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A INTERDIÇÃO / Honoré de Balzac
A INTERDIÇÃO / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A interdição (em francês: L'Interdiction), apesar de sua extensão reduzida, contém por assim dizer todas as características da arte de Balzac; é dessas gotas de água que, colocadas sob o microscópio, revelam a infinita riqueza da natureza pródiga.
O início prende imediatamente o leitor. Que boa surpresa encontrar outra vez os dois comensais da Casa Vauquer, Rastignac e Bianchon! Depois da morte do pai Goriot, passaram-se vários anos e os dois amigos fizeram ambos o seu caminho. Seu caráter não se alterou, apenas se desenvolveu em conformidade com as suas tendências dominantes: em Rastignac a ambição tomou conta de tudo, Bianchon se deixou subjugar pela sua vocação de médico e engrandeceu-se pelo devotamento contínuo a que esta o obriga.
Ambos tiveram a sua aprendizagem e agora estão igualmente desiludidos a respeito da humanidade; mas o conhecimento que adquiriram dos homens inspira desprezo ao primeiro, compaixão ao segundo.
É bem natural, também, que os dois, uma vez juntos, evoquem, mesmo sem querer, as figuras e os acontecimentos da Casa Vauquer; essa evocação coincide perfeitamente com a expectativa do leitor, que também não esqueceu, nem esquecerá tão cedo, aquele conglomerado patético de dores, crimes e alegrias. O autor, como suas personagens e seus leitores, está também lembrado das lições de Vautrin; mais ainda, ele fornece, no drama do casal d'Espard, uma ilustração a mais, uma nova exemplificação dessas lições.
Nem aqui Balzac se preocupa com os leitores apressados. Leva-nos à porta do gabinete do juiz Popinot: alto lá, temos de ouvir uma dissertação sobre este. Introduzi-lo na casa da sra. d'Espard: paremos lá, a ouvir um retrato dela. Aí então, como para mostrar que possui todos os métodos, o escritor caracteriza a sra. Jeanrenaud, nos dois minutos de uma conversa rápida, de um modo completo. Quanto ao sr. d'Espard, ele nos é revelado, "como o molusco, pela concha", numa descrição de seu interior.
Ao depor a novela, esquecemos que lemos uma obra de ficção. É a realidade que sentimos palpitar nestas páginas, com espantosa força sugestiva. Esta impressão é poderosamente reforçada pelo aparente inacabamento da novela. Qualquer outro romancista nos faria assistir à audiência do tribunal em que se julga o pedido de interdição da sra. d'Espard contra o marido, aumentando progressivamente a nossa impaciente expectativa.
Poder-se-ia dizer que em suas maiores obras Balzac está constantemente preocupado com a ideia da teodiceia, da manifestação da justiça divina nas coisas humanas.
Apesar do seu catolicismo tão frequentemente proclamado, conclui sistematicamente pela inoperância da mesma. Um romancista para moças teima em fazer triunfar os virtuosos; se Balzac teimasse em fazer o contrário, não se tornaria muito mais convincente. As suas conclusões são bem mais desesperadas: a justiça e a injustiça das ações humanas nada têm a ver com o resultado delas; não há castigo nem recompensa. A interdição termina em um ponto onde a maldade parece triunfar em toda a linha. Mais tarde, noutro lugar da Comédia, saberemos que o pedido de interdição foi rejeitado - mas esta solução, puramente casual, em vez de nos oferecer a consolação de um sistema de compensações justas, serve apenas para nos fazer estremecer em face de uma fatalidade incalculável e cega.
Um trecho do Diário de Gide, sobre a A interdição, mostra que Balzac, em todas as suas obras, como que acessoriamente espalhou em profusão pensamentos surpreendentes e novos sobre os assuntos mais variados, que cada leitor tem a possiblidade de descobrir para si e fazer deles o seu tesouro. "Relida em voz alta A interdição de Balzac...", nota o autor de Imoralista, com um interesse constante e mais de uma vez com admiração. "Gostaria de ter bastante memória para não esquecer um espantoso elogio dos chineses, povo 'no qual as revelações são impossíveis', e um trecho muito notável sobre a revogação do Édito de Nantes que vale a pena ser citado."
