trigo. Não. Primeiro, a terra é pobre. O trigo é uma planta burguesa. Um cereal nobre. As suas raízes são como algumas pessoas que não podem andar descalças na nossa terra. a terra é demasiado rochosa para elas. A raiz do trigo é como os pés sensíveis da gente da planície. A raiz do trigo não gosta de se enterrar nos nossos rochedos. O trigo gosta da terra mole, fértil, da planície... Mas não é apenas a terra que assusta o trigo. É também a altitude. O trigo é uma planta da planície. Não gosta de escalar as montanhas. Não gosta de trepar às alturas. Como o centeio, por exemplo... Ah!, o centeio, com as suas longas hastes como o pescoço de um cisne, trepa sobre as rochas como as cabras. Como a cabra montês. O trigo, esse, é burguês. Não gosta nada do ar puro das alturas. Da altitude. E dos cumes. Depois há o clima. Este não agrada ao trigo. Na nossa terra, quando se respira é como se se ingurgitasse uma bebida forte. Sente-se o ar nos pulmões. Tonificante. Autêntico álcool. Puro ozónio. Mas, se não se cultiva o trigo, é principalmente por causa das nossas desgraças históricas. Durante os dois milénios da nossa história, estivemos sempre preparados para fugir. Para nos refugiarmos noutro sítio. O invasor do Oriente podia aparecer a todo o momento. Para quê cultivar a terra, se os cascos da cavalaria bárbara acabariam por espezinhar as culturas?... E porque, apesar da história, tínhamos de procurar alimento na terra, cultivámos o milho. É uma planta menos frágil do que o trigo. E que, por si só, substitui todos os outros pratos. A carne, os legumes e os queijos, tudo... O milho é o trigo dos pobres. Das pessoas muito pobres da terra. Nós, os Moldavos, somos comedores de milho. Comemo-lo, em. papas, quente ou frio. Chama-se mamaliga. Ou malai. É a mesma coisa que a polenta dos Italianos, que o prato de milho dos habitantes das Astúrias, na Espanha, e os pratos do México e doutros países da América Latina... Comemos milho todos os dias. O pão é um alimento da realeza. Demasiado nobre para nós. Reservado aos dias de festa. De grande festa. E não é um alimento. É como uma guloseima. É a sobremesa. O pão é um alimento para os senhores... Em Targul Neamtz, na vila de Neamtz, à beira do rio Hosanna, nos dias de mercado, para festejar a venda de um cavalo, de um porco, de um bezerro, ou um bom negócio, os camponeses entravam timidamente na única padaria da vila, padaria essa que se encontrava na rua principal, perto da catedral, da câmara municipal e do monumento aos mortos, e compravam metade de um pão. Ou um quarto. Em seguida, comiam a mamaliga com a família e, depois de lavarem bem a boca e as mãos, cortavam o pão e saboreavam-no... Era a delícia das delícias... A refeição do Senhor. Essa refeição, que vejo em todos os ícones, compreendo-a melhor do que todas as outras. Porque sei que o pão é santo. Intrinsecamente. Já é uma felicidade tocá-lo. Já é uma festa parti-lo. E levá-lo à boca... O pão para nós é isso. Comíamos o pão piedosamente. com recolhimento. Olhando o Céu. Sabendo que estávamos em festa. Porque comíamos pão. O corpo de Cristo. E comiamo-lo sempre como se rezássemos.
Na nossa terra, o pão é isso. Como poderia eu então ter tido a audácia de falar de pão quotidiano diante do Senhor? E de mentir?... De mentir, não somente a mim próprio, mas a todos. Porque não se diz: Meu Pai que estais no Céu, mas Pai Nosso que estais no Céu. Dirigimo-nos a Deus-Pai em nome dos nossos irmãos... Doutro modo, não se pode chamar-lhe Pai. Se não se for realmente irmão de todos os outros homens da Terra.
- Senhor, castigai-me! - gritei. - Fazei cair sobre mim a vossa ira! Transformai-me numa estátua de enxofre ou de sal se pequei! Mas eu não podia falar em pão quotidiano, porque na nossa terra isso não existe...
Chorei durante muito tempo.
Mais tarde, procurei - por toda a Terra os comedores de milho. Como meus irmãos. Há-os no México. Em Itália. E mesmo em França, nos arredores de Pau. Ouvi dizer que, teologicamente, nós, os comedores de milho, não somos - se tomarmos as coisas à letra - nem homens, nem cristãos. Não podemos sê-lo. Porque para ser homem é preciso comer pão. O pão é o alimento do homem. É o sinal que distingue o homem das outras criaturas da Terra. Porque, afirma um teólogo bizantino, além do pão, nada é propriamente alimento humano, mas sim alimento comum a todos os animais, sendo os frutos especialmente destinados aos alados e aos herbívoros e a carne aos carnívoros. Chamamos humano ao que só se aplica ao homem: ora, ter necessidade de amassar o pão para comer e produzir vinho para beber é só próprio do homem (8).
Soube mais tarde que o milho, tal como o trigo, é o rosto de Cristo. O milho é semelhante ao trigo. Os Gregos e os Romanos chamavam-lhe zea. Mas, a acreditar no dicionário, milho é uma palavra de origem haitiana. Todavia, chamam-lhe, em muitas regiões, trigo da Turquia, trigo da Espanha, ou trigo das índias... porque é um trigo. Se se utiliza apenas o trigo na liturgia, para as hóstias, e se o milho, tal como os outros cereais, é excluído do altar, é para proceder exactamente como Cristo.
* (8) Nicolau Cabasilas: P. G., 150, col. 389-C. *
Na Palestina, no seu tempo, comia-se pão... Aprendi isso mais tarde. Mas o milho não é um cereal impuro. Apesar de não se servirem dele para fabricar as prosphorai. As hóstias. E nós, os comedores de milho, podemos ser tão cristãos como os comedores de pão. E homens também.
Mas, nesse domingo, em que me recusei a acabar o Padre Nosso, não sabia nada disto. E a minha mãe, a admirável mamã presbítera, tendo sido testemunha da minha deserção, não me deixou entrar em casa. Acusou-me de ter cometido um sacrilégio. Não saber o Padre Nosso era, a seus olhos, mais que um pecado.
-Vais atrair a cólera de Deus sobre ti, sobre os teus pais e sobre toda a aldeia com esse sacrilégio. Deus vai-nos castigar, por tua causa e do teu pecado, como castigou os Egípcios com as dez pragas...
Eu estava assustado. E nesse mesmo momento senti que um cheiro sinistro a gasolina empestava a aldeia. Um odor de inferno. Que nunca se sentira na nossa terra. Lá fora, em frente do presbitério, estava um camião militar. Um camião enorme. E o motorista gritava:
- Digam ao pai Gheorghiu que chegou o algodão do Egipto!...
Desmaiei de terror. Porque mamã presbítera acabava precisamente de me ameaçar com as dez pragas do Egipto que nos castigariam a todos por minha causa. E, quase ao mesmo tempo, eu sentira o odor do inferno (que não pode ser senão o da gasolina) e ouvi a voz que anunciava que o algodão egípcio tinha chegado... O algodão era, com certeza, a primeira das pragas do Egipto! Por causa de me haver recusado a dizer o pão nosso de cada dia, eu que só comia quotidianamente milho.
A questão do algodão egípcio
Achegada do algodão ao presbitério, nesse domingo de manhã, após a santa e divina liturgia, foi considerada por mamã presbítera como o castigo imediato do meu sacrilégio. O algodão era como que um raio. Caído do Céu. Por culpa minha.
Deixar-se uma pessoa possuir pela cólera é pecado. No entanto, existe uma cólera santa. Que era a da mamã presbítera, que vivia permanentemente nesse estado. Porque nos é recomendado que nos encolerizemos, nos revoltemos contra o mal e os demónios
E também foi dito: A cólera, mais que as outras paixões, costuma perturbar e transtornar a alma (1). Mas há momentos, contudo, em que a cólera nos presta os maiores serviços. Sempre que, na verdade, a utilizamos com calma contra os ímpios e os pecadores de toda a espécie para os salvar ou confundir, concedemos à alma um
* (1) Evágrio o Póntico: Practicos, 15, P. G., 40, col. 1225-B. *
suplemento de doçura... E até, ao irritarmo-nos profundamente contra o pecado, chegamos muitas vezes a virilizar o que nela há de feminino. Por outro lado, não há dúvida de que, ao estremecermos em espírito contra o demónio da corrupção sempre que nos encontramos profundamente desencorajados, desdenhamos das vanglórias da morte... A cólera contida é, antes, uma arma que o Nosso Criador pôs ao dispor da nossa natureza. Se Eva a tivesse utilizado contra a serpente, não teria sido dominada pelo prazer. Portanto, todo aquele que, por zelo religioso, usa com temperança a cólera, será, sem dúvida, mais bem considerado na balança das retribuições do que aquele que por inércia nunca se tenha encolerizado... (2)
- O algodão é uma erva do Diabo - afirmou minha mãe. - Exactamente como o tabaco. Não tendes narinas? - perguntou. - Não sentis o horrível cheirete do Inferno que empesta a aldeia, desde que o algodão chegou?
O algodão não é uma planta do Diabo. Não é uma erva do Inferno. Pelo contrário. Contudo, minha mãe tinha razão ao dizer que o algodão empestava o ar. Havia um cheiro horroroso por toda a aldeia. Um cheiro que nos levava a pensar no Inferno. Primeiro, era o cheiro da gasolina. Depois, o cheiro do tabaco.
Os homens que haviam conduzido o camião do algodão até defronte da igreja, no centro da
* (2) São Diádoco de Photice: Kephalaia gnostica, cap. 62. *
aldeia, todos eles fumavam. Continuamente. Fumavam tabaco negro. Na nossa aldeia ninguém fumava. Mesmo quando os parentes que viviam longe nos vinham visitar, nenhum deles, por mais ímpio que fosse, jamais acendia um cigarro, e nunca, sobretudo, o faria numa manhã de domingo. O que nós temos de melhor é o ar puro. E era precisamente isso que eles, esses carregadores de algodão, vinham conspurcar com os seus cheiros. Porque também cheiravam a álcool. "Traziam-nos algodão", diziam eles. Mas nós nunca havíamos pedido algodão. Para dizer a verdade, nem sequer sabíamos o que isso fosse. Os carregadores escarravam, assobiavam e olhavam para as raparigas que saíam da igreja com um olhar que era uma autêntica violação. Todos nós presenciámos, naquele domingo, como se pode violar uma rapariga só com o olhar. Como têm razão as Santas Escrituras: o pecado cometido pelo olhar é semelhante ao pecado consumado pela carne. Aquelas atitudes escandalizaram minha mãe. Encheram-na de cólera. Contra o algodão. Porque o algodão era precisamente aquilo, tudo aquilo. Ela ignorava que o algodão era uma planta. Toda a gente o ignorava. O algodão, para minha mãe, representava, antes de mais nada, o Padre Nosso que eu esquecera. E depois, a vergonha que ela sentira com isso. O pavor da maldição. Mas havia ainda algo mais, além da atitude dos carregadores e do mau cheiro. Era o pressentimento de que o algodão traria a desgraça à aldeia. E a maldição do Céu. Um pressentimento é algo que não é possível demonstrar. Que não é possível explicar. Mamã presbítera, como todas as mulheres, era capaz de sacrificar tudo, de dar a vida por qualquer pressentimento seu, por aquilo que soubera graças ao seu sentido extra, a esse sexto sentido que toda a mulher possui. Os homens não o têm. Mamã presbítera estava certa de que o camião trazia à aldeia não algodão, mas as dez pragas do Egipto. Teria dado tudo para impedir que o descarregassem. Para o ver partir o mais depressa possível. Dizia coisas aberrantes a respeito do algodão. Coisas sem pés nem cabeça, sob o ponto de vista lógico. Científica e racionalmente, era uma loucura da sua parte proferir tais palavras contra o algodão-. No entanto, como o futuro viria a prová-lo, tinha razão. O algodão trazia consigo a desgraça. E isso sentia-o ela. Disso tinha ela a certeza. Tinha vontade de se intrometer, a fim de impedir o descarregamento. Porém, lógica e racionalmente, era-lhe impossível demonstrar-nos as suas certezas. Era como os cavalos que, de Inverno, num caminho da montanha, pressentem com alguns minutos de antecedência o alude que os irá soterrar juntamente com o trenó e os seus donos. E então os cavalos estacam. Tentam arrepiar caminho. O homem que conduz o trenó chicoteia-os. E os cavalos não podem dizer o que pressentem. Não podem dizer que, se avançarem, dentro de instantes serão submergidos pelo alude. Recusam-se, pois, simplesmente, a avançar. E deixam que os chicoteiem. Até sangrarem. Era exactamente nessa situação que se encontrava mamã presbítera. Cobria-se de ridículo. Estava certa, contudo, que seria devido ao algodão, e juntamente com ele, que viria a desgraça.
- O algodão é uma planta bendita - explicou meu pai. - Não sejas ridícula, dizendo mal dele. Assim como o milho e o trigo foram criados pelo Senhor para alimento dos homens, também o algodão foi criado para os vestir e agasalhar.
- O algodão é uma planta do Diabo - replicou, obstinadamente, mamã presbítera. - É por isso que é interdito pela Igreja confeccionar-se panos de algodão para a Santa Mesa. E para os Antemension. E para os ornamentos. O algodão está interdito em todas as vestes e panos sagrados. Por que razão? Tu bem o sabes. Porque é uma erva do Diabo. Não o deixes entrar no presbitério...
Meu pai não podia contradizê-la. No que se refere aos panos que cobrem a Santa Mesa, aos véus que cobrem o Santo Cálice, a Santa Patena, o Santo Astérico e o Santo Antemension está expressamente prescrito que devem ser de seda e de linho... O algodão foi excluído. Não vem mencionado. Por conseguinte, é interdito. Assim como o milho. E o omophorion do bispo deverá ser de lã de cordeiro. Não há qualquer menção ao algodão. Em parte nenhuma...
- O milho também não vem mencionado nas Santas Escrituras, nem é utilizado na liturgia
- disse meu pai. -E, no entanto, não é uma planta do Diabo. Todos os dias comes milho. É o nosso alimento quotidiano.
- Arranja-te de maneira que não descarreguem essa planta de Satã sob o tecto do presbitério- disse mamã presbítera. Chorava. Já não conseguia pleitear mais a sua causa. Para impedir a desgraça que sentia aproximar-se. Que, disso estava certa, chegaria um dia. com o algodão. Desgraça iminente, que ela não podia explicar...
- Os homens que trouxeram o algodão têm ordens de o descarregar no presbitério. De o depositar no Quarto Alto (3). Em nossa casa.
- E porque não na estalagem? - perguntou minha mãe. E prosseguiu: - As ervas e as bebidas do Diabo, tais como o álcool, o tabaco e o algodão, devem ir para a estalagem da aldeia, e não para a igreja. Nem, tão-pouco, para o presbitério. O que ao Diabo pertence deve ir para a casa de Satã. Para a estalagem. E não para a casa do Senhor.
Convém dizer, repetir, que mamã presbítera não era supersticiosa. Mau-grado todas as aparências. Era, muito simplesmente, uma mulher. Via aquilo que os homens não vêem. Opunha-se invocando argumentos ilógicos e proferindo palavras estúpidas - plantas do Diabo ou
* (3) No original: Chambre Haute. (N. do T.) *
erva de Satã - porque não dispunha de outros meios para se opor ao descarregamento do algodão em sua casa. Sob o seu tecto.
Meu pai assemelhava-se àqueles camponeses que, perante a obstinação dos cavalos e a obstinação das mulheres, confiam nas coisas que são incapazes de ver.
No que se referia ao algodão, meu pai, nesse domingo, nada podia fazer. Era obrigado a contradizer mamã presbítera. Por intermédio das autoridades eclesiásticas, o Governo enviava ao presbitério um camião de algodão, para que fosse distribuído pelos camponeses a um preço irrisório. Era quase uma dádiva. Meu pai teria de receber o algodão, acusar a sua recepção e distribuí-lo. Receberia o seu valor em dinheiro, e assentaria, em formulários especiais, o nome do comprador, a quantidade vendida e a soma paga... Era uma ordem. Uma missão que meu pai, na sua qualidade de sacerdote, deveria cumprir. Porque um sacerdote recebe os dons de Deus, mas as ordens recebe-as ele, neste mundo, da parte dos bispos e dos governos...
- Não vejo que haja qualquer incompatibilidade entre o sacerdócio e o facto de distribuir algodão aos pobres - disse meu pai. - É uma obra social.
- É comércio - disse mamã presbítera... - Tu, que possuis o sacerdócio, irás sentar-te a esta mesa, com a balança, para vender algodão aos cristãos e receber dinheiro em troca... Isso não é digno de um sacerdote. É interdito ao sacerdote ser comerciante. Assim o determina o Cânone 76 do V Sínodo Ecuménico.
- Não é comércio nenhum. O algodão é vendido a um preço irrisório.
- Não se trata de uma questão de preço. A questão é que o sacerdote se transforma num comerciante. Vende e recebe dinheiro. Pesa, mede, conta... Não sabes que Cristo agarrou num chicote e com ele bateu nos vendilhões com a sua santa mão, como se batesse em cães ruins? Todos os dias lês isso no Evangelho! E agora queres pôr-te no lugar dos vendilhões do Templo. Queres transformar o presbitério numa loja. Mas Cristo há-de descer até aqui. E há-de açoitar-te como açoitou os vendilhões do Templo. E eu também serei açoitada. E os teus filhos. E todos os cristãos. Por terem consentido que o seu sacerdote lhes vendesse a mercadoria e conspurcasse o seu sacerdócio...
Entretanto, começou-se a tirar os móveis do Quarto Alto, divisão da casa que outros costumam designar por "quarto de hóspedes". Nas nossas montanhas, em todas as casas de camponeses, costuma haver um quarto geralmente vazio. Nesse Quarto Alto ficará Cristo no dia em que bater à nossa porta. Esse quarto só se abre na Páscoa e nas festas onomásticas. É onde se guardam os ícones e tudo aquilo a que se atribui valor. No Quarto Alto é costume guardar-se os objectos que a mulher recebeu em dote e que ela oferecerá a suas filhas quando se casarem. Porém, agora, todas essas coisas eram mudadas do Quarto Alto do presbitério. Para lá ficar, em lugar delas, o algodão egípcio. Sob as ordens dos quatro homens que o haviam transportado, começaram os camponeses a descarregá-lo. Toda a gente estava curiosíssima de ver o que o Governo teria enviado por intermédio da Igreja. De momento, só se viam grandes fardos extremamente sujos. Mas não era uma sujidade como a nossa. Decerto que também nós estávamos sujos. Mas a sujidade dos fardos de algodão era uma sujidade que nós desconhecíamos, uma sujidade feita de alcatrão dos porões dos barcos e das alfândegas dos grandes portos internacionais. Aqueles fardos atados com arame tinham patente a sujidade de todos os lugares por onde haviam passado. Uma sujidade cor de ferrugem. Que é, por excelência, a própria cor da porcaria. Uma cor que reúne todas as demais cores da porcaria: cor de sangue, de lama, de ferrugem, de excremento, de óleo, de pó dos trópicos, das grandes cidades e zonas litorais... Nunca víramos, até ali, uma tão perfeita cor de sujidade. Devia ser como a cor do Inferno. Já que compreendia todos os matizes que as inúmeras imundícies da Terra podem apresentar. Os fardos foram carregados aos ombros dos homens da aldeia e depostos, uns em cima dos outros, no Quarto Alto do presbitério. Não eram pesados. Seriam uns cem. Após o descarregamento, o camião seguiu viagem. Toda a aldeia acorrera para ver o algodão. Mas só no dia seguinte é que os fardos seriam abertos.
Na presença dos representantes das cooperativas do Estado, que dariam as últimas instruções quanto à distribuição, preços de venda, forma de pagamento (que seria feito mensalmente), e também quanto à utilização do algodão e suas vantagens sobre as outras matérias na confecção de vestuário.
O envio do. algodão fazia oficialmente parte do plano de modernização da Roménia. Na realidade, nos tratados comerciais entre governos, cada um deles tenta forçar o outro a comprar-lhe os artigos e mercadorias de que deseja ver-se livre. Há sempre mercadorias perfeitamente inúteis que cada governo compra para completar a lista de intercâmbio e fazer um favor ao outro governo. Vimos, por exemplo, alguns países equatoriais aceitarem no contrato de intercâmbio alguns limpa-neves que a Rússia desejava a todo o custo vender. E esses limpa-neves foram desembarcados nos Trópicos. O algodão descarregado nesse domingo no presbitério, em nossa casa, era realmente algodão do Egipto. Meu pai, empunhando uma enciclopédia, mostrou-me a flor do algodão. Parecia-se com o taraxaco. Mas esse algodão crescido no Egipto pertencia à Inglaterra, que o vendera às fiações do Norte da França, que, por sua vez, o vendeu à Alemanha e a Alemanha acabou por vendê-lo a nós, Romenos. Depois de ter passado por tantas mãos e por tantos intermediários, cada libra de algodão ficava-nos por cerca de uma tonelada de petróleo bruto. Por vezes, sucede feceber-se uma caixa de fósforos sueca por um vagão de gasolina. O jogo dos intercâmbios comerciais é bastante complicado. É mais imprevisível do que o jogo do baccara. Como o algodão recebido sem haver sido encomendado se encontrava a apodrecer nas alfândegas, resolveu-se distribuí-lo aos camponeses por intermédio da cooperativa, com o concurso da Igreja. Os camponeses nunca tinham visto algodão. Mas deveriam começar a substituí-lo pelo linho. Em tudo: camisas, vestuário, tapetes.
