Entre a faixa prateada da manhã e a faixa verde cintilante do mar, o barco parou em Harwich e largou uma multidão de pessoas que pareciam moscas, entre as quais o homem de que vamos seguir os passos e que não dava de todo nas vistas, nem desejava fazê-lo. Não havia nele nada de notável, excepto um igeiro contraste entre a alegria do seu traje domingueiro e a solenidade pública do rosto. O seu vestuário era composto de um casaco leve cinzento pálido, um colete branco e chapéu de palha prateado com uma fita cinzento-azulada. A cara magra parecia morena por contraste e terminava numa curta barba preta, que tinha aspecto de espanhola e que fazia lembrar uma gola do período isabelino. Fumava um cigarro com a gravidade de um ocioso. Não havia nele nada que sugerisse que o casaco cinzento escondia um revólver carregado, que o colete branco encobria um cartão de polícia e que o chapéu de palha cobria uma das mais poderosas inteligências da Europa. Porque este era Valentin em pessoa, o chefe da polícia de Paris e o mais famoso investigador do mundo. Vinha de Bruxelas para Londres, para realizar a maior captura do século.
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Flambeau estava em Inglaterra. A polícia de três países tinha localizado o grande criminoso desde Gand até Bruxelas, de Bruxelas até ao Cabo da Holanda. Conjecturava-se que ele se aproveitaria da infamiliaridade e da confusão do Congresso Eucarístico que então se realizava em Londres. Provavelmente, viajava como sendo um qualquer clérigo menor ou secretário relacionado como Congresso. Mas é claro que Valentin não podia ter a certeza. Ninguém podia ter a certeza quanto a Flambeau.
Tinham-se já passado muitos anos desde que este colosso do crime, de repente, cessara de manter o mundo em agitação e quando cessara, como era costume dizer-se, depois da morte de Roland, houve uma grande acalmia na face da terra.
Mas nos seus melhores dias (quero dizer, é claro, nos seus piores) Flambeau era uma figura da mesma estatura do Kaiser e tão internacional quanto este. Quase todas as manhãs os jornais noticiavam que ele escapara das consequências de um crime extraordinário para cometer outro. Era um gascão de altura gigantesca e de grande ousadia física e contavam-se as histórias mais extraordinárias das suas explosões de génio atlético: como virara o juge d'instruction de pernas para o ar e o pusera em cima da cabeça, para "refrescar as ideias"; como correra pela rua de Rivoli fora com um polícia debaixo de cada braço. Ele próprio afirmava que a sua fantástica força física era geralmente utilizada em cenas destas sem derramamento de sangue mas, no entanto, pouco dignas. Os seus verdadeiros crimes eram sobretudo roubos engenhosos e indiscriminados. Mas cada um dos seus roubos era quase um novo pecado e só por si daria uma história. Era ele que dirigia a Fábrica de Lacticínios Tirolesa em Londres, sem fábrica, sem vacas, sem carros, sem leite, mas com um milhar de subscritores. Fornecia-os através da simples operação de transportar as pequenas vasilhas de leite das portas das pessoas para as portas dos seus próprios clientes. Era ele que tinha mantido uma inexplicável correspondência íntima com uma jovem de quem todo o correio fora interceptado por meio do extraordinário estratagema de fotografar as suas mensagens em tamanho infinitamente pequeno nas lâminas de um microscópio. Uma enorme simplicidade, no entanto, caracterizava muitas das suas experiências. Dizia-se que, a altas horas da noite, tornara a pintar todos os números das' portas de uma rua apenas para fazer cair o viajante numa armadilha. Não há qualquer dúvida que ele tivesse inventado uma caixa de correio portátil que colocava nas esquinas de subúrbios tranquilos na eventualidade de desconhecidos deitarem nela vales postais. Finalmente era conhecido como sendo um surpreendente acrobata: apesar da sua enorme figura era capaz de saltar como um gafanhoto e de desaparecer no topo das árvores como um macaco. Por isso o grande Valentin, quando se dispusera a encontrar Flambeau, estava perfeitamente consciente de que as suas aventuras não terminariam quando o encontrasse.
Havia uma coisa que Flambeau, apesar de toda a sua habilidade em disfarçar-se, não podia esconder: era a sua altura excepcional. Se o olhar penetrante de Valentin tivesse encontrado uma vendedeira de maçãs alta, um granadeiro alto, ou até uma duquesa bastante alta, poderia tê-los prendido imediatamente.
Mas em todo o seu percurso não havia ninguém que pudesse ser um Flambeau disfarçado, tal como um gato pudesse ser uma girafa disfarçada. Ele já se assegurara acerca dos passageiros do barco e as pessoas encontradas em Harwich, ou na viagem, limitavam-se comsegurança a seis. Havia um funcionário dos caminhos-de-ferro, baixo, que viajava até ao término, três hortelões bastante baixos que tinham entrado duas estações depois, uma senhora viúva muito baixa que seguia viagem vinda de uma^ pequena cidade do Essex e um padre católico muito baixo vindo de uma pequena aldeia do Essex. Ao chegar a este ultimo caso, Valentin desistiu e quase desatou a rir. O padre baixinho era a essência dessas planícies de Leste: tinha uma cara tão redonda e obtusa como um espesso pudim Norfolktinha os olhos tão vazios como o mar do Norte; tinha vários embrulhos de papel pardo que era incapaz de reunir. O Congresso Eucarístico tinha certamente destacado da sua estagnação local muitas destas criaturas, cegas e sem defesa, como toupeiras desenterradas. Valentin era um céptico, no estilo severo de França, e não tinha amor nenhum pelos padres Mas podia ter pena deles e este podia ter provocado pena em qualquer pessoa. Tinha um guarda-chuva grande e muito gasto, que caia constantemente para o chão. Parecia não saber qual era a extremidade certa do seu bilhete de ida e volta. Explicava a toda a gente na carruagem, com uma ingenuidade apalermada que tinha de ter cuidado, porque tinha uma coisa de prata verdadeira "com pedras azuis" num dos seus embrulhos de papel pardo. A sua singular mistura de insipidez provinciana com uma simplicidade religiosa divertia constantemente o francês até que o padre chegou "nem se sabe como" a Stratford comtodos os seus embrulhos e voltou para trás, para vir buscar o guarda-chuva. Quando ele fez isto, Valentin até teve vontade de o prevenir para não tomar conta do objecto de prata falando dele a toda a gente. Mas comquem quer que fosse que falasse, Valentin estava de olhar atento para outra pessoa. Ele procurava persistentemente alguém, rico ou pobre, homem ou mulher que tivesse de altura mais de um metro e oitenta e três centímetros, pois Flambeau tinha bem mais que isso.
Valentin apeou-se na Rua Liverpool, completamente seguro de que até ai não tinha deixado escapar o criminoso. Foi depois a Scotland Yard para regularizar a sua situação e providenciar ajuda no caso de ser precisa, em seguida acendeu um cigarro e foi dar uma volta pelas ruas de Londres. Ao caminhar pelas ruas e praças para além de Victoria, deteve-se subitamente e ficou parado. Estava diante de uma bela praceta sossegada, muito característica de Londres, cheia de uma inesperada tranquilidade. As casas altas e planas tinham um aspecto ao mesmo tempo próspero e desabitado.
O rectângulo de arbustos no centro parecia tão deserto como uma ilhota verde no Pacífico. Uma das quatro partes da praça era muito mais alta do que as outras, como um trono, e o alinhamento desse lado era interrompido por um dos admiráveis acasos de Londres - um restaurante que parecia que se tinha extraviado do Soho. Era um objecto excepcionalmente atraente, com plantas anãs em vasos e persianas compridas amarelo-limão e brancas. Erguia-se a um nível excepcionalmente alto acima da rua e segundo a costumada maneira feita de retalhos de Londres, um lance de escadas a partir da rua ia dar^à porta de entrada quase como se fosse uma escada contra incêndios que desse para uma janela de primeiro andar. Valentin ficou parado a fumar diante das persianas amarelas e brancas e contemplou-as longamente.
O que há de mais incrível a respeito dos milagres é que eles acontecem. Algumas nuvens no céu tomam de facto a forma de um olho humano. Uma árvore eleva-se na paisagem durante uma viagem incerta e toma realmente a forma exacta e elaborada de um ponto de interrogação. Eu mesmo já vi ambas as coisas nestes últimos dias. Nelson morre de facto no momento da vitória e um homem chamado Williams mata de facto absolutamente por acaso um homem chamado Williamson, o que parece uma espécie de infanticídio. Em resumo, há na vida um elemento de coincidência mágica que as pessoas que pensam proisacamente deixam perpetuamente escapar. Como foi bem expresso no Paradoxo de Põe, a sabedoria devia contar com o imprevisto.
Aristide Valentin era imensamente francês e a inteligência francesa é única e exclusivamente francesa. Não era uma "máquina pensante", pois essa é uma frase insensata do fatalismo e do materialismo modernos. Mas era um homem reflectido e, ao mesmo tempo, um homem simples. Todos os seus extraordinários êxitos, que pareciam magia, deviam-se a uma lógica laboriosa, a um pensamento francês claro e vulgar. Os franceses entusiasmam o mundo não por originarem um paradoxo, entusiasmam-no por levarem a cabo um truísmo. Eles trazem consigo um truísmo até agora - como na Revolução Francesa.
Mas exactamente porque Valentin compreendia a razão, também compreendia os limites da razão. Só um homem que não sabe nada de automóveis é que fala de andar de automóvel sem usar gasolina, só um homem que nada sabe acerca da razão é que fala de raciocinar sem primeiros princípios sólidos e incontestáveis. Neste caso ele não tinha quaisquer princípios sólidos. Flambeau tinha escapado em Harwich e se, por acaso, estava em Londres, tanto podia ser um vagabundo de elevada estatura em Wimbledon Common como um toastmaster1 alto no Hotel Metrópole. Num tal estado de ignorância crassa, Valentin tinha um ponto de vista e um método próprios.
Em casos destes, ele apostava no imprevisto. Em casos destes, quando não conseguia seguir o encadeamento do racional, ele seguia fria e cuidadosamente o encadeamento do irracional. Em vez de ir aos sítios adequados - bancos, esquadras da polícia, reuniões -, ia sistematicamente aos sítios errados, batia em todas as casas desabitadas, explorava todos os becos sem saída, percorria todas as vielas atulhadas de lixo, rondava todos os quarteirões que o levavam inutilmente a perder-se no seu caminho. Ele justificava muito logicamente este louco percurso. Dizia que se uma pessoa tivesse uma pista, este era o pior método; mas se não tivesse pista alguma era o melhor, porque havia a probabilidade de qualquer coisa estranha que chamasse a atenção do perseguidor pudesse ser a mesma que tivesse chamado a atenção do perseguido. Um homem tem de começar por algum lado, e era melhor ser precisamente por onde outro homem se tivesse detido. Qualquer coisa naquele lanço de escadas, naquela quietude e beleza do restaurante, despertou a fantasia romântica do detective e fê-lo resolver atacar ao acaso. Subiu as escadas, sentou-se junto à janela e pediu um café. Era a meio da manhã e ele ainda não tinha tomado o pequeno-almoço. A ligeira desordem de outros pequenos-almoços acumulava-se na mesa para o fazer lembrar da fome que tinha. Acrescentou um ovo quente à sua encomenda e pensativamente pôs-se a mexer o açúcar no café, reflectindo todo o tempo sobre Flambeau. Lembrou-se como Flambeau escapara uma vez por causa de uma tesoura de unhas, outra por causa de uma casa a arder, uma vez por ter de pagar uma carta sem estampilha, outra por pôr pessoas a olhar por um telescópio para um cometa que podia destruir o mundo. Considerou que o seu cé-
1. Aquele que designa brindes em banquetes. (N: da T.)
rebro de detective era tão bom como o do criminoso, o que era verdade. Mas ele compreendia perfeitamente a desvantagem.
- O criminoso é o artista criador, o detective é apenas o crítico - disse ele com um sorriso amargo e levou lentamente aos lábios a sua chávena de café, rejeitando-a muito depressa. Tinha posto sal nela.
Olhou para o recipiente de onde viera o pó prateado, era de certeza um açucareiro tão inequivocamente destinado ao açúcar quanto uma garrafa de champanhe se destina ao champanhe. Pensou consigo mesmo por que razão guardariam sal nele. Pôs-se a ver se existiriam mais recipientes ortodoxos. De ,facto, existiam dois saleiros cheios. Talvez houvesse alguma particularidade nos saleiros. Provou: continham açúcar. Em seguida inspeccionou o restaurante comrenovado interesse, a fim de verificar se haveria quaisquer outros vestígios daquele estranho gosto artístico que punha açúcar no saleiro e sal no açucareiro. Exceptuando uma estranha mancha de um líquido escuro numa das paredes forradas de papel branco, toda a sala tinha um aspecto arranjado, agradável e normal. Tocou a campainha para chamar o criado.
Quando este veio apressadamente, de cabelo encrespado e de olhos um pouco turvos por ser ainda de manhã cedo, o detective (que não deixava de apreciar as formas mais simples de humor) pediu-lhe para provar o açúcar e ver se estava à altura do bom nome do restaurante. O resultado foi que o criado bocejou subitamente e acordou.
- Costumam pregar todas as manhãs esta partida de bom-gosto aos vossos clientes? - perguntou Valentin. - Não estão fartos da graça de trocar o sal pelo açúcar?
O criado, quando a ironia se tornou mais evidente, assegurou-lhe gaguejando que o estabelecimento não tinha de forma alguma essa intenção, devia ser um erro extremamente esquisito. Pegou no açucareiro e olhou para ele, pegou no saleiro e olhou também para ele, cada vez mais espantado. Por fim desculpou-se abruptamente e voltou apressadamente dentro de alguns segundos como proprietário. Este examinou também primeiro o açucareiro e depois o saleiro e também ficou com um ar muito espantado.
Subitamente o criado pareceu ficar engasgado com uma avalancha de palavras.
- Parece-me - gaguejou ele ansiosamente -, parece-me que foram aqueles dois padres.
- Quais dois padres?
- Os dois padres que atiraram comsopa à parede - disse o criado.
- Atiraram sopa à parede? - repetiu Valentin, convencido de que isto devia ser alguma metáfora.
- Sim, sim - disse o empregado todo excitado, apontando para a mancha escura no papel branco .-, atiraram-na para aquela parede.
Valentin fez a mesma pergunta ao proprietário, que veio em sua ajuda cominformações mais completas.
- Sim, senhor - disse ele -, é realmente verdade, apesar de eu não achar que tenha alguma coisa a ver como açúcar e o sal. Entraram aqui dois padres e tomaram uma sopa esta manhã muito cedo, logo que se puxaram as persianas para cima. Eram ambos pessoas muito calmas e respeitáveis. Um deles pagou a conta e saiu, o outro, que parecia menos vivo, levou mais alguns minutos a juntar os seus pertences. Mas por fim lá se foi. Só que no instante antes de pôr o pé na rua ele pegou propositadamente na sua chávena, de que só tinha tomado metade, e atirou a sopa à parede. Eu estava lá dentro, assim como o empregado, por isso apenas pude vir a correr a tempo de encontrar a parede manchada e a loja vazia. Não teve grande importância, mas foi um descaramento danado. Tentei apanhar os homens na rua, mas já estavam muito longe, apenas vi que eles dobraram a esquina para a Rua Carstairs.
O detective já estava de pé, de chapéu na cabeça e bengala na mão. Já tinha decidido que na ignorância geral da sua mente apenas podia seguir a primeira estranha indicação que surgia, e esta indicação era suficientemente estranha. Pagou a conta, bateu com a porta e logo se pôs a andar pela outra rua fora.
Felizmente que mesmo em momentos febris como este o seu olhar era frio e vivo. Qualquer coisa na montra de uma loja passou por ele como um clarão. No entanto, ele voltou atrás para observá-la. A loja era a de um vendedor de hortaliça e fruta, uma exposição de géneros dispostos ao ar livre e marcados com os nomes e preços. Nos expositores mais em evidência estavam dois montes, um de laranjas e outro de nozes. No monte de nozes havia um cartão no qual estava escrito com um nítido giz azul: "Laranjas óptimas, duas um penny." Nas laranjas estava uma descrição igualmente clara e cuidadosa: "Lindas nozes do Brasil, quatro dinheiros a libra." Valentin olhou para estes dois cartazes e julgou que, muito recentemente, já se lhe deparara esta forma subtil de humor. Chamou a atenção do vendedor de cara vermelha, que estava a olhar para cima e para baixo da rua com um ar mal-humorado, para esta inexactidão. O vendedor não disse nada, mas pôs rapidamente cada cartão no seu devido lugar. O detective, apoiando-se elegantemente na sua bengala, continuou a escrutinar a loja. Por fim disse:
- Meu bom senhor, por favor desculpe a minha evidente inconveniência, mas gostava de lhe fazer uma pergunta sobre psicologia experimental e associação de ideias.
O dono da loja de cara vermelha olhou para ele com um olhar ameaçador, mas Valentin continuou alegremente, balançando a bengala.
- Por que razão - continuou ele - dois cartões colocados erradamente numa loja de frutas se assemelham a um chapéu de padre que veio para Londres para gozar férias? Ou, no caso de eu não me fazer entender, qual é a associação mística que liga a ideia de nozes marcadas como laranjas à ideia de dois padres, um alto e outro baixo?
Os olhos do comerciante saltavam fora das órbitas como os de um caracol. Parecia, na verdade, por um momento, capaz de se atirar àquele desconhecido. Por fim, gaguejou iradamente:
- Não sei o que o senhor tem a ver comisto, mas se é amigo deles pode dizer-lhes da minha parte que eu parto a cabeça aqueles parvos, padres ou não, se eles derrubarem as minhas maçãs outra vez.
- Não é possível! - disse o detective, muito penalizado.
- Eles derrubaram-lhe as maçãs?
- Um deles derrubou - disse o dono da loja irado -, atirou-as a rolarem pela rua abaixo. Eu tinha agarrado o idiota se não fosse ter de apanhá-las.
- Que caminho é que esses padres tomaram? - perguntou Valentin.
- Foram por aquela segunda rua à esquerda, e depois atravessaram a praça - disse o outro prontamente.
- Obrigado - disse Valentin, e desapareceu como uma fada. No outro lado da segunda praça encontrou um polícia e perguntou:
- Isto é urgente senhor guarda, viu dois padres de chapéu de aba larga?
O polícia começou a rir-se por entre os dentes.
- Vi sim senhor, e posso dizer-lhe que um deles estava bêbado. Pôs-se no meio da rua tão desnorteado que...
- Que caminho é que eles tomaram? - interrompeu Valentin.
- Apanharam um daqueles autocarros amarelos - respondeu o homem -, aqueles que vão para Hampstead.
Valentin apresentou o seu cartão oficial e disse muito rapidamente:
- Chame dois dos seus homens para procederem comigo a uma perseguição - e atravessou a rua com uma energia tão contagiante que o pesado polícia se pôs em movimento numa quase ágil obediência. Num minuto e meio o detective francês estava acompanhado, no passeio oposto, por um inspector e por um homem à paisana.
- Muito bem, senhor - disse o primeiro, sorrindo com ar importante -, e que é que podemos?...
Valentin apontou de repente com a bengala.
- vou dizer-lhes dentro daquele autocarro - disse ele, avançando e esquivando-se pelo meio da confusão do tráfego. Quando os três se deixaram cair, ofegantes, nos acentos da parte de cima do autocarro amarelo, o inspector disse:
- Podíamos ir quatro vezes mais depressa num táxi.
- É bem verdade - respondeu Valentin placidamente. - Se ao menos tivéssemos uma ideia de para onde é que vamos...
- Bem,para onde é que nós vamos? - disse o outro, olhando espantado.
Valentin pôs-se a fumar durante alguns segundos, de sobrolho franzido. Depois, tirando o cigarro, disse:
- Se você sabe o que um homem está a fazer ponha-se à frente dele, mas se quiser adivinhar o que ele está a fazer mantenha-se atrás dele. Passeie quando ele passeia, pare quando ele parar, viaje tão devagar quanto ele. Então poderá ver o que ele viu e poderá agir como ele agiu. Tudo o que nós podemos fazer é abrir os olhos para qualquer coisa de estranho.
- Que espécie de coisa estranha é que o senhor quer dizer?
- perguntou o inspector.
- Qualquer espécie de coisa estranha - respondeu Valentin, e mergulhou de novo num silêncio obstinado.
O autocarro amarelo moveu-se lentamente pelas ruas da parte norte da cidade, parecendo levar horas sem fim. O grande detective não adiantava mais explicações e talvez os seus ajudantes sentissem uma dúvida silenciosa e crescente quanto à sua missão. Talvez, também, sentissem +um desejo silencioso e crescente de almoçar, pois as horas arrastavam-se muito para
lá da hora normal de almoço e as compridas ruas da parte norte de Londres passavam umas atrás das outras como um telescópio infernal. Era uma daquelas viagens em que uma pessoa sente constantemente que finalmente deve ter chegado ao fim do universo e descobre em seguida que apenas chegou ao princípio do Parque Tufnell. Londres consumia-se em tabernas sujas e arbustos lúgubres e em seguida renascia inexplicavelmente em esplendorosas ruas principais e espalhafatosos hotéis. Era como passar por treze cidades vulgares e distintas, todas confinando umas com as outras. Mas apesar do crepúsculo de Inverno se estar aproximando da rua adiante deles, o detective parisiense continuava sentado, silencioso e atento, examinando o caminho em frente que passava aos poucos. Ao deixarem Camden Town para trás, os polícias já estavam quase a dormir. Pelo menos, deram como que um salto quando Valentin se pôs em pé, num pulo, bateu com a mão no ombro de cada um dos homens e gritou ao motorista que parasse.
Apearam-se aos saltos pela escada do autocarro abaixo sem perceberem por que é que tinham saído dos lugares. Quando olharam em volta para obterem um esclarecimento, viram Valentin apontando triunfantemente para uma janela no lado esquerdo da rua. Era uma grande janela que fazia parte da comprida fachada dourada e apalaçada de uma taverna, era a parte destinada a jantares respeitáveis, com um letreiro a dizer "Restaurante". Esta janela, como todas as outras da fachada do edifício, era de vidro fosco e comfiguras, mas no meio dela havia uma grande parte escura quebrada como se fosse uma estrela desenhada no gelo.
- Até que enfim o nosso palpite - exclamou Valentin, brandindo a bengala -... o lugar da janela partida.
- Que janela? Que palpite? - perguntou o seu principal ajudante. - Qual é a prova que isto tem a ver com eles?
Valentin, irado, quase partiu a sua bengala de bambu.
- Prova! - gritou ele. - Santo Deus! Este homem está à procura de uma prova! Claro que as probabilidades são uma em vinte que isto tenha a ver com eles. Mas o que mais podemos fazer? Não vê que ou temos de seguir uma probabilidade louca ou então ir para casa dormir? - Entrou de rompante no restaurante, seguido dos seus companheiros, e logo se sentaram a uma pequena mesa para tomarem um lanche tardio, ficando a olhar do interior da sala a estrela de vidro partido. Se bem que nessa altura isso não fosse muito instrutivo.
- Estou a ver que tem a janela partida - disse Valentin ao
criado, enquanto pagava a conta.
- Sim, senhor - respondeu o criado, inclinando-se atarefadamente sobre o troco, ao qual Valentin acrescentou silenciosamente uma enorme gorjeta. O criado endireitou-se com um entusiasmo moderado mas inconfundível.
- Ah, sim, senhor - disse ele. - Foi uma coisa muito estranha.
- Realmente? Conte-nos o que aconteceu - disse o detective com uma curiosidade despreocupada.
- Pois bem, dois cavalheiros de preto entraram aqui - disse
o criado -, dois desses padres estrangeiros que andam por aí. Almoçaram sossegadamente e barato e um deles pagou e saiu. O outro estava mesmo a sair para ir ter com ele quando eu olhei para o troco outra vez e vi que ele me tinha pago três vezes mais do que devia. "Olhe", disse eu para o sujeito que estava quase a sair porta fora, "o senhor pagou a mais", "Oh", disse ele muito calmamente, "pagámos?", "Sim", disse eu, e peguei na conta para lhe mostrar. Pois bem, foi um golpe duro. O que é que quer dizer com isso? - perguntou o detective.
| - Bem, eu ia jurar sobre a Bíblia que tinha posto catorze
shillings, tão certo como eu ser empregado de mesa. - Bem? - exclamou Valentin, movendo-se vagarosamente,
mas com os olhos ardentes. - E então?
- O padre que estava à porta disse, comtoda a calma: "La-
mento a confusão nas suas contas, mas isso vai pagar a janela." "Qual janela?", perguntei eu. "A que vou partir", disse ele, e estilhaçou aquele maldito vidro com o guarda-chuva.
Todos os investigadores soltaram uma exclamação e o inspector disse em voz baixa:
- Andamos à procura de malucos fugidos do manicómio? O criado continuou com um certo prazer em contar a ridícula história.
- Por um segundo fiquei tão aparvalhado que não pude fazer nada. O homem saiu do restaurante e foi ter como amigo à esquina. Depois foram tão depressa pela Rua Bullock acima que não consegui apanhá-los.
- Rua Bullock - disse o detective, e seguiu disparado por aquela rua, tão rapidamente quanto o estranho casal que perseguia.
A viagem deles agora levava-os por ruas de tijolo nu como
(fossem túneis, ruas compoucas luzes e até poucas janelas, ruas que pareciam construídas de traseiras vazias de todas as coisas e de todos os lugares. O anoitecer estava cada vez mais cerrado e não era fácil, até para polícias londrinos, adivinharem que direcção estavam caminhando. O inspector, no entanto, estava bastante seguro de que eles iriam desembocar a qualquer parte de Hampstead Heath. Abruptamente uma janela protuberante e alumiada a gás rompeu o crepúsculo azul como uma lanterna. Valentm parou um instante diante de uma confeitariazinha que dava nas vistas. Depois de um instante de hesitação entrou, permaneceu no meio das cores berrantes dos bolos comtoda a gravidade e comprou treze cigarros de chocolate com um certo cuidado. Estava claramente preparando uma introdução, mas não foi precisa.
Uma mulher magra já não muito jovem olhara para o seu aspecto elegante com uma curiosidade meramente automática, mas quando viu a porta atrás dele obstruída pelo inspector de uniforme azul os olhos dela pareceram acordar.
- Oh - disse ela -, se vieram à procura do embrulho, eu já o enviei.
- Embrulho! - repetiu Valentin, e foi a vez de ele parecer curioso.
- O embrulho que ele deixou, o senhor padre.
- Por amor de Deus - disse Valentin, inclinando-se para a frente -, conte-nos exactamente o que aconteceu.
- Bem - disse a mulher, um pouco hesitante -, os padres entraram há cerca de meia hora, compraram alguns rebuçados de hortelã-pimenta, conversaram um pouco e depois foram-se embora em direcção a Hampstead Heath. Mas, um segundo depois, um deles voltou a correr para a loja e disse: "Deixei aqui um embrulho?" Pois bem, procurei por toda a parte e não encontrei embrulho nenhum. Então ele disse: "Não faz mal, mas se aparecer, por favor mande-o pelo correio para esta morada", deixou-me a morada e deu-me um shilling pelo meu incómodo. E realmente, apesar de eu julgar que tinha procurado por toda a parte, verifiquei que ele tinha deixado um embrulho de papel pardo, por isso enviei-o pelo correio para o lugar que ele indicou. Não me lembro do endereço agora, era qualquer parte em Westminster. Mas como a coisa parecia tão importante, julguei que talvez a polícia tivesse vindo por causa disso.
- E realmente veio - disse Valentin - Hampstead Heath fica perto daqui?
- Sempre em frente durante quinze minutos - disse a mulher - e vai dar logo à abertura. - Valentin saiu como uma seta da loja e começou a correr. Os outros detectives seguiram-no num passo rápido e relutante.
A rua que eles percorreram comdificuldade era tão estreita e encerrada por sombras que quando eles saíram inesperadamente para o terreno descampado do parque e para o vasto céu ficaram surpreendidos de ver o anoitecer tão luminoso e claro. Uma perfeita abóbada verde-pavão passava gradualmente para dourado por entre as árvores sombrias e os horizontes violeta-escuro. A brilhante cor verde era suficientemente carregada para fazer realçar, como pontos de cristal, uma ou duas estrelas. Tudo o que restava da luz do dia estendia-se num brilho dourado através da extremidade de Hampstead e esse popular vale chamado Vale da Saúde. Os excursionistas que vagueavam por este local ainda não se tinham dispersado completamente: alguns casais estavam sentados, numa mancha informe, em bancos; aqui e além uma menina distante ainda dava gritos a andar de baloiço. O esplendor do céu tornava-se mais profundo e escuro em redor da sublime vulgaridade do homem e de pé na encosta e olhando para o vale, Valentin viu aquilo que procurava. Entre os grupos escuros que dispersavam naquela distância havia um, especialmente escuro, que não dispersava - um grupo de dois vultos vestindo trajes clericais. Apesar de parecerem tão pequenos como insectos, Valentin conseguia ver que um deles era muito mais pequeno do que o outro. Apesar de este outro ter uma postura inclinada própria de estudante e um porte que não dava nas vistas, ele conseguia descortinar que o homem tinha bastante mais do que um metro e oitenta e tal de altura. Cerrou os dentes e avançou fazendo girar comimpaciência a sua bengala. Quando já tinha diminuído consideravelmente a distância que o separava deles e ampliado os dois vultos negros como se fosse através de um vasto microscópio apercebeu-se de uma outra coisa, uma outra coisa que o surpreendeu, mas que no entanto ele de algum modo esperava. Quem quer que fosse o padre alto, não havia dúvida quanto à identidade do padre baixo. Era o seu amigo do comboio de Harwich, o pequeno cura gorducho do Essex a quem ele tinha chamado à atenção a respeito dos seus embrulhos de papel pardo.
No que dizia respeito a isto, tudo se ajustava racionalmente. Naquela manhã Valentin tinha sabido através das suas investigações que um tal padre Brown do Essex trazia uma cruz de prata comsafiras, uma relíquia de valor considerável, a fim de mostrá-la a alguns padres estrangeiros do congresso. Esta era sem dúvida o "objecto de prata compedras azuis" e o padre Brown era sem dúvida o pequeno simplório do comboio. Não havia, pois, nada de extraordinário quanto ao facto de que aquilo que Valentin descobrira Flambeau também tivesse descoberto. Flambeau descobria tudo. Também não havia nada de extraordinário no facto de que quando Flambeau soube da cruz de safiras, tentasse roubá-la, era a coisa mais natural do mundo. E comcerteza não havia nada de espantoso a respeito do facto de que Flambeau fizesse tudo à sua maneira com um parvinho como o homem do guarda-chuva e dos embrulhos. Este era o tipo de homem que qualquer pessoa podia enganar. Não havia nada de notável que Flambeau, vestido de padre, o tivesse levado até Hampstead Heath. Até aí o crime era bastante evidente, e embora o detective tivesse pena do pequeno padre tão desamparado, quase desprezava Flambeau por se rebaixar diante de uma vítima tão ingénua. Mas quando Valentin pensava em tudo o que acontecera de permeio, em tudo o que o levara ao seu triunfo, dava tratos à mente, para encontrar a mais pequena lógica nesses factos. Que é que tinha a ver o roubo de uma cruz de prata a um padre do Essex como atirar de sopa a uma parede? O que é que tinha como chamar laranjas a nozes ou como pagar uma janela primeiro e quebrá-la depois? Valentin chegara ao final da sua perseguição. No entanto, deixara de alguma forma escapar o que ficara pelo meio. Quando ele falhava (o que era raro), conseguia em geral compreender as pistas, mas deixava todavia escapar o criminoso. Neste caso ele agarrara o criminoso, mas não conseguira compreender as pistas.
Os dois vultos que eles seguiam rastejavam como moscas pretas através do enorme contorno verde de um monte. Era evidente que estavam profundamente entretidos a conversar e talvez não reparassem para onde se dirigiam, mas não havia dúvida que estavam a dirigir-se para as elevações mais ermas e calmas do Heath. Os seus perseguidores ao ganharem distância sobre eles tinham de tomar as posições pouco dignificantes dos caçadores de espera, agachando-se atrás de moitas e até rastejando deitados na erva cerrada. Por meio destas deselegantes habilidades, os caçadores até chegaram suficientemente próximo da presa para ouvirem o rumor da discussão, mas nenhuma palavra era perceptível, a não ser a palavra "razão", repetindo-se frequentemente num tom de voz excitado e quase infantil. Uma vez numa depressão abrupta do terreno e de um denso emaranhado de moitas, os detectives chegaram a perder de vista os dois vultos que estavam a seguir. Durante uns angustiantes dez minutos perderam a pista, e quando a reencontraram ela levava ao cume de um monte sobranceiro a um anfiteatro como cenário de um esplêndido e solitário pôr do Sol. Debaixo de uma árvore neste local imponente, mas desprezado, havia um velho banco de madeira em ruínas. Neste banco estavam sentados os dois padres conversando seriamente. Os deslumbrantes azul e verde ainda estavam presos ao horizonte que escurecia, mas a abóbada por cima deles estava a mudar de verde-pavão para azul-pavão e as estrelas destacavam-se cada vez mais como jóias verdadeiras. Acenando silenciosamente para os seus ajudantes, Valentin conseguiu rastejar por detrás da grande árvore frondosa e, permanecendo aí num silêncio sepulcral, ouviu pela primeira vez as palavras dos estranhos padres.
Depois de os ter escutado durante um minuto e meio foi dominado por uma dúvida diabólica. Talvez ele tivesse arrastado os dois polícias ingleses pelos terrenos de uma charneca nocturna para uma missão tão louca como procurar uma agulha num palheiro. Porque os dois padres estavam a conversar exactamente como padres, devotamente, comsabedoria e vagar, sobre os enigmas mais elevados da teologia. O padre baixinho do Essex falava commais simplicidade com a sua cara redonda voltada para as estrelas revigorantes, o outro falava com a cabeça inclinada como se não fosse digno de contemplá-las. Mas uma conversa tão clerical, tão inocente como aquela poderia ser ouvida num claustro branco italiano ou numa escura catedral espanhola.
A primeira coisa que escutou foi o final de uma das frases do padre Brown, que terminava assim:
- ... o que eles realmente queriam dizer na Idade Média a respeito dos céus serem incorruptíveis.
O padre mais alto acenou com a cabeça inclinada e disse:
- Ah, sim, estes infiéis modernos invocam a razão, mas quem é que pode olhar para aqueles milhões de mundos e não sentir que podem muito bem haver universos maravilhosos por cima de nós onde a razão é totalmente irracional?
- Não - disse o outro padre -, a razão é sempre racional, mesmo no derradeiro limbo, no limite perdido das coisas. Eu sei que pessoas acusam a Igreja de rebaixar a razão, mas é exactamente o contrário. Só a Igreja no mundo torna a razão realmente suprema. Só a Igreja no mundo afirma que Deus está vinculado pela razão.
O outro padre levantou a sua face austera para o céu brilhante e disse:
- No entanto, quem sabe se naquele infinito universo?...
- Apenas infinito fisicamente - disse o padre baixinho voltando-se vivamente no banco -, não infinito no sentido de escapar às leis da verdade.
Valentin, por trás da árvore, estava a puxar violentamente as unhas das mãos numa fúria silenciosa. Quase lhe parecia ouvir os rissos dos detectives ingleses que ele tinha trazido até tão longe atrás de uma fantástica conjectura apenas para ouvirem a tagarelice metafísica de dois serenos velhos padres. Na sua impaciência não conseguiu ouvir a resposta igualmente elaborada do clérigo alto, e quando se pôs à escuta de novo era outra vez o padre Brown que falava:
- A razão e justiça abarcam a estrela mais remota e solitária. Olhe para aquelas estrelas. Não parecem diamantes e safiras? Pois bem, pode imaginar qualquer louca botânica ou geologia que quiser. Pense em florestas de diamantes comfolhas de brilhantes. Pense que a lua é azul, uma única e enorme safira. Mas não julgue que toda essa louca astronomia iria fazer a mais pequena diferença à razão e à justiça do comportamento. Em planícies de opalas, em penhascos talhados de pérolas, iria ainda encontrar uma tabuleta como aviso: "Não roubarás."
Valentin estava prestes a levantar-se da sua posição agachada e a ir-se embora rastejando o mais silenciosamente possível prostrado pela única grande loucura da sua vida. Mas qualquer coisa no silêncio do padre alto fê-lo parar até que este último falasse. Quando finalmente ele falou, disse de uma maneira simples, com a cabeça inclinada e as mãos nos joelhos:
- Eu ainda penso que outros mundos possam talvez erguer-se mais alto do que a nossa razão. O mistério do céu é impenetrável e eu, por mim, só posso baixar a cabeça.
Então, com a cabeça ainda inclinada e sem mudar minimamente a voz ou atitude, acrescentou:
- Passe para cá essa cruz de safiras. Estamos completamente sós aqui e eu posso desfazê-lo em pedaços como se fosse um boneco de palha.
A voz e a atitude completamente inalteradas acrescentavam uma estranha violência a essa chocante mudança de tom. Mas o guarda da relíquia apenas pareceu voltar minimamente a cabeça. Parecia ainda ter um rosto um tanto tolo voltado para as estrelas. Talvez não tivesse compreendido.
Ou talvez tivesse compreendido e tivesse ficado paralisado de medo.
- Sim - disse o padre alto, na mesma voz baixa e na mesma posição imóvel. - Sim, eu sou Flambeau.
Então, depois de uma pausa, disse:
- Vamos, dê-me essa cruz.
- Não - disse o outro, e o monossílabo teve um som estranho.
Flambeau de repente atirou fora todas as suas pretensões pontificais. O grande ladrão inclinou-se para trás no seu assento e riu-se baixinho mas demoradamente.
- Não - exclamou ele -, não quer dar-ma, seu prelado orgulhoso. Não quer dar-ma, seu pequeno celibatário simplório. Quer que eu lhe diga por que é que não ma quer dar? Porque eu já a tenho na minha algibeira.
O homenzinho de Essex mostrou o que parecia na escuridão ser uma cara pasmada e disse, com a tímida vivacidade do "Secretário Particular":
- Tem... a certeza? Flambeau gritou comprazer.
- Realmente, você é tão divertido como uma farsa em três actos - exclamou ele. - Sim, seu nabo, tenho a certeza. Tive o bom senso de fazer um duplicado do embrulho em questão e agora, meu amigo, você tem o duplicado e eu tenho as jóias. Um velho truque, padre Brown, um truque muito velho.
- Sim - disse o padre Brown, passando a mão pelos cabelos com o mesmo estranho ar distraído. - Sim, já ouvi falar disso.
O colosso do crime inclinou-se sobre o pequeno padre desajeitado com uma espécie de interesse súbito.
- Já ouviu falar disso? - perguntou ele. - Onde é que você ouviu falar disso?
- Bem, não posso dizer-lhe o nome dele, claro - disse o homenzinho simplesmente. - Era um penitente, sabe. Viveu prosperamente durante cerca de vinte anos de embrulhos de papel pardo em duplicado. E quando comecei a suspeitar de si, pensei imediatamente na maneira como esse pobre tipo o fazia.
- Começou a suspeitar de mim? - repetiu o criminoso comintensidade crescente. - Você teve a perspicácia de suspeitar de mim só porque eu o trouxe para esta parte deserta da charneca?
- Não, não - disse Brown com ar de quem pede desculpa.
- É essa pequena saliência na parte de cima da manga onde vocês têm a pulseira de pregos.
- Pelas profundezas do Inferno, como é que você ouviu da pulseira de pregos? - exclamou Flambeau.
- Oh, o nosso pequeno rebanho de paroquianos! - disse o padre Brown, arqueando as sobrancelhas inexpressivamente. Quando era pároco em Hartlpool, havia três deles compulseiras de pregos. Por isso quando suspeitei de você, assegurei-me que a cruz estivesse a salvo. Vigiei-o, sabe. Até que por fim vi-o trocar os embrulhos. Não vê que depois troquei-os outra vez? E então deixei o meu embrulho certo para trás.
- Deixou-o para trás? - repetiu Flambeau, e pela primeira vez houve na sua voz outro tom diferente do trinfante.
- Bem, passou-se assim - disse o padre baixinho, falando na mesma maneira simples. - Voltei outra vez àquela confeitaria e perguntei se tinha deixado lá um embrulho e dei-lhes uma certa morada no caso dele aparecer. Sabia que não o tinha deixado, mas quando saí deixei-o lá. Por isso, em vez de correrem atrás de mim com aquele valioso embrulho, mandaram-no voando para um amigo meu em Westminster. - A seguir continuou bastante tristemente: - Eu aprendi isso também com um pobre tipo em Hartlepool. Costumava fazê-lo commalas de mão que roubava nas estações de caminhos-de-ferro, mas ele agora está num mosteiro. Oh, uma pessoa aprende, sabe acrescentou, esfregando outra vez a cabeça como mesmo ar de pedir, desesperadamente, desculpa. - Não podemos deixar de ser padres. As pessoas contam-nos estas coisas.
Flambeau tirou um embrulho de papel pardo do bolso e rasgou-o aos pedaços. Não continha nada senão papel e barras de chumbo. Levantou-se de um salto com um gesto gigantesco e exclamou:
- Não acredito. Não acredito que um labrego como você pudesse conseguir isso tudo. Acho que você deve ter a coisa consigo e se não ma dá... ora, estamos completamente sós e eu vou tirar-lha à força!
- Não - disse o padre Brown simplesmente, levantando-se também -, não a vai tirar à força. Primeiro, porque eu já não a tenho. E segundo, porque não estamos sozinhos.
Flambeau estacou.
- Atrás daquela árvore - disse o padre Brown, apontando estão dois potentes polícias e o maior detective vivo. Como é que eles vieram parar aqui, pergunta você? Trouxe-os eu, claro! Como é que fiz isso?
"Eu conto-lhe, se quiser. Que Deus o abençoe, mas temos de saber estas coisas todas quando trabalhamos entre classes criminosas! Bem, eu não tinha a certeza se você era um ladrão e não parecia bem fazer um escândalo como nosso próprio clero. Por isso pu-lo à prova para ver se alguma coisa o denunciava. Uma pessoa geralmente faz uma pequena cena se encontrar sal no seu café, se não faz é porque tem alguma razão para ficar calado. Eu troquei o sal e o açúcar e você ficou calado. Uma pessoa geralmente protesta se a conta for três vezes maior do que deveria ser. Se ela a pagar é porque tem alguma razão para passar despercebido. Eu modifiquei a conta e você pagou-a.
O mundo parecia esperar que Flambeau saltasse como um tigre. Mas ele reteve-se como que enfeitiçado, estava estupefacto e com a maior curiosidade.
- Pois bem - prosseguiu o padre Brown, com uma lucidez lenta -, como você não deixasse nenhumas pistas para a polícia, é claro que alguém havia de o fazer. Em todos os lugares onde fomos eu tive o cuidado de fazer qualquer coisa que nos tornasse assunto de conversa para o resto do dia. Não fiz nada de muito mau, uma parede manchada, umas maçãs entornadas, uma janela partida. Mas consegui salvar a cruz, tal como a cruz precisa sempre de ser salva. Está agora em Westminster. Eu admiro-me bastante como é que você não a deteve como Assobio de Burro.
- como quê? - perguntou Flambeau.
- Fico contente por você nunca ter ouvido falar nisso - disse o padre, fazendo uma careta. - É uma coisa vil. Tenho a certeza de que você é um homem demasiado bom para ser um Assobiador. Eu não podia ter agido contra o Spots, não tenho força suficiente nas pernas.
- De que diabo é que você está a falar? - perguntou o outro.
- Eu achei realmente que você conhecesse o Spots - disse o padre Brown, agradavelmente surpreendido. - Oh, não pode ter-se desencaminhado tanto!
- Por que raios você sabe desses horrores todos? - exclamou Flambeau.
Um sorriso pairou no rosto gorducho e simples do seu opositor clerical.
- Oh, por ser um simplório celibatário, acho eu - disse ele. - Nunca lhe ocorreu que uma pessoa que quase só faz é ouvir os pecados dos homens não deve ignorar completamente os erros humanos? Mas, na verdade, também outra parte do meu ofício fez-me ter a certeza de que você não era padre.
- Qual? - perguntou o ladrão, quase boquiaberto.
- Você atacou a razão - disse o padre Brown. - É má teologia.
E ao voltar-se para arrecadar os seus pertences, os três polícias saíram debaixo das árvores no crepúsculo. Flambeau era um artista e um homem com um espírito desportivo. Recuou e cumprimentou Valentin com uma grande vénia.
- Não me cumprimente com uma vénia, mon ami - disse Valentin com uma eloquente clareza. - Façamos ambos uma vénia ao nosso mestre.
E ambos tiraram por um instante o chapéu, enquanto o padre baixinho do Essex procurava o seu guarda-chuva.
CAPÍTULO II
O jardim secreto
Aristide Valentin, chefe da polícia de Paris, estava atrasado para o jantar e alguns dos seus convidados começaram a chegar antes dele. Estes foram, no entanto, tranquilizados pelo seu criado particular, Ivan, o velho com uma cicatriz e uma cara quase tão cinzenta como os seus bigodes, que estava sempre sentado a uma mesa no salão de entrada. Um salão decorado com armas. A casa de Valentin era tão estranha e afamada como o seu dono. Era uma velha casa, commuros grandes e choupos altos sobranceiros ao Sena, mas a singularidade, e talvez o valor policial, da sua arquitectura consistia no seguinte: o não haver nenhuma saída para a rua a não ser pela porta principal, que era guardada por Ivan e pela armaria. O jardim era grande e bem cuidado e havia muitas saídas da casa para o jardim. Mas não havia nenhuma saída do jardim para o exterior. A toda a volta estendia-se um muro liso, alto e que não se podia escalar, compontas de ferro especiais no topo, um jardim adequado a que um homem pudesse reflectir sobre quem algumas centenas de criminosos tinham jurado matar.
Ivan explicara aos convidados que o seu anfitrião tinha telefonado a dizer que se demoraria uns dez minutos. Ele estava, na verdade, a ultimar os preparativos de execuções e outras coisas desagradáveis como estas, e apesar desses deveres lhe serem profundamente repugnantes, desempenhava-os sempre comprecisão. Implacável na perseguição dos criminosos, era muito brando quanto ao seu castigo. Desde que fora a autoridade máxima no que dizia respeito aos métodos policiais franceses e largamente no que se referia aos métodos europeus, a sua grande influência tinha sido honrosamente utilizada na mitigação das sentenças e na purificação das prisões. Era um dos grandes livre-pensadores humanitários franceses e a única coisa errada neles é que tornam a clemência ainda mais fria do que a justiça.
Quando Valentin chegou já estava vestido de preto, com a roseta vermelha, uma figura elegante, corn a barba escura já grisalha. Atravessou a casa direito ao escritório, que dava para os jardins das traseiras. A porta do escritório que dava para aí estava aberta, e depois de ter cuidadosamente fechado à chave o seu cofre no lugar próprio, ficou de pé durante alguns segundos diante da porta aberta para o jardim. A lua tentava penetrar por entre as nuvens esfarrapadas de um céu tempestuoso e Valentin contemplou-a com uma melancolia não usual em naturezas científicas como as dele. Talvez essas naturezas científicas possuam alguma previsão psíquica do mais tremendo problema das suas vidas. De um misterioso estado de espírito como este ele recuperou rapidamente, pois sabia que estava atrasado e que os seus convidados já tinham começado a chegar. Ao entrar na sala, uma olhadela foi o suficiente para se assegurar de que o seu convidado principal não estava lá. Reconheceu todos os outros pilares do pequeno grupo: viu Lorde Galloway, o embaixador inglês, um velho colérico com uma cara avermelhada como uma maçã, usando a fita azul da Ordem da Jarreteira.
Lady Galloway, delgada e filiforme, com cabelo prateado e uma cara delicada e arrogante. A filha dela, Lady Margaret Graham, uma rapariga pálida e bonita com uma cara travessa e cabelo acobreado. A duquesa de Mont St. Michel, de olhos negros e opulenta, e as suas duas filhas também de olhos negros e opulentas. O doutor Simon, um típico cientista francês, de óculos, com uma barba castanha pontiaguda e uma testa marcada com aquelas rugas paralelas que são o apanágio da arrogância, visto que surgem de uma constante elevação das sobrancelhas. O padre Brown de Cobhole, no Essex, que ele conhecera recentemente em Inglaterra. Viu, talvez com mais interesse do que qualquer dos outros, um homem alto fardado, que cumprimentara os Galloways sem ter havido por parte deles uma recepção muito cordial e que agora avançava sozinho para cumprimentar o seu anfitrião. Era o com andante O'Brien, da Legião Estrangeira francesa. Magro, mas com um ar superior, sem barba, de cabelos escuros, olhos azuis e que, como parecia natural num oficial desse famoso regimento de falhanços vitoriosos e suicídios bem sucedidos, tinha um ar ao mesmo tempo enérgico e melancólico. Era um cavalheiro irlandês por nascimento, e nos seus tempos de rapaz conhecera os Galloways, especialmente Margaret Graham. Deixara o seu país natal depois de arruinado por dívidas e agora exprimia a sua completa libertação de etiqueta britânica ao envergar farda, sá-bre e esporas. Quando cumprimentou a família do embaixador, Lorde e Lady Galloway inclinaram-se cerimoniosamente e Lady Margaret desviou o olhar.
Mas quaisquer que fossem as razões por que essas pessoas se interessavam umas pelas outras, o seu distinto anfitrião não estava especialmente interessado nelas. Nenhuma delas, pelo menos, era, a seu ver, o convidado da noite. Valentin estava à espera, por razões especiais, de um homem de renome mundial cuja amizade ele conquistara durante algumas das viagens que fizera aos Estados Unidos, na qualidade de detective célebre. Estava à espera de Julius K. Brayne, esse multimilionário cujas colossais e até esmagadoras doações a religiões menores ocasionavam tanto escárnio fácil e ainda mais fácil seriedade de parte dos jornais americanos e ingleses. Ninguém conseguia compreender se o Sr. Brayne era um ateu, um mórmone ou um christian scientist, mas ele estava disposto a despejar dinheiro em qualquer receptáculo intelectual contando que fosse um receptáculo não experimentado. Um dos seus passatempos era esperar pelo Shakespeare americano, um passatempo ainda mais paciente do que a pesca à linha. Admirava Walt Whitman, mas achava que Luke P. Tanner de Paris, Pa., era mais progressivo do que Whitman jamais fora. Gostava de tudo o que considerava "progressivo". Achava Valentin "progressivo" fazendo-lhe, por isso, uma grave injustiça.
O aparecimento maciço de Julius K. Brayne na sala foi tão decisivo como uma sineta para jantar. Ele tinha essa grande qualidade, que muito poucos de nós podemos reivindicar, da sua presença ser tão importante como a sua ausência. Era um tipo enorme, tão gordo como alto, vestido para jantar totalmente de preto, sem nada para realçar, nem ao menos uma corrente de relógio ou um anel. O cabelo era branco e bem escovado para trás como o de um alemão, a cara era vermelha, feroz e querubínica, com um tufo escuro debaixo do lábio inferior que dava ao rosto, aliás infantil, um efeito teatral e até mefistofélico. Não foi durante muito tempo que aquele salon olhou fixamente para o célebre americano. O seu atraso já se tornara um problema doméstico e ele foi despachado com toda a velocidade para a casa de jantar dando o braço a Lady Galloway.
Os Galloways eram bastante cordiais e à vontade, excepto num aspecto. Contanto que Lady Margaret não desse o braço ao aventureiro O'Brien, o pai ficava satisfeito. E ela não o fizera, tinha entrado com muito decoro com o doutor Simon. No entanto, o velho Lord Galloway estava inquieto e quase mal educado. Foi suficientemente diplomático durante o jantar mas, quando por altura de fumarem charutos, três dos homens mais novos - Simon, o médico, Brown, o padre, e o pernicioso O'Brien, o exilado de farda estrangeira -, todos se afastaram para se juntarem às senhoras ou para fumarem no jardim de Inverno, então o diplomata inglês tornou-se realmente muito pouco diplomata. Atormentava-o todos os sessenta segundos o pensamento que o malandro do CXBrien podia estar a fazer sinais a Margaret e não tentou imaginar de que maneira. Ficou a tomar café comBrayne, o yankee de cabelos brancos que acreditava em todas as religiões, e Valentin, o francês grisalho que não acreditava em nenhuma. Podiam discutir um como outro, mas nenhum o atraía. Depois de um tempo, esta "progressiva" logomaquia atingira uma crise de tédio. Lorde Galloway levantou-se também e procurou o escritório. Perdeu-se em longos corredores durante seis a oito minutos, até que ouviu a voz alta e didáctica do médico e depois a voz pesada do padre, seguidas de riso geral. Também eles, pensou rogando uma praga, estão provavelmente discutindo sobre "ciência e religião". Mas, no instante em que abriu a porta do salon, viu apenas uma coisa - viu aquilo que não estava lá. Viu que o com andante O'Brien estava ausente e que Lady Margaret não estava também.
Levantando-se impacientemente da sala, como fizera da casa de jantar, pôs-se a andar mais uma vez compassos pesados ao longo do corredor. A ideia de proteger a filha do irlandês, argelino inútil, tornara-se qualquer coisa de fundamental e até louca na sua mente. Ao dirigir-se para as traseiras da casa, onde se encontrava o escritório de Valentin, ficou surpreendido ao encontrar a filha, que passou por ele com um rosto pálido e desdenhoso, que constituía um segundo enigma. Se ela estivera com O'Brien, onde estava O'Brien? Se ela não estivera com O'Brien, onde estivera? com uma espécie de suspeita senil e apaixonada andou às apalpadelas em direcção às traseiras escuras da mansão e, finalmente, encontrou uma porta de serviço que dava para o jardim. A lua com a sua cimitarra tinha apaziguado os efeitos da tempestade. A luz argêntea iluminava os quatro cantos do jardim. Um vulto alto, vestido de azul, andava compassos largos através do relvado em direcção à porta do escritório, a luz prateada da lua incidindo nas suas vestes militares revelava-o como sendo o com andante O'Brien. Desapareceu através das portadas para o interior da casa, deixando Lorde Galloway num indiscutível mau humor, ao mesmo tempo violento e confuso. O jardim azul prateado, com um cenário de teatro, parecia troçar dele comtoda aquela ternura tiranesca contra a qual a sua autoridade mundana estava em guerra. O comprimento e graça dos passos do irlandês encolerizavam-no como se ele fosse um rival em vez de um pai, o luar enlouquecia-o. Estava preso como que por artes mágicas num jardim de trovadores, num país de fadas como num quadro de Watteau e desejoso de se livrar de tais imbecilidades amorosas através da palavra, pôs-se a andar rapidamente atrás do seu inimigo. Ao fazê-lo tropeçou numa árvore ou numa pedra na relva, olhou para o chão primeiro irritado, depois comcuriosidade. No instante seguinte, a lua e os altos choupos contemplavam um espectáculo invulgar: um velho diplomata britânico correndo a toda a velocidade, gritando e vociferando.
Os seus gritos roucos fizeram assomar à porta do escritório um rosto pálido, os óculos reluzentes e a expressão preocupada do doutor Simon, que ouviu as primeiras palavras do nobre. Lorde Galloway gritava:
- Um cadáver na relva, um cadáver manchado de sangue O'Brien, pelo menos tinha desaparecido por completo da sua mente.
- Temos de contar a Valentin imediatamente - disse o médico, quando o outro descreveu entrecortadamente tudo o que ousara examinar. - Felizmente está cá.
E enquanto ele falava, o grande detective entrou no escritório, atraído pelos gritos. Era quase divertido observar a sua típica transformação. Viera com a natural preocupação de um anfitrião e de um cavalheiro, receando que algum convidado ou criado se estivesse a sentir mal. Quando lhe contaram o facto sangrento, tornou-se, comtoda a sua gravidade, instantaneamente vivo e eficiente, pois esta era por muito inesperada e terrível a sua profissão.
- É estranho, meus senhores - disse ele, ao saírem apressadamente para o jardim - que eu tenha procurado mistérios pelo mundo fora e agora vem um e instala-se nas minhas traseiras. Mas onde é o sítio? - Atravessaram o relvado commenos facilidade, porque uma pequena névoa começara a levantar-se vinda do rio, mas sob a orientação do perturbado Galloway encontraram o corpo caído na relva. O corpo de um homem muito alto e de ombros largos. Estava deitado de cabeça para baixo, de tal forma que eles só conseguiram ver que os seus grandes ombros estavam vestidos de preto e que a sua grande cabeça era careca, à excepção de um tufo ou dois de cabelos que se agarravam ao crânio como algas molhadas. Uma serpente escarlate de sangue rastejava debaixo da sua cabeça caída.
- Pelo menos - disse Simon, com uma profunda e curiosa entoação - não é ninguém do nosso grupo.
- Examine-o doutor - exclamou Valentin, bastante rispidamente. - Pode não estar morto.
O doutor baixou-se.
- Ele ainda não está completamente frio, mas acho que está bem morto - respondeu. - Ajudem-me a levantá-lo.
Levantaram-no cuidadosamente uns dois centímetros e meio do chão e todas as dúvidas quanto a ele estar realmente morto se resolveram imediatamente e de uma forma terrível. A cabeça caiu. Estava completamente separada do corpo. Quem quer que lhe tivesse cortado a garganta, tinha conseguido cortar também o pescoço. Até Valentin ficou um pouco chocado.
- Deve ter sido alguém forte como um gorila. - murmurou ele.
Não foi sem um arrepio, apesar de estar habituado a abortos anatómicos, que o doutor Simon levantou a cabeça. Estava levemente cortada junto do pescoço e do queixo, mas a cara estava substancialmente ilesa. Era uma cara pesada, amarela, ao mesmo tempo magra e inchada, com um nariz de falcão e pálpebras pesadas. Uma cara de um perverso imperador romano com, talvez, uns leves traços de um imperador chinês. Todos os presentes o contemplavam como olhar gelado de ignorância. Nada podia ser observado acerca do homem, excepto que ao levantarem-lhe o corpo viram debaixo dele o brilho branco de um peito de camisa conspurcada como brilho vermelho de sangue. Como dissera o doutor Simon, o homem nunca fizera parte do grupo. Mas podia muito bem ter tentado juntar-se a ele, pois viera vestido para tal ocasião.
Valentin pôs-se de gatas e examinou com a maior atenção profissional a relva e o terreno que se encontravam umas centenas de metros à volta do corpo, no que foi auxiliado menos habilmente pelo médico e, de uma forma muito vaga, pelo lorde inglês. Nada surgiu que recompensasse as suas buscas rastejantes, excepto alguns galhos quebrados ou cortados em tamanhos muito pequenos, que Valentin levantou do chão para um exame rápido e que. depois lançou fora.
- Galhos - disse ele gravemente -, galhos e um completo desconhecido com a cabeça cortada, é tudo o que há neste relvado.
Sucedeu-se um silêncio arrepiante, e em seguida o enervado Galloway gritou comforça:
- Quem é? Quem é que está ali junto ao muro do jardim? Um pequeno vulto com uma cabeça ridiculamente grande
aproximou-se deles, hesitante, envolto na neblina iluminada pela lua. Por um instante pareceu um gnomo, mas era afinal o inofensivo padre baixinho que eles tinham deixado na sala.