Com razão Maurice Bardèche, em Une lecture de Balzac, 1964, chama a atenção para o fato de O coronel Chabert e A interdição, essas duas novelas perfeitas, serem talvez as mais cruéis de toda A comédia humana. Poderíamos não percebê-lo devido ao excesso de pormenores pitorescos do início de ambas: o ex-escrevente Balzac não resistira à tentação de descrever as mistificações a que são expostos os clientes pobres dos cartórios e o antiquário amador aproveitara a ocasião de evocar algumas das casas mais antigas de Paris. Mas em ambas assistimos a duelos de inexcedível crueldade, nos quais duas belas mulheres da alta sociedade de Paris enfrentam com todas as armas da perfídia os maridos, probos e dignos de toda estima, para apossarem-se de todo o patrimônio familiar a fim de satisfazer seu imoderado apetite de luxo.

 

 

 



I - OS DOIS AMIGOS

Em 1828, à uma hora da madrugada, duas pessoas saíam dum palacete situado no Faubourg Saint-Honoré, perto do Élysée-Bourbon; uma delas era um médico famoso, Horácio
Bianchon; a outra, um dos homens mais elegantes de Paris, o barão de Rastignac (Bianchon e Rastignac. Eis de volta os dois amigos que encontramos na Casa Vauquer
(O pai Goriot).), ambos amigos havia muito tempo. Tinham dispensado suas carruagens e não havia nenhuma no bairro; mas a noite estava bela e as calçadas secas.
- Vamos a pé até a avenida - disse Eugênio de Rastignac a Bianchon. - Tomarás um carro na praça, eles ficam lá até o amanhecer. Assim me acompanharás até minha
casa.
- Com muito prazer.
- E então, meu caro, que dizes?
- Dessa mulher? - respondeu friamente Bianchon.
- Sempre o mesmo Bianchon! - exclamou Rastignac.
- Como assim?
- Mas, meu caro, falas da marquesa d'Espard (A marquesa d'Espard já foi encontrada em Uma filha de Eva, onde a vimos intrigar para perder a sra. de Vandenesse,
encorajando-lhe o namoro com o escritor Nathan; em Beatriz, foi ela que humilhou ostensivamente a sra. de Rochefide à saída de um espetáculo.) como duma enferma
a internar em teu hospital.
- Queres saber o que penso, Eugênio? Se deixares a sra. de Nucingen (A sra. de Nucingen é Delfina, uma das filhas do falecido pai Goriot.) por essa marquesa, trocarás
teu cavalo caolho por um cego.
- A sra. de Nucingen tem trinta e seis anos, Bianchon.
- E essa tem trinta e três - replicou vivamente o doutor. - Suas mais cruéis inimigas não lhe dão mais de vinte e seis. Meu caro, quando tiveres interesse em descobrir
a idade duma mulher, olha para suas têmporas e para a ponta do nariz. Por mais que as mulheres façam com seus cosméticos, nada conseguem sobre essas incorruptíveis
testemunhas de suas agitações. Lá cada um de seus anos de vida deixou seus estigmas. Quando as têmporas duma mulher se mostram murchas, cheias de riscos, enrugadas
de certo modo; quando, na ponta de seu nariz, aparecem esses pontinhos que parecem as imperceptíveis partículas negras que as estufas, onde se queima carvão de terra,
fazem chover sobre Londres, não há engano possível! A mulher passou dos trinta anos. Pode ser bela e inteligente, amorosa, tudo quanto quiseres; mas terá passado
dos trinta anos, está na maturidade. Não censuro os que se afeiçoam a essa classe de mulheres; penso, apenas, que o homem distinto como tu não deve tomar uma maçã
reineta de fevereiro por uma tenra maçãzinha que sorri no ramo e pede uma dentada. O amor não consulta nunca o registro civil; ninguém ama uma mulher porque ela
tenha esta ou aquela idade, porque seja bonita ou feia, porque seja estúpida ou inteligente; a gente ama porque ama.