A primeira noite que passámos com o algodão do Egipto debaixo do nosso tecto foi uma noite de angústia. Sentíamos-lhe o cheiro por toda a parte. Entrava-nos nas narinas. No dia seguinte apareceram os funcionários da cooperativa para abrir os fardos. Os imensos anéis de algodão vinham envolvidos em papel azul. Um papel azul alcatroado. Parafinado. Desinfectado. De lá de dentro saíram os fios. De um branco sujo. Como de neve espezinhada. As mulheres experimentaram os fios com os dentes. Eram resistentes. Mas de um branco triste de neve que tivesse ficado algum tempo à beira da estrada. E não há nada mais triste no mundo que um branco sujo. À medida que se abriam os fardos, ia-se deitando fora o papel azul parafinado, alcatroado, desinfectado, gorduroso, como se tivesse sido impregnado de óleo e de petróleo para queimar. As crianças começaram logo a brincar com o papel azul. Aproveitaram-no -para fazer capacetes. Papagaios. Não houve uma só criança da aldeia que não tivesse sujado as mãos e a cara com aquela imundície malcheirosa e cheia de gordura de que o tal papel azul estava impregnado. Um azul de céu puro, um céu de mês de Maio que tivesse sido arrastado pela lama e espezinhado. Era terrivelmente triste. Existem na Terra e no Céu centenas de tons de azul. Mas o do papel gorduroso que vinha a envolver o algodão era um azul sinistro. Miserável. Desolador. Um azul de Inferno. E, num só dia, já todas as crianças da aldeia haviam sujado as mãos e a cara, os cabelos e o fato, com aquela porcaria. Tal como os cães. Porque os cães julgavam que o papel era comestível. E assim foi passando aquela porcaria gordurosa e malcheirosa das crianças e dos cães para os gatos, vacas e vitelos. O vento espalhava por toda a parte os bocados de papel sujo e malcheiroso. Toda a aldeia ficou suja. Cheirava mal. E mamã presbítera bem sabia que aquela era a sujidade e o cheiro do Inferno, que marcara as crianças, os animais, as paredes, as árvores e a erva, para que o raio, que não tardaria a cair, soubesse quais eram as suas vítimas. Essa sujidade trazida pelo algodão que nos manchara a todos era o sinal que nos deixava marcados para os raios do Céu.
Mas, por mais estranho que isso possa parecer, ninguém, com excepção da mamã presbítera, prestou atenção a outra coisa que não fosse as qualidades e as vantagens do algodão.
Apreciaram-no. Puseram-no nos teares. Sem perda de tempo. Experimentaram-no. Acharam-no superior ao linho. E arranjaram dinheiro para o comprar vendendo aos judeus ovos, galinhas e vitelos. Vinham trazer o dinheiro ao presbitério. Meu pai passava o tempo no Quarto Alto. Havia uma bicha de manhã à noite. Para lhe trazerem dinheiro. E levarem em troca o algodão. Pois com ele iriam fazer blusas, fatos, vestidos de noivado, calças e camisas de homem. O algodão do Egipto passaria a fazer as vezes do linho. Era muito barato. Pagava-se uma terça parte de entrada e o resto durante o prazo de um ano. Meu pai assentava o nome de cada comprador em grandes folhas, como um contabilista. Inscrevia a quantidade comprada, a soma paga e a que ficava por pagar. Sob este ponto de vista, percebi que mamã presbítera não deixava de ter razão. O trabalho de meu pai era o de um lojista. Mas tudo aquilo era para o bem-estar terreno dos homens. Perdoei-lhe.
- O papel do sacerdote é deificar os homens, sacralizá-los, e não contribuir para o seu progresso social - dizia a mamã. - Há mais gente que se ocupe das coisas terrenas. Gente mais apta para isso. Mais qualificada. Os padres receberam o Espírito Santo para deificarem o mundo. E não para fazerem progredir a vida terrena.
Mamã presbítera não podia suportar esse horrível espectáculo: a queda de um sacerdote no histórico. No social. Era mais terrível do que a queda de Adão e Eva. Adão e Eva foram expulsos do Céu e trazidos para a Terra. Porém, depois da vinda de Cristo, o homem já pode. graças ao sacerdote, voltar a ascender ao Céu. E o sacerdote, graças à chama do sacerdócio (que o torna superior aos anjos, pois os anjos não podem perdoar os pecados), o sacerdote pode fazer com que os homens ascendam ao Céu. Ao Paraíso. Podem tornar o Céu presente na Terra. Sim, se ele, sacerdote, tomba do Céu na história, na política, no que é terreno, quem, então, haverá que nos conserve o Céu sobre a Terra? Quem? Ninguém, nem mesmo os anjos. E, ao vender o algodão, meu pai - no parecer de mamã presbítera - caía do Céu à Terra. É a mais terrível das quedas. É a maior desgraça em que pode incorrer a humanidade. Pois sem sacerdote perde-se o Céu. É pior do que a queda dos anjos perdidos que se transformaram em diabos.
Certamente que mamã presbítera nada tinha contra o algodão nem contra os seus benefícios. Mas o algodão era assunto dos laicos. Deus deu a chama do sacerdócio aos sacerdotes, essa chama que no Pentecostes desceu do Céu sobre os Apóstolos para que estes levassem a cabo sobre a Terra a deificação do homem instaurada por Cristo.
Mamã presbítera - cuja família era constituída, havia séculos, por sacerdotes - não quis tocar no algodão, nem sequer olhá-lo. Todos os dias rezava e lia os Acatistas. À espera que findasse toda aquela impiedade. Que o presbitério deixasse de ser uma loja. Que o sacerdote deixasse de ser um negociante de algodão para voltar à sua obra celeste.
As mulheres da aldeia teceram os seus primeiros fios. Assim se tomou conhecimento dessa famosa fibra. Acharam-na boa. Daí em diante, se isso fosse possível, substituiriam completamente o linho pelo algodão. Era uma coisa que deixava desolada mamã presbítera. Quanto a ela, o sacerdote recebera a graça a fim de tornar os seus irmãos dignos do reino do Céu. Um sacerdote era um homem investido por Deus para tornar a vida feliz a seus irmãos na Eternidade. No Céu. E não para os tornar felizes aqui, na Terra. Não. Cá em baixo não havia qualquer felicidade possível. Para que os homens sejam menos infelizes, para que vivam melhor numa sociedade terrena melhor, apenas dispõem de um meio. O de se tornarem melhores. E isso era já uma actividade sagrada. com a ajuda de Deus. com a graça do Altíssimo. Graça essa que era transmitida aos sacerdotes. E que o sacerdote transmitia a seus irmãos e a todas as criaturas. Se o sacerdote se ocupava do progresso social, então assemelhava-se exactamente a um fabricante de tijolos - e já não podia olhar para o Céu. A sua função sacerdotal vinha-lhe do Céu. Vivendo no social, o sacerdote vivia como que no meio da lama. Sim, precisamente, no meio da lama. Pois é de lama que os tijolos são feitos. Para mamã presbítera, o sacerdote que desviasse o olhar do único Mestre que está no Céu para se ocupar do social, cometia uma traição. Além disso, mamã presbítera não acreditava na felicidade terrena. Leu-nos no Geronticon a passagem em que se diz que todos aqueles que pretendem construir o Paraíso na Terra são como os fabricantes de tijolos. Todos aqueles que buscam o prazer e a felicidade neste mundo, todos aqueles que procuram avidamente os prazeres carnais figurados pelo barro, bem podem saciar-se deles que nunca conseguirão preencher o lugar reservado aos seus prazeres; à medida que este se for enchendo, logo se esvaziará, porque os prazeres se esvaem: assim acontece ao moldador de tijolos, que incessantemente deita terra para o molde, à medida que este vai ficando vazio. Facilmente compreenderemos este símbolo se pensarmos no apetite da concupiscência: com efeito, à medida que se satisfaz o nosso desejo de uma coisa, logo novo desejo nasce por uma outra, e isso continuamente nos sucede, enquanto nos não furtarmos à vida material (4).
Chorei amargamente ao ouvir mamã presbítera acusar meu pai.
Ao distribuir o algodão, ao pesá-lo, ao receber o dinheiro, ao assentar os algarismos e ao fazer as contas, estava ele, então, a fabricar tijolos. É certo que prestava serviço a seus filhos,
* (4) São Gregório de Nissa: P. G., 44, col. 344-A. *
aos pobres camponeses. Mas nem por isso deixava de ser um fabricante de tijolos.
Um sacerdote tem um único bispo: Cristo. Uma única sociedade: o Reino do Céu. Uma única actividade: deificar os homens, torná-los dignos cidadãos da eternidade. A Igreja e o sacerdote são como as flores das orquídeas, com as suas raízes enterradas no Céu e não na Terra. A Igreja e as orquídeas extraem a seiva, a sua própria substância, do Céu, e não da Terra, como o fazem as outras plantas.
O que também tornava minha mãe pesarosa era ver que se faziam tecidos de algodão. Para ela, era como se fizessem o pão da oblata com milho. Era um sacrilégio. Porque o linho é uma planta que tem um lugar de honra no templo de Deus. O linho não pode ser substituído pelo algodão. Como o trigo não pode ser substituído pelo milho.
- O linho é o símbolo da inocência - explicou mamã presbítera. - Nenhum outro tecido terreno pode ser mais facilmente, mais radicalmente purificado do que o tecido de linho. Nunca um tecido de linho se obstina em conservar a mancha que recebeu. Qualquer nódoa ou mancha depressa desaparece. Não é possível à sujidade penetrar na própria fibra do linho. Assim é com o pecado: mesmo que manche um homem e esse homem seja o maior pecador da Terra, continua a ser, no seu íntimo, a imagem do Criador, e em qualquer altura lhe é possível, pela penitência, apagar a nódoa e ficar branco como a neve. Só o linho pode adquirir a mesma brancura do homem arrependido. Por isso ele é o símbolo da pureza. Porque Deus disse: Ainda que os vossos pecados sejam cor de carmim, tornar-se-ão brancos como a neve. E ainda que sejam do vermelho mais vivo, tornar-se-ão brancos (5).
Além da inocência, o linho simboliza a simplicidade. Pois só dificilmente se presta a mudar de cor. Prefere ficar branco. Prefere continuar simples. Pois a brancura é isso: simplicidade e pureza. O linho simboliza também a santidade. Pois a santidade é a paciência. De facto, o linho tem de ser semeado, depois colhido, seco, macerado dentro de água, novamente seco, esmagado, despojado, batido e branqueado antes de ser tecido. Por todas estas operações deverá passar o homem para merecer o Reino dos Céus. com a mesma paciência. O mesmo labor...
Substituírem o linho pelo algodão era um sacrilégio. Porque o linho simboliza quase todas as virtudes do homem cristão... E isso causava grande tristeza à mamã presbítera. Lia os Acatistas de joelhos e esperava que findasse aquela tão terrível prova. Que o algodão fosse distribuído, vendido até ao último fio. Que não ficasse nem um no presbitério. Depois ela se encarregaria de limpar tudo muito bem. com água a ferver. Uma barrela. Tornaria a pôr
* (5) Isaías, I, 18. *
tudo no seu lugar, no Quarto Alto. E pedir-se-ia ao pai que purificasse o Quarto Alto de toda a mácula, que o tornasse branco e puro como o linho, aspergindo água-benta.
Não precisou minha mãe de esperar muito. No sábado à noite já o algodão se esgotara. Fora todo vendido. É certo que o mau cheiro e a sujidade dos papéis da embalagem, aquele cheiro do Inferno, ainda subsistia. No entanto, mamã presbítera já se foi deitar mais contente. Meu pai deixara de ser um negociante de algodão. e Deus voltaria de novo o seu olhar para a nossa casa, que estivera transformada em casa de negócio.
Mas foi então que o castigo do Céu caiu como um raio sobre todos nós. Sobre a aldeia. Ao dealbar da madrugada de domingo houve um crime no presbitério. Exactamente como mamã presbítera temia. E isso unicamente devido ao algodão. No domingo, antes da santa e divina liturgia, as gentes da aldeia viram o soalho e os degraus de nossa casa manchados de sangue... Os assassinos haviam entrado no presbitério e tentado matar meu pai. ferindo-o gravemente. E tinham roubado o dinheiro do algodão.
Eram, pois, fundados os temores da mamã presbítera. Não era pura superstição sua. O algodão trouxera até nós o crime e os assassinos.
O crime da manhã de domingo no presbitério
O crime cometido nessa manhã de domingo do Outono de 1923, no presbitério, desenrolou-se da seguinte maneira:
A noite chegara ao fim. Mas ainda não era dia. Nas janelas confundiam-se a luz e as trevas, como o café e o leite. Tudo estava imerso num nevoeiro. Nós, as crianças, fôramos despertados pelos gritos de mamã presbítera ordenando que nos levantássemos. Que nos levantássemos depressa. E viéssemos para junto dela, de joelhos, diante do ícone, para dar graças a Deus. Até ali, nada ouvíramos. Dormíamos.
- Vosso pai não morreu - disse-nos mamã presbítera. Não falava: gritava. Estava possessa de dor e de alegria. Dor sentira-a ela momentos antes, ao deparar-se-lhe meu pai no meio de um mar de sangue, à entrada do presbitério. Julgara-o morto. Alegria sentira-a depois, ao aperceber-se de que meu pai vivia. A dor confundia-se com a alegria, exactamente como lá fora as trevas da noite moribunda se confundiam com a luz do dia nascente.
- Graças a Deus que está vivo. Ainda que ferido. Mas tem vida. Os anjos protectores, os nossos anjos, não são andorinhas - disse mamã presbítera. Estreitava-me contra o peito, coisa que nunca fizera. E, olhando para mim, disse-me, como se isso fosse a coisa mais importante do mundo:
- Virgílio, nunca te esqueças, nunca, em toda a tua vida, que os anjos não são andorinhas. Os anjos não nos abandonam quando chega o Inverno, como fazem as andorinhas. Os anjos ficam connosco. Nas longas noites de Inverno, quando as trevas são densas e o sol deixou de brilhar. Quando nos sentimos infelizes.
Meu pai mantinha-se em silêncio. A ferida fazia-o sofrer cada vez mais. Era uma coisa que se via. O enfermeiro limitara-se a pôr um penso. Mas a bala continuava enterrada na carne. E ninguém o sabia. Nem sequer meu pai. Embora sentisse dores atrozes.
Na verdade, quase toda a aldeia se reunira no presbitério. Mais tarde, soube que meu pai ouvira um cavalo relinchar. Levantara-se e fora até à janela. Era ainda noite e fazia muito frio. Meu pai, que tinha um ouvido muito apurado (não se pode viver ao serviço dos outros se não se tiver o ouvido muito apurado), viu, de facto, um cavalo amarrado à porta do presbitério. Julgando que o cavaleiro seria qualquer camponês que tivesse vindo procurar com urgência o sacerdote para um caso grave - um moribundo que pede a comunhão, um nascimento ou qualquer desgraça-, abrira meu pai, de par em par, a porta do presbitério, para que o homem que se transportara a cavalo pudesse entrar, depois de ter atravessado o pátio. E apressara-se a ir vestir-se. Mas, ao virar-se, depois de aberta a porta, dera de caras com um indivíduo que saía do Quarto Alto e lhe gritava:
- Deixa-me sair ou mato-te!
Ainda mal acabara de dizer a frase e já disparava vários tiros, fugindo em seguida. Atraída pelos tiros, mamã presbítera viera até ao vestíbulo. Tinha visto a porta aberta de par em par. Meu pai estava estendido no chão. Ensanguentado. Desmaiado. Antes que ela tivesse tempo de pedir socorro, já toda a vizinhança acorrera. Atraída pelos tiros. E pelo galope do cavalo. Transportaram meu pai para o Quarto Alto. Reanimaram-no.
- Recebeu duas balas na perna direita - disse minha mãe. Sentia-se muito feliz. Persignou-se. E acrescentou: - Não, os anjos não são andorinhas. Os anjos não nos abandonam, quando chega o Inverno das trevas e do infortúnio. Os anjos ficam sempre connosco.
Durante várias horas proibiram-nos, a nós, crianças, que saíssemos do quarto para ir ver o nosso pai. Mais tarde, quando as autoridades de Targul Neamtz chegaram com todos os guardas da aldeia e se procedeu à reconstituição dos factos, lá consegui escapulir-me. Entrei no Quarto Alto. Estava cheio de gente. Meu pai achava-se estendido sobre a mesa de madeira branca em cima da qual haviam estado, durante a semana, os registos com o nome dos compradores de algodão, a balança e as folhas cheias de algarismos. Agora, sobre a mesa, só havia um cobertor. E em cima do cobertor, meu pai, estendido. Comprido. Magro. com a sua sotaina. Como de costume. Só com a perna direita à mostra. Envolvida por uma ligadura branca. Algumas manchas de sangue, como manchas de ferrugem, nos panos do hábito. Ouvi o juiz de instrução adjunto, que explicava os factos à guarda:
- O assassino sabia que o dinheiro da venda do algodão se encontrava aqui. Toda a gente sabia que o padre guardava o dinheiro na gaveta da mesa onde agora está estendido.
- Toda a gente o sabia, de facto - disse meu pai. - Não era segredo. Eu guardava o dinheiro na gaveta. Diante de toda a gente. À medida que o ia recebendo.
A gaveta estava toda quebrada, encostada de encontro à janela. Vazia. Só com um papel azul a cobrir o fundo. Um papel preso com "punaises".
- Durante a noite, o dinheiro continuava dentro da gaveta, não é assim?
- Onde é que eu havia de pô-lo? - respondeu meu pai.
- A gaveta era sempre fechada à chave? perguntou o juiz.
- Certamente, senhor juiz - disse o chefe da guarda. Um colosso moreno. Uma enorme saca de carne e gordura coberta com o uniforme azul da guarda, com os seus galões, botões e decorações. E acrescentou:
- a gaveta estava fechada à chave. Como, aliás, ainda está. Isso não impediu que a abrissem. Qualquer pessoa podia abrir a gaveta. com um simples canivete. Não se guarda dinheiro público em semelhantes gavetas!
Guardas, juiz, presidente da câmara e camponeses que ali se encontravam, todos olharam para meu pai. com ar de censura. O roubo fora motivado por um erro do padre.
- Fechava-a, sobretudo, por causa das crianças- disse meu pai. - É uma gaveta vulgar. E não um cofre-forte.
- Quanto dinheiro havia esta noite na gaveta? - inquiriu o juiz.
- Todo o dinheiro que fui recebendo durante a semana. Absolutamente todo. As quantias estão assentes nas folhas, juntamente com o nome dos compradores.
- Quanto dinheiro havia lá dentro? - repetiu o juiz.
- Não cheguei a contar - disse meu pai. - Os últimos fardos de algodão foram vendidos ontem à noite. Meti o dinheiro na gaveta e fechei-a à chave. Pus a chave no bolso. E fui celebrar o ofício de vésperas... Pensava fazer a soma na segunda-feira. com a ajuda do mestre-escola e mais alguns membros do conselho da cooperativa.
Seguiu-se um longo silêncio. Nada podiam censurar a meu pai, mas via-se, pelos olhares, que ninguém estava contente com o seu trabalho. No entanto, não era culpa sua que o presbitério não possuísse um cofre-forte. E que as gavetas pudessem ser abertas com um simples canivete! Apesar disso, toda a gente parecia descontente. Espantavam-se de que ele não tivesse feito as contas. Que não soubesse qual o montante do dinheiro que guardava na gaveta. Era uma precaução elementar. O facto é que meu pai não tivera o reflexo natural de contar o dinheiro. Todas as noites. Várias vezes ao dia. Qualquer indivíduo o faria. Mas ele não. Decerto que não era um delito. Mas também não era uma maneira correcta de se comportar. Um homem que tem em seu poder o dinheiro de uma semana!
- O assassino sabia que o dinheiro do algodão se encontrava nesta gaveta. Publicamente, era um facto notório - disse o juiz. - O ladrão chega a cavalo, quando o último saco de algodão acabou de ser vendido, para roubar o dinheiro. E de madrugada, na hora mais calma, antes do dealbar, introduz-se no presbitério. Abre a janela. Sem quebrar os vidros. Entra. Saca do canivete. Abre a gaveta. Agarra no dinheiro. E prepara-se para se ir embora. Não digo que se prepara para fugir. Não. Visto que ninguém o persegue. Mas o cavalo do assassino relincha. O padre levanta-se, pensa que será algum fiel, abre a porta do presbitério.
Surpreendido, o assassino não sai pela janela. Visto que a porta do presbitério se encontra aberta. Porém, no patamar, dá com o padre. Dispara para abrir caminho e corre para o exterior, para junto do cavalo. Depois parte a galope... Creio que são estes os factos, padre... Tem alguma objecção a fazer, algum pormenor a acrescentar?...
- Não - respondeu meu pai. - O que o senhor disse corresponde à verdade. É exacto.
Meu pai sentia-se culpado. Achava-se na humilhante situação de alguém que foi imprevidente. Faltava-lhe o dom de saber fazer as coisas como devia ser. Todos aqueles cavalheiros, o juiz adjunto, os detectives, os polícias, os guardas, até mesmo os camponeses, eram ricos de experiência. Confiando-lhe a ele - ao sacerdote- a venda do algodão e a caixa, era como os tivessem confiado a uma criança. E isso constrangia-o: Porque quanto mais os homens forem anjos, menos preparados estão para o combate e para o pior (1). Meu pai sentia vergonha. E sofria atrozmente. Pois, como havemos de ver, ficara com uma bala no corpo. E uma bala de chumbo metida na carne causa sofrimento. Mas ele era suficientemente forte para saber dominar a dor. E mostrar que reconhecia a sua incompetência. Meu pai sabia que merece o título de longânime todo aquele que sabe ir até ao fim da prova. Esse terá a glória de haver
* (1) São Gregório de Nazianzo: Poema sobre a sua vida, P. G., 37, livro II. *
sabido resistir... Há que saber suportar tudo o que acontece com o pensamento no fim, e, enquanto se espera por ele, há que saber suportar também todas as contrariedades (2).