- Escutem - disse ele humildemente -, não há portões neste jardim.
Valentin franziu as sobrancelhas negras, um pouco zangado, como costumava fazer quando estava na presença de uma batina de padre. Mas era um homem demasiado justo para negar a pertinência da observação.
- Tem razão - disse ele. - Antes de descobrir como é que o mataram, temos de descobrir como é que ele veio parar aqui. Agora oiçam-me, meus senhores. Se isso se puder fazer sem prejuízo da minha posição e dos meus deveres, temos todos de concordar que certos nomes distintos podem muito bem ser afastados do caso. Há senhoras, há um embaixador estrangeiro. Se temos de considerar o facto como um crime, então terá de se proceder como um crime. Mas até lá posso utilizar a minha discrição. Sou o chefe da polícia, sou uma personagem tão pública que posso permitir-me ser privado. Se Deus quiser, eu hei-de inocentar todos os meus convidados antes de chamar os meus homens para que eles procurem outras pessoas. Meus senhores, pela vossa honra, nenhum de vós deixará a minha casa até amanhã ao meio-dia. Há quartos de cama que cheguem para todos. Simon, acho que você sabe onde encontrar o meu criado, Ivan, na sala de entrada. É um homem de confiança. Diga-lhe para deixar outro criado de guarda e vir ter comigo imediatamente. Lorde Galloway, o senhor é certamente a pessoa mais indicada para contar o sucedido às senhoras e evitar o pânico. Elas também deverão ficar. O padre Brown e eu ficaremos como cadáver.
Quando o espírito de chefe se manifestava em Valentin, ele era obedecido como um toque de clarim. O doutor Simon foi até ao salão de armas e expediu Ivan, o detective particular do detective público. Galloway foi à sala e contou as terríveis notícias com o tacto necessário de modo que quando o grupo se reuniu aí as senhoras já estavam acalmadas. Entretanto, o bom padre e o bom ateu permaneciam à cabeça e aos pés do homem morto, imóvel ao luar, como estátuas simbólicas das suas duas filosofias de morte.
Ivan, o homem de confiança com a cicatriz e os bigodes, saiu de casa como uma bala e veio a correr disparado através do relvado até junto de Valentin, como um cão que busca o dono. O seu rosto lívido estava muito animado como calor desta história policial doméstica e foi com uma quase desagradável ânsia que ele pediu licença ao patrão para examinar os restos mortais.
- Está bem, examine, se quiser, Ivan - disse Valentin -, mas não demore muito. Temos de entrar e atirar comisto para dentro de casa.
Ivan levantou a cabeça, e depois quase a deixou cair.
- Como? - disse ele, falando de modo ofegante - é... não, não é, não pode ser. O senhor conhece este homem?
- Não - disse Valentin, comindiferença -, é melhor entrarmos. Transportaram entre eles o cadáver para um sofá no escritório e em seguida encaminharam-se para o salão.
O detective sentou-se calmamente a uma secretária, mas o seu olhar era o olhar de ferro de um juiz num julgamento. Tomou umas rápidas notas num papel que tinha à sua frente e depois disse:
- Estão todos aqui?
- O senhor Brayne não está - disse a duquesa de Mont St. Michel, olhando em redor.
- Não - disse Lorde Galloway numa voz áspera. - E também não está o senhor Neil O'Brien, creio eu. Vi esse cavalheiro passar no jardim enquanto o cadáver ainda estava quente.
- Ivan - disse o detective -, vá buscar o com andante O'Brien e o senhor Brayne. O senhor Brayne está a acabar de fumar um charuto na sala de jantar, o com andante O'Brien, julgo eu, está a passear no jardim de Inverno. Não tenho a certeza.
O fiel criado saiu como uma seta da sala, e antes que alguém pudesse mexer-se ou falar, Valentin prosseguiu com a mesma rapidez militar de exposição.
- Todos os presentes sabem que foi encontrado um homem morto no jardim, com a cabeça completamente cortada do corpo. Doutor Simon, o senhor examinou-a. Acha que para cortar um pescoço assim é preciso muita força? Ou, talvez, apenas uma faca muito afiada?
- Eu diria que não podia de maneira nenhuma ser feito com uma faca - disse o pálido médico.
- Tem alguma ideia - prosseguiu Valentin - do instrumento com a qual podia ser feito?
- Segundo as probabilidades actuais, realmente não tenho disse o doutor, arqueando as sobrancelhas. - Não é fácil cortar um pescoço por completo, mesmo grosseiramente, e este foi
um corte total. Podia ser feito com uma alabarda, um machado
de carrasco ou um antigo espadalhão.
- Mas, santo Deus! - exclamou a duquesa, quase histérica -, não há por aqui espadas nem alabardas.
Valentin ainda estava ocupado com o papel que tinha à sua frente.
- Diga-me - disse ele, ainda a escrever rapidamente -, podia ter sido feito com um sabre comprido de cavalaria francesa?
Bateram ao de leve à porta, o que, por alguma razão pouco racional, fez gelar o sangue de todos, como o bater à porta de Macbeth. No meio do silêncio gelado, o doutor Simon conseguiu dizer:
- Um sabre sim, acho que podia.
- Obrigado - disse Valentin. - Entre, Ivan.
Ivan, o homem de confiança, abriu a porta e introduziu na sala o com andante O'Brien que, finalmente, descobrira a andar outra vez pelo jardim.
O oficial irlandês estava no limiar da porta, perturbado e desconfiado.
- O que é que quer de mim? - exclamou ele.
- Por favor, sente-se -, disse Valentin num tom agradável e correcto. - Você não traz a sua espada! Onde é que está?
- Deixei-a na mesa da biblioteca - respondeu O'Brien, a sua pronúncia irlandesa acentuando-se como seu humor alterado. Estava a incomodar-me.
- Ivan - disse Valentin -, por favor, vá buscar a espada do Com andante à biblioteca. - Depois, ao desaparecer o criado: Lorde Galloway diz que o viu deixar o jardim, logo antes de ele ter encontrado o cadáver. O que é que você estava a fazer no jardim?
O com andante atirou-se despreocupadamente para uma cadeira.
- Oh - exclamou ele, em puro irlandês -, a admirar a lua. Em comunhão com a Natureza, meu filho.
Caiu um profundo silêncio que se manteve, e no final dêste novamente outra vez aquele simples e terrível bater na porta. Ivan reapareceu, transportando uma bainha de aço para a espada.
- Isto é tudo o que encontrei - disse ele.
- Ponha-a em cima da mesa - disse Valentin, sem levantar os olhos.
Houve um silêncio desumano na sala, como o mar de silêncio desumano que paira junto do banco dos réus, onde está o assassino condenado à morte. As exclamações fracas da duquesa há muito que se tinham extinguido. O ódio dilatado de Lorde Galloway estava saciado e até acalmado. A voz que se fez ouvir foi completamente inesperada.
- Acho que posso explicar-vos - exclamou Lady Margaret, nessa voz clara e agitada que uma mulher corajosa emprega em público. - Posso explicar-vos o que senhor O'Brien estava a fazer no jardim visto que ele está compelido ao silêncio. Estava a pedir-me em casamento. Eu recusei, disse-lhe que na minha situação familiar só lhe podia oferecer o meu respeito. Ele ficou um pouco zangado com isso, não pareceu ter em grande conta o meu respeito. Gostava de saber - acrescentou ela, com um leve sorriso - se ele o apreciará agora. Porque eu ofereço-lho agora. Juro-vos que ele nunca cometeu tal crime.
Lorde Galloway tinha avançado para junto da filha e estava a intimidá-la como que ele imaginava ser uma meia voz.
- Cala a boca, Maggie - disse ele num atroador sussurro. Porque é que hás-de defender o tipo? Onde está a espada dele? Onde está a sua maldita cavalaria?...
Parou devido ao estranho olhar fixo comque a filha o estava a observar, um olhar que era de facto um íman sombrio para todo o grupo.
- Velho tonto! - disse ela em voz baixa sem pretensão de piedade. - O que é que julga que está a tentar provar? Afirmo-lhe que este homem estava inocente enquanto estava comigo. Mas se ele não estava inocente, nem por isso deixava de estar comigo. Se ele tivesse assassinado um homem no jardim, quem é que teria visto? Quem é que pelo menos teria sabido? Detesta assim tanto Neil que põe a sua própria filha?...
Lady Galloway gritava. Todos os outros ficaram emocionados diante do contacto comessas tragédias satânicas que aconteceram entre amantes do passado. Viram o rosto orgulhoso e pálido da aristocrata escocesa e o seu amante, o aventureiro irlandês, como se fossem velhos retratos numa casa escura.
O longo silêncio estava cheio dessas informes memórias históricas de maridos assassinados e de nocivos amantes.
No meio deste silêncio mórbido uma voz inocente disse:
- Era um charuto muito comprido?
A mudança de pensamento foi tão brusca que eles tiveram de olhar em volta para ver quem falara.
- Quero dizer - afirmou o pequeno padre Brown do canto da sala -, quero dizer, o charuto que o senhor Brayne está a fumar. Parece ser quase tão comprido como uma bengala.
Apesar da despropositada afirmação havia assentimento, assim como irritação, no rosto de Valentin ao levantar a cabeça.
- Muito bem - observou ele vivamente. - Ivan, vá outra vez ver o que se passa como senhor Brayne e traga-o aqui imediatamente.
Mal o factoto fechou a porta Valentin dirigiu-se à rapariga com um zelo inteiramente novo.
- Lady Margaret - disse ele -, todos sentimos, estou certo disso, tanto gratidão como admiração pelo facto de explicar a conduta do com andante. Mas há ainda uma lacuna. Lorde Galloway, creio eu, encontrou-a passando do escritório para a sala, e foi só alguns minutos depois que entrou no jardim e encontrou o com andante ainda a andar por lá.
- O senhor tem de se lembrar - respondeu Margaret, com uma leve ironia na voz - que eu acabara de o recusar, por isso era pouco provável que tivéssemos voltado de braço dado. Ele é um cavalheiro, ficou para trás, e por isso foi acusado de assassínio.
- Nesses breves minutos - dísse Valentin gravemente - ele podia realmente...
Tornou a ouvir-se bater à porta, e Ivan apareceu com a sua cicatriz no rosto.
- Peço desculpa - disse ele -, mas o senhor Brayne saiu aqui de casa.
- Saiu de casa! - exclamou Valentin e, pela primeira vez, levantou-se.
- Desapareceu. Fugiu. Evaporou-se - respondeu Ivan, num francês jocoso. - O casaco e o chapéu dele desapareceram também. E vou contar-vos uma coisa que ultrapassa tudo. Saí a correr de casa para ver se encontrava alguns vestígios dele e encontrei um. E que grande vestígio que ele é!
- O que é que quer dizer? - perguntou Valentin.
- Eu mostro-lhe - disse o criado, e reapareceu com um sábre de cavalaria raiado de sangue junto da ponta e da extremidade. Todos na sala o olharam como se fosse um raio junto com um trovão, mas o experiente Ivan prosseguiu calmamente:
- Encontrei isto - disse ele - atirado por entre os arbustos a uns cerca de cinquenta metros da rua que vai para Paris. Por outras palavras, no lugar para onde o vosso respeitável senhor Brayne a atirou quando fugiu.
Houve de novo um silêncio, mas diferente. Valentin pegou no sabre e examinou-o com uma natural concentração de pensamento virando um rosto respeitador para O'Brien.
- Com andante - disse ele -, confiamos que o senhor apresente esta arma se for necessário que a polícia a examine. Entretanto - acrescentou ele enfiando comforça a espada na bainha -, deixe-me devolver-lhe a sua arma.
Perante o simbolismo militar da acção o grupo não pôde deixar de aplaudir.
Para Neil O'Brien, de facto, esse gesto foi o ponto decisivo da sua existência. Pela altura em que, de manhã, percorria de novo o misterioso jardim, a futilidade trágica da sua conduta habitual tinha-o abandonado. Era um homem commuitas razões para ser feliz. Lorde Galloway era um cavalheiro e tinha apresentado desculpas, Lady Margaret era melhor do que uma senhora, uma mulher pelo menos, e talvez lhe tivesse dado qualquer coisa melhor do que uma desculpa, enquanto vagueavam por entre os velhos canteiros antes do pequeno-almoço. Todo o grupo estava mais despreocupado e humano, pois, apesar de o enigma da morte se manter, o peso da suspeita saíra de cima de todos eles e fora enviado, fugindo, para Paris, como estranho milionário, um homem que mal conheciam. O demónio fora lançado fora de casa. Ele próprio se tinha lançado fora.
Não obstante, o enigma permanecia, e quando O'Brien se atirou para cima de uma cadeira do jardim ao lado do doutor Simon, essa personalidade eminentemente científica logo o resumiu. Não conseguiu que O'Brien, cujos pensamentos se demoravam em coisas mais agradáveis, falasse muito.
- Não posso dizer que o caso me interesse grandemente disse o irlandês -, em especial porque parece muito simples agora. Aparentemente Brayne detestava este desconhecido por alguma razão, atraiu-o ao jardim e matou-o com a minha espada. Depois fugiu para a cidade e atirou fora a espada ao seguir o seu caminho. A propósito, Ivan disse-me que o cadáver tinha um dólar americano na algibeira. Era um compatriota de Brayne, e com isso o assunto parece estar encerrado. Não vejo quaisquer dificuldades no caso.
- Há cinco dificuldades colossais - disse o médico calmamente. - Não me interprete mal. Não duvido que tenha sido Brayne. A sua fuga, julgo eu, prova-o. Mas como é que ele o fez? Primeira dificuldade: por que razão um homem vai matar outro homem com um sabre grande e desajeitado quando quase pode matá-lo com um canivete que pode guardar novamente no bolso. Segunda dificuldade: porque não houve barulho ou gritos? Será vulgar um homem ver outro a aproximar-se brandindo uma cimitarra e não fazer nenhum reparo? Terceira dificuldade: um criado esteve de guarda à porta da frente toda a noite e um rato não consegue entrar por parte nenhuma no jardim de Valentin. Como é que o homem morto conseguiu entrar no jardim? Quarta dificuldade: dadas as mesmas condições, como é que Brayne saiu do jardim?
- E a quinta - disse Neil, com os olhos fixos no padre inglês, que se aproximava deles devagar.
- É uma insignificância - disse o médico -, mas acho que é uma insignificância estranha. Quando eu primeiro vi como a cabeça tinha sido cortada, supus que o assassino atacara mais do que uma vez. Mas ao proceder ao exame deparei comvários golpes de lado a lado da parte cortada. Noutras palavras, foram desferidos depois da cabeça ter sido cortada. Seria que Brayne detestava assim tão diabolicamente o seu inimigo que o ficou ferindo com o sabre, ao luar?
- Horrível! - disse O'Brien, e estremeceu.
Brown, o pequeno padre, tinha chegado enquanto falavam e esperava, com a sua característica timidez, até que eles acabassem. Depois, disse desajeitadamente:
- Desculpem interrompê-los. Mas mandaram-me contar-vos as notícias!
- Notícias? - repetiu Simon, e fixou-o através dos óculos.
- Sinto, sinto muito - disse o padre Brown combrandura.
- Sabem, houve outro crime.
Os dois homens saltaram do assento, deixando-o a balançar.
- E o que é ainda mais estranho - continuou o padre, com os olhos tristes fixados nos rododendros -... encontraram a segunda cabeça a sangrar no rio, a alguns metros da estrada que Brayne seguiu para Paris. Por isso eles supõem que...
- Santo Deus! - exclamou O'Brien. - Será que Brayne é monomaníaco?
- Há vendettas americanas - disse o padre impassivelmente. Depois acrescentou: - Querem que venham vê-la à biblioteca.
O com andante O'Brien seguiu os outros rumo à investigação, sentindo-se decididamente maldisposto. Como soldado, detestava esta mortandade calada. Onde é que estas amputações extravagantes iriam parar? Primeiro, uma cabeça fora cortada, a seguir outra. Neste caso (disse ele para consigo amargamente), não era verdade que duas cabeças valessem mais do que uma. Ao atravessar o escritório ele quase cambaleou diante de uma chocante coincidência. Em cima da mesa de Valentin estava um retrato de uma terceira cabeça sangrando e era a cabeça do próprio Valentin. Vendo melhor, era apenas um Jornal nacionalista chamado A Guilhotina, que todas as semanas mostrava um dos seus opositores políticos de olhos revolvidos e feições distorcidas logo após a execução, e Valentin era Um anticlerical de certo renome. Mas O'Brien era um irlandês, com um certo tipo de castidade mesmo nos seus pecados, e o seu estômago revoltava-se contra a grande brutalidade do intelecto que só pertence à França. Sentia Paris como um todo, dos grotescos nas igrejas góticas até às grosseiras caricaturas nos jornais. Lembrava-se dos enormes gracejos da Revolução. Via a cidade inteira como uma energia torpe, desde o desenho sanguinário que se encontrava na mesa de Valentin até onde, sobre uma montanha e floresta de gárgulas, o grande diabo arreganha os dentes em Notre Dame.
A biblioteca era comprida, de tectos baixos e escura. A luz que entrava nela passava por debaixo das persianas corridas e ainda tinha a cor rósea da manhã. Valentin e o seu criado Ivan estavam à espera deles junto à extremidade mais alta da secretária comprida e levemente inclinada, na qual jaziam os restos mortais, que pareciam enormes no lusco-fusco. O grande e negro corpo e a cara amarela do homem encontrado no jardim confrontava-os, essencialmente inalterados. A outra cabeça, que tinha sido pescada por entre os juncos do rio nessa manhã, jazia escorrendo e pingando ao lado da prinxeira. Os criados de Valentin ainda estavam à procura de recuperar os restos do segundo cadáver, que se supunha estar a boiar. O padre Brown, que não parecia de todo estar a compartilhar da hipersensibilidade de O'Brien, dirigiu-se para a segunda cabeça e examinou-a com o seu cuidadoso piscar de olhos. Era um pouco mais do que um pedaço de cabelo branco, molhado, franjado com uma chama de prata na luz vermelha e rosa da manhã. A cara, que parecia de um tipo feio, enrubescido e talvez criminoso, fora muito danificada ao debater-se na água contra as pedras e árvores.
- bom dia, com andante O'Brien - disse Valentin com uma calma cordialidade. -Já sabe, creio eu, da última experiência de Brayne em questões de carnificina.
O padre Brown ainda estava inclinado sobre a cabeça como cabelo branco e disse sem levantar os olhos:
- Suponho que há a certeza de que Brayne também cortou esta cabeça.
- Bem, parece ser de bom senso - disse Valentin, com as mãos nas algibeiras. - Morto da mesma maneira que o outro. Encontrado a uns metros de distância do outro. E cortado com a mesma arma que sabemos que ele levou embora.
- Sim, sim, eu sei - respondeu o padre Brown de modo submisso. - No entanto, duvido que Brayne pudesse ter cortado esta cabeça.
- Porque não? - perguntou o doutor Simon com o olhar fixo e judicioso.
- Bem, doutor - disse o padre, levantando os olhos e pestanejando -, será que um homem pode cortar a sua própria cabeça? Não sei.
O'Brien sentiu um universo louco estalando junto aos seus ouvidos, mas o médico precipitou-se com uma impetuosa natureza prática e puxou para trás o cabelo branco e húmido.
- Oh, não há dúvida de que é Brayne - disse o padre serenamente. - Ele tinha exactamente esse corte na orelha esquerda.
O detective, que estivera a olhar o padre com o olhar fixo e brilhante, abriu a sua boca cerrada e disse rispidamente:
- Padre Brown, o senhor parece saber muita coisa a respeito dele.
- Pois sei - disse o homenzinho comsimplicidade. Andei com ele durante umas semanas. Ele estava a pensar ingressar na nossa igreja.
A estrela do fanático apareceu nos olhos de Valentin que avançou em direcção ao padre com as mãos cerradas.
- E talvez - exclamou ele, com um riso de escárnio -, talvez ele estivesse a pensar em deixar todo o dinheiro à sua igreja.
- Talvez estivesse - disse Brown, impassível - É possível. •-Nesse caso - exclamou Valentin com um sorriso terrível -
o senhor deve decerto saber muita coisa a respeito dele. A respeito da vida dele e da...
O com andante O'Brien pôs uma mão no braço de Valentin.
- Deixe-se dessas tolices caluniosas - disse ele - ou ainda haverá mais espadas.
Mas Valentin (sob o olhar calmo e humilde do padre) já se tinha recomposto.
- Bem - disse ele resumidamente -, as opiniões pessoais das pessoas podem esperar. Vocês, meus senhores, ainda estão obrigados pela vossa promessa a ficar aqui e têm de cumpri-la. Aqui o Ivan dir-vos-á qualquer coisa mais que queiram saber. Eu tenho de ir tratar da minha vida e escrever às autoridades. Não podemos manter este caso em silêncio por mais tempo. Se houver mais notícias estarei no meu escritório a escrever.
- Há mais algumas notícias, Ivan? - perguntou o doutor Simon, enquanto o chefe da polícia saía do quarto.
- Apenas uma coisa mais senhor, acho eu - disse Ivan, franzindo o seu velho rosto cinzento -, mas é importante, também, à sua maneira. É aquele sujeito que encontraram no relvado
- e apontou sem pretensão de respeito para o corpo grande e negro com a cabeça amarela... Descobrimos quem ele era.
- Ah, é isso! - exclamou o médico, espantado - E quem é ele?
- O nome dele é Arnold Becker - disse o subdetective -, se bem que fosse conhecido sob muitos nomes falsos. Era um patife do tipo vagabundo e sabe-se que esteve na América, foi lá que Brayne o encontrou. Não tínhamos muito a ver com ele, pois ele trabalhava sobretudo na Alemanha. Comunicámos, é claro, com a polícia alemã. Mas, por muito estranho que pareça, havia um irmão gémeo dele, chamado Louis Becker, que nos deu muito que fazer. De facto, achámos necessidade de guilhotiná-lo mesmo ontem. Uma coisa estranha meus senhores, mas quando vi aquele tipo estatelado no chão tive o maior sobressalto da minha vida. Se eu não tivesse visto Louis Becker guilhotinado com os meus próprios olhos, teria jurado que era Louis Becker ali estendido na relva. Depois, é claro, lembrei-me do irmão gémeo dele na Alemanha, seguindo a pista...
O explicativo Ivan parou de falar, pela excelente razão de que ninguém estava a ouvi-lo.
O com andante e o médico estavam os dois a olhar fixamente para o padre Brown, que se tinha levantado rigidamente e segurava comtoda a força as fontes como um homem atacado de uma dor súbita e violenta.
- Parem, parem, parem! - exclamou ele. - Parem de falar por um minuto, pois eu compreendo metade. Deus dar-me-á força? O meu cérebro dará o salto necessário e poderá ver tudo? Que Deus me ajude! Eu costumava ser bastante capaz de pensar. Era capaz de parafrasear qualquer página de S. Tomás de Aquino. A minha cabeça irá estourar, ou irá compreender? Compreendo metade, eu só compreendo metade.
Escondeu a cabeça nas mãos e assim ficou numa espécie de rígida tortura de pensamento ou oração, enquanto os outros 'três apenas puderam ficar a olhar fixamente para este estranho prodígio.
Quando o padre Brown deixou cair as mãos, estas mostraram um rosto fresco e sério, como o de uma criança. Deu um enorme suspiro e disse:
- Vamos tratar disto o mais depressa possível. Olhem aqui, esta vai ser a maneira mais rápida de vos convencer a todos da
" verdade. - Voltou-se para o médico. - Dr. Simon - disse ele -, o senhor tem uma boa cabeça, ouviu-o esta manhã estar a fazer as cinco perguntas mais difíceis relacionadas comeste caso. Pois bem, se fizer essas perguntas outra vez, eu responderei a elas.
O pince-nez de Simon caiu-lhe do nariz, tão grandes eram a sua dúvida e admiração, mas respondeu imediatamente:
- Bem, a primeira pergunta é esta: porque é que um homem mata outro com um sabre desajeitado quando pode matar com um punhal ?
- Um homem não pode cortar a cabeça com um punhal disse Brown calmamente -, e para este assassínio o corte da cabeça era absolutamente necessário.
- Porquê? - perguntou O'Brien cominteresse.
- E a pergunta seguinte? - perguntou o padre Brown.
- Porque é que o homem não gritou? - perguntou o médico. - Sabres em jardins são certamente coisas fora do lugar.
- Galhos - disse o padre sombriamente, e voltou-se para a janela que dava para a cena do crime -, ninguém descobriu a razão de ser dos galhos. Porque razão se encontravam no relvado (olhem para ele) tão longe de qualquer árvore? Não foram quebrados, foram cortados. O assassino entreteve o seu inimigo com alguns truques com o sabre, mostrando como era capaz de cortar um ramo no ar, ou coisa assim. Então, quando o inimigo se baixou para ver o resultado, houve um corte silencioso e a cabeça caiu.
- Isso parece-me bastante plausível - disse o médico. Mas as minhas duas perguntas seguintes deixam perplexo qualquer um. O padre ainda estava a olhar criticamente para fora da janela e esperou.
- O senhor sabe que todo o jardim estava encerrado como um quarto hermeticamente fechado - continuou o médico. Como é que o desconhecido entrou no jardim?
Sem se voltar, o pequeno padre respondeu: ~ Nunca existiu um desconhecido no jardim. Houve um silêncio, e em seguida uma súbita gargalhada de um riso quase infantil que aliviou a tensão. O absurdo da observação de Brown provocou um franco escárnio de Ivan.
- Oh! - exclamou ele -, então não arrastámos um cadáver grande e gordo para cima do sofá a noite passada? Ele não tinha entrado no jardim, suponho eu?
~ Entrado no jardim? - repetiu Brown reflectidamente. Não, decididamente não.
- Diabos levem tudo isto-exclamou Simon. - Um homem entra no jardim, ou não entra?
- Não necessariamente - disse o padre, com um ligeiro sorriso. - Qual é a pergunta seguinte, doutor?
- Suponho que você esteja doente - exclamou o doutor Simon vivamente -, mas vou fazer a pergunta seguinte, se quiser. Como é que Brayne saiu do jardim?
- Ele não saiu do jardim-disse o padre, olhando ainda para fora da janela.
- Não saiu do jardim? - explodiu Simon.
- Não completamente - disse o padre Brown.
Sinion agitou os punhos num frenesi de lógica francesa.
- Um homem sai do jardim ou não sai - gritou ele. ~ Nem sempre - disse o padre Brown.
O doutor Simon pôs-se em pé, impaciente.
- Não tenho tempo a perder em conversas sem sentido gritou ele, irado. - Se o senhor não compreende que um homem só pode estar de um lado do muro ou do outro lado, não o maço mais.
- Doutor - disse o clérigo mais cortesmente. - Sempre nos demos muito bem. Por amor à nossa velha amizade, espere e diga-me qual é a sua quinta pergunta. O impaciente Simon caiu numa cadeira junto à porta e disse resumidamente:
- A cabeça e os ombros tinham cortes feitos de uma forma esquisita. Parecem que foram feitos após a morte.
- Sim - disse o padre imóvel -, foram feitos exactamente para vos fazer admitir a única simples falsidade que os senhores admitiram. Foram feitos para tomarem por certo que a cabeça pertencia ao corpo.
A região fronteiriça do cérebro, onde se formam todos os monstros, moveu-se terrivelmente no gaélico O'Brien. Ele sentiu a presença caótica de todos os homens-cavalo e mulheres-peixe que a imaginação anormal do homem concebera. Uma voz mais antiga que os seus primeiros antepassados estava a segredar-lhe:
- Afaste-se do jardim monstruoso onde cresce a árvore como fruto traiçoeiro. Evite este jardim maléfico onde morreu o homem comduas cabeças. No entanto, enquanto estas formas simbólicas passavam através do antigo espelho da sua alma irlandesa, o intelecto afrancesado estava muito atento e observava o estranho padre de perto e incredulamente como todos os outros do grupo o faziam.
O padre Brown voltara-se finalmente e permanecia contra a janela, como rosto mergulhado na sombra, eles podiam ver que estava pálido como cinza. Não obstante, falou comtodo o juízo, como se não houvesse nenhumas almas gaélicas na face da terra.
- Os senhores - disse ele - não encontraram o corpo desconhecido de Becker no jardim. Não encontraram qualquer corpo desconhecido no jardim. Apesar do racionalismo do doutor Simon, eu continuo a afirmar que Becker só estava presente em parte. Olhem para aqui! - apontando para o volume negro do misterioso cadáver. - Os senhores nunca viram esse homem em dias da vossa vida. Alguma vez viram esse homem?
Fez rolar a cabeça careca do desconhecido e pôs no seu lugar a cabeça de cabelos brancos que estava junto dela. E aí estava, completo, unificado, indiscutível, Julius K. Brayne.
- O assassino - prosseguiu Brown calmamente - cortou a cabeça do seu inimigo e atirou com a espada para o outro lado do muro. Mas era demasiadamente esperto para atirar apenas a espada. Atirou também a cabeça para o outro lado do muro. Depois bastou-lhe colocar outra cabeça no cadáver e (como ele insistisse num inquérito confidencial) todos vós imaginaram um homem totalmente novo.
- Colocar outra cabeça! - disse O'Brien, olhando fixamente. - Que outra cabeça? As cabeças não nascem nos arbustos de jardim, não é?
- Não - disse o padre Brown roucamente, olhando para as suas botas. Há apenas um sítio onde nascem. Nascem no cesto da guilhotina, junto ao qual estava o chefe da polícia, Aristide Valentin, a não menos de uma hora do crime. Oh, meus amigos, oiçam-me durante mais um minuto antes de darem cabo de mim. Valentin é um homem honesto, se ser louco por uma causa discutível é ser honesto. Mas já alguma vez viram naquele olhar frio e cinzento que ele é louco? Ele faria qualquer coisa, qualquer, para acabar como que ele chama de superstição da Cruz. Lutou contra ela e agora matou por causa dela. Os loucos milhões de Brayne tinham até agora sido espalhados por tantas seitas que pouco fizeram para alterar o equilíbrio das coisas. Mas Valentin ouviu um boato de que Brayne, como tantos cépticos distraídos, estava a ser levado para nós, e isso era uma coisa bem diferente. Brayne iria fazer ofertas à empobrecida e combativa Igreja francesa, apoiaria seis jornais nacionalistas como A Guilhotina. A batalha já estava travada numa direcção e o fanático incendiou-se diante do risco. Resolveu destruir o milionário e fê-lo como era de esperar que o maior dos detectives cometesse o seu único crime. Subtraiu a cabeça de Becker por meio de uma qualquer desculpa criminológica e levou-a para casa no seu cofre oficial. Teve aquela última discussão com Brayne, de que Lorde Galloway não ouviu o fim. Como esta falhasse, levou-o para o jardim fechado, falou da arte de esgrimista, utilizou os galhos e uma espada como exemplo, e...
Ivan, o homem da cicatriz levantou-se de um salto.
- O senhor é um louco - gritou. - Vai ter como meu patrão imediatamente, nem que eu tenha de o levar pela...
- Bem, eu ia ter com ele - disse Brown gravemente. - Tenho de lhe pedir que confesse.
Foram todos comtoda a pressa para o silencioso escritório de Valentin, levando o infeliz Brown como se fosse um refém ou um sacrificado.
O grande detective estava sentado à secretária aparentemente demasiado ocupado para ouvir a entrada turbulenta do grupo. Pararam um momento e alguma coisa no aspecto daquelas costas direitas e elegantes fez comque o médico corresse para ele de repente. Um toque e um olhar mostraram-lhe que ao alcance de Valentin estava uma caixinha de comprimidos e que Valentin estava morto na cadeira e na cara do suicida pairava algo mais do que o orgulho de Catão.
CAPÍTULO iII
Os pés estranhos
Se encontrar um membro desse clube selecto que é "Os Doze Verdadeiros Pescadores" entrando no Hotel Vernon para o jantar anual do clube, poderá observar que, ao tirar o sobretudo, o smoking dele é verde e não preto. Se (supondo que você tem a audácia de se dirigir a tal ente) lhe perguntar porquê, ele responderá provavelmente que o faz para evitar ser confundido como criado. Você então retirar-se-á, aniquilado. Mas deixará atrás de si um mistério por resolver e uma história que merece ser contada.
Se (para prosseguir o mesmo filão de improvável conjectura) por acaso encontrasse um pequeno padre, chamado Brown, pessoa branda e trabalhador esforçado, e lhe perguntasse o que é que ele pensava ser o mais extraordinário golpe de sorte da sua vida, ele responderia que em conjunto a sua maior proeza fora realizada no Hotel Vernon, onde ele tinha evitado um crime e talvez salvo uma alma, somente por escutar alguns passos num corredor. Talvez ele se sinta um pouco orgulhoso desta sua louca e maravilhosa suposição, e é possível que se refira a ela. Mas visto ser imensamente improvável que você alguma vez suba o suficiente na sociedade para encontrar os "Doze Verdadeiros Pescadores" ou que desça o suficiente por entre bairros de lata e criminosos para encontrar o padre Brown, receio bem que só possa ouvir essa história através de mim.
O Hotel Vernon, onde os "Doze Verdadeiros Pescadores" organizavam os seus jantares anuais, era uma instituição que só podia existir numa sociedade oligárquica que quase enlouquecera devido às boas maneiras. Era esse produto confuso um empreendimento comercial "único". Isto é, era uma coisa que dava lucro, não por atrair pessoas, mas por afastá-las. No coração de uma plutocracia os negociantes tornam-se suficientemente astutos ao serem mais exigentes que os seus clientes. Criam dificuldades a fim de que os seus ricos e enfastiados clientes possam gastar dinheiro e diplomacia em superá-las. Se existisse um hotel elegante em Londres onde nenhum homem que tivesse menos de um metro e oitenta e dois pudesse entrar, a sociedade organizaria festas para homens de um metro e oitenta e dois poderem jantar nesse mesmo hotel. Se houvesse um restaurante caro que, por mero capricho do seu proprietário, só estivesse aberto às quintas-feiras à noite, estaria cheio às quintas-feiras à noite. O Hotel Vernon ficava, como por acaso, a um canto duma praça em Belgravia. Era um hotel pequeno e muito inconveniente. Mas essas mesmas inconveniências eram consideradas como muros, protegendo uma classe especial. Uma inconveniência era considerada, particularmente, como sendo de importância vital: o facto de praticamente apenas vinte e quatro pessoas poderem jantar nesse lugar ao mesmo tempo. A única mesa grande de jantar era a célebre mesa do terraço, que ficava ao ar livre, numa espécie de varanda que dava para um dos mais deliciosos jardins antigos de Londres. Acontecia que mesmo os vinte e quatro lugares desta mesa só podiam ser apreciados com bom tempo, o que tornava o prazer não só mais difícil como ainda mais desejável. O proprietário actual do hotel era um judeu chamado Lever e ele conseguia que o hotel rendesse quase um milhão por tornar difícil o seu acesso. É evidente que combinava esta limitação no âmbito da sua empresa como maior refinamento na sua execução. Os vinhos e a cozinha eram realmente tão bons como os melhores da Europa e o comportamento dos seus servidores reflectia exactamente o humor estável da alta sociedade inglesa. O proprietário conhecia todos os seus criados como os dedos da mão. Havia apenas quinze ao todo. Era muito mais fácil ser membro do Parlamento do que ser criado naquele hotel. Cada criado era ensinado num silêncio terrível e lisura, como se fosse um criado de um gentil-homem. E de facto havia, geralmente, pelo menos um criado para cada um dos cavalheiros que lá jantava.
O clube dos "Doze Verdadeiros Pescadores" não teria consentido em jantar noutro sítio qualquer a não ser em tal lugar, pois insistia numa luxuosa intimidade e teria ficado bastante perturbado como simples pensamento de que qualquer outro clube estivesse também a jantar no mesmo edifício. Quando do seu jantar anual, os Pescadores tinham o hábito de expor todos os seus tesouros, como se estivessem numa casa particular, em especial o afamado conjunto de facas e garfos de peixe que eram as insígnias da sociedade, cada um deles trabalhado em prata comforma de um peixe e tendo cada um uma pérola incrustada no cabo. Estes talheres eram sempre utilizados no prato de peixe e o prato de peixe era sempre o mais magnífico desse magnífico repasto. O clube possuía um vasto número de cerimónias e de práticas, mas não tinha história nem objectivo. Por esse motivo é que era tão aristocrático. Não era preciso ser qualquer coisa para ser um dos Doze Pescadores. A não ser que você fosse já uma certa espécie de pessoa, nunca ouviria falar deles. O clube existia há doze anos. O seu presidente era o senhor Audley, o seu vice-presidente era o Duque de Chester. Se eu consegui de alguma forma transmitir a atmosfera deste espantoso hotel, o leitor poderá sentir-se admirado de como eu vim a saber qualquer coisa a respeito dele e poderá especular como uma pessoa tão simples como o meu amigo padre Brown conseguiu entrar para esta importante galeria. No que diz respeito a isso, a minha história é simples, ou até mesmo vulgar. Existe no mundo um agitador e demagogo muito velho que irrompe nos mais refinados refúgios com a terrível informação de que todos os homens são irmãos e, onde quer que fosse este defensor da igualdade no seu pálido cavalo, era missão do padre Brown segui-lo. Um dos criados, um italiano, tinha sofrido um ataque de paralisia naquela tarde e o seu patrão judeu, maravilhando-se comtais superstições, consentira em mandar chamar o padre católico mais próximo. O que o criado confessou ao padre Brown não nos interessa pela excelente razão que o clérigo não o divulgou, mas aparentemente comprometeu-o a escrever um bilhete, ou uma declaração, para transmitir uma mensagem, ou para corrigir qualquer injustiça. O padre Brown, por conseguinte, com uma humilde ousadia que ele teria utilizado igualmente no Palácio de Buckingham, pediu que lhe providenciassem um quarto e material para escrever. O senhor Lever estava dividido. Era um homem bondoso e possuía também essa falsa imitação de bondade que é a aversão por qualquer dificuldade ou cena. Ao mesmo tempo, a presença de um estranho no seu hotel nessa noite era como uma mancha de sujidade em qualquer coisa acabada de limpar. Não havia nunca no Hotel Vernon qualquer antecâmara, não havia ninguém à espera na sala de entrada nem nenhuns clientes vindos ao acaso. Havia quinze criados. Havia doze hóspedes. Seria tão surpreendente encontrar um novo hóspede no hotel naquela noite como encontrar um novo irmão tomando o pequeno-almoço ou o chá com a nossa própria família. Além do mais, o aspecto do padre era de segunda ordem e a sua roupa estava enlameada. Um simples vislumbrar à distância do referido padre poderia precipitar uma crise no clube. O senhor Lever, por fim, encontrou um plano para encobrir a vergonha, visto que não podia eliminá-la. Quando se entra no Hotel Vernon (coisa que você nunca fará), passa-se por um pequeno corredor decorado com alguns quadros desbotados, mas importantes, e chega-se ao vestíbulo principal e sala de estar, os quais dão, à direita, para corredores que conduzem aos quartos de hóspedes, e à esquerda, para um corredor idêntico que vai dar às cozinhas e aos escritórios do hotel. Logo à esquerda fica o canto de um escritório envidraçado, que confina com a sala de estar, como uma casa dentro de uma casa, por assim dizer, como o antigo bar do hotel que, provavelmente em tempos, ocupava o seu lugar.
Este escritório era ocupado pelo representante do proprietário (ninguém naquele lugar jamais aparecia pessoalmente, se isso pudesse ser evitado), e mesmo do outro lado do escritório, no caminho para os alojamentos dos criados, ficava o vestiário dos homens, a última fronteira dos domínios dos cavalheiros. Mas entre o escritório e o vestiário ficava um pequeno quarto privado sem qualquer outra saída, utilizado às vezes pelo proprietário para assuntos importantes e delicados, como para emprestar mil libras a um duque ou recusar emprestar-lhe seis dinheiros. Foi um sinal de magnífica tolerância da parte do senhor Lever permitir que este lugar sagrado fosse durante cerca de meia hora profanado por um simples padre, escrevinhando num pedaço de papel. A história que o padre Brown estava a escrever era muito provavelmente uma história mais interessante do que esta, só que nunca será conhecida. Posso apenas afirmar que era quase tão comprida e que os dois ou três últimos parágrafos eram os menos emocionantes e absorventes.
Foi pela altura em que ele chegou a estes últimos parágrafos que o padre começou a deixar vaguear um pouco os seus pensamentos e a acordar os seus sentidos que eram geralmente perspicazes. O anoitecer e a hora de jantar estavam a aproximar-se, o seu quartito esquecido não tinha luz e talvez a escuridão que se concentrava, como acontece por vezes, estimulasse o sentido da audição. Enquanto o padre Brown escrevia a última e menos importante parte do seu documento deu consigo a escrever ao ritmo de um som que se reflectia vindo lá de fora, precisamente como às vezes uma pessoa pensa ao som de um andar de comboio. Quando ele se tornou consciente do facto descobriu o que era: apenas o ruído contínuo e monótono de passos que iam de um lado para o outro da porta, o que num hotel não é coisa improvável. Todavia, olhou fixamente para o tecto escurecido e escutou aquele som. Depois de ter escutado sonhadoramente durante alguns segundos, levantou-se e escutou commuita atenção, com a cabeça um pouco inclinada para o lado. Depois sentou-se novamente e escondeu o rosto nas mãos, agora não apenas escutando, mas escutando e também pensando.
Os passos lá fora eram, como se podiam ouvir em qualquer hotel num dado momento, e, no entanto, considerados como um todo, havia qualquer coisa muito estranha neles. Não havia outros passos. Era sempre uma casa muito silenciosa, pois os poucos hóspedes habituais iam imediatamente para os seus aposentos e os bem treinados criados eram instruídos para se tornarem quase invisíveis até serem necessários. Não era possível conceber-se um sítio onde houvesse menos razão para recear qualquer coisa de anormal. Mas estes passos eram tão estranhos que uma pessoa não era capaz de decidir se eles eram normais ou anormais. O padre Brown acompanhou-os com o dedo na extremidade da mesa, como alguém que estivesse tentando aprender uma música ao piano. Primeiro, veio uma leve investida de rápidos pequenos passos, como os que um homem de pouco peso poderia dar ao ganhar uma corrida de marcha. A uma certa altura paravam e mudavam para uma espécie de lento andar oscilante compassos pesados. Quando o eco do último passo desaparecia, voltavam de novo a corrida e agitação de passos leves e apressados, e em seguida de novo o bater surdo de um andar compassos pesados. Tratava-se sem dúvida do mesmo par de botas, em parte (como já se disse) porque não havia outras botas nas proximidades e em parte porque tinham um inconfundível pequeno ranger. O padre Brown tinha aquele tipo de inteligência que não consegue evitar fazer perguntas, e neste problema aparentemente insignificante a sua mente quase explodia. Ele vira homens a correr a fim de saltarem. Vira homens a correr a fim de deslizarem. Mas por que razão havia um homem de correr a fim de andar? Contudo, nenhuma outra descrição corresponderia às excentricidades deste invisível par de pernas. O homem ou andava muito depressa ao longo de metade do corredor a fim de andar muito devagar ao longo da outra metade; ou andava muito devagar numa ponta para ter o prazer de andar depressa na outra extremidade. Nenhuma das hipóteses parecia fazer muito sentido. O cérebro do padre estava mergulhado cada vez mais nas trevas, como o quarto onde estava.
Todavia, ao começar a pensar mais calmamente, a própria escuridão do seu pequeno aposento tornava os seus pensamentos mais vivos. Começou a visionar os pés fantásticos saltando ao longo do corredor em atitudes estranhas e simbóli cas. Tratar-se-ia de uma dança religiosa pagã? Ou de alguma espécie de exercício científico inteiramente novo? O padre Brown começou a perguntar a si próprio commais exactidão o que é que os passos sugeriam. Considerando em primeiro lugar o passo lento, não era certamente o passo do proprietário. Homens como este andam com um rápido gingar, ou então estão sentados, quietos. Não podia ser um criado ou mensageiro à espera de ordens. Não parecia isso. As classes mais pobres (numa oligarquia) às vezes balançam-se quando estão um pouco bêbadas, mas geralmente, e em especial em situações tão grandiosas como esta, ficam de pé ou sentam-se em atitudes constrangidas. Não, esse passo pesado mas elástico, com uma espécie de ênfase despreocupada, não especialmente barulhento, não se importando no entanto como barulho que fazia, pertencia apenas a um animal na face da Terra. A um cavalheiro da Europa ocidental e provavelmente a alguém que nunca tinha trabalhado para viver.
Ao chegar a esta sólida certeza, o passo mudou para um passo mais rápido e passou a correr diante da porta, tão febrilmente como um rato. O padre observou que, apesar de este passo ser muito mais rápido, era também muito mais silencioso, quase como se fosse o de um homem andando em bicos dos pés. No entanto, não estava associado na sua mente a algo secreto, mas a outra coisa, outra coisa de que ele não se conseguia lembrar. Irritavam-no essas vagas lembranças que fazem um homem sentir-se meio louco. De certeza que ele ouvira esse estranho, rápido andar, nalgum lado. Subitamente, pôs-se em pé com uma nova ideia na cabeça, e foi até à porta. O quarto em que estava não tinha nenhuma saída directa para o corredor, mas dava por um lado para o escritório envidraçado, e por outro para o vestiário. Tentou abrir a porta para o escritório, mas verificou que estava fechada à chave. Depois olhou para a janela, agora uma vidraça quadrada cheia de nuvens púrpuras atravessadas por um pálido pôr do Sol, e por um instante cheirou-lhe a maldade, assim como quando a um cão lhe cheira a ratos.
O lado racional do padre (quer fosse o mais sensato, quer não) recuperou a supremacia. Lembrou-se que o proprietário lhe dissera que ele devia fechar a porta à chave e que viria mais tarde para lhe abrir a porta. Disse para consigo que vinte coisas em que ele não tinha pensado podiam explicar os sons esquisitos lá de fora. Lembrou-se de que já só restava alguma luz para acabar o seu trabalho. Levou o papel até à janela afim de apanhar a luz do tempestuoso fim de tarde e lançou-se resolutamente mais uma vez na elaboração do quase completo documento. Esteve a escrever durante quase vinte minutos, inclinando-se cada vez mais sobre o papel, pois a luz diminuía. De repente sentou-se muito direito. Ouvira os estranhos pés mais uma vez.
Desta vez tinham uma terceira característica estranha. Anteriormente o desconhecido andara comleveza e veloz como um raio, mas andara.
Desta vez corria. Podiam ouvir-se os passos rápidos, suaves, vindos do corredor, como as patas de uma pantera fugindo e pulando. Quem quer que fosse que se aproximava era um homem forte, activo, numa silenciosa mas tremenda agitação. No entanto, depois de o som passar pelo escritório como uma espécie de vendaval sussurrante, mudara subitamente para o antigo e lento andar afectado, compassos pesados. O padre Brown atirou com o papel e sabendo que a porta do escritório estava fechada à chave, foi imediatamente para o vestiário que ficava do outro lado. O empregado daquele lugar estava temporariamente ausente, provavelmente porque os únicos hóspedes estavam a jantar e a sua ocupação era um emprego que não dava trabalho. Depois de andar às apalpadelas por entre uma floresta de sobretudos cinzentos, descobriu que o escuro vestiário dava para o corredor iluminado sob a forma de uma espécie de balcão ou meia porta, como a maior parte dos balcões através dos quais todos nós temos entregue os nossos guarda-chuvas e recebido bilhetes. Havia uma luz por cima do arco semicircular desta abertura. Pouco iluminava o próprio padre Brown, que parecia um simples contorno escuro de encontro à janela por onde entrava o sombrio pôr do Sol. Mas atirava uma luz quase teatral sobre o homem que se encontrava do lado de fora do vestiário, no corredor.
Era um homem elegante de smoking muito simples. Alto, mas com um ar de não ocupar muito espaço. Sentia-se que ele podia ter deslizado como uma sombra onde homens mais baixos seriam óbvios e constituiriam um estorvo. O seu rosto, agora iluminado, era moreno e vivo, o rosto de um estrangeiro. Tinha uma boa figura, os seus modos eram bem-humorados e confiantes. Um crítico poderia apenas dizer que o seu casaco preto não condizia com a sua figura e modos, pois fazia bojo e estava distendido de uma maneira estranha. Logo que avistou a silhueta negra de 'Brown contra o pôr do Sol, atirou com um pedaço de papel com um número e pediu com uma afável autoridade:
- Quero o meu chapéu e o meu casaco, por favor. Tenho de ir-me embora imediatamente.
O padre Brown pegou no papel sem dizer uma palavra e foi obedientemente procurar o casaco. Não era o primeiro trabalho servil que fizera na sua vida. Trouxe-o e colocou-o no balcão. Entretanto o estranho cavalheiro, que estivera apalpando a algibeira do seu colete, disse, rindo:
- Não tenho moedas de prata nenhumas, pode ficar comisto para si. - Atirou para o balcão commeio sovereign e pegou no casaco.
O padre Brown permaneceu muito quieto na escuridão, mas nesse instante perdeu a cabeça. A sua cabeça era extremamente valiosa quando a perdia. Nesses momentos ele tirava uma conclusão dos factos e ficava a ganhar milhões. Muitas vezes a Igreja Católica (que está casada comsenso com um) não o aprovava. Muitas vezes ele próprio não aprovava o seu comportamento. Mas constituía uma inspiração real, importante em crises raras, quando quem quer que seja que perdesse a cabeça, a mesma pessoa a salvasse.
- Creio - disse ele delicadamente - que o senhor tem alguma prata no bolso.
O cavalheiro alto fitou.
- O diabo que carregue tudo isto - exclamou ele. - Se eu lhe estou a dar ouro, porque é que você se queixa?
- Porque a prata é, às vezes, mais valiosa que o ouro - disse o padre brandamente -, isto é, se for em grandes quantidades.
O desconhecido olhou para ele comcuriosidade. Depois olhou commais curiosidade para o corredor que dava para a entrada principal. Depois olhou outra vez para Brown e depois olhou commuito cuidado para a janela atrás da cabeça de Brown, ainda colorido com a cor avermelhada do entardecer
1. Moeda de ouro no valor de uma libra. (N. da T.)
depois da tempestade. Depois pareceu decidir-se. Pôs a mão no balcão, saltou para o outro lado comtanta facilidade como um acrobata e elevou-se acima do padre, colocando-lhe uma mão tremenda no colarinho.
- Quieto - disse ele, num curto sussurro. - Não quero ameaçá-lo, mas...
- Sou eu que o quero ameaçar - disse o padre Brown, numa voz tonitruante. - Quero ameaçá-lo como verme peçonhento e com as chamas do inferno.
- Você é um estranho empregado de vestiário - disse o outro.
- Sou um padre, senhor Flambeau - disse Brown -, e estou pronto a ouvir a sua confissão.
O outro ficou ofegante durante alguns momentos e depois cambaleou para cima de uma cadeira.
Os dois primeiros pratos do jantar dos "Doze Verdadeiros Pescadores" tinham prosseguido. comtranquilo êxito. Não possuo uma cópia da ementa, e se possuísse ela não explicaria nada a ninguém. Estava escrita numa espécie de superfrancês utilizado por cozinheiros, mas ininteligível para os franceses. O clube tinha uma tradição que os hors d'oeuvres deviam ser variados e em muita quantidade até ao ponto da loucura. Eram levados a sério, porque eram declaradamente extras inúteis, como aliás todo o jantar e todo o clube. Havia também a tradição de que o prato da sopa devia ser leve e simples, uma espécie de austera e simples vigília para a festa do peixe que ainda estava para vir. As conversas eram essas estranhas e superficiais conversas que governam o império britânico, que o governam em segredo e que no entanto escassamente esclareceriam um cidadão inglês com um mesmo que ele pudesse escutá-las. Os ministros do governo de ambos os partidos eram aludidos pelos nomes próprios com uma espécie de benignidade enfastiada. O ministro da Fazenda, que era suposto ser amaldiçoado pelas suas extorsões por todo o Partido Conservador, era elogiado pela sua poesia menor, ou pela sua arte de cavalgar nas caçadas. O chefe do Partido Conservador, que era suposto ser odiado como um tirano por todos os Liberais, era discutido e, em geral, louvado como um liberal. Parecia, por qualquer razão, que os políticos eram muito importantes. E, no entanto, tudo parecia ser importante neles, excepto a sua política. O senhor Audley, o presidente da reunião,- era um amável homem idoso que ainda usava colarinhos à Gladstone, era uma espécie de símbolo de toda aquela sociedade fantástica mas, no entanto, estável. Nunca tinha feito nada nem sequer qualquer coisa errada. Não era frívolo, nem era sequer especialmente rico. Estava simplesmente dentro do assunto, e isso era tudo. Nenhum partido podia ignorá-lo, e se ele quisesse entrar para o Governo, certamente que teria lá sido colocado. O vice-presidente, o duque de Chester, era um jovem e prometedor político. Quer dizer que era um jovem agradável de cabelo liso e louro e uma cara sardenta, tinha uma inteligência razoável e imensas propriedades. As suas aparições em público tinham sempre sucesso e o princípio de procedimento que ele adoptava era bastante simples. Quando pensava num gracejo, dizia-o e era considerado brilhante. Quando não conseguia pensar num gracejo, dizia que não se estava em tempo de futilidades e era considerado Competente. Na vida privada, num clube da sua classe, ele era simplesmente bastante franco e tolo, como um jovem estudante. O senhor Audley, como nunca tinha entrado na política, levava-o um pouco mais a sério. Às vezes até desconcertava o grupo com frases que sugeriam que havia uma certa diferença entre um liberal e um conservador. Ele próprio era um conservador, mesmo na sua vida privada. Tinha um rolo de cabelo grisalho caído sobre o colarinho, como certos estadistas antiquados, e visto por detrás parecia ser o homem de que o império precisava. Visto de frente parecia ser um solteirão brando e comodista, com residência em Albany, o que ele realmente era. Como já foi observado, eram vinte e quatro os lugares da mesa do terraço e apenas doze os membros do clube. Assim, podiam ocupar o terraço no mais luxuoso estilo possível, dispostos ao longo da parte de dentro da mesa sem ninguém em frente, sobranceiros * uma vista ininterrupta do jardim, cujas cores eram ainda vivas, apesar de o anoitecer estar próximo de uma forma um pouco sombria para aquela estação do ano. O presidente estava sentado no centro da fila e o vice-presidente à direita. Quando os doze convidados se reuniam nos seus lugares era costume ( por uma razão desconhecida) todos os quinze criados ficarem alinhados junto à parede como tropas apresentando armas ao rei, enquanto o gordo proprietário ficava em pé cumprimentando os membros do clube com uma surpresa exultante, como se nunca tivesse ouvido falar deles. Mas antes do primeiro tinir da faca e do garfo este exército de assistentes desaparecia, ficando apenas um ou dois, necessários para reunir ou distribuir os pratos, voando de um lado para o outro em silêncio absoluto. O proprietário, o senhor Lever, é claro que há muito desaparecera em convulsões de cortesia. Seria exagerado, irreverente mesmo, dizer que ele iria aparecer de novo. Mas quando o prato importante, o prato de peixe, era apresentado, havia - como é que hei-de dizer? - uma sombra viva, uma projecção da sua personalidade, que mostravam que ele pairava perto. O sagrado prato de peixe consistia (aos olhos do vulgo) numa espécie de monstruoso pudim, com aproximadamente o tamanho e forma de um bolo de noiva, no qual considerável número de peixes interessantes tinham perdido a configuração que Deus lhes dera. "Os Doze Verdadeiros Pescadores" pegaram nas suas célebres facas e garfos de peixe e lançaram-se sobre ele comtanta gravidade como se cada centímetro de pudim custasse tanto como o talher de prata comque era comido. Assim acontecia, tanto quanto eu sei. Este prato de peixe era lidado com um ávido e devorador silêncio, e foi só quando o seu prato estava quase vazio que o jovem duque fez o comentário ritual:
- Só aqui é que sabem fazer isto.
- Em parte nenhuma - disse o senhor Audley numa voz profunda de baixo, voltando-se para o orador e acenando com a cabeça uma série de vezes. - Em parte nenhuma, sem dúvida, excepto aqui. Foi-me revelado que no café Anglais...
Aqui foi interrompido e mesmo perturbado pela remoção do seu prato, mas retomou o valioso fio dos seus pensamentos.
- Foi-me revelado que a mesma coisa podia ser preparada no café Anglais. Nada, senhor, que se compare a isto - disse ele, agitando a cabeça implacavelmente, como um juiz de um condenado à forca. - Nada que se compare a isto.
- Lugar superestimado - disse um certo coronel Pound falando (pelo seu ar) pela primeira vez em alguns meses.
~ Oh> não sei - disse o duque de Chester, que era um optimista -, é bastante bom para algumas coisas. Ninguém o bate a...
Um criado surgiu rapidamente e depois parou completamente. A sua paragem foi tão silenciosa como os seus passos, mas todos aqueles cavalheiros distraídos e bondosos estavam tão habituados à completa lisura do invisível mecanismo que rodeava e cuidava das suas vidas que um criado, fazendo qualquer coisa inesperada, era um sobressalto e um choque. Sentiam-se como você e eu nos sentiríamos se o mundo inanimado desobedecesse... como se uma cadeira fugisse de nós.
O criado olhou fixamente durante alguns segundos, enquanto se aprofundava em cada rosto dos que estavam à mesa uma estranha vergonha que é totalmente produto da nossa época. É a combinação do moderno humanitarismo como horrível abismo moderno entre as almas dos ricos e dos pobres. Um genuíno aristocrata teria atirado coisas ao criado, começando por garrafas vazias e terminando muito provavelmente comdinheiro. Um autêntico democrata ter-lhe-ia perguntado, com a clareza da palavra de um camarada, o que diabo estava ele a fazer. Mas estes modernos plutocratas não conseguiam suportar um homem pobre junto deles, quer como escravo quer como amigo. Que alguma coisa tivesse corrido mal com os criados era simplesmente um obstáculo maçador e perigoso. Eles queriam que o assunto, qualquer que ele fosse, terminasse. Terminara. O criado depois de ficar hirto durante alguns segundos, como um cataléptico, deu meia volta e saiu a correr como um louco.
Quando ele reapareceu, foi na companhia de outro criado, comquem segredou e gesticulou comimpetuosidade meridional. Depois o primeiro criado foi-se embora, deixando o segundo criado, e reapareceu com um terceiro criado. Pela altura em que um quarto criado se juntara a esta apressada assembleia, o senhor Audley sentiu a necessidade de quebrar o silêncio em benefício da Diplomacia. Utilizou uma tosse muito forte, em vez do martelo presidencial, e disse:
- O jovem Moocher está a fazer um óptimo trabalho na Birmânia. Nenhuma outra nação no mundo podia...
Um quinto criado correra em direcção a ele como uma seta, e estava a segredar ao seu ouvido:
- Sinto muito. É importante! O proprietário pode falar com O senhor?
O presidente voltou-se agitado, e com um olhar pasmado viu o senhor Lever aproximar-se do grupo com uma rapidez desajeitada. O modo de andar do bom do proprietário era de facto o seu normal modo de andar, mas o rosto não era de forma alguma normal- Geralmente a cara tinha uma agradável cor castanha acobreada, agora era de um amarelo doentio.
- Desculpe-me, senhor Audley - disse ele, com uma difícil respiração asmática. - Estou muito preocupado. Os vossos pratos de peixe foram retirados com as facas e os garfos.