- Bem, mas, quanto a mim, amo por muitas outras razões. Ela é marquesa d'Espard, é Blamont-Chauvry, está na moda, tem alma, tem um pé tão lindo como o da duquesa
de Berry, tem talvez cem mil francos de renda e é possível que eu venha a desposá-la um dia! Enfim, ela me colocará numa situação que me permitirá pagar minhas dívidas.
- Eu te julgava rico - disse Bianchon, interrompendo Rastignac.
- Ora! Tenho quinze mil francos de renda, justamente o que preciso para custear minha cavalariça. Arruinei-me, meu caro, no caso Nucingen (Ver A casa Nucingen.).
Um dia te contarei essa história. Casei minhas irmãs, eis a única coisa real que ganhei desde que nos conhecemos e prefiro vê-las arrumadas na vida a ter cem mil
escudos de renda. Agora, que queres que eu faça? Tenho ambição. Até onde poderá levar-me a sra. de Nucingen? Com mais um ano, estarei preso, amarrado, como um homem
casado. Tenho todos os aborrecimentos do casamento e do celibato sem ter as vantagens de um nem de outro, situação falsa a que chegam todos aqueles que ficam muito
tempo agarrados à mesma saia.
- Ora! E achas que encontraste aqui a cama feita? - disse Bianchon. - Tua marquesa, meu caro, não me agrada absolutamente.
- Tuas opiniões liberais te perturbam a visão. Se a sra. d'Espard fosse uma sra. Rabourdin (Sra. Rabourdin: personagem balzaquiana, esposa de um chefe da repartição
do Ministério da Fazenda, burguesa linda e instruída que recebia literatos e artistas em seu salão da rua Duphot (Os funcionários).)...
- Escuta, meu caro, nobre ou burguesa, ela será sempre uma mulher sem alma, será sempre o tipo mais completo do egoísmo. Acredita-me, os médicos estão habilitados
a julgar os homens e as coisas: os mais hábeis entre nós confessam a alma enquanto confessam o corpo. A despeito dessa linda saleta onde estivemos até agora, a despeito
do luxo desse palacete, é bem possível que a marquesa esteja endividada.
- Que é que te faz pensar assim?
- Não afirmo, apenas suponho. Ela falou de sua alma como o falecido Luís XVIII falava de seu coração. Escuta-me: essa mulher franzina, pálida, de cabelos castanhos
e que se lamenta para se fazer lamentar, goza uma saúde de ferro, possui um apetite de lobo, uma força e uma perversidade de tigre. Jamais a gaze, a seda e a musselina
envolveram mais habilmente uma mentira! Ecco (Ecco: "eis" (em italiano no texto).)!
- Tu me assustas, Bianchon! Então aprendeste muitas coisas depois que estivemos na Casa Vauquer?
- Sim, depois daquela época tenho visto fantoches, bonecas e bonecos! Conheço um pouco os costumes dessas belas damas de quem tratamos o corpo e o que elas têm
de mais precioso, o filho, quando o amam, ou o rosto, que sempre adoram. Passamos a noite à sua cabeceira, extenuamo-nos para salvar a mais leve alteração de sua
beleza, não importa onde; somos bem-sucedidos, guardamos seu segredo como se estivéssemos mortos, elas mandam pedir a conta e a acham horrivelmente cara. Quem as
salvou? A natureza! Longe de elogiar-nos, falam mal de nós, temem recomendar-nos como médicos às amigas. Meu caro, essas mulheres de que vocês dizem: "São anjos!",
eu as vi despidas dessas delicadas aparências com que cobrem a alma, assim como das roupas com que disfarçam suas imperfeições, isto é, sem afetações e sem espartilho;
elas não são nada bonitas. Começamos a ver muito cascalho, muito lodo sob as ondas do mundo, quando estávamos encalhados no rochedo da Casa Vauquer; o que vimos
lá não era nada. Desde que frequento a alta sociedade, tenho encontrado monstruosidades vestidas de cetim, as Michonneau de luvas brancas, os Poiret (A srta. Michonneau
e o sr. Poiret, moradores da Casa Vauquer, que acabam por casar-se, eram - como os leitores de O pai Goriot devem estar lembrados - dois indivíduos repelentes.)