Meu pai, ao contrário de mamã presbítera, sabia que a desgraça não é forçosamente um castigo de Deus. Pois de vez em quando Deus chega mesmo a privar o justo da sua protecção para que lhe seja dado vencer sozinho, para sua maior glória (3).
E meu pai desejava vencer, mercê da sua força de vontade, a dor, a humilhação e a vergonha.
- Há qualquer coisa aqui que não bate certo
- disse um dos guardas. - O padre declara que o assassino disparou duas ou três balas e depois fugiu.
- Exactamente - corroborou meu pai. - Nem cheguei sequer a ver-lhe o rosto. Ao disparar, deu-me um encontrão.
- Não houve qualquer luta entre os dois? - ? perguntou o guarda.
- Tudo se passou em poucos segundos-? respondeu meu pai. - O tempo de ele me empurrar, na correria, e de disparar. Caí, possivelmente devido aos ferimentos ou devido a ele me ter empurrado. Ou talvez por ambas as coisas... Ou também por medo. É que fiquei muito assustado. Vermos um estranho
* (2) São Máximo o Confessor: Cem Capítulos sobre a Caridade, IV, 23 e 24.
(3) Santo Ambrósio: P. L., 14, col. 1031-C e col. 1054-B. *
ameaçar-nos, em nossa casa, com uma pistola! E a gritar-nos que nos matará se não o deixarmos sair. Depois senti a queimadura das balas na carne. O clarão dos tiros... Tive medo. Foi também por isso que desmaiei...
- É justamente aí, nesse ponto, que o seu relato deixa de coincidir com os factos - disse o guarda. - Provarei ao senhor juiz que os factos nos dão uma outra versão.
- Uma outra versão?
- Houve zaragata, luta e ferimentos de ambas as partes... O senhor lutou com o assassino. É certo que ele disparou na sua direcção. Basta ver a sua perna. Mas também o senhor disparou sobre ele e o feriu... com que é que o feriu? Há aqui no presbitério algum revólver ou qualquer outra arma de que se tivesse servido? Tem que o dizer ao senhor juiz. Porque o assassino, quando aqui entrou, encontrava-se de perfeita saúde. Nem na janela, nem no Quarto Alto, onde ele actuou, se vê a mínima gota de sangue... Mas, em contrapartida, desde o patamar do presbitério, onde ele se encontrou consigo, até à porta, e sobretudo diante da porta, vêem-se abundantes traços de sangue. O assassino perdeu sangue. E muito. Sobretudo antes de ter montado a cavalo.
- Quem me feriu foi ele - disse meu pai.
- Eu nem sequer tive tempo de estender a mão em direcção a ele...
- Está ferido, é um facto assente - disse o juiz. - Mas como é que o seu sangue pôde correr até à porta? Seguiu o ladrão? Saiu do presbitério? É que há sangue lá fora. Sobretudo lá fora.
- De modo nenhum - respondeu meu pai.
- Não saí.
- Ele foi ferido. Perdia sangue, ao sair daqui. Isso quer dizer que alguém o feriu, disparando na sua direcção, ou apunhalando-o... Quem, a não ser o senhor, o poderia ter feito?
- Ninguém - disse meu pai. - Toda a gente dormia. Eu era o único que estava acordado.
- E não manejou nenhuma arma?
- Nenhuma. No presbitério não há armas. Eu estava de mãos vazias...
Havia muitos olhares, duros, mas admirativos, assestados no meu pai. Porque ele tinha ferido o assassino. Sem querer reconhecê-lo.
- O ferimento dele é incomparavelmente mais grave que o seu - disse o juiz, após ter examinado as marcas de sangue e regressando ao Quarto Alto. - Estive a ver de perto. Há sangue congelado como enormes botões vermelhos, como rubis, sobre o gelo, ao longo do presbitério, até ao portão. E em frente do portão, no sítio em que o assassino montou a cavalo, há realmente muito sangue. Como se tivessem sangrado um frango em cima da neve.
- É uma ferida causada por uma arma de fogo ou por uma arma branca. Uma faca... - disse o juiz.
Sorriu para meu pai. E acrescentou, brincando com os cartuchos das balas:
- É o mesmo homem que há um ano matou o senhor Mocan, o estalajadeiro da aldeia. Estou a reconhecer estes cartuchos. São iguais aos outros. Sabia que ele tem a cabeça a prémio? Em todos os postos da guarda e da polícia há uma fotografia sua. É lonel Malai, o Assassino de Jerusalém...
Mostraram a meu pai a fotografia, muito mal tirada, de um rapaz. Por baixo, lia-se: Recompensa: um milhão de francos a quem ajudar à captura do célebre Assassino de Jerusalém.
Desfiz-me em pranto. Só agora compreendia toda a gravidade dos acontecimentos. Havia um ano que, em toda a região, se não falava noutra coisa que não fosse o Assassino de Jerusalém. Era um rapaz chamado lonel Malai. Que fora condiscípulo da mamã presbítera. Nascera, realmente, naquela mesma aldeia de Plebea, em Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, onde meu avô, o padre Melquisedec, o Grande Scobay, exerce as funções de pároco. É a aldeia natal da mamã presbítera. lonel Malai tinha sensivelmente a mesma idade da mamã presbítera. Ao fazer o serviço militar, como voluntário, desertara. Tornara-se salteador de estrada. Há um ano, pouco mais ou menos, voltara a aparecer por estes sítios e matara o estalajadeiro da nossa aldeia, roubando-lhe todo o dinheiro. Tiraram as impressões digitais, estudaram a marca dos seus passos. E desde então a sua cabeça fora posta a prémio. Era procurado por todas as polícias e guardas. Bastava pronunciar o seu nome para encher toda a gente de pavor. E agora vinha o juiz adjunto em pessoa comunicar-nos que o indivíduo que nessa noite havia entrado no presbitério, que roubara o dinheiro e pretendera matar meu pai era o terror dos Cárpatos, o Assassino de Jerusalém. Isto vinha conferir ao crime do presbitério uma dimensão incomensurável. Deixava de ser um simples roubo. Já não se tratava de meros ferimentos. Era todo um acontecimento! Não sei bem porquê, mas, a partir desse momento, fiquei com mais medo do que nunca. Um medo terrível. Só mais tarde, quando, já estudante, escrevi uma crónica sobre acontecimentos vários, me apercebi que a importância que os homens atribuem a um crime se deve sempre, unicamente, à personalidade da vítima ou do assassino, ou ao local onde aquele se comete. Se há um tremor de terra na China, escrevem-se duas linhas a dizer que houve vítimas. Dezenas delas. Mas se a terra treme em Paris, em Londres ou em Roma, e algumas paredes abrem fendas, a notícia vem transcrita na primeira página de todos os jornais. Se meu pai tivesse sido ferido por algum ladrão anónimo, teria sido grave. Mas, a partir do momento em que fora o Assassino de Jerusalém a preparar o golpe, a coisa adquiria proporções terríveis. Era um drama. Uma tragédia.
- Reconhece-o? - perguntou o juiz a meu pai, mostrando-lhe o cartaz.
- Não lhe vi o rosto... Só o entrevi durante segundos. No meio da escuridão. Não lhe posso dizer se é ele ou não.
- É inútil a sua confirmação! A arma do assassino é uma carabina, a única que existe na região. Foi com ela que o senhor foi ferido. E foi também com essa carabina que o estalajadeiro Mocan foi assassinado há um ano. Fui eu mesmo que investiguei esse caso da morte do estalajadeiro. Não me passava pela cabeça que viria encontrar novamente o Assassino de Jerusalém quando, esta manhã, me dirigi para aqui, para o presbitério.
Meu pai continuava calado.
- Se o senhor o feriu a sério, o Assassino de Jerusalém não poderá ir longe - disse o juiz. A esta hora deve ele estar como um animal ferido de morte, que não tardará a cair nas mãos do caçador...
O juiz desatou a rir.
- Sabe que, se capturarmos o Assassino de Jerusalém, isso fica a dever-se ao facto de o senhor o ter ferido? Assim, receberá por inteiro a tal recompensa de um milhão.
Entretanto, lá fora, todos examinavam as marcas de sangue e a direcção em que elas se perdiam. Já ninguém tinha qualquer dúvida. Fora o Assassino de Jerusalém o autor da façanha. Meu pai ferira-o. Ao lutar com ele. Mas, como era sacerdote, meu pai não mostrava desejo de confessar publicamente que havia ferido um homem. Porque, para a Igreja, não existe diferença entre um assassino, um santo e um homem vulgar. Todos são homens. Irmãos. E aquele que fere um assassino fere um homem. Um irmão. E isso ser-lhe-á imputado exactamente da mesma forma. Perante Deus, não existem classes sociais, ou cidadãos com ou sem ficha criminal. Qualquer homem é uma criatura à imagem de Deus. E o pecado é o mesmo se se destruir a imagem de Deus que é o homem, magoando-o, ferindo-o ou matando-o. Além disso, meu pai era sacerdote. Se dissesse que tinha ferido com uma arma, ou fosse com o que fosse, o seu semelhante, o seu irmão, seria o mesmo que confessar que tinha ferido Deus, que se encontra presente em todos os homens. E, assim, não mais poderia celebrar a sagrada e divina liturgia. Pois um sacerdote não tem o direito de fazer mal a um bandido. Nem de participar na sua captura. O Cânone 55 de São Basílio o Grande diz, expressamente, que todo o sacerdote que participe na perseguição dos bandidos é afastado e destituído do seu cargo, pois está escrito que todos aqueles que ferirem com a espada, hão-de perecer pela espada (4).
- Não toquei num só cabelo do bandido - disse meu pai.
- E o sangue que ele perdia quando daqui saiu e que não perdia ao entrar, donde virá ele? Julgará o senhor que o Assassino de Jerusalém partiu algum dedo ao abrir a gaveta? Não. Ele
* (4) São Basílio o Grande: Carta 217 a Antíloco sobre os Cânones; São Mateus, XXVI, 52. *
foi ferido de morte. Talvez até já tenha morrido.
A hipótese de meu pai haver ferido um homem apresentava-se-me como coisa inconcebível. Teria sentido menos dor com a sua morte. Disso estava eu certo. E já não podia ouvir mais o juiz dizer que meu pai ferira mortalmente o Assassino de Jerusalém. Que talvez o tivesse matado. Que iria receber uma recompensa de um milhão por ter matado um homem. Como Judas recebera dinheiro por ter matado Cristo.
Refugiei-me no meu quarto. A chorar. E suplicando a Deus que tal não fosse verdade. Nesse domingo não se celebrou a santa e divina liturgia na nossa pequena igreja de madeira. Não porque meu pai não estivesse apto, fisicamente, a celebrar o ofício. Apesar do ferimento, conseguia manter-se de pé. Mas estava manchado. Não podia aproximar-se do altar. E essa mácula era tanto maior quanto mais a suspeita que sobre ele pesava se tornava uma certeza. De ambos os lados da estrada e na aldeia procuraram o cadáver do Assassino de Jerusalém, abatido por um sacerdote. Por meu pai. Foi o dia mais triste da minha vida. Era a desolação total. Ouvi também a mamã presbítera lamentar-se:
- Desgraçados de nós! Agora é que estamos perdidos. E a desgraça entrou-nos em casa com esse algodão do Egipto! Essa planta do Diabo... Por causa desse algodão, não tardaremos a sofrer todas as outras pragas do Egipto! Que são em número de dez...
Desta vez percebi que mamã presbítera tivera razão em opor-se à entrada do algodão em nossa casa. com o algodão haviam entrado o dinheiro, a impureza, o crime, o roubo. Talvez o algodão tivesse também feito de meu pai um despadrado. E um assassino...
Levei todo o dia a rezar pela saúde do Assassino de Jerusalém. Mais que pelas melhoras da perna de meu pai. Porque a perna só lhe poderia causar uma enfermidade física. Ao passo que, se o Assassino de Jerusalém tivesse morrido, meu pai seria um homicida. Estaria condenado, para toda a eternidade, às chamas do Inferno.
Depois de os guardas e de os investigadores se terem ido embora, aproximei-me de meu pai e acariciei-lhe a perna ferida.
- Foi o Assassino de Jerusalém quem roubou e me feriu - disse-me meu pai. - Reconheci-o pela fotografia. Era ele. Embora só o tenha visto durante segundos. Mas já o conheço há muito tempo. Vi-o em casa do padre Melquisedec. Assistiu ao meu casamento. Só reparei que era ele quando olhei para o cartaz que lhe põe a cabeça a prémio.
- Pai - disse eu. - Não foste tu quem feriu o Assassino de Jerusalém, pois não?
- Claro que não - disse meu pai. - E fazes muito bem em perguntar-mo. Nem ele, sequer, me quis matar. Ou ferir-me. Estava cheio de medo. E queria também meter-me medo. Acho que não queria matar-me.
- Então, se não foste tu, quem é que o feriu?
- Ele disparou para baixo. As balas que me feriram e que o feriram a ele são balas que ricochetearam... Pois ele disparou para o patamar, que é a única coisa de granito que há no presbitério. O resto é de madeira. Mas a laje que serve de patamar é de granito. E foi justamente para essa laje que ele disparou, o desgraçado. Ficou mais ferido que eu... Porque em nenhum outro sítio teriam as balas ricocheteado.
- Porque não disseste isso aos polícias?
- Não era necessário - respondeu meu pai.
- Eu sou padre. Eles são polícias. Juizes. Guardas. Não falamos a mesma linguagem. Se lhes dissesse uma coisa, haviam de perceber outra. Compreendes o que quero dizer...
- Não.
- No entanto, é claro. Vê... A polícia procura em cada homem um assassino. Suspeita de toda a gente. Os sábios e os filósofos procuram em cada assassino um homem. E nós, cristãos, em cada homem procuramos Deus. Eu disse: em cada homem. Inclusive nos assassinos. Já vês, pois, porque não posso ir contar estas coisas aos polícias. Deixo-os desenvencilharem-se sozinhos. E cada um de nós há-de vir a encontrar o que procura: a polícia há-de encontrar o assassino. Os filósofos hão-de encontrar o homem no assassino. E nós haveremos de encontrar Deus. Em cada um de nós.
- Mas não dizes a verdade à mamã presbítera?
- Não - disse meu pai. - Também não lhe direi que reconheci lonel Malai, o Assassino de Jerusalém. Nem que não fui eu que o feri!
Corei. E perguntei:
- Tens mais confiança em mim que na minha mãe?
- Não se trata de uma questão de confiança
- respondeu meu pai. - Mamã presbítera não necessita que lhe expliquem as coisas. Percebe tudo. Por si só. Sem ser necessário provar-lho. com argumentos. Compreende as coisas à maneira das mulheres. Sentindo-as. As mulheres sabem tudo. Por forma diferente da dos homens. As mulheres não fazem a história. Mas sobrevoam-na, como os anjos.
A Igreja e as orquídeas
ESTAMOS no dia do regresso às aulas. Dia de grande festa. Tenho sete anos. Doravante já posso cometer pecados e acções virtuosas. É dia de festa grande para todas as crianças, que, caligrafando, desenhando as letras, imitam simbolicamente, ao escrever, os mistérios da Santíssima Trindade. Ou seja: a Encarnação do Verbo, a Morte e a Ressurreição.
O regresso às aulas é uma festa para toda a aldeia. A escola principia por um ofício religioso. Como todos os actos da vida. Em qualquer altura. Há a festa das estações, das vindimas, das ceifas, da Primavera e do Inverno. E também a festa do início da escrita e da leitura.
Meu pai está impossibilitado de vestir os paramentos, de vir à escola com o turíbulo e os vasos sagrados para celebrar os ofícios do início das aulas, benzendo cada classe, cada carteira, tinteiro, caneta, caderno, livro e aluno. Meu pai encontra-se doente. Gravemente. A ferida infectou. Tem de dar entrada no hospital. Receia-se que tenham de lhe cortar a perna direita. E o começo das aulas, sem padre e sem orações, torna-se impossível. Tem, portanto, que ser adiado. A ideia de que meu pai abandonará o hospital com uma perna de pau horroriza-me.
- Achas, então, mamã presbítera, que todas estas desgraças se devem ao pecado que meu pai cometeu ao distribuir o algodão? É, no entanto, uma obra de caridade para com os fiéis ajudá-los na sua vida material. O sacerdote deve colaborar nas obras que ajudem o povo a desenvolver-se, a progredir, a ter uma vida melhor na Terra.
- Não! - exclamou minha mãe.
O médico viera ao Quarto Alto observar meu pai. Mas minha mãe esquecia-se da sua presença. Ficara furiosa com as minhas palavras. Hão-de pensar, certamente, que minha mãe era uma pessoa retrógrada. Reaccionária. Obscurantista. Ela merece todos esses epítetos. E eu bem gostaria de ter também, um dia, a honra e a glória de merecê-los. Todos eles. E mais graves ainda. Da mesma espécie.
- Sabias que todos os apóstolos do Senhor abandonaram, depois do Pentecostes, a cidade terrena de Jerusalém?
- Sim, é verdade, mãe, que, depois de terem recebido as línguas de fogo, no Pentecostes, todos os apóstolos abandonaram a cidade de Jerusalém e se dispersaram pelo mundo! - respondi eu.
- E para onde foram eles?
- Para toda a parte, mãe - disse eu. - Dispersaram-se pelos quatro pontos cardeais...
- É certo que partiram em direcção aos quatro pontos cardeais, mas para chegarem aonde? Pois bem: ao deixarem a Jerusalém terrena, encaminharam-se para os quatro pontos cardeais no intuito de chegarem à Cidade Celeste, à Jerusalém do Alto... É o que todo o sacerdote faz! Quando se ordena, abandona o mundo, a história e o domínio social. A partir desse momento, passa a conduzir, no navio que se chama a Igreja, todos os fiéis para o Céu. É o que significa naos, navio, e por isso se construíram as igrejas em forma de navio. Porque são naves que conduzem os homens da Jerusalém terrena para a Jerusalém Celeste. Ora um sacerdote que se prende com as ocupações terrenas deixa de cumprir o seu dever. Por muito boa que uma obra terrena seja, não merece que um sacerdote interrompa, por sua causa, a sua viagem para o cimo, a viagem para a qual foi investido. Nós, cristãos, estamos sempre em viagem, da Terra em direcção ao Céu... Partimos de Jerusalém. Porém, ainda não atingimos a Jerusalém do Alto. A nossa substância já não deve provir da Terra, mas do Alto.
Mamã presbítera contou-me então a história maravilhosa das orquídeas que vivem nas florestas dos Trópicos, onde há árvores gigantes, da altura de arranha-céus.
- As raízes dessas árvores, largas, enormes, sugam toda a seiva da terra. Os seus troncos ocupam todo o território onde elas crescem. Assim, as pequenas orquídeas não têm o mais pequeno torrão onde enterrar as suas minúsculas raízes. Então, ei-las que trepam pelas árvores gigantes e, ao chegarem ao cume, lançam as raízes por cima da cabeça, em pleno Céu. Alimentam-se da humidade do ar e do que extraem das nuvens. As raízes das orquídeas buscam a sua seiva no azul do céu, na luz do Sol e nos raios da Lua. É certo que a sua constituição física se transforma. A raiz torna-se no mesmo órgão que a flor e o caule no mesmo que a folha e a flor. Pois não é fácil viver nos cimos, no topo das árvores gigantes, por sobre a floresta virgem, na vizinhança do Céu, e dele extrair a sua substância. Nós, cristãos, encontramo-nos, no seio da Igreja, exactamente como as orquídeas. Arrancamos as nossas raízes da cidade terrena e plantamo-las acima das nossas cabeças, no território da Jerusalém Celeste...
"A Igreja só provisória e parcialmente vive na Terra. É para ela uma vida secundária a que assenta na história, no social. Se o homem cortar uma orquídea e lhe enterrar as raízes na terra (como é costume enterrar a raiz das outras plantas), ela morre. Ou deixa de ser orquídea... com a Igreja acontece o mesmo. Se se lhe retirar a raiz do Céu e se se pretender enterrá-la na Terra, para realizar uma obra social, progressista, essa Igreja, ainda que crie o Paraíso na Terra (o que não existe), não é uma Igreja de Deus. Deixa, pura e simplesmente, de ser Igreja. Torna-se igual às demais obras humanas. Pode ser magnífica. Sublime mesmo. Extraordinária. Mas não divina. Nem santa. Pois só Deus é santo. E aqueles que por ele são investidos. Um sacerdote, ao ordenar-se, recebe a mesma chama do Céu que desceu sobre os Apóstolos no Pentecostes. Se, após a ordenação, após a descida do Espírito Santo sobre si, o sacerdote se obstina em continuar a viver na Jerusalém terrena e a fazer obras da terra e para a terra, esse sacerdote não vive no seio da Igreja. Assim, teu pai, ao vender o algodão, fez obra da terra... Ele, que é sacerdote! Ele, que possui a Luz. Pois é necessário ter luz para a comunicar (1).
Após uma ligeira pausa, mamã presbítera continuou:
- Se o sacerdote que possui a luz a não comunica e se ocupa doutras coisas, quem a comunicará àqueles que por ela esperam? O sacerdote é o único homem que possui o fogo do Céu. E é necessário ter fogo para se comunicar o fogo (2). Os sacerdotes são investidos por Deus, tal como os Apóstolos, cuja obra continuam. Possuem o Espírito Santo. Possuem Deus. E, para os tornar participantes na Divindade, é necessário ser Deus (3). Os sacerdotes têm por dever ocuparem-se das coisas do Alto. Deificarem na Terra os homens. Guiá-los para o Céu.