- Bem, espero que sim - disse o presidente, um pouco excitado.
- O senhor viu-o? - arquejou o excitado dono do hotel. Viu o criado que os levou? Conhece-o?
- Conhecer o criado - respondeu o senhor Audley comindignação -, claro que não!
O senhor Lever abriu as mãos num gesto de aflição.
- Eu nunca o mandei - disse ele. - Não sei quando ou como ele veio. Mandei o meu criado levar embora os pratos e ele verificou que já tinham sido retirados.
O senhor Audley continuava a estar demasiado espantado para ser o homem de que o império necessitava. Ninguém do grupo conseguia dizer alguma coisa, excepto o homem da cara de pau, o coronel Pound, que parecia ter ganho uma vitalidade extraordinária. Levantou-se rigidamente da cadeira, deixando todos os outros sentados, fixou o monóculo no olho e falou numa voz baixa e rouca como se estivesse meio esquecido de falar.
- Você quer dizer - disse ele - que alguém roubou o nosso serviço de peixe de prata?
O proprietário repetiu o gesto de mãos abertas com um ar ainda mais desamparado e, num instante, todos os homens à mesa se puseram de pé.
- Todos os seus criados estão aqui. Eu mesmo reparei - exclamou o jovem duque. - Conto-os sempre quando entro, parecem tão estranhos, todos de pé de encontro à parede.
- Mas de certo uma pessoa não se pode lembrar exactamente - começou o senhor Audley, comgrande hesitação.
- Digo-lhe que me lembro exactamente - exclamou o duque, excitado. - Nunca houve mais de quinze criados neste sítio e não havia mais de quinze esta noite, juro, nem mais nem menos.
O proprietário voltou-se para ele tremendo numa espécie de surpresa que o paralisava.
- O senhor diz... o senhor diz - gaguejou ele - que viu os meus quinze criados todos?
- Como de costume - concordou o duque. - O que é que isso tem?
- Nada - disse Lever, com um sotaque mais profundo. - Só que não viu. Porque um deles está morto lá em cima.
Por um instante fez-se um silêncio chocante. Pode ter acontecido (de tão sobrenatural que é a palavra morte) que cada um daqueles homens ociosos tenha olhado por um segundo para a sua alma e a tenha visto como uma pequena ervilha seca. Um deles, o duque, creio eu, até disse com a idiota bondade da riqueza:
- Podemos fazer alguma coisa?
- Chamámos um padre - disse o judeu, sensibilizado.
Depois, como ao clamor da sentença, eles despertaram para a realidade da sua situação. Durante alguns estranhos segundos tinham realmente sentido como se o décimo quinto criado pudesse ser o fantasma do homem morto lá em cima. Tinham ficado mudos sob essa opressão, pois os fantasmas eram para eles um estorvo, como eram os mendigos. Mas a lembrança do serviço de prata quebrou o encanto miraculoso, quebrou-o abruptamente e com uma reacção brutal. O coronel atirou-se da cadeira e pôs-se a andar compassos largos até à porta.
- Amigos, se estava aqui um décimo quinto homem - disse ele -, esse décimo quinto sujeito era um ladrão. Vamos imediatamente para as portas da frente e das traseiras e verifiquemos tudo. Depois falaremos. As vinte e quatro pérolas merecem ser recuperadas.
O senhor Audley pareceu hesitar a princípio se era próprio de um cavalheiro estar tão apressado a propósito de alguma coisa, mas ao ver o duque precipitar-se pelas escadas com uma energia juvenil, seguiu-o com um movimento de homem mais maduro.
No mesmo instante um sexto criado veio a correr e declarou que encontrara a pilha de pratos de peixe no aparador, sem qualquer vestígio dos talheres de prata.
O ajuntamento de convivas e criados que se dirigiu numa confusão para os corredores dividiu-se em dois grupos. A maior parte dos Pescadores seguiu o proprietário para a sala da frente para saber notícias de alguma saída. O coronel Pound, como presidente, o vice-presidente e mais um ou dois, correram pelo corredor que dava para os alojamentos dos criados, como sendo a mais provável direcção da fuga. Ao faze- rem-no, passaram a sombria alcova do vestiário e viram um vulto baixo, de casaco preto, presumivelmente um criado, que se encontrava um pouco atrás da sombra.
- Você aí! - exclamou o duque. - Viu alguém passar? O vulto baixo não respondeu directamente à pergunta, mas disse apenas:
- Talvez eu tenha aquilo que os senhores procuram.
Eles pararam, hesitantes e admirados, enquanto ele foi calmamente até ao fundo do vestiário e voltou com as mãos cheias de prata brilhante, que pôs em cima do balcão tão calmamente como se fosse um vendedor. Eram os doze garfos e facas finamente trabalhados.
- Você... você - começou o coronel, perdendo completamente o domínio de si. Depois espreitou para o pequeno quarto mal iluminado e viu duas coisas: primeiro, que o homem baixinho, vestido de preto, estava vestido de padre; e segundo, que a janela que ficava atrás dele tinha sido arrombada, como se alguém tivesse passado violentamente através dela.
- Coisas valiosas para guardar num vestiário, não são? - observou o padre, com uma alegre tranquilidade.
- O senhor... o senhor roubou essas coisas? - gaguejou o senhor Audley, com os olhos fixos.
- Se eu roubei - disse o padre de modo aprazível -, pelo menos estou a devolvê-las novamente.
- Mas não roubou - disse o coronel Pound, continuando a olhar para a janela partida.
- Para falar abertamente, não roubei - disse o outro, com algum humor. E sentou-se muito solenemente num banco.
- Mas o senhor sabe quem o fez - disse o coronel.
- Não sei o verdadeiro nome dele - disse o padre placidamente, mas sei qualquer coisa sobre o seu peso de lutador e sei muito a respeito das suas dificuldades espirituais. Fiz a estimativa física quando ele tentou estrangular-me e a estimativa moral quando ele se arrependeu.
- Oh, não diga que se arrependeu! -'exclamou o jovem Chester, com uma risada que era uma espécie de canto de galo.
O padre Brown levantou-se e pôs as mãos atrás das costas.
- Estranho, não é? - disse ele -, que um ladrão e um vagabundo se arrependam, quando tantos que são ricos e bem instalados na vida permanecem duros e frívolos e sem proveito quer para Deus quer para o homem. Mas aí, desculpar-me-ão, os senhores fazem uma pequena intrusão na minha competência. Se vocês duvidam da realidade da penitência, aí estão os vossos garfos e facas. Vocês são os "Doze Verdadeiros Pescadores" e aí têm os vossos peixes de prata. Mas Ele fez-me um pescador de homens.
- O senhor apanhou esse homem? - perguntou o coronel, franzindo o sobrolho.
O padre Brown olhou directamente para a cara carrancuda do coronel.
- Sim - disse ele -, apanhei-o com um anzol e uma linha invisível, que é suficientemente grande para o deixar vaguear até aos confins do mundo e ainda para trazê-lo de volta com um puxão na linha.
Houve um longo silêncio. Todos os outros homens presentes foram andando para levar o serviço de prata recuperado aos seus companheiros, ou para consultar o proprietário a respeito da estranha situação. Mas o coronel de rosto severo continuou sentado de lado no balcão, baloiçando as pernas compridas e magras e mordendo o seu bigode escuro.
Por fim disse calmamente ao padre:
- Ele deve ter sido um tipo esperto, mas acho que sei de um outro ainda mais esperto.
- Era um tipo esperto - respondeu o padre -, mas não tenho bem a certeza a que outro o senhor se refere.
- Refiro-me a si - disse o coronel com uma curta risada. Não quero ver o tipo na prisão, esteja tranquilo quanto a isso. Mas dava um bom número de talheres de prata para saber exactamente como o senhor se meteu neste caso e como é que lhe tirou o serviço de prata. Eu suponho que o senhor é o espertalhão mais actualizado de todo este grupo.
O padre Brown pareceu apreciar a franqueza saturnina do militar.
- Bem - disse ele, sorrindo -, não posso contar-lhe nada sobre a identidade do homem, ou sobre a sua história, é claro, mas não há nenhuma razão especial para que eu não lhe conte a simples realidade exterior que descobri por mim mesmo.
Saltou para o balcão com uma inesperada agilidade e sentou-se ao lado do coronel Pound dando pontapés com as suas pequenas pernas como um rapazinho dá a um portão. Começou a contar a história comtanta simplicidade como se estivesse a contá-la a um amigo à lareira de Natal.
- Pois, coronel - disse ele -, estava eu fechado naquele pequeno quarto ali, escrevendo, quando ouvi uns pés neste corredor dançando uma dança tão estranha como a dança da morte. Primeiro eram passinhos rápidos, estranhos como um homem a andar em bicos dos pés, como se estivesse a jogar. Depois eram passos lentos, despreocupados, rangendo como os de um homem forte passeando-se de charuto na boca. Mas eram passos dos mesmos pés, garanto-lhe, e surgiam alternadamente, primeiro a corrida, e depois o andar, e depois novamente a corrida. Perguntei a mim próprio, primeiro ociosamente, depois furiosamente, porque é que um homem representaria estes dois papéis. Um andar conhecia eu, era mesmo igual ao seu, coronel. Era um andar de um cavalheiro bem alimentado que espera alguma coisa, que se passeia mais por estar activo fisicamente do que por estar impaciente mentalmente. Sabia que também conhecia o outro andar, mas não conseguia lembrar-me do que era. Quem era a fantástica criatura que eu encontrara nas minhas viagens que corria assim nos bicos dos pés com esse extraordinário estilo? Depois ouvi um tinir de pratos algures e a resposta surgiu clara como água. Era o andar de um criado, o andar com o corpo inclinado para a frente, com o olhar baixo, a cauda do casaco e o guardanapo voando. Depois pensei durante um minuto e meio mais. E creio que vi a forma do crime, tão claramente como se fosse eu a cometê-lo.
O coronel Pound olhou para ele intensamente, mas os olhos brandos, cinzentos, do orador estavam fixos no tecto com uma vaga atenção.
- Um crime - disse ele lentamente - é como qualquer obra de arte. Não fique espantado, os crimes não são de maneira nenhuma as únicas obras de arte que provêm de uma oficina infernal. Mas toda a obra de arte, divina ou diabólica, tem uma marca indispensável. Quero dizer que o seu centro é simples, por muito complicada que seja a sua realização. Assim, no Hamlet, o grotesco do coveiro, as flores da rapariga louca, a elegância fantástica de Osric, a palidez do fantasma e o sorriso da caveira, tudo são singularidades, numa espécie de coroa entrelaçada à volta de uma simples figura trágica de um homem vestido de negro. Pois bem, isto é igualmente - disse ele, descendo lentamente do seu assento, com um sorriso - ... isto é também a simples tragédia de um homem vestido de preto. Sim - prosseguiu ele, vendo o coronel levantar os olhos, um pouco admirado -, toda esta história gira em volta de um casaco preto. Nela, como no Hamlet, há as excrescências rococós vós outros, digamos. Há o criado morto, que estava lá quando não podia estar. Há a mão invisível que roubou da vossa mesa o serviço de prata e depois se evaporou. Mas todo o crime inteligente se baseia, afinal de contas, num único facto muito simples, um facto que não é, em si mesmo, misterioso. A mistificação surge em encobri-lo, em se levar os pensamentos das pessoas para longe dele. Este grande, subtil e muito lucrativo crime foi baseado no simples facto de que o smoking de um cavalheiro é igual ao do criado. Tudo o resto foi representação, e uma excelente representação, diga-se de passagem.
- No entanto - disse o coronel, levantando-se e franzindo o sobrolho -, não tenho a certeza de compreender.
- Coronel - disse o padre Brown -, afirmo-lhe que este arcanjo de descaramento que roubou os vossos talheres andou para trás e para diante neste corredor umas vinte vezes, à luz intensa de todas as lâmpadas, diante de todos os olhares. Não foi esconder-se nos cantos escuros onde podiam suspeitar dele e procurá-lo. Esteve constantemente em movimento nos corredores iluminados, e em toda a parte para onde foi parecia lá estar por direito. Não me pergunte como é que ele era, o senhor mesmo viu-o seis ou sete vezes esta noite. O senhor estava à espera com todas essas pessoas ilustres na sala de recepção aí ao fundo do corredor, com o terraço mesmo à frente. Sempre que ele passava por entre vós, senhores, aparecia no estilo relâmpago de um criado, com a cabeça inclinada, guardanapo pendente e pés com asas. Apareceu como uma flecha no terraço, fez qualquer coisa à toalha da mesa e foi-se embora, de novo como uma seta, em direcção ao escritório e aos alojamentos dos criados. Pela altura em que ele se encontrou sob o olhar do empregado de escritório e dos criados tinha-se tornado um outro homem, em cada centímetro do seu corpo, em cada gesto instintivo. Passeou por entre os criados com a insolência distraída que todos eles já tinham observado nos seus clientes. Não era novidade para eles que uma pessoa importante da festa do jantar passeasse por toda a parte da casa como um animal no Jardim Zoológico, eles sabem que nada caracteriza tanto a alta sociedade como o hábito de passear por onde quer que lhe apeteça. Quando ele estava magnificamente cansado de passear por esse corredor especial, dava meia volta e caminhava para o lado oposto, passando pelo escritório, e na sombra do arco que ficava no lado de lá modificava-se como por um sopro de magia e ia correndo de novo por entre os Doze Pescadores, tal como se fosse um obsequioso criado. Por que razão os cavalheiros iriam reparar para um criado acidental? Por que razão os criados suspeitariam de um cavalheiro de primeira classe a passear-se? Uma vez ou duas pregou as mais arrojadas partidas. Nos aposentos privativos do proprietário pediu alegremente uma garrafa de água gasosa, dizendo que tinha sede. Disse cordialmente que ele próprio a levaria, e assim fez. Levou-a rápida e correctamente pelo meio de vós, tal como um criado com uma tarefa evidente. Claro que isto não se aguentaria por muito tempo, mas bastava aguentar-se até ao fim do prato de peixe.
O momento mais difícil para ele foi quando os criados se apresentaram em fila, mas mesmo então ele conseguiu encostar-se à parede, mesmo ao canto, de tal maneira que nesse importante momento os criados pensaram que ele era um cavalheiro, enquanto os cavalheiros pensaram que ele era um criado. O resto foi muito fácil. Se algum criado desse com ele longe da mesa, esse criado dava com um lânguido aristocrata. Tinha apenas que dar a si próprio dois minutos antes do prato de peixe ser levantado, tornar-se um rápido criado, e levantar ele próprio a loiça. Pôs os pratos num aparador, encheu o bolso de dentro do casaco com os talheres de prata, dando-lhe um aspecto bojudo, e correu como uma lebre (eu ouvi-o aproximar-se) até chegar ao vestiário. Aí bastava-lhe ser novamente um plutocrata, um plutocrata chamado de repente para tratar de negócios. Bastava dar o seu bilhete ao empregado do vestiário e sair outra vez comtanta elegância como entrara. Só que... só que aconteceu que o empregado do vestiário era eu.
- O que é que o senhor lhe fez? - perguntou o coronel, com uma intensidade invulgar. - O que é que ele lhe disse?
- Desculpe-me - disse o padre firmemente - mas é aqui que acaba a história.
- E é onde começa a história interessante - murmurou o coronel. - Acho que compreendo o truque profissional dele. Mas não descobri o seu.
- Tenho de ir andando - disse o padre Brown.
Foram os dois andando pelo corredor fora até ao salão de entrada, onde viram a cara fresca e sardenta do duque de Chester, que avançava animadamente em direcção a eles.
- Venha daí, Pound - exclamou ele, esbaforido. - Tenho andado à sua procura por toda a parte. O jantar está outra vez em andamento e em grande estilo- e o velho Audley tem de fazer um discurso em honra dos talheres terem sido encontrados. Queremos iniciar uma cerimónia nova para comemorar a ocasião. O que é que você sugere?
- Bem - disse o coronel, olhando-o com uma certa aprovação sardónica. - Eu sugiro que daqui em diante passemos a usar casacos verdes em vez de pretos. Nunca se sabe que equívocos podem surgir quando uma pessoa se parece tanto com um criado.
- Oh, o diabo que carregue tudo isto - disse o jovem. - Um cavalheiro nunca se parece com um criado.
- Nem um criado com um cavalheiro, suponho eu - disse o coronel Pound, com a mesma risada sombria. - Reverendo senhor, o seu amigo deve ter sido muito esperto para representar o papel de cavalheiro.
O padre Brown abotoou até ao pescoço o seu banal sobretudo, porque a noite estava tempestuosa, e tirou o seu banal guarda-chuva do seu lugar.
- Sim - disse ele -, deve ser muito trabalhoso ser um cavalheiro, mas, sabem os senhores, eu tenho pensado às vezes que deve ser quase tão difícil ser um criado.
E dizendo "Boa noite" ele abriu as pesadas portas daquele palácio de prazeres. Os portões dourados fecharam-se atrás dele e caminhou num passo rápido através das ruas húmidas e sombrias à procura de um autocarro.
CAPÍTULO IV
As estrelas voadoras
- O mais belo crime que eu jamais cometi - dizia Flambeau na sua velhice altamente virtuosa - foi também, por uma singular coincidência, o meu último. Foi cometido no Natal. Como artista, sempre tentara providenciar crimes adequados à estação do ano ou às paisagens em que me encontrava, escolhendo esta ou aquela varanda ou jardim para uma catástrofe, como se fosse para um grupo de esculturas. Assim, os proprietários rurais deviam ser enganados numa sala comprida, de paredes almofadadas de madeira de carvalho, enquanto os judeus, por outro lado, deviam encontrar-se inesperadamente sem tostão no meio das luzes dos biombos do Café Riche. Assim, em Inglaterra, se eu quisesse privar um deão das suas riquezas (o que não é tão fácil quanto se supõe), desejava enquadrá-lo, se me faço entender, nos verdes relvados e torres cinzentas de uma cidade com uma catedral. Da mesma forma, em França, quando eu extorquia dinheiro de um rico e perverso lavrador (o que é quase impossível), agradava-me ver a sua furiosa cabeça tirada diante de uma fila de choupos aparados e daquelas solenes planícies da Gália sobre as quais paira o espírito poderoso do pintor Millet.
- Pois bem, o meu último crime foi um crime de Natal, um alegre, confortável crime contra a classe média inglesa, um crime à Charles Dickens. Pratiquei-o numa boa, velha casa, da classe média perto de Putney, uma casa com um espaço em forma de meia lua para entrada de carros, uma casa com um estábulo ao lado, uma casa com o nome nos dois portões de saída, uma casa com uma araucária. Basta, vocês conhecem o género. Acho realmente que a minha imitação ao estilo de Dickens foi hábil e letrada. Quase parece uma pena eu ter-me arrependido na mesma noite.
Flambeau prosseguiria então, contando a história vista pelo lado de dentro, e mesmo vista pelo lado de dentro era estranha. Vista pelo lado de fora era perfeitamente incompreensível, e é vista do exterior que se tem que estudá-la. Deste ponto de vista pode dizer-se que o drama começou quando a porta principal da casa com um estábulo se abriu para o jardim com a araucária e surgiu uma jovem trazendo pão para os pássaros na tarde do dia seguinte ao do Natal. Tinha uma cara bonita, comolhos castanhos corajosos, mas a sua figura escapava a toda a conjectura, pois estava tão embrulhada em peles castanhas que era difícil dizer o que era cabelo e o que era pele. Se não fosse o rosto atraente, podia ser um pequeno urso bamboleando-se. A tarde de Inverno estava a tornar-se vermelha com a aproximação da noite e já uma luz cor de rubi coloria os canteiros sem flores, enchendo-os, por assim dizer, com os fantasmas das rosas murchas. Num dos lados da casa ficava o estábulo, no outro lado uma passagem ou abóbada de loureiros dava para um jardim maior que ficava atrás. A jovem, depois de ter espalhado pão para os pássaros (pela quarta ou quinta vez naquele dia, porque o cão comia-o), passou discretamente pela alameda de loureiros para um arvoredo de luzentes sempre-vivas que ficava por detrás. Aqui teve uma exclamação de espanto, real ou ritual, e olhando para cima, para o muro alto do jardim, viu-o fantasticamente montado por um vulto assaz bizarro.
- Oh, não salte, senhor Crook - gritou ela, alarmada -, é alto de mais.
O indivíduo que montava o muro como um cavalo aéreo era um jovem alto, magro, comcabelo escuro espetado como uma escova de cabelo, feições inteligentes e até distintas, mas com uma tez pálida e quase estranha. Esta dava tanto mais nas vistas quanto ele usava uma agressiva gravata vermelha, a única parte do seu vestuário comque ele parecia importar-se. Talvez fosse um símbolo. Não fez caso do rogo assustado da jovem, mas saltou para o chão como um gafanhoto e podia muito bem ter partido as pernas.
- Acho que devia ter sido um ladrão - disse ele placidamente -, e não tenho dúvidas que o seria se não tivesse nascido naquela bela casa aqui ao lado. De qualquer maneira, não vejo nenhum mal nisso.
- Como é que pode dizer uma coisa dessas? - objectou ela.
- Bem - disse o jovem -, se a pessoa nasce do lado errado do muro, não vejo o mal de subir para o outro lado.
- Nunca sei o que vai dizer ou fazer a seguir - disse ela.
- Nem eu mesmo sei muito bem - respondeu o senhor Crook -, mas agora estou no lado certo do muro.
- E qual é o lado certo do muro? - disse a jovem, sorrindo.
- Seja qual for o lado onde você estiver - disse o jovem chamado Crook.
Ao dirigirem-se juntos através dos loureiros em direcção ao jardim da frente, uma buzina de automóvel soou três vezes aproximando-se cada vez mais, e um carro admiravelmente veloz, de grande elegância e cor verde-pálida acercou-se rapidamente, como um pássaro, da porta principal e ficou pulsando.
- Olá, olá - disse o jovem de gravata vermelha -, eis alguém que nasceu no lado certo. Não sabia, Miss Adams, que o seu Pai Natal era assim tão moderno.
- Oh, é o meu padrinho, Sir Leopold Fisher. Ele vem sempre no dia seguinte ao dia de Natal.
Depois, a seguir a uma pausa inocente, que traía inconscientemente uma certa falta de entusiasmo, Ruby Adams acrescentou:
- Ele é muito bondoso.
John Crook, jornalista, ouvira falar desse eminente magnata da City e não tinha a culpa que o magnata da City não tivesse ouvido falar dele, pois em certos artigos da Trombeta ou nos Novos Tempos Sir Leopold tinha sido tratado severamente. Mas não disse nada e observou sombriamente o descarregar do automóvel, o que foi um processo bastante longo. Um motorista vestido de verde, alto e bem posto, saiu do lado da frente e um criado, vestido de cinzento, baixo e bem posto, saíra da parte de trás. Os dois depositaram Sir Leopold no patamar da entrada e começaram a desembrulhá-lo como se ele fosse um embrulho muito cuidadosamente embalado. Mantas suficientes para abastecer um bazar, peles de todos os animais da floresta e cachecóis de todas as cores do arco-íris foram desembrulhados um por um, até revelarem algo que se assemelhava a uma forma humana. A forma de um senhor de idade, afável, mas com um aspecto estrangeiro, com uma barbicha cinzenta como a de um bode, um sorriso radiante e que esfregava as suas grandes luvas de pele uma contra a outra.
Muito antes de se completar esta revelação, as duas grandes portas da entrada tinham-se aberto e o coronel Adams (pai da jovem coberta de pele) saíra para convidar o seu eminente convidado a entrar. Era um homem alto, queimado do sol e muito calado que usava um barrete vermelho como se fosse um fez, o que o fazia parecer um dos Sirdards ingleses ou Pashas no Egipto. com ele estava o cunhado, chegado há pouco do Canadá, um grande e impetuoso jovem lavrador, com uma barba amarela, que se chamava James Blount. com ele estava também a figura insignificante de um padre da Igreja Católica das proximidades, pois a falecida mulher do coronel era católica e os filhos, como é costume em tais casos, tinham sido educados na mesma religião da mãe. Tudo o que era relativo ao padre parecia indistinto, mesmo até o seu nome, que era Brown. No entanto, o coronel achava-o sempre sociável e convidava-o frequentemente para reuniões familiares como esta.
Na grande sala de entrada havia lugar suficiente para Sir Leopold e o retirar das suas roupas. A entrada e o vestíbulo eram, de facto, anormalmente grandes em proporção com a casa e formavam um grande salão com a porta principal numa extremidade e o fundo da escadaria na outra. Frente à lareira do grande salão, sobre a qual estava pendurada a espada do coronel, o grupo, incluindo o sombrio Crook, foi apresentado a Sir Leopold Fisher. Esse venerável financeiro, no entanto, continuava a debater-se compartes do seu elegante vestuário e, finalmente, tirou duma muito recôndita algibeira do fraque um estojo negro oval que ele alegremente explicou ser o presente de Natal para a sua afilhada. com uma vaidade sem afectação, que desarmava os presentes, mostrou o estojo a todos, e este abriu-se com um toque que quase os ofuscou. Era mesmo como se uma fonte de cristal tivesse esguichado para os olhos deles. Num ninho de veludo cor-de-laranja estavam colocados, como três ovos, três diamantes brancos e fulgurantes que pareciam incendiar até mesmo o ar à volta. Fisher ficou benevolamente sorrindo e gozando profundamente com a surpresa e o entusiasmo da jovem, a admiração austera e os rudes agradecimentos do coronel, e o espanto de todo o grupo.
- vou guardá-los de novo, minha querida - disse Fisher, tornando a pôr o estojo na algibeira do fraque. - Tive de ter cuidado com eles na viagem. São os .três grandes diamantes africanos chamados "As Estrelas Voadoras", porque têm sido roubados tantas vezes. Todos os grandes criminosos estão-lhes na pista, mas até os rufiões que andam pelas ruas e hotéis não conseguiam resistir à tentação de se apoderar deles. Podia tê-los perdido no caminho para cá. Seria muito provável.
- Muito natural, não posso deixar de dizer - resmungou o homem da gravata vermelha. - Não os censuraria se os tivessem tirado. Quando eles pedem pão e o senhor não lhes dá sequer uma pedra, acho que podiam eles próprios tirar a pedra.
- Não quero que fale assim - exclamou a jovem, que estava estranhamente afogueada. - Só tem falado assim desde que se tornou esse horrível não sei o quê. Sabem o que eu quero dizer. Como se chama o homem que quer abraçar o limpa-chaminés?
- Um santo - disse o padre Brown.
- Creio - disse Sir Leopold com um sorriso arrogante - que Ruby quer dizer um Socialista.
- Um radical não quer dizer um homem que viva de radícolas - observou Crook, com alguma impaciência - e um Conservador não quer dizer um homem que conserva compotas. Nem, asseguro-vos, um Socialista quer dizer um homem que quer todas as chaminés limpas e todos os limpa-chaminés pagos por o fazerem.
- Mas que não permite a uma pessoa - disse o padre em voz baixa - possuir a sua própria fuligem.
Crook olhou para ele com um olhar interessado e até respeitador.
- Será que uma pessoa quer possuir fuligem? - perguntou ele.
- Pode ser que sim - respondeu Brown, com um olhar especulativo. - Ouvi dizer que os jardineiros a utilizam. E eu uma vez no Natal fiz a felicidade de seis crianças, quando o prestidigitador não apareceu inteiramente comfuligem aplicada externamente.
- Oh, esplêndido - exclamou Ruby. - Oh, espero que faça isso a este grupo.
O impetuoso canadiano, o senhor Blount, estava a aplaudir com a sua voz forte e o espantado financeiro com a dele, quando se ouviu bater à porta principal. O padre foi abri-la e pôde ver-se o jardim fonteiro de sempre-vivas, araucária e tudo o mais, agora mergulhado na escuridão, de encontro a um magnífico pôr do Sol violeta. O cenário assim enquadrado era tão colorido e fantástico como um cenário de fundo numa peça de teatro, que eles se esqueceram por um momento da figura insignificante que estava à porta. Tinha um aspecto poeirento e um casaco puído, era evidentemente um vulgar mensageiro.
- Algum dos senhores é o senhor Blount? - perguntou ele, e apresentou comhesitação uma carta. O senhor Blount ficou espantado e parou de aplaudir ou dar um grito de assentimento. Abriu o envelope com uma grande surpresa, e leu-o. O seu rosto toldou-se, mas depois ficou desanuviado e voltou-se para o seu cunhado e anfitrião.
- Desgosta-me incomodar tanto, coronel - disse ele, com uma jovial etiqueta colonial -, mas far-lhe-ia transtorno se um velho conhecimento meu viesse procurar-me esta noite para tratar de negócios? Na realidade, trata-se de Florian, o célebre acrobata e actor cómico francês. Conheci-o há anos no Oeste (era franco-canadiano de nascimento) e parece que tem negócios a tratar comigo, se bem que não adivinho quais sejam.
- Claro, claro - respondeu o coronel despreocupadamente. Meu caro, qualquer amigo seu é bem-vindo. Sem dúvida que dará provas de ser um elemento de valor para o grupo.
- Ele vai pintar a cara de preto, se é isso que você quer dizer
- exclamou Blount, rindo. - Não duvido que pintará de preto os olhos de toda a gente. Não me importo; não sou requintado. Aprecio a velha e divertida pantomima em que um homem se senta no seu chapéu alto.
- Não no meu, por favor - disse Sir Leopold Fisher, comdignidade.
- Bem, bem - observou Crook, alegremente -, não vamos discutir. Há brincadeiras piores do que uma pessoa sentar-se num chapéu alto.
A antipatia pelo jovem de gravata vermelha, tanto pelas suas opiniões destruidoras como pela intimidade evidente com a sua bonita afilhada, levaram Fisher a dizer, com o seu modo mais sarcástico e autoritário:
- De certeza que você encontrou qualquer coisa mais degradante do que uma pessoa sentar-se em cima de um chapéu alto. Por favor diga-me o que é?
- Deixar que um chapéu alto se sente em cima de si, por exemplo - disse o Socialista.
- Vamos lá, vamos lá - exclamou o agricultor canadiano, com a sua rude benevolência -, não vamos estragar uma noite divertida. O que eu quero dizer é o seguinte, vamos fazer alguma coisa para animar o grupo esta noite. Não será pintarmos as caras de preto ou sentarmo-nos em cima de chapéus, se não gostam disso, mas qualquer coisa do género. Porque é que não podemos organizar uma típica pantomima inglesa, compalhaço, colombina e assim por diante. Vi uma quando deixei a Inglaterra aos doze anos e a sua recordação tem brilhado no meu cérebro como uma fogueira. Voltei para o velho país há um ano e verifiquei que tal coisa se extinguiu. Não há nada a não ser muitas peças piegas comfadas. Quero um fogoso papão e um polícia feito em salsichas e oferecem-me princesas moralizando ao luar, pássaros azuis ou coisa assim. Barba Azul é mais o meu género, e foi dele que eu mais gostei quando se transformou no bobo.
- Eu sou por um polícia feito em salsichas - disse Crook -, é uma definição mais correcta de Socialismo do que algumas mais recentes. Mas certamente que a encenação será uma tarefa demasiado complicada.
- Nada disso - exclamou Blount, todo entusiasmado. Uma arlequinada é a coisa mais rápida que podemos fazer, por duas razões. Primeira, podemos improvisar até ao ponto que quisermos, e segunda, todos os objectos são objectos caseiros: mesa, cabides, cestos da roupa e coisas dessas.
- Isso é verdade - reconheceu Crook, acenando com a cabeça impulsivamente e passeando-se de um lado para o outro. Mas receio não poder ter a minha farda de polícia! Não matei nenhum polícia ultimamente.
Blount franziu o sobrolho pensativamente e depois bateu na coxa.
- Isso é que podemos ter! Tenho aqui a morada de Florian e ele conhece todos os guarda-roupas em Londres. vou telefonar-lhe para ele trazer uma farda de polícia quando vier. E foi-se embora aos pulos para o telefone.
- Oh, é uma maravilha, padrinho - disse Ruby, quase dançando. - vou ser colombina e o padrinho vai ser o bobo.
O milionário ficou rígido como uma espécie de solenidade pagã.
- Creio bem, minha querida - disse ele -, que tem de arranjar outra pessoa para fazer de bobo.
- Eu serei o bobo, se quiser - disse o coronel Adams, tirando o charuto da boca e falando pela primeira e última vez.
- Você devia ter uma estátua - exclamou o canadiano ao voltar, radiante, do telefone -, está tudo arranjado. O senhor Crook será o palhaço, ele é jornalista e conhece as piadas todas. Eu posso ser arlequim, pois para isso basta ter pernas compridas e andar aos saltos de um lado para o outro. O meu amigo Florian disse-me ao telefone que traz a farda de polícia, muda de fato pelo caminho. Podemos representar nesta mesma sala, o público fica sentado naquela escadaria, uma fila atrás da outra. Estas portas principais podem ser o cenário de fundo, quer abertas quer fechadas. Fechadas, vemos um interior inglês. Abertas, um jardim iluminado pela lua. Tudo acontece como por magia. - E tirando da algibeira um pedaço de giz de bilhar, traçou com ele no chão da sala um risco, a meio caminho da porta principal e da escadaria, para marcar a linha de palco.
Como é que um festim de tolices se aprontou a tempo permaneceu um enigma.
Mas meteram-se a ele com aquela mistura de temeridade e de actividade que existe quando a juventude reina numa casa, e a juventude reinava naquela casa naquela noite, apesar de nem todos poderem ter isolado os dois rostos e corações nos quais ela se incendiava. Como sucede sempre, o espírito inventivo tornava-se cada vez mais desvairado pela própria docilidade das convenções burguesas a partir das quais ele tinha de criar. A colombina tinha um aspecto encantador numa estranha saia que se parecia estranhamente como abat-jour da sala. O palhaço e o bobo enfarinharam-se de branco comfarinha do cozinheiro e pintaram-se de vermelho comrouge de uma outra serviçal, que permaneceram (como todos os benfeitores cristãos) anónimos. O arlequim, já todo vestido de papel de prata tirado das caixas de charutos, foi, comdificuldade, impedido de partir os antigos lustres vitorianos para que se pudesse cobrir comcristais resplandecentes. Na realidade, ele tê-lo-ia feito comcerteza se Ruby não tivesse desencantado umas velhas jóias falsas de pantomima que ela usara numa festa, mascarada como Rainha de Ouros. O seu tio, James Blount, estava quase a ficar descontrolado com a excitação, parecia um menino da escola. Pôs inesperadamente uma cabeça de burro de papel no padre Brown, que a suportou pacientemente, e até descobriu uma maneira pessoal de mexer as orelhas. Tentou mesmo pôr o rabo de burro de papel na aba do fraque de Sir Leopold Fisher. Isto, no entanto, não foi visto combons olhos.
- O tio é tão ridículo! - exclamou Ruby a Crook, a quem pusera à volta dos ombros um cordão de salsichas. - Porque é que ele é tão louco ?
- Ele é o arlequim para a sua colombina - disse Crook. - Eu sou apenas o palhaço que diz as velhas piadas.
- Quem me dera que você fosse o arlequim - disse ela, e deixou o cordão de salsichas a balouçar.
O padre Brown, apesar de conhecer cada detalhe do que se passava atrás dos bastidores e até tivesse suscitado aplauso pela transformação de uma almofada num bebé de pantomima, dirigiu-se para a frente e sentou-se entre os espectadores comtoda a solene expectativa de uma criança na sua primeira matinée. Os espectadores eram poucos, parentes, um ou dois amigos, vizinhos e os criados. Sir Leopold sentou-se no lugar da frente, a sua figura cheia e ainda de gola de peles tirando larga.- mente a vista ao pequeno padre atrás dele, mas nunca ficou decidido pelas autoridades artísticas se o padre perdeu muito. A pantomima era completamente caótica mas, no entanto, não desprezível. Percorria-a a febre da improvisação que provinha sobretudo de Crook, o palhaço. Geralmente era um homem inteligente, e naquela noite estava inspirado com uma louca omnisciência, uma loucura mais sábia do que o mundo, aquela que surge num jovem que viu, por um instante, uma expressão especial num rosto especial. Era suposto ser ele o palhaço, mas na verdade era quase tudo o resto, o autor (na medida em que existia um autor), o ponto, o pintor de cenários, o maquinista de teatro e, acima de tudo, a orquestra. Em intervalos repentinos da sua actuação ele atirava-se ao piano e martelava nele uma música popular igualmente absurda e apropriada.
O clímax de tudo isto foi o momento em que as duas portas principais no fundo do cenário se abriram, mostrando o encantador jardim iluminado pelo luar, mas mostrando mais proeminentemente o famoso convidado profissional, o grande Florian, mascarado de polícia. O palhaço tocou ao piano o coro da colectividade de polícias dos Piratas de Penzance, mas foi abafado pelo aplauso ensurdecedor, pois cada gesto do grande actor cómico era uma admirável, se bem que contida versão, do comportamento e das maneiras de um polícia. O arlequim saltou para cima dele e bateu-lhe no capacete, o pianista tocou "Onde é que arranjou esse chapéu?", o polícia deu meia volta num espanto admirável simulado e depois o arlequim aos saltos bateu-lhe outra vez (com o pianista sugerindo alguns compassos de "Depois bebemos outra"). Em seguida o arlequim correu direito aos braços do polícia e caiu em cima dele, no meio de um estrondoso aplauso. Foi então que o estranho actor fez a célebre imitação de um homem morto, cuja fama ainda perdura por Putney. Era quase impossível acreditar que uma pessoa viva parecesse tão mole.
O atlético arlequim balouçou-o de um lado para o outro como se fosse um saco, torceu-o e atirou-o ao ar como se fosse uma maça de madeira usada na ginástica, todo o tempo ao ritmo das loucamente ridículas melodias do piano. Quando o arlequim levantou pesadamente do chão o cómico polícia, o palhaço tocou "Levanto-me a sonhar contigo". Quando o arlequim o arrastou às costas, o palhaço tocou "com a 'minha trouxa ao ombro" e, finalmente, quando ele deixou cair o polícia com a mais convincente das pancadas surdas, o maluco ao piano atacou um compasso acompanhado de algumas palavras que parecem ter sido "Mandei uma carta ao meu amor e pelo caminho deixei-a cair".
Próximo deste limite de anarquia mental a visão do padre Brown passou a estar completamente obscurecida, pois o magnata da City que se encontrava à sua frente levantou-se e meteu as mãos selvaticamente em todas as suas algibeiras. Em seguida sentou-se muito nervoso ainda a remexer nos bolsos e depois tornou a levantar-se. Por um momento pareceu seriamente que ele iria entrar no palco, depois deitou um olhar penetrante ao palhaço que tocava o piano e, em seguida, saiu violentamente, em silêncio, da sala.
O padre apenas observara durante mais alguns minutos a absurda mas não deselegante dança do arlequim amador sobre o seu inimigo esplendidamente inconsciente. com uma real, se bem que rude, arte, o arlequim dançou devagar para trás pela porta fora até ao jardim, que estava cheio de luar e de silêncio. O fato remendado de papel de prata e as imitações de pedras preciosas, que pareceram demasiadamente brilhantes no palco, tinham um aspecto cada vez mais feérico e prateado enquanto se afastava dançando sob uma lua brilhante. O público estava a encerrar o espectáculo com uma torrente de aplausos quando Brown sentiu tocarem-lhe inesperadamente no braço e pedirem-lhe em segredo para chegar ao escritório do coronel.
Seguiu a pessoa que o convocara com uma crescente apreensão, que não foi dissipada pela solene comicidade da cena do escritório. Aí estava sentado o coronel Adams ainda vestido à bobo, com um chapéu festivo e os seus pobres olhos suficientemente tristes para tornarem sóbria uma orgia. Sir Leopold Fisher estava encostado à cornija da lareira e arfava comtoda a importância do pânico.
- Isto é um assunto muito penoso, padre Brown - disse Adams. - A verdade é que aqueles diamantes que nós todos vimos esta tarde desapareceram da algibeira do fraque do meu amigo. E como o senhor...
- Como eu - completou o padre Brown, com um sorriso franco - estava sentado mesmo atrás dele...
- Nada disso será insinuado - disse o coronel Adams, com um olhar firme para Fisher, o que implicava que tal coisa tinha, sido insinuada. - Apenas lhe peço que me dê o auxílio que qualquer cavalheiro daria.
- Que é virar as algibeiras do avesso - disse o padre Brown, e começou a fazê-lo, exibindo dinheiro miúdo, um bilhete de ida e volta, um pequeno crucifixo de prata, um pequeno breviário e uma barra de chocolate.
O coronel olhou para ele demoradamente e depois disse:
- Sabe, eu gostava mais de ver o interior da sua cabeça do que o interior das suas algibeiras. A minha filha é uma adepta sua, eu sei, pois bem, ela ultimamente... - e parou.
- Ela ultimamente - exclamou o velho Fisher - abriu as portas da casa do seu pai a um sanguinário socialista, que diz abertamente que roubaria seja o que for de um homem rico. E isso basta. Aqui está o homem rico - e de modo algum mais rico.
- Se quiser o interior da minha cabeça, pode tê-lo - disse o padre Brown, com um ar bastante cansado. - O que ele vale poderão dizer depois. Mas a primeira coisa que encontro nessa algibeira fora de uso é o seguinte: que os homens que têm intenção de roubar diamantes não discutem socialismo. É mais provável até - acrescentou ele modestamente - que o condenem.
Os outros dois mudaram rapidamente de posição e o padre continuou:
- Vejam, nós conhecemos mais ou menos estas pessoas que aqui estão. Esse socialista roubaria tanto um diamante como uma pirâmide. Temos de procurar imediatamente junto do único homem que não conhecemos. O sujeito que faz de polícia, Florian. Gostava de saber onde está ele neste instante, exactamente?
O bobo levantou-se e saiu da sala. Seguiu-se um interlúdio, durante o qual o milionário olhou fixamente para o padre, depois o bobo voltou e disse comgravidade:
- O polícia ainda está deitado no palco. A cortina já subiu e desceu seis vezes e ele ainda está lá deitado.
O padre Brown deixou cair o livro e ficou a olhar fixamente com um olhar vazio de aniquilamento mental. Uma luz começou muito devagar a insinuar-se outra vez nos seus olhos cinzentos e deu em seguida uma resposta muito pouco óbvia.
- Desculpe-me, coronel, mas quando é que a sua mulher morreu?
- A minha mulher! - respondeu o militar olhando-o.
De facto - morreu há um ano e dois meses. James, o irmão, chegou uma semana tarde demais, para a poder ver.
O pequeno padre deu um salto como uma bala de matar coelhos.
- Venham - exclamou ele, num estado de excitação invulgar. - Venham! Temos de ir ver esse polícia.
Foram a correr até ao palco, agora de cortina descida, irrompendo pelo meio da colombina e do palhaço (que segredavam muito satisfeitos) e o padre Brown curvou-se sobre o prostrado polícia cómico.
- Clorofórmio - disse ele, levantando-se. - Só o adivinhei agora mesmo.
Houve um silêncio espantado e, em seguida, o coronel disse devagar:
- Por favor, diga-me seriamente o que quer dizer tudo isto. O padre Brown de repente começou a rir às gargalhadas,
depois parou e só se debateu comelas por-instantes durante o resto das suas palavras:
Meus senhores, falou ele ofegante -, não temos muito tempo para falar. Tenho de ir a correr atrás do criminoso. Mas este grande actor francês que fez o papel de polícia, este cadáver inteligente comquem o arlequim valsou e que embalou e atirou para todos os lados, era... - A voz falhou-lhe outra vez, e ele virou as costas para se pôr a correr.
- Era? - perguntou Fisher.
- Um verdadeiro polícia - disse o padre Brown, e fugiu a correr pela escuridão dentro.
Havia ravinas e caramanchões na ponta extrema daquele jardim no qual os loureiros e outros arbustos mostravam, de encontro ao céu de safira e à lua prateada, mesmo naquele Inverno, as cores quentes do Sul. O encanto verde dos loureiros ondulantes, o azul-escuro da noite, a lua como um monstruoso cristal formavam um quadro quase irresponsavelmente romântico, e por entre os ramos superiores das árvores do jardim está a trepar um estranho vulto que parece não tanto romântico quanto possível. Reluz da cabeça aos pés, como se estivesse vestido de dez milhões de luas, a lua real capta-o em todos os movimentos e põe cada novo pedaço dele brilhando. Mas ele baloiça-se flamejante e bem sucedido, da árvore baixa neste jardim para a árvore alta e frondosa no outro, e só pára aí porque uma sombra deslizara sob a árvore mais baixa e o chamara inequivocamente.
- Bem, Flambeau - disse a voz -, você parece-se mesmo com uma "Estrela Voadora", mas isso apenas quer dizer uma "Estrela Cadente".
O vulto prateado e brilhante lá em cima parece inclinar-se para a frente no meio dos loureiros e, confiante na fuga, escuta o pequeno vulto lá em baixo.
- Você nunca fez nada melhor, Flambeau. Foi inteligente vir do Canadá (com um bilhete de Paris, suponho) apenas uma semana depois da morte da senhora Adams, quando ninguém tinha disposição para fazer perguntas. Ainda foi mais inteligente ter assinalado as "Estrelas Voadoras" e o mesmo dia em que Fisher chegava. Mas não foi inteligência,, mas mero génio, o que se seguiu. Roubar as pedras, suponho eu, não foi nada difícil para si. Você podia fazê-lo com um truque por meio de centenas de outras maneiras que não fosse esse pretexto de pôr um rabo de burro de papel no casaco de Fisher. Mas no resto você ultrapassou-se.
O vulto prateado por entre as folhas verdes parece demorar-se como hipnotizado, e apesar da sua fuga ser fácil, está a olhar fixamente para o homem lá em baixo.
- Oh, sim - disse o homem cá em baixo. - Eu sei tudo. Sei que não só forçou a pantomima mas utilizou-a duplamente. Você ia roubar as pedras silenciosamente, um cúmplice seu deu-lhe a notícia de que já suspeitavam de si e que um eficiente polícia viria capturá-lo nessa mesma noite. Um ladrão vulgar teria ficado agradecido pelo aviso e teria fugido, mas você é um poeta. Você" já tinha a ideia inteligente de esconder as jóias num fulgor de jóias falsas destinadas à pantomima. Viu que se o seu disfarce fosse o de um arlequim, o aparecimento de um polícia seria muito adequado. O respeitável polícia saiu da esquadra de polícia de Putney comintenção de o encontrar, e foi cair na mais estranha armadilha que jamais se montou neste mundo. Quando se abriu a porta principal entrou directamente no palco onde se representava uma pantomima de Natal, onde o arlequim podia dar pontapés, cacetadas, deixá-lo atordoado e drogado no meio de gargalhadas estrondosas das pessoas mais respeitáveis de Putney. Oh, você podia devolver-me esses diamantes.
O tronco verde no qual a figura brilhante se balouçava fez um ruído, como que de espanto, mas a voz prosseguiu:
- Quero que os devolva, Flambeau, e quero que você desista desta vida. Ainda há juventude e honra e humor em si e não julgue que vão durar nessa sua ocupação. O homem mantém uma espécie de nível de bondade, mas nenhum homem jamais foi capaz de manter um nível de maldade. Esse caminho é sempre a descer. O homem bondoso bebe e torna-se cruel, o homem franco mata e mente a esse respeito. Muitos homens que eu conheci começaram como você, por serem criminosos honestos, alegres ladrões dos ricos, e acabaram cobertos de lama. Maurice Blum começou como um anarquista, um pai dos pobres, acabou como sujo espião e mexeriqueiro que ambas as partes utilizavam e desprezavam. Harry Burke começou o movimento de dinheiro livre comtodas as boas intenções, agora vive à custa de uma irmã meio esfomeada para arranjar intermináveis aguardentes e águas gasosas. Lord Amber entrou na marginalidade numa espécie de cavalheirismo, agora está a pagar chantagem aos abutres mais baixos de Londres. O capitão Barillon era o grande cavalheiro-bandido antes do seu tempo, Flambeau, morreu num manicómio, gritando commedo dos informadores e receptadores que o tinham traído e o perseguiram até à morte. Sei que os bosques atrás de si lhe parecem muito livres Flambeau, sei que num lampejo você podia desaparecer neles como um macaco. Mas um dia destes você será um velho macaco cinzento, Flambeau. Sentar-se-á na sua floresta de árvores com o coração frio e próximo da morte e os troncos das árvores estarão muito nus.
Tudo continuava muito quieto, como se o pequeno homem cá em baixo segurasse o outro na árvore por uma trela invisível, é o homenzinho continuou:
- A sua marcha descendente já começou. Você costumava gabar-se de não fazer nada de ignóbil, mas esta noite está a fazer uma coisa ignóbil. Está a deixar que suspeitem de um rapaz honesto que já tem muito a seu desfavor, está a separá-lo da mulher que ele ama e que o ama também, mas você fará coisas mais ignóbeis do que essa antes de morrer.
Três diamantes muito brilhantes caíram da árvore para o relvado. O pequeno homem baixou-se para apanhá-los, e quando olhou outra vez para cima a gaiola verde da árvore estava vazia sem o seu pássaro prateado.
A restituição das jóias (apanhadas acidentalmente pelo padre Brown) fez comque a noite terminasse num estrondoso triunfo e Sir Leopold, no auge do bom humor, até disse ao padre Brown que apesar de ele próprio ter vistas mais largas, era capaz de respeitar aqueles cujo credo exigia que vivessem em clausura e ignorantes do mundo.
CAPÍTULO V
O homem invisível
No fresco crepúsculo azul das duas ruas íngremes em Camden Town, a loja da esquina, uma confeitaria, reluzia como a ponta de um charuto. Deveria dizer-se antes, talvez, como um fogo-de-artifício, pois a luz era de muitas cores e alguma complexidade, fragmentando-se em muitos espelhos e dançando em muitos bolos dourados de cores alegres e em frutas cristalizadas. Os narizes dos miúdos da rua colavam-se a essa montra flamejante, pois os chocolates eram todos embrulhados naquelas cores metálicas vermelhas, douradas e verdes que são quase melhores do que o próprio chocolate. O enorme bolo de noiva branco era ao mesmo tempo distante e satisfatório, exactamente como se todo o Pólo Norte fosse bom para comer. Esse aspecto de arco-íris incitava naturalmente a juventude da vizinhança até aos dez, doze anos de idade a reunir-se aí. Mas esta esquina atraía também a juventude de idade mais avançada, um jovem, comnão menos do que vinte e quatro anos, estava a olhar para a mesma montra. Para ele também a loja tinha um flamejante encanto, mas esta atracção não era totalmente explicável por chocolates, os quais, no entanto, o jovem estava longe de desprezar.
Era um rapaz alto, robusto, de cabelos ruivos, de cara decidida mas com um ar lânguido. Trazia debaixo do braço uma pasta achatada, cinzenta, de desenhos de esboços que ele vendera a editores, commais ou menos êxito, desde que o seu tio (que era almirante) o deserdara por causa do Socialismo, devido a uma conferência que ele proferira contra aquela teoria económica. O seu nome era John Turnbull Angus.
Entrou finalmente na confeitaria e foi até à sala das traseiras, que era uma espécie de pastelaria, e tirou o chapéu à jovem que servia à mesa. Era uma rapariga morena, elegante e viva, vestida de preto e com os olhos escuros muito penetrantes. Depois de ter esperado um pouco, ela seguiu-o para tomar nota do seu pedido.
O pedido dele era evidentemente um pedido vulgar.
- Eu quero, se faz favor - disse o rapaz comprecisão -, um bolo de passas de meio penny e uma chávena pequena de café.
Antes de a rapariga se ter ido embora acrescentou:
- Também quero que você se case comigo.
A jovem da confeitaria de repente empertigou-se e disse:
- Isso são brincadeiras que eu não admito.
O jovem ruivo ergueu os seus olhos cinzentos com uma inesperada gravidade.
- Realmente - disse ele -, é a sério, tão a sério como o bolo de meio penny. É caro como o bolo, é preciso pagar por ele. É indigesto, como o bolo. Faz doer.
A menina morena nunca tirara os olhos dele, mas parecia estudá-lo com uma exactidão quase trágica. No fim do seu minucioso exame, produziu qualquer coisa como a sombra de um sorriso e sentou-se numa cadeira.
- Não acha - observou Angus, distraidamente - que é bastante cruel comer estes bolos de meiopenny? Podem transformar-se em bolos de um penny. vou acabar comestes desportos brutais quando casarmos.
A menina morena levantou-se da cadeira e foi até à janela, num estado de profunda mas complacente reflexão. Quando por fim ela se voltou outra vez com um ar resoluto, ficou espantada por observar que o jovem estava a dispor cuidadosamente sobre a mesa vários objectos que estavam na montra. Incluíam uma pirâmide de doces extremamente coloridos, vários pratos de sanduíches e duas garrafas contendo esses misteriosos vinhos do Porto e Xerez que são apanágio dos pasteleiros. No meio deste esmerado arranjo ele tinha cuidadosamente pousado a enorme carga do bolo coberto de açúcar branco que fora o ornamento da montra.
- Mas que diabo está você a fazer? - perguntou ela.
- É o meu dever, minha querida Laura - começou ele.
- Oh, por amor de Deus, pare um minuto - exclamou ela - e não fale comigo dessa maneira. O que é que isso tudo quer dizer?
- Uma refeição cerimonial, Miss Hope.
- E aquilo o que é? - perguntou ela comimpaciência, apontando para a montanha de açúcar.
- O bolo de noiva, senhora Angus.
A rapariga dirigiu-se para aquele objecto, retirou-o com algum ruído e pô-lo novamente na montra. Depois voltou e, pondo os seus elegantes cotovelos sobre a mesa, olhou para o jovem comsimpatia mas também com uma considerável irritação.
- Você não me dá tempo para pensar - disse ela.
- Não sou assim tão parvo - respondeu ele -, isso é a minha humildade cristã.
Ela continuava a olhá-lo, mas tornara-se consideravelmente mais séria por detrás do sorriso.
- Senhor Angus - disse ela firmemente -, antes de continuar um minuto mais que seja deste disparate tenho de lhe contar uma coisa a meu respeito, o mais resumidamente que puder.
- Encantado - respondeu Angus gravemente. - Pode também contar-me alguma coisa a meu respeito, enquanto estiver nessa disposição.
- Oh, esteja calado e oiça - disse ela. - Não é nada de que eu me arrependa especialmente. Mas o que é que você diria se fosse alguma coisa que não me dissesse respeito e no entanto fosse um pesadelo para mim?
- Nesse caso - disse o homem gravemente -, sugiro que você traga novamente o bolo.
- Você tem de ouvir a história primeiro - disse Laura, compersistência. - Para começar, tenho de lhe dizer que o meu pai era proprietário da estalagem chamada "Peixe Vermelho" em Ludbury e eu costumava atender clientes no bar.
- Tenho muitas vezes pensado - disse ele - porque é que pairava aqui nesta confeitaria uma espécie de atmosfera cristã.
- Ludbury é um pequeno buraco sonolento e cheio de erva que fica nos Condados de Leste e o único género de pessoas que aparecia no "Peixe Vermelho" eram caixeiros-viajantes ocasionais e o resto eram as pessoas mais horríveis que se possam encontrar, só que você jamais as encontrou. Homenzinhos ociosos que tinham apenas o suficiente para viver e não tinham nada que fazer a não ser estarem encostados aos bares e apostar nos cavalos, mal vestidos, mas cuja roupa ainda era boa para eles. Mesmo esses jovens ordinários não frequentavam muito a nossa casa, mas havia dois deles que a frequentavam demasiadamente e que eram demasiado ordinários. Ambos viviam dos rendimentos e eram enfadonhamente ociosos e exagerados na maneira de vestir. Mas no entanto eu tinha um pouco de pena deles, porque quase acredito que eles se escondiam no nosso pequeno barzinho porque cada um deles tinha uma pequena deformidade: o tipo de coisa de que alguns labregos se riem.
Não era exactamente uma deformidade, era mais uma singularidade. Um deles era um homem surpreendentemente pequeno, um pouco como um anão, ou pelo menos como um jóquei. Não tinha nada o ar de jóquei, tinha uma cabeça negra e redonda, uma barba preta bem aparada e olhos brilhantes como os de um pássaro.-Fazia tilintar dinheiro nas algibeiras, fazia soar desagradavelmente uma corrente de relógio e aparecia demasiadamente bem vestido, como um cavalheiro, para ser um cavalheiro. No entanto, não era parvo nenhum, mas um fútil indolente, era muito hábil para toda a espécie de coisas que não serviam absolutamente para nada, uma espécie de prestidigitação improvisada: fazia comque quinze fósforos se acendessem uns aos outros como um verdadeiro fogo-de-artifício; era capaz de cortar uma banana ou qualquer coisa do género com a forma de uma boneca dançando. O nome dele era Isidore Smythe, e ainda estou a vê-lo, com a sua pequena cara morena, a aproximar-se do balcão do bar, fazendo de cinco charutos um canguru a saltar.
O outro tipo era mais silencioso e vulgar, mas assustava-me muito mais do que o pobre pequeno Smythe. Era muito alto e delgado, tinha uns cabelos claros, o nariz proeminente e podia até quase ser bem parecido, de uma forma fantástica. Mas tinha um dos mais horrorosos estrabismos que eu jamais vi ou ouvi falar. Quando ele olhava directamente para uma pessoa, ela não percebia onde é que estava e muito menos para onde é que ele estava a olhar. Eu acho que esta deformação tornava o pobre tipo um pouco amargo, pois enquanto Smythe estava sempre pronto a mostrar as suas habilidades onde quer que fosse, James Welkin (era este o nome do homem vesgo) não fazia nada a não ser beber no nosso bar e ir dar grandes passeios sozinho pelas planícies cinzentas. Apesar de tudo, acho que também Smythe sofria um pouco por ser tão baixo, apesar de levar a coisa mais inteligentemente. E foi assim que eu fiquei realmente perplexa, espantada e commuita pena quando ambos, na mesma semana, me pediram em casamento.
- Pois bem, eu fiz o que desde então tenho pensado ser uma tolice. Mas afinal de contas estes monstrosinhos eram de certa maneira meus amigos e eu horrorizava-me que eles pensassem que eu os recusava pela verdadeira razão, a de eles serem tão incrivelmente feios. Por isso inventei outra desculpa, a de não me casar comninguém que não tivesse lutado para ganhar a vida. Disse que por princípio não queria viver de dinheiro que era apenas herdade como o deles. Dois dias depois de eu lhes ter falado com estas boas intenções, começaram todos os aborrecimentos. A primeira coisa que eu soube foi que ambos tinham partido para fazer fortuna, como se estivessem a viver um conto de fadas.
- Pois bem nunca mais vi nenhum deles desde esse dia até hoje. Mas recebi duas cartas do homenzinho chamado Smythe que eram realmente bastante emocionantes.
- Soube alguima coisa do outro homem? - perguntou Angus.
- Não, ele nunca escreveu - disse a rapariga, depois de um momento de hesitação. - A primeira carta de Smythe era simplesmente para dizer que ele se tinha posto a caminho com Welkin rumo ^ Londres, mas que Welkin era tão bom caminhante que o homenzinho desistira e fez uma pausa na estrada para descansar. Aconteceu que foi apanhado por um espectáculo ambulante e em parte porque ele era quase anão, em parte porque ele era um desgraçado tão esperto, deu-se muito bem no negócio do espectáculo e foi em breve mandado para o Aquarium, para fazer algumas habilidades de que eu não me recordo. Mas esta foi a sua primeira carta. A segunda foi muito mais surpreendente e só a recebi na semana passada.