cobertos de condecorações, os homens eminentes fazendo agiotagem melhor que o papa Gobseck (Ver a novela Gobseck.)! Para vergonha dos homens, sempre que quis dar
um aperto de mão à virtude, encontrei-a tiritando de frio numa água-furtada, perseguida pelas calúnias, vegetando com mil e quinhentos francos de renda ou de ordenado
e passando por louca, ridícula ou estúpida. Enfim, meu caro, a marquesa é uma mulher da moda e é justamente dessa espécie de mulheres que tenho horror. Queres saber
por quê? Uma mulher que tem a alma elevada, a inteligência pura, um espírito meigo, o coração rico de sentimentos, que leva uma vida simples, não tem a mínima possibilidade
de ser da moda. Conclusão? Uma mulher da moda e um homem do poder são duas coisas análogas; com a diferença, apenas, de que as qualidades pelas quais um homem se
eleva acima dos outros o engrandecem e fazem sua glória, ao passo que as qualidades pelas quais uma mulher consegue seu domínio de um dia são vícios pavorosos; torna-se
falsa para ocultar seu temperamento e, para levar a vida militante da sociedade, precisa ter uma saúde de ferro sob uma aparência doentia. Como médico, sei que um
bom estômago exclui um bom coração. Tua mulher da moda não sente nada, sua ânsia de prazer tem como causa o desejo de aquecer sua natureza fria, procura emoções
e alegrias como um velho que se planta nas primeiras filas da Ópera. Como tem mais cabeça que coração, sacrifica a seu triunfo as paixões sinceras e os amigos, como
um general manda para a linha de fogo seus mais dedicados tenentes para ganhar uma batalha. A mulher da moda deixa de ser mulher: não é mãe, nem esposa, nem amante;
é um sexo localizado no cérebro, medicamente falando. Tua marquesa tem todos os sintomas de sua monstruosidade, o bico da ave de rapina, o olhar claro e frio, a
palavra doce; é polida como o aço duma máquina, movimenta tudo, exceto o coração.
- Há algo de verdade no que dizes, Bianchon.
- Algo de verdade! - replicou Bianchon. - Tudo é verdade. Pensas que não me senti ferido no fundo do coração pela insultante cortesia com que ela me fazia medir
a distância ideal que a nobreza coloca entre nós? Que eu não tenha sido acometido duma profunda compaixão por suas carícias de gata interesseira? Daqui a um ano,
ela será incapaz de escrever um bilhete para prestar-me o mais insignificante favor, e esta noite me crivou de sorrisos, certa de que eu possa influenciar meu tio
Popinot, de quem depende o bom resultado de seu processo.
- Meu caro, preferirias que ela te fizesse tolices? Admito tua catilinária contra as mulheres da moda; mas não estás metido na questão. Eu preferiria sempre para
esposa uma marquesa d'Espard à mais casta, à mais recatada, à mais amorosa criatura da terra. Case-se alguém com um anjo! Tem de ir enterrar-se em sua felicidade
no meio do campo. A esposa dum político é uma máquina de governar, um autômato de belos salamaleques - é o principal, o mais fiel dos instrumentos de que se serve
um ambicioso; é, enfim, um amigo que se pode comprometer sem perigo e que a gente desmente sem consequências. Imagina Maomé em Paris no século XIX! Sua esposa seria
uma Rohan (Rohan: família da alta arisrocracia francesa; vários dos seus membros são ligados à história da França.) - fina e aduladora como uma embaixadora, astuta
como Fígaro (Fígaro: personagem de Beaumarchais nas comédias O barbeiro de Sevilha e O casamento de Fígaro; tipo do intrigante espirituoso e engraçado.). Tua esposa
amorosa não serve para nada; uma esposa sociável serve para tudo, é um diamante com o qual o homem corta todas as vidraças, quando não tem a chave de ouro com a
qual se abrem as portas. Aos burgueses, as virtudes burguesas; aos ambiciosos, os vícios da ambição. Além disso, meu caro, pensas que o amor duma duquesa de Langeais
ou de Maufrigneuse, duma lady Dudley (A duquesa de Langeais, a duquesa de Maufrigneuse e lady Dudley: três grandes amorosas de A comédia humana, cujas aventuras
são contadas respectivamente em A duquesa de Langeais, Os segredos da princesa de Cadignan e O lírio do vale.) não proporciona imensos prazeres? Se soubesses quanto
valor a atitude fria e severa dessas mulheres dá à mínima prova de sua afeição! Que alegria ver uma pervinca brotar de sob a neve! Um sorriso por detrás do leque
desmente a reserva duma atitude imposta e vale todos os carinhos desenfreados de tuas burguesas de dedicação hipotética, pois, no amor, a dedicação está muito próxima
da especulação. E depois, uma mulher da moda, uma Blamont-Chauvry, também tem suas virtudes! Suas virtudes são a fortuna, o poder, o brilho, um certo desprezo por
tudo quanto está abaixo dela...