* (1) São Cirilo de Alexandria: P. G., 75, col. 592-D.
(2) São Cirilo de Alexandria: P. G., 75, col. 592-D.
(3) São Cirilo de Alexandria: P. G., 75, col. 1058-B. *
Pois nem mesmo os profetas foram chamados como os cristãos: templos do Espírito Santo. Qualquer cristão é maior que São João Baptista, que é o maior de todos os filhos dos homens (4). É por isso que é grave o pecado de teu pai. As desgraças que nos bateram à porta foram trazidas pelo algodão do Egipto.
Nessa altura o médico saiu do quarto. com ar sério. Era um médico vulgar, mais ignorante que outra coisa. Apreciador de boa carne, mais do que da ciência. Mas para se ver que meu pai estava a morrer não era necessário ser-se um grande médico. Nem médico sequer. Bastava ter olhos na cara.
- Ainda tem balas na perna... Se não o levarem imediatamente para o hospital, para lhas extraírem, não só será necessário amputar-lhe a perna, como a sua própria vida correrá perigo. Vão buscar uma carroça e levem-no depressa para o hospital.
Nesse momento entrou uma mulher. Uma pobre camponesa.
- Os meus cinco filhos estão todos negros - disse ela a chorar. - São cinco. Todos pequenos. Incharam como balões. Ficaram todos negros. Durante a noite. Todos. Venha, senhor doutor, ajude-nos...
O homem que chegou depois da mulher segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido e voltou a sair. Também chorava.
* (4) São Cirilo de Alexandria: P. G., 75, col. 757-A e 72, col. 400. *
- O mais velho já morreu, senhor doutor... Acaba de mo dizer o meu marido... Ao morrer, ficou ainda mais negro. Quando entregou a alma ao Criador, estava cor de carvão. Cor de alcatrão. Venha. Ajude-nos!...
O médico insistiu com minha mãe para que transportasse meu pai para o hospital, a fim de que o operassem de urgência. Depois, saiu para ir ver essas crianças que inchavam e morriam negras como o carvão...
- É uma nova praga do Egipto, trazida pelo algodão - disse minha mãe.
Soube-se, poucas horas depois, que a aldeia fora contagiada por uma gravíssima e contagiosa doença. A aldeia ficou de quarentena. Escolas e albergues foram encerrados.
- Vai-te vestir e sobe para junto de teu pai
- ordenou-me minha mãe. - Agarra nos cadernos e nos livros. A escola, aqui, vai ficar fechada. No regresso, deixo-te em Jerusalém, em casa do padre Melquisedec, que tomará conta de ti enquanto estivermos de quarentena. E irás à escola de Jerusalém...
Meu pai foi levado ao hospital. Operaram-no à nossa frente. As balas não estavam muito enterradas na carne. Puseram desinfectantes na chaga. E deram-lhe licença para voltar para casa. Connosco. Ficámos contentes por tudo se ter passado tão depressa. Em poucas horas. E ainda por a febre ter diminuído. Logo após a operação, pediu de beber e de comer. Terminara a dura provação.
Ao passarmos, de regresso, pelo rio Hosanna, em vez de tomarmos a estrada que ia dar a nossa casa, dirigimo-nos para Jerusalém. Atravessando o Hosanna.
- Na nossa aldeia há peste, ou qualquer calamidade desse género. A aldeia está de quarentena. A escola fechou. vou deixar o Virgílio em casa do padre Melquisedec. Frequentará a escola em Jerusalém. Regressará a casa logo que tudo tenha voltado à ordem. Então irá à escola da aldeia.
Meu pai, que estava meio estendido no feno, no fundo da carroça, olhou para mamã presbítera, que segurava as rédeas. Mas não precisou de falar. Porque ela entendera o que meu pai queria dizer.
- Receias que o Assassino de Jerusalém venha vingar-se no teu filho por tu teres disparado sobre ele, ferindo-o? Não tenhas qualquer receio. É certo que pode acontecer qualquer desgraça ao Virgílio. lonel Malai, o Assassino de Jerusalém, pode fazer mal ao teu filho. Mas, na nossa aldeia, o risco é o mesmo. Além disso, acho que ele não irá fazer mal a uma criança. Só para se vingar do pai. É verdade que é um assassino. Mas, apesar de tudo, é a imagem de Deus. Não pode matar crianças, como Herodes... O Assassino de Jerusalém é cristão. Não é um pagão, como Herodes. E como os Turcos.
Assim principiei eu os meus estudos em Jerusalém, nesse lugarejo que devia o seu santo nome ao facto de outrora ter pertencido a um mosteiro da região de Jerusalém.
Fui morar para casa do padre Melquisedec, meu avô, pai de minha mãe. O padre Melquisedec- o Grande Scobay, como lhe chamavam - era pároco de Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna.
O padre Melquisedec, o "Grande Scobay", é pároco de Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna é a primeira noite que passo longe do meu presbitério natal. Meus pais regressaram a casa, deixando-me entregue ao padre Melquisedec, que todos conhecem pelo Grande Scobay. É pároco de uma pequena aldeia de Jerusalém, nas margens do rio Hosanna. É também o pai de mamã presbítera, de minha mãe. Mora sozinho. Pôs muitas dificuldades a que eu ficasse com ele, para frequentar a escola, que era a dois passos.
- Há peste na nossa aldeia, pai, e as escolas fecharam. Não vamos deixar este miúdo analfabeto. Acolha-o em sua casa até que passe a epidemia e as escolas abram as portas.
O padre Melquisedec era muito alto. Dois metros de altura. De uma grande beleza. Tinha uma imensa barba branca que lhe descia até à cintura. Branca era também a cabeça, cujos cabelos, apanhados na nuca, num carrapito, se escondiam sob o colarinho da sotaina. Tinha uns olhos sem cor, feitos de luz. O rosto estava tapado quase por completo pela barba branca, excepto nas bochechas, onde se via um pouco da pele. Uma pele igualmente branca, como a dos bebés, muito delicada e um tanto rosada, comparada com a brancura da barba. O padre habitava um grande compartimento, no qual havia uma enorme e bela mesa de madeira de carvalho, uma pequena cama coberta com uma manta moldava e um ícone, em que o santo já desaparecera, de tão velho que era. Em cima da mesa, um candelabro com um círio. O tecto era à francesa. E servia também de biblioteca, pois o padre Melquisedec guardava, entre as traves e o tecto de madeira, os seus cinco ou seis livros, o seu epitrakhelion e o basilisco.
- Achas então, Maria, que foi por causa do algodão egípcio que o assassino entrou em tua casa, roubando, ferindo, maculando, e que as doenças se abateram sobre os homens da aldeia? Achas que foi realmente por isso? E achas também que as outras pragas do Egipto, de que fala a Escritura, irão abater-se sobre vós e que a próxima será o rapto e a morte do teu filho mais velho? Porque a última praga do Egipto é a matança dos primogénitos. E Virgílio é o teu primogénito. Achas que o assassino virá aqui para matar Virgílio?
- Temo que sim, pai - respondeu minha mãe. - Está escrito no Geronticon que é por intermédio das mulheres que os inimigos combatem os santos (1). Ora bem: é com a política
* (1) Apotegmas dos Padres, Arsénio, 28. *
que o Diabo combate os padres, os párocos das vilas e aldeias. Assim como o sal em contacto com a água se dissolve e já não serve para nada, assim o monge que vive em contacto com as mulheres está perdido. E, da mesma forma, o sacerdote que toca na política é um sacerdote perdido. Torna-se um fabricante de tijolos. Um artesão da lama. Deixa de receber as ordens do Céu. Deixa de poder olhar para o Céu. Fica metido na história. Ao serviço da Terra. E não ao serviço do Céu. A partir do momento em que o padre Constantino aceitou o cargo de presidente e caixa da cooperativa do algodão, tombou do Céu na história. Porque isso principia como no amor, com um olhar, um sorriso, e depois vem a fornicação e o adultério. Uma virgem, se quiser continuar a sê-lo, não deve erguer os olhos. E um sacerdote, para continuar sacerdote, não deverá tocar nas coisas da política, da cooperativa, nas demais obras de lama. Tem trabalho suficiente ao serviço de Deus.
O padre Melquisedec não censurou nem aprovou sua filha Maria, a mamã presbítera. Apenas escutava, levemente irónico. Mas não muito. Eu não conseguia aperceber-me se ele estava a troçar de mamã presbítera e da sua cólera, ou de meu pai, que, tornando-se distribuidor de algodão, atraíra os assassinos e os ladrões ao presbitério e recebera duas balas na pele. O padre Melquisedec conservava-se em silêncio. Mudo como o nome do nosso distrito: Neamtz. E isso, em primeiro lugar, porque nunca se deve julgar o próximo, e, depois, porque respeitava o mandamento que diz: Pus guarda à minha boca. Tornei-me mudo... Mantive-me em silêncio (2). Era um Neamtz. Um mudo. Como manda a sabedoria que se seja.
Quando meus pais se foram embora, o padre Melquisedec indicou-me o local onde passaria a dormir. Ele viveria no seu quarto. Mas o seu quarto era contíguo a um outro, ou melhor, era um compartimento duplo. Tinha uma parede pintada a cal. Que, na verdade, era uma chaminé. Acendia-se a lareira no quarto ao lado e isso aquecia a parede. O lume que servia para cozer as refeições ou aquecer água para nos lavarmos, aquecia, simultaneamente, dois compartimentos... Porém, antes de sair pela chaminé, o calor passava por todo um labirinto de tijolos e aquecia a parede inteira. Por cima da chaminé havia uma loggia de tijolo, com dois metros quadrados. Podia-se dormir ali, nesse chão aquecido, quando se estivesse doente. Como em qualquer loggia. Mas o calor e o fumo eram utilizados, uma vez mais, antes de saírem de casa e se perderem no ar. O telhado não possuía chaminé. Assim, o fumo era evacuado para o celeiro, que aquecia, e, juntamente com ele, o próprio tecto. Talvez não fosse um verdadeiro calor. Digamos que o fumo espalhado pelo celeiro não deixava arrefecer o tecto. Além disso, o fumo criara, ao fim de
* (2) Salmo XXXVIII, 2, 3. *
alguns anos, nas traves do tecto, uma camada de gordura que fazia as vezes de um isolante, de um impermeabilizador... O que, ao mesmo tempo, conservava a madeira, impedindo-a de apodrecer.
Tratava-se de uma construção bastante engenhosa e económica. Não se perdia uma única caloria. Mas havia outras razões para que o fumo não saísse pela chaminé. Os governantes fanariotas que dirigiam o país sob o domínio turco, como já não soubessem como extorquir mais dinheiro aos Romenos, haviam instituído um imposto sobre o fumo. Confirma-nos a crónica que se tinha de pagar um imposto suplementar por cada chaminé de tijolo erguida sobre os telhados das casas. Além de outros impostos. E para se furtarem, ao menos, ao pagamento deste imposto, todos os Romenos demoliram as suas chaminés, deixando o fumo libertar-se clandestinamente, se assim se pode dizer, pela beira do telhado. O que veio prestar bons serviços. Porque, além de o fumo isolar o tecto com uma camada impermeável e conservar quente o celeiro, servia também de fumeiro onde se defumava a carne e as salsichas.
- Vais dormir aqui, no coptor - disse o padre Melquisedec.
O coptor era a loggia de tijolo, por cima da chaminé.
- E estudarás as lições sentado à minha mesa - concluiu meu avô.
O padre Melquisedec estava de pé. A cabeça branca a tocar o tecto. Tinha uma voz de baixo. Uma voz belíssima! O padre Melquisedec, meu avô, era o homem mais belo que jamais vi. Era o cume de uma montanha. Um cume de neves eternas. E, apesar do absurdo da minha hipótese, às vezes pergunto a mim mesmo como é que a Sagrada Escritura pôde traçar o retrato de Melquisedec, o rei de Salem ou de Jerusalém (3), sem ter conhecido, sem ter visto o meu avô, o Grande Scobay. Porque os dois Melquisedec assemelham-se como duas gotas de água. Nas Santas Escrituras diz-se que Melquisedec era sacerdote. Sem pai, sem mãe e sem genealogia (4). Ao olharmos para o padre Melquisedec custava-nos a conceber que este pudesse ter na Terra uma mãe, um pai e uma genealogia. Vivia fora do tempo. A sua genealogia não fazia parte da história, mas da lenda. O seu nome real era Toma Scobay e era pároco da aldeola de Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, no distrito de Neamtz. Tivera dezasseis filhos. Todos eles são padres, à excepção de um. E os seus netos e bisnetos também são padres. As suas filhas casaram-se com homens que depois se tornaram padres. No dia da sua festa onomástica, quando os filhos e os descendentes dos seus filhos vinham até Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, contava-se mais de duzentas pessoas... Ocupavam toda a aldeia. Não havia nenhum laico entre eles. Todos padres. Curas de aldeia. Em todas
* (3) Génese, XIV, 44.
(4) São Paulo: Epístola aos Hebreus, VII, 3. *
as aldeias e distritos de Neamtz, de Baia, de Suceava, de Bacau, de Roman... Melquisedec era o seu verdadeiro patriarca. Contudo, agora, vivia sozinho. Totalmente só. Como um eremita. Nesta casa que outrora abrigara tanta gente. E eu ia ter de viver com ele durante todo o Inverno, se as calamidades e as epidemias causadas pelo algodão egípcio não acabassem de vez.
Quando trepei para o coptor senti uma sensação de bem-estar como nunca antes havia sentido. Entre o meu quartinho da loggia e o quarto do padre Melquisedec não existia qualquer porta. Os dois compartimentos eram divididos por uma parede caiada. Senti, primeiro, uma sensação de bem-estar, porquanto o cobertor que me servia de colchão estendia-se sobre os tijolos quentes. É bom dormir no coptor. Em nossa casa não havia coptor. A segunda sensação de bem-estar provinha do silêncio. Nunca anteriormente me fora dado ouvir o silêncio com os meus próprios ouvidos, como se ouve música. O verdadeiro silêncio é a mais bela de todas as músicas. Um silêncio total. Julgamos estar a ouvir uma orquestra.
A terceira sensação de bem-estar vinha do odor que reinava no presbitério do padre Melquisedec. Em sua casa havia silêncio porque não havia juventude. Como havia em nossa casa. Os jovens nunca estão calados. Mesmo que um jovem não fale e não se mexa, ouvimo-lo o tempo todo. Minha mãe, meu pai, meu irmão e minha irmã estavam rodeados do barulho da vida que neles brotava como uma fonte. Porque a vida é uma fonte que faz barulho ao correr. Mesmo quando se dorme. O padre Melquisedec, porém, era uma pessoa silenciosa. Como os mortos. E o seu presbitério também. Travei, pois, nessa noite, conhecimento com o silêncio. Pela primeira vez na vida. Depois de rezar baixinho, o padre Melquisedec adormeceu. Se bem que cochichada e bastante longa, a sua oração pareceu-me um cântico íntimo e silencioso. Logo em seguida adormeceu. De um momento para o outro. Como os gatos velhos que, a dormir, parecem fiar seda. E esse barulho de fiar seda é o verdadeiro som do silêncio. Tomei conhecimento, daí a pouco, e também pela primeira vez, com o tiquetaque de um relógio. Porque o padre Melquisedec era uma das raríssimas pessoas da região que possuía um relógio de bolso, de metal branco, a que se dava corda com uma chave. Em nossa casa nunca houvera relógio. Não havia um único relógio em toda a aldeia. Já tinha visto alguns, é certo, mas era a primeira vez que ouvia o tiquetaque de um relógio. O tiquetaque ressoava, regular, como um sino no meio do silêncio total. Era muito belo. Porque o tiquetaque era metálico, como o toque dos sinos, e eu tinha a impressão de que aquela era uma noite de Páscoa, a noite da ressurreição de Cristo, quando os sinos tocam sem parar por toda a montanha. Aqui, no presbitério do padre Melquisedec, era sempre noite de Páscoa. Os sinos tocavam durante a noite inteira graças ao relogiozinho pousado sobre a mesa de carvalho. Ao pé da cama.
Mais tarde, quando o silêncio se tornou mais intenso - e posso afirmar que o silêncio aumenta de intensidade como a música-, quando o silêncio se tornou mais intenso, ouvi um ruído misterioso, tão regular como o do relógio. Mas era um ruído oculto. Era o caruncho, esse bichinho que perfura na madeira imensas galerias da grossura de um cabelo. Ao escavar, emite um barulho semelhante ao do tiquetaque do relógio. Nunca cheguei a vê-los. No entanto, foram os meus companheiros nocturnos em casa do padre Melquisedec. Não passavam, sem dúvida, de instrumentos menores, modestos acompanhantes dos grandes instrumentos musicais da orquestra do Silêncio: os sinos pascais do relógio e o barulho de seda a ser fiada que era a respiração do padre Melquisedec. Vivia horas de lenda. Tão agradável como a música do silêncio, como a música dos sinos do relógio, como a respiração do padre Melquisedec e a actividade do caruncho, invisível acompanhante do grande silêncio, era o calor que fazia por baixo do meu corpo, na loggia, e os deliciosos odores de que a casa estava impregnada. Pois cheirava a limpeza. É o cheiro mais raro e mais precioso que existe à superfície da Terra. Nenhum perfume se pode comparar ao cheiro da limpeza. Em casa do padre Melquisedec tudo era limpo. Havia tão pouca vida que nada se podia sujar. Sem vida, não há sujidade. O odor da cozinha, que geralmente empesta as casas agarrando-se às paredes e às madeiras, havia já muitos anos que desaparecera. As madeiras eram enceradas de tempos a tempos pelas mulheres da aldeia. Sempre que se procedia a grandes limpezas na igreja, o mesmo acontecia, com idêntica piedade e rigor, no presbitério. Havia, por conseguinte, um cheiro autêntico a madeira. Bem como um cheiro a pedra. Havia ainda o perfume do basilisco. O cheiro da água. Num sítio muito limpo, sentem-se todos estes cheiros, o cheiro da água e o cheiro da madeira, os cheiros do linho, da lã e da pedra, exactamente como, num lugar realmente silencioso, se consegue ouvir o minúsculo caruncho a trabalhar no mais profundo da madeira, escavando galerias da grossura de cabelos.
Sentia-me bem. Foi o sítio da Terra em que melhor repousei em toda a vida. O único sítio, talvez, em que conheci o repouso, o verdadeiro repouso.
Chamavam ao padre Melquisedec o Grande Scobay. Era um pleonasmo. Visto que não há pequenos scobays. Um scobay é sempre grande. Como um elefante ou uma baleia, que são naturalmente grandes. Os scobays são peixes.
O rio que atravessa a aldeia de Jerusalém alimenta as suas águas nas fontes. Excepto durante o degelo e as grandes chuvadas. De resto, o rio Hosanna-a que nós, Moldavos, chamamos Osanna-vai buscar as suas águas directamente às fontes da montanha. São águas puras como lágrimas, frias, límpidas e quase sempre de igual profundidade. É uma pequena ribeira. Corre sobre um leito de calhaus, pedras duras e puras, polidas, redondas como tampas, semelhantes a discos de prata. Era de supor que tal ribeira fosse propícia às trutas. No entanto, não as tem. Os únicos e raros peixes que habitam as águas do Hosanna, conhecemo-los nós pela designação de miúdos. Dizemos: Vamos pescar miúdos. Terão uns quatro ou cinco centímetros, no máximo. Em Paris, chamam fritos a esses peixes. Mas os fritos que vejo nos mercados de Paris são grandes. Enquanto os nossos miúdos são realmente miúdos. Peixe anão. Mas vivo como uma faísca eléctrica. Como prata viva. Se se apanhassem todos os miúdos do rio Hosanna, não pesariam, todos juntos, mais que alguns quilos. Só as crianças, portanto, é que os vão pescar ao Hosanna. À mão, ou desviando o curso da água, chegam a apanhar uns quatro ou cinco miúdos que não tiveram tempo de escapar.
A palavra "peixe" designa, entre nós, algo de minúsculo.
Porém, de tempos a tempos, na época das chuvas torrenciais, quando as águas do rio Hosanna se estendem por um leito de algumas centenas de metros de largo e arrastam, à passagem, árvores gigantes, rochas desprendidas da montanha, quer a lenda que vêm do mar, do oceano, grandes peixes de mais de um metro de comprimento, conhecidos por scobays. O volume das águas baixa tão depressa quanto subiu, como todas as águas torrenciais. Mal elas se retiram, a ribeira aparece repleta de scobays. Às centenas. Peixes do tamanho de recém-nascidos. Que se podem apanhar em cima das pedras, visto que a água é demasiado baixa para eles.
Nunca vi nenhum scobay. Engrossaram as águas do Hosanna, inundando a região, arrastando rochas, árvores, moinhos e casas, mas, depois de se retirarem, nunca consegui ver um scobay. Nem eu nem ninguém. Mas diz-se que existem e que chegam a aparecer por aqui. Que há gerações em que aparecem scobays no Hosanna durante várias Primaveras consecutivas. Mas certamente que isso aconteceu há muito, muito tempo. Pois nem sequer os velhos mais idosos se lembram de ter visto um scobay. No entanto, ainda hoje, do fundo do coração, e graças à probidade científica do meu século (tanta quanto é possível a um poeta tê-la), não duvido da existência dos scobays. Nos livros de ciência está escrito que certos peixes do mar alto sobem o curso dos rios para virem depositar os ovos nas águas geladas, junto às fontes. Disso não duvido eu. Visto que são os tratados científicos que o afirmam. É um facto comprovado. Porém, para chegarem do Mar Negro até Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, na vertente oriental dos Cárpatos, teriam os peixes um longo caminho a percorrer. Não, exactamente, por ser uma grande distância. É que, para obedecerem a leis comprovadas, os peixes terão de mudar cinco ou seis vezes de rio. Do mar Negro terão de passar para o delta do Danúbio, tomar um dos três braços do Danúbio, subir o Siret, meter pelo Moldava e, finalmente, pelo Hosanna. São demasiadas mudanças para que a coisa seja plausível. Mas talvez isso tenha acontecido uma ou duas vezes, e as pessoas estejam ainda hoje à espera, ao fim de gerações e gerações, de verem chegar esses grandes peixes, para os apanharem e comerem. Porque a nossa alimentação é muito pobre em peixe.