O homem Chamado Angus esvaziou a sua chávena de café e olhou para ela com um olhar suave e paciente. A boca dela retorceu-se levemente numa risada e prosseguiu:
- Suponho <que já tenha visto nos tapumes tudo isso que diz respeito ao "Serviço Silencioso Smythe". Ou então você foi a única pessoa que não viu. Oh, pouco sei a esse respeito, é uma invenção para fazer todo o trabalho doméstico por meio de maquinaria. Sabe o género: "Carregue no botão, um mordomo que nunca bebe>>- Ou "Rode uma manivela, dez criadas que nunca namoraram. Você deve ter visto os anúncios. O que quer que estas máquinas sejam, estão a fazer rios de dinheiro e fazem-no para aquele diabinho que eu conheci em Ludbury. Não posso deixar de me sentir satisfeita de que aquele tipo tenha tido sorte, mas o caso é que vivo no terror de ele aparecer a qualquer momento e que me diga que lutou para ganhar a vida, como de facto aconteceu.
- E o outro homem? - repetiu Angus, com uma espécie de obstinada calma. Laura Hope levantou-se repentinamente.
- Meu amigo - disse ela. - Acho que você é um bruxo. Sim, tem toda a razão. Não vi uma linha escrita por esse homem e não faço a mais pequena ideia do que é que ele faz ou onde está. Mas é dele que eu tenho medo. É ele que está no meu caminho. É ele que me põe meia louca. De facto, acho que ele me pôs louca, pois eu tenho-o sentido onde ele não podia ter estado e tenho-o ouvido quando ele não podia ter falado.
- Bem, minha querida - disse o jovem alegremente -, se ele é o próprio Satanás, ele está liquidado, pois agora você já contou o caso a alguém. Uma pessoa fica maluca quando está completamente sozinha, minha amiga. Mas quando é que julgou que sentiu ou ouviu o nosso amigo vesgo?
- Eu ouvi James Welkin rir tão claramente como o oiço a si falar - disse a rapariga comfirmeza. - Não havia ali ninguém, pois eu encontrava-me mesmo fora da loja, à esquina, e podia ver as duas ruas ao mesmo tempo. Tinha-me esquecido do riso dele, apesar do riso dele ser tão estranho como o seu estrabismo. Havia perto de um ano que eu não pensava nele. Mas é uma pura verdade que alguns segundos depois chegou a carta do seu rival.
- Você alguma vez fez comque o espectro falasse ou guinchasse, ou qualquer coisa do género? - perguntou Angus, com um certo interesse.
Laura tremeu de repente e depois disse com uma voz resoluta:
- Sim. Logo que eu acabei de ler a segunda carta de Isidore Smythe anunciando o seu êxito, nessa mesma altura ouvi Welkin dizer:
- Você não será dele. - Era tão nítido, como se ele estivesse aqui no quarto. É horrível, acho que devo estar louca.
- Se você estivesse realmente louca - disse o jovem -, pensaria que estava no seu juízo perfeito. Mas é certo que parece haver qualquer coisa um pouco estranha a respeito deste cavalheiro invisível. Duas cabeças são melhores que uma, eu dispenso alusões a quaisquer outros órgãos e, se me dá licença, como um homem forte e prático que sou, de trazer de novo o bolo de noiva da montra...
Enquanto ele falava houve um som agudo de aço lá fora na rua e um pequeno carro, conduzido a uma velocidade diabólica, aproximou-se como um raio da porta da loja e aí parou. No mesmo instante um pequeno homem usando um brilhante chapéu alto estava a bater o pé na sala da entrada.
Angus, que até então mantivera uma alegre despreocupação por questões de higiene mental, revelou a tensão da sua alma saindo compassos largos do quarto de dentro e confrontando o recém-chegado. Uma olhadela para este foi o suficiente para confirmar as brutais conjecturas de um homem apaixonado. Esta figura muito garbosa mas anã, com uma pequena barba preta pontiaguda apontando insolentemente para a frente, os olhos espertos e inquietos, os dedos bem tratados mas nervosos, essa figura não podia ser outra senão o homem que lhe acabara de ser descrito: Isidore Smythe, que fazia bonecas de casca de banana e caixas de fósforos; Isidore Smythe, que ganhava milhões commordomos que não bebiam e criadas que não namoravam, todos feitos de metal. Por um momento os dois homens, compreendendo instintivamente o ar de posse de cada um deles, olharam um para o outro com essa generosidade curiosa e fria que é a alma da rivalidade.
O senhor Smythe, no entanto, não fez qualquer alusão à causa fundamental do antagonismo deles, mas disse simplesmente e de modo explosivo:
- Miss Hope, já viu aquela coisa na montra?
- Na montra? - repetiu estupefacto Angus.
- Não há tempo para explicar outras coisas - disse o pequeno milionário resumidamente. - Passa-se aqui alguma tolice que tem de ser investigada.
Apontou com a sua bengala polida para a montra, recentemente esvaziada pelos preparativos nupciais do senhor Angus, e aquele cavalheiro ficou admirado por ver ao longo da frente de vidro uma comprida tira de papel colada, que de certeza não estava lá quando ele tinha olhado através dela algum tempo antes. Saindo como enérgico Smythe para a rua, verificou que cerca de um metro e meio de papel selado fora cuidadosamente colado à parte da fora do vidro e nele estava escrito com uma letra irregular: "Se se casar com Smythe, morrerá".
- Laura - disse Angus, metendo a sua grande cabeça ruiva dentro da loja. - Você não está louca.
- É a letra desse tipo Welkin - disse Smythe asperamente. Há anos que não o vejo, mas ele está sempre a incomodar-me. Cinco vezes nestes últimos quinze dias deixou cartas ameaçadoras no meu apartamento e não consigo sequer saber quem as entrega, ou se é mesmo o próprio Welkin. O porteiro do apartamento jura que não viu ninguém suspeito, e aqui esteve ele a colar uma espécie de rodapé na montra de uma loja, enquanto as pessoas lá dentro...
- É assim mesmo - disse Angus imediatamente -, enquanto as pessoas na loja estavam a tomar chá. Posso assegurar-lhe que aprecio o seu senso com um em tratar directamente deste assunto. Podemos falar de outras coisas depois. O tipo não deve estar muito longe ainda, pois garanto-lhe que não havia nenhum papel quando eu lá fui há dez ou quinze minutos. Por outro lado, o homem já deve estar longe demais para se ir atrás dele, pois nem sequer sabemos que direcção tomou. Se quiser seguir o meu conselho, senhor Smythe, ponha imediatamente este assunto nas mãos de um enérgico investigador, um investigador privado de preferência. Conheço um tipo extremamente esperto, que exerce a sua profissão a cinco minutos daqui, indo no seu carro. O nome dele é Flambeau, e apesar da sua juventude ter sido um pouco tempestuosa, ele agora é um homem completamente honesto e a sua inteligência vale dinheiro. Vive nas Mansões Lucknow, em Hampstead.
- Isso é curioso - disse o homenzinho, arqueando as sobrancelhas pretas. - Eu vivo nas mansões Himalaya, que ficam mesmo ao pé. Talvez queira vir comigo, posso ir ao meu apartamento e escolher esses estranhos documentos de Welkin, enquanto você vai a correr buscar o seu amigo detective.
- Você é muito simpático - disse Angus delicadamente -, quanto mais depressa actuarmos melhor.
Os dois homens, com uma estranha espécie de improvisada imparcialidade, despediram-se da jovem da mesma maneira formal e ambos saltaram para dentro do rápido carrinho. Enquanto Smythe pegou no volante e viraram a esquina da rua, Angus divertiu-se a ver um gigantesco cartaz do "Serviço Silencioso Smythe" como desenho de uma enorme boneca de ferro sem cabeça, transportando uma frigideira, com a legenda, "Uma Cozinheira Que Nunca Se Zanga".
- Utilizo-os no meu apartamento - disse o homenzinho de barba preta, rindo. - Em parte por reclame, em parte por verdadeira conveniência. Realmente, essas minhas grandes bonecas mecânicas trazem-nos carvão, ou vinho tinto, ou um horário, mais depressa do que qualquer criada de carne e osso, contanto que se saiba em que botão carregar. Mas, aqui entre nós, nunca negarei que estas criadas também têm as suas desvantagens.
- Não é possível? - disse Angus. - Há alguma coisa que elas não possam fazer?
- Há sim - respondeu Smythe friamente -, não sabem dizer quem é que deixou aquelas cartas ameaçadoras no meu apartamento.
O carro do homem era pequeno e rápido como ele, na realidade, tal como o seu serviço doméstico era invenção sua. Se ele era um charlatão de publicidade, era do género que acreditava nos seus próprios artigos. A sensação de uma coisa pequena e voadora acentuava-se à medida que passavam comgrande velocidade por longas curvas brancas da estrada na tranquila mas plena luz do dia do entardecer. Em breve as curvas brancas tornaram-se mais fechadas e vertiginosas, eram em espirais ascendentes, como se diz nas religiões modernas. Pois, na verdade, alcançavam o cume de um canto de Londres que é quase tão íngreme como Edinburgh, se bem que não tão pitoresco. Fileiras de casas construídas num declive erguiam-se umas acima das outras e a torre especial de apartamentos que eles procuravam erguia-se acima delas todas a uma altura quase egípcia, dourada pelo pôr do Sol raso. A mudança, ao virarem a esquina e avistarem uma série de edifícios formando uma meia-lua, conhecidos como as mansões Himalaya, foi tão abrupta como se se tivesse aberto uma janela porque encontraram esse bloco de edifícios de apartamentos colocados sobre Londres como se fosse sobre um mar verde de ardósia. No lado oposto às mansões, no outro lado da meia-lua de cascalho, estava um terreno cercado cheio de arbustos, mais como uma sebe íngreme, ou uma vala, do que um jardim, e mais abaixo corria uma tira de água artificial, uma espécie de canal, como o fosso dessa fortaleza coberta de folhagem. Ao seguir muito rapidamente à volta da' meia-lua o carro passou, numa esquina, pela tenda errante de um vendedor de castanhas, logo a seguir na outra extremidade da curva. Angus pôde ver um indistinto polícia vestido de azul, andando devagar. Estas eram as únicas formas humanas nessa elevada solidão suburbana, mas ele tinha a sensação irracional que elas exprimiam a silenciosa poesia de Londres. Sentiu que eram personagens numa história.
O pequeno automóvel dirigiu-se, veloz como uma bala, até à casa certa e dele saiu o dono como uma bomba. Perguntou imediatamente a um encarregado alto todo engalanado e a um porteiro baixo em mangas de camisa se alguém tinha procurado o seu apartamento. Asseguraram-lhe que ninguém e nada tinham passado por aqueles funcionários desde as suas indagações, depois do que ele e o levemente espantado Angus subiram rapidamente no elevador como um foguetão, até chegarem ao último andar.
- Entre apenas por um minuto - disse o esbaforido Smythe.
- Quero mostrar-lhe as cartas de Welkin. Depois você pode dobrar a esquina e ir a correr procurar o seu amigo. - Carregou num botão escondido na parede e a porta abriu-se por si.
Abriu-se para uma comprida e cómoda sala de espera, da qual as únicas características impressionantes, por assim dizer, eram as filas de figuras rnecânicas altas e semi-humanas que estavam colocadas em ambos os lados do quarto, como se fossem manequins. Não tinham cabeça como os manequins e, tal como eles, tinham uma elegante e desnecessária corcunda nos ombros e uma protuberância no peito como a de um peito de rola. Mas excluindo isso, pareciam-se tanto com uma figura humana como qualquer máquina automática numa estação que fosse de uma altura humana. Tinham dois grandes ganchos como se fossem braços para transportar tabuleiros e eram pintados de verde ervilha, vermelho ou preto para se distinguirem. Em tudo o resto eram apenas máquinas automáticas e ninguém teria olhado duas vezes para elas. Nesta ocasião, pelo menos, ninguém olhou. Pois entre as duas filas de manequins domésticos encontrava-se alguma coisa de mais interessante do que a maior parte dos mecanismos do mundo. Era um pedaço de papel branco esfarrapado rabiscado com tinta vermelha, e o ágil inventor apanhou-o quase quando a porta se abriu. Entregou-o a Angus sem uma palavra. A tinta vermelha ainda não estava seca e a mensagem dizia assim: " Se foi hoje vê-la, mato-o".
Houve um curto silêncio e em seguida Isidore Smythe disse serenamente:
- Quer tomar um pouco de uísque? Eu, por mim, sinto que o devo fazer.
- Obrigado, eu quero um pouco de Flambeau - disse Angus, sombriamente- Parece-me que este assunto se está a tornar bastante grave - vou já imediatamente buscá-lo.
- Tem toda a razão - disse o outro, com admirável bom humor. - Traga-o aqui o mais depressa que puder.
Mas ao fechar a porta principal Angus viu Smythe premir um botão e umas figuras mecânicas deslizar do seu lugar e deslocar-se por uma ranh^j-j no crião, transportando um tabuleiro com um íra-sco de água gaseifícada e uma garrafa. Parecia um pouco es4Ulslto deijj;^ o homenzinho só, no meio daqueles criados m^rtos, que Ressuscitavam ao fechar-se a porta.
Seis degraus aP^ixo do ar^dar de Smythe o homem em mangas de camisa est^-va a fazer qualquer coisa com um balde. Angus parou para lí*e arrancar uma promessa, reforçada por uma perspectiva de gorjeta, de que ele se conservaria naquele lugar até que Angus voltasse como detective e tomasse conta de qualquer estranho que subisse as escadas. Descendo a correr para a entrada recomendou a mesma tarefa de vigilância ao encarregado que estava na porta principal, através do qual soube da circunstância simplificativa de que -não havia porta das traseiras. Não contente comisto apanhou o errante polícia e persuadiu-o a ficar em frente da entrada do prédio e vigiá-la e, por fim, parou por um instante para comprar umpenny de castanhas e se informar da demora provável do vendedor nas proximidades.
O vendedor de castanhas, levantando a gola do seu casaco, disse-lhe que brevemente ia andando, porque pensava que ia nevar. De facto, a tarde tornara-se cinzenta e de um frio cortante, mas Angus, comtoda a sua eloquência, tomou medidas para que o homem das castanhas ficasse pregado no seu posto.
- Aqueça-se com as suas castanhas - disse ele sinceramente.
- Com a-as todas, eu vou compensá-lo. Dou-lhe uma libra se você esperar até que eu volte e me disser se algum homem, mulher ou criança entrar naquela casa onde está o encarregado.
Ele afastou-se em seguida, com um derradeiro olhar para a torre sitiada.
- Fiz um círculo à volta daquele apartamento - disse ele. Não podem ser todos os quatro cúmplices do senhor Welkin.
As Mansões Lucknow encontravam-se, por assim dizer, numa plataforma inferior desse monte de casas, das quais as Mansões Himalaya podiam chamar-se o cume. O apartamento semi oficial do senhor Flambeau ficava no rés-do-chão e apresentava, sobre todos os aspectos, um contraste marcante comtoda a maquinaria americana e o luxo impessoal, de tipo hotel, do apartamento do Serviço Silencioso. Flambeau, que era amigo de Angus, recebeu num artístico gabinete de trabalho de estilo rococó que ficava atrás do seu escritório e cujos ornamentos eram sabres, arcabuzes, raridades orientais, frascos de vinho italiano, panelas de cozinha selvagem, um emplumado gato persa e um pequeno padre católico de aspecto poeirento, que parecia particularmente deslocado.
- Este é o meu amigo padre Brown - disse Flambeau. - Há muito que queria que você o conhecesse. Está um esplêndido tempo, um pouco frio para pessoas do Sul como eu.
- Sim, acho que se vai manter o bom tempo - disse Angus, sentando-se numa otomana oriental forrada de riscas violetas.
- Não - disse o padre serenamente -, começou a nevar.
E de facto, enquanto ele falava, raros primeiros flocos, previstos pelo homem das castanhas, começaram a cair do outro lado da vidraça já escurecida.
- Bem - disse Angus. - Vim para tratar de negócios e é de um negócio bastante urgente que se trata. O caso é, Flambeau, que a um pulo da sua casa está um sujeito que precisa muito da sua ajuda. Está constantemente a ser perseguido e ameaçado por um inimigo invisível, um patife que ninguém viu.
À medida que Angus continuava a contar toda a história de Laura e prosseguindo com a sua, o riso sobrenatural à esquina das ruas vazias, as estranhas e distintas palavras proferidas na sala vazia, Flambeau tornava-se cada vez mais preocupado e o pequeno padre parecia estar a mais, como uma peça de mobiliário. Quando chegou a vez do papel selado rabiscado e colado na janela, Flambeau levantou-se, parecendo encher o quarto com os seus ombros enormes.
- Se não se importa - disse ele -, acho melhor contar-me o resto pela rua que vai dar a casa desse homem. Afigura-se-me que não há tempo a perder.
- Encantado - disse Angus, levantando-se também -, apesar de ele estar fora de perigo por agora, porque pus quatro homens a vigiar o único buraco que dá para a sua toca.
Saíram para a rua com o pequeno padre volteando ao redor deles com a docilidade de um cãozinho. Ele apenas disse, de um modo contente, como se estivesse a fazer conversa:
- Que depressa que a neve se torna espessa no chão. Enquanto passavam comdificuldade pelas íngremes ruas
laterais já polvilhadas de prata, Angus terminou a sua história, e ao chegarem às torres de apartamentos ele teve vagar para dirigir a sua atenção para as quatro sentinelas. O vendedor de castanhas, tanto antes como depois de receber a libra, jurou teimosamente que tinha vigiado a porta e que não vira entrar nenhum visitante. O polícia ainda foi mais enfático.
Disse que tinha prática de gente desonesta de toda a espécie, de chapéu alto ou de andrajos, não era assim tão verde que esperasse que pessoas suspeitas parecessem suspeitas, estava alerta para qualquer pessoa e dava a sua palavra de honra como não aparecera ninguém. E quando os três homens se juntaram à volta do vistoso encarregado, que ainda estava a sorrir à entrada, o veredicto ainda foi mais decisivo.
- Tenho o direito de perguntar a qualquer homem, seja ele duque ou varredor de ruas, o que é que ele quer destes apartamentos - disse o cordial e engalanado gigante -, e eu juro que não veio ninguém perguntar nada desde que este senhor se foi embora.
O insignificante padre Brown, que ficara para trás, olhando modestamente para o pavimento, a esta altura atreveu-se a dizer humildemente:
- Então desde que a neve começou a cair ninguém subiu e desceu as escadas? Começou a cair enquanto nós estávamos em casa de Flambeau.
- Ninguém esteve aqui, senhor, pode acreditar na minha palavra - disse o funcionário, comsorridente autoridade.
- Então gostaria de saber o que é aquilo? - disse o padre, e olhou para o chão inexpressivamente como um peixe.
Os outros todos olharam também para baixo e Flambeau utilizou uma exclamação feroz e fez um gesto francês. Pois era indiscutivelmente verdade que no meio da entrada guardada pelo homem de cordões dourados, de facto, entre as pernas arrogantes e esticadas daquele colosso espalhava-se uma pegajosa forma de pegadas cinzentas gravadas na neve branca.
- Meu Deus! - exclamou Angus, involuntariamente.
- O Homem Invisível.
Sem outra palavra voltou-se e subiu comtoda a velocidade a escada, seguido de Flambeau, mas o padre Brown ainda permaneceu olhando à sua volta na rua coberta de neve, como se tivesse perdido o interesse pela sua pergunta.
Flambeau estava claramente na disposição de arrombar a porta com o seu poderoso ombro, mas o escocês, commais razão, se bem que commenor intuição, tacteou na armação da porta até encontrar o botão invisível e em seguida a porta abriu-se lentamente.
Surgiu substancialmente o mesmo interior atravancado, a sala de entrada tornara-se mais escura, apesar de sobre ela ainda incidirem os últimos raios carmesins do pôr do Sol, e uma ou duas máquinas acéfalas tinham sido removidas dos seus lugares para este ou aquele fim, encontrando-se aqui ou além no espaço iluminado pelo crepúsculo. O verde e o vermelho dos seus revestimentos estavam obscurecidos pela escuridão e a sua semelhança comformas humanas levemente aumentada pelo seu aspecto informe. Mas no meio delas, exactamente onde o papel com a tinta vermelha estivera colocado, encontrava-se alguma coisa que se parecia muito comtinta vermelha entornada de um frasco. Mas não era tinta vermelha.
Com uma combinação francesa de razão e violência, Flambeau disse simplesmente:
- Assassínio! - E precipitando-se no apartamento, em cinco minutos já explorara todos os cantos até aos armários. Mas se ele esperava encontrar um cadáver, não encontrou nenhum. Isidore Smythe, morto ou vivo não estava simplesmente naquele lugar. Depois da mais arrasante busca os dois homens encontraram-se na estrada exaustos e estupefactos.
- Meu amigo - disse Flambeau falando francês na sua excitação -, não só o assassino é invisível, como torna também invisível o homem assassinado.
Angus olhou em redor o quarto sombrio cheio de manequins e em algum canto céltico da sua alma escocesa sentiu um arrepio. Uma das bonecas de tamanho humano encontrava-se a obscurecer a mancha de sangue, chamada, talvez, pelo homem ferido um instante antes de cair. Um dos ganchos que serviam de braços ao objecto estava um pouco levantado e Angus teve de repente a horrível ilusão de que a própria filha de ferro de Smythe o abatera. A matéria rebelara-se e aquelas máquinas tinham morto o dono. Mas, mesmo assim, o que é que tinham feito dele?
- Tê-lo-iam comido? - disse o pesadelo ao seu ouvido, e por instantes sentiu-se enjoado perante a ideia dos restos humanos serem absorvidos e pulverizados por todo aquele mecanismo acéfalo.
Recuperou a saúde mental por meio de um enérgico esforço e disse a Flambeau:
- Bem, aí está. O pobre tipo evaporou-se como uma nuvem e deixou uma risca vermelha no chão. Esta história não pertence a este mundo.
- Há só uma coisa a fazer - disse Flambeau -, quer pertença a este mundo ou ao outro, tenho de ir lá abaixo falar como meu amigo.
Desceram, passando pelo homem do balde, que asseverou novamente que não deixara passar nenhum intruso, pelo encarregado e pelo errante homem das castanhas, que reafirmaram a sua vigilância. Mas quando Angus olhou em volta à procura da sua quarta confirmação não a viu, e perguntou com algum nervosismo:
- Onde está o polícia?
- Desculpe - disse o padre Brown -, a culpa é minha, mandei-o agora mesmo à rua lá em baixo para investigar uma coisa, que eu pensei que valia a pena ser investigada.
- bom, nós queremo-lo de volta rapidamente - disse Angus abruptamente -, pois o infeliz homem lá em cima foi não só assassinado como também desapareceu.
- Como? - perguntou o padre.
- Padre - disse Flambeau, após uma pausa. - Pela minha alma creio que é mais do seu departamento do que do meu. Nenhum amigo nem inimigo entrou nesta casa, mas Smythe desapareceu, como se tivesse sido roubado pelas fadas. Se isto não é sobrenatural, eu...
Enquanto ele falava todos depararam com uma aparição invulgar, o corpulento polícia de azul apareceu a correr vindo da esquina. Dirigiu-se imediatamente a Brown.
- O senhor tinha razão - disse ele ofegante -, encontraram agora mesmo o corpo do pobre senhor Smythe lá em baixo no canal.
Angus levou a mão à cabeça freneticamente.
- Será que ele foi a correr lá para baixo afogar-se? - perguntou ele.
- Ele nunca foi até-lá abaixo, juro - disse o polícia -, e ele também não se afogou, pois morreu de uma grande facada no coração.
- E, no entanto, não viram ninguém entrar - disse Flambeau, com uma voz grave.
- Vamos andar um pouco pela rua abaixo - disse o padre. Ao chegarem à outra extremidade da rua ele observou abruptamente:
- Mas que estúpido que eu fui! Esqueci-me de perguntar uma coisa ao polícia. Gostava de saber se encontraram um saco castanho-claro.
- Porquê um saco castanho-claro? - perguntou Angus, espantado.
- Porque se foi um saco de qualquer outra cor, o caso tem de ser analisado de novo - disse o padre Brown -, mas se foi um saco castanho-claro, pois bem, o caso está encerrado.
- Fico satisfeito por sabê-lo - disse Angus comsincera ironia. - Ainda não começou, tanto quanto sei.
- Tem de nos contar tudo a esse respeito - disse Flambeau, com uma simplicidade grave, como se fosse uma criança. Estavam a andar inconscientemente, compassos cada vez mais rápidos, pela rua abaixo. O padre Brown caminhando à frente rapidamente, mas em silêncio. Por fim falou com uma quase comovente incerteza:
- Bem, receio que achem o caso muito prosaico. Começamos sempre pelo lado abstracto das coisas e esta história não pode ser começada por nenhum outro lado.
-Já-alguma vez repararam que as pessoas nunca respondem àquilo que dizemos. Respondem àquilo que queremos dizer, ou ao que pensam que queremos dizer. Suponhamos que, numa casa de campo, uma senhora diz a outra: "Está alguém consigo em sua casa?", a senhora não responde "Sim, o mordomo, os três lacaios, a criada de quarto e assim por diante", apesar da criada de quarto poder estar por detrás da sua cadeira. Ela responde: "Não está ninguém connosco", significando ninguém do género que você quer dizer. Mas suponha um médico, investigando uma epidemia, que pergunta: "Quem é que está nesta casa?", então a senhora lembrar-se-á do mordomo, da criada de quarto e dos outros todos. Toda a linguagem é utilizada assim, nunca se obtém uma resposta literal a uma pergunta, mesmo quando se obtém uma resposta verdadeira. Quando aqueles quatro homens honestos disseram que não tinha entrado nenhum homem nas Mansões, não queriam realmente dizer que nenhum homem tinha entrado nelas. Queriam dizer que nenhum homem que eles suspeitassem ser o vosso homem. Entrou realmente um homem naquela casa e saiu dela, mas eles nunca repararam nele.
- Um homem invisível? - perguntou Angus, erguendo as suas sobrancelhas ruivas.
- Um homem mentalmente invisível - disse o padre Brown. Um minuto depois ele prosseguiu com a mesma voz despretensiosa.
- Claro que não podem pensar em tal homem, até realmente pensarem nele. É aí que reside a sua esperteza. Mas eu comecei a pensar nele através de duas ou três pequenas coisas da história que o senhor Angus nos contou. Primeiro havia o facto de que este Welkin ia dar longos passeios. E depois a grande quantidade de papel selado na montra. E depois, acima de tudo, houve duas coisas que a menina disse, duas coisas que não podiam ser verdadeiras. Não fique aborrecido - acrescentou apressadamente, apercebendo-se de um súbito movimento do escocês -, ela pensou de facto que eram verdadeiras, mas não podiam ser verdadeiras. Uma pessoa não pode estar completamente sozinha numa rua um segundo antes de receber uma carta. Não pode estar completamente sozinha numa rua quando começa a ler uma carta que acaba de receber. Tem de estar alguém muito perto dela, e este alguém tem de ser mentalmente invisível.
- Porque é que tem de estar alguém perto dela? - perguntou Angus.
- Porque - disse o padre Brown -, exceptuando pombos-correios, alguém teve de lhe levar a carta.
- Você realmente quer dizer - perguntou Flambeau comenergia - que Welkin levou as cartas do seu rival à sua amada?
- Sim - disse o padre. - Welkin levou as cartas do seu rival à sua amada. Veja, ele tinha de levá-las.
- Oh, eu não suporto isto muito mais tempo - explodiu Flambeau. - Quem é este tipo? Como é que ele é? Como é que se costuma apresentar um homem mentalmente invisível?
- Ele veste-se bastante elegantemente de vermelho, azul e dourado - respondeu o padre prontamente comfirmeza -, e neste traje que chama a atenção e é até mesmo vistoso entrou nas mansões Himalaya debaixo de oito olhares humanos, matou Smythe a sangue frio e desceu a rua transportando o cadáver nos braços.
- Reverendo senhor - exclamou Angus, parando - o senhor está completamente louco, ou estou eu?
- Você não está louco - disse Brown -, apenas um pouco desatento. Não reparou num homem como este, por exemplo.
Deu três passadas para a frente e pôs a mão no ombro de um vulgar carteiro que, atarefado, passara por eles despercebido sob a sombra das árvores.
Ninguém repara nos carteiros - disse ele pensativamente -, no entanto eles têm sentimentos como os outros homens e até transportam grandes sacos onde um pequeno cadáver pode ser escondido com a maior facilidade.
O carteiro em vez de se voltar naturalmente esquivara-se e caíra de encontro ao muro do jardim. Era um homem magro de barba loira de aspecto muito vulgar, mas ao voltar por cima do ombro uma cara assustada todos os três homens foram fixados por um quase diabólico olhar estrábico.
Flambeau voltou para os seus sabres, para os seus tapetes purpúreos e o seu gato persa. John Turnbull Angus voltou para a senhora da loja, comquem esse imprudente jovem consegue sentir-se extremamente contente. Mas o padre Brown percorreu com um assassino aqueles montes cobertos de neve, debaixo das estrelas, durante muitas horas, e o que eles disseram um ao outro jamais será conhecido.
CAPÍTULO VI
A honra de Israel Gow
Caía uma tarde tempestuosa cor de azeitona e prata quando o padre Brown, embrulhado num xaile escocês, chegou ao fim de um vale cinzento da Escócia e avistou o estranho castelo de Glengyle. Este fechava uma das extremidades do vale como um beco sem saída e parecia o fim do mundo. Erguia-se em telhados íngremes e pináculos de ardósia verde-marinha à maneira das velhas mansões franco-escocesas, fazendo lembrar a um inglês os sinistros chapéus pontiagudos das bruxas nos contos de fadas, e os pinhais que balouçavam à volta das torres pareciam tão negros como inúmeros bandos de corvos. Esta faceta de sonhadora, quase adormecida bruxaria, não era simples fantasia proveniente da paisagem, pois pairava no local uma daquelas nuvens de orgulho, loucura e misteriosa tristeza que se encontram mais abundantemente nas casas nobres da Escócia do que em quaisquer outras dos filhos dos homens. Porque a Escócia tem uma dupla dose de veneno chamado hereditariedade: o sentido do sangue no aristocrata e o sentido de destino no Calvinista.
O padre roubara um dia aos assuntos que tinha de tratar em Glasgow para se encontrar como seu amigo Flambeau, o detective amador que estava no castelo de Glengyle comoutro funcionário mais formal para investigarem a vida e a morte do recentemente falecido conde de Glengyle. Essa misteriosa pessoa era o último representante de uma raça cuja coragem, comdemência e violenta astúcia os tinha tornado terríveis, mesmo entre a sinistra nobreza da sua nação, no século dezasseis. Ninguém foi mais fundo nessa labiríntica ambição na câmara dentro de câmara desse palácio de mentiras que foi construído à volta de Mary, rainha dos Escoceses.
Os versos que corriam no campo provavam francamente o motivo e o resultado das suas maquinações.
"Os Ogilvies gostam tanto de ouro vermelho
Como as árvores gostam de seiva."
Durante muitos séculos nunca houvera um senhor decente no castelo de Glengyle e como a era vitoriana ter-se-ia pensado que todas as excentricidades se esgotariam. O último dos Glengyle, no entanto, satisfez a sua tradição tribal fazendo a única coisa que lhe restava fazer: desaparecer. Não quero dizer que tenha ido para o estrangeiro. De acordo com a opinião geral, ele ainda estava no castelo, se é que ele estava em qualquer parte. Mas apesar do seu nome se encontrar no registo da igreja e no grande Nobiliário vermelho, ninguém o via na face da terra.
Se alguém o podia ver era um criado solitário, uma espécie de lacaio e jardineiro ao mesmo tempo. Era tão surdo que os mais práticos supunham que ele era mudo, enquanto os mais perspicazes asseguravam que ele não tinha o juízo todo. Era um trabalhador magro, ruivo, com as maxilas e o queixo obstinados e os olhos de um negro azulado, que dava pelo nome de Israel Gow e que era o único criado silencioso nessa propriedade deserta.
Mas a energia comque cavava batatas e a regularidade comque desaparecia para ir à cozinha dava às pessoas a impressão de que ele estava providenciando as refeições de um superior e que o estranho conde ainda vivia no castelo. Se a sociedade necessitava de uma prova adicional de que ele lá estava, o criado asseverava persistentemente que ele não se encontrava em casa. Uma manhã o prefeito e o pastor (pois os Glengyles eram presbiterianos) foram chamados ao castelo. Aí verificaram que o jardineiro, lacaio e cozinheiro acrescentara às suas múltiplas profissões a de cangalheiro e tinha fechado compregos num caixão o seu nobre amo. Não se sabia ainda claramente se este facto estranho fora sujeito a muita ou pouca ulterior averiguação, pois o assunto nunca tinha sido legalmente investigado até Flambeau ter viajado para o Norte uns dois ou três dias antes. Por essa altura o corpo de Lord Glengyle (se é que era o corpo) jazia há algum tempo no pequeno cemitério que ficava no monte.
Quando o padre Brown passou através do jardim sombrio e se aproximou da sombra do castelo, as nuvens eram grossas e o ar húmido e carregado. Defronte da última faixa do pôr do Sol verde-dourado avistou uma negra silhueta humana, um homem de chapéu alto, com uma grande pá ao ombro. A combinação sugeria estranhamente um coveiro, mas quando Brown se lembrou do criado surdo que cavava batatas, achou-a bastante natural. Conhecia um pouco o camponês escocês, sabia da respeitabilidade que bem podia considerar necessário usar "luto" para um inquérito oficial, sabia também da economia que não desperdiçaria uma hora a cavar por causa de tal inquérito. Até o sobressalto do homem e o olhar fixo desconfiado para o padre que passava eram suficientemente coerentes com a vigilância e o zelo de um tipo daqueles.
A grande porta foi aberta pelo próprio Flambeau que era acompanhado de um homem magro de cabelo grisalho e papéis na mão: o inspector Craven da Scotland Yard. O salão de entrada estava quase despido e vazio, mas as caras pálidas e irónicas de um ou dois perversos Ogilvies olhavam, com ares de superioridade, saídas das suas cabeleiras postiças e das telas enegrecidas.
Ao segui-los para um quarto interior, o padre Brown descobriu que os aliados tinham estado sentados a uma comprida mesa de carvalho, cuja extremidade do lado deles estava coberta de papéis escrevinhados e flanqueada por uísque e charutos. Todo o resto da mesa estava ocupada comobjectos separados dispostos em intervalos, objectos tão inexplicáveis quanto possível. Um parecia-se com um pequeno monte, de vidro partido, brilhante. Outro tinha a aparência de um monte alto de pó castanho. Um terceiro parecia ser um vulgar pau de madeira.
- Parecem ter aqui uma espécie de museu geológico - disse ele ao sentar-se, sacudindo a cabeça na direcção do pó castanho e dos fragmentos cristalinos.
- Não é um museu geológico - respondeu Flambeau -, digamos antes um museu psicológico.
- Oh, por amor de Deus - exclamou o detective-polícia, rindo -, não comecemos por essas palavras tão pomposas.
- Você não sabe o que é que quer dizer psicologia? - perguntou Flambeau, com uma surpresa cordial. - Psicologia quer dizer ser maluco.
- Todavia não consigo compreender - respondeu o funcionário.
- Bem - disse Flambeau, comfirmeza. - Quero dizer que só descobrimos uma coisa acerca de Lord Glengyle. Ele era um louco.
A silhueta negra de Gow com o seu chapéu alto passou diante da janela, sombriamente recortada contra o chapéu que escurecia. O padre Brown olhou para ele desinteressadamente e respondeu:
- Compreendo que deve ter havido qualquer coisa estranha acerca do homem, ou ele não se teria enterrado vivo, nem teria tanta pressa para se enterrar depois de morto. Mas o que é que o faz pensar que era demência?
- Bem - disse Flambeau -, oiça só a lista de coisas que o senhor Craven encontrou na casa.
- Temos de arranjar uma vela - disse Craven de repente. Vem aí um temporal e está escuro demais para ler.
- Encontraram velas - perguntou o padre Brown sorrindo
- entre os vossos objectos estranhos?
Flambeau ergueu um rosto grave e fixou os olhos escuros no seu amigo.
- Isso é estranho também - disse ele -, vinte e cinco velas e nem sinal de um castiçal.
Na sala rapidamente escurecida e como vento que se fazia ouvir, Brown percorreu a mesa até onde se encontrava um monte de velas de cera no meio de outros objectos expostos, desconexos. Ao fazê-lo, inclinou-se sobre um monte de pó castanho avermelhado e um violento espirro quebrou o silêncio.
- Olá! - disse ele. - Rapé!
Foi buscar uma das velas, acendeu-a, voltou e colocou-a no gargalo de uma garrafa de uísque. O ar agitado da noite, soprando através da janela, fazia flutuar a longa chama como uma bandeira. E em todos os lados do castelo eles podiam ouvir os quilómetros e quilómetros de pinhais agitados, como um mar negro em torno de uma rocha.
- vou ler o inventário - começou Craven gravemente pegando num dos papéis -, o inventário do que nós encontrámos disperso e inexplicado neste castelo. Tem de ficar inteirado que esta residência estava desmobilada e descuidada, mas um ou dois quartos tinham obviamente sido habitados por alguém de uma maneira simples mas não miserável. Por alguém que não era o criado Gow. A lista é a que se segue:
- Primeiro item: um conjunto muito considerável de pedras preciosas, quase todas elas diamantes e todos soltos sem nenhuma espécie de engaste. É claro que era natural que os Ogilvies tivessem jóias de família, mas aquelas eram exactamente as jóias que quase sempre estão engastadas em peças de adorno. Os Ogilvies parece terem guardado as suas soltas nas algibeiras, como moedas de cobre.
- Segundo item: montes e montes de rapé, não guardados numa cornucópia ou mesmo numa bolsa, mas encontrando-se aos montes nas cornijas das lareiras, nos aparadores, sobre <) piano, em toda a parte. Parece que o velho senhor não se dava à maçada de procurar numa bolsa ou de levantar uma tampa.
- Terceiro item: aqui e acolá, pela casa fora, estranhos montinhos de minúsculas peças de metal, algumas como molas de aço e outras com a forma de rodas microscópicas. Como se fossem peças de um brinquedo mecânico que tivesse sido desmontado.
- Quarto item: as velas de cera, que têm de ser colocadas em gargalos de garrafa porque não há nada mais onde pô-las. Quero agora que prestem atenção como isto é muito mais estranho do que tudo o que prevíamos. Estamos preparados para o mistério central, todos verificámos à primeira vista que havia qualquer coisa de errado quanto ao último conde. Viemos até cá para descobrir se ele realmente viveu aqui, se morreu aqui, se esse espantalho ruivo que o enterrou teve alguma coisa a ver com a sua morte. Mas suponham o pior em tudo isto, a solução mais lúgubre ou melodramática que quiserem. Suponham que o criado matou realmente o seu amo, ou suponham que o amo não está realmente morto, ou suponham que o amo se vestiu de criado, ou que o criado foi enterrado em vez do amo, inventem uma tragédia à Wilkie Collins e não têm ainda a explicação da vela sem castiçal ou porque é que um senhor idoso de boa família entornaria habitualmente rapé sobre o piano. Podemos imaginar o núcleo da história, as orlas é que são misteriosas. A mente humana, por nenhum esforço de imaginação, consegue relacionar rapé comdiamantes, comvelas de cera e mecanismos soltos.
- Acho que vejo a relação - disse o padre. - Este Glengyle detestava a Revolução Francesa. Era um entusiasta do ancien regime e estava a tentar restabelecer literalmente a vida familiar dos últimos Bourbons. Tinha rapé porque era o luxo do século dezoito, velas de cera porque era a iluminação do século dezoito. Os bocados de mecanismos de ferro representam o passatempo de serralheiro de Luís XVI, os diamantes são para o Colar de Diamantes de Maria Antonieta.
Os outros dois homens olhavam para ele com os olhos esbugalhados.
- Mas que ideia tão extraordinária! - exclamou Flambeau. Acha realmente que isso é verdade?
- Tenho a certeza total que não é - respondeu o padre Brown -, só que vocês disseram que ninguém podia relacionar rapé comdiamantes, mecanismos e velas. Eu apresento-lhe esta relação improvisadamente. A verdade autêntica, tenho a certeza, jaz mais fundo.
Fez uma pausa por um instante e escutou o lamento do vento nas torres. Depois disse:
- O falecido conde de Glengyle era um ladrão. Vivia uma segunda e tenebrosa vida como arrombador. Não tinha castiçais porque só usava estas velas cortadas na lanterna que transportava. O rapé era utilizado por ele como os mais ferozes criminosos franceses utilizaram a pimenta: para o atirarem densas massas na cara de um captor ou perseguidor. Mas a prova final está na curiosa coincidência dos diamantes e das pequenas rodas de aço. Decerto que isso vos explica tudo. Os diamantes e as pequenas rodas de aço são os únicos dois instrumentos com os quais se pode cortar uma vidraça.
O galho de um pinheiro partido batia pesadamente, fustigado pelo vento, contra a vidraça da janela, como uma imitação de um assaltante, mas eles não se voltaram. Os olhos deles estavam fixos no padre Brown.
- Diamantes e pequenas rodas - repetiu Craven ruminando. - Isso é tudo que o faz pensar ser essa a verdadeira explicação?
- Não acho que seja a verdadeira explicação - respondeu o padre serenamente. - Mas vocês disseram que ninguém podia relacionar as quatro coisas. A verdadeira história, é claro, é qualquer coisa muito mais monótona. Glengyle encontrara ou pensava que tinha encontrado pedras preciosas na sua propriedade. Alguém o enganara com aqueles diamantes soltos, dizendo que tinham sido encontrados nas cavernas do castelo. As rodinhas são um instrumento para cortar diamantes. Ele tinha de fazer a coisa muito toscamente e em pequena quantidade, com a ajuda de alguns pastores ou de tipos rudes dos montes. O rapé é o único grande luxo desses pastores escoceses, é a única coisa comque podemos suborná-los. Não tinham castiçais porque não os queriam, seguravam as velas nas mãos quando exploravam as cavernas.
- E isso é tudo? - perguntou Flambeau depois de uma longa pausa. - Encontrámos a verdade, finalmente?
- Oh, não - disse o padre Brown.
Enquanto o vento se consumia nos pinhais mais distantes com um longo lamento, como de escárnio, o padre Brown, com uma cara totalmente impassível, prosseguiu:
- Apenas sugeri isso porque vocês disseram que não se podia relacionar plausivelmente rapé commecanismos ou velas compedras preciosas.
"Dez filosofias falsas podem explicar o universo, dez falsas teorias podem explicar o castelo de Glengyle. Mas nós queremos a verdadeira explicação do castelo e do universo. Mas não há outros objectos em exposição?
Craven riu e Flambeau levantou-se sorrindo e deu uma volta em torno da mesa comprida.
- Itens cinco, seis, sete, etc. - disse ele -, são certamente mais variados do que instrutivos. Uma curiosa colecção não de lápis em si, mas de grafite dos lápis. Uma absurda bengala de bambu, com o topo bastante lascado. Podia ter sido o instrumento do crime. Só que não há nenhum crime. As outras únicas coisas são alguns velhos missais e pequenas pinturas católicas que os Ogilvies guardavam, suponho eu, desde a Idade Média, pois o seu orgulho familiar era mais forte do que o seu Puritanismo. Apenas as pusemos no museu porque parecem estranhamente cortadas aqui e ali e como aspecto alterado.
A violenta tempestade lá fora impeliu uns destroços terríveis de nuvens sobre Glengyle e mergulhou a comprida sala na escuridão, enquanto o padre Brown pegava nas pequenas páginas ornamentadas para as examinar. Falou antes da escuridão ter passado, mas era a voz de um homem totalmente novo.
- Senhor Graven - disse ele, falando como se fosse um homem dez anos mais novo. - Você tem uma autorização para ir examinar essa sepultura, não tem? Quanto mais depressa o fizermos melhor, para podermos chegar ao fundo deste caso horrível. Se eu fosse você começaria já.
-Já? - repetiu o detective, espantado. - E porquê já?
- Porque isto é sério - respondeu Brown -, isto não é rapé entornado nem pedras soltas, que podiam estar ali por centenas de razões. Sei apenas de uma razão para se fazer isto, e a razão tem origem nas raízes do mundo. Estas pinturas religiosas não estão apenas sujas, ou rasgadas, ou rabiscadas, o que poderia ter sido feito na ociosidade ou por um fanatismo, por crianças ou por protestantes. Elas foram tratadas commuito cuidado e de uma forma muito estranha. Em todos os lugares em que o nome ornamentado de Deus aparece em velhas iluminuras, este tem sido cuidadosamente retirado. A outra única coisa que foi retirada foi a auréola à volta da cabeça do Menino Jesus.
Portanto, digo, vamos buscar a nossa autorização, a nossa pá e o nosso machado e vamos lá acima abrir a sepultura.
- O que é que você quer dizer? - perguntou o funcionário londrino.
- Quero dizer... - respondeu o pequeno padre, e a sua voz parecia levantar-se um pouco no rugir da tempestade. - Quero dizer que o grande diabo do universo pode estar sentado neste momento na torre mais alta deste castelo, tão grande como cem elefantes e rugindo como o Apocalipse. Há magia negra, algures no fundo disto tudo.
- Magia negra - repetiu Flambeau em voz baixa, pois ele era um homem demasiado esclarecido para não conhecer tais coisas -, mas o que é que querem dizer estas outras coisas?
- Oh, alguma coisa condenável, suponho - respondeu Brown impacientemente. - Como é que eu hei-de saber? Como é que posso adivinhar todos os labirintos do inferno? Talvez se possa fabricar uma tortura comrapé e bambu. Talvez os doidos cobicem cera e limalha. Talvez haja uma droga de enlouquecer feita de lápis! O caminho mais fácil para resolvermos este mistério é subirmos ao monte até à sepultura.
Os seus companheiros mal davam porque lhe tinham obedecido e o tinham seguido até que uma rajada de vento nocturno no jardim quase os atirou para o chão. Todavia obedeceram-lhe como autómatos, pois Craven encontrou um machado à mão e uma autorização oficial na algibeira. Flambeau transportava a pesada pá do estranho jardineiro, o padre Brown levava o livrinho dourado do qual tinha sido rasgado o nome de Deus.
O caminho pelo monte acima até ao cemitério era tortuoso mas curto, só que sob a pressão do vento parecia difícil e comprido. A perder de vista, cada vez mais longe ao subirem a encosta, havia mares e mares de pinheiros, agora todos inclinados para um lado sob o vento. E esse movimento universal parecia tão vão quanto vasto, tão vão como se o vento estivesse soprando num planeta inabitado e sem sentido. Através de toda aquela vegetação de florestas cinzento-azuladas, cantava, com um som agudo e alto, essa antiga tristeza que está no coração de todas as coisas pagãs. Podia imaginar-se que as vozes do inferno da impenetrável folhagem eram lamentos dos deuses pagãos, perdidos e errantes, deuses que tinham vagueado por aquela floresta irracional e que nunca encontrarão o caminho de volta para o céu.
- Vejam - disse o padre Brown num tom baixo mas afável -, a gente escocesa antes da Escócia ter existido era uma gente muito estranha. Na realidade, ainda são estranhos. Mas nos tempos pré-históricos imagino que tenham realmente adorado demónios. Por isso - acrescentou alegremente - é que reagiram energicamente à teoria puritana.
- Meu amigo - disse Flambeau, voltando-se numa espécie de fúria -, o que é que isso tudo quer dizer?
- Meu amigo - respondeu Brown, comidêntica serenidade -, há um limite para todas as religiões autênticas: o materialismo. Ora, a adoração do demónio é uma religião perfeitamente autêntica.
Tinham subido até ao cume coberto de erva do monte, um dos poucos lugares sem árvores que estava afastado do fragor e bramido da floresta de pinheiros.
Uma cerca, parte de arame e pane de madeira, batia comruído na tempestade indicando-lhes o limite do cemitério. Mas pela altura em que o inspector Craven chegara à sepultura e Flambeau espetara a sua pá no chão e se encostara a ela, foram ambos quase tão sacudidos como a madeira e o arame. Na parte inferior da sepultura cresciam cardos grandes e altos, cinzentos e prateados na sua composição.
Uma ou duas vezes, quando uma bola de lanugem de cardo se partia como vento e voava perto dele, Craven dava um pequeno salto como se tivesse sido atingido por uma seta.
Flambeau empurrou a lâmina da sua pá através da erva que assobiava pela terra húmida. Depois pareceu parar e encostou-se a ela como se fosse um bastão.
- Continue - disse o padre muito suavemente. - Só estamos a tentar encontrar a verdade. De que é que tem medo?
- Tenho medo de encontrá-la - disse Flambeau.
O detective de Londres começou a falar de repente, numa voz alta e cantante que queria ser conversadora e consoladora.
- Gostava de saber porque é que ele se escondia daquela maneira? Alguma coisa má, suponho, seria ele um leproso?
- Alguma coisa pior que isso - respondeu Flambeau.
- E o que é que você imagina - perguntou o outro - ser pior do que lepra?
- Não imagino - disse Flambeau.
Cavou durante alguns terríveis minutos em silêncio e depois disse numa voz sufocada:
- Tenho medo de ele não ter a forma certa.
- Nem aquele pedaço de papel tinha, você sabe - disse o padre tranquilamente -, e nós até sobrevivemos àquele pedaço de papel.
Flambeau continuou a cavar com uma energia cega. Mas a tempestade tinha empurrado as sufocantes nuvens cinzentas, que se agarravam aos montes comfumo e revelavam extensões cinzentas da ténue luz das estrelas, antes que ele desobstruísse a forma de um tosco caixão de madeira e o virasse para cima no relvado. Craven avançou com a sua pá, uma lanugem de cardo tocou-lhe e ele vacilou. Depois deu um passo mais largo e firme e arrancou com uma energia semelhante à de Flambeau até que a tampa do caixão foi removida e tudo o que lá estava dentro brilhou à luz cinzenta das estrelas.
- Ossos! - disse Graven, e depois acrescentou -, mas está aqui um homem! -, como se isso fosse uma coisa inesperada.
- Ah, está? - perguntou Flambeau numa voz que subia e descia estranhamente - Ele está em ordem?
- Parece que sim - disse o funcionário roucamente inclinando-se sobre o obscuro e deteriorado esqueleto no caixão. Espere um minuto.
Um grande suspiro perpassou a enorme figura de Flambeau.
- E agora começo a pensar - exclamou ele - porque é que ele não haveria de estar em ordem? O que é que se apodera de um homem nestas malditas montanhas frias? Acho que é a repetição negra, sem cérebro, todas as florestas e caindo sobre todas as coisas um horror antigo de inconsciência, como o sonho de um ateu. Pinheiros e mais pinheiros e mais milhões de pinheiros...
- Meu Deus! - exclamou o homem junto do caixão. - Mas ele não tem cabeça.
Enquanto os outros se conservavam hirtos, o padre, pela primeira vez, deu um salto de preocupação.
- Não tem cabeça! - repetiu ele. - Não tem cabeça? - como se esperasse uma outra deficiência.
Estúpidas visões de um bebé sem cabeça, filho de Glengyle, de um jovem sem cabeça escondendo-se no castelo, de um ho- mem sem cabeça andando por aqueles antigos salões ou pelo deslumbrante jardim, passaram em panorama através das suas mentes.
Mas mesmo nesse endurecido instante a história não criou raízes neles e parecia não ter razão de ser. Ficaram totalmente escutando as florestas sonoras e o céu gritante, como animais exaustos. O pensamento parecia ser qualquer coisa de enorme, que escapara, subitamente, do alcance deles.
- Estão aqui três homens sem cabeça - disse o padre Brown
- à volta desta sepultura aberta.
O pálido detective londrino abriu a boca para falar e deixou-a aberta como um pacóvio, enquanto um longo guincho de vento cortou o céu. Depois olhou para a pá nas suas mãos como se ela não lhe pertencesse e deixou-a cair.
- Padre - disse Flambeau, com aquela voz infantil e pesada que utilizava muito raramente -, o que é que vamos fazer?
A resposta do seu amigo surgiu com uma prontidão de um tiro de pistola.
- Vamos dormir! - exclamou o padre Brown. - Dormir. Chegámos ao fim do caminho. Sabem o que é o sono? Sabem que todo o homem que dorme acredita em Deus? É um sacramento, porque é um acto de fé e alimento. E nós precisamos de um sacramento, mesmo que seja um sacramento natural. Alguma coisa caiu sobre nós que muito raramente cai sobre os homens, talvez a pior coisa que possa cair sobre eles.
Os lábios entreabertos de Craven uniram-se para perguntar:
- O que é que quer dizer?
O padre voltou a cara para o castelo ao responder:
- Encontrámos a verdade, e a verdade não faz sentido.
Seguiu pelo caminho em frente deles com um passo precipitado, muito raro nele, e quando chegaram ao castelo pôs-se a dormir com a simplicidade de um cão.
Apesar do seu elogio místico do sono, o padre Brown acordou mais cedo do que todos, à excepção do jardineiro silencioso, e apareceu fumando um grande cachimbo e observando esse especialista nos seus silenciosos trabalhos na horta. Ao aproximar-se a madrugada, a tempestade terminara em chuvas torrenciais e o dia surgiu com uma curiosa frescura. O jardineiro parecia até ter estado a conversar, mas ao ver os detectives, enterrou a sua pá num canteiro e dizendo qualquer coisa a respeito do seu pequeno-almoço, deslocou-se ao longo da fila de couves e fechou-se na cozinha.
- Um homem valioso - disse o padre Brown. - Trata assombrosamente das batatas. No entanto - acrescentou ele, comdesapaixonada caridade -, tem os seus defeitos, qual de nós não os tem? Ele não cava este aterro comregularidade. Ali, por exemplo - e bateu o pé de repente num sítio -, tenho grandes dúvidas quanto àquela batata.
- E porquê? - perguntou Craven, divertido como novo passatempo do homenzinho.
- Tenho dúvidas sobre ela - disse o outro -, porque o velho Gow teve ele próprio dúvidas. Cavou com a pá em todos os lugares menos neste. Deve ali estar uma bela batata.
Flambeau puxou a pá e escavou o lugar. Fez surgir, debaixo de um monte de terra, uma coisa que não se parecia muito com uma batata, mas sim como um monstruoso cogumelo, com uma cúpula excessivamente grande. Mas este bateu na pá com•um estalido, rolou na terra como uma bola, e arreganhou-lhes os dentes.
- O conde de Glengyle - disse Brown tristemente, e olhou para a cabeça.
A seguir, depois de uma meditação momentânea, arrancou a pá a Flambeau, e dizendo:
- Temos de escondê-la outra vez - enterrou a cabeça na terra. Depois encostou o seu pequeno corpo e a sua enorme cabeça no grande cabo da pá, que se encontrava firmemente cravada na terra, e os olhos dele ficaram vazios e a testa cheia de rugas. - Se pudéssemos apenas compreender, murmurou ele, o significado desta última monstruosidade. - E encostando-se ao grande cabo da pá, escondeu a cara nas mãos, como os homens costumam fazer na igreja.
Todo o céu se estava iluminando com azul e prata, os pássaros chilreavam nas pequeninas árvores do jardim, tão alto que parecia que as próprias árvores estavam a falar. Mas os três homens permaneciam silenciosos.
- Bem, eu desisto - disse Flambeau, por fim violentamente.
- O meu cérebro e este mundo não se ajustam um ao outro e acabou-se. Rapé, livros de orações rasgados e o interior de caixas de música... que...
Brown levantou o seu semblante incomodado e bateu viva e rapidamente no cabo da pá com uma intolerância pouco habitual nele.
- Oh, basta, basta, basta, basta! - exclamou ele. - Tudo isso é claro como água. Compreendi o rapé e os mecanismos e o resto quando abri os olhos esta manhã. E desde aí entendi-me como velho Gow, o jardineiro, que não é tão surdo nem tão estúpido quanto finge ser. Há qualquer coisa de errado a respeito dos objectos soltos. Enganei-me também a respeito do livro de missa rasgado, não há mal nenhum nisso. Mas trata-se deste último assunto. A profanação de sepulturas e o roubar as
cabeças dos mortos, comcerteza que há mal nisso? Isso não se ajusta na história simples do rapé e das velas. - E pôs-se a andar de novo compassos largos, fumando taciturnamente.
- Meu amigo - disse Flambeau, com um humor austero -, tem de ter cuidado comigo e lembrar-se que eu já fui um criminoso. A grande vantagem dessa situação é que eu sozinho inventava a história e representava-a tão depressa quanto queria. Esta expectativa na vida de um detective é demais para a minha impaciência francesa. Toda a minha vida, para o bem ou para o mal, fiz coisas no momento. Eu sempre travei duelos logo no dia seguinte, sempre paguei contas imediatamente, nem nunca sequer adiei uma visita ao dentista...
O cachimbo do padre Brown caiu-lhe da boca e partiu-se em três no caminho de pedras. Ele aí estava, revolvendo os olhos, o retrato exacto de um idiota.
- Meu Deus, que nabo que eu sou! - continuava dizendo
- Meu Deus, que nabo! - Depois, como se estivesse embriagado, desatou a rir.
- O dentista! - repetiu ele. - Seis horas num caos espiritual e tudo porque nunca pensei no dentista. Que simples, que belo e pacífico pensamento! Amigos, passámos a noite no inferno, mas agora o sol nasceu, os pássaros cantam e a forma resplandecente do dentista conforta o mundo.
- vou ver se encontro algum sentido nisto tudo - exclamou Flambeau, andando para a frente compassos largos -, ainda que tenha de utilizar as torturas da Inquisição.
O padre Brown reprimiu o que parecia ser uma vontade momentânea de dançar no relvado, agora iluminado pelo sol, e exclamou de modo comovente, como uma criança:
- Oh, deixem-me ser um pouco pateta. Não sabem como tenho estado infeliz. E agora sei que não houve nenhum pecado grave em todo este caso. Talvez um pouco de loucura, e quem é que se importa com isso?
Girou uma vez e depois encarou-os comgravidade.
- Isto não é uma história de crime - disse ele -, pelo contrário, é a história de uma estranha e tortuosa honestidade. Estamos a lidar comtalvez o único homem na terra que tirou apenas aquilo que lhe era devido, um estudo da lógica selvagem da vida, que tem sido a religião desta raça.
Esses velhos versos da região sobre a família Glengyle
Os Qgilvies gostam tanto de ouro vermelho
Como as árvores gostam de seiva verde
eram literais assim como metafóricos. Não queria apenas dizer que os Glengyles procuravam riqueza, também era verdade que eles literalmente acumulavam ouro. Tinham uma enorme colecção de utensílios e ornamentos neste metal. Eram, na realidade, avarentos cuja mania tomou essa forma. À luz desse facto, examinem todas as coisas que encontrámos no castelo. Diamantes sem os seus anéis de ouro, velas sem os castiçais, rapé sem as caixas de rapé de ouro, grafites de lápis sem os revestimentos de ouro dos lápis, uma bengala sem a sua extremidade de ouro, mecanismos de relógio sem os relógios de parede ou, antes, sem os relógios de bolso. E, por mais louco que pareça, porque as auréolas e o nome de Deus nos velhos missais eram de ouro verdadeiro, esses também foram retirados. O jardim parecia estar mais vivo e a relva tornara-se mais alegre sob o sol fortificante, à medida que era contada a louca verdade. Flambeau acendeu um cigarro enquanto o seu amigo prosseguia.