- Obrigado - disse Bianchon.
- Velho Bonifácio (Bonifácio: diz-se, na França, de pessoa excessivamente ingênua e crédula.)! - respondeu Rastignac, rindo. - Vamos, não sejas vulgar, faze como
teu amigo Desplein (Desplein. Acabamos de conhecer o ilustre cirurgião, mestre de Bianchon, em A missa do ateu.); sê barão, sê cavalheiro da ordem de São Miguel,
torna-te par da França e casa tuas filhas com duques.
- Por mim, quero que os quinhentos mil diabos...
- Ora, ora, só tens superioridade em medicina; realmente tenho muita pena de ti.
- Odeio essa espécie de gente, quero que venha uma revolução que nos livre deles para sempre.
- Quer dizer, meu caro Robespierre de bisturi, que não irás amanhã à casa de teu tio Popinot?
- Irei, sim - disse Bianchon. - Por ti, iria buscar água no inferno...
- Caro amigo, assim me comoves; jurei que o marquês seria interditado! Olha, ainda encontro uma velha lágrima para agradecer-te...
- Mas - disse Horácio, continuando - não te prometo obter resultado nesse teu assunto junto de João Júlio Popinot; não o conheces; mas depois de amanhã eu o levarei
à casa da tua marquesa e ela que o seduza, se puder. Duvido. Mesmo que todas as trufas, todas as duquesas, todas as franguinhas gordas e todas as lâminas de guilhotina
estivessem lá na graça de suas seduções; e mesmo que o rei lhe prometesse o pariato, e o bom Deus lhe desse a investidura do paraíso e as rendas do purgatório; nenhum
desses poderes conseguiria que ele fizesse passar um argueiro dum prato de sua balança para o outro. Ele é juiz como a morte é a morte.
Os dois amigos haviam chegado à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na esquina do Boulevard des Capucines.
- Estás em casa - disse rindo Bianchon, indicando-lhe o palácio do ministro. - E aqui está meu carro - acrescentou, apontando para um fiacre. - Assim se resume
para cada um de nós o futuro.
- Serás feliz até debaixo d'água, ao passo que sempre terei de lutar na superfície contra as tempestades, até que, soçobrando, eu vá pedir-te um lugarzinho na
tua gruta, meu velho!
- Até sábado - replicou Bianchon.
- Combinado - disse Rastignac. - Prometes-me o Popinot?
- Sim, farei tudo quanto minha consciência me permitir fazer. Talvez essa questão de interdição esconda algum pequeno dramorama (Dramorama: À volta da mesa da
Casa Vauquer, o gracejo estereotipado, em determinado momento, consistia em acrescentar a qualquer palavra o pseudossufixo rama, sob influência dos panoramas então
em voga.) para recordar por uma palavra o nosso mau bom tempo.
"Pobre Bianchon! Nunca passará dum homem honesto", disse consigo Rastignac, ao ver o fiacre afastar-se.

II - UM JUIZ MAL JULGADO

"Rastignac encarregou-me da mais difícil de todas as negociações", disse consigo Bianchon, lembrando-se, ao levantar-se, da delicada missão que lhe fora confiada.
"Mas nunca pedi a meu tio o mínimo favor no tribunal e lhe fiz mais de mil visitas grátis. Por outro lado, entre nós não há cerimônia. Ele me dirá sim ou não, e
tudo estará acabado."