Vive-se pois na esperança, sobretudo quando há fome, de que os grandes scobays, esses enormes peixes do mar alto, venham cair sobre as pedras do Hosanna. Os grandes scobays são como a Moby Dick dos caçadores de baleias.
Se os peixes, se os grandes scobays são uma lenda, os Scobay-homens, entre os quais meu avô, o padre Melquisedec, são uma realidade. Em Neamtz, os Scobay são aos milhares. Todos pertencentes à mesma família. Vieram do outro lado dos Cárpatos. Da Transilvânia. São verdadeiros Romenos. Eram, todos eles, criadores de cavalos e de gado. Duros montanheses. Que há cinco ou seis séculos foram expulsos das suas montanhas da Transilvânia e vieram da vertente ocidental, escalando os Cárpatos, em busca de uma nova terra para si e para os seus cavalos. Ao descerem em direcção a Neamtz, junto aos rios Hosanna, Bistritza, Siret, Moldava e Topolitza, encontraram pelo caminho monges de cabeça coberta com a kalimakva - esse barrete dos monges ortodoxos muito semelhante aos barretes dos magistrados -, que lhes suplicaram, com toda a delicadeza, que se não detivessem, que prosseguissem caminho.
- Estas terras pertencem aos lugares santos - explicava o monge. - Fazem parte dos mosteiros de Jerusalém e do monte Atos... Não podeis apascentar aqui os vossos cavalos. Segui o vosso caminho...
De facto, como já vimos, todas as terras, apesar, ou antes, devido à ocupação muçulmana, haviam sido adquiridas pelos lugares santos, pelos mosteiros da Grécia, da Turquia, da Palestina e de todo o Médio Oriente. Por toda a vertente oriental dos Cárpatos, em Neamtz principalmente, só havia monges, romenos na sua maioria, embora entre eles também houvesse gregos, russos, búlgaros, sérvios e albaneses. Viviam em centenas de mosteiros skits, células, grutas. Levavam uma vida angélica, feita de oração e de pobreza; mas alguns havia que se ocupavam também da administração das terras, da exploração das florestas, da contabilidade e da cultura, enviando tudo o que a terra lhes dava para os mosteiros dos lugares santos, seus proprietários. As terras eram cultivadas por servos e escravos, que igualmente pertenciam aos mosteiros. Os criadores de cavalos antepassados do padre Melquisedec apenas vieram encontrar aqui monges e servos. Bem gostariam de poder falar com os proprietários das terras. Mas esses proprietários eram os mosteiros dos lugares santos. O que se tornava, simultaneamente, muito longínquo e vago. Não lhes era possível, aos recém-chegados, voltarem para o lado de lá dos Cárpatos. Também não podiam sequer avançar, porquanto, em baixo, se estendia a planície que lhes mataria os cavalos. E os mataria a eles. Um montanhês só nas montanhas pode viver. Desde que desça à planície está perdido. Deixa de poder dormir, comer ou respirar. Deviam ter, certamente, outras razões pelas quais lhes era impossível descerem à planície. Mas também não podiam ficar onde estavam.
- Se vos tornardes monges ou escravos, podereis ficar em Neamtz - disseram-lhes os monges. - Aqui só há monges e escravos...
Os recém-chegados não podiam tornar-se monges. Já possuíam mulher, filhos e cavalos. E não tinham vontade de se separarem das mulheres, dos filhos e dos cavalos. Não tinham vocação para a pobreza, para o celibato e para a obediência. Eram criadores de cavalos. E, sobretudo, homens livres. Orgulhosos. Que só perante Deus dobravam o joelho.
Tanto monges como escravos admiraram os seus cavalos, os seus trajos, o seu porte e as suas mulheres. Monges e escravos acharam esses montanheses tão livres e grandes que, a seu lado, se sentiam minúsculos, tão minúsculos como os peixes do Hosanna. E assim lhes chamaram scobays, ou seja, grandes peixes. Os recém-chegados eram, de facto, incrivelmente maiores que os escravos, não apenas pela sua liberdade, senão também pela sua riqueza e dignidade. E igualmente pela sua estatura. Todos, ou quase todos, mediam dois metros de altura. Assim lhes ficou para sempre a alcunha de Scobay. O nome do peixe lendário tornou-se o seu nome de família.
E como é impossível ao homem não encontrar uma solução para os seus problemas - pois é tão inteligente como Deus e os anjos-, os Grandes Scobay propuseram aos monges um contrato:
- Tendes aqui os vossos mosteiros. Rezar é a vossa missão. A vossa missão é serdes hesychia. No meio do silêncio, do isolamento. Por obediência, ocupai-vos também da administração das terras. Tendes a vosso lado, sob as vossas ordens, como vossa propriedade, todo um povo de escravos a trabalhar para os mosteiros. Sois vós quem os baptizais, os enterrais, os albergais noite e dia nos vossos conventos, com todos os seus filhos, as suas mulheres e as suas desgraças. Deixastes, pois, de estardes isolados... É esta vossa vida monacal, por isso, constantemente perturbada pelos escravos e suas mulheres.
- Tendes razão - reconheceram os monges, reunidos em conselho a pedido dos Grandes Scobay.
- Nós somos algumas centenas de Scobay e somos ricos. Propomo-vos construir igrejas em todas as aldeias de escravos. Igrejas exclusivamente para eles. Para que eles não vos incomodem para além dos muros do mosteiro. Rodearemos de cercas os seus cemitérios. Tudo isso faremos com o nosso dinheiro.
Os monges ficaram extremamente contentes. Mas quiseram saber:
- E vós, entrais para o convento como monges, não é verdade? Porque depois de venderdes os cavalos e construirdes as igrejas, ficareis na miséria! Tornar-vos-eis monges, não é verdade?
- Não - respondeu o chefe dos Grandes Scobay. - Queremos fazer dos nossos homens os párocos dos escravos. Serão ordenados por vós. Tornar-se-ão padres, diáconos e chantres nas igrejas que hão-de construir com o seu dinheiro e com as suas próprias mãos... E, de geração em geração, essas igrejas terão sempre Scobay como sacerdotes... Podeis pôr-nos à prova para vos assegurardes de que somos verdadeiros cristãos, dignos de receber o sacerdócio.
Houve um longo inquérito. Soube-se que os Grandes Scobay haviam abandonado o seu país justamente por continuarem a ser cristãos. Aquele que suporta o exílio por amor a Cristo é digno de receber o sacerdócio. É uma prova mais dura que o seminário.
- Podeis construir as igrejas e receber o sacerdócio das mãos do nosso bispo assim que o desejardes.
Foi um acto de grande sabedoria. Porque, na realidade, o exílio, o martírio e os grilhões valem tanto como um diploma de licenciado em Teologia, um diploma passado por um seminário, que torna o homem digno do sacerdócio. Foi um acto que agradou a Deus. Por ser um acto de justiça. Cristo não escolheu os seus apóstolos entre os doutores em Teologia. Nem entre os diplomados. Não. Cristo escolheu homens simples. Vulgares. Homens como os Grandes Scobay. Pois foi dito: Se Cristo tivesse enviado ao mundo, como apóstolos, homens sábios, diriam que esses homens haviam persuadido o povo e assim o haviam conquistado, ou que o tinham enganado para assim se apoderarem dele. Se Cristo tivesse enviado ricos, diriam que os ricos haviam embalado o povo dando-lhe alimentos, ou o haviam corrompido com dinheiro e desse modo dominado. Se ele tivesse enviado homens fortes, diriam que tais povos tinham sido seduzidos à força ou constrangidos pela violência (5).
Uma vez transformados em párocos dos escravos e sacerdotes das igrejas construídas com o seu dinheiro e as suas próprias mãos, os Scobay- refugiados do seu país por amor a Cristo
- mostraram-se dignos dessa missão. Continuaram ali durante séculos. E Deus aceitou-os. Somente rejeitando, de vez em quando, um ou dois homens em cada geração. Aqueles, de entre
* (5) Santo Efrem de Nísibis: Diatessarion, 20. *
os Scobay, que ele não queria para sacerdotes. Os monges também estavam satisfeitos, pois tinham voltado novamente à paz e à tranquilidade. Os escravos já não vinham importuná-los com os seus problemas, os seus casamentos, baptismos, enterros e mágoas. Os escravos, por seu lado, também ficaram contentes, por terem agora a igreja ao pé de casa e um pároco só para eles. Sua propriedade. Era a única coisa que os escravos possuíam. E que não eram obrigados a partilhar com as outras aldeias. E também os Grandes Scobay se sentiam felizes por terem podido ficar em Neamtz, sem serem obrigados a tornar-se escravos ou monges. Edificaram, portanto, centenas de igrejas. E presbitérios. Para aqueles de entre os seus homens que se haviam tornado padres. E para as suas mulheres. Os melhores e os mais velhos dentre eles receberam o sacerdócio. E seus filhos foram ao seminário. E isto durou séculos e séculos. Toda a gente se habituara a ver um Grande Scobay como pároco dos escravos. Vivendo entre eles. Entre os pobres. E foi assim que os Grandes Scobay continuaram a ser os servidores de Deus, nas igrejas que eles próprios construíram, após a libertação dos escravos. Estes tornaram-se livres. Deixaram de ter quaisquer contactos com os monges. Ganhavam a vida criando cavalos e cultivando a terra com o trabalho dos seus braços. O padre Melquisedec cultivara com as suas próprias mãos toda uma área de terra que não pertencia a ninguém.
Plantara em Jerusalém o mais belo pomar de todo o distrito de Neamtz, o que o ajudou a ganhar o suficiente para pagar as quotas do seminário e formar o dote dos seus dezasseis filhos. Desta forma, em todas as aldeias com nomes do Antigo e Novo Testamento, bem como nomes de santos - os nomes dos mosteiros a que outrora pertenciam-, todos os padres fazem parte da família dos Grandes Scobay. O nome de baptismo de minha mãe era Maria Scobay. Nascida em Jerusalém. E ali estava eu, forçado a passar o meu primeiro ano de escola no presbitério do padre Melquisedec, o mais antigo dos Grandes Scobay, em Jerusalém. O meu primeiro professor, e director da escola comunal situada ao lado do presbitério, era um irmão de minha mãe. Um filho do padre Melquisedec. O seu filho mais velho. Saíra do seminário com um brilhante diploma. Mas não se tornara padre. Porque Deus não o quisera. Era imberbe, sinal que não deveria ser padre. Tornara-se então mestre-escola em Jerusalém. Minha mãe aprendera a ler e a escrever com ele. E também lonel Malai, o Assassino de Jerusalém. Fora condiscípulo de minha mãe na escola aonde eu, no dia seguinte, deveria ir.
Senti-me subitamente tomado de terror. Lembrei-me das palavras de mamã presbítera: "Por causa do algodão vindo do Egipto, que teu pai ousou vender, cairão sobre nós as dez pragas do Egipto." Já principiaram a cair. Primeiro, o roubo. Depois, o crime no presbitério. A peste na aldeia. E a última praga será a morte dos primogénitos. Ora eu era um primogénito. Portanto, encontrava-me em perigo. Pois me tinham advertido que o Assassino de Jerusalém iria atentar contra a minha vida. Por meu pai o ter ferido ou por ele julgar que meu pai o ferira. O Assassino de Jerusalém podia muito bem entrar onde eu me encontrava. No coptor. No presbitério do padre Melquisedec.
Acordei aos gritos. No seu quarto, o padre Melquisedec não dormia. Estava vestido. A vela acesa. Fui refugiar-me ao pé dele, banhado em suor.
- Ajoelha-te - disse o padre Melquisedec.
Lá fora cantavam os galos. O padre Melquisedec agarrou no epitrakhelion, colocado sobre um barrote do tecto, beijou-o e pendurou-o ao pescoço. E principiou a orar:
Tratava-se do ofício de mesonyktikon: o ofício da meia-noite. Ignorava que ele existisse. Meu pai nunca celebrava o ofício da meia-noite.
O ensaio geral da ressurreição dos mortos
PELA primeira vez na vida assistia à celebração do ofício da meia-noite, a que nós, Romenos, chamamos mezonoctica - mesonyktikon em grego. Pouca gente sabe que há um ofício a meio da noite. Esse ofício existe exclusivamente entre os ortodoxos e só se celebra, realmente, nos mosteiros. O padre Melquisedec já se encontrava vestido quando eu, aterrorizado pelo pesadelo, entrei no seu quarto. Sonhara, de facto, que o Assassino de Jerusalém entrara no meu captor, na minha loggia, e me quisera estrangular. O padre Melquisedec, de sotaina e anterion, lia o ofício no Horologion, o seu livro de horas. Tinha um epitrakhelion vermelho com franjas douradas. Era belo à luz do círio que brilhava no meio da mesa. Embora o padre Melquisedec fosse voltando as páginas do Horologion, na realidade não lia o ofício da meia-noite. Sabia-o de cor. De resto, como mais tarde vim a saber, ainda que quisesse ler, ter-lhe-ia sido impossível, pois estava quase cego. Virava as páginas sem ver os caracteres, mas seguindo o texto com o olhar, pois o Típico, a regra, exige que o padre nunca recite de cor, mas leia os ofícios. Sobretudo quando se trata da santa e divina liturgia. Ao ajoelhar-me, como ele mo ordenara, olhei para a sua altura. Imensa. Uma coluna. Um traço de união entre o chão e o tecto. Mais que isso: um traço de união entre o grande tecto do Céu e o chão da Terra. A oração de São Basílio foi cantada esplendorosamente pelo padre Melquisedec:
Purificai-nos de toda a mácula da nossa carne e do nosso espírito, fazei de nós os templos do vosso Espírito Santo. Concedei-nos a graça de passarmos todas as noites da nossa vida presente de coração vigilante e pensamento prudente, enquanto avidamente esperamos pela vinda do ilustre e esplendoroso dia de vosso Filho Único, Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo, quando ele vier à Terra, em toda a sua glória, a fim de julgar o Universo inteiro, e dar a cada um segundo as suas obras. Fazei com que não nos venha encontrar deitados e adormecidos, mas vigilantes e despertos, em cumprimento dos seus mandamentos...
O ofício da meia-noite durou perto de uma hora. Depois, o padre Melquisedec tirou o epitrakhelion, beijou-o, dobrou-o e voltou a pô-lo no lugar, entre o barrote e o tecto, juntamente com o livro de orações. A seguir abriu uma caixa de lata, uma velha caixa de chá, e ofereceu-me passas.
Tinha um cinto largo, preto, de cabedal. Os olhos estavam mais brilhantes que de costume. À luz do círio que ardia no meio da mesa, a barba branca parecia salpicada de oiro, como a neve sob a luz da Lua, nos picos cobertos de neve.
- Nunca assististe a um ofício do mesonyktikon? - perguntou-me, enquanto eu comia as passas.
- Não - respondi. - -Meu pai nunca se levanta de noite para celebrar o mesonyktikon.
- Deus mandou-nos rezar sete vezes por dia(1)
- explicou-me o padre Melquisedec. - A primeira oração, instituída pelo próprio Cristo, é este ofício da meia-noite. Pois foi dito: Velai, pois ignorais quando chegará o Dono da casa, se de tarde, se à meia-noite, à hora do cantar dos galos ou de manhã (2).
O mesonyktikon é, com efeito, um ensaio geral da ressurreição dos mortos e da segunda vinda de Cristo à Terra.
O padre Melquisedec prometeu-me que me levaria um dia a assistir ao ofício da meia-noite num dos grandes mosteiros que existem nas montanhas. Disse-me:
- À meia-noite em ponto, todos os sinos das igrejas e todas as simandras começam a repicar. De um momento para o outro. Os sinos da meia-noite simbolizam as trombetas dos anjos que hão-de soar no dia final, na ressurreição dos mortos. Ao ouvirem as trombetas dos anjos,
* (1) Salmo CXVIII, 64.
(2) São Marcos, XIII, 35. *
os mortos sairão das tumbas. Todos eles. Sairão do sítio onde estiverem enterrados. Os que morreram afogados sairão do fundo dos mares. Os que foram devorados pelos animais selvagens sairão do ventre desses animais. E todos se precipitarão perante o trono de Cristo, que será o juiz. Rodeado dos anjos.
"Quando, à meia-noite, os monges que dormem nas células espalhadas pela floresta em redor da igreja ouvirem os sinos e as simandras, acordarão do seu sono, como os mortos hão-de acordar no seu caixão. E então os monges saem da cama, e da célula, exactamente como sairão, mais tarde, do túmulo. Todos os monges de todos os mosteiros da Terra se levantam da cama à meia-noite. E se precipitam para a igreja, onde o sacerdote, revestido dos seus paramentos, os espera diante do altar, tal como Cristo esperará no seu trono que cheguem todos os homens ressuscitados. Depois, quando todos os monges estiverem presentes, começa a celebrar-se o ofício da meia-noite.
- Celebra então, todas as noites, este ensaio geral da sua ressurreição?
- Sim - respondeu o padre Melquisedec. - Também há muitos laicos que acordam à meia-noite e celebram esta recapitulação da ressurreição que nos espera depois de mortos.
Percebi que, para o padre Melquisedec, este ofício, que simboliza a ressurreição e o juízo final, era um dos seus ofícios preferidos. E não me enganava, pois apressou-se a acrescentar:
- Passamos a vida à espera da nossa ressurreição. É esse o supremo objectivo de qualquer homem. Por isso, passamos a vida à sua espera. A nossa ressurreição há-de ser esplendorosa. Como ninguém poderá imaginá-lo. Cristo virá de novo até nós.
- E nós ressuscitaremos com o nosso corpo, os nossos olhos, os nossos ossos? - perguntei. - E viveremos eternamente?
- A nossa carne e os nossos ossos hão-de ressuscitar também. Visto que o nosso corpo é o templo do nosso espírito. E o corpo passou, na Terra, pelas mesmas provações que a alma. Por conseguinte, ressuscitará. Terá também uma vida eterna. Mas será transfigurado... Sabes o que quer dizer ((transfigurado"?
- Não.
- Quer dizer que seremos os mesmos de agora, em carne e osso, mas com um corpo luminoso, livre de toda a impureza. Como o era o corpo de Cristo no monte Tabor...
Vendo que lhe era difícil explicar-me isto, o padre Melquisedec agarrou no Livro dos Padres, que se achava entre o tecto e os barrotes, ao lado do epitrakhelion, e pediu-me que o abrisse na página onde havia uma papoila seca e lesse em voz alta. Fiz como me mandava. E li:
Paulo toca, por assim dizer, com o dedo no problema quando diz: ((Porque importa que este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade; e que este corpo mortal se revista de imortalidade" (3). Porque esse corpo não ressuscita o ser miserável que nós conhecemos, embora ressuscite idêntico ao que era. Encontra-se revestido de incorruptibilidade e transformado, como o ferro em contacto com o fogo se torna fogo, ou como o Senhor que o ressuscita quer que ele seja. Ressuscita, portanto, esse corpo, mas não fica igual ao que era na Terra: pois que permanecerá para toda a eternidade. Deixa de necessitar dos alimentos a que recorria ou de escadas para se elevar. Torna-se, na realidade, espiritual. Algo de maravilhoso e de uma tão grande dignidade que não sabemos como exprimi-lo. E foi dito: "Então resplandecerão os justos, como o Sol e a Lua e o esplendor do firmamento" (4). Deus, que já previa a incredulidade dos homens, concedeu a uns pequeninos vermes a faculdade física de emitirem raios luminosos, para que aquilo que nos fere a vista nos ajude a crer naquilo que esperamos. Pois aquilo que fez a parte pode fazer o todo e "aquele que fez luzir um simples verme, com mais forte razão há-de tornar o homem justo-" (5). Vinham-me as lágrimas aos olhos, de tão feliz que me sentia ao ler que nós, os homens, e sobretudo nós, os pobres Moldavos, que nesta terra tínhamos um corpo roído pela subalimentação, pela fadiga, pela pelagra, essa doença provocada pelo milho (de que sofrem todos
* (3) São Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios, XV, 53.
(4) São Mateus, XIII, 43; Daniel, XII, 3.
(5) São Cirilo de Jerusalém: P. G., 33, col. 1040-A. *
quantos se alimentam de milho), nós que, na Terra, nas extensas circunvizinhanças orientais da Europa, somos os mais miseráveis proletários da terra, espezinhados por todos os invasores do Oriente, possuiríamos um dia um corpo que resplandeceria como a Lua e o Sol. Porque a partir do momento em que um simples, um miserável, um minúsculo verme pode luzir de noite como uma estrela, muito mais pode reluzir o corpo do homem justo, como a Lua e o Sol. A prova da ressurreição luminosa da carne, depois da morte, e da segunda vinda de Cristo, é-nos apresentada, indubitavelmente, por Deus, de maneira irrefutável, mediante o exemplo do pirilampo. Esse bichinho, que durante o dia é da cor de uma pedra, de um torrão, que pode ser esmagado por um pé sem se reparar, tal como a história esmaga os Moldavos, e que de noite brilha como uma estrela... Assim seremos nós, os Romenos, que todos na Terra desprezam e esmagam... Mas havemos de brilhar na Parúsia, na segunda vinda de Cristo e na ressurreição dos mortos. Essa mesma ressurreição tão esperada e repetida, a meio da noite, em todos os mosteiros... E à qual eu, pela primeira vez, acabo de assistir. Enxugo as lágrimas de felicidade. Pois esta minha carne, este meu insignificante e frágil corpo de sete anos, há-de vir um dia a ser luminoso e a possuir eternidade... Nunca nenhuma doutrina dita materialista proclamou que a matéria que constitui o meu corpo de homem é eterna... O seu materialismo é um logro, em comparação com os ensinamentos cristãos, que prometem a imortalidade à matéria do corpo humano santificado, deificado e tornado luminoso em contacto com a divindade.