- Foram retirados - continuou o padre Brown -, foram retirados, mas não roubados. Os ladrões nunca teriam deixado este mistério. Os ladrões teriam levado as caixas de ouro de rapé, comrapé e tudo, os estojos de ouro dos lápis, com os lápis e tudo.
Estamos a lidar com um homem com uma consciência esquisita, mas com uma consciência, de certeza. Encontrei esse moralista louco esta manhã ali na horta e ouvi toda a história.
- O falecido arcebispo Ogilvie era a maior aproximação de um bom homem jamais nascido em Glengyle. Mas a sua amarga virtude tomou a forma de misantropia. Ele lamentava-se sobre a desonestidade dos seus antepassados a partir dos quais, por qualquer razão, ele generalizava a desonestidade de todos os homens. Mais especialmente ele desconfiava da filantropia ou da caridade e jurou que se encontrasse um homem que assumisse os seus justos direitos, esse homem teria todo o ouro de Glengyle. Tendo proferido este desafio à humanidade, fechou-se em casa, sem a mais pequena esperança de este ser correspondido. Um dia, no entanto, um rapaz surdo e aparentemente louco de uma aldeia distante trouxe-lhe um telegrama atrasado e Glengyle, na sua jocosidade mordaz, deu-lhe um farthing novo. Pelo menos pensou que assim fizera, mas quando foi dar a volta aos trocos encontrou o farthing novo ainda e uma moeda de ouro no valor de uma libra, desaparecida. O caso proporcionou-lhe perspectivas de especulação irónica. De qualquer das duas maneiras, o rapaz iria mostrar a sua ganância da raça humana. Ou desapareceria, com o ladrão roubando uma moeda, ou voltaria com ela virtuosamente, um pretensioso na mira de uma recompensa. No meio da noite Lorde Glengyle foi arrancado da cama, ele vivia sozinho, e forçado a abrir a porta ao idiota surdo. O idiota trouxe-lhe não a moeda de ouro, mas exactamente o troco da moeda de ouro menos um farthing novo.
Então a exactidão desta atitude apoderou-se do cérebro do homem louco. Jurou que era Diógenes, que procurara durante muito tempo um homem honesto, e finalmente o encontrara. Fez um novo testamento, que eu já vi. Trouxe o jovem para a sua enorme casa abandonada e ensinou-o a ser o seu solitário criado e, segundo uma estranha maneira, o seu herdeiro. E o que quer que essa estranha criatura compreenda, compreendeu absolutamente as duas ideias fixas do seu senhor: primeiro, que a correcção das atitudes é tudo; segundo, que a ele próprio se destinava todo o ouro de Glengyle. Até aqui, é tudo e é simples. Ele despojou a casa de todo o ouro e não tirou absolutamente nada que não fosse ouro, nem sequer um bocadinho de rapé. Tirou uma página de ouro de uma velha iluminura, plenamente satisfeito por deixar o resto intacto. Compreendi tudo isso, mas não conseguia compreender a história da cabeça. Estava realmente preocupado comessa cabeça humana enterrada no meio das batatas. Angustiava-me, até que Flambeau disse a palavra.
- Vai estar tudo bem. Ele vai pôr a cabeça outra vez na sepultura, logo que tirar o ouro do dente.
E de facto, quando Flambeau passou pelo monte naquela manhã, viu essa estranha criatura, esse avarento justo, cavando na sepultura profanada, o xaile à volta do pescoço, agitando-se como vento da montanha, o solene chapéu alto na cabeça.
1. Moeda inglesa de cobre no valor de um quarto depenny. (N. da T.)
CAPÍTULO VII
A forma errada
Certas grandes estradas que à saída de Londres se dirigem para norte prolongam-se até ao campo numa espécie de atenuado e interrompido espectro de uma rua, comgrandes vazios na construção, mas conservando um plano. Aqui encontraremos um grupo de lojas, seguido de um campo cercado de sebes ou de uma tapada, depois uma famosa taverna e em seguida talvez uma horta ou viveiro, depois uma grande casa particular e em seguida outro campo e outra estalagem, e assim por diante. Se uma pessoa percorrer uma dessas estradas passará por uma casa que provavelmente lhe chamará a atenção, apesar de não ser capaz de explicar o que a atraiu. É uma casa comprida e baixa, erguendo-se paralela à estrada, quase toda pintada de branco e verde-claro, com uma varanda e persianas, e alpendres cobertos com uma estranha espécie de cúpulas como se fossem guarda-chuvas de madeira que se encontram em algumas casas antigas. Na realidade é uma casa antiga, tipicamente inglesa e muito suburbana no bom velho estilo abastado de Clapham. E no entanto a casa tem o aspecto de ter sido construída sobretudo para o tempo quente. Olhando para a sua pintura branca e para as persianas, uma pessoa pensa vagamente em turbantes e até em palmeiras. Não consigo saber a origem dessa sensação, talvez a casa tivesse sido construída por um anglo-indiano.
Alguém que passasse pela casa ficaria fascinado por ela, sentiria que era um lugar sobre o qual se deveria contar uma história. E teria razão, como poderão saber dentro em breve. Pois esta é a história de estranhas coisas que realmente aconteceram nessa casa na semana de Pentecostes do ano de 18...
Alguém que passasse pela casa na quinta-feira anterior ao domingo de Pentecostes, cerca das quatro horas e meia da tarde, teria visto a porta principal aberta e o padre Brown da pequena Igreja de São Mungo sair, fumando um grande cachimbo, na companhia de um amigo francês muito alto, chamado Flambeau, que fumava um cigarro muito pequeno. Estas pessoas podem não interessar ao leitor, mas a verdade é que não eram as únicas coisas interessantes que estavam à vista quando se abria a porta principal da casa branca e verde. Há outras particularidades a respeito desta casa que têm de ser descritas para começar, não só para que o leitor compreenda esta trágica história, mas também para que ele possa fazer ideia daquilo que a porta aberta revelava.
Toda a casa estava construída a partir de uma planta em forma de T, mas um T com a parte em cruz muito comprida e com a parte da cauda muito curta. A parte da cruz comprida era a fachada que se erguia ao longo da rua, com a porta principal ao meio. Tinha dois andares e continha todos os quartos importantes. A parte curta da cauda que dava para as traseiras, imediatamente oposta à porta principal, tinha um andar só e consistia apenas em dois quartos compridos, um dando para o outro. O primeiro destes dois quartos era o escritório onde o famoso senhor Quinton escrevia os seus loucos poemas orientais e romances. O outro a seguir era o jardim de Inverno de vidro, cheio de flores tropicais, de rara e quase monstruosa beleza e que em tardes como esta estava a brilhar com a deslumbrante luz do sol. Assim, quando a porta da sala de entrada estava aberta, muitos transeuntes paravam estupefactos para olhar, pois eles contemplavam desde uma perspectiva de ricos aposentos até qualquer coisa como a cena de transformação mágica num conto de fadas, nuvens púrpura, sóis dourados e estrelas carmesim que eram ao mesmo tempo vívidos e no entanto transparentes e longínquos.
Leonard Quinton, o poeta, tinha ele próprio arranjado muito cuidadosamente este efeito e é duvidoso que ele exprimisse assim tão perfeitamente a sua personalidade nos seus poemas. Porque ele era um homem que se envolvia e embriagava de cores, que se entregava ao desejo veemente da cor em detrimento da forma, até da forma válida. Foi isto que orientou o seu génio tão completamente para a arte e as imagens orientais, para aqueles desconcertantes tapetes ou deslumbrantes bordados nos quais todas as cores parecem ter-se fundido num caos feliz, por não simbolizarem nem ensinarem nada. Ele tinha tentado, talvez não comcompleto êxito artístico, mas comreconhecida imaginação e espírito inventivo, compor epopeias e histórias de amor reflectindo a exuberância da cor violenta e até cruel. Histórias de céus tropicais de ouro em chamas ou de cobre vermelho cor de sangue, de heróis orientais que eram transportados comdoze mitras cobertas de turbantes em elefantes pintados de púrpura ou de verde pavão, de gigantescas jóias que cem negros não conseguiam transportar, mas que ardiam em antigas e estranhamente coloridas chamas.
Em resumo (para pôr a questão de um ponto de vista mais com um), ele ocupava-se muito de céus orientais, bastante piores do que a maior parte dos infernos ocidentais, de monarcas orientais, a quem poderíamos possivelmente chamar loucos e de jóias orientais que um joalheiro de Bond Street (se os cem negros cambaleantes as levassem à sua loja) poderia possivelmente não considerar autênticas. Quinton era um génio, se bem que um génio mórbido, e até a sua morbidez se tornava mais visível na sua vida do que no seu trabalho. Era de temperamento franco e irritável, e a sua saúde sofrera profundamente com experiências orientais de ópio. Sua esposa, uma bela mulher diligente e realmente extenuada, opunha-se ao ópio, mas opunha-se muito mais a um eremita indiano vestido de mantos brancos e amarelos, que o marido tinha insistido em receber em sua casa durante meses, um Virgílio para guiar o seu espírito através dos céus e dos infernos do oriente. Era deste lar artístico que o padre Brown e o seu amigo saíam, e para ajuizar dos seus rostos, saíam dele muito aliviados. Flambeau conhecera Quinton durante os loucos tempos de estudante em Paris e tinha renovado o conhecimento por um fim-de-semana, mas independentemente dos últimos progressos mais responsáveis de Flambeau, este não se dava bem com o poeta agora. Afogar-se em ópio e escrever pequenos versos eróticos em papel pergaminho não era propriamente a ideia que Flambeau fazia de como um cavalheiro deveria arruinar-se. Enquanto os dois paravam na estrada, antes de darem uma volta pelo jardim, o portão principal do jardim abriu-se comviolência e um jovem comchapéu de coco na cabeça caiu pelas escadas na sua impaciência. Era um rapaz com aspecto devasso, com uma deslumbrante gravata vermelha toda amarrotada como se tivesse dormido em cima dela e que passava o tempo remexendo e dando chibatadas com uma dessas pequenas bengalas nodosas.
- Escutem - disse ele sem fôlego -, quero ver o velho Quinton. Tenho de vê-lo. Ele saiu?
- O senhor Quinton está em casa, creio eu - disse o padre Brown, limpando o cachimbo. - Mas não sei se pode vê-lo. O médico está com ele neste momento.
O jovem, que não parecia estar completamente sóbrio, cambaleou para a sala de entrada e, no mesmo momento, o médico saiu do escritório de Quinton, fechando a porta e calçando as luvas.
- Ver o senhor Quinton? - disse o médico friamente. Não, receio que não possa. Na realidade, não deve fazê-lo de forma alguma. Ninguém pode vê-lo, acabei de lhe dar o seu soporífero.
- Não, mas olhe lá, meu velho - disse o jovem da gravata vermelha, tentando afectuosamente agarrar o médico pela lapela do casaco. - Olhe lá, estou simplesmente desesperado. Eu...
- Não vale a pena, senhor Atkinson - disse o médico, forçando-o a recuar -, quando o senhor puder alterar os efeitos de um medicamento, eu alterarei a minha decisão. - E, pondo o seu chapéu, saiu de casa com os outros dois.
Era um homenzinho com um pescoço forte, bem-disposto, com um pequeno bigode, inexpressivamente vulgar, mas dando uma impressão de competência.
O rapaz de chapéu de coco, que não parecia ser dotado de qualquer tacto para lidar com as pessoas, além da ideia de se agarrar aos casacos delas, permanecia fora da porta, tão pasmado como se o tivessem posto fora fisicamente e observava os outros três afastando-se do jardim.
- Isso foi uma pura mentira que eu disse agora - observou o médico, rindo. - Na realidade, o pobre Quinton só toma o seu remédio para dormir daqui a meia hora. Mas não quero que ele seja incomodado por aquela bestazinha, que só quer pedir dinheiro emprestado que nunca paga mesmo que possa. É um patifezinho sujo, apesar de ser irmão da senhora Quinton, e ela é uma excelente mulher, como não haverá outra.
- Sim - disse o padre Brown. - É uma boa mulher.
- Por isso proponho ficarmos aqui pelo jardim até que a criatura se vá embora - continuou o médico -, e depois eu irei levar o remédio ao Quinton. Atkinson não pode entrar porque eu fechei a porta à chave.
- Nesse caso, doutor Harris - disse Flambeau -, podíamos dar uma volta pelas traseiras, pela extremidade do jardim de Inverno. Por esse caminho não há entrada para o jardim, mas vale a pena vê-lo mesmo do lado de fora.
- Está bem, e posso assim dar uma olhadela ao meu doente - riu o médico -, pois ele prefere deitar-se numa otomana mesmo na extremidade do jardim de Inverno rodeado de todas aquelas poinsetias cor de sangue. Se fosse eu ficaria cheio de arrepios. Mas o que é que está a fazer?
O padre Brown parara por um momento e apanhara de entre a relva alta, onde estivera quase toda escondida, uma faca oriental, estranha e torta, primorosamente embutida compedras coloridas e metais.
- O que é isto? - perguntou o padre Brown, contemplando-a comcerto desagrado.
- Oh, é de Quinton - disse o doutor Harris despreocupadamente. - Ele tem toda a espécie de bugigangas chinesas em casa. Ou talvez pertença ao indiano que ele mantém sob controlo.
- Que indiano? - perguntou o padre Brown, continuando ainda a olhar para o punhal que tinha na mão.
- Oh, um prestidigitador indiano - disse o médico despreocupadamente -, uma fraude, é claro.
- Não acredita em magia? - disse o padre Brown, sem levantar os olhos.
- Oh, caramba! Magia! - disse o médico.
- É muito belo - disse o padre, numa voz baixa e sonhadora -, as cores são muito belas. Mas tem uma forma errada.
- Para quê? - perguntou Flambeau, olhando fixamente.
- Para nada. Tem uma forma errada em abstracto. Nunca sentiu isso em relação à arte oriental? As cores são lindas, mas as formas são inferiores e de má qualidade, deliberadamente inferiores e más. Tenho visto coisas ruins num tapete turco.
- Mon Dieu! - exclamou Flambeau, rindo-se.
- Há letras e símbolos numa língua que desconheço, mas eu sei que significam palavras más - disse o padre, com a voz cada vez mais baixa. - As linhas seguem um caminho errado de propósito, como serpentes dobrando-se para fugir.
- Que diabo é que você está a dizer? - disse o médico com um riso baixo.
Flambeau respondeu-lhe serenamente.
- O padre às vezes arranja esta vocação de místico - disse ele -, mas aviso-o de que só sei que ele a tem quando há alguma coisa má nas proximidades.
- Oh, não posso crer! - disse o cientista.
- Olhe para ela - exclamou o padre Brown, exibindo a faca torta como se fosse uma serpente brilhante. - Não vê que tem uma forma errada? Não vê que não tem nenhuma genuína finalidade? Não aponta como uma lança. Não dá golpes como uma foice. Não parece uma arma. Parece um instrumento de tortura.
- Bem, como não parece gostar dela - disse o bem-disposto Harris -, é melhor devolvê-la ao seu dono. Ainda não chegámos ao fim deste maldito jardim de Inverno? Esta casa tem uma forma errada.
- Você não compreende - disse o padre Brown sacudindo a cabeça. - A forma desta casa é estranha, parece até ridícula! Mas não há nada de errado nela.
Enquanto falavam aproximaram-se da curva de vidro que terminava o jardim de Inverno, uma curva ininterrupta, pois não havia porta na extremidade, nem porta nem janela pela qual se pudesse entrar. O vidro, no entanto, estava transparente e o sol ainda brilhante, se bem que a começar a pôr-se, e eles podiam ver não só as flores vistosas lá dentro, mas também a frágil figura do poeta com um casaco de veludo castanho deitado languidamente no sofá, aparentemente meio adormecido sobre um livro.
Era um homem pálido, débil, de cabelo castanho, solto, com uma barba curta que era o paradoxo da sua cara, pois a barba tornava-o menos másculo. Estas feições eram bem conhecidas dos três, mas mesmo se assim não fosse, é duvidoso se estariam nessa altura a olhar para Quinton. Os olhos deles estavam fixos noutro objecto.
Exactamente no caminho deles, imediatamente do lado de fora da extremidade curva do edifício de vidro, estava um homem alto, cujas roupagens, de um branco impecável, lhe caíam até aos pés e cujo crânio calvo e castanho, a cara e pescoço brilhavam ao sol poente como esplêndido bronze. Estava a olhar através do vidro para o homem que dormia e conservava-se mais imóvel do que uma montanha.
- Quem é aquele? - exclamou o padre Brown, recuando com uma respiração em assobio.
- Oh, é apenas aquele impostor indiano - resmungou Harris -, mas não sei que diabo é que ele está a fazer aqui.
- Parece hipnotismo - disse Flambeau, mordendo o bigode preto.
- Porque é que vocês todos que não são médicos estão sempre a dizer tolices sobre o hipnotismo? - exclamou o médico. Parece muito mais ser roubo.
- Bem, vamos falar-lhe - disse Flambeau, que estava sempre pronto para agir. Um passo comprido levou-o até ao lugar onde estava o indiano. Inclinando a sua grande estatura, que era superior à do indiano, disse comsereno descaramento:
- Boa tarde, senhor. Deseja alguma coisa? Muito devagar, como um navio atracando a um cais, o grande rosto amarelo voltou-se e olhou finalmente por cima do ombro. Ficara espantado ao ver que as pálpebras estavam completamente fechadas, como se estivesse a dormir.
- Obrigado - disse o rosto num inglês excelente. - Não quero nada. - Depois, entreabrindo as pálpebras de forma a mostrar uma fenda do opalescente globo ocular, repetiu:
- Não quero nada. - Em seguida abriu os olhos muito abertos com um alarmante olhar fixo e disse: - Não quero nada. - E foi-se embora com um roçar de seda para o jardim que estava rapidamente a escurecer.
- O cristão é mais modesto - murmurou o padre Brown -, ele quer alguma coisa.
- Mas, diabo, o que é que ele estava a fazer? - perguntou Flambeau, franzindo as suas sobrancelhas negras e baixando a voz.
- Gostava de falar consigo mais tarde - disse o padre Brown.
A luz do sol ainda era uma realidade, mas era a luz vermelha do entardecer, e o volume das árvores e arbustos do jardim tornavam-se cada vez mais escuros em contraste com ela. Deram a volta pela extremidade do jardim de Inverno e foram andando em silêncio pelo outro lado para irem dar à porta principal. Ao caminharem parecia terem acordado alguma coisa, como se tivessem espantado um pássaro, no canto mais fundo entre o escritório e o edifício principal, e de novo tornaram a ver o faquir de vestes brancas, saindo da sombra e escapando-se em direcção à porta principal. Para espanto deles, ele não estivera sozinho. Encontraram-se abruptamente detidos e forçados a banir o seu espanto com a aparição da senhora Quinton, com o seu abundante cabelo dourado e o seu pálido rosto, avançando para eles vinda do crepúsculo. Parecia um pouco severa, mas foi completamente amável.
- Boa tarde, doutor Harris. - Foi tudo quanto ela disse.
- Boa tarde, senhora Quinton -, disse o médico cordialmente. - vou agora mesmo dar o medicamento para dormir ao seu marido.
- Sim - disse ela com uma voz clara. - Acho que é altura. Sorriu-lhes e foi velozmente para dentro de casa.
- Aquela mulher está estafada - disse o padre Brown -, é o tipo de mulher que cumpre o seu dever durante vinte anos e depois faz qualquer coisa de terrível.
O médico olhou para ele pela primeira vez com um olhar interessado.
- Alguma vez estudou medicina? - perguntou ele.
- Você tem de saber alguma coisa tanto sobre a mente como sobre o corpo - respondeu o padre -, nós temos de saber tanto sobre o corpo como sobre a mente.
. - Bem - disse o médico -, acho que vou dar o medicamento ao Quinton.
Tinham dobrado a esquina da fachada da frente e estavam -se a aproximar da porta principal. Ao voltarem-se para ela viram o homem de manto branco pela terceira vez. Veio tão directamente em direcção à porta principal que parecia totalmente inacreditável que ele não tivesse vindo do escritório que ficava defronte. No entanto, eles sabiam que a porta do escritório estava fechada à chave.
O padre Brown e Flambeau, no entanto, guardaram para si esta estranha contradição, e o doutor Harris não era homem para perder o seu tempo com o impossível. Permitiu ao omnipresente asiático que saísse e em seguida entrou rapidamente para a sala de entrada. Aí encontrou a figura de quem ele já se tinha esquecido. O fútil Atkinson ainda estava por ali, trauteando e remexendo em coisas com a sua bengala. A cara do médico teve um espasmo de repugnância e decisão e segredou rapidamente aos seus companheiros:
- Tenho de fechar a porta à chave outra vez, senão este rato entra. Mas eu saio outra vez dentro de minutos.
Abriu rapidamente a porta fechada à chave impedindo uma precipitada investida do jovem com o chapéu de coco. O rapaz atirou-se impacientemente para uma cadeira da sala de entrada. Flambeau contemplava uma iluminura persa na parede, o padre Brown, que parecia estar numa espécie de torpor, olhava estupidamente para a porta. Em cerca de quatro minutos a porta abriu-se novamente. Atkinson foi rápido desta vez. Saltou em frente, segurou a porta aberta por um instante e chamou:
- Oh, Quinton, eu quero...
Da outra extremidade do escritório fez-se ouvir a voz clara de Quinton, qualquer coisa entre um bocejo e um riso cansado:
- Oh, eu sei o que você quer. Tome e deixe-me em paz. Estou a escrever uma canção sobre pavões.
Antes da porta se fechar, meia libra de ouro apareceu voando através da abertura e Atkinson, cambaleando, apanhou-a com extraordinária destreza.
- Temos então o caso arrumado - disse o médico e, fechando brutalmente a porta à chave, encabeçou a saída para o jardim.
- O pobre Leonard pode ter um pouco de paz agora acrescentou ele para o padre Brown -, está lá dentro sozinho, fechado à chave durante uma hora ou duas.
- Sim - disse o padre -, e a voz dele estava bem contente quando o deixámos. - Depois olhou gravemente em redor do jardim e viu a figura isolada de Atkinson de pé, fazendo tinir a meia libra na algibeira e, mais longe, no crepúsculo cor de púrpura, a figura do indiano sentado, muito direito sobre a relva, com a cara voltada para o sol poente. Depois disse abruptamente:
- Onde está a senhora Quinton?
- Foi para cima para o quarto dela - disse o médico. Aquela é a sombra dela na persiana.
O padre Brown olhou para cima e, franzindo o sobrolho, escrutinou o contorno escuro na janela, iluminado pelo gás.
- Sim - disse ele -,. é a sombra dela. - Andou um metro ou dois e atirou-se para um banco de jardim.
Flambeau sentou-se ao lado dele, mas o médico era uma dessas pessoas enérgicas que vivem naturalmente de pé. Ele afastou-se, fumando em direcção ao crepúsculo, e os dois amigos ficaram sozinhos.
- Padre - disse Flambeau em francês. - O que é que se passa consigo?
O padre Brown ficou silencioso e imóvel durante meio minuto, depois disse:
- A superstição é irreligiosa, mas há qualquer coisa no ar deste sítio. Acho que é aquele indiano, pelo menos em parte.
Ficou em silêncio e observou o contorno distante do indiano que ainda estava sentado, hirto, como se estivesse a rezar. À primeira vista parecia imóvel, mas o padre Brown ao observá-lo viu que o homem se balançava de uma forma muito ligeira com um movimento rítmico, exactamente como os topos das árvores escuras se balançavam muito ligeiramente no ventinho que se agitava nos caminhos do jardim sombrio, misturando um pouco as folhas caídas.
A paisagem estava a escurecer rapidamente, como se se aproximasse uma tempestade, mas eles ainda conseguiam ver os vultos nos seus diversos lugares. Atkinson estava encostado a uma árvore, com uma cara indiferente, a mulher de Quinton ainda estava à janela, o médico tinha ido dar uma volta junto da extremidade do jardim de Inverno, podiam ver o charuto dele como um fogo-fátuo e o faquir ainda estava sentado hirto, ba lançando-se, enquanto as árvores por cima dele começavam a balançar-se e quase a rugir. De certeza que se aproximava uma tempestade.
- Quando o indiano falou connosco - prosseguiu Brown numa meia voz conversadora -, eu tive uma espécie de visão dele e de todo o seu universo. E no entanto ele apenas disse a mesma coisa três vezes. Quando ele primeiro disse: "Não quero nada", ele queria apenas dizer que ele era impenetrável, que a Ásia não se revela. Depois ele disse outra vez: "Não quero nada", e eu percebi que ele era auto-suficiente, como um cosmos, que não precisava de Deus, nem sequer admitia quaisquer pecados. E quando ele disse pela terceira vex: "Não quero nada", ele disse-o com os olhos ardentes. E eu soube que isso significava literalmente o que ele dizia, que ele não desejava nada e nada era a sua casa, que não sentia a falta de nada, que a aniquilação, a simples destruição de tudo ou de qualquer coisa...
Caíram duas gotas de chuva e, por qualquer razão, Flambeau teve um sobressalto e olhou para cima como se elas o tivessem picado. No mesmo instante o médico, lá do fundo, junto à extremidade do jardim de Inverno, começou a correr em direcção a eles gritando qualquer coisa enquanto corria.
Ao chegar diante dos dois amigos como uma bomba, o inquieto Atkinson estava a dar uma volta próximo da frente da casa e o médico agarrou-o pelo colarinho.
- Traição! - exclamou ele. - O que é que você lhe esteve a fazer, cão?
O padre levantou-se de um salto, muito direito, e tinha a voz de aço de um soldado dando ordens.
- Nada de lutas! - exclamou ele friamente. - Nós chegamos bem para agarrar quem nós quisermos. O que é que se passa, doutor?
- Passa-se alguma coisa com Quinton - disse o médico muito pálido. - Vi-o através do vidro e não gosto da maneira como ele está deitado. Não está como quando eu o deixei.
- Vamos lá dentro vê-lo - disse o padre Brown em poucas palavras. - Pode largar o senhor Atkinson, tenho estado a observá-lo desde que ouvimos a voz de Quinton.
- Eu fico por aqui a vigiá-lo - disse Flambeau apressadamente. - Vocês vão lá dentro ver o que se passa.
O médico e o padre voaram para a porta do escritório que estava fechada à chave, abriram-na e entraram no quarto. Ao vê-lo quase caíram sobre uma grande mesa de mogno no cen-
tro, sobre a qual o poeta geralmente escrevia, pois o quarto só estava iluminado por uma pequena lareira mantida acesa para o doente. No meio desta mesa estava uma única folha de papel, ali deixada claramente de propósito. O médico agarrou nela, deu-lhe uma olhadela e entregou-a ao padre Brown exclamando:
- Meu Deus, olhe para isso! - entrou no quarto de vidro, onde as terríveis flores tropicais ainda pareciam conservar uma memória carmesim do pôr do Sol.
O padre Brown leu as palavras três vezes antes de pousar o papel. As palavras eram: "Morro pelas minhas próprias mãos, no entanto morro assassinado!"
Estavam escritas na letra completamente inimitável, quase ilegível, de Leonard Quinton.
O padre Brown, conservando ainda o papel na mão, dirigiu-se ao jardim de Inverno para encontrar o seu amigo médico que voltava para trás com uma cara firme e prostrada.
- Ele fê-lo - disse Harris.
Atravessaram os dois a deslumbrante e estranha beleza dos cactos e azáleas e encontraram Leonard Quinton, poeta e romancista, com a cabeça inclinada fora da sua otomana e os caracóis ruivos arrastando no chão. O estranho punhal que tinham apanhado no jardim estava espetado no seu lado esquerdo e a sua mão mole ainda segurava o punho.
Lá fora a tempestade viera rapidamente e o jardim e o tecto de vidro estavam a escurecer com a chuva que caía. O padre Brown parecia estudar mais o papel do que o cadáver, segurava-o perto dos olhos e parecia estar a lê-lo no crepúsculo. Depois segurou nele à ténue luz, e ao fazê-lo, o relâmpago mostrou-se-lhes por um instante tão branco que o papel parecia preto em comparação com ele.
Seguiu-se a escuridão cheia de trovoada e, depois dos trovões, a voz do padre Brown disse, saída da escuridão:
- Doutor, este papel tem uma forma errada.
- O que é que quer dizer com isso? - perguntou o doutor Harris, franzindo o sobrolho e olhando-o fixamente.
- Não é quadrado - respondeu Brown. - Tem uma espécie de extremidade cortada no canto. O que é que isso quer dizer?
- Como diabo hei-de eu saber? - resmungou o médico. Acha que tiremos daqui este pobre tipo? Ele está completamente morto.
- Não - respondeu o padre -, temos de deixá-lo como está e chamar a polícia. - Mas ainda estava a examinar o papel.
Ao voltarem pelo escritório parou junto à mesa e- pegou numa pequena tesoura de unhas.
- Ah - disse ele com uma espécie de alívio -, era com isto que ele o fazia, mas no entanto... - E franziu as sobrancelhas.
- Oh, deixe de brincar com esse pedaço de papel - disse o médico enfaticamente. - Era uma mania dele. Tinha às centenas deles. Cortava todo o papel assim. - E apontou para uma pilha de papel ainda não usado noutra mesa mais pequena. O padre Brown foi até lá e pegou numa folha. Tinha a mesma forma irregular.
- É realmente assim - disse ele. - E aqui estão os cantos que foram cortados - E, para indignação do seu colega, pôs-se a contá-los. - Está bem - disse ele, com um sorriso apologético. - Vinte e três folhas cortadas e vinte e dois cantos cortados. E como vejo está impaciente para irmos ter com os outros.
- Quem é que vai contar à mulher? - perguntou o doutor Harris. - Vai contar-lhe agora, enquanto mando um criado chamar a polícia?
- Como quiser - disse o padre Brown indiferentemente. E saiu para a porta da sala de entrada.
Aqui também encontrou um drama, se bem que de uma espécie mais grotesca. Nada menos do que o seu amigo Flambeau numa atitude a que ele há muito não estava habituado, enquanto que no caminho ao fundo das escadas o amável Atkinson estava deitado com as botas no ar, com o seu chapéu de coco e a sua bengala voando em direcções opostas ao longo do caminho. Atkinson tinha-se finalmente cansado da vigilância quase paternal de Flambeau e tinha tentado derrubá-lo, o que não era nenhuma brincadeira fácil de jogar como Rói dês Apaches, mesmo depois da abdicação do monarca.
Flambeau estava para saltar para cima do seu inimigo e agarrá-lo mais uma vez, quando o padre lhe bateu de leve, sossegadamente, no ombro.
- Faça as pazes como senhor Atkinson, meu amigo - disse ele. - Peçam mutuamente desculpa e digam "Boa Noite". Não precisamos de o deter mais tempo. Depois, enquanto Atkinson se levantava, um pouco indeciso, apanhava o chapéu e a bengala e se dirigia para o portão do jardim, o padre Brown disse, numa voz séria:
- Onde está aquele indiano?
Todos os três (pois o médico tinha ido ter com eles) se voltaram involuntariamente para o escuro relvado no meio das árvores agitadas, púrpuras no crepúsculo, onde eles tinham visto pela última vez o homem moreno balouçando-se na sua estranha oração. O indiano desaparecera.
- Diabos o levem - disse o médico, batendo com o pé no chão, furioso. - Agora sei que foi esse preto que fez aquilo.
- Julguei que não acreditasse em magia - disse o padre brown serenamente.
- Também eu - disse o médico, rolando os olhos. - Só sei que detestava aquele demónio amarelo quando pensava que ele era um feiticeiro fingido. E detestá-lo-ei ainda mais se vier a saber que ele é um verdadeiro feiticeiro.
- Bem, o ele ter-se escapado não quer dizer nada - disse Flambeau. - Pois não podíamos ter provado nem feito nada contra ele. É muito provável uma pessoa ir ter como polícia do bairro com uma história de suicídio imposto por bruxaria ou auto-sugestão.
Entretanto o padre Brown tinha entrado em casa e fora avisar a mulher do homem morto.
Quando ele saiu de novo parecia um pouco pálido e trágico, mas nunca se soube o que se passou entre eles nessa conversa, mesmo quando tudo se soube.
Flambeau, que estava a falar calmamente como médico, ficou surpreendido ao ver o seu amigo reaparecer tão depressa, mas Brown não prestou atenção e apenas chamou o médico à parte.
- Mandou chamar a polícia, não mandou? - perguntou ele.
- Mandei - respondeu Harris. - Devem chegar dentro de dez minutos.
- Pode fazer-me um favor? - disse o padre calmamente. Eu faço colecção destas estranhas histórias, que muitas vezes contêm, como é o caso do nosso amigo indiano, elementos que dificilmente podem ser incluídos num relatório policial. Ora eu queria que escrevesse um relatório deste caso para meu uso pessoal. A sua profissão é uma profissão inteligente - disse ele, olhando o médico grave e fixamente. - Penso, por vezes, que conhece alguns pormenores do caso que não achou conveniente mencionar. A minha profissão é uma profissão confidencial como a sua e eu tratarei aquilo que escrever para mim de uma forma estritamente confidencial. Mas escreva tudo o que hou ver para dizer.
O médico, que escutara pensativamente com a cabeça incli nada para um lado, olhou de caras para o padre durante um instante e disse:
- Está bem. - E foi para o escritório, fechando a porta atrás de si.
- Flambeau - disse o padre Brown -, há ali debaixo da varanda um banco comprido, onde podemos fumar sem apanhar chuva. Você é o meu único amigo no mundo e eu quero falar consigo. Ou talvez estar em silêncio consigo. Sentaram-se confortavelmente no banco da varanda. O- padre Brown, contra o seu costume, aceitou um bom charuto e fumou-o calmamente em silêncio, enquanto a chuva gritava e matraqueava no telhado da varanda.
- Meu amigo - disse por fim -, isto é um caso muito estranho.
- Acho que é - disse Flambeau, comqualquer coisa como um arrepio.
- Você chama-o estranho e eu chamo-o estranho - disso o outro - e no entanto queremos dizer coisas muito opostas. A mente moderna confunde sempre duas ideias diferentes: a de mistério no sentido do que é maravilhoso, e a de mistério no sentido do que é complicado. Isto é meia dificuldade no que diz respeito a milagres. Um milagre é alarmante, mas é simples. É simples porque é um milagre. Representa poder vindo directamente de Deus (ou do Diabo), em vez de vir indirectamente através da Natureza ou da vontade humana. Ora você quer dizer que este caso é maravilhoso porque é miraculoso, porque é bruxaria feita por um perverso indiano. Compreende, eu não digo que não seja espiritual ou diabólico. Só o céu ou o inferno sabem por que influências circundantes estranhos pecados surgem na vida dos homens. Mas presentemente, a minha posição é esta: se foi pura magia, como você pensa, então é maravilhoso, mas não é misterioso, isto é, não é complicado. A qualidade do milagre é misteriosa, mas a sua forma é simples. Ora, a forma deste caso tem sido o oposto da simplicidade.
O temporal, que abrandara um pouco, parecia avolumar-se de novo e surgiam momentos carregados de uma ligeira trovoada. O padre Brown deixou cair a cinza do seu charuto e prosseguiu:
- Tem havido neste incidente - disse ele - uma qualidade retorcida, feia e complexa que não pertence aos raios certeiros, quer do céu quer do inferno. Assim como se conhece o trilho tortuoso do caracol, eu conheço o trilho tortuoso do homem.
O raio branco abriu o seu enorme olho num instante, o céu fechou-se de novo e o padre continuou:
- De todas estas coisas tortuosas, a mais tortuosa é a forma daquele pedaço de papel. É ainda mais tortuosa do que o punhal que o matou.
- Quer dizer o papel no qual o Quinton confessou o seu suicídio - disse Flambeau.
- Quero dizer o papel no qual Quinton escreveu: "Eu morro pelas minhas próprias mãos" - disse o padre Brown. A forma daquele papel, meu amigo, era uma forma errada como eu jamais vi neste mundo perverso.
- Tinha apenas um canto cortado - disse Flambeau -, e eu creio que todo o papel de Quinton era cortado assim.
- Era uma maneira muito estranha - disse o outro - e uma maneira muito ruim, para meu gosto. Olhe Flambeau, este Quinton, que Deus tenha a sua alma em paz, era talvez um bocado malandro em algumas coisas, mas era realmente um artista, como lápis assim como com a pena. A letra dele, apesar de difícil de ler, era ousada e bela. Não posso provar o que estou a dizer, não posso provar nada. Mas digo-lhe comtoda a força de certeza que ele nunca poderia ter cortado esse desprezível pedacinho de uma folha de papel. Se ele tivesse querido cortar papel com a finalidade de ajustar ou de ligar ou o que quer que seja, teria feito um corte muito diferente com a tesoura. Lembra-se da forma? Era uma forma desprezível. Era uma forma errada. Como isto. Lembra-se?
E ele brandiu o charuto aceso na escuridão fazendo quadrados irregulares tão rapidamente que Flambeau pareceu vê-los como se fossem hieróglifos flamejantes na escuridão, hieróglifos como o seu amigo tinha falado, que são indecifráveis e que no entanto não podem ter bom significado.
- Mas... - disse Flambeau enquanto o padre punha o charuto na boca outra vez e se inclinou para trás, olhando fixamente para o telhado. - Suponhamos que outra pessoa tenha realmente usado a tesoura. Porque é que essa outra pessoa, cortando pedaços de papel, levaria Quinton a suicidar-se?
O padre Brown ainda estava inclinado para trás olhando fixamente para o quarto, mas tirou o charuto da boca e disse:
- Quinton não se suicidou. Flambeau olhou para ele estupefacto.
- Então, com a breca! - exclamou ele. - Porque é que ele confessou que se suicidava?
O padre inclinou-se de novo para a frente, pôs os cotovelos nos joelhos, olhou para o chão e disse numa voz baixa e clara:
- Ele nunca confessou que se suicidava. Flambeau pousou o seu charuto.
- Você quer dizer - disse ele - que a letra era falsificada?
- Não - disse o padre Brown -, Quinton escreveu-a efetivamente.
- bom, então aí tem - disse o exacerbado Flambeau -, Quinton escreveu: "Morro pelas minhas próprias mãos", com a sua própria mão num simples pedaço de papel.
- Um pedaço de papel de forma errada - disse o padre calmamente.
- Oh, que a forma se dane! - exclamou Flambeau. - O que é que tem a forma a ver com isso?
- Havia vinte e três papéis rasgados - prosseguiu Brown impassível -, e apenas vinte e dois pedaços cortados. Portanto um dos pedaços foi destruído, provavelmente o do papel escri^ to. Isso sugere-lhe alguma coisa?
Uma luz apareceu na cara de Flambeau, e ele disse:
- Havia mais qualquer coisa escrita por Quinton, mais algumas palavras. "Vão dizer-vos que morri pelas minhas próprias mãos" ou "Não acredite que..."
- Mais quente, como dizem as crianças - disse o amigo. Mas o pedaço mal tinha um centímetro e meio de um lado ao outro, não havia espaço para uma palavra, quanto mais para cinco. Você é capaz de pensar em qualquer coisa um pouco maior do que uma vírgula que o homem como inferno no coração tenha tido que arrancar como sendo uma prova contra ele?
- Não sou capaz de pensar em nada - disse Flambeau finalmente.
- E o que me diz a aspas? - disse o padre, e atirou o seu charuto para a escuridão como uma estrela cadente.
O outro homem ficou sem fala e o padre Brown disse, como alguém que voltasse ao essencial:
- Leonard Quinton era um romancista e estava a escrever um romance oriental sobre magia e hipnotismo. Ele...
Neste momento a porta atrás deles abriu-se vivamente e o médico saiu com o chapéu na cabeça. Entregou ao padre Brown um envelope comprido.
- Isso é o documento que o senhor queria - disse ele -, eu tenho de ir andando para casa. Boa noite.
- Boa noite - disse o padre Brown, enquanto o médico foi andando rapidamente para o portão. Deixara a porta principal aberta, de tal forma que um raio de luz do gás incidiu sobre eles. À luz deste, Brown abriu o envelope e leu as seguintes palavras:
"Caro padre Brown, Vicisti, Galilae! Ou, por outras palavras, diabos levem os seus olhos que são muito perspicazes. Será possível que haja qualquer coisa nessa matéria de que você é feito, afinal de contas.
"Sou um homem que desde os tempos de rapaz sempre acreditou na Natureza e em todas as funções naturais e instintos, quer as pessoas os considerassem morais ou imorais. Muito antes de ser médico, quando eu era garoto de escola, cuidando de ratos e aranhas, acreditava que ser um bom animal é a melhor coisa do mundo. Mas neste momento estou abalado. Acreditei na Natureza, mas parece que a Natureza pode atraiçoar uma pessoa. Será que pode haver qualquer coisa nas suas tolices? Estou realmente a ficar mórbido.
"Amei a mulher de Quinton. O que é que havia de mal nisso? A Natureza dizia-me que amasse, e é o amor que faz girar o mundo. Também pensei muito seriamente que ela seria mais feliz com um animal limpo como eu do que com aquele atormentador lunático. O que é que havia de mal nisso? Estava apenas diante de factos, como compete a um homem de ciência. Ela teria sido mais feliz.
"Segundo a minha própria doutrina, eu era completamente livre de matar Quinton, o que era a melhor coisa para todos, até para ele. Mas como um animal saudável, não tinha nenhuma ideia de me matar. Resolvi, portanto, que só o faria quando se me deparasse uma ocasião que me deixasse totalmente livre. Encontrei essa ocasião esta manhã.
"Fui três vezes, por junto, ao escritório de Quinton hoje. A primeira vez que eu lá entrei ele não falava de outra coisa senão de uma estranha história chamada "A maldição de Um Santo" que estava a escrever e que era sobre um eremita indiano que fez comque um coronel inglês se suicidasse só por pensar nele. Mostrou-me as últimas páginas e até me leu o último parágrafo, que era qualquer coisa como isto: "O conquistador do Punjab, um simples esqueleto amarelo, mas ainda gigantesco, conseguiu levantar-se sobre o cotovelo e dizer, ofegante, ao ouvido do seu sobrinho: "Morro pelas próprias mãos, no entanto, morro assassinado" Aconteceu, por uma sorte extraordinária, que estas últimas palavras estavam escritas'no topo de uma folha de papel limpa. Deixei o quarto e fui para o jardim, excitado comesta terrível oportunidade.
"Nós andámos à volta da casa e, a meu favor, aconteceram duas coisas. Você suspeitou do indiano e encontrou um punhal que o indiano muito provavelmente podia utilizar. Aproveitei a oportunidade e escondi o punhal na minha algibeira, voltei ao escritório de Quinton, fechei a porta à chave e dei-lhe o medicamento para dormir. Ele opunha-se a responder a Atkinson, mas eu insisti que ele o chamasse e sossegasse o tipo, porque queria uma prova evidente de que Quinton ainda estava vivo
quando saí do quarto dele pela segunda vez. Quinton estava deitado no jardim de Inverno e eu vim pelo escritório. Sou umhomem comgestos rápidos, e num minuto e meio fiz o que tinha a fazer. Despejei toda a primeira parte do romance de Quinton na lareira, onde ardeu até ficar em cinzas. Depois vi que as aspas não podiam ali estar, por isso eu cortei esse bocado da folha de papel, e para parecer mais verosímil cortei todo o restante maço de folhas para ficar igual. Depois saí com o conhecimento que a confissão de suicídio de Quinton estava em cima da mesa, enquanto Quinton estava vivo, mas a dormir, no jardim de Inverno.
"O último acto foi um acto desesperado, pode adivinhá-lo:
fingi que tinha visto Quinton morto e entrei comtoda a pressa no quarto, demorei o senhor com o papel, e como sou um homem de gestos rápidos, matei Quinton enquanto o senhor estava a olhar para a confissão de suicídio. Quinton estava meio a dormir, porque estava drogado, e eu pus a sua própria mão na faca e espetei-a no seu corpo. A faca tinha uma forma tão estranha que ninguém, excepto um cirurgião, poderia ter calculado o ângulo que atingira o coração. Gostava de saber se reparou nisso. Quando eu o fiz aconteceu uma coisa extraordi-
nária. A Natureza abandonou-me. Senti-me doente. Senti precisamente como se tivesse feito uma coisa errada. Acho que o meu cérebro está a rebentar, sinto uma espécie de prazer desesperado ao pensar que contei o sucedido a alguém, que eu não estarei sozinho como que aconteceu se eu casar e tiver filhos. O que é que se passa comigo? Loucura? Ou uma pessoa pode ter remorsos, exactamente como se estivesse fazendo parte dos poemas de Byron! Não consigo escrever mais. James F.rskin Barris."
O padre Brown dobrou cuidadosamente a carta e pô-la na sua algibeira precisamente no momento em que se ouviu um toque forte na sineta do jardim e os impermeáveis molhados de vários polícias brilharam lá fora na rua.
CAPÍTULO VIII
Os pecados do príncipe Saradine
Quando Flambeau fez o mês de férias habitual do seu escritório em Westminster fê-lo num pequeno barco à vela, tão pequeno que passava a maior parte do tempo sendo utilizado como barco a remos. Passou esse mês em pequenos rios nos Condados do Leste, rios tão pequenos que o barco parecia um barco mágico navegando em terra através de prados e campos de trigo. A embarcação só comportava duas pessoas, havia espaço apenas para objectos de primeira necessidade e Flambeau tinha-o abastecido de coisas que a sua filosofia especial considerava necessárias. Reduziam-se visivelmente a quatro coisas essenciais: latas de salmão, se ele quisesse comer; revólveres carregados, se ele quisesse lutar; uma garrafa de conhaque, presumivelmente no caso de ele desmaiar; e um padre, presumivelmente no caso de ele morrer. comesta bagagem leve, movia-se lentamente pelos pequenos rios de Norfolk, com a intenção de chegar finalmente aos Broads, mas entretanto deliciando-se com os jardins suspensos e os prados, as mansões e as aldeias reflectidas na água, demorando-se para pescar em pegos e recantos e, de certa maneira, navegando perto das margens.
Tal como um verdadeiro filósofo, Flambeau não tinha nenhum objectivo para as suas férias mas, também como um verdadeiro filósofo, tinha um pretexto. Uma espécie de finalidade, que encarava tão a sério que o seu êxito tornaria as férias perfeitas, mas também tão despreocupadamente que o seu fracasso não as estragaria. Há anos, quando ele fora rei dos ladrões e a mais célebre figura de Paris, recebera muitas vezes loucas mensagens de aprovação, acusação ou até de amor. Mas uma delas, por qualquer razão, impressionou a sua memória. Consistia simplesmente num cartão de visita e num envelope com o carimbo de Inglaterra. No verso do cartão estava escrito em francês e a verde: "Se alguma vez se reformar e se tornar respeitável venha visitar-me. Quero conhecê-lo, pois conheci já todos os grandes homens do seu tempo. Esse seu truque de fazer comque um detective prendesse outro detective foi o incidente mais admirável da história da França." Na parte da frente do cartão estava gravado, segundo o costume convencional, "Príncipe Saradine, Casa dos Juncos, Ilha dos Juncos, Norfolk".
Flambeau não se tinha importado muito como príncipe nessa altura, para além de se assegurar de que ele fora uma figura brilhante e elegante no Sul de Itália. Na sua juventude, dizia-se que ele fugira com uma mulher casada de alta sociedade. Essa fuga era pouco alarmante na sociedade em que vivia', mas tinha-se fixado na memória dos homens por causa da tragédia adicional: o suposto suicídio do marido ultrajado, que parece que se atirara de um precipício na Sicília.
O príncipe vivera então algum tempo em Viena, mas os últimos anos passara em constantes e agitadas viagens. Mas quando Flambeau, como o próprio príncipe, deixara a celebridade europeia e se instalara em Inglaterra, ocorreu-lhe que poderia fazer uma visita-surpresa na região dos Norfolk Broads a este exilado eminente. Não fazia a mais pequena ideia se encontraria o lugar, pois de facto este era bastante pequeno e esquecido. Mas, como as coisas ocorreram, encontrou-o muito mais depressa do que esperava.
Eles tinham atracado o barco uma noite numa margem encoberta por erva alta e pequenas árvores desbastadas. O sono, depois de muito remarem, viera-lhes cedo e, por um correspondente acaso, acordaram antes do amanhecer. Para falar mais precisamente, acordaram antes de aparecer a luz do dia, pois uma grande lua cor de limão estava mesmo nesse momento a pôr-se na floresta de erva alta sobre as suas cabeças e o céu apresentava uma vívida cor azul-violeta, nocturna mas brilhante. Os dois homens tiveram simultaneamente uma reminiscência de infância, do tempo de fadas aventuroso, quando altas ervas daninhas se fecham sobre nós como florestas. As margaridas, erguendo-se contra a grande lua baixa, pareciam margaridas gigantescas, os dentes de leão, gigantescos dentes de leão. Faziam-lhes lembrar um rodapé de um papel de forrar um quarto de crianças. O declive do leito do rio bastava para os fazer penetrar sob as raízes de todos os arbustos e flores e fazê-los olhar para cima, para a erva.
- Caramba! - disse Flambeau. - É como estar no reino das fadas.
O padre Brown sentou-se muito direito no barco e benzeu - se. O seu movimento foi tão abrupto que o amigo lhe perguntou, com um leve olhar fixo, o que é que se passava.
- As pessoas que escreviam as baladas medievais - respondeu o padre - sabiam mais coisas a respeito de fadas do que você. Não são só coisas agradáveis que acontecem no reino das fadas.
- Oh, que tolice! - disse Flambeau. - Só podiam acontecer coisas agradáveis sob uma lua tão inocente como esta. Sou por continuarmos a remar agora e vermos o que virá a seguir. Podemos morrer e apodrecer antes de vermos outra vez uma lua e um estado de espírito destes.
- Está bem - disse o padre Brown. - Nunca disse que era sempre mau entrar no reino das fadas. Disse apenas que era sempre perigoso.
Navegaram devagar pelo rio brilhante acima. O violeta incandescente do céu e o pálido dourado da lua tornaram-se cada vez mais pálidos e acabaram por se desvanecer nesse vasto cosmos incolor que precede as cores da madrugada. Quando as primeiras listras vermelhas, douradas e cinzentas, dividiram o horizonte de ponta a ponta, elas foram interrompidas pelo volume negro de uma pequena cidade ou vila que repousava à beira do rio mesmo adiante deles. Era já um leve crepúsculo matinal, no qual todas as coisas são visíveis, quando chegaram sob os telhados e pontes suspensas desta vila à beira do rio. As casas, com os seus telhados compridos, baixos e inclinados, pareciam vir beber no rio como um gigantesco gado cinzento e vermelho. A ampla e branca madrugada já se tinha tornado numa luz do dia, que possibilitava o trabalho, antes de eles verem qualquer criatura viva nos embarcadouros e pontes daquela pequena cidade. Finalmente viram um homem muito plácido e próspero em mangas de camisa, com a cara tão redonda como a da lua recentemente desaparecida e comvestígios de suíças vermelhas, que estava encostado a um poste que ficava acima da lenta corrente. Por um impulso que não vale a pena explicar, Flambeau pôs-se em pé no barco balouçante e gritou ao homem se ele conhecia a Ilha dos Juncos ou a Casa dos Juncos. O sorriso do próspero homem tornou-se ligeiramente mais expansivo e simplesmente apontou rio acima em direcção à próxima curva. Flambeau continuou a remar em frente sem dizer mais nada.
O barco percorreu muitos desses recantos cheios de ervas e seguiu por muitos desses lugares cheios de juncos e por esses braços silenciosos do rio, mas antes da busca se ter tornado monótona viraram num ângulo particularmente pronunciado e foram dar a uma espécie de pego ou lago silencioso, cuja aparição os deteve instintivamente. Pois no meio deste mais vasto pedaço de água, orlado em todos os lados por juncos, estava uma comprida e vasta ilhota ao longo da qual se erguia uma casa ou bungalow comprida e baixa feita de bambu ou qualquer espécie de resistente cana tropical. As hastes verticais de bambu que formavam o telhado eram vermelho-escuras ou castanhas, em tudo o resto a casa tinha algo de repetitivo e monótono. A brisa matutina fazia restolhar os juncos à volta da ilha e cantava na casa estranhamente guarnecida de nervuras como numa gigantesca flauta.
- Com a breca! - exclamou Flambeau. - Aqui está a casa afinal de contas. Aqui está a Ilha dos Juncos, aqui está a Casa dos Juncos. Creio que aquele homem gordo comsuíças era um duende.
- Talvez - observou o padre Brown imparcialmente. - Se ele era um duende, era um mau duende.
Mas enquanto ele falava, o impetuoso Flambeau tinha atracado o barco à margem no meio dos juncos e encontraram-se os dois na comprida e castanha ilhota, junto da velha e silenciosa casa. A casa erguia-se de costas voltadas para o rio e o único ancoradouro, a entrada principal, ficava do outro lado e dava para o comprido jardim da ilha. Os visitantes aproximaram-se dela, portanto, por um pequeno caminho que circundava quase os três lados da casa, por debaixo das goteiras do telhado. Através de três janelas diferentes podiam observar o mesmo quarto comprido e bem iluminado, forrado de madeira clara, com um grande número de espelhos e com a mesa posta como se fosse para um almoço elegante. Quando finalmente chegaram à porta principal, esta era flanqueada por dois vasos de flores azul-turquesa. A porta foi aberta por um mordomo de aspecto lúgubre, alto, magro, grisalho e indiferente, que murmurou que o Príncipe Saradine não estava em casa mas era esperado a toda a hora, estando a casa preparada para o receber a ele e aos convidados. A apresentação do cartão com as letras a tinta verde despertou uma centelha de vida na cara pergaminhada deste deprimido funcionário, e foi com uma certa trémula cortesia que ele sugeriu que os desconhecidos ficassem.
- Sua Alteza pode chegar a todo o momento - disse ele -, e ficaria pesaroso se não encontrasse qualquer cavalheiro que tivesse convidado. Temos ordens para ter preparada uma pequena refeição fria para ele e para os amigos e estou certo que ele queria que fosse oferecida.
Movido pela curiosidade em relação a esta aventura menor, Flambeau acedeu graciosamente e seguiu o velho, que o conduziu cerimoniosamente para a pequena sala forrada de madeira clara. Não havia nada de notável nela, excepto a alternância bastante fora do vulgar de muitos espelhos oblongos, compridos e baixos, que davam um ar esquisito de leveza e irrealidade ao lugar. Era qualquer coisa como almoçar ao ar livre. Um ou dois quadros de aspecto pacífico estavam pendurados aos cantos: um, uma grande fotografia de um jovem muito novo fardado; outro, um esboço a pastel vermelho de dois rapazes de cabelos compridos. Como Flambeau perguntasse se a pessoa com aspecto militar era o príncipe, o mordomo respondeu negativamente: era o irmão mais novo do príncipe, o capitão Stephen Saradine, disse ele. E com isso o velho cessou subitamente de falar e pareceu perder todo o gosto pela conversa. Depois do almoço ter terminado comdelicioso café e licores, foi dado a conhecer aos convidados o jardim, a biblioteca e a governanta, uma senhora morena, bonita, majestosa, e parecida com uma Nossa Senhora plutónica. Parecia que ela e o mordomo eram os únicos sobreviventes do primitivo ménage estrangeiro do príncipe, sendo novos todos os outros criados agora na casa e recrutados em Norfolk pela governanta. Esta senhora dava pelo nome de senhora Anthony, mas falava com um ligeiro sotaque italiano, e Flambeau não teve dúvidas que Anthony era uma versão Norfolkiana de algum nome mais latino. O senhor Paul, o mordomo, também tinha um ar levemente estrangeiro, mas o modo de falar e a instrução eram ingleses, como acontece comtantos dos mais requintados criados da nobreza cosmopolita.
Apesar de bonito e invulgar, naquele lugar reinava uma estranha e luminosa tristeza. As horas passavam nele como dias. Os quartos compridos e bem envidraçados estavam cheios de luz do dia, mas parecia uma luz morta. E através de todos os outros ruídos incidentais, o barulho das conversas, o tilintar dos copos, ou os passos dos criados, podia ouvir-se em todos os lados da casa o barulho melancólico do rio.
- Demos uma volta errada e viemos ter a um sítio errado disse o padre Brown, olhando para fora da janela para as juncas cinzento-esverdeadas e para a corrente prateada. - Não tem importância, pode às vezes fazer-se o bem sendo a pessoa certa no sítio errado.
O padre Brown, apesar de ser geralmente uma pessoa silenciosa, era um homenzinho curiosamente simpático, e naquelas poucas mas intermináveis horas ele inconscientemente penetrou mais profundamente nos segredos da Casa dos Juncos do que o seu profissional amigo. Tinha o hábito do silêncio amigável que é tão essencial à tagarelice e, quase não falando, provavelmente soube dos seus novos conhecimentos tudo o que, em qualquer caso, eles diriam. O mordomo, de facto, era pouco comunicativo. Mostrava uma afeição obstinada e quase animal pelo seu amo, o qual, dizia ele, tinha sido muito maltratado. O principal ofensor parecia ser o irmão de Sua Alteza, cujo nome bastava para alongar as faces muito magras do velho e franzir o seu nariz de papagaio num sorriso desdenhoso. O capitão Stephen era aparentemente um inútil e tinha feito exigências ao seu benevolente irmão de centenas de milhares. Forçara-o a fugir da vida mundana e a viver calmamente neste refúgio. Isto era tudo quanto Paul, o mordomo, tinha a dizer, e Paul era, obviamente, um faccioso.
A governanta italiana era um pouco mais comunicativa, por estar, como Brown supunha, um pouco menos contente. O tom que utilizava ao falar do patrão era levemente azedo, apesar de não deixar de sentir por ele uma certa admiração. Flambeau e o seu amigo estavam no quarto dos espelhos, examinando o esboço vermelho dos dois rapazes quando a governanta entrou rapidamente para executar alguma incumbência doméstica. Era uma particularidade deste lugar resplandecente forrado de espelhos que qualquer pessoa que entrasse fosse reflectida em quatro ou cinco espelhos ao mesmo tempo, e o padre Brown, sem se voltar, parou no meio de uma frase de apreciação da família. Mas Flambeau, que tinha a cara perto do quadro, já estava a dizer numa voz alta:
- São os irmãos Saradine, creio eu. Parecem os dois muito inocentes. É difícil dizer qual é o irmão honesto e qual é o desonesto. - Depois, apercebendo-se da presença da senhora, desviou a conversa para uma coisa sem importância e foi andando para o jardim. Mas o padre Brown continuava a olhar fixamente para o esboço a pastel vermelho e a senhora Anthony continuou a olhar fixamente para o padre Brown.
Ela tinha uns olhos castanhos, grandes e trágicos, e o seu rosto moreno brilhava sombriamente com um espanto curioso e penoso, como de alguém duvidando da identidade ou propósito de um desconhecido. Quer as vestes ou o credo do pequeno padre impressionassem quaisquer lembranças meridionais de confissão, quer ela julgasse que ele sabia mais do que realmente sabia, disse-lhe em voz baixa, como se falasse a um cúmplice:
- Tem muita razão, o seu amigo. Ele disse que seria difícil distinguir qual era o bom irmão e qual era o mau. Oh, seria muito difícil, extremamente difícil distinguir o irmão bom.