Após esse pequeno monólogo, o famoso doutor dirigiu-se, às sete horas da manhã, à rue du Fouarre, onde morava o sr. João Júlio Popinot, juiz do tribunal de primeira
instância do departamento do Sena. A rue du Fouarre, palavra que significava antigamente palha, foi, no século XIII, a rua mais ilustre de Paris. Lá estavam as escolas
da Universidade quando as vozes de Abelardo e de Gerson (Abelardo: Pierre Abeilard ou Abélard (1079-1142), grande figura da filosofia escolástica, famosa pela parte
que tomou na "disputa dos universais" e pelo seu trágico amor a Heloísa. - Gerson: nome que se deu a Jean Charlier (1362-1428), teólogo, chanceler da Universidade
de Paris, animador principal do Concílio de Constanza.) ressoavam no mundo científico. Hoje é uma das ruas mais sujas do décimo segundo distrito, o quarteirão mais
pobre de Paris, aquele onde dois terços da população não têm lenha no inverno, o que lança mais pequerruchos à Roda dos Expostos, mais enfermos ao Hôtel-Dieu e mais
mendigos às ruas, o que manda mais trapeiros às esquinas, mais velhos doentes para junto das paredes onde brilha o sol, mais operários sem trabalho para as praças
e mais acusados à polícia correcional. No meio dessa rua sempre úmida e cuja valeta encaminha para o Sena as águas escuras de algumas tinturarias, há uma velha casa,
sem dúvida restaurada na época de Francisco I e construída de tijolos mantidos por fileiras de pedra de cantaria. Sua solidez parece atestada por uma configuração
externa que não é raro ver-se em algumas casas de Paris. Possui uma espécie de ventre - se é que se pode arriscar essa palavra - produzido pela intumescência que
descreve seu primeiro andar esmagado sob o peso do segundo e o terceiro, mas apoiado pela forte muralha do pavimento térreo. À primeira vista parece que os entremeios
das janelas, embora reforçados por suas cercaduras de pedra de cantaria, vão estourar, mas o observador não tarda a perceber que acontece com essa casa o mesmo que
com a torre de Bolonha (A torre de Bolonha: a famosa torre pendente de Bolonha (na Itália), chamada torre Asinelli.): os velhos tijolos e as velhas pedras carcomidas
conservam invencivelmente seu centro de gravidade. Em qualquer estação, os sólidos alicerces do pavimento térreo apresentam a coloração amarelada e a imperceptível
ressudação que a umidade dá à pedra. O transeunte sente frio ao caminhar ao longo dessas paredes mal protegidas pelos marcos de pedra das esquinas contra a lama
jogada pelos cabriolés. Como em todas as casas construídas antes da invenção das carruagens, o vão da porta forma uma arcada extremamente baixa muito semelhante
ao pórtico duma prisão. À direita dessa porta há três janelas guarnecidas externamente de grades de ferro, de malhas tão cerradas que é impossível aos curiosos ver
o destino interior das peças úmidas e sombrias, tão sujas e empoeiradas são, por outro lado, as vidraças. À esquerda há outras duas janelas iguais, uma das quais,
às vezes aberta, deixa ver o porteiro, sua esposa e seus filhos movimentando-se, trabalhando, cozinhando, comendo e gritando no centro duma sala assoalhada, forrada
de madeira, onde tudo está caindo aos pedaços e à qual se desce por dois degraus, o que parece iniciar a progressiva elevação que tem sofrido o calçamento parisiense.