Havemos, portanto, de ressuscitar. Teremos, todos, um corpo eterno, mas os nossos corpos não se parecerão... O justo receberá um corpo celeste que lhe permita fazer condignamente companhia aos anjos. O pecador receberá um corpo eterno apto a suportar o castigo do pecado, sem que o fogo eterno o possa consumir. É a justo título que Deus assim procede para com cada uma dessas categorias. Porque nada se faz em nós sem o corpo. É a nossa boca que blasfema, é a nossa boca que ora. A nossa mão que viola, a nossa mão que dá esmola. E assim por diante. Portanto, como o corpo foi, de qualquer modo, o fiel servidor da alma, assim ele partilhará consequentemente da sua sorte (6).
A partir dessa noite, passei a olhar o meu corpo com outros olhos. Como o fiel companheiro da minha alma. E fiquei à espera, como o maior acontecimento que jamais virá a produzir-se, da Parúsia.
Nos nossos dias, neste ano de 1968, o mundo maravilha-se com os prodígios e as técnicas extraordinárias da ciência médica, que já consegue substituir um coração. O homem viverá assim, na Terra, com o coração do seu semelhante,
* (6) São Cirilo de Jerusalém, P. G., 33, col. 1040-B. *
com um olho, com um rim alheios. Ou com uma perna de outrem.
Nós, cristãos, profundamente nos regozijamos com esses prodígios da técnica. Qualquer cura, qualquer trégua nos sofrimentos corporais nos enche de alegria. Mas também sabemos que isso não é tudo. Que há algo mais. Porque esperamos pelo fim dos tempos, pela ressurreição dos mortos, pelo juízo final, pela Parúsia e a Apocatástase, ou seja, pela restauração da criação em toda a sua integridade primordial. Estamos seguros da segunda vinda de Cristo à Terra, da ressurreição dos mortos. O mistério reside unicamente no modo como se processarão os acontecimentos da apocatástase, da restauração. Nem tudo sabemos. Porém, segundo as revelações feitas a certos eleitos e a tradição conservada pela Igreja, podemos supor que nesse dia os mortos abrirão os túmulos e sairão. Na minha Moldávia natal, ao norte da Roménia, existe uma igreja, a Igreja de Voronetz, que data do século xv. Nas suas paredes podem ver-se as cenas da apocatástase. Os anjos tocando as trombetas. Todos os túmulos a abrirem-se, deixando sair os mortos. Um lobo, que devorara a mão de um homem, vem trazê-la ao seu dono. Da bocarra de um leão emerge a cabeça de uma criança. Os monstros marinhos e os peixes restituem os corpos dos afogados. Os corvos e outras aves de rapina entregam a carne dos cadáveres que devoraram nos campos de luta. Toda a criatura se vê restaurada em toda a sua integridade. É isso a apocatástase. Nesse dia, a perna negra enxertada por São Cosme e por São Damião abandonará o corpo do diácono Justiniano ressuscitado e voltará à posse do seu dono negro. O coração da jovem enxertado num homem pelos médicos regressará ao peito de onde foi extraído. Assim como o coração do negro enxertado num doente branco. Porque assim foi dito: Então, com o meu esqueleto, revestido com a minha pele e com a minha carne, verei a Deus. Serei eu próprio a vê-lo. Meus olhos o verão, e não um outro (7).
Os enxertos dos membros, as partes amputadas ou acrescentadas à Túnica de Pele (8), ou seja, ao corpo carnal do homem, só são válidos durante o brevíssimo período que este passa sobre a Terra.
- A segunda vinda de Cristo à Terra pode dar-se mesmo nos nossos dias? - perguntei a meu avô.
- Todos nós esperamos, a qualquer hora do dia ou da noite, durante toda a nossa vida, a segunda vinda de Cristo à Terra. É o único grande acontecimento por que esperamos. O único que realmente nos interessa. Que intrinsecamente nos interessa.
- Podemos, portanto, estar vivos quando ele vier? - perguntei.
-Pode vir esta noite mesmo. Neste preciso instante. E os homens que estiverem vivos
* (7) Job, XIX, 26.
(8) Génese, iII, 21. *
passarão desta vida para a eternidade sem conhecerem o túmulo. É um dos mistérios que a seu tempo há-de ser revelado... O nosso dever é esperarmos. E estarmos preparados. Porque se não estivermos preparados para os grandes acontecimentos, de nada nos valerá estarmos preparados para os pequenos.
Ergui os olhos para o padre Melquisedec. Era, realmente, tão velho que não se imaginava que tivesse tido pai ou mãe, qualquer genealogia, neste mundo. Era como o Melquisedec das Santas Escrituras. Superior ao tempo. Como o monte Branco se encontra acima das montanhas. Era padre como meu pai, como os demais. Mas, ao mesmo tempo, era padre de maneira diferente. É certo que não tinha nada a mais que os outros, mas via-se, sentia-se que era diferente. Tinha qualquer coisa que não dizia apenas respeito à Terra. Primeiro que tudo, tinha dois metros de altura. Era muito direito. Desde que era padre, ou seja, praticamente desde sempre, jamais cortara os cabelos. Já no Antigo Testamento não cortar os cabelos era um duplo sinal de entrega e consagração a Deus (9). Apesar de a tesoura nunca haver entrado nos seus cabelos, tinha a cabeleira e a barba branca como uma estola sacerdotal, que lhe chegava abaixo da cintura, extremamente cuidadas. Resplandecentes de asseio. E numa bela ordem. É certo que os cabelos cresciam em todas as direcções.
* (9) Números, VI, 4. *
Na direcção que Deus lhes fixara. Pois mesmo a direcção em que um cabelo cresce é Deus quem a estabelece. E, assim, como na cabeça do padre Melquisedec os cabelos cresciam todos segundo a ordem estabelecida por Deus, o seu penteado era um penteado soberbo. Extraordinariamente belo. Nenhum cabeleireiro do mundo teria sido capaz de executar semelhante penteado. Porque aquele penteado era da autoria de Deus. Ê a mão do homem não poderá nunca obrar melhor do que a mão de Deus. Por maior e mais hábil que esse homem seja.
O padre Melquisedec usava sotaina idêntica à dos outros padres ortodoxos, o mesmo anterion que meu pai. No entanto, e embora fosse o mesmo, o seu hábito sacerdotal era diferente. A sua sotaina era algo mais que a dos outros padres. Fazia parte do seu corpo. Como a casca dos grandes carvalhos faz parte da árvore. Ainda que lhe tirassem a sotaina, não ficaria nu. Já que a sua própria pele se tornara um hábito sacerdotal. Apenas uma única diferença da vestimenta o diferençava dos outros padres e de meu pai. O cinto. Um cinto muito largo, de cabedal. Um cabedal negro e duro que lhe apertava os rins. Os outros padres também usam, por vezes, um cinto, mas de pano. Só os monges usam o cinto de cabedal. E o padre Melquisedec usava-o, tal como os monges. Aqui temos, pois, o soldado de Cristo coberto com os seus trajos. Deverá saber, antes de tudo o mais, que um cinto lhe cingirá os rins. O uso deste cinto esconde um grande mistério, que ele terá de cumprir. O facto de ter um cinto em volta dos rins e de ser rodeado por uma pele morta, significa a mortificação dos membros... No uso do cinto vemos uma obediência constante ao mandamento evangélico: Que estejam cingidos os vossos lombos (10) e uma interpretação perfeita do Apóstolo São Paulo: Mortificai, pois, os vossos membros que estão sobre a Terra (11). Por isso lemos nas Sagradas Escrituras que só usaram o cinto aqueles que, no seu íntimo, haviam destruído a semente da paixão (12).
- Tens medo do Assassino de Jerusalém? perguntou-me de repente o padre Melquisedec.
Baixei os olhos. Decerto que tinha medo. Agora, porém, tendo ouvido e compreendido que depois de mortos haveríamos de ser felizes e mais luminosos que os astros, já não se justificava que tivesse medo da morte. Contudo, apesar de todos os esplendores da vida futura, não há ser humano, escravo, prisioneiro ou pedinte, que não deseje continuar ao cimo da Terra. Continuar a sua mísera existência. Todos os homens desejam prolongar a vida o mais possível. A verdade é esta. Que ninguém quer morrer. Para se regozijar com a vida futura. Nem mesmo os santos querem morrer...
- Tenho medo que ele me venha matar -
* (10) São Lucas, XII, 35.
(11) São Paulo, Epist, aos Col., in, 5.
(12) São João Cassiano: As Instituições Cenobíticas, livro I, 11. *
respondi. - A mãe disse-me que tomasse cuidado. Porque o assassino é natural de Jerusalém. E é como um cão raivoso que mata e faz mal a toda a gente onde quer que esteja. E agora é a mim que ele quer mal. Por causa do meu pai.
O padre Melquisedec tocou-me com a mão na cabeça. Acariciando-a. Uma carícia diáfana. Porque a sua mão, embora quente, não tinha o mesmo calor da mão de minha mãe ou da de meu pai. Era um calor mais ténue, purificado, como uma mão de bebé. Um calor de inocência, um calor de santidade e de pureza. Que se assemelham. Estou certo de que, no dia em que Cristo se dignar tocar-me na cabeça, a sensação que eu terei será exactamente a mesma. Assim como também senti exactamente o mesmo calor e o mesmo peso diáfano na cabeça no dia da minha quirotonia, quando, na igreja romena de Paris, em Maio de 1963, fui ordenado padre por imposição das mãos.
A mão do padre Melquisedec pousada sobre a minha cabeça não era, por assim dizer, uma carícia idêntica à que se faz às crianças. Essa mão pousara sobre a minha cabeça como um escudo, sem peso, firme.
- Deus e os anjos te protegerão, Virgílio, e farão que o Assassino de Jerusalém, que levou o crime ao vosso presbitério, te não faça mal a ti. E se os anjos te protegerem, não há ninguém, ninguém, nenhum assassino, seja ele de Jerusalém ou de onde for, que te possa fazer mal.
Eu tinha confiança. Estava seguro da verdade das palavras que o padre Melquisedec proferia. No entanto, continuava com medo. Confessei-lho:
- Apareci quando o avô estava a rezar, porque tive um pesadelo. Sonhei que o Assassino de Jerusalém subia para a minha loggia porque me queria matar por estrangulamento. Sem dúvida que confio em Deus e nos anjos. Mas também tenho medo do Assassino de Jerusalém. Ele julga que foi meu pai quem o feriu. E quer vingar-se em mim.
- Então não foi o teu pai quem o feriu? perguntou o padre Melquisedec. - O assassino deixou um rasto de sangue. Toda a gente viu esse sangue. Em frente do presbitério. Quem, a não ser teu pai, poderia tê-lo ferido?
- Uma bala disparada pelo próprio assassino sobre a laje de granito que há no patamar fez ricochete e feriu-o a ele e a meu pai. Mas o assassino pensa que foi o meu pai quem o feriu. E há-de vir aqui para se vingar. Há-de matar-me. Foi a mãe quem mo disse.
- Asseguraram-me que desejavas santificar o teu nome, Virgílio. É verdade?
- É.
- Perguntaste a teu pai o que deverias fazer para que passasse a haver um São Virgílio no calendário? Foi assim ou não?
- Foi.
- E teu pai disse-te que era possível tornares-te santo?
- Disse que era muito possível. É mesmo uma ordem dada a todo o cristão o tornar-se santo como Deus o é.
- E sabes o que terás de fazer para te tornares santo? Teu pai chegou a dizer-to?
- Disse. Para nos tornarmos santos, só uma coisa é preciso: amarmos os nossos inimigos.
- Quando fizeste essa pergunta a teu pai, não tinhas qualquer inimigo. Por conseguinte, não podias tornar-te São Virgílio por falta de inimigo, não é assim? E então pediste ao Senhor que te desse um. Um, ao menos. É ou não verdade? Pois Deus ouviu as tuas súplicas. Deves sentir-te satisfeito. Já tens um inimigo. Que quer matar-te. E que feriu teu pai. Esse inimigo é o Assassino de Jerusalém. Há-de aparecer, assim o assegura tua mãe, e tentar fazer-te mal. Para se vingar do ferimento que recebeu no presbitério. É um inimigo terrível, esse que Deus te envia. Poderás tu amá-lo? Responde-me!
- Amar o Assassino de Jerusalém? - perguntei, atemorizado. Porque me parecia totalmente inconcebível amar o Assassino de Jerusalém. Aquele que andava à minha procura para me estrangular. Mesmo nos meus sonhos eu via que andava à minha procura.
- O Assassino de Jerusalém é teu inimigo, não é?
- É!
- Serás capaz de amá-lo, apesar do medo e do terror que te inspira?
Baixei os olhos. Percebi que era esse o preço da santidade. Se amasse o Assassino de Jerusalém, que até em sonhos me aterrorizava, ganharia o nimbo, a auréola dos santos, seria São Virgílio. Se, porém, o não amasse, seria como todos os demais Virgílios que viveram antes de mim sem terem sido capazes de santificar esse belíssimo nome latino. Desatei a chorar.
- Porque choras?
- Porque não sou capaz de amar o Assassino de Jerusalém! Penso que nunca serei capaz de o amar. Principalmente a ele.
Fui deitar-me. No meu captor. Depois de ter recebido mais algumas passas. Enxuguei as lágrimas. Adormeci. E sonhei. Mas, desta vez, que eu, o padre Melquisedec, minha mãe, meu pai e toda a gente da aldeia brilhávamos no firmamento, como os pirilampos e as estrelas... Era um belo espectáculo. Era a Parúsia. A mais bela das coisas com que os homens podem sonhar e esperar. Todos os miseráveis proletários da vertente oriental dos Cárpatos, todos os Romenos, que tão infelizes foram na história, se verão transformados num povo em que cada cidadão possuirá, para toda a eternidade, um corpo de luz mais belo que o dos anjos, no Céu...
Deus ouve as minhas súplicas enviando-me o primeiro inimigo, o "Assassino de Jerusalém", para viver comigo
é a segunda noite que passo no presbitério do padre Melquisedec, em Jerusalém. De dia fui à escola. Travei conhecimento com os meus condiscípulos e com as disciplinas. O mestre-escola, Niko Scobay, irmão mais velho de minha mãe e seu antigo professor, é um homem austero. Não foi, decerto, apenas por ele ser imberbe que Deus lhe recusou o sacerdócio. Não é a falta de barba o que nele me fere, mas os seus olhos cinzentos. Frios. Sem uma única parcela de ternura e de amor. Mostrou-se mais severo comigo que com os outros alunos. Perguntou-me, como se o ignorasse, o nome, o apelido e o lugar em que nascera. Tal como fazem os polícias, verifiquei-o mais tarde. Mas esforcei-me por gostar dele. Apesar da sua dureza. Porque preferia morrer a não conseguir amar os meus inimigos. Quero ganhar a auréola dos santos. Desejo absolutamente que Deus venha a inscrever no calendário, precedido do adjectivo são, o belo nome de Virgílio. Sei que é árduo o caminho a percorrer. Porém, estou decidido a não recuar perante os obstáculos. Quanto mais meu tio e mestre-escola for duro e severo comigo, mais me esforçarei por amá-lo. Ao regressar a casa, dei parte da minha vitória ao padre Melquisedec.
- Ele foi duro comigo - disse. - Comportou-se como um verdadeiro inimigo. E eu não sinto sombra de rancor contra ele... Não é já um passo a meu favor no caminho da santidade?
- Não - disse o padre Melquisedec. - Ele foi duro contigo apenas por amor. Para fazer de ti um bom aluno. E não por maldade. Bem sabes que ele não é teu inimigo. Que foi por amor, como mestre-escola que é, como homem que te quer instruir, que ele se mostrou duro.
- Tem razão - disse eu. - Foi para meu bem que ele se mostrou duro. Inamigável.
- Se amais aqueles que vos amam, que mérito é o vosso? Porque mesmo os pecadores amam aqueles que os amam (1).
- Porque é absolutamente necessário amarmos os nossos inimigos, padre? - perguntei.
- Aquele que não ama todos os homens com um amor igual, espontâneo e desinteressado, esse não pode amar a Deus... Todo aquele que odiar um só homem, odeia a Deus.
Era extremamente difícil perceber o sentido destas palavras. O padre Melquisedec não era padre para explicar a doutrina divina como os
* (1) São Lucas, VI, 32. *
doutores, mas padre para santificar os homens, para os deificar, para os tornar filhos de Deus e dignos do Reino dos Céus. Não se mata a sede lendo tratados sobre hidratação, mas bebendo água.
O padre deve distribuir pelos seus fiéis os dons do Espírito Santo que lhe foram conferidos pelo sacerdócio. Deve, como se fora uma fonte, curá-los e torná-los admiráveis - e não tentar explicar-lhes como uma pessoa se torna admirável. Continua-se com fome, mesmo depois de ter lido milhares de tratados sobre a arte culinária. Tal como se pode ignorar o que é a fé depois de se ter estudado um milhão de tratados de teologia. Para ser teólogo - conhecedor de Deus - tem de se comer Deus. Tem de se beber Deus. Tem de se convidar Deus a vir viver em nós. Tem, assim, de se transferir para Deus. Bebê-lo como se bebe de uma fonte. E comê-lo como se come um alimento. Então ser-se-á santo como Deus. Filho de Deus. E ter-se-á o mesmo corpo de Deus. Ser teólogo, significa ter conhecimento de Deus, fazendo um só corpo com ele. Por isso a Eucaristia é o sacramento dos sacramentos. Por isso o sacerdote é superior aos anjos. Não só porque pode transformar o pão e o vinho no corpo de Cristo, tornando assim Deus consumível e bebível por todos, mas também porque pode perdoar na Terra e no Céu. E também condenar. Perguntar ao padre Melquisedec por que motivo se deve amar os nossos inimigos para nos tornarmos santos, é exactamente o mesmo que perguntar à fonte onde bebemos a razão por que as suas águas nos matam a sede. É um absurdo. A fonte ignora como e porque mata a sede. Fá-lo apenas. Tal como o sacerdote. O sacerdote santifica-nos. É por isso, entre outras razões de ordem histórica, que todo o saber teológico do padre ortodoxo está contido em meia dúzia de livros transportáveis. Livros de bolso. Que só uma minoria de padres abriram e leram. São: o Enquirídio (ou pequeno livro). Contém toda a doutrina e tradição. Há outro, o Filocalia (o amor do belo), que encerra toda a tradição espiritual dos Santos Padres. É uma espécie de Suma Teológica. Como o Enquirídio. Como o Sintagma (compilação), a Sinagoga (idem), o Pidálion (o timão). Há ainda outros pequenos livros, tais como o Pandecta (recolha completa de textos). Todos eles, porém, constituem um único e mesmo livro, que nos dá resumidamente igual tradição da Fé e da Igreja. Cada um de per si é uma biblioteca completa. Aliás, chamam-se, por vezes, Biblioteca. Como o que escreveu o santo patriarca Photius. Que é um resumo de toda a fé e de todas as bibliotecas. A verdadeira biblioteca ortodoxa são os livros litúrgicos. Que unicamente podem ser encontrados nas igrejas. Que não são numerosos. Que todo o padre conhece quase de cor. E que contêm todos os ofícios e orações que santificam neste mundo o homem e o tornam digno de ser um cidadão do Céu. Os livros litúrgicos ortodoxos são: o Típico, que contém as regras dos ofícios religiosos. O Leitourguikon, que contém os textos das sagradas e divinas liturgias. O Eucológio, que contém todas as orações de bênção e santificação. O Apóstolos, ou livro das Epístolas. O Evangeliário, que é o mais sagrado dos livros, pois nos seus caracteres impressos está encarnado o próprio Cristo. É por isso que o Evangeliário se encontra sempre sobre o altar. Jamais em qualquer outra parte. Depois há o Saltério (livro dos salmos), o Horologion (livro de horas), o Octóekhoi (livro dos oito tons), o Triódion, que contém os ofícios das dez semanas que precedem a Páscoa, o Penticostárion, que contém os ofícios da Páscoa ao Pentecostes, e o Dôdeca Ménes (livro dos doze meses do ano).
- Porque é que não amamos Deus se não amarmos os nossos inimigos? - perguntei. - Deus não é inimigo dos homens. Que relação pode haver entre o amor dos inimigos e o amor de Deus, que é nosso Pai e nos ama, pois ele é filantropo, ou seja, amigo dos homens? É como se disséssemos que aquele que não gosta de vinagre, seu inimigo, também não pode gostar de mel, de Deus, portanto.
Pobre padre Melquisedec! Hoje, julgaria uma crueldade fazer-lhe tal pergunta. Mas um padre é um homem que recebeu o Espírito Santo. É isso que o salva. E não os seus poderes humanos. Ou a sua ciência. Após terem recebido o Espírito Santo sob a forma de línguas de fogo, os Apóstolos foram capazes de falar línguas estrangeiras como os maiores poliglotas. Puderam travar discussões do mais alto nível filosófico, apesar da sua falta de instrução... O Espírito Santo tudo pode e nada teme. Assim, o padre Melquisedec, que nunca pusera a si próprio as questões que eu acabava de lhe pôr, respondeu-me:
- Há ali um livro, o Paterik. Vai buscá-lo. Levantei-me da cadeira. Agarrei no Paterik,
ou Geronticon, o Livro dos Padres, arrumado entre as traves e o tecto.