- Não compreendo - disse o padre Brown, e começou a afastar-se.
A mulher aproximou-se dele, com uma expressão violenta e uma espécie de selvagem inclinação para a frente da cabeça e dos ombros, como um touro baixando os cornos.
- Não há nenhum irmão bom - sibilou ela. - O capitão teve bastante maldade em tirar todo aquele dinheiro, mas não acho que fosse muita bondade a do príncipe em dar-lho. O capitão não é o único homem que se comportou mal.
Na cara desviada do clérigo apareceu uma luz e a sua boca pronunciou silenciosamente a palavra "chantagem". Ainda mesmo quando ele o fez, a mulher yoltou uma abrupta cara pálida sobre o ombro e quase caiu. A porta tinha-se aberto sem ruído e o pálido Paul surgiu como um fantasma. Devido ao estranho artifício das paredes reflectoras, parecia que cinco Pauis tinham entrado simultaneamente por cinco portas.
- Sua Alteza - disse ele - chegou agora mesmo.
No mesmo instante a figura de um homem passou do lado de fora da primeira janela, atravessando a vidraça iluminada pelo sol como um palco iluminado. Um instante depois passou pela segunda janela, e os muitos espelhos pintaram de novo em sucessivos enquadramentos o mesmo perfil aquilino e a mesma figura a andar. Era aprumado e vivo, mas o cabelo era branco e a cor do rosto de um estranho marfim amarelado. Tinha esse nariz romano pequeno e curvo que geralmente acompanha umas faces e um queixo compridos e magros, mas estes estavam parcialmente escondidos por um bigode e por uma pequena barba. O bigode era muito mais escuro do que a barba, dando-lhe um efeito levemente teatral, e ele estava vestido de uma maneira igualmente vistosa, com um chapéu alto branco, uma orquídea na lapela, um colete amarelo e luvas também amarelas que agitava e brandia enquanto andava. Quando ele chegou à porta da frente ouviram o cerimonioso Paul abri-la e escutaram o recém-chegado dizer alegremente:
- Bem, como vê eu cheguei. - O cerimonioso senhor Paul fez uma vénia e respondeu de uma maneira inaudível. Durante alguns minutos não se conseguia ouvir o que conversavam. Depois o mordomo disse:
- Está tudo às suas ordens. - E o Príncipe Saradine, agitando as luvas, entrou no quarto alegremente para os cumprimentar. Mais uma vez observaram essa cena espectral: cinco príncipes entrando para um quarto comcinco portas. O príncipe pôs o chapéu branco e as luvas amarelas sobre a mesa e estendeu a mão comtoda a cordialidade.
- Encantado de o ver aqui, senhor Flambeau - disse ele. Conheço-o muito bem pela sua reputação, se isso não é uma observação indiscreta.
- De forma nenhuma - respondeu Flambeau, rindo. - Não sou susceptível. Muito poucas reputações são adquiridas combase na virtude imaculada.
O príncipe deitou-lhe um olhar astuto para ver se a resposta tinha algum aspecto pessoal, depois riu-se também e ofereceu cadeiras a todos, incluindo a ele próprio.
- Um lugarzinho bem agradável, este - disse ele com ar desinteressado. - Não há muito que fazer, mas a pesca é realmente boa.
O padre, que estava a olhar fixamente para ele como olhar grave de um bebé, foi perseguido por uma fantasia que era impossível definir. Olhou para o cabelo grisalho, cuidadosamente encaracolado, para a cara amarela e branca e para a figura delgada um pouco presumida. Estes não eram estranhos, apesar de um pouco prononcé, como o guarda-roupa de uma pessoa na ribalta. O interesse desconhecido residia noutra coisa, na estrutura da cara: Brown sentia-se atormentado com uma semilembrança de a ter visto antes em qualquer lado. O homem parecia-se com algum antigo amigo seu mascarado. Depois lembrou-se dos espelhos e atribuiu a sua fantasia a algum efeito psicológico dessa multiplicação de rostos humanos.
O príncipe Saradine repartia a sua cortesia social entre os seus amigos comgrande alegria e tacto. Vendo que o detective tinha uma inclinação para o desporto e estava desejoso de se distrair durante as suas férias, conduziu Flambeau e o seu barco para o melhor local de pesca no rio, e estava de volta passados vinte minutos para se reunir com o padre Brown na biblioteca e entregar-se com igual delicadeza aos prazeres mais filosóficos do padre. Parecia saber muito, tanto sobre a pesca como sobre livros, embora estes não fossem os mais edificantes. Falava cinco ou seis línguas, se bem que sobretudo o calão destas. Tinha evidentemente vivido em várias cidades e sociedades muito heterogéneas, pois algumas das suas histórias mais alegres eram sobre infernos do jogo e antros de ópio, bandoleiros australianos ou bandidos italianos. O padre Brown sabia que o outrora famoso Saradine tinha passado os seus últimos anos em quase incessantes viagens, mas não pensara que as viagens fossem tão pouco respeitáveis e tão divertidas.
De facto, comtoda a sua dignidade de homem mundano, o príncipe Saradine irradiava, para observadores tão sensíveis como o padre, uma certa atmosfera de agitação ou até de desconfiança. A cara era fastidiosa, mas os olhos eram desvairados, tinha uns tiques nervosos como os de um homem abalado pela bebida ou por drogas e não tinha, nem declarava ter, mão na administração dos assuntos da casa. Estes eram entregues aos dois antigos criados, especialmente ao mordomo que era, evidentemente, o pilar da casa. O senhor Paul, de facto, não era tanto um mordomo como uma espécie de administrador, ou até de camareiro. Comia sozinho, mas quase comtanta pompa como o seu amo, era temido por todos os criados e trocava ideias com o príncipe comdecoro mas firmemente, como se fosse o procurador do príncipe. A melancólica governanta era em comparação uma mera sombra; na realidade, parecia apagar-se e servir apenas o mordomo, e Brown não tornou a ouvir aquele segredar vulcânico que o tinha meio informado sobre o irmão mais novo que fazia chantagem com o mais velho. Se o dinheiro estava a ser extorquido do príncipe pelo capitão ausente, ele não poderia ter a certeza, mas havia qualquer coisa de inseguro e reservado em Saradine que tornava a história plausível.
Quando voltaram mais uma vez ao salão com as janelas e os espelhos, o entardecer amarelo descia sobre as águas e as margens de salgueiros e um botauro fazia-se ouvir à distância como um duende rufando o seu pequeno tambor. O mesmo estranho sentimento de um triste e mau reino de fadas cruzou a mente do padre como uma nuvem cinzenta.
- Gostava que Flambeau já tivesse voltado - murmurou ele.
- Acredita na condenação? - perguntou o inquieto Saradine de repente.
- Não - respondeu o seu convidado -, acredito no dia do Julgamento Final.
O príncipe voltou-se e olhou para ele de uma forma estranha, a cara na sombra de encontro ao pôr do Sol.
- O que é que quer dizer? - perguntou.
- Quero dizer que nós aqui estamos no lado errado da tapeçaria - respondeu o padre Brown. - As coisas que acontecem aqui parecem não querer dizer nada, querem dizer qualquer coisa noutro sítio. Noutro sítio o castigo cairá sobre o verdadeiro pescador. Aqui parece muitas vezes cair sobre a pessoa errada.
O príncipe fez um barulho inexplicável como o de um animal. Na sua cara na sombra, os olhos brilhavam estranhamente. Um astuto e novo pensamento explodiu silenciosamente na mente do outro. Haveria outro significado na mistura em Saradine de brilhantismo e rudeza? O príncipe seria... seria perfeitamente normal? Ele repetia: "A pessoa errada... a pessoa errada" muito mais vezes do que seria natural numa exclamação social.
Em seguida o padre Brown acordou lentamente para uma segunda verdade. Nos espelhos diante dele podia ver a porta silenciosa abrindo-se e o silencioso senhor Paul à entrada, com a sua costumada pálida impassibilidade.
- Achei melhor anunciar imediatamente - disse ele, com a mesma deferência cerimoniosa de um velho advogado de família. - Um barco remado por seis homens chegou ao ancoradouro e está um cavalheiro sentado à popa.
- Um barco! - repetiu o príncipe. - Um cavalheiro? - E levantou-se.
Houve um silêncio alarmado interrompido apenas pelo estranho ruído do pássaro na junca e em seguida, antes de alguém poder falar outra vez, uma nova cara e figura passou de perfil pelas janelas iluminadas pelo sol, como o príncipe passara uma nora ou duas antes. Mas, exceptuando-se o acaso de que ambos os contornos eram aquilinos, pouco tinham em com um. Em vez do chapéu novo e branco de Saradine, estavam em presença de um chapéu preto de forma antiquada ou estrangeira. Debaixo dele estava uma cara jovem e muito solene, de barba rapada, azulada, junto do queixo decidido, sugerindo vagamente Napoleão quando jovem. A associação era auxiliada por qualquer coisa de velho, estranho quanto a todo o vestuário, como se se tratasse de um homem que nunca se incomodasse em modificar as modas dos seus antepassados. Tinha uma sobrecasaca azul coçada, um colete vermelho, à maneira de soldado, e umas calças brancas grosseiras, habituais nos princípios dos tempos Vitorianos, mas estranhamente incongruentes nos tempos presentes. De todo este velho guarda-roupa salientava-se a sua cor de azeitona estranhamente jovem e estranhamente sincera.
- Diabo! - disse o príncipe Saradine, e pondo rapidamente o seu chapéu branco foi ele próprio para a porta da frente, abrindo-a sobre o jardim no pôr do Sol.
Por essa altura o recém-chegado e os seus seguidores estavam já alinhados no relvado como um pequeno exército de teatro. Os seis remadores tinham puxado o barco para terra e estavam-no a guardar quase ameaçadoramente, segurando os remos direitos como espadas. Eram homens morenos e alguns deles usavam brincos. Mas um deles avançou para junto do jovem de cara cor de azeitona e colete vermelho, segurando um grande estojo preto de forma estranha.
- O seu nome - disse o jovem - é Saradine? Saradine anuiu descuidadamente.
O recém-chegado tinha olhos de cão, castanhos e baços, tão diferentes quanto possível dos olhos cinzentos brilhantes e inquietos do príncipe. Mas mais uma vez o padre Brown foi torturado pela sensação de ter visto em qualquer parte a réplica da cara, e mais uma vez se lembrou das repetições da sala forrada de espelhos e pôs de lado a coincidência devido a isso.
- Diabos levem este palácio de cristal! - murmurou ele. Uma pessoa vê tudo vezes demais. É como um sonho.
- Se o senhor é o príncipe Saradine - disse o jovem -, posso dizer-lhe que o meu nome é Antonelli.
- Antonelli! - repetiu o príncipe languidamente. - Parece-me lembrar do nome.
- Permita-me que me apresente - disse o jovem italiano. com a mão esquerda tirou cortesmente o seu antiquado
chapéu alto. com a direita agarrou no príncipe Saradine dando-lhe um tal soco na cara que o chapéu alto branco rolou pelas escadas abaixo e um dos vasos de flores azul balançou no seu pedestal.
O príncipe, fosse o que fosse, não era evidentemente um cobarde, atirou-se ao pescoço do inimigo e quase o impeliu a cair de costas na relva, mas o seu inimigo defendeu-se com um estranho ar inadequado de apressada cortesia.
- Está bem - disse ele arquejante e num inglês atamancado.
- Eu insultei. Eu darei satisfação. Marco, abra o estojo.
O homem do brinco e do grande estojo preto começou a abri-lo. Tirou para fora dois compridos floretes italianos comesplêndidos punhos e lâminas de aço, que ele cravou com a ponta para baixo no relvado. O estranho jovem, de pé diante da entrada com a sua cara amarela e vingativa, as duas espadas cravadas na relva como duas cruzes no cemitério e a fila de remadores atrás, davam a tudo aquilo um aspecto estranho de se estar nalgum tribunal de justiça bárbaro. Mas tudo o resto estava na mesma, tão repentina fora a interrupção. O pôr do Sol continuava ainda a arder no relvado e o botauro ribombava como que anunciando um pequeno mas horrível destino.
- Príncipe Saradine - disse o homem chamado Antonelli -, quando eu era um bebé de berço o senhor matou o meu pai e roubou a minha mãe. O meu pai foi o mais feliz. Não o matou lealmente, como eu o vou matar. O senhor e a minha perversa mãe levaram-no a dar um passeio para um solitário desfiladeiro na Sicília, atiraram-no por um penhasco abaixo e seguiram o vosso caminho. Eu podia imitá-lo, se eu quisesse, mas imitá-lo é demasiado vil. Fui atrás de si pelo mundo fora, e o senhor sempre fugiu de mim. Mas aqui é o fim do mundo... e de si. Eu apanhei-o e dou-lhe a oportunidade que nunca deu a meu pai. Escolha uma dessas espadas.
O príncipe Saradine, com as sobrancelhas contraídas, pareceu hesitar por um momento, mas os seus ouvidos ainda estavam zumbindo como soco e ele adiantou-se e agarrou num dos punhos da espada. O padre Brown também tinha avançado, tentando apaziguar a contenda, mas em breve verificou que a sua presença pessoal piorava as coisas. Saradine era um franco-mação e um feroz ateu, e um padre incitava-o pela lei dos contrários. E quanto ao outro homem, nada o demovia. Este jovem com a cara de Bonaparte e os olhos castanhos era algo de mais severo do que um puritano... um pagão. Era um simples assassino vindo dos alvores da terra, um homem da idade da pedra... um homem de pedra.
Restava uma esperança, chamar os de casa, e o padre Brown voltou a correr para lá. Verificou no entanto que o ditador Paul tinha dado uma folga a todos os criados e apenas a senhora Anthony se movia inquietante pelos compridos quartos. Mas no momento em que ela virou para ele uma cara pálida como a de um morto, ele resolveu um dos enigmas da casa dos espelhos. Os olhos castanhos melancólicos de Antonelli eram os olhos castanhos melancólicos da senhora Anthony, e num instante percebeu metade da história.
- O seu filho está lá fora - disse ele, sem desperdiçar palavras. - Ou ele ou o príncipe morrerão. Onde está o senhor Paul?
- Está no ancoradouro - disse a mulher, desfalecida. - Ele está... ele está a pedir socorro.
- Senhora Anthony - disse o padre Brown gravemente -, não há tempo para disparates. O meu amigo está a pescar, com o barco dele lá em baixo no rio. O barco do seu filho está guardado pelos homens dele. Há apenas uma única canoa, o que é que o senhor Paul está a fazer comela?
- Santa Maria! Não sei - disse ela, e caiu desmaiada no chão coberto de esteiras.
O padre Brown levou-a para o sofá, deitou sobre ela um jarro de água, gritou por socorro e depois foi a correr até ao ancoradouro da pequena ilha, mas a canoa já estava a meio do rio e o velho Paul puxava-a e empurrava-a pelo rio acima com uma energia inacreditável para a sua idade.
- vou salvar o meu patrão - exclamava ele, com os olhos ardendo loucamente. - vou salvá-lo.
O padre Brown nada podia fazer senão olhar para o barco que se movia esforçadamente rio acima e rezar para que o velho pudesse alertar a pequena cidade a tempo.
- Um duelo já de si é mau - murmurou ele, esfregando o seu áspero cabelo cor de poeria -, mas há qualquer coisa de errado a respeito deste duelo, mesmo como duelo. Sinto-o até aos ossos. Mas o que será?
Enquanto ele estava a olhar para a água, qual espelho oscilante do pôr do Sol, ouviu, vindo da outra extremidade do jardim da ilha, um pequeno mas inconfundível som... o choque ^ frio do aço. Voltou a cabeça. *
Longe, no cabo ou promontório mais distante da comprida ilhota, numa faixa do relvado para lá da última fileira de rosas, os duelistas tinham cruzado espadas. O entardecer era uma cúpula de ouro puro e, apesar de distantes, cada detalhe era perceptível. Tinham tirado os casacos, mas o colete amarelo e o cabelo branco de Saradine, o colete vermelho e as calças brancas de Antonelli, brilhavam na luz rasante como as cores das bonecas bailarinas de corda. As duas espadas reluziam da ponta ao punho como dois alfinetes de diamantes. Havia qualquer coisa de terrível nas duas figuras tão pequenas e tão vistosas. Pareciam duas borboletas tentando prender-se a uma rolha de cortiça.
O padre Brown correu o mais depressa que pôde, as suas pequenas pernas movendo-se como uma roda. Mas quando chegou ao campo de batalha, realizou que tinha chegado ao mesmo tempo tarde e cedo demais. Tarde demais para parar a luta que se travava sobre a sombra dos severos sicilianos encostados aos seus remos e cedo demais para antecipar qualquer resultado desastroso dessa luta. Porque os dois homens equiparavam-se singularmente, o príncipe usando a sua destreza como uma espécie de cínica confiança em si próprio, o siciliano utilizando-a com uma prudência assassina. Poucos terão sido os combates de esgrima que jamais foram vistos em anfiteatros repletos tão bons como aquele que tinia e reluzia naquela ilha esquecida no rio cheio de juncos. A luta vertiginosa esteve equilibrada tanto tempo que a esperança começou a reviver no padre que protestava. comtoda a probabilidade Paul deveria voltar brevemente com a polícia. Seria até um alívio se Flambeau voltasse da sua pescaria, pois Flambeau, do ponto de vista físico valia quatro daqueles homens. Mas não havia quaisquer sinais de Flambeau e, o que era muito mais estranho, nenhum sinal de Paul ou da polícia. Não restava nenhuma outra jangada ou vara para se poder circular sobre elas. Naquela ilha, naquele vasto pego sem nome, eles estavam isolados como numa rocha no Pacífico.
Quase tão rápido como o seu pensamento, o tinir dos floretes acelerou-se para um matraquear, os braços do príncipe agitaram-se no ar e a ponta da espada atingiu-o atrás entre as omoplatas. Caiu com um grande movimento rodopiante, a espada caiu-lhe da mão como uma estrela cadente, mergulhou no rio distante, e ele próprio caiu com uma derrocada de tanto fazer tremer a terra que partiu com o corpo uma roseira e levantou para o céu uma nuvem de terra vermelha, como se fosse o fumo de algum sacrifício pagão. O siciliano fizera uma dádiva de sangue ao fantasma do seu pai.
O padre pôs-se imediatamente de joelhos junto do cadáver, mas apenas para se assegurar de que era realmente um cadáver. Enquanto ele estava a fazer uns últimos exames desesperados, ouviu pela primeira vez vozes mais adiante no rio e viu o barco da polícia dirigir-se velozmente para o ancoradouro, compolícias e outras pessoas importantes, incluindo o excitado Paul. O pequeno padre levantou-se fazendo claramente uma careta de dúvida.
- Ora, por que razão - murmurou ele -, por que razão é que ele não pôde vir mais cedo?
Alguns sete minutos mais tarde a ilha foi ocupada por uma invasão de gente da cidade e de policiais, e estes últimos agarraram o vitorioso duelista, lembrando-lhe ritualmente que qualquer coisa que dissesse poderia ser utilizada contra ele.
- Não direi nada - disse o monomaníaco, com uma admirável e pacífica cara. - Nunca direi mais nada. Sinto-me feliz e só quero ser enforcado.
Depois fechou a boca enquanto eles o levavam embora, e é uma estranha mas indubitável verdade que ele jamais a abriu, excepto para dizer "culpado" no seu julgamento.
O padre Brown olhara para o jardim subitamente apinhado, para a prisão do homem sanguinário, para o transportar do cadáver depois de examinado pelo médico, como se estivesse a assistir ao desfecho de um mau sonho. Estava imóvel, como um homem num pesadelo. Deu o nome e morada como testemunha, mas não aceitou a oferta de um barco que o levasse a terra e ficou sozinho no jardim da ilha, fitando a roseira partida e todo o cenário verde daquela rápida e inexplicável tragédia. A luz extinguira-se ao longo do rio, a neblina levantara-se nas margens pantanosas e alguns pássaros surpreendidos pelo anoitecer esvoaçavam indecisos de um lado para o outro. Fixa, teimosamente, no seu subconsciente (que era excepcionalmente vivo), estava uma certeza inexprimível de que havia alguma coisa inexplicável. Esta sensação que se tinha agarrado a ele durante todo o dia não podia ser completamente explicada pela sua fantasia a respeito do "país dos espelhos". Por qualquer razão ele não vira a história real, mas sim um qualquer jogo ou mascarada. E no entanto as pessoas não são enforcadas ou apunhaladas por causa de uma charada.
Enquanto estava sentado, meditando, nos degraus do ancoradouro, foi-se apercebendo de uma listra alta e escura de uma vela que se estava a aproximar silenciosamente pelo rio brilhante abaixo e pôs-se em pé com uma tal corrente de sentimento que quase chorou.
.- Flambeau! - exclamou ele, e apertou as mãos do amigo muitas vezes, para grande admiração do desportista, que vinha para terra com o seu equipamento de pesca. - Flambeau - disse ele -, então não foi morto?
- Morto! - repetiu o pescador comgrande espanto. - E por que razão havia eu de ser morto?
- Oh, porque quase toda a gente morreu - disse o companheiro precipitadamente. - Saradine foi assassinado e Antonelli quer ser enforcado, e a mãe dele desmaiou, e quanto a mim, não sei se sou deste mundo ou do outro. Mas, graças a Deus, você está no mesmo mundo que eu. - E pegou no braço do espantado Flambeau.
Ao voltarem do ancoradouro aproximaram-se dos beirais da casa baixa de bambu e olharam para dentro de uma das janelas, como tinham feito quando da sua chegada. Viram um interior alumiado por uma candeia, previsto para deter o olhar deles. A mesa comprida na sala tinha sido posta para o jantar quando o exterminador de Saradine caíra como um raio na ilha.
E o jantar decorria agora calmamente, pois a senhora Anthony estava sentada com um ar um pouco sombrio aos pés da mesa, enquanto que à cabeceira estava o senhor Paul, o major domo: comendo e bebendo do melhor, os seus olhos turvos e azulados projectados estranhamente para fora da cara, o seu semblante magro inescrutável, mas de forma alguma desprovido de contentamento.
Com um gesto de poderosa impaciência, Flambeau bateu comforça na janela, abriu-a com um puxão violento e meteu a cabeça indignada dentro do quarto alumiado pela candeia.
- Bem! - exclamou ele. - Posso compreender que os senhores precisem de tomar uma refeição ligeira, mas roubar o jantar do vosso amo enquanto ele jaz assassinado no jardim...
- Eu roubei um grande número de coisas nesta vida longa e agradável - respondeu o estranho velho senhor placidamente -, este jantar é uma das poucas coisas que eu não roubei. Este jantar, esta casa e este jardim pertencem-me.
Um pensamento lampejou pela cara de Flambeau.
- O senhor quer dizer - começou ele - que o testamento do príncipe Saradine...
- Eu sou o príncipe Saradine -, disse o velho, mastigando ruidosamente uma amêndoa salgada.
O padre Brown, que estava a olhar para os pássaros lá fora, deu um salto como se tivesse sido alvejado por um tiro e meteu pela janela uma cabeça pálida como um nabo.
- O senhor é o quêt - repetiu ele numa voz estridente.
- Príncipe Paul Saradine, às vossas ordens - disse a veneranda pessoa delicadamente, erguendo um copo de Xerez. - Vivo aqui muito sossegadamente, pois sou um tipo muito caseiro e sou chamado modestamente de senhor Paul, para me distinguir do meu infeliz irmão senhor Stephen. Ele morreu, ouvi dizer, recentemente, no jardim. E claro não é minha culpa se os inimigos o perseguem até este lugar. É devido à lamentável irregularidade da sua vida. Não era uma personalidade caseira. Ficou de novo silencioso e continuou a olhar para a parede oposta mesmo acima da cabeça inclinada e melancólica da mulher. Viram claramente a parecença que os tinha perseguido no homem morto. Em seguida os seus velhos ombros começaram a erguer-se e a agitar-se um pouco, como se estivesse engasgado, mas a sua cara não se alterou.
- Meu Deus! - exclamou Flambeau depois de uma pausa. Ele está a rir-se!
- Venha embora - disse o padre Brown, que estava muito pálido. - Venha embora desta casa infernal. Vamos outra vez para um barco honesto.
A noite caíra sobre os juncos e o rio quando eles se afastaram da ilha, e foram rio abaixo no escuro, aquecendo-se comdois grandes charutos que brilhavam como as lanternas vermelhas dos barcos. O padre Brown tirou o charuto da boca e disse:
- Suponho que você adivinha a história toda até agora? Afinal de contas, é uma história primitiva. Um homem tem dois inimigos. Era um homem astuto. E descobriu assim que dois inimigos valem mais do que um.
- Não compreendo - respondeu Flambeau.
- Oh, é realmente simples - retorquiu o amigo -, simples, se bem que nada inocente. Os dois Saradines eram patifes, mas o príncipe, o mais velho, era aquele tipo de patife que fica na mó de cima e o mais novo, o capitão, era aquele tipo que fica na mó de baixo. Este miserável capitão decaiu de pedinte para chantagista e certo dia apanhou o irmão, o príncipe. Obviamente, não era por causa de um assunto sem importância, pois o príncipe Paul Saradine era francamente "dissoluto" e não tinha reputação a perder no que dizia respeito aos meros pecados de sociedade. Para falar claro, era um caso de forca, e Stephen dispunha literalmente de uma corda à volta do pescoço do seu irmão. Conseguira descobrir, não se sabe como, a verdade a respeito do caso Siciliano e era capaz de provar que Paul tinha assassinado o velho Antonelli nas montanhas. O capitão levou uma vida dissoluta durante dez anos com o dinheiro da chantagem, até que mesmo a fortuna fabulosa do príncipe começou a parecer um pouco ridícula.
Mas o príncipe Saradine suportava um outro peso além do irmão que lhe chupava o sangue. Sabia que o filho de Antonelli, uma simples criança na altura do assassinato, tinha sido criado na lealdade selvagem siciliana e vivia apenas para vingar o pai, não com a forca (pois faltava-lhe a prova legal que Stephen possuía), mas com as velhas armas da vendetta. O rapaz exercitara-se no uso das armas com uma extrema perfeição, e quando já tinha idade sufici ente para as utilizar, o príncipe Saradine começou, como diziam os jornais da sociedade, a viajar. O facto é que ele começou a fugir para salvar a vida, passando de lugar para lugar como um criminoso perseguido, mas com um homem implacável no seu rasto. Esta era a posição do príncipe Paul, e não era de maneira nenhuma uma posição agradável. Quanto mais dinheiro gastava para fugir a Antonelli, tanto menos tinha para silenciar Stephen. Quanto mais dava para calar 'Stephen, tanto menor era a possibilidade de se livrar finalmente de Antonelli. Foí então que se mostrou um grande homem, um génio, como Napoleão.
- Em vez de rés istir aos seus dois antagonistas, ele rendeu-se subitamente a ambos. Ele acedeu como um lutador japonês, e os seus inimigos caíram prostrados diante dele. Desistiu da corrida à volta do mundo e mandou a sua morada ao jovem Antonelli, depois ele deu tudo ao irmão. Mandou dinheiro suficiente a Stephen para comprar roupa elegante e viajar confortavelmente, comurna carta dizendo em linhas gerais: "Isto é tudo o que me resta. Tu deixaste-me sem nada. Ainda tenho uma casinha em Norfolk, comcriados e uma adega, e se queres mais alguma coisa de mim tens de aceitar isso. Vem tomar posse, se quiseres, e eu viverei lá sossegadamente como teu amigo ou administrador ou qualquer outra coisa." Sabia que o siciliano nunca tinha visto os irmãos Saradine a não ser, talvez, em quadros. Sabia que eles eram um pouco parecidos, ambos tendo barbas grisalhas pontiagudas. Depois fez a barba e esperou. A armadilha deu resultado. O infeliz capitão, nos seus novos trajes, entrou na casa em triunfo como um príncipe e morreu sob a espada do siciliano.
Havia um obstáculo, e ele honra a natureza humana. Espíritos malévolos como Saradine erram muitas vezes por não contarem com as virtudes da humanidade. Tomou por certo que o golpe do siciliano, quando viesse, seria tenebroso, violento e inominável, como o golpe que ele punia, que a vítima seria apunhalada durante a noite, ou ferida com um tiro por detrás de uma sebe, e morresse assim sem dizer palavra. Foi um mau momento para o príncipe Paul quando o cavalheirismo de Antonelli propôs um duelo formal, com todas as suas possíveis explicações. Foi nessa altura que eu o encontrei, partindo no seu barco, com olhos de louco. Estava a fugir, de cabeça descoberta, num barco sem protecção, antes que Antonelli descobrisse quem ele era.
Mas por mais agitado que estivesse, não estava desesperado. Conhecia o aventureiro e conhecia o fanático. Era muito provável que Stephen, o aventureiro, calasse a boca pelo simples prazer teatral de desempenhar o seu papel, o prazer em agarrar-se às suas novas e confortáveis instalações, a sua confiança de patife na sorte e a sua excelente esgrima. Era seguro que Antonelli, o fanático, calaria a boca e seria enforcado sem contar as histórias da sua família. Paul ficou no rio à espera que a luta terminasse. Depois alertou a cidade, trouxe a polícia, viu os seus dois inimigos vencidos serem levados para sempre e sentou-se, sorrindo, a jantar.
- Rindo, Deus nos ajude! - disse Flambeau, com um forte arrepio. - Será que estas ideias lhe vêm de Satanás?
- Esta ideia veio-lhe de si - respondeu o padre.
- Deus me livre! - exclamou Flambeau. - De mim? O que é que você quer dizer?
O padre tirou um cartão de visita da algibeira e pô-lo diante da luz fraca do charuto. Estava rabiscado com tinta verde.
- Não se lembra do convite que ele lhe fez? - perguntou ele.
- E o elogio à sua proeza criminosa? "Esse seu truque", diz o cartão, "de fazer com que um detective prenda outro detective?" Ele acabou de copiar o seu truque. com um inimigo em cada um dos seus lados ele saiu rapidamente do caminho e deixou-os colidir e matarem-se um ao outro.
Flambeau arrancou o cartão do príncipe Saradine das mãos do padre e rasgou-o selvaticamente em pequenos bocados.
- Eis o fim desta velha caveira com os seus ossos cruzados - disse ele enquanto espalhava os bocados nas ondas escuras do rio. - Mas provavelmente estes bocados vão envenenar os peixes.
O último brilho do cartão branco e dá tinta verde submergiu, uma ténue e vibrante cor como a da manhã modificou o céu e a lua atrás da ervas tornou-se mais pálida. Eles foram levados pela corrente em silêncio.
- Padre - disse Flambeau de repente -, acha que tudo isto foi um sonho?
O padre abanou a cabeça negativamente, quer por discordância quer por agnosticismo, mas permaneceu calado. Um cheiro de espinheiro e de pomar passou por eles na escuridão, dizendo-lhes que o vento estava acordado, logo em seguida fez balouçar o pequeno barco e enfunou a vela, levando-os pelo rio sinuoso para lugares mais felizes e para lares de homens inofensivos.
CAPÍTULO IX
O martelo de Deus
A pequena aldeia de Bohun Beacon estava empoleirada num monte tão íngreme que a alta espiral da sua igreja apenas parecia o pico de uma pequena montanha. Aos pés da igreja havia uma oficina de ferreiro, geralmente vermelha do fogo e sempre cheia de uma confusão de martelos e pedaços de ferro. Em frente a esta oficina, junto de uma grosseira encruzilhada de caminhos de pedras, estava o "Javali Azul", a única estalagem do lugar. Foi nesta encruzilhada, numa alvorada cor de chumbo e prata, que dois irmãos se encontraram na rua e falaram, se bem que um estava a começar o dia e o outro a terminá-lo. O reverendo Wilfred Bohun era muito devoto e dirigia-se para umas austeras práticas de oração e contemplação que efectuava de madrugada. O coronel Norman Bohun, seu irmão mais velho, não era de maneira nenhuma devoto e estava sentado de smoking num banco no exterior do "Javali Azul" bebendo o que o observador filosófico era livre de considerar como o seu último copo na terça-feira ou o seu primeiro na quarta. O coronel não era esquisito.
Os Bohuns eram uma das muito raras famílias aristocráticas que datavam da Idade Média e o seu estandarte tinha realmente chegado à Palestina. Mas é um grande erro supor que tais casas nobres têm boa fama quanto a tradições cavalheirescas. São poucas, excepto os pobres, as que mantêm as tradições. Os aristocratas vivem não das tradições, mas das modas. Os Bohuns tinham sido Mohocks no reinado da Rainha Anne e Mashers no reinado da Rainha Vitória. Mas, como acontece a mais do que uma das casas nobres realmente antigas, tinham degenerado nos dois últimos séculos em bêbedos e dandis, até se ter mesmo falado, em segredo, de loucura. Era certo que havia qualquer coisa que dificilmente se poderia considerar humano na animalesca procura do prazer do coronel, e a sua resolução crónica de não voltar para casa senão de madrugada tinha um toque da terrível caridade da insónia. Era um animal alto, elegante, de idade avançada, mas com o cabelo surpreendentemente amarelo. Teria parecido simplesmente loiro e leonino, mas os seus olhos azuis estavam enterrados tão profundamente na cara que pareciam pretos. Estes aproximavam-se um pouco demais um do outro. Tinha bigodes amarelos muito compridos, em cada um dos lados tinha uma ruga ou vinco, da narina ao queixo, de tal modo que um sorriso de escárnio parecia gravado no seu rosto. Sobre o smoking usava um estranho casaco amarelo pálido que se parecia mais com um roupão muito leve do que com um sobretudo, e na parte de trás da cabeça estava colocado um chapéu extraordinário de abas largas de uma cor verde viva, evidentemente alguma raridade oriental escolhida ao acaso. Ele tinha orgulho em aparecer em trajes tão incongruentes, orgulho no facto de ele sempre os fazer parecer congruentes.
O seu irmão, o cura, também tinha o cabelo amarelo e a mesma elegância, mas estava de preto, abotoado até ao pescoço, com a cara barbeada, era culto e um pouco nervoso. Parecia viver apenas para a sua religião, mas havia certas pessoas que diziam (entre elas o ferreiro, que era presbiteriano) que ele amava mais a arquitectura gótica do que Deus e que o frequentar a igreja como um fantasma era apenas uma outra faceta mais pura da quase mórbida sede de beleza que fazia o irmão andar ávido de mulheres e vinho. Esta acusação era duvidosa, pois a religiosidade do homem era indubitável. De facto, a acusação era na maior parte um mal-entendido quanto ao amor da solidão e da oração secreta e baseava-se em ele ser muitas vezes encontrado ajoelhado não diante do altar, mas em lugares esquisitos, nas criptas ou na galeria, ou mesmo no campanário. Ele estava nesse momento para entrar na igreja pelo pátio do ferreiro, mas parou e franziu o sobrolho ao ver os olhos cavernosos do irmão olhando fixamente na mesma direcção. O cura não perdeu tempo a especular sobre a hipótese de o coronel estar interessado na igreja. Fitava apenas a loja do ferreiro e, apesar do ferreiro ser um puritano e não seu paroquiano, Wilfred Bohun ouvira alguns mexericos sobre a sua bela e afamada mulher. Deitou um olhar desconfiado para o barracão e o coronel levantou-se, rindo, para lhe falar.
- bom dia, Wilfred - disse ele. - Como um bom senhorio estou a velar a minha gente. vou fazer uma visita ao ferreiro.
Wilfred olhou para o chão e disse:
- O ferreiro saiu. Está para Greenford.
- Eu sei - respondeu o outro, rindo-se silenciosamente.
- É por isso que vou visitá-lo.
- Norman - disse o clérigo, olhando para uma pedra da estrada -, nunca tiveste medo de raios?
- O que é que queres dizer? - perguntou o coronel. - O teu. passatempo preferido é a meteorologia?
- Quero dizer - disse Wilfred, sem levantar a cabeça -, nunca pensaste que Deus pode fulminar-te na rua?
- Peço-te desculpa - disse o coronel. - Vejo que o teu passatempo preferido é o folclore.
- Eu sei que o teu passatempo é a blasfémia - retorquiu o religioso ferido no único ponto vivo da sua natureza -, mas se não temes Deus, tens boas razões para temeres os homens.
O irmão mais velho ergueu as sobrancelhas delicadamente.
- Temer os homens? - disse.
- Barnes, o ferreiro, é o homem maior e mais forte das redondezas - disse o clérigo severamente. - Sei que tu não és nenhum cobarde ou fraco, mas ele é capaz de dar cabo de ti.
Isto atingiu o alvo, pois era verdade, e a ruga entre a boca e a narina acentuou-se. Por um momento ficou com o sorriso de escárnio no rosto. Mas num instante o coronel Bohun recuperou o seu cruel bom humor e pôs-se a rir, mostrando dois dentes da frente, parecidos com os de um cão, debaixo do seu bigode amarelo.
- Nesse caso, meu querido Wilfred - disse ele descuidadamente -, foi sensato da parte do último dos Bohun sair com uma armadura.
E tirou o estranho chapéu redondo coberto de verde, mostrando que era forrado de aço por dentro. Wilfred reconheceu-o de facto como sendo um capacete ligeiro chinês ou japonês arrancado a um trofeu pendurado no velho salão familiar.
- Foi o primeiro que estava à mão - explicou o irmão alegremente. - Quero sempre o chapéu mais próximo... e a mulher mais próxima.
- O ferreiro está em Greenford - disse Wilfred calmamente.
- Não se sabe quando volta.
E comestas palavras voltou-se e entrou para a igreja com a cabeça baixa, benzendo-se como alguém que se quer ver livre de um espírito impuro. Estava ansioso por esquecer uma tal grosseria no fresco crepúsculo da manhã do seu alto claustro gótico, mas naquela manhã estava predestinado que a sua calma sucessão de exercícios religiosos devia ser impedido por péquenos choques. Ao entrar na igreja, até então sempre vazia àquela hora, uma figura ajoelhada levantou-se apressadamente e aproximou-se da plena luz do dia da entrada. Quando o cura a viu ficou imóvel com a surpresa. Pois o matinal fiel não era outro senão o idiota da aldeia, um sobrinho do ferreiro, alguém que não queria nem podia importar-se com a igreja ou comqualquer outra coisa. Chamavam-lhe sempre o "louco Joe" e parecia não ter outro nome. Era um moço moreno, forte, que andava com a cabeça inclinada, com uma cara pálida e triste, cabelos escuros lisos e a boca sempre aberta. Ao passar pelo padre, a sua fisionomia de tolo não deu a entender o que tinha estado a fazer ou a pensar. Nunca se ouvira dizer que ele rezasse. Que espécie de orações estaria ele a fazer agora? Umas extraordinárias orações, decerto.
Wilfred Bohun ficara imóvel o tempo suficiente para ver o idiota sair para a luz do sol e mesmo para ver o seu dissoluto irmão chamá-lo com uma espécie de jocosidade avuncular. A última coisa que viu foi o coronel atirando moedas depenny para a boca aberta de Joe, com a aparência séria de tentar acertar nela..
Este feio quadro à luz do sol, da estupidez e crueldade do mundo, levou finalmente o asceta às suas orações de purificação e pensamentos novos. Dirigiu-se a um banco da igreja na galeria, onde ficou junto a um vitral de que gostava e que sempre acalmava o seu espírito. Era um vitral com um anjo levando consigo lilases. Aí começou a pensar menos no idiota, com a sua cara lívida e a boca como a de um peixe. Começou a pensar menos no seu vil irmão, andando como um leão magro cheio de uma horrível fome. Mergulhou cada vez mais profundamente naquelas doces e frias cores de flores prateadas e de um céu de safira.
Neste lugar foi encontrado meia hora mais tarde por Gibbs, o sapateiro da aldeia, que tinha sido chamado para o ir buscar combastante pressa. Levantou-se prontamente, pois sabia que não era um assunto sem importância que tinha levado Gibbs a tal lugar. O sapateiro era, como acontece em muitas aldeias, um ateu, e o seu aparecimento na igreja era ainda mais extraordinário do que o do louco Joe. Era uma manhã de enigmas teológicos.
- O que é? - perguntou Wilfred Bohun duramente, mas estendendo uma mão trémula para pegar no seu chapéu.
O ateu falou num tom que, vindo dele, era alarmantemente respeitoso e mesmo compassivo.
- O senhor vai desculpar-me - disse ele num murmúrio rouco -, mas não achámos bem que o senhor não fosse avisado logo. Passou-se uma coisa terrível. O seu irmão...
Wilfred apertou as mãos frágeis.
- Que diabrura é que ele fez agora? - exclamou ele com uma cólera involuntária.
- Pois, senhor - disse o sapateiro, tossindo -, ele não fez nada e não vai fazer nada. Receio que o tenham morto. É melhor vir comigo, senhor.
O cura desceu com o sapateiro por uma pequena escada de caracol que os levou a uma entrada bastante mais elevada do que a rua. Bohun abarcou a tragédia com um olhar. No pátio do ferreiro estavam cinco ou seis homens, na sua maioria de preto, um com a farda de polícia. Incluíam o médico, o padre presbiteriano e o padre da capela católica a que a mulher do ferreiro pertencia. Este último falava com ela, de facto, muito rapidamente e em voz baixa, enquanto ela, uma mulher magnífica comcabelo ruivo-dourado, soluçava num banco. Entre estes dois grupos, e afastados do principal monte de martelos, estava um homem de smoking, com os ombros esticados e de bruços. Do plano superior em que se encontrava, Wilfred podia ter jurado conhecer cada peça do seu vestuário, até mesmo os anéis da família Bohun nos seus dedos, mas o crânio era apenas uma medonha mancha de líquido espirrado, com uma estrela negra e de sangue.
Wilfred Bohun deu só uma olhadela e correu pelas escadas abaixo para o pátio. O médico, que era o médico da família, cumprimentou-o, mas ele quase nem reparou. Apenas conseguiu gaguejar:
- O meu irmão está morto. O que é que isso quer dizer? Que mistério horroroso é este? - Houve um silêncio pesaroso, e depois o sapateiro, o homem mais franco dos presentes, respondeu:
- Muito horror, senhor, mas não muito mistério.
- O que é que quer dizer? - perguntou Wilfred, muito pálido.
- É muito simples - respondeu Gibbs. - Há só um homem nas redondezas que podia ter dado uma pancada destas, e é o homem que mais razão tinha para o fazer.
- Não podemos avaliar nada de antemão - interveio o médico, um homem alto e de barba preta, combastante nervosismo -, mas estou apto a confirmar o que diz o senhor Gibbs quanto à natureza da pancada. É uma pancada incrível. O senhor Gibbs diz que há apenas um homem na região que a podia ter dado,-eu diria que ninguém a podia ter dado.
Um arrepio de superstição passou pela figura frágil do cura.
- Não consigo perceber - disse ele.
- Senhor Bohun - disse o médico em voz baixa -, faltam-me literalmente as metáforas. É inadequado dizer-se que o crânio foi esmagado em pedaços como se fosse uma casca de ovo. Fragmentos de osso penetraram no corpo e no chão como balas num muro de lama. Foi obra de um gigante.
Ficou silencioso por um momento, olhando severamente através dos óculos, depois acrescentou:
- A coisa tem uma vantagem... que afasta a maior parte das pessoas de suspeita. Se o senhor ou eu ou qualquer pessoa de constituição normal desta terra fosse acusada deste crime, seríamos todos absolvidos, como uma criança seria absolvida de roubar a Coluna de Nelson.
- E o que eu digo - repetia o sapateiro obstinadamente -, só há um homem que o poderia ter feito, e é o homem que o devia ter feito. Onde está Simeon Barnes, o ferreiro?
- Está para Greenford - balbuciou o cura.
- O mais provável é que esteja para França - murmurou o sapateiro.
- Não, não está em nenhum desses dois lugares - disse uma vozinha apagada, que vinha do pequeno padre católico que se tinha reunido ao grupo. - Para dizer a verdade, ele vem pela estrada acima neste momento.
O pequeno padre não era um homem interessante de se olhar, pois tinha um cabelo castanho curto e grosso e uma cara redonda impassível. Mas mesmo que fosse esplêndido como Apoio, ninguém teria olhado para ele naquele momento. Todos se voltaram e examinaram o caminho que serpenteava através da planície lá em baixo, pelo qual caminhava, com as suas enormes passadas e um martelo ao ombro, Simeon, o ferreiro. Era um homem ossudo e gigantesco, comolhos profundos, escuros e sinistros e uma barba escura no queixo. Caminhava e falava tranquilamente comdois outros homens e, apesar de nunca estar especialmente bem-disposto, parecia estar muito à vontade.
- Meu Deus! - exclamou o sapateiro ateu. - E lá está o martelo comque ele fez aquilo.
- Não - disse o polícia, um homem com um aspecto sensato, de bigode cor de areia, que falou pela primeira vez. - Ali está o martelo comque ele fez aquilo, ali, junto da parede da igreja. Deixámo-lo a ele e ao corpo exactamente como estavam; Todos olharam para lá e o pequeno padre atravessou e examinou em silêncio o instrumento no lugar em que se encontrava. Era um dos martelos mais pequenos e leves e não se teria reparado nele no meio dos outros, mas na sua extremidade de ferro havia sangue e cabelos amarelos.
Depois de um silêncio, o padre baixinho falou sem olhar para cima e havia um tom diferente na sua voz fraca. ; - O senhor Gibbs não teve razão - disse ele - em dizer que não há nenhum mistério. Há pelo menos o mistério da razão por que um homem tão grande tentaria dar uma pancada tão forte com um martelo tão pequeno.
- Oh, isso não tem importância - exclamou Gibbs, febrilmente. - O que é que havemos de fazer com Simeon Barnes?
- Deixe-o em paz - disse o padre serenamente. - Ele dirige-se para aqui de sua livre vontade. Conheço aqueles dois homens que estão com ele. São muito boas pessoas de Greenford e vieram até cá por causa da capela presbiteriana.
Enquanto ele falava, o alto ferreiro deu a volta à esquina da igreja e entrou no seu pátio. Depois ficou ali muito quieto, e o martelo caiu-lhe da mão. O polícia, que tinha mantido umas impenetráveis boas maneiras, foi imediatamente ter com ele.
- Não vou perguntar-lhe, senhor Barnes - disse ele -, se sabe alguma coisa do que se passou aqui. Não é obrigado a dizer. Espero que não saiba de nada e que possa prová-lo. Mas eu tenho de cumprir a formalidade de o prender em nome do Rei pelo assassinato do coronel Norman Bohun.
- Não é obrigado a dizer nada - disse o sapateiro numa excitação oficiosa. - Eles é que têm de provar tudo. Ainda não provaram que se trata do coronel Bohun, com a cabeça toda esmagada como está.
- Não é bem assim - disse o médico à parte para o padre. Isso vem nas histórias de detectives. Eu era médico do coronel e conhecia o corpo dele melhor do que ele próprio. Tinha umas belas mãos, mas umas mãos bastante estranhas. O segundo e o terceiro dedos eram do mesmo comprimento. Oh, é comcerteza o coronel.
Ao olhar para o cadáver deitado no chão os olhos do imóvel ferreiro seguiram-no e fixaram-se nele também.
- O coronel Bohun morreu? - disse o ferreiro calmamente.
- Então ele está condenado ao inferno.
- Não diga nada! Oh, não diga nada! - exclamou o sapateiro ateu, dançando numa êxtase de admiração pelo sistema legal inglês. Pois nenhum homem é tão legalista como o bom secularista.
O ferreiro voltou para ele a cara venerável de um fanático.
- Está certo que vocês, infiéis, enganem como raposas, porque as leis do mundo estão a vosso favor - disse ele -, mas Deus guarda o que é seu na sua algibeira, como poderão ver.
Depois apontou para o coronel e disse:
- Quando é que este cão morreu com os seus pecados?
- Modere a sua linguagem - disse o médico.
- Moderem a linguagem da Bíblia e eu moderarei a minha.
- Quando é que ele morreu?.
- Vi-o vivo às seis horas da manhã - gaguejou Wilfred Bohun.
- Deus é bom - disse o ferreiro. - Senhor inspector, não tenho a mais pequena objecção a ser preso. E o senhor pode objectar a prender-me. Não me importo de deixar o tribunal sem uma mancha no meu carácter. O senhor é que se deve talvez importar em deixar o tribunal com um revés na sua carreira.
O sólido inspector olhou pela primeira vez para o ferreiro com um olhar vivo, como fizeram todas as pessoas, excepto o estranho padre baixinho, que ainda estava a olhar para o pequeno martelo que tinha desferido a terrível pancada.
- Há dois homens aqui do lado de fora da loja - prosseguiu o ferreiro compoderosa lucidez -, bons negociantes de Greenford que todos vocês conhecem, que poderão jurar que me viram desde antes da meia-noite até ao amanhecer e muito depois disso, na sala de reuniões da nossa Missão de Renovação, que se reúne em sessão durante toda a noite. Em Greenford vinte pessoas podem jurar a meu favor por todo esse tempo. Se eu fosse um herege, senhor inspector, deixaria que o senhor caísse em desgraça, mas como cristão sinto-me obrigado a dar-lhe uma oportunidade e a perguntar-lhe se o senhor quer ouvir o meu álibi agora ou no tribunal.
O inspector pareceu pela primeira vez preocupado e disse:
- Claro que ficarei satisfeito se o puder declarar inocente agora.
O ferreiro saiu do seu pátio com os mesmos passos largos e voltou com os dois amigos de Greenford, que eram de facto amigos de quase toda a gente presente. Cada um deles disse algumas palavras que ninguém pensou em não acreditar. Depois de eles falarem, a inocência de Simeon ficou comprovada tão solidamente como a igreja que se erguia acima deles.
Abateu-se sobre o grupo um desses silêncios que são mais estranhos e insuportáveis do que quaisquer palavras. Exasperado, a fim de fazer conversa, o cura disse ao padre católico:
- Parece muito interessado nesse martelo, padre Brown.
- Pois estou - disse o padre Brown. - Porque é que é um martelo tão pequeno?
O médico voltou-se para ele.
- É verdade! - exclamou ele. - Quem é que utilizaria um martelo pequeno com uma dezena de martelos maiores à sua disposição?
Depois baixou a voz e disse ao ouvido do cura:
- Apenas o género de pessoa que não é capaz de levantar um martelo grande. Não é uma questão de força ou de coragem entre os sexos. É uma questão de poder levantar alguma coisa com o esforço dos ombros. Uma mulher corajosa poderia cometer dez assassínios com um martelo leve, sem pestanejar. Não poderia matar uma barata com um martelo pesado.
Wilfred Bohun estava a olhar fixamente para ele com uma espécie de horror hipnotizado, enquanto o padre Brown o escutava com a cabeça um pouco de lado, realmente interessado e atento. O médico prosseguiu com uma sibilante ênfase:
- Porque é que estes idiotas assumem sempre que a única pessoa que detesta o amante da esposa é o marido? Nove vezes em cada dez a pessoa que mais odeia o amante da esposa é a própria esposa. Quem sabe que insolência ou traição ele lhe demonstrara... Olhem para ali.
Fez um gesto momentâneo na direcção da mulher ruiva sentada no banco. Ela levantara finalmente a cabeça e as lágrimas estavam a secar no seu esplêndido rosto. Mas os olhos fixavam-se no cadáver com um olhar eléctrico, penetrante, que tinha qualquer coisa de idiota.
O reverendo Wilfred Bohun fez um gesto hesitante, como se quisesse rejeitar todo o desejo de saber, mas o padre Brown, limpando a manga de algumas cinzas da fornalha impelidas pelo vento, falou no seu tom neutro.
- O senhor é como tantos médicos - disse ele. - A vossa ciência da mente é realmente estimulante. É a vossa ciência física que é completamente impossível. Concordo que a mulher queira matar o co-responsável com muito mais razão do que o peticionário. E concordo que a mulher escolherá sempre um martelo pequeno em vez de um grande. Mas a dificuldade está na impossibilidade física. Nunca mulher alguma poderia ter esmagado completamente o crânio de um homem como aquele. - Depois acrescentou reflectidamente, após uma pausa: - Estas pessoas ainda não compreenderam tudo. O homem usava de facto um capacete de ferro, e a pancada fê-lo em pedaços como vidro partido. Olhem para aquela mulher. Olhem para aqueles braços.
O silêncio deteve-os todos outra vez e então o médico disse, combastante mau humor:
- Pois bem, posso estar errado, há objecções a tudo. Mas continuo a defender o ponto principal. Nenhum homem a não ser um idiota pegaria naquele martelo pequeno se tivesse possibilidade de usar um martelo grande.
Ao ouvir isto, Wilfred Bohun levou as magras e trémulas mãos à cabeça e pareceu agarrar os seus escassos cabelos amarelos. Passado um instante deixou-as cair e exclamou:
- Isso é a palavra que eu queria, o senhor disse a palavra. Depois continuou, dominando a sua perturbação.
- As palavras que disse foram: "Nenhum homem a não ser um idiota pegaria naquele martelo pequeno."
- Sim - disse o médico. - E então?
- Então - disse o cura -, nenhum homem a não ser um idiota o fez. - Os outros olharam-no fixamente e ele prosseguiu numa agitação febril e feminina.
- Sou um padre - exclamou ele sem firmeza -, e um padre não devia derramar sangue. Eu... quero eu dizer que não devia levar ninguém à forca. E agradeço a Deus por ver o criminoso claramente agora... porque é um criminoso que não pode ser enforcado.
- Não o vai denunciar? - perguntou o médico.
- Ele não seria enforcado se eu o denunciasse - respondeu Wilfred, com um sorriso desvairado mas estranhamente feliz.
- Quando fui para a igreja esta manhã encontrei lá um louco rezando, esse pobre Joe, que tem estado enganado toda a vida. Deus sabe o que ele rezou, mas com essa estranha gente não é inacreditável supor que as orações deles sejam todas de pernas para o ar. Muito provavelmente um louco rezaria antes de matar um homem. Quando vi pela última vez o pobre Joe ele estava com o meu irmão. O meu irmão estava a fazer troça dele.
- Cáspite! - exclamou o médico. - Até que enfim, que isto é que é falar, mas como é que explica...
O reverendo Wilfred estava quase a tremer com a excitação da sua própria percepção da verdade.
- Não vêem, não vêem - exclamou ele febrilmente - que essa é a única teoria que abarca as coisas estranhas, que responde a todos os enigmas? Os dois enigmas são o martelo pequeno e pancada grande. O ferreiro podia ter dado a grande pancada, mas não teria escolhido o martelo pequeno. A mulher dele teria escolhido o martelo pequeno, mas não podia ter dado a pancada grande. Mas o louco podia ter feito as duas coisas. Quanto ao martelo pequeno... bem, ele é louco e podia ter pegado em qualquer coisa. Quanto à pancada grande, nunca ouviu dizer, doutor, que um louco no seu paroxismo pode ter a força de dez homens?
O médico inspirou profundamente e disse então:
- Meu Deus, creio que o senhor compreendeu o caso. O padre Brown fixara os olhos no orador muito demorada e firmemente, de forma a provar que os seus grandes olhos de boi cinzentos não eram tão insignificantes como o resto da sua cara. Quando se fez silêncio ele disse, com marcado respeito:
- Senhor Bohun, a sua teoria é a única até agora apresentada que é a prova de água em todas as formas e que é essencialmente inatacável. Por conseguinte, acho que merece que lhe diga, baseando-me no meu conhecimento positivo, que não, é verdadeira. - E comestas palavras o estranho homenzinho afastou-se e olhou outra vez fixamente para o martelo.
- Esse tipo parece saber mais do que deve - segredou o médico num tom rabugento a Wilfred. - Estes padres católicos são diabolicamente astutos.
- Não, não - disse Bohun, com uma espécie de violenta fadiga. - Foi o louco. Foi o louco.
O grupo dos dois clérigos e o médico tinham-se separado do grupo mais oficial que compreendia o inspector e o homem que ele tinha preso. Agora, porém, que o grupo deles se tinha dispersado, ouviram vozes dos outros. O padre olhou para cima tranquilamente e depois olhou para baixo de novo ao ouvir o ferreiro dizer numa voz alta:
- Espero tê-lo convencido, senhor inspector. Sou um homem forte como o senhor diz, mas não podia ter atirado o meu martelo para aqui de Greenford. O meu martelo não tem asas para vir voando oitocentos metros por cima de sebes e montes.
O inspector riu-se cordialmente e disse:
- Não, acho que você pode considerar-se livre desta, apesar de ser uma das coincidências mais estranhas que já presenciei. Só posso pedir-lhe para nos auxiliar a encontrar um homem tão grande e forte como o senhor. Caramba! Você pode ser útil, ainda que fosse só para o segurar! Suponho que não tem nenhuma ideia de quem seja esse homem?
- Posso ter uma ideia - disse o pálido ferreiro -, mas não é um homem. - Depois, vendo os olhos assustados voltarem-se para a sua mulher sentada no banco, pôs a sua enorme mão no ombro dela e disse:
- Nem uma mulher, também.
- O que é que você quer dizer? - perguntou o inspector jocosamente. - Você não acha que as vacas usam martelos, pois não?
- Acho que nenhum ser vivo pegou nesse martelo - disse o ferreiro numa voz abafada. - Acho que o homem morreu sozinho.
Wilfred adiantou-se de repente e olhou para ele com olhos ardentes.
- Quer Você dizer, Barnes - disse a voz aguda do sapateiro -, que o martelo se levantou de repente sozinho e derrubou o homem?
- Oh, os cavalheiros podem olhar e rir-se em silêncio - exclamou Simeon -, os senhores padres que nos dizem aos domingos em que silêncio o Senhor prostrou Senaqueribe. Acredito que Aquele que anda invisível por todas as casas defendeu a honra da minha e prostrou o sedutor morto diante da minha porta. Acredito que a força dessa pancada foi a mesma força que existe num tremor de terra e não foi força menor do que essa.
Wilfred disse, com uma voz completamente indescritível:
- Eu próprio preveni Norman que tomasse cuidado com o raio fulminante.
- Esse agente está fora da minha jurisdição - disse o inspector, com um ligeiro sorriso.
- O senhor não está fora da jurisdição de Deus - respondeu o ferreiro. - Cuide disso. - E, voltando as suas largas costas, entrou em casa.
O agitado Wilfred foi levado embora pelo padre Brown, que tinha uma maneira afável e amiga de lidar com ele.
- Vamos sair deste horrível lugar, senhor Bohun - disse ele.
- Posso visitar a sua igreja? Ouvi dizer que era uma das mais antigas de Inglaterra. Sabe - acrescentou com um trejeito cómico -, nós interessamo-nos por igrejas inglesas antigas.
Wilfred Bohun não sorriu, pois o humor nunca fora o seu ponto forte, mas acenou impulsivamente, pronto a explicar os esplendores góticos a alguém commais probabilidades de manifestar simpatia do que o ferreiro presbiteriano ou o sapateiro ateu.
- Certamente - disse. - Vamos entrar por este lado. - E encaminhou-o para a entrada lateral alta que ficava no cimo de um lance de escadas. O padre Brown estava a subir o primeiro degrau quando sentiu uma mão no ombro e se voltou para ver a figura sombria e magra do médico, de cara ainda mais sombria de suspeita.