Se, num dia de chuva, algum transeunte se abrigar sob a longa abóbada de vigas salientes e caiadas que vai da porta até a escada, é difícil que não contemple o quadro
que o interior da casa apresenta. À esquerda há um jardinzinho quadrado que não permite dar mais de quatro passos em qualquer sentido, jardim de terra negra onde
existem latadas de caniços sem ramos e onde, na falta de vegetação, surgem, à sombra de duas árvores, papéis, roupas velhas, cacos, ciscos, caídos do telhado; terra
infértil onde o tempo espalhou sobre as paredes, sobre os troncos das árvores e seus ramos, manchas poeirentas semelhantes às da fuligem fria. As duas moradias em
esquadria de que se compõe a casa recebem a luz desse jardinzinho limitado por duas casas vizinhas construídas com barrotes, decrépitas, ameaçando ruir e nas quais
se vê, em cada andar, algum atestado grotesco da profissão exercida pelo locatário. Aqui, longas varas sustentam imensos novelos de lã tinta que secam; ali, balançam-se
nas cordas camisas lavadas; mais adiante, livros deitados mostram sobre uma prancha suas capas recentemente marmorizadas; as mulheres cantam, os maridos assobiam,
os filhos gritam; o marceneiro corta suas tábuas, um torneiro trabalhando em cobre faz ranger seu metal; todas as indústrias se juntam para produzir um barulho que
o número dos instrumentos torna furibundo. O sistema geral da decoração interior dessa paisagem, que não é um pátio, nem um jardim, nem uma abóbada e que tem um
pouco de todas essas coisas, consiste em pilares de madeira apoiados sobre bases de pedra e que formam ogivas. Duas arcadas dão para o jardinzinho; duas outras,
fronteiras ao portão principal, deixam ver uma escada de madeira cujo corrimão foi outrora uma maravilha de serralharia, como se pode ver pela originalidade da forma
do ferro, e cujos degraus gastos tremem sob os pés. As portas de cada apartamento têm as ombreiras pardacentas de sujeira, de graxa, de pó e são guarnecidas de postigos
revestidos de veludo de Utrecht, pontilhadas de pregos que já perderam a douradura e dispostos em losangos. Esses restos de esplendor indicam que, no reinado de
Luís XIV, essa casa era habitada por algum conselheiro do Parlamento, por eclesiásticos ricos ou por algum tesoureiro de emolumentos. Esses vestígios do antigo luxo,
porém, provocam um sorriso nos lábios pelo ingênuo contraste que oferecem entre o presente e o passado. O sr. João Júlio Popinot morava no primeiro andar dessa casa,
onde a obscuridade natural dos primeiros andares das casas parisienses era duplicada pela estreiteza da rua. A velha habitação era conhecida de todo o décimo segundo
distrito, ao qual a Providência dera esse magistrado, como dá uma planta benéfica para curar ou aliviar cada doença. Eis um esboço dessa personagem a quem a brilhante
marquesa d'Espard queria seduzir.
Na qualidade de magistrado, o sr. Popinot vestia-se sempre de preto, costume que contribuía para torná-lo ridículo aos olhos das pessoas habituadas a tudo julgar
por um exame superficial. Os homens que quiserem manter a dignidade que essa roupa impõe precisam submeter-se a cuidados contínuos e minuciosos; mas o caro sr. Popinot
era incapaz de conseguir o asseio puritano exigido pelo preto. Suas calças sempre gastas pareciam feitas desse tecido com que se fazem becas; a sua postura habitual
acabava desenhando nelas um tão grande número de pregas que apareciam, num e noutro lugar, linhas esbranquiçadas, vermelhas ou lustrosas, que anunciavam uma sórdida
avareza ou a mais despreocupada pobreza. Suas grossas meias de lã enrugavam-se nos sapatos deformados. Sua roupa interior tinha esse tom encardido adquirido no armário
por uma longa permanência e que denunciava na falecida sra. Popinot a mania da roupa de baixo; segundo a moda flamenga, ela certamente não se dava ao trabalho de
fazer a barrela mais de duas vezes por ano. O casaco e o colete do magistrado estavam em harmonia com as calças, os sapatos, as meias e a roupa interior. Sua falta
de cuidado era uma sorte, pois, no dia em que envergava um casaco novo, adaptava-o ao conjunto do vestuário, enchendo-o de manchas com uma inexplicável rapidez.