- Abre na página onde houver um pé de azedas - disse-me o padre Melquisedec. - Na página da esquerda, há uma explicação escrita pelo nosso santo padre Doroteu de Gaza, que te poderá esclarecer melhor que eu.
Abri o Paterik, que se assemelha aos outros livros ortodoxos. Compilação breve e completa de toda a doutrina, dos apotegmas, da espiritualidade e da tradição da fé cristã. Na página onde havia o pé de azedas, li o seguinte:
...Numa palavra: cuidai todos, cada um segundo as suas possibilidades, de vos unirdes uns aos outros. POIS QUANTO MAIS UNIDO SE
ESTÁ com O PRÓXIMO, MAIS UNIDO SE ESTÁ com
DEUS... Para que possais compreender o sentido destas palavras, vou dar-vos uma imagem tirada dos Padres: ". Imaginai um círculo traçado sobre a Terra, isto é, uma linha traçada com um compasso à roda de um centro. Chama-se precisamente centro ao meio do círculo. Aplicai o vosso espírito naquilo que vos digo. Imaginai que esse círculo é o mundo. O centro do círculo é Deus. E os diversos raios, as diferentes vias ou modos de vida dos homens. Quando os santos desejam aproximar-se de Deus, dirigem-se para o meio do círculo, e, à medida que se aproximam desse centro, vão aproximando-se uns dos outros, ao mesmo tempo que de Deus. Quanto mais se aproximam de Deus, mais se vão aproximando uns dos outros. E quanto mais se vão aproximando uns dos outros, mais se aproximam de Deus.
E assim compreendereis que o mesmo se dá em sentido inverso, ao afastarem-se de Deus, ao encaminharem-se para a circunferência. Nesse caso, é evidente que quanto mais se afastam de Deus, mais se afastam uns dos outros, e que, quanto mais se afastam uns dos outros, mais afastados ficam de Deus.
Tal é a natureza da caridade. Na medida em que nos encontramos no exterior e não amamos Deus, sentimo-nos distanciados do nosso semelhante. Mas se amarmos Deus, quanto mais nos aproximarmos dele graças à caridade, tanto mais estaremos unidos ao próximo pela caridade e quanto mais estivermos unidos ao próximo, tanto mais unidos estaremos a Deus (2).
- Compreendeste agora? - perguntou-me o padre Melquisedec. - Não pode haver filoteia,
* (2) Doroteu de Gaza: P. G., 88, col. 1696-B, C, D. *
que significa amor a Deus, sem haver filadelfia, que significa amor pelos irmãos, amor a todos os homens, filantropia.
- Mas será que somos irmãos dos assassinos? O Assassino de Jerusalém não é meu irmão - observei.
- Se não usardes de igual caridade com todas as criaturas humanas, jamais sereis um verdadeiro cristão (3). É verdade que o Assassino de Jerusalém e os outros assassinos e ladrões praticam o mal. Mas a caridade não se detém com o mal, a caridade desculpa tudo (4). Serão cegos os santos para que não vejam o pecado? E, contudo, não odeiam os pecadores, não os julgam, não se afastam deles. Pelo contrário, mostram-se conciliadores, exortam-nos, consolam-nos, cuidam deles como de um membro doente (5).
- Esforçar-me-ei de todo o coração por não odiar o meu inimigo, isto é, o meu primeiro e único inimigo, o Assassino de Jerusalém.
- Não odiar não significa amar (6) - disse o padre Melquisedec. - o mandamento de Cristo é categórico: Amarás o teu inimigo (7). Não foi que não se odiasse, mas sim que se amasse.
Passei toda a noite cheio de tristeza. A decisão de amar o Assassino de Jerusalém era superior às minhas forças. Eu ignorava que até
* (3) São Máximo o Confessor: P. G., 90, col. 917-A.
(4) São Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios, XIII, 6-7.
(5) Doroteu de Gaza: P. G., 88, col. 1693-A.
(6) São Máximo o Confessor: Centúrias sobre a Caridade, II, 49 e 50.
(7) São Lucas, VI, 27. *
mesmo os santos e os mártires sentiram essa impossibilidade antes de mim. São Máximo o Confessor, esse admirável mártir, esse sábio e alto funcionário de um império, que deixou que lhe cortassem a mão e a língua sem ter renegado a sua fé, escreveu: Apesar de todas as aparências, ninguém pode amar aquele que o faz sofrer... se não compreender verdadeiramente qual o plano do Senhor (8).
Não sentir ódio é difícil mas possível. Amar quem nos faz mal é impossível.
Durante a noite, acordei na minha loggia de tijolos quentes, sobre o coptor. Não devido a qualquer sonho, como na noite anterior. Havia luz no quarto do padre Melquisedec, onde um desconhecido falava com meu avô. Esse indivíduo acabara de entrar. Encontrava-se de pé, junto do leito do padre Melquisedec. Apesar de falarem em voz baixa para não me acordarem, ouvi distintamente as palavras que proferiam. As que o padre Melquisedec disse primeiro e as que o visitante nocturno disse depois.
- Não - dizia o padre.
- Tem de ser, padre Melquisedec, é absolutamente necessário que me dê guarida. Tenho de ficar em sua casa. De dormir aqui. De comer aqui. Tenho de ficar aqui escondido, por cima do coptor. Pode matar-me, que eu não sairei. Estou em sua casa. Aqui ficarei.
* (8) São Máximo o Confessor: P. G., 90, col. 916. *
- Não podes ficar - respondeu o padre Melquisedec. - Não!
- É por eu ser o Assassino de Jerusalém que não posso ficar em sua casa, padre?
- Não é por seres o Assassino de Jerusalém que tens de te ir embora. Mas sim porque não há lugar aqui para ti.
- Para assassinos como eu, só há lugar nas prisões durante a vida e no Inferno durante a eternidade... Já sei como isso é.
- Eu não te mando para a prisão nem para o Inferno, lonel - disse o padre Melquisedec.
- Ainda que sejas o Assassino de Jerusalém, não deixas de ser meu filho. Pois fui eu quem te baptizou. E ninguém te pode tirar o título de filho de Deus que eu te concedi graças ao baptismo e ao Santo e Grande Myron ao dar-te o nome de lonel. Apesar dos teus crimes, és feito à imagem de Deus e filho adoptivo do Senhor. O teu nome está e continuará a estar escrito no Céu. Não há ninguém nem nenhum crime que o possa apagar. Recuso-me a dar-te guarida, porque o lugar do coptor se encontra ocupado. E não tenho outro sítio onde te albergar.
- Ocupado por quem? - inquiriu o Assassino.
- Por Virgílio, o filho do padre Constantino, que tu tentaste matar, aqui há três dias, ao roubares o dinheiro do Quarto Alto do seu presbitério. Não vais querer que te convide a dormires com a criança cujo pai tentaste assassinar.
Não se pode impor a uma criança que durma com o assassino de seu pai. Não. Uma criança é um ser muito frágil. Nem mesmo a uma pessoa crescida se pode pedir que durma na mesma cama com o Assassino de Jerusalém...
- Perdão - disse o Assassino de Jerusalém.
- Não insisto mais. Não sabia que o Virgílio estava aqui. E que dormia no coptor. Ir-me-ei embora. Perdão.
- Há cólera ou peste na aldeia dele. As escolas fecharam. A mãe, quando por aqui passou com o pai ferido, saído do hospital, deixou-me o filho. Para que frequente a escola de Jerusalém. Enquanto a escola deles estiver fechada...
- Como vai o padre Constantino? - perguntou o Assassino de Jerusalém. Estava com uma voz diferente. Uma voz muito doce.
- Extraíram-lhe as balas que lhe meteste na pele. Ao disparares sobre ele com a tua maldita caçadeira... Mas vai melhor. Graças a Deus. Como foste tu capaz de tentar matar um padre?
- Graças sejam dadas a Deus pelas suas melhoras! - disse o assassino.
Calculei, sem que o visse, que ele se virara para o ícone e se persignava. Dando também graças a Deus por meu pai se encontrar melhor... Nessa altura, desfiz-me em pranto. Nunca me tinha passado pela cabeça que os assassinos pudessem rezar e chorar.
- Foi um acidente - disse o assassino. - Uma bala que ricocheteou e o feriu. E me feriu a mim também. A mesma bala. Olhe para a minha perna...
- E quem disparou? Foste tu, assassino! gritou o padre Melquisedec.
- Sim, padre, fui eu que disparei. Mas quando se tem uma arma na mão e se está cheio de medo, dispara-se. Ele meteu-me medo ao chegar de surpresa, barrando-me a porta. Foi então que eu disparei. Por medo. Para o intimidar. Não para o matar. Disparei para o chão.
-Isso não impede que ele se tenha salvo por milagre. Podia estar morto a estas horas... Morto por ti! Não me podes vir pedir agora que obrigue o Virgílio, uma pobre criança, a dormir ao lado de um homem que tentou assassinar-lhe o pai. Não. Não é possível. Tens que te ir embora e esconder-te em qualquer outro lado.
- Não, é claro que não é possível! - respondeu o assassino. Parecia desgostoso.
- Como é que se pode pedir a quem quer que seja que durma ao lado do assassino de seu pai? - perguntou o padre Melquisedec.
- Podes pedir-mo a mim, padre Melquisedec... - gritei, do coptor. - Eu convido-o a ficar. Pois é por minha causa que tu o mandas embora. Pode dormir no coptor, a meu lado. Eu sei que ele não queria matar meu pai. Disparou por medo. Foi meu pai quem mo disse.
Entrei no quarto. Estava ali o Assassino de Jerusalém. De pé. Um homem ainda muito novo, pálido e frágil. Um adolescente. É certo que tinha duas cartucheiras à volta do pescoço, cruzadas no peito. E também um grande revólver. Uma autêntica espingarda... Tinha um verdadeiro uniforme de assassino, de bandido. No entanto, não me metia medo. Era muito novo. E muito pálido. Tinha precisamente a mesma idade de mamã presbítera, minha mãe, de quem fora condiscípulo. Mas parecia muito mais novo. Parecia que envergara um travesti de bandido para o Carnaval. No entanto, e apesar de tudo, era realmente ele o Assassino de Jerusalém. O padre Melquisedec conhecia-o. Eu não sentia medo dele. Ó Assassino de Jerusalém não era meu inimigo. Convidando-o a ficar no presbitério e a dormir no coptor, a meu lado, não aumentava com isso a minha politeia. Não. Porque a politeia exige que amemos os nossos inimigos. Amarmos os amigos é normal. E era como amigo que eu o convidava a ficar. O Assassino de Jerusalém não era meu inimigo. Para ser totalmente sincero, eu, sem de tal me aperceber, tinha também interesse em ver de perto um assassino. Em falar com ele. E perguntar-lhe, de homem para homem, o que se não pode aprender nos livros. Por exemplo: Como e porque é que uma pessoa se transforma num assassino? Como é que uma pessoa se sente quando é assassino? Ele era uma vedeta entre os assassinos. Ele é que era o terrível Assassino de Jerusalém. Por cuja cabeça se oferecia a recompensa de um milhão. Podia perguntar-lhe o que me apetecesse. Porque não tinha medo dele. Ele não era mau.
O assassino olhou para mim. Depois procurou a aprovação do padre Melquisedec, que disse:
- Se o Virgílio não tem medo de dormir com o Assassino de Jerusalém, então podes ficar.
E assim ficou ele no presbitério. Em nossa casa. Comigo. Enquanto todas as polícias o procuravam.
À meia-noite em ponto, assistimos ambos, de joelhos, o Assassino de Jerusalém e eu, ao ofício dos mesonyktikon. No dia da ressurreição, todos nós, tanto os bons como os maus, sairemos do túmulo. Todos do mesmo modo. Ao som uníssono das trombetas dos anjos. Só depois do Julgamento se dará a separação. Mas, enquanto esperamos, estaremos lado a lado na ressurreição dos mortos, cujo ensaio geral é celebrado pelo padre Melquisedec. Como agora, neste momento. Enquanto esperamos pelo veredicto. E eu sei, sim, eu sei que todos os homens, absolutamente todos, só terão a sorte de escaparem às chamas do Inferno e à danação eterna, sejam eles santos ou assassinos, graças à misericórdia de Deus. Todos, sem excepção, são culpados e condenáveis perante Deus. Somente uns são menos culpados que outros. É uma diferença de grau. Mas a condenação a todos diz respeito. Nenhum homem poderá ser resgatado sem a misericórdia de Deus e a intercessão dos santos e dos anjos. Compreendi, pela primeira vez, que, teologicamente, entre santo e assassino só havia uma diferença quantitativa, tanto no que se refere aos pecados como às virtudes. Mas tanto o santo como o assassino terão que pleitear, no juízo final, a mesma culpa. Nem mesmo o maior santo pode pleitear uma não culpabilidade. Quando percebi isso, estendi a mão ao Assassino de Jerusalém. Chegáramos ao fim da cerimónia, do ensaio geral da ressurreição dos mortos. Então disse-lhe:
- Aqui, connosco, comigo e com o padre Melquisedec, estarás em segurança.
- E sobretudo com a ajuda do Altíssimo - disse o Assassino de Jerusalém.
Apercebi-me de que, apesar de o homem que tentara matar meu pai estar ali, eu não tinha ainda nenhum verdadeiro inimigo. Pois, a meus olhos, o Assassino de Jerusalém não o era. Era exactamente como esses terríveis soldados turcos que nos haviam massacrado em Rasboeni, no Vale Branco, na minha aldeia natal, que jamais tivéramos coragem para matar. Porque, apesar do seu ofício de carrasco, apesar do seu uniforme, o soldado turco podia ser um dos nossos irmãos, um desses bebés que havíamos dado aos ocupantes à guisa de imposto, de Pedomazoma.
Sempre preferimos o papel de Abel ao de Caim. Tais são as nossas preferências, tais são os gostos dos Romenos, ou seja, dos cristãos dos Cárpatos. Morrerem, a terem de matar o seu irmão. Tal como os Turcos, e os Judeus, o Assassino de Jerusalém não conseguira ainda proporcionar-me esse tal inimigo de que eu tanto necessitava para me tornar santo e poder inserir um São Virgílio no calendário. Continuei sempre à procura de um só inimigo que fosse. Um autêntico. Não qualquer irmão meu disfarçado com um uniforme inimigo. Como os Turcos. Como o Assassino de Jerusalém. Como os judeus que me chamavam anjo quando eu julgava que me estavam a injuriar...
Longas foram as minhas pesquisas. Pedi conselho ao Assassino de Jerusalém: Como é que poderia arranjar um inimigo? E amá-lo. A fim de ganhar a santidade.
O Assassino de Jerusalém estava numa boa situação para me informar a esse respeito. Só tinha inimigos na Terra. Ao passo que eu, então, não tinha um único. De facto, havia uma grande injustiça no meio de toda esta questão. Como em todas as questões terrenas. Alguns têm tudo. Outros nada.
A viagem entre as duas Jerusaléns
VIM esconder-me aqui, no presbitério, porque não me sinto em segurança em parte nenhuma - explicou lonel Malai.
-Vais ficar muito tempo? - perguntei, antes de me tornar a deitar.
- Espero bem que não - disse ele. - Tenho um bilhete de comboio. Mas o desfiladeiro da Panaghia está coberto de neve. Fechado à circulação. Quando abrir, partirei...
Parecia feliz ao dizer que partiria.
O Assassino de Jerusalém tinha entre vinte a vinte e cinco anos. No entanto, era já bastante longa a sua carreira de bandido, de assassino, de salteador de estrada. Era considerado pelos guardas da região como o inimigo público número um. Havia já muito tempo que tinham ordem de disparar logo que o encontrassem. De o abaterem como um animal selvagem.
- Desde que a minha cabeça foi posta a prémio e que o Estado prometeu um milhão a todo aquele que me entregasse vivo ou morto, o maior perigo, agora, para mim, já não é a polícia. Nem a guarda. Mas sim os mais honrados cidadãos. Aqueles que só pensam em amealhar dinheiro. Aqueles que só vivem para isso. Esses olham atentamente para toda a gente que vão encontrando pelo caminho. Perguntando para consigo próprios se não será aquele o Assassino de Jerusalém. Para o entregarem à polícia e embolsarem o milhão. Não tenho sítio onde me esconder. O padre Melquisedec é a única pessoa incapaz de vender o Assassino de Jerusalém. Incapaz de vender seja que homem for. Jamais. Foi essa certeza que me fez dirigir para aqui. Bastava entrar em Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, aqui, na minha terra natal, para me arriscar a ser reconhecido por toda a gente. Até mesmo os meus seriam capazes de me venderem. Já não tenho pai nem mãe. Mas se os tivesse, teria medo de ir vê-los... Por causa desse tal milhão. Porque o dinheiro é o olho do Diabo...
O Assassino de Jerusalém chorava. Como uma criança. Porque mal saíra da infância. Era ainda um adolescente.
- Sim, o dinheiro é o olho do Diabo... - repetiu ele. - O que me surpreende é pagarem pela minha cabeça mais do que pagaram pela cabeça de Cristo. Já pensaste nisso? Um sacrilégio! lonel Malai vale mais do que Cristo!... Na bolsa. Porque Judas não recebeu um milhão. Mas aquele que me vender a mim, lonel Malai, recebê-lo-á. Exonerado de taxas. Um milhão, por inteiro. O que não chega a ganhar nas nossas montanhas uma família inteira durante três gerações...
Tinha pena de lonel Malai. Uma vez livre do seu arsenal - facas, cartucheiras, granadas, espingarda, pistola-, era um homem como outro qualquer. Um pobre homem cansado. E então contou-me a sua história. Antes de se deitar. Pois não queria, por nada deste mundo queria, que eu tivesse medo dele. Nem sequer má impressão a seu respeito. Se eu lhe esmigalhasse um dedo com um martelo, isso far-lhe-ia menos mal do que se eu mostrasse medo dele. Ou pusesse em dúvida aquilo que me contava. Há anos que vivia acossado por toda a gente. Privado de ternura, de confiança, de simpatia. E isso é pior do que ter falta de água e de alimento. Morre-se de indigência. De inanição. Porque a ternura e a simpatia também são um alimento. Dão força às pessoas. Mais do que a comida. Mais do que a bebida. lonel Malai, o Assassino de Jerusalém, há anos que não tinha uma gota de ternura, de simpatia, de confiança. Estava sequioso. Esgotado por não dispor de afecto. Mais esgotado por isso do que pelo resto.
- O último amigo que tive foi o Carabina, o Skypetar - disse Malai. - Desde que ele morreu que eu vivo como um animal. Sozinho. Num terror. Desejoso que um olhar humano pouse sobre mim, segundos que seja. Como um raio de sol... Como agora o teu olhar. Porque eu sei que tu não me odeias. Não é verdade que não me odeias?
- Não - respondi.
- Não tens nenhuma razão para me odiar. Não quis matar o teu pai. Pelo contrário. Queria evitar-lhe aborrecimentos. Antes de partir, disparei alguns tiros. Não só por medo. Mas também para que o não acusassem de não ter sabido defender o dinheiro do algodão. Não sabia que o patamar do vosso presbitério era de pedra. Disparei para lá. Para não ferir o teu pai. Juro-te que ignorava que o patamar era de pedra e não de madeira. Foi por isso que feri o teu pai. Bem sei que podia ter morrido. Mas eu também fiquei ferido. Olha. - Mostra-me a perna. E prossegue: - E eu não posso ir ao médico. Se a ferida infecta, posso morrer. Acreditas agora que não quis matar o teu pai? Teria também morrido. Visto que só disparei uma bala.
- Na perna de meu pai havia várias balas-? informei. - Foi o que a mamã presbítera me disse.
- É a mesma bala, uma bala que explode em estilhaços. Uma bala americana. Não acreditas no que te digo? Nunca na minha vida matei ou feri quem quer que fosse. Não sou um assassino, eu, o Assassino de Jerusalém...
Quando se é o mais célebre assassino da região, mesmo perante uma criança torna-se arriscado proferir tais afirmações.
Calei-me. Não o contradisse. Mas estava convencido de que ele mentia. Que tudo quanto dissera era mentira. Como é que ele me vinha dizer, ele, o Assassino de Jerusalém, ele que, um ano atrás, tinha assassinado o estalajadeiro da minha aldeia, que não ferira nem matara ninguém? Reparou na minha careta involuntária. Viu no meu olhar que não acreditava nele. Ficou tomado de desespero. Pois era vital, para ele, que alguém acreditasse em si. E mostrasse ter confiança nele.
- Se tu, que és uma criança pura como um anjo; se tu, que possuis um grande coração, pois foste tu que disseste ao padre Melquisedec para me albergar aqui; se até mesmo tu não acreditas em mim, quem me acreditará? - perguntou Malai.
- Se não foste tu quem matou o estalajadeiro Mocan, então quem foi? Encontraram as tuas impressões digitais e a marca dos teus sapatos no lugar do crime. Na estalagem. E a marca do teu sangue. Sabes isso perfeitamente.
- É verdade que estava presente. Que participei no roubo da estalagem. Mas não fui eu quem matou o estalajadeiro Mocan. Foi o Skypetar... O Carabina. Foi ele...
- Era teu amigo e tu acompanhava-lo! Ajudava-lo a matar. És cúmplice do assassínio.
- Não me julgues como os demais - implorou.
- Eras cúmplice do Skypetar. Estavas a seu lado quando ele cometeu o crime. És tão culpado como ele. Ambos mataram o estalajadeiro. E todos os outros que morreram às vossas mãos.
- Quem matou foi o Skypetar. Não eu. Nunca. Nunca fiz mal a ninguém!