- Senhor - disse o médico asperamente. - Parece que o senhor sabe de alguns segredos deste assunto tenebroso. Posso perguntar-lhe se tenciona guardá-los para si?
- Ora, doutor - respondeu o padre, sorrindo muito agradavelmente -, há um motivo muito bom para um homem da minha profissão guardar as coisas para si, quando não tem a certeza delas, e esse motivo é que é constantemente obrigação dele guardá-las para si quando tem a certeza delas. Mas se o senhor acha que eu fui descortesmente reservado consigo, ou seja, comquem for, irei ao extremo limite do meu costume. vou dar-lhe duas grandes sugestões.
- Então, senhor? - disse o médico, sombriamente.
- Primeiro - disse o padre Brown serenamente -, a coisa pertence ao seu ramo de conhecimento. É um problema de ciência física. O ferreiro está enganado, não talvez em dizer que a pancada foi divina, mas certamente em dizer que veio por milagre. Não foi nenhum milagre, doutor, a não ser na medida em que o próprio homem é um milagre, com o seu coração estranho e vil e no entanto meio heróico. A força que esmagou o crânio foi uma força bem conhecida dos cientistas, uma das leis da Natureza mais frequentemente discutidas.
O médico, que estava a olhar para ele com uma atenção carrancuda, apenas disse:
- E a outra sugestão?
- A outra sugestão é esta: - disse o padre - Lembra-se de o ferreiro, apesar de acreditar em milagres, falar desdenhosamente do impossível conto de fadas de o martelo dele ter asas e ter voado meio quilómetro pelo campo?
- Sim - disse o médico -, lembro-me disso.
- bom - acrescentou o padre Brown com um largo sorriso, esse conto de fadas é a coisa mais próxima da verdade que se disse hoje. - E com isso voltou as costas e subiu as escadas compassos pesados atrás do cura.
O reverendo Wilfred, que o esperava, pálido e impaciente, como se esta pequena demora fosse a última gota para os seus nervos, levou-o até ao seu canto favorito da igreja, aquela parte da galeria que ficava mais próxima do tecto de madeira esculpida e iluminado pela maravilhosa janela com o anjo. O pequeno padre católico explorou e admirou tudo exaustivamente, falando sempre alegremente mas em voz baixa.
Quando, no decurso da sua investigação, encontrou a saída lateral e a escada de caracol pela qual Wilfred tinha descido a toda a pressa para encontrar o irmão morto, o padre Brown não desceu mas subiu, com a agilidade de um macaco, e a sua voz clara fez-se ouvir de uma plataforma exterior que ficava na parte de cima.
- Venha cá para cima, senhor Bohun - chamou. - O ar vai fazer-lhe bem. - Bohun seguiu-o e entrou numa espécie de galeria de pedra ou varanda exterior do edifício, da qual se podia ver a planície ilimitada na qual se elevava o pequeno monte, comflorestas contínuas até ao horizonte cor de púrpura e salpicado de aldeias e quintas. Por baixo deles, mas muito pequeno, claro e quadrado, estava o pátio do ferreiro, onde ainda se encontrava o inspector a tirar notas e onde o cadáver jazia como uma mosca esmagada.
- Podia ser o mapa do mundo, não podia? - disse o padre Brown.
- Podia - disse Bohun, muito gravemente, e acenou afirmativamente com a cabeça.
Imediatamente abaixo e em redor deles as linhas do edifício gótico mergulhavam para fora no vazio com uma enjoativa rapidez semelhante ao suicídio. Existe na arquitectura da Idade Média esse elemento de energia titânica que, de qualquer aspecto que possa ser vista, parece estar sempre a passar comtoda a pressa, como o dorso forte de qualquer cavalo enlouquecido. Esta igreja fora talhada de uma vetusta e silenciosa pedra, adornada comvelhos fungos e maculada de ninhos de pássaros. E, no entanto, quando a viam da parte de baixo, ela erguia-se como uma ponta lançada para as estrelas, e quando a viam, como agora, da parte de cima, brotava como uma catarata para um abismo silencioso. Porque estes dois homens na torre estavam sozinhos diante do aspecto mais terrível do Gótico: o monstruoso escorçar e a desproporção, as vertiginosas perspectivas, as visões instantâneas de grandes coisas tornadas pequenas e de pequenas coisas tornadas grandes, uma desordem de pedra no ar. Pormenores de pedra, enormes devido à proximidade, eram realçados em contraste com um desenho de montes e quintas, verdadeiros pigmeus na sua distância. Um pássaro ou uma besta esculpidos numa esquina pareciam um vasto dragão que andava ou voava, destruindo as pastagens e as aldeias lá em baixo. Toda a atmosfera era vertiginosa e perigosa, como se os homens fossem mantidos de pé no ar no meio de asas de espíritos colossais e toda aquela vetusta igreja, tão alta e rica como uma catedral, parecia estar pousada sobre o campo iluminado de sol, como se fosse uma nuvem carregada de chuva.
- Acho que há qualquer coisa de bastante perigoso em estar nestes lugares altos mesmo para rezar - disse o padre Brown. Os lugares altos são feitos para se olhar para eles, não para se olhar deles.
- O senhor quer dizer que uma pessoa pode cair? - perguntou Wilfred.
- Quero dizer que a alma de uma pessoa pode cair, mesmo que o corpo não caia - disse o outro padre.
- Não o compreendo - observou Bohun indistintamente.
- Olhe para o ferreiro, por exemplo - prosseguiu o padre Brown calmamente -, um homem bom, mas não cristão, duro, arrogante, rancoroso. Pois bem, a sua religião escocesa foi feita por homens que rezavam nos montes e nos altos penhascos e que aprenderam a olhar para baixo para o mundo, a menosprezá-lo, em vez de olhar para cima para o céu. A humildade é a mãe dos gigantes. Uma pessoa vê grandes coisas de um vale e só pequenas coisas de um cume.
- Mas... ele não cometeu o crime - disse Bohun tremulamente.
- Não - disse o outro numa voz estranha. - Nós sabemos que não.
Passado um momento prosseguiu, olhando tranquilamente para a planície com os seus pálidos olhos cinzentos.
- Eu conheci um homem que começou por prestar culto com outros diante do altar, mas que se afeiçoou a lugares altos e solitários para rezar, a cantos ou a nichos no campanário ou no pináculo. E uma vez, num desses lugares vertiginosos, onde o mundo todo parecia girar debaixo dele como uma roda, o cérebro dele começou a girar também e ele julgou-se Deus. De tal forma que, apesar de ser um bom homem, cometeu um grande crime.
A cara de Wilfred estava virada, mas as suas mãos ossudas ficaram azuis e brancas ao agarrarem-se ao parapeito de pedra.
- Ele pensou que lhe fora dado julgar o mundo e abater o pecador. Nunca teria tido um pensamento desses se tivesse estado ajoelhado no chão com outros homens. Mas ele via todos os homens a andarem de um lado para o outro como insectos. Viu especialmente um, pavoneando-se mesmo por baixo dele, insolente e evidenciando-se por um chapéu de um verde vivo... um insecto venenoso.
Gralhas gralhavam à volta dos campos do campanário, mas não havia outro ruído até o padre Brown continuar.
- Também tentava ter na mão um dos engenhos mais terríveis da Natureza, quero dizer, a gravidade, esse louco e acelerado ímpeto pelo qual todas as criaturas da terra voam de novo para o seu centro quando libertas. Veja, o inspector está a pavonear-se mesmo por baixo de nós no pátio do ferreiro. Se eu deitasse uma pequena pedra deste parapeito abaixo, a pedra seria como uma bala quando acertasse nele. Se eu deitasse um martelo... mesmo um martelo pequeno...
Wilfred Bohun atirou uma perna para o outro lado do parapeito e o padre Brown agarrou-o um minuto pelo colarinho.
- Não vá por essa porta - disse ele muito suavemente. - . Essa porta vai dar ao inferno.
Bohun cambaleou para trás de encontro à parede e fixou-o com olhos assustadores.
- Como é que sabe tudo isto? - exclamou ele. - O senhor é um demónio?
- Sou um homem - respondeu o padre Brown gravemente.
- E por conseguinte tenho todos os demónios no meu coração. Oiça-me - disse ele, depois de uma curta pausa -, eu sei o que fez, pelo menos posso adivinhar grande parte do que fez. Quando deixou o seu irmão estava atormentado por uma ira justa, a tal ponto que até agarrou num martelo pequeno, semi-inclinado a matá-lo. Recuando, pô-lo em vez disso debaixo do seu casaco e foi a toda a pressa para a igreja. O senhor reza loucamente em muitos sítios, debaixo da janela do anjo, sobre
o terraço por cima e num terraço ainda mais alto, do qual podia ver o chapéu oriental do coronel como se fosse uma barata verde rastejando. Então qualquer coisa estourou na sua alma e o senhor deixou cair o raio de Deus.
Wilfred levou uma mão fraca à cabeça e perguntou em voz baixa:
- Como é que sabia que o chapéu dele parecia uma barata verde?
- Ah, isso - disse o outro, com um vago sorriso -, isso foi senso com um. Mas oiça-me ainda. Eu digo que sei tudo isto, mas mais ninguém o saberá. O próximo passo é seu, eu não darei mais nenhum passo. Selarei este caso com o selo da confissão. Se me perguntar porquê, há muitas razões, e uma só lhe diz respeito. Eu deixo as coisas consigo porque o senhor ainda não foi muito longe no caminho do mal, como acontece com os assassinos. Não contribuiu para atribuir o crime ao ferreiro, quando isso era fácil, ou à mulher dele, quando isso era fácil também. Tentou atribuí-lo ao idiota, porque sabia que ele não poderia sofrer. Isso é uma das cintilações que é minha tarefa encontrar nos assassinos. E agora, desça para a aldeia e siga o seu caminho, livre como o vento, pois eu disse a minha última palavra.
Desceram as escadas de caracol em completo silêncio e saíram para a luz do sol junto do pátio do ferreiro. Wilfred Bohun abriu cuidadosamente a cancela de madeira do pátio e, dirigindo-se ao inspector, disse:
- Quero entregar-me, matei o meu irmão.
CAPÍTULO X
O olho de Apoio
Essa extraordinária cintilação fumosa, simultaneamente uma confusão e uma transparência que é o estranho segredo do rio Tamisa, estava-se a transformar cada vez mais do cinzento para o seu extremo brilhante, quando o sol ascendeu ao zénite sobre Westminster e os dois homens atravessaram a sua ponte. Um dos homens era muito alto e o outro muito baixo, até se podiam fantasticamente comparar com a arrogante torre do relógio do Parlamento e as mais humildes saliências curvas da Abadia, pois o homem baixinho estava vestido de padre. A descrição oficial do homem alto era a de senhor Hercule Flambeau, detective particular, o qual se dirigia para o seu novo escritório num novo lote de apartamentos em frente da entrada da Abadia. A descrição oficial do homem baixinho era a de reverendo J. Brown, vinculado à Igreja de S. Francisco Xavier em Camberwell que regressava de uma cerimónia fúnebre e em Camberwell para ver o novo escritório do seu amigo.
O edifício tinha uma altura de arranha-céus americano e era também do tipo americano na perfeição da sua maquinaria de telefones e elevadores. Mas ainda não estava completamente terminado, nem os seus quadros de pessoal completamente preenchidos. Era apenas habitado por três inquilinos, o escritório por cima de Flambeau estava ocupado, assim como o escritório por baixo dele. Os dois andares mais acima e os três mais abaixo estavam completamente vazios. Mas havia uma coisa muito mais interessante que chamava a atenção nessa nova torre de apartamentos. Exceptuando algumas relíquias de andaimes, um único objecto muito brilhante erguia-se do lado de fora do escritório mesmo por cima do de Flambeau. Era uma enorme esfinge dourada do olho humano, rodeada de raios de ouro e ocupando o espaço de duas ou três janelas de escritório.
- Que diabo é aquilo? - perguntou o padre Brown, e ficou parado.
- Oh, é uma nova religião - disse Flambeau, rindo. - Uma dessas novas religiões que perdoam os nossos pecados dizendo que nunca os tivemos. Parecida com a Ciência Cristã, acho eu. Acontece que um tipo que diz chamar-se Kalon (não sei o nome dele, só sei que não pode ser esse) ocupou o apartamento mesmo por cima de mim. Por baixo de mim estão duas senhoras dactilógrafas e este entusiástico impostor por cima. Chama-se a si próprio o Novo Sacerdote de Apoio e adora o sol.
- É melhor ele tomar cuidado - disse o padre Brown.
- O sol foi o mais cruel de todos os deuses. Mas o que é que significa aquele olho monstruoso?
- Segundo depreendi, uma das teorias deles - respondeu Flambeau - é que um homem pode suportar tudo se a sua mente se mantiver firme. Os dois grandes símbolos deles são o sol e um olho aberto, pois dizem que se um homem for realmente saudável, pode olhar fixamente para o sol.
- Se um homem for realmente saudável, - disse o padre Brown -, não se incomoda a olhar para ele.
- Bem, isso é tudo quanto lhe posso dizer a respeito desta nova religião - disse Flambeau descuidadamente. - Reivindica, é claro, que é capaz de curar todas as doenças físicas.
- É capaz de curar a única doença espiritual? - perguntou o padre Brown com uma curiosidade séria.
- E qual é a única doença espiritual? - perguntou Flambeau, sorrindo.
- Oh, pensar que se está completamente bem - disse o seu amigo.
Flambeau estava mais interessado no tranquilo escritoriozinho por baixo dele do que no extravagante templo por cima. Era um meridional lúcido, incapaz de conceber ser outra coisa além de um católico ou um ateu, e as novas religiões de um tipo luminoso e pálido não o interessavam muito. Mas a humanidade interessava-o sempre, especialmente quando se tratava de gente bonita. Além do mais, as senhoras do andar de baixo eram pessoas originais à sua maneira. O escritório era dirigido por duas irmãs, ambas delgadas e morenas, uma delas alta e dando nas vistas. Tinha um perfil moreno, impetuoso e aquilino e era uma daquelas mulheres em quem se pensa sempre de perfil, como a aresta de contorno nítido de uma arma. Parecia vencer quaisquer obstáculos que se lhe deparassem na vida. Tinha um olhar surpreendentemente brilhante, mas era o brilho de aço e não o de diamantes, e a sua figura esbelta e escorreita tinha um encanto um pouco afectado demais. A irmã mais nova era como a sua sombra encurtada, um pouco mais cinzenta, mais pálida e insignificante. Ambas se vestiam austeramente de preto, compequenos punhos e golas de aspecto masculino. Há milhares destas ásperas e esforçadas senhoras nos escritórios de Londres, mas o interesse destas residia mais na sua posição real do que na aparente.
Porque Pauline Stacey, a mais velha, era herdeira de um brasão e de meio condado, assim como de uma grande riqueza. Tinha sido criada em castelos e jardins, até que uma frígida impetuosidade (própria da mulher moderna) a levara ao que ele considerava ser uma existência mais severa e mais elevada. Não tinha abdicado da sua fortuna, nisso teria havido um abandono romântico ou monástico muito oposto ao seu imperioso utilitarismo. Ela detinha a sua fortuna, para ser utilizada em objectivos sociais práticos. Parte dela tinha-a colocado no seu negócio, o núcleo de um empório de dactilografia modelar, outra parte estava distribuída por várias ligas e causas para o avanço de tal trabalho entre as mulheres. Até Joan, a irmã, compartilhava deste idealismo ligeiramente prosaico, ninguém podia ter bem a certeza. Mas ela seguia a sua chefe com uma afeição canina que era de algum modo mais atraente, com o seu toque de tragédia, do que a dura boa disposição da mais velha. Pois Pauline Stacey não tinha nada a dizer à tragédia, subentendia-se que ela negava a sua existência. A sua rígida rapidez e fria impaciência tinham divertido muito Flambeau na primeira ocasião em que ele entrara para os apartamentos. Demorara-se fora do elevador na entrada, à espera do rapaz do elevador que em geral conduz os visitantes aos vários andares. Mas esta rapariga de olhos brilhantes de falcão recusara aguentar essa espera. Disse rispidamente que sabia tudo a respeito do elevador e que não dependia de rapazes, ou de homens também. Apesar do seu apartamento ser apenas três andares acima, ela conseguiu, nos poucos segundos de subida, fornecer a Flambeau, sem cerimónias, um grande número dos seus pontos de vista fundamentais. Consistiam, de uma forma geral, em que ela era uma mulher trabalhadora moderna e apreciava máquinas de trabalho modernas. Os seus olhos pretos brilhantes resplandeciam com uma raiva abstracta contra aqueles que reprovam a ciência mecânica e reclamam o regresso do romantismo. Toda a gente, dizia ela, devia ser capaz de manejar máquinas, tal como ela era capaz de manejar o elevador. Parecia quase ter-se ofendido com o facto de Flambeau lhe ter aberto a porta do elevador, e aquele cavalheiro subiu para o seu apartamento sorrindo, com sentimentos um pouco desordenados ao lembrar-se de tão irascível auto-suficiência.
Ela tinha certamente um temperamento de tipo mordaz e prático. Os gestos das suas mãos magras e elegantes eram abruptos ou até mesmo destruidores. Uma vez Flambeau entrou no seu escritório por causa de um trabalho de dactilografia e descobriu que ela tinha acabado de atirar para o chão e espezinhado um par de óculos que eram da irmã. Estava já a proferir uma tirada ética sobre "as doentias ideias médicas" e o reconhecimento mórbido de fraqueza implícitos em tais aparelhos. Disse à irmã que não ousasse trazer para ali uma tal porcaria, pouco saudável e artificial. Perguntou-lhe se ela esperava vir a usar as pernas de pau ou peruca ou olhos de vidro, e ao falar os seus olhos brilhavam como um cristal terrível. Flambeau, muito espantado comtal fanatismo, não pôde deixar de perguntar a Miss Pauline (com uma lógica francesa sem rodeios) por que razão um par de óculos era um sinal mais mórbido de fraqueza do que um elevador e por que razão, se a ciência nos pode ajudar nesse esforço, não nos pode ajudar também no outro.
- Isso é tão diferente - disse Pauline Stacey arrogantemente.
- As baterias e os motores e todas essas coisas são marcas de força do homem... sim, senhor Flambeau, e da força das mulheres também! Havemos de experimentar essas grandes máquinas que devoram a distância e desafiam o tempo. Isso é grandioso e esplêndido, isso é realmente ciência. Mas esses sórdidos pertences e emplastros que os médicos vendem... são apenas distintivos de cobardia. Os médicos reparam pernas e braços, como se nós tivéssemos nascido aleijados e escravos doentes. Mas eu nasci livre, senhor Flambeau! As pessoas julgam que precisam destas coisas porque foram educadas no medo em vez de serem educadas no poder e na coragem, tal como as amas tontas dizem às crianças para não olharem para o sol e por isso elas não podem fazê-lo sem piscar os olhos. Mas por que razão por entre as estrelas terá de haver uma que eu não posso ver? O sol não é meu dono e eu hei-de abrir os olhos e olhar para ele sempre que me apetecer.
- Os seus olhos - disse Flambeau com uma saudação estrangeira - ofuscarão o sol. - Ele tinha prazer em elogiar esta beldade estranha e afectada, em parte porque a fazia perder um pouco o domínio de si. Mas ao subir para o seu escritório, respirou fundo e assobiou, dizendo para consigo:
- Então ela já caiu nas mãos desse prestidigitador lá de cima com seu olho dourado. Pois por muito pouco que ele se importasse com a nova religião de Kalon, tinha ouvido falar da sua teoria especial a respeito de olhar para o sol.
Em breve descobriu que o laço espiritual entre os andares por cima e por baixo do dele era íntimo e crescente. O homem que dizia chamar-se Kalon era uma criatura magnífica, digna, no sentido físico, de ser o pontífice de Apoio. Era quase tão alto como Flambeau e muito mais bem parecido, com uma barba dourada, olhos fortes e azuis e uma juba atirada para trás como a de um leão. Estruturalmente era a besta loira de Nietzsche, mas toda a sua beleza animal era intensificada, avivada e suavizada por um genuíno intelecto e espiritualidade. Se ele se parecia com um dos grandes reis saxões, parecia-se com um dos reis que também eram santos. E isso a despeito da incongruência do ambiente que o rodeava, do facto de ele ter um escritório num prédio de Victoria Street, do empregado (um banal jovem de punhos e colarinho) se sentar na entrada, entre ele e o corredor, de o seu nome estar gravado numa placa de metal e do emblema dourado do seu credo estar pendurado na rua na parte de cima do prédio, como o reclame de um oculista. Toda esta vulgaridade não conseguia tirar do homem chamado Kalon a vívida opressão e inspiração que provinham da sua alma e do seu corpo. Um homem na presença deste charlatão sentia-se realmente na presença de um grande homem. Mesmo vestido com a ampla jaqueta de linho que ele usava como fato de trabalho no seu escritório, era uma figura fascinante e formidável, e quando vestido com os seus trajes cerimoniais brancos e coroado como diadema dourado, com os quais saudava diariamente o sol, tinha um aspecto tão esplêndido que o riso das pessoas que passavam na rua lhes desaparecia às vezes nos lábios. Porque três vezes por dia este adorador do sol saía para a sua pequena varanda, em frente de todo o Westminster, para proferir uma litania ao seu brilhante senhor: uma vez ao amanhecer, uma vez ao pôr do Sol e uma vez ao meio-dia. E foi quando o toque do meio-dia ainda vibrava levemente nas torres do Parlamento e na igreja paroquial que o padre Brown, o amigo de Flambeau, olhou para cima e viu pela primeira vez o sacerdote branco de Apoio.
Flambeau já tinha visto o suficiente destas saudações diárias a Febo e precipitou-se para a entrada do alto edifício sem sequer ver se o seu clerical amigo o seguia. Mas o padre Brown, quer por um interesse profissional no ritual quer por um forte interesse pessoal por tolices, parou e olhou fixamente para a varanda do adorador do sol, tal como podia ter ficado parado a ver um espectáculo de fantoches. Kalon, o profeta, já estava de pé, muito direito, comvestes brancas e de mãos levantadas e o som da sua voz estranhamente penetrante proferindo a sua litania solar podia ouvir-se pela movimentada rua abaixo. Já estava no meio dela, os olhos fixos no disco flamejante. É de duvidar que ele visse alguma coisa ou alguém na terra e indubitável que visse um pequeno padre de cara redonda que, lá em baixo no meio da multidão, olhava para cima, para ele, piscando os olhos. Essa era talvez a diferença mais surpreendente entre esses dois homens tão divergentes. O padre Brown não podia olhar para nada sem piscar os olhos, mas o sacerdote de Apoio podia olhar para a luz intensa do meio-dia sem que as pálpebras lhe tremessem.
- Sol - exclamava o profeta. - Estrela que sois demasiadamente grande para ser admitida entre as estrelas! Fonte que brotais serenamente nesse lugar secreto a que se chama espaço. Benfeitor de todas as coisas brancas incansáveis, chamas brancas, flores brancas e cumes brancos. Benfeitor que sois mais inocente do que todos os vossos mais inocentes e tranquilos filhos, pureza primordial, na paz da qual...
Uma agitação e um estrondo como o avanço de um foguete foram trespassados por gritos estridentes e incessantes. Cinco pessoas entraram a correr para dentro dos portões das mansões e três pessoas saíram a correr de lá de dentro, e por um instante ensurdeceram-se umas às outras. A sensação de um horror completamente abrupto pareceu encher metade da rua, por um momento, commás notícias. Más notícias que eram tanto piores quanto ninguém sabia do que se tratava. Duas figuras permaneceram imóveis depois do estampido da agitação: o belo sacerdote de Apoio na varanda lá em cima e o feio sacerdote de Cristo por baixo dele.
Por fim a figura alta e a energia titânica de Flambeau apareceram na entrada das mansões e dominaram a pequena multidão. Falando comtoda a força da sua voz, como uma buzina, ele disse a alguém ou a toda a gente para irem buscar um médico e, ao voltar-se para a apinhada e escura entrada, o seu amigo padre Brown passou despercebido através dela. Mesmo enquanto ele se esquivava e esgueirava através da multidão ainda conseguia ouvir a magnífica melodia do sacerdote solar chamando o deus feliz que é amigo das fontes e das flores.
O padre Brown encontrou Flambeau e umas outras seis pessoas junto do espaço fechado dentro do qual o elevador geralmente descia. Mas o elevador não tinha descido uma coisa que devia ter vindo de elevador.
Durante os últimos quatro minutos Flambeau olhara para essa coisa, vira a cabeça donde tinham saltado os miolos e a figura sangrando da bela mulher que negava a existência da tragédia. Nunca tivera a mais pequena dúvida de que se tratava de Pauline Stacey e, apesar de ter mandado chamar o médico, não tinha a mais pequena dúvida de que ela estava morta.
Não se lembrava com absoluta certeza se gostara ou não gostara dela, havia tanta coisa, tanto para gostar como para não gostar. Mas ela fora uma pessoa para ele e o insuportável patético dos pormenores e do hábito apunhalavam-no comtodos os pequenos punhais da perda. Lembrava-se do seu bonito rosto e dos seus discursos presumidos com uma súbita nitidez secreta que constitui toda a amargura da morte. Num instante, como um raio saído do azul, como um raio saído de nenhuma parte, o belo e provocante corpo tinha sido arremessado violentamente pelo poço aberto do elevador abaixo para encontrar a morte no fundo. Teria sido suicídio? com uma optimista tão insolente parecia impossível. Teria sido assassínio? Mas quem é que poderia assassinar alguém naqueles apartamentos semi-habitados? Numa torrente de palavras roucas que ele pretendia que fossem fortes e que verificou subitamente serem fracas, perguntou onde estava o tal tipo Kalon. Uma voz, habitualmente pesada, calma e cheia, assegurou-o de que Kalon nos últimos quinze minutos estivera na sua varanda lá em cima, adorando o seu Deus. Quando Flambeau ouviu a voz e sentiu a mão do padre Brown, virou a sua cara morena e disse abruptamente:
- Então, se ele esteve todo o tempo lá em cima, quem é que poderia fazê-lo?
- Talvez - disse o outro - possamos ir lá a cima e tentar descobrir. Temos meia hora até que a polícia apareça.
Deixando o corpo da herdeira assassinada ao cuidado dos médicos, Flambeau subiu as escadas a correr para o escritório de dactilografia, verificou que estava totalmente vazio e subiu a correr para o seu. Depois de lá ter entrado, voltou com uma cara diferente e pálida, para junto do seu amigo.
- A irmã dela - disse ele comdesagradável gravidade -, a irmã dela parece que foi dar um passeio.
O padre Brown inclinou a cabeça.
- Ou pode ter ido lá para cima para o escritório do homem do sol - disse. - Se fosse a você ia apenas verificar isso e depois vamos discutir o caso no seu escritório. Não - acrescentou subitamente, como se estivesse a lembrar-se de qualquer coisa -, quando é que passará esta minha estupidez? É claro, no escritório delas lá em baixo.
Flambeau olhou-o fixamente, acompanhou o pequeno padre ao andar de baixo, ao apartamento vazio das Stacey, onde o impenetrável pároco se sentou numa cadeira de couro vermelho mesmo à entrada, da qual podia ver as escadas e os patamares, e esperou. Não esperou muito tempo. Dentro de cerca de quatro minutos três pessoas desceram as escadas, parecidas apenas pela sua solenidade.
A primeira era Joan Stacey, a irmã da mulher morta que, evidentemente, tinha estado lá em cima no andar superior do templo temporário de Apoio; a segunda era o próprio sacerdote de Apoio, o qual, terminada a sua litania, vinha majestosamente pelas escadas vazias abaixo em absoluta magnificência, alguma coisa nos seus mantos brancos, na sua barba e cabelo apartado tinha o ar do Cristo deixando o escritório do pintor Doré; a terceira pessoa era Flambeau, de aspecto sombrio e um tanto ou quanto desnorteado.
Miss Joan Stacey, morena, com um ar tenso e um cabelo prematuramente grisalho, dirigiu-se imediatamente para a sua secretária e pôs os seus papéis em ordem com uma pancada prática. Essa simples acção fez toda a gente recobrar a sanidade mental. Se Miss Stacey era uma criminosa, era uma criminosa impassível. O padre Brown olhou-a durante algum tempo com um estranho sorrisinho e depois, sem tirar os olhos dela, dirigiu-se a outra pessoa:
- Profeta - disse ele, dirigindo-se presumivelmente a Kalon -, gostaria que me falasse demoradamente sobre a sua religião.
- Orgulhar-me-ei de fazê-lo - disse Kalon, inclinando a sua cabeça ainda coroada -, mas não tenho a certeza de o compreender.
- Ora, passa-se desta forma: - disse o padre Brown, na sua maneira francamente irresoluta - ensinaram-nos que se um homem tem verdadeiramente maus princípios, isso será em parte culpa sua. Mas, apesar disso, podemos diferenciar o homem
que insulta a sua consciência tranquila mais ou menos cheia de sofismas. Agora diga-me, pensa realmente que o assassínio é um erro?
- Isto é uma acusação? - perguntou Kalon, muito calmamente.
- Não - respondeu Brown, também suavemente, - isto é o discurso da defesa.
Na longa e alarmante tranquilidade do quarto o profeta de Apoio ergueu-se devagar e realmente era como se fosse o nascer do Sol. Encheu aquele quarto com a sua luz e vida de uma tal forma que uma pessoa sentia que ele podia de uma forma igualmente fácil ter enchido a planície de Salisbury. A sua figura coberta de mantos parecia pendurar em todo o quarto roupagens clássicas, o seu gesto épico parecia estendêlo a mais grandiosas perspectivas, até que a pequena figura de preto do moderno padre parecia ser um defeito e uma intrusão, uma mancha redonda e preta num esplendor da Grécia.
- Encontramo-nos finalmente Caifás - disse o profeta. A sua igreja e a minha são as únicas realidades nesta terra. Eu adoro o sol e o senhor o escurecer do sol. Você é o sacerdote do Deus moribundo e eu o do Deus vivo. O seu trabalho actual de suspeita e difamação é digno do seu hábito e doutrina. Toda a sua igreja não é senão uma polícia negra, sois apenas espiões e detectives procurando arrancar aos homens confissões de culpa, quer por meio de traição quer de tortura. Vós condenais homens por crime, eu condená-los-ei por inocência. Vós convenceste-los do pecado, eu convenci-os da virtude.
"Leitor dos livros do mal, mais uma palavra antes que eu afaste para sempre os seus pesadelos sem base. Não pode nem levemente compreender quão pouco eu me importo se me pode condenar ou não. As coisas a que chama desonra e horrível forca não são para mim mais do que para um adulto um papão dum livro para crianças. O senhor disse que estava propondo um discurso da defesa. Importo-me tão pouco como mundo imaginário desta vida que vou propor-lhe o discurso da acusação. Há apenas uma coisa que pode ser dita contra mim neste caso e sou eu mesmo que o digo. A mulher que está morta era o meu amor e a minha noiva, não da maneira que as suas capelas de lata chamam legítima, mas por uma lei mais pura e severa que não poderá jamais entender. Ela e eu caminhámos por um outro mundo diferente do seu e andámos por lugares de cristal enquanto vocês ca minhavam penosamente através de túneis e corredores de tijolo. Pois bem, eu sei que polícias, teólogos ou outros sempre julgam que onde houve amor em breve haverá ódio, aí tem o primeiro ponto de acusação. Mas o segundo ponto é mais forte, não vos invejo. Não só é verdade que Pauline Stacey me amava, mas também é verdade que nesta mesma manhã, antes de morrer, ela escreveu naquela mesa um testamento deixando-me a mim e à minha nova igreja meio milhão. Vamos, onde estão as algemas? Julgam que me importo com as coisas tolas que vocês me façam? Trabalhos forçados serão apenas como estar à espera dela numa paragem da estrada. A forca será apenas como ir ter comela num carro de corrida.
Ele falava com a autoridade de um orador e Flambeau e Joan Stacey olhavam para ele estupefactos. O rosto do padre Brown parecia exprimir apenas uma extrema aflição. Olhava para o chão com uma ruga de sofrimento na testa. O profeta do sol encostou-se com à vontade à cornija da lareira e prosseguiu:
- Em poucas palavras eu pus diante de vocês toda a minha causa contra mim, a única causa possível contra mim. Em menos palavras ainda, eu desfaço-a em pedaços, de forma que nem um pedaço dela fique. Quanto a ter cometido este crime, a verdade está numa só frase: eu não podia tê-lo cometido. Pauline Stacey caiu deste andar para o rés-do-chão aos cinco minutos depois do meio-dia. Cem pessoas poderão testemunhar no banco das testemunhas e dizer que eu estava na varanda do meu apartamento lá em cima exactamente desde antes do meio-dia até ao meio-dia e um quarto, o tempo habitual das minhas orações públicas. O meu empregado (um jovem respeitável de Clapham, sem nenhuma espécie de ligação comigo) poderá jurar que esteve sentado na minha sala de entrada toda a manhã e que não houve nenhuma comunicação através do escritório. Ele poderá jurar que eu cheguei uns bons dez minutos antes da hora, um quarto de hora antes de qualquer sinal do acidente e que não saí do escritório ou da varanda durante todo esse tempo. Nunca ninguém teve um álibi tão completo: eu podia citar para comparecer no tribunal metade de westminster. Acho melhor pôr as algemas de parte outra vez. O caso está encerrado.
"Mas por último, para que nenhum sopro desta suspeita idiota paire no ar, vou contar-lhes tudo quanto querem saber. Creio saber como a minha infeliz amiga encontrou a morte. Podem, se quiserem, culpar-me disso, ou culpar a minha fé ou filosofia pelo menos. Mas certamente que não poderão prender-me. É bem conhecido de todos os estudantes das verdades mais altas que certos adeptos e iluminati têm, ao longo da história, atingido o poder de levitação, isto é, de serem auto-sustentados no ar. E apenas parte da conquista geral da matéria que é o elemento principal da nossa sabedoria oculta. A pobre Pauline tinha um temperamento impulsivo e ambicioso. Para dizer a verdade, penso que ela se considerava mais profundamente envolvida nos mistérios do que na realidade estava, e ela disse-me muitas vezes, ao descermos juntos no elevador, que se a vontade de uma pessoa fosse suficientemente forte, essa pessoa poderia pairar até lá abaixo tão inofensivamente como uma pena. Acredito solenemente que nalgum êxtase de nobres pensamentos ela tenha tentado o milagre. A sua vontade, ou fé, devem ter-lhe faltado no momento crucial e a lei mais vil da matéria obteve a sua horrível vingança. Aqui está a história toda, meus senhores, muito triste e, como devem pensar, muito arrogante e perversa, mas certamente não criminosa ou de qualquer forma relacionada comigo. Na estenografia dos tribunais de polícia será melhor chamá-la de suicídio. Chamá-la-ei sempre de insucesso heróico para o avanço da ciência e para a escalada lenta do céu.
Era a primeira vez que Flambeau via o padre Brown derrotado. Continuava sentado olhando para o chão com a testa pesarosa e enrugada, como se estivesse envergonhado. Era impossível evitar o sentimento que as palavras aladas do profeta tinham aventado, que aqui estava um profissional mal-humorado, que suspeitava da humanidade, completamente dominado por um mais puro e altivo espírito de liberdade natural e da saúde. Finalmente, ele disse, piscando os olhos como se estivesse aflito fisicamente:
- Pois bem, senhor, se isso é assim, não tem mais nada senão pegar no testamento de que falou e ir-se embora. Gostava de saber onde é que a pobre senhora o deixou.
- Deve estar ali na secretária dela, penso eu - disse Kalon com essa sólida maneira inocente que parecia absolvê-lo completamente. - Ela disse especialmente que iria escrevê-lo esta manhã, e eu vi-a de facto estar a escrever quando subi no elevador para o meu apartamento.
- A porta dela estava aberta nessa altura? - perguntou o padre, com o olhar num canto do tapete.
- Estava - disse Kalon calmamente.
- Ah! Tem estado sempre aberta desde essa altura - disse o outro, e prosseguiu o seu estudo silencioso do tapete.
- Está aqui um papel - disse a severa Miss Joan, numa voz um tanto ou quanto estranha. Dirigira-se para a secretária da irmã junto à entrada da porta e segurava nas mãos uma folha azul de papel almaço.
Tinha no rosto um sorriso azedo que não parecia próprio para tal cena ou ocasião, e Flambeau olhou para ela como sobrolho carregado.
Kalon, o profeta, não se aproximou do papel, com aquela régia inconsciência que o tinha sustentado. Mas Flambeau tirou-o das mãos da senhora e leu-o como maior espanto. Começava, de facto, à maneira formal de um testamento, mas depois das palavras ".... dou e lego em testamento tudo aquilo que eu possuí ao morrer" as letras paravam abruptamente num conjunto de rabiscos e não havia nenhum sinal do nome de qualquer legatário. Flambeau, surpreso, entregou-o ao seu amigo, que o olhou para ele e o deu silenciosamente ao sacerdote do Sol.
Um instante depois, esse alto dignitário eclesiástico, nas suas esplêndidas roupagens que arrastavam pelo chão, atravessou o quarto em dois passos largos e olhava sobranceiro para Joan Stacey, com os olhos saltando-lhe das órbitas.
- Que partidas é que você tem estado aqui a pregar? - exclamou ele. - Isso não foi tudo o que Pauline escreveu.
Ficaram surpreendidos de o ouvir falar numa voz inteiramente nova, com uma agudeza americana. Tinha-se libertado de toda a sua pompa e do seu bom inglês como quem despe tuna camisa.
- Isso é a única coisa que está na secretária dela - disse Joan enfrentando-o firmemente com o mesmo sorriso depreciativo.
De repente o homem irrompeu em blasfémias e cataratas de palavras incrédulas. Havia qualquer coisa de chocante no abandono da sua máscara, era como se a verdadeira cara de uma pessoa tivesse caído.
- Vejam - disse ele em manifesto americano, quando já estava sem fôlego de tanto praguejar. - Eu posso ser um aventureiro, mas você é uma assassina. Sim, meus senhores, aqui está a vossa morte explicada e sem qualquer levitação. A póbre rapariga está a escrever um testamento a meu favor, a sua maldita irmã entra, agarra na caneta, arrasta-a para o poço e atira-a lá para baixo antes de ela poder terminá-lo. Por amor de Deus! Parece-me que afinal de contas as algemas são precisas.
- Como você já disse - respondeu Joan com uma calma desagradável -, o seu empregado é um jovem muito respeitável, que sabe o que é um juramento e ele pode jurar em qualquer tribunal que eu estava lá em cima no seu escritório organizando uns trabalhos de dactilografia cinco minutos antes e cinco minutos depois da minha irmã ter caído. O senhor Flambeau pode dizer que me encontrou lá.
Houve um silêncio.
- Então - exclamou Flambeau -, Pauline estava sozinha quando caiu e foi suicídio.
- Estava sozinha quando caiu - disse o padre Brown -, mas não foi suicídio.
- Então como é que ela morreu? - perguntou Flambeau impacientemente. - Foi assassinada.
- Mas ela estava sozinha - contestou o detective.
- Foi assassinada quando estava sozinha - respondeu o padre.
Os outros todos olharam fixamente para ele mas ele continuou sentado na mesma atitude abatida, com uma ruga na testa redonda e um ar de vergonha impessoal e de desgosto. A voz dele era apagada e triste.
- O que eu quero saber - exclamou Kalon, com uma praga, é quando é que a polícia vem buscar esta cruel e'malvada irmã. Matou a pessoa de família mais próxima e roubou-me meio milhão que era tão sagradamente meu como...
- Vamos, vamos, profeta - interrompeu Flambeau, com uma espécie de sorriso desdenhoso. - Lembre-se que todo este mundo é um mar de nuvens. O hierofante do deus do sol fez um esforço para subir outra vez para o seu pedestal.
- Não é apenas o dinheiro - exclamou ele -, apesar de ele poder provar a causa pelo mundo inteiro. É também pelos desejos da minha querida noiva. Para Pauline tudo isto era sagrado. Aos olhos de Pauline...
O padre Brown levantou-se de repente muito direito, com um tal ímpeto que a sua cadeira caiu atrás dele. Estava mortalmente pálido, mas parecia inflamado de esperança, os olhos brilhantes.
- É isso! - exclamou ele numa voz clara. - Essa é a maneira de começar. Aos olhos de Pauline...
O grande profeta recuou diante do pequeno padre numa quase louca comoção.
- O que é que quer dizer? Como é que se atreve? - exclamou repetidas vezes.
- Aos olhos de Pauline - repetiu o padre, com os seus cada vez mais brilhantes. - Continue, por amor de Deus, continue. O crime mais repugnante que os espíritos malignos jamais instigaram parece mais leve depois da confissão e imploro-lhe que confesse. Continue, continue... Aos olhos de Pauline...
- Deixe-me, demónio! - gritou Kalon, debatendo-se como um gigante agrilhoado. - Quem é você, maldito espião, para tecer as suas teias de aranha à minha volta e espiar e perscrutar? Deixè-me.
- Quer que eu o detenha? - perguntou Flambeau, saltando em direcção à saída, pois Kalon já tinha aberto a porta de par em par.
- Não, deixe-o passar - disse o padre Brown, com um estranho suspiro profundo, que parecia vir das profundezas do universo. - Deixe Caim passar, pois ele pertence a Deus.
Houve um longo silêncio no quarto depois de Kalon se ter ido embora, que foi, para a disposição feroz de Flambeau, uma longa agonia de interrogação. Miss Joan Stacey arrumava muito calmamente os papéis na sua secretária.
- Padre - disse finalmente Flambeau -, é meu dever, e não apenas curiosidade minha, é meu dever descobrir, se puder, quem cometeu o crime.
- Que crime? - perguntou o padre Brown.
- Aquele de que estamos a tratar, é claro - respondeu o seu impaciente amigo.
- Estamos a tratar de dois crimes - disse Brown -, crimes de uma importância muito diferente... e cometidos por criminosos muito diferentes.
Miss Joan Stacey, depois de ter reunido e guardado os seus papéis, fechou a sua gaveta à chave. O padre Brown prosseguiu, reparando tão pouco nela quanto ela reparava nele.
- Os dois crimes - observou ele -, foram cometidos contra a mesma fraqueza da mesma pessoa, numa luta pelo dinheiro dela. O autor do crime mais importante viu-se contrariado pelo crime menos importante, o autor do crime menos importante ficou com o dinheiro.
- Oh, não proceda como um conferencista - gemeu Flambeau -, explique-se em poucas palavras.
- Posso explicar numa só palavra - respondeu o amigo.
Miss Joan Stacey pôs na cabeça, diante de um pequeno espelho, o seu austero chapéu preto, com um sombrio e austero franzir de sobrancelhas e, enquanto prosseguia a conversa, pegou na carteira e no guarda-chuva e saiu do quarto sem pressa.
- A verdade está numa única e breve palavra - disse o padre Brown. - Pauline Stacey era cega.
- Cega! - repetiu Flambeau, e ergueu-se devagar em toda a sua enorme estatura.
- Era um mal de família - prosseguiu Brown. - A irmã teria usado óculos se Pauline tivesse deixado, mas era sua a filosofia especial ou mania de que uma pessoa não deve encorajar tais enfermidades, entregando-se a elas. Ela não reconhecia a névoa nos olhos, ou tentava afastá-la comforça de vontade. Por isso os seus olhos iam ficando cada vez pior com o esforço, mas o esforço mais nocivo ainda estava para vir. Veio com este precioso profeta, ou o que quer que seja que ele se chame a si próprio, que a ensinou a olhar fixamente para o sol escaldante, a olho nu. Chamava-se aceitar Apoio. Oh, se estes novos pagãos fossem apenas antigos pagãos, seriam um pouco mais sábios! Os antigos pagãos sabiam que a simples adoração desprotegida da Natureza tem um lado cruel. Sabiam que o olho de Apoio pode destruir e cegar.
Houve uma pausa e o padre continuou numa voz suave e até débil.
- Quer aquele diabo a tenha cegado deliberadamente quer não, não há dúvida de que ele a matou deliberadamente pela sua cegueira. A simplicidade do crime é repugnante. Você sabe que ele e ela subiam e desciam naquele elevador sem ajuda de ninguém, sabe também como os elevadores andam suave e silenciosamente. Kalon levou o elevador até ao andar da rapariga e viu-a, através da porta aberta, escrevendo, à sua maneira vagarosa e cega, o testamento que ela lhe tinha prometido. Disse-lhe alegremente que tinha o elevador pronto para ela e que ela podia-sair quando estivesse pronta. Depois carregou no botão e subiu silenciosamente para o seu andar, atravessou o escritório para a varanda e encontrava-se a rezar sem perigo diante da rua apinhada, quando a pobre rapariga, uma vez terminado o seu trabalho, correu alegremente para onde o seu amante e o elevador que deviam acolhê-la e entrou...
- Não - exclamou Flambeau.
- Ele devia ter recebido meio milhão por ter carregado naquele botão - continuou o pequeno padre na voz apagada com a qual falava de tais horrores -, mas isso falhou completamente. Falhou completamente porque havia outra pessoa que também queria o dinheiro e que também sabia o segredo a respeito da cegueira da pobre Pauline. Havia uma coisa naquele testamento em que acho que ninguém reparou: apesar de estar inacabado e sem assinatura, a outra Miss Stacey e uma empregada dela já o tinham assinado como testemunhas. Joan tinha assinado primeiro, dizendo que Pauline podia acabá-lo depois, com um desprezo tipicamente feminino pelas formalidades legais. Logo, Joan queria que a irmã assinasse o testamento sem testemunhas reais. Porquê? Pensei na cegueira e tive a certeza de que ela queria que Pauline assinasse sozinha porque não queria que ela assinasse de todo.
Pessoas como as Stacey usam sempre canetas de tinta permanente, mas isto era especialmente costume de Pauline. Por hábito, e pela sua grande força de vontade e memória, ela ainda era capaz de escrever quase tão bem como se visse, mas não percebia quando é que a caneta precisava de tinta. Daí as canetas dela serem cuidadosamente cheias de tinta pela irmã... todas excepto esta caneta. Esta não foi cheia pela irmã, os restos de tinta ainda aguentaram durante algumas linhas e depois falharam completamente. E o profeta perdeu meio milhão de libras e cometeu um dos mais brutais e brilhantes assassínios da história da humanidade para nada.
Flambeau foi até à porta aberta e ouviu a polícia subindo as escadas. Voltou-se e disse:
- Deve ter seguido tudo diabolicamente de perto para poder descobrir o crime de Kalon em dez minutos.
O padre Brown teve uma espécie de sobressalto.
- Oh, o crime dele - disse -, não, tive de seguir de perto Miss Joan e a caneta de tinta permanente. Mas eu sabia que Kalon era o criminoso antes de chegar à porta da frente.
- Você deve estar a brincar! - exclamou Flambeau.
- Estou a falar muito a sério - respondeu o padre. - Digo-lhe que sabia que ele o tinha cometido antes de saber o que é que ele tinha cometido.
- Mas porquê?
- Esses pagãos estóicos - disse o padre Brown reflectidamente - falham sempre pela sua força. Houve um estrondo e um grito na rua e o sacerdote de Apoio não se sobressaltou nem olhou em redor. Eu não sabia o que era, mas sabia que ele estava à espera disso.
CAPÍTULO XI
O sinal da espada quebrada
Os milhares de braços da floresta eram cinzentos e os seus milhões de dedos eram prateados. Num céu de ardósia de um verde-azulado escuro, as estrelas eram frias e brilhantes como gelo estilhaçado. Toda aquela região campestre cheia de densas florestas e escassamente povoada estava endurecida com uma penetrante quebradiça geada. As escuras covas entre os troncos de árvores pareciam cavernas negras, sem fundo, desse cruel inferno escandinavo, um inferno de incalculável frio. Mesmo a torre de pedra quadrada da igreja parecia ser das regiões da noite até ao ponto de ser pagã, como se fosse uma torre bárbara no meio das rochas marítimas da Islândia. Era uma noite estranha para uma pessoa explorar um cemitério. Mas, por outro lado, talvez valesse a pena explorá-lo.
O cemitério erguia-se abruptamente das cinzentas terras não cultivadas da floresta numa espécie de montículo ou saliência de relvado verde que parecia cinzento à luz das estrelas. A maior parte das sepulturas dispunham-se num declive e o caminho que ia ter à igreja era tão íngreme como uma escada. No topo do monte, na parte de terreno plano e proeminente, erguia-se o monumento que tornava o lugar afamado. Contrastava estranhamente com as sepulturas simples em redor, pois era obra de um dos maiores escultores da Europa moderna e no entanto a sua fama era imediatamente esquecida perante a fama do homem cuja imagem ele tinha esculpido. Mostrava, através de traços do pequeno lápis de prata da luz das estrelas, a figura maciça de metal, de um soldado reclinado, as mãos fortes fechadas numa perpétua adoração, a grande cabeça descansando numa espingarda. A venerável cara tinha uma barba ou, antes, umas suíças à maneira do velho e pesado coronel Newcome. A farda, apesar de ser sugerida por alguns traços simples, pertencia à guerra moderna. Do seu lado direito encontrava-se uma espada, com a extremidade quebrada, do lado esquerdo encontrava-se uma Bíblia. Em ardentes tardes de Verão vinham vagonetas cheias de americanos e suburbanos cultos para ver a sepultura, mas mesmo então eles achavam que a vasta terra de florestas, com a sua cúpula grossa, onde se erguia o cemitério e a igreja, era um lugar estranhamente incaracterístico e abandonado. Nesta escuridão gélida do meio do Inverno, era de pensar que ele ficasse sozinho com as estrelas. No entanto, no silêncio dessas densas florestas, uma cancela de madeira rangeu e duas figuras escuras vestidas de preto subiram o pequeno caminho que ia dar ao túmulo.
Tão ténue era essa frígida luz das estrelas que nada podia ser observado neles, a não ser que, embora ambos vestissem de preto, um dos homens era enormemente alto e o outro (talvez por contraste) era surpreendentemente pequeno. Subiram até ao grande túmulo esculpido do guerreiro histórico e ficaram a olhá-lo durante alguns minutos. Não havia nenhum ser humano, nem talvez nenhum ser vivo, numa área muito grande em redor e uma imaginação mórbida bem poderia interrogar-se se eles próprios seriam humanos. Em qualquer caso o início da conversa deles podia parecer estranho. Após o silêncio inicial, o homem baixo disse ao outro:
- Onde é que um homem sábio esconde um seixo? E o homem alto respondeu em voz baixa:
- Na praia.
O homem pequeno acenou afirmativamente com a cabeça e depois de um pequeno silêncio disse:
- Onde é que um homem sábio esconde uma folha? - E o outro respondeu:
- Na floresta.
Houve novo silêncio e em seguida o homem alto prosseguiu:
- Você quer dizer que quando um homem sábio precisa de esconder um diamante autêntico é sabido que ele o esconde no meio de diamantes falsos?
- Não, não - disse o homem baixo com uma risada. - Vamos esquecer o passado.
Bateu com os pés frios no chão durante um segundo ou dois e depois disse:
- Não estou a pensar nisso, mas numa outra coisa; uma coisa bastante estranha. Acenda um fósforo, por favor.
O homem alto remexeu no bolso e em breve um riscar e uma chama trémula pintaram de dourado toda a parte plana do monumento. Nele estavam gravadas as conhecidas palavras que tanto americanos tinham lido reverentemente: "Dedicado à Memória do General Sir Arthur St. Clare, Herói e Mártir, Que Sempre Venceu os Seus Inimigos e Sempre os Tratou com Indulgência e Foi Por Fim Traiçoeiramente Assassinado Por Eles. Que Deus, em Quem Ele Confiava, o Recompense e o Vingue." O fósforo queimou os dedos do homem alto, ficou preto e caiu. Ele estava para acender outro quando o homem pequeno o impediu.
- Está bem, Flambeau, meu velho, vi o que queria. Ou antes, não vi o que não queria. E agora temos de andar dois quilómetros e meio pela estrada até à próxima estalagem e vou tentar contar-lhe tudo a este respeito. Pois Deus sabe que um homem deve ter à sua disposição uma lareira e cerveja quando nos ousa contar uma história destas.
Desceram o íngreme caminho, tornaram a fechar a cancela ferrugenta e seguiram com um andar de passos pesados e sonantes pela estrada da gelada floresta. Tinham andado bem uns quinhentos metros quando o homem mais baixo falou novamente. Disse:
- Sim, mas o homem sábio esconde um seixo na praia. Mas o que é que ele faz se não houver praia? Você sabe alguma coisa da grande desgraça de St. Clare?
- Não sei nada a respeito de generais ingleses, padre Brown
- respondeu o homem alto rindo -, apesar de saber um pouco a respeito de polícias ingleses. Só sei que você me arrastou para todos os santuários deste tipo, seja ele quem for. Leva uma pessoa a pensar que ele foi enterrado em seis lugares diferentes. Já vi um monumento comemorativo do general St. Clare na Abadia de Westminster, vi uma estátua equestre do general St. Clare no Embankment, vi um medalhão do general St. Clare na rua em que nasceu e outro na rua em que ele vivia, e agora você arrasta-me, depois de anoitecer, para ver o caixão dele, no cemitério da aldeia. Começo a estar um bocado farto da sua personalidade grandiosa, especialmente porque não sei de todo quem ele era. O que é que você está à procura em todas essas criptas e esfinges?
- Estou apenas à procura de uma palavra - disse o padre Brown. - Uma palavra que não está lá.
- Então - perguntou Flambeau -, vai contar-me qualquer coisa sobre isso.
- Tenho de dividi-la em duas partes - observou o padre. Primeiro está o que toda a gente sabe e depois está o que eu sei.
Ora, o que toda a gente sabe é pouco, e bastante simples. E é também completamente falso.
- Você tem razão - disse alegremente o homem alto chamado Flambeau. - Comecemos pelo lado falso. Comecemos por aquilo que toda a gente sabe, e que não é verdade.
- Se não é totalmente falso, é pelo menos muito inadequado
- continuou Brown -, pois tudo o que o público conhece comprecisão é isto: o público sabe que Arthur St. Clare era um grande e bem sucedido general inglês. Sabe que depois de esplêndidas mas cuidadosas campanhas, tanto na índia como em África, estava a com andar as suas tropas contra o Brasil quando o grande patriota brasileiro Olivier lançou o seu ultimato. Sabe que nessa ocasião St. Clare, com uma força militar muito pequena, atacou Olivier que tinha uma força muito grande e foi capturado depois de uma resistência heróica. E sabe que depois da sua captura e com a aversão do mundo civilizado, St. Clare foi enforcado na árvore mais próxima. Foi encontrado aí, depois dos brasileiros se terem retirado, com a sua espada quebrada pendurada à volta do pescoço.
- E essa história popular é falsa? - sugeriu Flambeau.
- Não - disse o amigo calmamente -, essa história é verdadeira, mas não é toda verdade.
- Bem - disse Flambeau -, mas se a história popular é verdadeira, qual é o mistério?
Passaram por muitas centenas de árvores cinzentas e fantasmagóricas antes de o padre baixinho responder. Mordeu então pensativamente um dedo e disse:
- O mistério é um mistério de psicologia, ou antes, é um mistério de duas psicologias. Nesse caso brasileiro, dois dos mais famosos homens da história moderna agiram em desacordo com a sua natureza. Repare, Olivier e St. Clare eram os dois heróis... A velha história, e não há engano possível; foi como a luta entre Heitor e Aquiles. Ora o que é que você diria de um caso em que Aquiles era tímido e Heitor traiçoeiro?
- Continue - disse o homem alto impacientemente, enquanto o outro mordia o dedo.
- Sir Arthur St. Clare era um soldado do velho estilo religioso, o estilo que nos salvou durante o Motim - continuou Brown. - Foi sempre mais partidário do dever do que da bravura, e apesar de toda a sua coragem pessoal era decididamente um chefe prudente e que se indignava, em especial, quanto à perda desnecessária de soldados. No entanto, na sua última batalha, ele tentou algo que mesmo um bebé podia ver que era absurdo. Não é necessário ser-se um estratega para ver que isso era tão louco como o vento tal como não é necessário ser-se um estratega para uma pessoa se afastar do caminho de um autocarro. Bem, aqui está o primeiro mistério: o que terá acontecido à cabeça do general inglês? O segundo enigma é: o que terá acontecido ao coração do general brasileiro? O presidente Olivier podia ser chamado um visionário ou um estorvo, mas mesmo os seus inimigos reconheciam que ele era magnânimo até ao ponto de ter uma conduta quixotesca. Quase todos os prisioneiros que capturou foram libertados ou mesmo cumulados de benefícios. Homens que o tinham realmente prejudicado voltavam comovidos pela sua simplicidade e doçura. Por que diabo se teria ele diabolicamente vingado apenas uma vez na vida e no caso, por causa de um ataque especial que não o podia ter prejudicado. Bem, aqui tem. Um dos homens mais avisados do mundo agiu como um idiota sem nenhuma razão. Um dos melhores homens do mundo agiu como um demónio sem nenhuma razão. Isso é toda a história, em poucas palavras, e deixo-lha consigo, meu rapaz.
- Não deixa, não - disse o outro, resfolegando. - Eu deixo-a consigo e você conte-me tudo a esse respeito.
- Bem - prosseguiu o padre Brown -, não é justo dizer que a impressão pública é exactamente a que eu acabei de contar, sem acrescentar que aconteceram duas coisas desde então. Não posso dizer que esclareceram seja o que for, porque ninguém consegue que elas façam sentido. Mas obscureceram o caso de uma maneira nova, em novas direcções. A primeira foi esta. O médico da família dos St. Clare zangou-se com a família e começou a publicar uma violenta série de artigos, nos quais dizia que o falecido general era um maníaco religioso, mas tanto quanto se sabe da história, isso queria dizer pouco mais do que ser um homem religioso. De qualquer maneira, a história fracassou. Todos sabiam, claro, que St. Clare tinha algumas das excentricidades da religiosidade puritana. O segundo incidente foi muito mais impressionante. No infeliz e desamparado regimento que fez esse temerário ataque no Rio Preto havia um certo capitão Keith, que nessa altura estava noivo da filha de St. Clare, comquem depois veio a casar. Foi um dos que foi capturado por Olivier e, como todos os outros, excepto o general, parece ter sido generosamente tratado e prontamente libertado. Uns vinte anos mais tarde este homem, então tenente-coronel Keith, publicou uma espécie de autobiografia chamada "Um oficial inglês na Birmânia e no Brasil". No lugar em que o leitor procura ansiosamente um relato do mistério do desastre de St. Clare, podem ser encontradas as seguintes palavras: "Por toda a parte neste livro descrevi as coisas exactamente como elas ocorreram, defendendo como defendo a antiga opinião de que a Inglaterra já tem idade suficiente para tomar conta de si própria. A excepção que vou abrir diz respeito a esse assunto da derrota junto ao Rio Preto, e as minhas razões, se bem que privadas, são honestas e muito fortes.
"Acrescento, no entanto, o que se segue, a fim de fazer justiça à memória de dois homens ilustres. O general St. Clare tem sido acusado de incapacidade nesta ocasião, eu posso pelo menos testemunhar que esta acção, devidamente compreendida, foi uma das mais brilhantes e inteligentes de toda a sua vida. O presidente Olivier, através da mesma informação, é acusado de uma injustiça selvagem. Acho que é devido à honra de um inimigo dizer que ele agiu nesta ocasião commais ainda do que os seus característicos bons sentimentos. Posso assegurar aos meus compatriotas que St. Clare não era de forma alguma tão louco nem Olivier tão cruel quanto pareciam. Isto é tudo quanto tenho a dizer. Nenhuma razão deste mundo me induzirá a acrescentar qualquer outra palavra."