A história do assassino era simples. Era um órfão de Jerusalém. Seu pai morrera de pelagra, algures, nas montanhas de Pipirig, a montante do Hosanna. No Inverno. Ao cortar as árvores. Como fazem todos os habitantes de Jerusalém, desde que deixaram de ser escravos do santo mosteiro de Jerusalém. Sua mãe morrera tuberculosa. lonel Malai frequentara a escola de Jerusalém. A mesma escola onde eu agora andava. A escola é obrigatória, tal como o serviço militar. Quando acabou de estudar, começou a trabalhar à jorna. Era um acatista. Um não-sentado. Um indivíduo que fica sempre de pé. À espera de que o aceitem como trabalhador agrícola (1). Depois, foi fazer o serviço militar. Como voluntário. Antes de ter sido chamado. Para abreviar a miséria da sua juventude.
- Foi na caserna que eu encontrei o Carabina, o Skypetar... Era um tipo formidável. Deixou-me logo impressionado. Era natural do Pindo. Um montanhês. Como eu. Mas as montanhas imensas que dominam a Sérvia, a Bulgária, a Grécia, a Albânia e o Mediterrâneo são montanhas selvagens. Inóspitas. Duras como os homens que as habitam. O Skypetar era um duro. Tomava sempre a minha defesa. Era meu amigo. Assim que teve uma licença, veio até aqui, a Jerusalém. Viu a nossa aldeia. Falou
* (1) V. Gheorghiu: A Condottiera. *
com o padre Melquisedec. Assistiu à sagrada e divina liturgia. Confessou-se e comungou. Era, de facto, um duro. Mas tinha um coração do tamanho das montanhas. O seu coração de homem chegava ao céu, era realmente grande. Nunca vi coração maior que o do Carabina. Depois do ofício, disse-me:
- Na tua terra, em Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, não há nada para fazer. Não tens terra, nem casa, nem família. Nada possuis. Queres vir comigo para a América?
"-Para a América? - perguntei. - Nós, os acatistas, os não-sentados, só viajamos aquando do serviço militar. Quando vamos de comboio, gratuitamente, para o local em que se encontra o quartel para onde fomos destacados. De outro modo, nunca viajamos. Nem antes nem depois do serviço militar. Tu mesmo verás isso um dia, mais tarde... Os pobres são como as plantas que ficam agarradas à terra pelas raízes. Ao solo. As raízes dos pobres, dos não-sentados, dos acatistas, são a miséria, a falta de dinheiro. A falta de tudo. Por isso, quando ouvi o Skypetar, o Carabina, falar-me de irmos juntos para a América, comecei por pensar que estava a zombar de mim. A nossa mais longa viagem, a mais longa viagem dos Moldavos, é a que fazemos no fim da nossa vida terrestre, quando deixamos a Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna para nos encaminharmos para a Jerusalém Celeste. Mas o Céu não se encontra muito distante das nossas montanhas. A cidade de guarnição onde fiz o meu serviço militar, Craiova, fica mais longe de Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna que a Jerusalém lá de cima. Levávamos três dias e três noites de comboio.
"-Conheço bem a América - disse o Carabina. - Tenho lá família. Parentes afastados."
Era verdade. Ele recebia correspondência dos Estados Unidos. Tinha família do outro lado do oceano.
"-Se quiseres vir comigo, eu levo-te. Vais ver que na América hás-de ser feliz. Vais ver o que é um homem feliz! Porque, cá na Terra, só é possível ser-se feliz na América! É a terra da abundância! Da felicidade! O verdadeiro paraíso terrestre. Quem não vive na América, não sabe o que é a felicidade neste mundo.
Decidimos, portanto, partir para a América. E vivermos uma vida feliz. Sonhávamos noite e dia com a América.
Os infortúnios de Skypetar, a sua morte, a carreira de bandido e de salteador de lonel Malai foram fruto do seu sonho: viverem felizes na Terra, irem para a América, tornarem-se americanos. Porque o sonho é como a vela de um barco. Ajuda-nos a trabalhar, a progredir na vida. Exactamente como as velas ajudam uma embarcação a singrar nos mares. Mas se as velas são demasiado grandes para a força e as dimensões do barco, então caminha-se para o naufrágio. Para a morte. Os sonhos têm de ser proporcionais às nossas forças. Ao nosso peso. Ao nosso valor. E a América era um sonho grande de mais para os dois amigos, para Skypetar e para Malai, que ainda mal haviam acabado o serviço militar.
- Os Americanos - contava-me Skypetar - são um povo rico. Um povo formidável. Inventaram toda a espécie de máquinas. Para todos os trabalhos. Usam coisas que não existem em mais parte nenhuma. Coisas que o homem só possuirá no Paraíso. Todos os americanos são ricos e felizes. Todas as suas estradas se parecem com a via láctea: brancas, direitas, infinitas... Andam todos de carro. O céu está sempre cheio de aviões. Toda a gente voa. Voa mais que os pássaros... Se nós formos para a América, viveremos como eles.
Fiquei a saber, pela boca do Assassino de Jerusalém, e com a idade de sete anos, que os Americanos haviam criado uma civilização tão extraordinária, tão fabulosa, que mesmo nos contos de fadas nada havia que se lhe assemelhasse. A partir do momento em que possuem uma tal civilização e um tal conforto, é natural que sejam como as crianças que, por causa dos seus maravilhosos brinquedos, se recusam a ir para a cama, para deles poderem aproveitar o máximo. É assim que os Americanos andam sempre cá por fora. No meio do mundo maravilhoso que para si próprios construíram. No seu país de maravilha. Nas estradas. Nos aeroportos. Nos restaurantes. Nos teatros. Nos cinemas. Servindo-se o mais possível das suas máquinas da felicidade. E, depois de terem andado unicamente cá por fora, já não têm vontade de voltar ao interior. À sua vida interior. À que existe no coração e na alma de todos os homens. Porque o que eles têm cá fora é incomparavelmente mais maravilhoso. Vivem como os ciganos, que só acampam na margem das cidades. Vivendo sempre assim, no exterior, perderam o hábito de estar sós. O que lhes trouxe um terrível flagelo. Eles, que tudo conseguem, deixaram de poder ser pastores. Porque um pastor é um homem que tem de se contentar com a sua própria companhia. Viver consigo mesmo. com os seus pensamentos. Os seus sonhos. Os seus sentimentos. Isolado do mundo exterior. Ora um americano isolado da civilização, do mundo visível das máquinas e do conforto, isolado da sua extraordinária sociedade, fica mais morto que um homem cuja cabeça jaz decepada do corpo. Para os Americanos, o mundo exterior é mais importante que a sua própria carne. Ele faz as vezes dessa carne. Tudo neles é exterior e visível. No seu íntimo tudo é secura. Vazio. Ora como é que se há-de viver no meio do vazio? Negligenciando a vida interior, a vida da alma, eles acabaram por perdê-la. Se um homem deixa de servir-se de algum dos seus órgãos, esse órgão acabará por desaparecer. E se um americano ficar abandonado, a sós consigo mesmo, será pior que um homem abandonado no meio de um deserto. A sós consigo mesmo, um americano ficará tão aterrorizado com o vazio do deserto e do nada que descobriu dentro de si que começará a beber. Para cair como morto e deixar de se sentir só no meio do seu próprio deserto. Necessita do exterior para viver. De contrário está perdido. Isso faz lembrar aquela exclamação posta por Jeremias na boca da Judeia, que acabara por perder todas as suas riquezas interiores por ter ambicionado as do exterior: O meu olhar trouxe a devastação à minha alma... (2) Ao cobiçar os bens visíveis, perdeu as suas virtudes invisíveis... (3) Tal como Eva: A mulher viu que o fruto da árvore era bom para comer, agradável aos olhos e deleitável à vista. E tirou o fruto dela e comeu-o (4).
Uma vez atingido tal estádio, esses mestres absolutos de todas as técnicas viram-se sem pastores. Ora uma civilização necessita de carneiros. Por causa da lã, da carne, do queijo. Não há vida sem carneiros. Mas como criar carneiros não tendo pastores? Então os Americanos importam a peso de oiro pastores do estrangeiro. Ser pastor significa, com efeito, ser um homem que, sozinho, a sós consigo mesmo, é feliz. Visto que todas as riquezas de um pastor residem em si próprio. Os melhores pastores do mundo, e praticamente os únicos hoje em dia (porque a raça dos homens ricos interiormente está prestes a desaparecer da face da Terra), os melhores pastores, os únicos homens que
* (2) Jeremias: Lamentações, iII, 5 i.
(3) São Gregório o Grande: Os Vícios Principais, II, 1.
(4) Génese, iII, 6. *
possuem uma vida interior, encontram-se nas montanhas. Sobretudo no País Basco, nos Pirenéus, no Pindo e nos Cárpatos. Por conseguinte, o Governo americano importa os pastores dessas montanhas. As únicas que ainda podem fornecer alguns pastores ao mundo. Assim, lonel Malai e Skypetar decidiram ir para os Estados Unidos como pastores.
O problema era chegarem à América. Arranjaram os passaportes. E todos os papéis necessários para a viagem. Mas o que lhes faltava era o dinheiro com que pagar o transporte. Foram ambos a pé até ao porto de Constantza, no mar Negro. Trabalhando à jorna pelas quintas para conseguirem tecto e alimento. Em Constantza, tentaram embarcar como marinheiros. Não conseguiram. Tentaram embarcar clandestinamente. Foram apanhados. Condenados. Estiveram presos algumas semanas. Após o que foram recambiados para as suas terras. De prisão em prisão. Algemas nos pulsos. As humilhações, as injustiças, a brutalidade e as violências de que foram vítimas por parte dos polícias que os tratavam como se fossem autênticos forçados, acabaram por endurecê-los, por martirizá-los, por torná-los indiferentes.
Ao chegar a Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, lonel Malai ostentava ainda as marcas da pancada que havia apanhado. Os sinais das cadeias. Das torturas. Como um forçado. Envelhecera uns vinte anos. E o coração endurecera-lhe. De revolta. De humilhação.
Quanto a Skypetar, abandonou a sua aldeia, o seu domicílio, para onde os guardas o haviam levado, e um belo dia apareceu em Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna.
- Vamos pilhar uma cooperativa e, com o dinheiro que obtivermos, pagaremos a viagem para a América - propôs o Carabina. Já trazia consigo a arma que lhe valera a alcunha.
- Roubar não é bonito - respondeu lonel Malai. - É um pecado.
lonel Malai, natural de Jerusalém-à-Beira-do-Hosanna, era cristão. Gostaria de deixar a sua aldeia para ir viver na América. Para ser feliz na Terra. Mas não queria deixar de poder entrar, um dia, na Jerusalém do Alto, onde iria viver por toda a eternidade.
- Isso de pecados são balelas - disse Skypetar. .. - É verdade que não se deve roubar. Mas se roubarmos o dinheiro do Estado, das cooperativas, não cometeremos um roubo. Roubo é quando se tira o que pertence ao nosso próximo. Mas o Estado não é o nosso próximo. O Estado não é nada. É uma ficção. Ó Estado, teoricamente, somos nós. Por conseguinte, se tirarmos dinheiro dos cofres do Estado, é como se o tirássemos das nossas próprias algibeiras. Não é roubo. Deus não considera isso um pecado. O Decálogo não faz qualquer referência a isso.
Skypetar falava admiravelmente. Era um sedutor. Um condutor de homens. Conseguiu convencer lonel Malai que continuariam puros de todo o pecado, mesmo depois de roubarem os cofres do Estado. Das cooperativas. E assim fizeram. Houve tiroteio. Alguns guardas ficaram feridos. Outros, que os haviam apanhado de surpresa, foram mortos. Mesmo assim ainda não possuíam a quantia necessária. A pilhagem da estalagem e o assassínio do estalajadeiro Mocan desencorajaram lonel Malai. Mas era já demasiado tarde. Foram detidos. Evadiram-se. Matando um guarda. Mais tarde, Skypetar foi abatido pelos guardas. lonel Malai ficou sozinho. Atribuíram-lhe todos os crimes cometidos por Skypetar. Eles actuavam sempre em conjunto. Agora que Skypetar morrera, lonel Malai, conhecido por toda a parte como o Assassino de Jerusalém, herdara tudo: armas, cartucheiras, dinheiro, e também os crimes todos, que lhe eram agora imputados.
- Eu, com as minhas mãos, nunca -matei nem feri ninguém - disse-me. - Só passei a usar armas depois de Skypetar ter morrido... Enterrei-o na floresta. E fiquei com tudo o que lhe pertencia. Porque ele, uma vez morto, já não precisava de nada. Nem da carabina. Nem das cartucheiras. Nem do dinheiro. Fiquei com tudo. E enterrei-o sozinho... Quando chegar à América hei-de mandar dizer um requiem por alma do pobre Skypetar...
- Mas o dinheiro do algodão, porque o roubaste?
- Faltava-me ainda dinheiro. Como ando perseguido, já não posso ir a Constantza apanhar o barco para a América. Decidi partir de comboio. Faltava-me o dinheiro do bilhete até Viena. Mas o desfiladeiro da Panaghia está coberto de neve e os comboios pararam. Andei vários dias sem saber onde me meter. Tinha de esperar que o desfiladeiro ficasse desimpedido. Estou ferido. E não posso ficar no meio da floresta, com o frio que faz. Se entrar em qualquer casa, logo me denunciam. Porque a minha cabeça vale um milhão. Então decidi vir até aqui, sem saber que tu também cá estavas. Estou-te grato por não me guardares qualquer rancor. Foi por infelicidade que feri o teu pai. Não foi por querer. Acreditas no que eu te digo, que nunca feri nem matei ninguém?
- Se a polícia te apanha, serás condenado por assassínio. Por vários assassínios!... - disse.
- Espero poder passar o desfiladeiro! - respondeu Malai. - A polícia não me há-de apanhar!
Ainda agora começara o Inverno. Noutros sítios ainda era Outono, ainda se estava nas vindimas. Mas aqui já caía neve. Os desfiladeiros estavam fechados ao tráfego. lonel Malai, o Assassino de Jerusalém, teria de ficar bastante tempo ainda na nossa companhia. Não me desagradava passar o Inverno ao lado do Assassino de Jerusalém. E dormir com ele na loggia. Mas receava pela sua vida. Duplamente. Primeiro, porque toda a aldeia o conhecia. Não tardaria a saber-se que se encontrava no presbitério. Além disso, estava gravemente ferido. Pela mesma bala que quase matara meu pai. Mal podia andar. Não era possível curar-se sem os cuidados do médico. Mas não se podia ir consultar nenhum médico. O pobre Assassino de Jerusalém encontrava-se numa situação desesperada. Era o primeiro inimigo a sério que o Céu me enviava. Porém, ao dormir a seu lado, no coptor, chegara à conclusão de que ele era um homem semelhante a mim. O assassino era meu amigo. E não um inimigo.
Gostava dele. Sentia pena dele. Era um homem que, devido à miséria e à pobreza, queria ir até à América, como pastor, visto que possuía uma vida interior. Como toda a gente da montanha. Partiu daí a pouco tempo. De um dia para o outro. Deixando algumas palavras escritas, onde dizia que atravessaria a montanha a pé. Não podia esperar pela Primavera.
Julgo que lonel Malai, o Assassino de Jerusalém, realizou o seu sonho de se tornar pastor na América. E penso que, às maravilhas da civilização americana, preferirá as maravilhas que alberga na sua alma. Será, portanto, um bom pastor. E um bom cidadão da Jerusalém do Alto. Se o não- é já. Pois, entre a Jerusalém deste mundo e a Jerusalém do outro, muitos perigos se lhe deverão ter deparado.
Quanto a mim, chorei quando ele partiu. No Céu me contará como passou a pé, ferido como estava, o desfiladeiro da Panaghia. E eu continuava à espera do meu verdadeiro inimigo.
E eis que hoje, quase meio século decorrido, ainda persisto na decisão de santificar o belo nome de Virgílio. Estudei Teologia. Sou padre. Como os meus antepassados. Como convém a um verdadeiro descendente dos Grandes Scobay. O meu mundo, o mais maravilhoso de todos, continua a ser o daqueles que são capazes de ficar a sós consigo mesmo sem com isso se aborrecerem. Ao contrário dos Americanos. Sou como aqueles que podem vir a tornar-se pastores. Uma raça em vias de extinção. É que o mundo exterior oferece demasiadas maravilhas. Tudo nos convida para o exterior. Quanto à santificação do nome de Virgílio, continua a parecer-me que poderei consegui-la. Sei, como já o sabia aos sete anos, que, para nos tornarmos santos, é necessário amarmos os nossos inimigos. E agora não são os inimigos que me faltam. Tenho inúmeros. Tantos como a areia do mar. Verdadeiros inimigos. Terríveis inimigos. Que me espiam noite e dia de todos os lados. Acho-me quase exclusivamente rodeado de inimigos. Mas, apesar do seu número, e dos esforços que faço por amá-los, encontro-me em ponto morto, sem avançar na senda - na politeia da perfeição espiritual que levará à deificação e à santificação do nome de Virgílio. É que os meus inimigos são aqueles que mais serviços me prestam neste mundo. Nenhum amigo me prestou, nem de longe, os serviços que me prestam os meus inimigos. Graças a eles, que de todos os lados e a todos os momentos me espiam, vivo sempre em estado de vigilância.
Graças aos meus inimigos, vejo-me obrigado a reduzir, tanto quanto possível, as minhas faltas, os meus pecados, os meus erros. Tudo o que de bom consegui durante a vida fazer neste mundo aos meus inimigos o devo. Se não cometi erros demasiado graves, foi graças aos meus inimigos, que tinham o olhar assestado em mim. Vi-me obrigado a prestar atenção a cada passo. A partir do momento em que todo o bem que fiz sobre a Terra se deve ao encarniçamento dos meus inimigos e à sua animosidade contra mim, só gratidão eles me podem inspirar. É normal ficarmos gratos àqueles que nos ajudam a fazer o bem e a evitar o mal. Estou, pois, infinitamente grato aos meus inúmeros inimigos. Confesso que sem eles nada de bom poderia ter levado a cabo. E todas as faltas, todos os erros, todos os pecados que não cheguei a cometer, tudo isso o devo aos meus inimigos. Pois eles não perdoam, como acontece com os amigos. Estou-lhes, por conseguinte, duplamente grato por me terem ajudado e continuarem a fazê-lo, noite e dia, mercê da sua impiedosa vigilância. Não posso, portanto, odiá-los, visto terem sido eles que me prestaram, e prestarão, até ao fim dos meus dias, os maiores serviços, aqueles que nenhum amigo me poderá prestar!
Um facto é certo, pois. Não me é possível, logicamente, odiar os meus inimigos. Combato-os, é certo. Mas não alimento em relação a eles qualquer sentimento de ódio.
Não basta, todavia, não termos ódio aos nossos inimigos. Para santificarmos o nosso nome de cristão, temos também que os amar. Tenho a certeza de que amo plenamente, de todo o coração, todos os meus inestimáveis inimigos. Todos. Sem os quais estaria perdido. No entanto, eles inspiram-me um amor interessado. E não é esse o verdadeiro amor cristão. Esse deverá ser espontâneo, desinteressado, gratuito.
Chego às vezes a persuadir-me de que seria capaz de amar os meus inimigos, mesmo que eles não fossem para mim tão preciosos colaboradores! Mas logo sou assaltado pela dúvida. Em matéria de amor, não existem certezas. Nunca o homem sabe com precisão se realmente ama ou se apenas crê amar.
Mesmo no banal amor terreno entre um homem e uma mulher se acredita de boa fé que se ama. Jura-se um amor verdadeiro e eterno. E na realidade não passa de um engano. Tem-se a ilusão de amar.
Só temos duas maneiras de poder provar o nosso amor. Primeiro: darmos a vida pelo ser que amamos; a segunda, a indubitável prova, é a de perdoarmos aos nossos inimigos, abençoando-os e rezando por eles no momento em que nos matam. Como fez Cristo. Como o fizeram inúmeros mártires. As palavras que Cristo pronunciou na cruz, antes de entregar a alma, representam para nós uma certeza. Cristo amou os seus inimigos. Perdoou-lhes. Rezou por eles. Cristo é santo.
Eu vivo no exílio há um quarto de século, rodeado por todos os lados pelos meus inimigos. Como um barco rodeado de água. E, tal como o marinheiro tem a certeza de que os seus restos terrenos não serão sepultados em terra mas lançados ao mar, assim eu tenho a certeza de que acabarei os meus dias às mãos dos meus inúmeros, dos meus implacáveis inimigos. Mas no meu tempo já não se crucifica, como no tempo de Cristo, numa praça pública, fora da cidade, perante a multidão que assiste ao suplício. Já não se lapida, como foi lapidado Santo Estêvão. Já não se enforca em público. Já não nos lançam às feras, à arena, perante milhares de espectadores. Nos nossos dias, matam-nos à distância. Secretamente. Sem deixar vestígios. No momento preciso em que os meus inimigos me tirarem a vida, é que eu poderei saber exactamente se os amo. E não antes. Nessa altura, porém, ninguém será testemunha. Excepto Deus, que está em toda a parte. Só ele será testemunha da minha morte. Só ele verá se eu amo ou não os que me matarem.
Amo Deus porque ele é meu Criador. Meu Pai. Meu Supremo Bispo. Mas amo-o, sobretudo, porque será ele a única testemunha da minha morte. Só ele saberá se eu realmente amo os meus inimigos e se lhes perdoo o terem-me matado. Porque assim o decidi, desde a idade de sete anos, por não haver um São Virgílio no calendário e por ter vivido privado da minha festa onomástica.
Mas o fim desta aventura, esse nenhum homem o conhecerá. Manter-se-á o suspense. Só Deus ouvirá, da minha própria boca, no momento em que exalar o último suspiro, se amo ou não os meus assassinos. Se mereço a glória com que sonho. A maior glória do homem.

 

 

                                                                  Virgil Gheorghiu

 

 

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