Uma grande lua gelada como uma lustrosa bola de neve começou a aparecer através do emaranhado de galhos diante deles e à luz desta o narrador tinha conseguido refrescar a memória que tinha do texto do capitão Keith a partir de um pedaço de papel impresso. Ao dobrá-lo e metê-lo outra vez na algibeira Flambeau levantou a mão num gesto francês.
- Espere um pouco, espere um pouco - exclamou ele, muito excitado. - Acho que posso adivinhar logo à primeira.
Continuou a andar, a cabeça negra e o pescoço de touro atirados para a frente como um homem disputando uma corrida. O pequeno padre, divertido e interessado, tinha alguma dificuldade em caminhar depressa ao lado dele. Mesmo adiante deles as árvores recuavam um pouco para a direita e para a esquerda e a estrada estendia-se descendo através de um vale iluminado pela lua, até que se precipitava como um coelho na parede de outra floresta. A entrada para a floresta mais longínqua parecia pequena e redonda, como um buraco negro de um distante túnel de caminho-de-ferro. Mas foi só dentro de umas centenas de metros e abrindo muito a boca como uma caverna que Flambeau falou outra vez. .
- Descobri - exclamou ele por fim, batendo na coxa com a sua grande mão. - Quatro minutos a pensar e posso contarlhe toda a história.
- Está bem - concordou o amigo. - Conte-a. Flambeau levantou a cabeça mas baixou a voz.
- O general St. Clare - disse ele - vinha de uma tamilia em que a loucura era hereditária e o seu único objectivo era que a filha não o soubesse e até, se possível, o seu futuro genro. Com razão ou sem ela, pensou que o colapso final estava próximo e resolveu suicidar-se.
"No entanto, o suicídio vulgar iria dar a conhecer em toda a parte a ideia que ele temia. Ao aproximar-se a campanha as nuvens tornaram-se mais densas no cérebro dele e, porém, num momento de loucura sacrificou o seu dever publico ao privado Precipitou-se temerariamente na batalha, esperando cair morto ao primeiro tiro. Quando se apercebeu de que apenas tinha sido capturado e desacreditado, a bomba encerrada no seu cérebro estourou e ele partiu a própria espada e enforcou-se.
Olhou firmemente para a fachada cinzenta da floresta à sua frente, com a sua única abertura negra, como a boca de uma sepultura, para a qual o caminho deles se lançava. Talvez alguma coisa ameaçadora na estrada assim repentinamente engolida tivesse reforçado a sua vívida visão da tragédia, pois estremeceu.
- Uma história horrível - repetiu o padre com a cabeça curvada-, mas não é a verdadeira história.
Depois atirou a cabeça para trás com uma espécie de desespero e exclamou:
- Oh, quem me dera que fosse.
O alto Flambeau voltou-se para ele e olhou-o fixamente.
- A sua história é uma história limpa - exclamou o padre Brown, profundamente comovido. - Um a história doce, pura, honesta, tão clara e branca como a lua. A loucura e o desespero são suficientemente inocentes. Há coisas piores, Flambeau.
Flambeau olhou loucamente para a lua assim invocada e do lugar em que ele se encontrava um negro ramo de árvore curvava-se exactamente como o chifre de um demónio.
- Padre! Padre! - exclamou Flambeau com o gesto trances, e dando um passo ainda mais rapidamente para a frente.
- Quer dizer que foi pior do que isso.
- Pior do que isso - disse o outro como se fosse um eco grave. E penetraram no claustro negro das florestas, que passava por eles como uma sombria tapeçaria de troncos, como se fosse um corredor escuro num sonho.
Encontraram-se em breve nas mais secretas entranhas da floresta e sentiam junto deles a folhagem, que não conseguiam ver, quando o padre disse outra vez:
- Onde é que um homem sábio esconde uma folha? Na floresta. Mas o que é que ele faz se não houver floresta?
- Bem... bem - exclamou Flambeau, irritado -, o que é que ele faz?
- Deixa crescer uma floresta para esconder nela a folha disse o padre numa voz obscura. - Um pecado terrível.
- Olhe lá - exclamou o amigo, impaciente, pois a floresta escura e as obscuras afirmações enervavam-no um pouco. - Vai contar-me esta história ou não? Que outros testemunhos existem para continuar?
- Há três testemunhos - disse o outro - que eu descobri por aí e vou apresentá-los pela ordem lógica e não pela ordem cronológica. Em primeiro lugar, a nossa fonte autorizada para o resultado e ocorrência da batalha reside nos próprios despachos de Olivier, que são bastante lúcidos. Ele estava entrincheirado comdois ou três regimentos nas elevações que se estendiam até ao Rio Preto, tendo, do outro lado, terreno mais baixo e pantanoso. Para além deste havia um campo que se erguia suavemente, no qual estava o primeiro posto avançado dos ingleses, protegido por outros que se encontravam, no ^entanto, consideravelmente na sua retaguarda. As forças britânicas na sua totalidade eram em número muito superior, mas este regimento em especial encontrava-se suficientemente distante da sua base para fazer comque Olivier considerasse o plano de atravessar o rio para o liquidar. Ao .pôr do Sol, no entanto, decidira manter a sua posição, que era especialmente forte. Ao romper do dia, na manhã seguinte, ficou estupefacto ao ver que este punhado de ingleses totalmente desapoiados na sua retaguarda tinham atravessado o rio, metade estacionados junto à ponte, à direita, a outra metade num vau mais acima e que se concentravam sobre a margem pantanosa que ficava abaixo dele.
- Que eles tentassem um ataque com um numero de homens daquele contra tal posição já era bastante inacreditável, mas Olivier observou uma coisa ainda mais extraordinária, pois em vez de tentarem apoderar-se de um terreno mais sólido, este louco regimento, tendo colocado o rio na sua retaguarda por meio de um louco ataque, nada mais fez, a não ser ficar ali preso no lodo como moscas no melaço. É desnecessário dizer que os brasileiros abriram grandes brechas neles com a artilharia, a que eles só podiam responder com corajosos mas reduzidos tiros de espingarda. No entanto, nunca cederam, e o breve relatório de Olivier termina com uma homenagem ao místico valor daqueles imbecis. "Os nossos soldados avançaram finalmente", escreve Olivier, "e impeliram-nos para o rio. Capturámos o próprio general St. Clare e vários outros oficiais. O coronel e o major tinham ambos morrido no campo de batalha. Não posso deixar de dizer que poucos espectáculos tão admiráveis podem ter sido observados na história como esta derradeira resistência deste extraordinário regimento. Oficiais feridos pegando nas espingardas dos soldados mortos e o próprio general defrontando-nos a cavalo de cabeça descoberta e com uma espada quebrada." Quanto ao que aconteceu ao general depois, Olivier permanece tão silencioso como o capitão Keith.
- Bem - resmungou Flambeau -, continue como testemunho seguinte. . .
- O testemunho seguinte - disse o padre Brown - levou algum tempo a encontrar, mas não vai levar muito tempo a contar Encontrei finalmente num albergue em Lmcolnshire Fens um velho soldado que não só tinha sido ferido no Rio Preto como tinha assistido aos últimos momentos do coronel do regimento. Este último era um tal coronel Clancy, um touro irlandês, e parece que morreu tanto de raiva como das balas. Em qualquer caso não tinha sido responsável por aquele ridículo ataque, este deve ter-lhe sido imposto pelo general. As suas ultimas e edificantes palavras, segundo o meu informador, foram estas- "E aí vai esse velho burro maldito, com a ponta da espada cortada. Quem me dera que fosse a cabeça dele." Você repare que toda a gente parece ter reparado no pormenor da espada partida, apesar da maior parte das pessoas a considerarem da maneira mais reverente do que o falecido coronel Clancy. E agora vamos ao terceiro fragmento.
O caminho que tomavam através da floresta começou a subir, e Brown parou um pouco para retomar o fôlego antes de prosseguir. Depois continuou da mesma maneira metódica:
- Há um ou dois meses apenas, um certo oficial brasileiro morreu em Inglaterra, tendo-se zangado com Olivier e deixado o seu país. Era uma figura muito conhecida, tanto aqui como no continente, um espanhol chamado Espado. Conheci-o pessoalmente, era um velho janota de cara amarela, com um nariz adunco. Por várias razões particulares tive autorização para ver os documentos que ele deixou: era católico, claro, e estive com ele até ao final. Nada do que lhe pertencia poderia esclarecer esse negro caso de St. Clare, excepto cinco ou seis cadernos vulgares preenchidos como diário de algum soldado inglês. Posso apenas supor que este diário foi encontrado pelos brasileiros na posse de um dos que tinham morrido. De qualquer maneira, terminava abruptamente na noite anterior à batalha.
Mas a descrição do último dia de vida desse pobre tipo vale certamente a pena ser lida. Tenho-a comigo, mas está demasiado escuro para a lermos aqui, por isso vou fazer-lhe o resumo dela. A primeira parte destas anotações está cheia de piadas, comcerteza lançadas pelos homens a alguém chamado Abutre. Não parece que esta pessoa fosse um dos soldados, nem sequer um inglês nem referido exactamente como pertencente ao inimigo. Parece antes ser algum mensageiro local e não-combatente, talvez um guia ou jornalista. Tinha entrevistas particulares com o velho coronel Clancy, mas fora mais frequentemente visto a falar com o major. De facto, o major é uma figura proeminente na narrativa deste soldado. Um homem magro, de cabelo escuro, chamado Murray, um homem do Norte da Irlanda, um puritano. Havia referências contínuas ao contraste entre a austeridade deste homem do Ulster e a sociabilidade do coronel Clancy. Havia também uma piada a respeito do Abutre usar roupa colorida.
Mas todas estas frivolidades foram interrompidas pelo que pode chamar-se o toque de clarim. Atrás do acampamento militar inglês, e quase paralelo ao rio, estendia-se uma das poucas grandes estradas do distrito. A oeste a estrada fazia uma curva em direcção ao rio, que atravessava pela ponte já mencionada. A leste a estrada estendia-se para trás para as regiões ermas e, a uns três quilómetros e tal para diante, estava o posto avançado dos ingleses. Desta direcção nesse fim de tarde via-se um resplendor e um tropel de cavalaria ligeira, na qual mesmo o simples autor do diário pôde reconhecer comespanto o general como seu estado-maior. Montava o seu grande cavalo branco que você já viu tantas vezes em jornais ilustrados e em pinturas da Academia, e pode ter a certeza de que a saudação que lhe fizeram não foi meramente cerimoniosa Ele, pelo menos, não perdeu nenhum tempo com formalidades, mas, saltando imediatamente do seu cavalo, misturou-se como grupo de oficiais e começou a falar num tom enfático e confidencial. O que mais impressionou o nosso amigo autor do diário foi a sua disposição especial para discutir assuntos com o major Murray mas, na realidade, tal escolha não era de maneira nenhuma extraordinária. Os dois homens eram feitos para simpatizarem um como outro, eram homens que "liam a Bíblia", eram ambos do tipo militar Evangélico. Seja como for, é certo que quando o general montou outra vez no seu cavalo ainda estava a falar animadamente com Murray, e que ao dirigir o seu cavalo devagar pela estrada abaixo em direcção ao rio, o alto homem do Ulster continuava a caminhar junto do cavalo dele numa discussão acalorada. Os soldados observaram os dois até eles desaparecerem, atrás de um arvoredo, onde a estrada se dirigia para o rio. O coronel voltara para a sua tenda e os soldados para os seus piquetes. O homem do diário demorou-se ainda durante uns quatro minutos e viu um espectáculo maravilhoso. "O grande cavalo branco que marchara devagar pela estrada abaixo, como marchara em tantos desfiles, galopava pela estrada acima em direcção a eles como se estivesse louco para ganhar uma corrida. A princípio julgaram que tinha fugido com o homem às suas costas, mas em breve viram que o general um esplêndido cavaleiro, era o próprio a incitá-lo a cavalgar a toda a brida. Cavalo e cavaleiro aproximaram-se deles como um furacão e em seguida, refreando o cambaleante cavalo, o general virou para eles uma cara ardente e chamou o coronel, como uma trombeta capaz de acordar os mortos."
- Imagino que todos os acontecimentos dessa catástrofe se esconderam uns atrás dos outros nas mentes dos soldados como na do nosso amigo autor do diário. com a excitação entorpecida de um sonho, encontraram-se ocupando os seus postos e ficaram a saber que se ia proceder imediatamente a um ataque para o outro lado do rio. O general e o major, dizia-se, tinham encontrado qualquer coisa na ponte e havia apenas tempo para atacar e salvar a vida. O major tinha voltado para trás imediatamente para chamar a reserva estacionada atrás ao longo da estrada. Era duvidoso que, mesmo com esse pronto apelo, o auxílio pudesse chegar a tempo. Mas eles tinham de atravessar o rio naquela noite e apoderar-se das elevações pela manhã. É com a excitação e a emoção dessa romântica marcha nocturna que o diário acaba.
O padre Brown tinha subido à frente, pois o caminho da floresta tornava-se mais pequeno, mais íngreme e mais retorcido, até que eles sentiram que era como se estivessem a subir uma escada de caracol. A voz do padre veio de cima, de dentro da escuridão.
- Havia uma outra pequena e enorme coisa. Quando o general os incitou ao seu ataque cavalheiresco desembainhou metade da espada da bainha e depois, como se ficasse envergonhado com tal atitude melodramática, enfiou-a novamente. A espada outra vez, já viu?
Uma meia luz atravessou a ramagem por cima deles, atirando-lhes aos pés o fantasma de uma rede, pois eles estavam a subir outra vez em direcção à ténue luminosidade da noite. Flambeau sentiu a verdade em toda a volta como uma atmosfera, mas não como uma ideia. Respondeu com o cérebro confuso:
- Então, o que é que se passa com a espada? Os oficiais em geral têm espadas, não têm?
- Não são frequentemente mencionadas na guerra moderna
- disse o outro desapaixonadamente -, mas neste caso uma pessoa tropeça nessa maldita espada por toda a parte.
- Então, que mal há nisso? - resmungou Flambeau. - Foi um incidente sem a mínima importância, a lâmina da espada do velho ter-se partido na sua última batalha. Qualquer pessoa apostaria que os jornais iam pegar no caso, como fizeram. Em todos estes túmulos e coisas assim aparece partido na ponta. Espero que não me tenha arrastado para esta expedição polar só porque dois homens comjeito para a pintura viram a espada partida de St. Clare.
- Não - exclamou o padre Brown com uma voz aguda como um tiro de pistola -, mas quem é que viu a espada inteira?
- O que é que você quer dizer? - exclamou o outro, e ficou parado sob as estrelas. Tinham chegado abruptamente às saídas cinzentas da floresta.
- Quem viu a espada dele inteira, digo eu? - repetiu o padre Brown obstinadamente. - Não foi o autor do diário, pelo menos. O general embainhou-a a tempo.
Flambeau olhou à sua volta a luz da lua, como um homem cego olharia para o sol, e o seu amigo continuou, pela primeira vez comimpetuosidade.
- Flambeau - exclamou ele -, não posso prová-lo, mesmo depois de ter procurado nos túmulos. Mas eu tenho a certeza disso. Deixe-me acrescentar um pequenino facto que faz comque tudo caia pela base.
"O coronel, por um estranho acaso, foi um dos primeiros a ser atingido por uma bala. Foi atingido muito antes das tropas se aproximarem umas das outras, mas ele viu a espada partida de St. Clare. Porque é que ela estava partida? Como é que se partiu? Meu amigo, partiu-se antes da batalha.
- Oh! - disse o amigo, com uma espécie de alegria desconsolada. - E, por favor, onde está o outro bocado?
- Posso dizer-lhe - disse o padre prontamente - no canto nordeste do cemitério da Catedral Protestante em Belfast.
- A sério? - perguntou o outro. - Procurou-a?
- Não podia - respondeu Brown, comsincero pesar. - Está um grande monumento de mármore em cima dela, um monumento ao heróico major Murray, que morreu gloriosamente em combate na famosa batalha do Rio Preto.
Flambeau pareceu reanimar-se.
- Você quer dizer - exclamou ele roucamente -, que o general St. Clare detestava Murray e assassinou-o no campo de batalha porque... ,.
- Você está cheio de pensamentos puros e bons - disse o outro. - Foi pior do que isso.
- Bem - disse o homem grande -, a minha reserva de imaginação maldosa já se gastou.
O padre parecia realmente duvidar por onde devia começar, e por fim disse outra vez:
- Onde é que um homem sábio esconderia uma folha? - Na floresta.
O outro não respondeu.
- Se não houvesse floresta, ele faria uma floresta. E se quisesse esconder uma folha morta, faria uma floresta morta.
Continuou a não ter resposta, e o padre acrescentou, cada vez mais suave e calmamente:
- E se um homem tivesse que esconder um cadáver, faria um campo de cadáveres para nele o esconder.
Flambeau começou a andar para diante com passos pesados, intolerante por estar à espera no tempo e no espaço, mas o padre Brown prosseguiu como se estivesse a continuar a ultima frase:
- Sir Arthur St. Clare, como eu já disse, era um homem que lia a Bíblia. Isso era o que se passava com ele. Quando é que as pessoas compreenderão que é inútil para um homem ler a Bíblia a não ser que leia a Bíblia de todas as outras pessoas. Um impressor lê a Bíblia à procura de erros de impressão. Um mórmon lê a Bíblia e encontra a poligamia, um adepto da Ciência Cristã lê a sua Bíblia e descobre que não temos braços nem pernas. St. Clare era um velho soldado protestante angloindiano. Agora, pense só no que isso poderia querer dizer e por amor de Deus não utilize calão para falar disso. Podia significar um homem fisicamente tremendo, vivendo sob um sol tropical numa sociedade oriental e encharcando-se sem juízo nem orientação num livro oriental. É claro que ele lia o Antigo Testamento em vez do Novo. Claro que encontrava no Antigo Testamento tudo o que queria: luxúria, tirania, traição. Oh, suponho que era honesto, como você diz. Mas para que serve um homem ser homem, na sua veneração pela desonestidade?
"Em cada um desses países quentes e secretos, para onde quer que o homem fosse mantinha um harém, torturava testemunhas e amontoava ouro vergonhoso, mas teria sempre dito, com um olhar firme, que o fazia para glória do Senhor. A minha própria teologia manifesta-se suficientemente ao perguntar: qual Senhor? De qualquer modo, passa-se o seguinte quanto a este mal, é que ele abre porta atrás de porta do inferno e sempre em compartimentos cada vez mais pequenos. Esta é a verdadeira acusação contra o crime que um homem não se torna cada vez mais louco, mas sim cada vez mais ignóbil. St. Clare em breve ficou sufocado comdificuldades de suborno e chantagem e precisava sempre de cada vez mais dinheiro. E por altura da batalha do Rio Preto tinha descido de existência em existência até àquele lugar que Dante considera o andar mais baixo do universo.
- Que quer você dizer? - voltou a perguntar ao amigo.
- Quero dizer aquilo - retorquiu o clérigo, e apontou subitamente para uma poça cheia de gelo que brilhava ao luar. Lembra-se de quem é que Dante colocou no último círculo de gelo?
- Os traidores - disse Flambeau, e estremeceu. Ao olhar em volta para a desumana paisagem de árvores, com insultuosos e quase obscenos contornos, quase imaginava que era Dante e que o padre, com o seu fio de voz, era, na verdade, Virgílio, guiando-o através da terra dos pecados eternos.
A voz continuou:
- Olivier, como sabe, era quixotesco e não permitia um serviço secreto nem espiões. A coisa, no entanto, fez-se como muitas outras coisas, por trás das costas dele. Foi conseguida pelo meu velho amigo Espado. Ele era o janota vestido de cores vistosas cujo nariz adunco lhe valeu o nome de Abutre. Apresentando-se como uma espécie de filantropo na linha da frente, introduziu-se no exército inglês e por fim deitou a mão ao seu único homem corrupto... e esse homem era a pessoa mais importante. St. Clare precisava sordidamente de dinheiro, de montanhas dele. O médico da família desonrada ameaçava com essas extraordinárias revelações que começaram depois e em seguida cessaram: histórias de coisas monstruosas e pré-históricas em Park Lane; coisas feitas por um evangelista inglês que cheiravam a sacrifícios humanos e a bandos de escravos. Era também preciso dinheiro para o dote da filha, pois para ele a fama da riqueza era tão doce como a própria riqueza. Rompeu os últimos laços, deu a informação ao Brasil e a riqueza começou a afluir vinda dos inimigos da Inglaterra. Mas outro homem, como ele, tinha falado com Espado, o Abutre. Por qualquer razão, o moreno e sombrio jovem major de Ulster adivinhara a horrível verdade, e quando caminhavam os dois devagar pela estrada em direcção à ponte, Murray dizia ao general que ele tinha de demitir-se imediatamente ou submeter-se a conselho de guerra e ser fuzilado. O general contemporizou com ele até chegarem à franja de árvores tropicais junto à ponte e aí, junto ao rio cantante e às palmeiras iluminadas pelo sol (pois estou a ver O quadro), o general desembainhou o seu sabre e cravou-o no corpo do major.
A estrada invernosa fazia uma curva sobre uma crista, numa geada cortante, comformas cruéis de arbustos e moitas, mas Flambeau supôs ver, para além dela, tenuamente, a extremidade de uma auréola que não era de luz das estrelas nem da lua, mas de algum fogo feito pelos homens. Olhou-o atentamente enquanto a história se aproximava do final.
- St. Clare era um homem diabólico, mas um homem de raça. Nunca, posso jurar, ele esteve tão lúcido e forte como quando o pobre Murray caiu, uma fria massa informe, a seus pés. Nunca em todos os seus triunfos, como disse o capitão Keith de verdade, o grande homem foi tão grande como nesta última derrota desprezada pelo mundo. Olhou friamente para a sua arma para a limpar do sangue, viu que a ponta que cravara entre os ombros da vítima se tinha partido ao atravessar o corpo. Viu muito calmamente, como através da janela de um clube, tudo o que se iria seguir. Viu que os homens teriam de encontrar o inexplicável cadáver, teriam de extrair a inexplicável ponta da espada, notariam a inexplicável espada partida... ou a ausência da espada. Ele matara, mas não silenciara. Mas o seu impiedoso intelecto revoltou-se contra a situação embaraçosa... Ainda havia uma maneira. Ele poderia tornar o cadáver menos inexplicável. Poderia criar um monte de cadáveres para cobrir aquele. Em vinte minutos oitocentos soldados ingleses marchavam para a morte.
O brilho mais quente atrás da negra floresta invernosa tornou-se mais rico e vivo e Flambeau pôs-se a andar compassos largos para o alcançar. O padre Brown também apressou o passo, mas parecia apenas absorvido pela sua história.
- Tal era o valor daquele milhar de ingleses e tal o génio do seu com andante que, se eles tivessem atacado o monte imediatamente, até mesmo a sua louca marcha poderia ter tido alguma sorte. Mas o espírito maligno que jogava com eles como peões de xadrez tinha outros objectivos e justificações. Tiveram que permanecer nos pântanos junto à ponte pelo menos até os cadáveres ingleses aparecerem por todos os lados. Depois foi a grande cena final: o soldado santo com o cabelo prateado entregaria a sua espada quebrada para evitar novo massacre. Oh, foi bem organizado, como improviso. Mas eu julgo (não posso provar), eu julgo que enquanto eles ficaram atolados na lama cheia de sangue alguém duvidou... e alguém adivinhou.
Ficou calado um instante, e depois disse:
- Há uma voz que vem de parte nenhuma que me diz que o homem que adivinhou era o amante... o homem que ia casar com a filha do velho.
- Mas o que é que se passou com Olivier e o enforcamento? - perguntou Flambeau.
- Olivier, em parte por cavalheirismo, em parte por diplomacia, raras vezes embaraçava a sua marcha comprisioneiros explicou o narrador. - Libertava toda a gente na maior parte dos casos. Neste caso libertou toda a gente.
- Toda a gente, menos o general - disse o homem alto.
- Toda a gente - disse o padre.
Flambeau franziu as suas negras sobrancelhas.
- Não compreendo tudo ainda - disse ele.
- Há um outro quadro, Flambeau - disse Brown, numa meia voz mais mística. - Não posso prová-lo, mas posso fazer mais... posso vê-lo. Pela manhã levantou-se um acampamento nesses tórridos e desertos montes e os soldados brasileiros concentraram-se em blocos e fileiras para marcharem. Há a camisa vermelha e a comprida barba preta de Olivier, que se agita enquanto ele está de pé, como seu chapéu de aba larga na mão. Está-se a despedir do grande inimigo que está a libertar, o simples veterano inglês de cabeça branca, que lhe agradece em nome dos seus homens. Os restantes ingleses ficam atrás em posição de sentido. Ao lado deles estão provisões e viaturas para a retirada. Os tambores rufam, os brasileiros vão-se embora, os ingleses estão imóveis como estátuas. Assim permanecem até o último sinal do inimigo ter desaparecido do horizonte tropical. Em seguida, todos ao mesmo tempo, alteram as suas posições, como homens mortos renascendo. Voltam as suas cinquenta caras para o general, caras que não serão esquecidas.
Flambeau deu um grande salto.
- Ah! - exclamou ele. - Você não quer dizer...
- Sim - disse o padre Brown numa voz profunda e comovente. - Foi uma mão inglesa que pôs a corda à volta do pescoço de St. Clare. Creio que a mão que pôs o anel no dedo da filha dele. Foram mãos inglesas que o arrastaram para aquela árvore de vergonha, as mãos de homens que o tinham adorado e o tinham acompanhado na vitória. E foram almas inglesas (que Deus nos perdoe e preserve a todos!) que olharam para ele pendurado naquele sol estrangeiro na Verde forca de uma palmeira e rezaram, cheios de ódio, para que ele caísse morto no
inferno.
- Enquanto os dois subiram ao topo do cume, irrompeu diante deles a luz escarlate forte de uma estalagem comcortinas vermelhas. Ficava de um lado da estrada, como se estivesse de lado na amplidão da hospitalidade. As suas três portas estavam convidativamente abertas, e mesmo do sítio onde estavam podiam ouvir o rumor e o riso dos homens felizes por uma noite.
- Não preciso de lhe contar mais nada - disse o padre Brown. - Julgaram-no no sertão e destruíram-no, e depois, pela honra da Inglaterra e da sua filha, juraram selar para sempre a história do dinheiro do traidor e da lâmina da espada do assassino. Talvez (Deus nos ajude) eles tentassem esquecê-la. De qualquer forma, vamos tentar esquecê-la. Aqui está a nossa estalagem.
- Com todo o coração - disse Flambeau, e estava mesmo a entrar para o bar claro e barulhento quando deu um passo para trás e quase caiu na estrada.
- Olhe para ali, com os diabos! - exclamou ele, e apontou rigidamente para a tabuleta quadrada que estava suspensa sobre a rua. Mostrava indistintamente a forma de um cabo de uma espada com a lâmina encurtada e tinha gravado comfalsas letras antigas: "O Sinal da Espada Quebrada".
- Você não estava preparado? - perguntou o padre Brown suavemente. - Ele é o deus desta região. Metade das estalagens, parques e ruas têm o nome dele.
- Julguei que tínhamos acabado com o leproso - exclamou Flambeau, e cuspiu para a estrada.
- Você nunca há-de acabar com ele em Inglaterra - disse o padre, olhando para o chão. - As suas estátuas de mármore hão-de elevar as almas de rapazes orgulhosos e inocentes durante séculos, a sepultura dele na aldeia terá o perfume da lealdade como se fosse o de lilases. Milhões que nunca o conheceram amá-lo-ão como um pai... a este homem que os últimos que o conheceram trataram como esterco. Ele será um santo e nunca se dirá a verdade a respeito dele, porque finalmente me decidi. Há tanto de bom e de mau em quebrar segredos que porei a minha conduta à prova. Todos estes jornais irão acabar, esta propaganda contra o Brasil já terminou, Olivier já é respeitado por toda a parte. Mas eu disse para comigo que se em qualquer parte, através do nome, querem metal ou mármore, que durarão como as pirâmides, o coronel Clancy, o capitão Keith, o presidente Olivier ou qualquer outro homem inocente for acusado injustamente, então eu falarei. Se for só porque St. Clare foi injustamente elogiado, então permanecerei silencioso. E assim farei.
Entraram na estalagem de cortinas vermelhas que não só era confortável mas também luxuosa. Numa mesa encontrava-se um modelo de prata do túmulo de St. Clare, a cabeça cor de prata e inclinada, a espada de prata quebrada. Nas paredes havia fotografias coloridas da mesma cena e do sistema de vagonetas que levava os turistas a vê-la. Sentaram-se nos confortáveis bancos almofadados.
- Venha, está frio - exclamou o padre Brown. - Vamos beber vinho ou cerveja.
- Ou conhaque - disse Flambeau.
CAPÍTULO XII
Os três instrumentos de morte
Tanto por vocação como por convicção o padre Brown sabia melhor do que a maior parte das pessoas que todo o homem se torna digno depois de morto. Mas mesmo ele sentiu um tormento de incoerência quando foi acordado ao amanhecer e lhe disseram que Sir Aaron Armstrong tinha sido assassinado. Havia qualquer coisa de absurdo e de impróprio a respeito da violência secreta relacionada com uma pessoa tão divertida e popular. Pois Sir Aaron Armstrong era divertido ao ponto de se tornar cómico e popular de forma a ser considerado quase lendário. Era como ouvir dizer que o "Senhor Feliz" se tinha enforcado, ou que o "senhor Pickwick" morrera em Hanwell.
Pois apesar de Sir Aaron ser um filantropo e de lidar por isso com a parte mais obscura da nossa sociedade, ele orgulhava-se de lidar comela da forma mais alegre possível. Os seus discursos políticos e sociais eram cataratas de anedotas e de "risadas sonoras", vendia saúde, a sua ética era toda optimismo e ocupava-se do problema do alcoolismo (seu tema favorito) com aquela alegria imortal ou até mesmo monótona que é tantas vezes a marca de um próspero abstémio.
A história da sua conversão era conhecida dos programas partidários e púlpitos mais puritanos. Como ele se tinha afastado da teologia escocesa para se aproximar do uísque escocês e como tinha ressurgido de ambos e se tornara (como ele modestamente declarava) no que era. No entanto, a sua grande barba branca, rosto querubínico e óculos brilhantes nos inúmeros jantares e congressos em que aparecia, tornavam difícil acreditar que ele tivesse sido qualquer coisa de tão mórbido como um bêbedo ou um calvinista. Ele era, sentia-se, o mais alegre de todos os filhos dos homens.
Vivia na periferia rural de Hampstead numa bela casa, alta mas não larga, uma torre moderna e prosaica. O lado mais estreito dos seus lados estreitos projectava-se sobre a ladeira íngreme e verde que ia dar a uma linha férrea e estremecia quando os comboios passavam. Sir Aaron Armstrong, como ele impetuosamente explicava, não sofria dos nervos. Mas se o comboio abalara muitas vezes a casa, nessa manhã virara-se o feitiço contra o feiticeiro, e foi a casa que abalou o comboio. A locomotiva abrandara e parara mesmo no ponto em que o ângulo da casa colidia com a ladeira pronunciada de relva. A paragem da maior parte das coisas mecânicas tem de ser lenta, mas a causa viva desta paragem fora muito rápida. Um homem vestido completamente de preto, até mesmo (e isso foi recordado) no pormenor horrível de usar luvas pretas, apareceu no cume que ficava acima da locomotiva e acenou com as mãos pretas como se fosse um moinho negro. Isto só por si não teria feito parar mesmo um comboio ronceiro. Mas esse homem soltou um grito que foi comentado mais tarde como sendo algo de completamente estranho e novo. Era um desses gritos que são horrivelmente claros, mesmo quando não percebemos o que se grita. A palavra, neste caso, era "Assassínio!".
Mas o maquinista jurou que teria parado da mesma forma se tivesse ouvido apenas a terrível e precisa inflexão de voz e não a palavra. .
Uma vez o comboio parado, o olhar mais superficial podia ter abrangido muitos aspectos da tragédia. O homem vestido de preto no relvado era Magnus, o criado de Sir Aaron Armstrong. O baronete, com o seu optimismo, tinha rido muitas vezes das luvas pretas do seu lúgubre criado, mas não era natural que ninguém se risse dele agora.
Logo que um ou dois curiosos atravessaram a linha férrea e se aproximaram da sebe fumosa, viram, enrolado quase no fundo da ladeira, o corpo de um velho vestido com um roupão amarelo com uma guarnição escarlate muito viva. Um pedaço de corda parecia estar preso numa das pernas, embaraçado provavelmente devido a uma luta. Havia uma mancha de sangue muito pequena, mas o corpo estava dobrado ou partido numa posição impossível para qualquer ser vivo. Era Sir Aaron Armstrong. Passados alguns momentos confusos surgiu um grande homem de barba loira, que alguns dos viajantes podiam cumprimentar como sendo o secretário do morto, Patrick Royce, em tempos bem conhecido na sociedade boémia e até mesmo famoso nas artes da Boémia. De uma maneira mais vaga, mas ainda mais convincente, ele ecoou a aflição do criado. Quando a terceira pessoa desse agregado familiar, Alice Armstrong, filha do morto, chegou, já cambaleante e vacilante, ao jardim, o maquinista tinha posto fim à sua paragem. O apito fizera-se ouvir e o comboio partira para procurar socorro na estação mais próxima.
O padre Brown tinha sido assim chamado à pressa a pedido de Patrick Royce, o alto ex-secretário da Boémia. Royce era irlandês de nascimento e era desse tipo descuidado de católicos que só se lembra da sua religião quando está num aperto. Mas o pedido de Royce podia ter sido menos prontamente acedido se um dos detectives oficiais não fosse amigo e admirado de Flambeau, o detective privado, e era impossível ser-se amigo de Flambeau sem ouvir falar das inúmeras histórias do padre Brown. Por esta razão, enquanto o jovem detective (que se chamava Merton) conduzia o pequeno padre pelos campos até à linha férrea, a conversa deles tomou um aspecto mais confidencial do que seria de esperar entre dois perfeitos estranhos.
- Tanto quanto se me afigura - disse francamente o Sr. Merton -, nada disto faz sentido. Não há nenhum suspeito. Magnus é um velho tonto, demasiado tonto para ser um assassino. Royce foi o melhor amigo do baronete desde há muitos anos e a filha, sem sombra de dúvida, adorava-o. Além disso, é tudo demasiadamente absurdo. Quem é que iria matar um sujeito tão bem-disposto como Armstrong? Seria como se matassem o Pai Natal.
- De facto, era uma casa alegre - reconheceu o padre Brown. - Era uma casa alegre enquanto ele foi vivo. Acha que será alegre agora que ele morreu?
Merton sobressaltou-se um pouco e olhou para o seu companheiro com um olhar animado.
- Agora que ele morreu? - repetiu ele.
- Sim - continuou o padre, impassível -, ele era alegre. Mas será que ele comunicava a sua alegria? Francamente, sem ser ele, havia mais alguém alegre em casa?
Uma janela na mente de Merton deixou entrar aquela estranha luz da surpresa com a qual nós vemos pela primeira vez coisas que já sabemos há muito tempo. Ele visitara os Armstrongs frequentes vezes a propósito de pequenos serviços policiais do filantropo e, agora que pensava nisso, achava a casa deprimente. Os quartos eram muito altos e muito frios, a decoração pobre e provinciana, os corredores expostos a correntes de ar eram iluminados a uma electricidade mais desolada que a luz da lua. E apesar da cara escarlate e barba prateada do velho resplandecer como uma fogueira em cada quarto ou corredor, ele não deixava nenhum calor atrás de si. Sem dúvida, este desconforto espectral na casa era em parte devido à vitalidade e exuberância do proprietário. Não precisava de fogões ou lâmpadas, dizia ele, pois trazia consigo o seu próprio calor. Mas quando Merton recordava os outros ocupantes, era obrigado a confessar que também eles eram como sombras do seu senhor. O taciturno criado, com as suas monstruosas luvas pretas, era quase um pesadelo; Royce, o secretário, era forte, um verdadeiro touro, vestido de tweed, com uma barba curta, mas a barba cor de palha era surpreendentemente salpicada de cinzento como os tweeds e a testa larga estava sulcada de rugas prematuras. Tinha também boa índole, mas uma triste espécie de boa índole, de uma espécie cheia de mágoa. Tinha o aspecto geral de ser um falhado na vida. Quanto à filha de Armstrong, era quase inacreditável ser filha dele, tão pálida era e com uma figura tão delicada. Era graciosa mas havia uma tremura nela que fazia lembrar um choupo-tremedor. Merton pensara algumas vezes se ela começara a tremer por causa do estrondo dos comboios que passavam.
- Veja - disse o padre Brown, piscando os olhos modestamente -, não tenho a certeza de que a alegria de Armstrong fosse tão alegre como isso... para as outras pessoas. Você diz que ninguém seria capaz de matar um homem tão feliz, mas eu não tenho a certeza, ne nos inducas in tentationem. Se eu alguma vez assassinasse alguém, acrescentou ele muito simplesmente, acho que seria um optimista.
- Porquê? - exclamou Merton, divertido. - Acha que as pessoas não gostam de alegria?
- As pessoas gostam de riso frequente - respondeu o padre Brown - mas não acho que gostem de um sorriso permanente. A alegria sem sentido de humor é uma coisa muito desagradável.
Andaram por um bocado em silêncio pela ladeira ventosa junto da linha férrea e, ao chegarem à vasta sombra da alta casa dos Armstrong, o padre Brown disse de repente, como um homem deitando fora um pensamento incómodo em vez de o propor seriamente:
- Claro que a bebida não é, em si, boa ou má. Mas não consigo deixar de pensar que homens como Armstrong precisam, de vez em quando, de um copo de vinho para os entristecer.
O chefe de Merton, um detective grisalho e competente, chamado Gilder, aguardava de pé na ladeira verde o médico legista, enquanto conversava com Patrick Royce, cujos grandes ombros, barba e cabelo eriçados lhe ficavam sobranceiros. Isto dava tanto mais nas vistas quanto Royce andava sempre com uma forte inclinação para a frente da cabeça e dos ombros e parecia tratar dos seus pequenos deveres domésticos e de empregado de escritório num estilo pesado e humilde, como um búfalo puxando uma carroça.
Levantou a cabeça com um invulgar prazer ao ver o padre e chamou-o à parte. Entretanto Merton dirigiu-se ao detective mais velho, respeitosamente, mas não sem uma certa impaciência juvenil. . _ .
- Então, Sr. Gilder, já adiantou muito no mistério?
- Não há nenhum mistério - respondeu Gilder, enquanto olhava sonhadoramente para as gralhas.
- Bem, para mim, há em qualquer caso - disse Merton, sorrindo.
-É muito simples, meu rapaz - observou o investigador mais velho, cofiando a barba cinzenta pontiaguda. - Três minutos depois de você ter ido buscar o pároco do senhor Royce, tudo se esclareceu. Conhece aquele criado de cara descorada comluvas pretas que fez parar o comboio?
- Conhecê-lo-ia em qualquer sítio. Por qualquer razão, causou-me arrepios.
- Bem - disse descansadamente Gilder -, quando o comboio se foi embora outra vez, o homem também se foi embora. Um criminoso bastante descarado, não acha, para se escapar no mesmo comboio que foi chamar a polícia?
- Tem bem a certeza, suponho - observou o jovem -, de que ele de facto matou o patrão?
- Sim, meu filho, tenho bem a certeza - respondeu Gilder secamente -, pela insignificante razão de que ele fugiu comvinte mil libras em papéis, que estavam na secretária do patrão. Não, a única coisa a que se pode chamar dificuldade é como é que ele o matou. O crânio parece ter sido quebrado com uma grande arma, mas não se encontra nenhuma arma por aqui e o assassino teria achado embaraçoso levá-la com ele, a não ser que a arma fosse tão pequena que não se reparasse nela.
- Talvez a arma fosse demasiado grande para se reparar nela
- disse o padre com uma estranha risadinha.
Gilder considerou a sua louca observação e perguntou bastante severamente a Brown o que era que ele queria dizer.
- Foi uma maneira estúpida de explicar, eu sei - disse o padre Brown, desculpando-se. - Parece um conto de fadas, mas o pobre Armstrong foi morto com um cacete de gigante, um grande cacete, demasiado grande para ser visto, a que chamamos terra. Ele esmagou-se contra esta ladeira verde sobre a qual estamos.
- O que é que quer dizer? -perguntou o detective rapidamente. O padre Brown ergueu a sua cara de lua cheia para a tachada estreita da casa e olhou para cima, pestanejando desesperadamente. Seguindo o seu olhar, verificaram que mesmo no cimo dessa parte traseira do prédio, sem qualquer outra abertura, se encontrava aberta uma janela de sótão.
- Não vê - explicou ele, apontando um pouco desajeitadamente, como uma criança -, que ele foi atirado de lá de cima para aqui? .
Gilder, de aspecto carrancudo, examinou a janela e depois disse:
- Bem, é possível, certamente. Mas não vejo porque tem tanta certeza nisso.
Brown abriu muito os seus olhos cinzentos.
- Porque - disse ele - há um pedaço de corda à volta da perna do cadáver. Não vê aquele outro pedaço de corda preso ao canto da janela? _
Àquela altura a coisa parecia uma indistinta partícula de poeira ou de cabelo, mas o astuto velho investigador ficou satisfeito.
- O senhor tem toda a razão - disse ele para o padre Brown.
- Essa é uma a seu favor. .
Quase no momento em que ele falava, um comboio especial, com uma só carruagem, entrou na curva da linha férrea à esquerda deles e, parando, lançou fora um outro grupo de polícias, no meio dos quais se encontrava o rosto velhaco de Magnus, o criado que se evadira.
- Caramba! Apanharam-no - exclamou Gilder, e deu um passo em frente com uma ligeireza completamente nova.
- Têm o dinheiro? - gritou ele para o primeiro polícia.
O homem olhou-o com uma expressão bastante estranha
e disse:
- Não. - E depois acrescentou: - Pelo menos aqui, não.
- Quem é o inspector, por favor? - perguntou o homem chamado Magnus.
Quando ele falou toda a gente compreendeu imediatamente como aquela voz tinha feito parar o comboio. Era um homem de aspecto estúpido, de cabelos pretos lisos, uma cara pálida e uma leve sugestão oriental nas fendas horizontais dos olhos e da boca. A sua origem e nome tinham, na realidade, permanecido duvidosos, desde que Sir Aaron o tinha "salvo" de servir à mesa num restaurante londrino e (como alguns diziam) de coisas mais infames. Mas a voz era tão cheia de vida como a cara parecia morta. Quer através de procurar ser preciso numa língua estrangeira quer por deferência para com o patrão (que era um pouco surdo), o tom da sua voz tinha uma estranha qualidade sonante e penetrante e todo o grupo quase que deu um salto quando ele começou a falar.
- Eu sempre soube que isto ia acontecer - disse ele em voz alta com atrevida brandura. - O meu pobre velho patrão fazia troça de mim por eu me vestir de preto, mas eu sempre disse que estaria pronto para o seu funeral.
E fez um movimento momentâneo com as suas mãos calçadas de luvas pretas.
- Sargento - disse o inspector Gilder, olhando com ira para as mãos pretas. - Não vai pôr as algemas a este tipo? Parece ser bastante perigoso.
- Bem, senhor - disse o sargento, com o mesmo estranho olhar de admiração -, não sei se podemos.
- O que é que quer dizer? - perguntou o outro rispidamente. - Não o prendeu?
Um vago desprezo aumentou a boca com a forma de fenda, e o apito de um comboio que se aproximava parecia estranhamente ecoar o escárnio.
- Nós prendemo-lo - respondeu o sargento gravemente -, no momento em que ele saía da esquadra da polícia em Highgate, onde depositou todo o dinheiro do patrão ao cuidado do inspector Robinson.
Gilder olhou para o criado completamente espantado.
- Porque diabo é que você fez isso? - perguntou a Magnus.
- Para que o criminoso não lhe pudesse deitar a mão, é claro - respondeu esse indivíduo placidamente.
- com certeza - disse Gilder -, que o dinheiro de Sir Aaron podia ter sido deixado em segurança com a família de Sir Aaron. O final da sua frase foi abafado pelo ruído ensurdecedor do comboio mas, através de todo o inferno de barulhos a que aquela infeliz casa estava periodicamente sujeita, eles podiam ouvir as sílabas da resposta de Magnus em toda a sua clareza, como uma campainha:
- Não tenho nenhuma razão para confiar na família de Mr Aaron.
Todos os homens imóveis tiveram a sensação fantasmagórica da presença de uma nova pessoa e Merton ficou pouco surpreendido ao ver o rosto pálido da filha de Armstrong por detrás do ombro do padre Brown. Ela era ainda jovem e bela, num estilo argênteo, mas o seu cabelo era de castanho tão poeirento e sem cor que nalgumas sombras parecia ter-se tornado totalmente cinzento.
- Cuidado com o que diz - disse Royce asperamente. Pode assustar Miss Armstrong.
- Espero que sim - disse o homem com a voz clara. Enquanto a mulher tremia e todos os outros se espantavam, ele prosseguiu:
- Estou de certa maneira habituado às tremuras de Miss Armstrong. Tenho-a visto tremer de vez em quando durante anos. Alguns diziam que ela tremia de frio e outros diziam que tremia de medo, mas eu sei que ela tremia de ódio e de raiva ruim... demónios que se regozijaram esta manhã. Ela já estaria longe com o amante e todo o dinheiro se não fosse eu. Desde que o meu pobre velho patrão a impediu de se casar com esse vil bêbedo...
- Não diga mais - disse Gilder muito suavemente. - Não temos nada a ver com as suas fantasias ou suspeitas familiares. A não ser que tenha uma prova concreta, as suas suspeitas...
- Oh! vou dar-lhe uma prova concreta - interrompeu Magnus na sua pronúncia cortante. - Tem de me intimar a comparecer no tribunal, senhor inspector, e eu terei de dizer a verdade. E a verdade é esta: um momento depois do velho ter sido arremessado, sangrando, pela janela, eu corri para o sótão e encontrei a filha desmaiada no chão com um punhal vermelho ainda na mão. Permita-me que entregue isso também às autoridades competentes. - Tirou da algibeira do fraque uma comprida faca com uma mancha vermelha e entregou-a delicadamente ao sargento. Depois recuou e os seus olhos em fenda quase desapareceram do seu rosto num gordo sorriso desdenhoso chinês.
Merton sentiu quase um mal-estar físico ao vê-lo e murmurou a Gilder:
- De certo que acredita mais na palavra de Miss Armstrong do que na dele?
O padre Brown de repente ergueu um rosto tão absurdamente fresco que parecia que tinha acabado de lavá-lo.
- Sim - disse ele, irradiando inocência -, mas será que a palavra de Miss Armstrong é contra a dele?
A rapariga proferiu um pequeno grito sobressaltado e estranho e todos olharam para ela. O seu corpo estava rígido, como que paralisado. Apenas a cara, com a sua moldura de cabelos levemente castanhos, permanecia viva, cheia de uma espantosa surpresa. Tinha o aspecto de alguém subitamente laçado e estrangulado.
- Este homem - disse o senhor Gilder gravemente, ahrma que a encontrou segurando uma faca, sem sentidos, depois do crime.
- Ele diz a verdade - respondeu Alice. Aperceberam-se logo a seguir de que Patrick Royce tinha avançado, com a sua grande cabeça inclinada, para o círculo que formavam e proferiu estas estranhas palavras: - Bem, se eu tenho de ir, quero gozar um pouco primeiro.
O seu enorme ombro ergueu-se e ele desferiu um soco, com um punho de ferro, no rosto mongólico de Magnus, prostrando-o no chão como uma estrela-do-mar. Dois ou três policias imediatamente agarraram Royce, mas para os outros parecia que toda a razão se fragmentara e que o universo se estava a tornar numa desmiolada arlequinada.
- Não queremos nada disso - gritou Gilder autoritariamente. - vou mandá-lo prender por agressão.
- Isso é que não vai - respondeu o secretário numa voz que parecia um gongo de ferro. - Vai prender-me por homicídio.
Gilder deitou um olhar alarmado ao homem derrubado; mas, uma vez que a pessoa injuriada já se estava a levantar e a limpar um pouco de sangue de um rosto substancialmente ileso, apenas disse em poucas palavras: - O que é que quer dizer?
- É bem verdade o que diz este tipo - explicou Royce -, que Miss Armstrong desmaiou com a faca na mão. Mas ela não agarrou na faca para atacar o pai, mas para defendê-lo.
- Para defendê-lo - repetiu Gilder gravemente. - De quem?
- De mim - respondeu o secretário.
Alice olhou para ele com uma cara complexa e desconcertada, depois disse em voz baixa:
- Afinal de contas, ainda estou satisfeita por tu seres valente.
- Venham cá acima - disse Patrick Royce pesadamente - e eu vou mostrar-lhes todo o maldito caso.
O sótão, que era o lugar privado do secretário (uma cela bastante pequena para um tão grande eremita), apresentava de facto todos os vestígios de um drama violento. Junto do centro do chão encontrava-se um revólver, como se tivesse sido atirado para ali, à esquerda estava uma garrafa de uísque aberta, mas não completamente vazia. A toalha da pequena mesa estava arrancada e pisada e um pedaço de corda como o encontrado no cadáver estava atirado ao acaso sobre o peitoril da janela. Havia duas jarras partidas na cornija da lareira e outra no tapete.
- Eu estava bêbedo - disse Royce. E esta simplicidade naquele homem prematuramente esgotado tinha algo de patético, como o primeiro pecado de um bebé.
- Todos conhecem a minha história - continuou ele roucamente. - Todos sabem como ela começou e pode também terminar assim. Chamaram-me outrora esperto e podia ter sido uma pessoa esperta e feliz. Armstrong salvou os restos de uma mente e de um corpo de tabernas e foi sempre bondoso comigo à sua maneira, pobre tipo! Só que não me queria deixar casar com alice, aqui presente, e dir-se-á sempre que ele tinha toda a razão. Bem, podem formar as vossas conclusões e não será preciso que eu entre em pormenores. Esta é a minha garrafa de uísque meia vazia ali ao canto, isto é o meu revólver completamente vazio sobre o tapete. Foi a corda retirada da minha arca que encontraram no corpo e foi da janela que o corpo foi atirado. Não precisa de pôr detectives a desenterrar a mmha tragédia, é uma erva daninha muito vulgar neste mundo. Entrego-me à forca e, por Deus, já chega.
Através de um sinal suficientemente delicado, a policia juntou-se à volata do grande homem para o levar embora, mas a sua discrição foi de algum modo surpreendida pela notável aparição do padre Brown, de gatas sobre o tapete, à entrada da porta, como se estivesse ocupado em orações pouco dignas. Como era uma pessoa que não se preocupava absolutamente nada com a sua imagem social, permaneceu nesta posição, mas virou para o grupo uma cara redonda e animada, apresentando a aparência de um quadrúpede com uma cabeça humana muito
cómica. . ,
- Acho - disse ele afavelmente -, que isto não pode ser de todo assim, sabem. No princípio vocês disseram que não tinham encontrado nenhuma arma. Mas agora encontramos armas a mais: temos uma faca para apunhalar, uma corda para estrangular e uma pistola para disparar e, afinal de contas, ele partiu o pescoço por ter caído da janela abaixo! Não pode ser. Não é económico. - E abanou a cabeça para o chão, como costuma fazer um cavalo a pastar.
O inspector Gilder abrira a boca comsérias intenções, mas antes que ele pudesse falar, a figura grotesca no chão continuara a falar voluvelmente. - E agora temos três coisas completamente impossíveis: primeiro, estes buracos no tapete, por onde entraram seis balas. Porque diabo é que alguém iria disparar para o tapete? Um homem bêbedo dispara contra a cabeça do seu inimigo, contra a coisa que lhe está arreganhando os dentes. Não procura uma briga com os pés, ou fazer um cerco aos seus chinelos, e depois há a corda. - E tendo arrumado o assunto do tapete o padre Brown levantou as mãos e pô-las nas algibeiras, mas continuou de joelhos comtoda a simplicidade. - Em que espécie de embriagues alguém tentaria pôr uma corda à volta do pescoço de um homem e, por fim, à volta da perna dele? Royce, de qualquer forma, não estava assim tão bêbado, senão estaria agora a dormir como uma pedra. E, o mais simples de tudo, a garrafa de uísque. Vocês podem sugerir que um dipsomaniaco atou pela garrafa de uísque e em seguida, tendo ganho, fê-la rolar para um canto, entornando metade e deixando a outra metade. Isso seria a última coisa que um dipsomaníaco faria.
Pôs-se desajeitadamente em pé e disse para o auto-acusado assassino num tom de límpido pesar:
- Tenho imensa pena, meu caro senhor, mas a sua história é realmente uma tolice. - Posso falar-lhe em particular por um momento? - disse Alice Armstrong em voz baixa ao padre.
Este pedido forçou o comunicativo clérigo a sair para o corredor e, antes de ele poder dizer o que quer que fosse no quarto ao lado, a rapariga já estava a falar com um estranho modo incisivo.
- O senhor é um homem inteligente - disse ela, - e está a tentar salvar Patrick, eu sei. Mas não serve de nada. O âmago de tudo isto é negro, e quantas mais coisas descobrir tanto mais haverá contra o pobre homem que eu amo.
- Porquê? - perguntou o padre Brown, olhando para ela fixamente.
- Porque - respondeu ela também fixamente - eu vi-o cometer o crime.
- Ah! - fez o impassível Brown. - E o que é que ele fez?
- Estava neste quarto contíguo ao deles - explicou ela -, ambas as portas estavam fechadas, mas ouvi de repente uma voz como nunca tinha ouvido na face da terra, rugindo "Diabo diabo; diabo", muitas vezes, e depois as duas portas estremeceram com a primeira explosão do revólver. Ouvi mais três estrondos antes de abrir as duas portas e verifiquei então que o quarto estava cheio de fumo, mas a pistola estava fumegante na mão do meu pobre, louco Patrick, e eu vi-o disparar o ultimo tiro assassino com os meus próprios olhos. Depois saltou sobre o meu pai, que estava agarrado, aterrorizado, ao peitoril da janela e, segurando-o, tentou estrangulá-lo com a corda que ele atirou para cima da cabeça dele, mas que escorregou, sobre os ombros que se debatiam, para os seus pés. Depois a corda ficou apertada à volta de uma perna e Patrick arrastou-o como um louco. Eu agarrei numa faca e, correndo precipitadamente, consegui cortar a corda antes de desmaiar.
- Está bem - disse o padre Brown, com a mesma desajeitada cortesia. - Obrigado.
Enquanto a rapariga desfalecia, dominada pelas suas recordações, o padre passou cerimoniosamente para o quarto ao lado, onde encontrou Gilder e Merton sozinhos com Patrick Royce, que estava sentado numa cadeira, algemado. Aí, disse ao inspector com um modo submisso:
- Posso trocar uma palavra com o prisioneiro na vossa presença? E será que ele pode tirar essas algemas cómicas por um
minuto?
- É um homem muito forte - disse Merton a meia voz. - Porque é que quer que ele as tire?
- Pensei - respondeu o padre humildemente - que talvez pudesse ter a grande honra de lhe apertar a mão.
Ambos os detectives olharam estupefactos e o padre Brown acrescentou:
- Não lhes quer contar tudo?
O homem na cadeira abanou a sua cabeça desgrenhada e o padre voltou-se impacientemente.
- Então contarei eu - disse ele. - As vidas privadas são mais importantes que as boas reputações públicas. vou salvar os que estão vivos e deixar que os mortos enterrem os seus mortos.
Foi até à janela fatal e piscou os olhos enquanto continuava
a falar.
- Eu disse-vos que neste caso havia armas a mais e apenas uma morte. Digo-vos agora que não eram armas e não foram utilizadas para provocar a morte. Todos esses horríveis instrumentos, a corda, a faca ensanguentada, a pistola, foram instrumentos de uma estranha misericórdia. Não foram utilizados para matar Sir Aaron, mas para salvá-lo.
- Para salvá-lo! - repetiu Gilder. - E salvá-lo de quê?
- Dele próprio - disse o padre Brown. - Ele era um suicida
maníaco.
- O quê! - exclamou Merton, num tom incrédulo. - L a religião da Alegria...
- É uma religião cruel - disse o padre olhando para fora da janela. - Porque é que não o deixavam chorar um pouco, como faziam os seus antepassados? Os seus planos endureceram, os seus pontos de vista esfriaram. Por detrás da máscara alegre estava a mente vazia de um ateu. Por fim, para manter o seu alegre nível social, regressara ao seu vício do alcoolismo que há muito abandonara. Mas existe este horror quanto ao alcoolismo num abstémio solitário: ele imagina e espera o inferno psicológico de que avisara outros. Este inferno lançou-se sobre o pobre Armstrong prematuramente, e hoje de manhã estava em tal estado que se sentou aqui e se pôs a gritar numa voz tão louca que a filha não a reconheceu, estava louco por morrer e, servindo-se dos truques dos loucos, espalhara à sua volta a morte sob várias formas: uma corda, o revólver e a faca do seu amigo. Royce entrou por acaso no quarto e agiu num instante. Atirou a faca para o tapete, agarrou no revólver e, não tendo tempo para o descarregar, esvaziou-o atirando tiros atrás de tiros para o chão. O suicida viu uma quarta forma de morte e precipitou-se para a janela. O salvador fez a única coisa que podia: correu atrás dele com a corda e tentou atá-lo de pés e mãos. Foi então que a infeliz rapariga entrou a correr e, interpretando mal a luta, tentou libertar o pai, cortando a corda. A princípio só conseguiu ferir os nós dos dedos do pobre Royce, dos quais veio todo o sangue deste pequeno caso. Claro que os senhores repararam que ele deixou sangue, mas nenhuma ferida, na cara do criado. Só que antes da pobre mulher ter desmaiado ela conse-
guiu libertar o pai, cortando a corda, de tal forma que ele estatelou-se na eternidade, caindo pela janela aberta.
Houve um longo silêncio, lentamente quebrado pelos ruídos metálicos de Gilder abrindo as algemas de Patrick Royce, a quem disse: ,
- Acho que o senhor devia ter dito a verdade. O senhor e a menina valem mais do que as participações obituárias de Armstrong.
- Ao diabo as participações - exclamou Royce asperamente.
- Não vê porque é que ela não pode vir a saber?
- Vir a saber o quê?-perguntou Merton.
- Que matou o pai, parvo! - berrou o outro - Ele estaria vivo agora se não fosse ela. Saber isso pode endoidecê-la.
- Não, acho que não pode - observou o padre Brown enquanto pegava no chapéu. - Acho que eu devo contar-lhe tudo. Mesmo os erros mais mortíferos não envenenam a vida como fazem os pecados. De qualquer maneira, acho que vocês dois podem sentir-se mais felizes agora. Tenho de voltar para a Escola dos Surdos. . ,
Ao sair para a tempestuosa relva um conhecido de Highgate fê-lo parar e disse:
- O médico legista já chegou. O inquérito vai começar agora mesmo.
- Tenho de voltar para a Escola de Surdos - disse o padre Brown. - Tenho pena de não poder ficar para o inquérito.
G. K. Chesterton
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