O velhote esperava que a cozinheira o advertisse do envelhecimento do chapéu para substituí-lo. Sua gravata estava sempre torcida e ele nunca corrigia a desordem
em que seu cabeção de juiz deixava o colarinho de sua camisa encarquilhada. Não tinha o mínimo cuidado com sua cabeleira grisalha e só fazia a barba duas vezes por
semana. Nunca usava luvas e habitualmente metia as mãos nas algibeiras vazias do colete, cujas bordas sujas, quase sempre puídas, acrescentavam um traço a mais à
negligência de sua pessoa. Quem já frequentou o Ministério da Justiça, em Paris, local onde se observam todas as variedades das vestes pretas, pode imaginar o aspecto
do sr. Popinot. O hábito de passar sentado dias inteiros modifica muito o corpo, do mesmo modo que o aborrecimento causado por intermináveis arengas age sobre a
fisionomia dos magistrados. Encerrado em salas ridiculamente estreitas, sem majestade de arquitetura e onde o ar fica logo viciado, o juiz parisiense adquire obrigatoriamente
uma fisionomia carrancuda, desfigurada pela atenção, entristecida pelo desgosto; a cor do rosto torna-se desbotada, adquire tonalidades esverdeadas ou terrosas,
segundo o temperamento do indivíduo. Finalmente, dentro de certo tempo, o mais florescente rapaz torna-se uma pálida máquina de considerandos, um autômato que aplica
o Código em todos os casos, com a fleuma dos ponteiros dum relógio. Assim, se a natureza dotara o sr. Popinot de um aspecto pouco agradável, a magistratura não o
havia aformoseado. Sua ossatura apresentava linhas contraditórias. Seus grossos joelhos, seus grandes pés e suas enormes mãos contrastavam com um rosto sacerdotal
que se assemelhava vagamente a uma cabeça de bezerro insípida de tão meiga, mal iluminada por olhos de cores diversas, desprovida de sangue, dividida por um nariz
reto e chato, encimada por uma fronte sem protuberâncias e enfeitada de duas imensas orelhas que se dobravam sem graça. O cabelo muito fino e escasso deixava ver
o crânio através de vários sulcos irregulares. Basta um traço para recomendar esse rosto a um fisionomista. Esse homem tinha uma boca de cujos lábios emanava uma
bondade divina. Eram grossos lábios vermelhos, cheios de pregas, sinuosos, móveis, nos quais a natureza exprimia belos sentimentos; lábios que falavam ao coração
e denunciavam nesse homem a inteligência, a lucidez, a intuição, um espírito angélico; assim, estaria enganado quem o julgasse apenas por sua testa deprimida, seus
olhos sem calor e sua lamentável maneira de andar. Sua vida estava de acordo com sua fisionomia, era cheia de trabalhos secretos e ocultava a virtude de um santo.
Importantes estudos sobre Direito o haviam recomendado tão bem, quando Napoleão reorganizou a Justiça em 1806 e 1811, que, por indicação de Cambacérès (Cambacérès:
Jean-Jacques Cambacérès (1753-1824), membro da Convenção, segundo cônsul, depois arquichanceler do Império, um dos autores do Código civil de Napoleão.), foi um
dos primeiros nomeados para ocupar um lugar na Corte imperial de Paris. Popinot não era intrigante. A cada nova exigência, a cada nova solicitação, o ministro rebaixava
Popinot, que nunca pôs os pés na casa do chanceler-mor nem na do grande juiz. Da Corte, foi transferido para o Tribunal e mais tarde rebaixado até os postos mais
inferiores pelas intrigas de pessoas ativas e turbulentas. Foi nomeado juiz suplente. Um clamor geral ergueu-se no Tribunal: - Popinot, juiz suplente! Essa injustiça
chocou o mundo judiciário, os advogados, os oficiais de Justiça, todos, enfim, exceto Popinot, que não se queixou. Passado o primeiro clamor, todos acharam que tudo
estava correndo da melhor maneira no melhor dos mundos (Tudo estava correndo da melhor maneira no melhor dos mundos: frase famosa que resume a filosofia de Leibniz,
e que foi alvo da ironia de Voltaire em Cândido.), que, certamente, deve ser o mundo judiciário. Popinot foi juiz suplente até o dia em que o mais famoso ministro
da Justiça da Restauração vingou as injustiças feitas a esse homem modesto e silencioso pelos grandes juízes do Império. Após ter sido juiz suplente durante doze
anos, o sr. Popinot certamente acabaria seus dias como simples juiz do Tribunal do Sena.
Para explicar a obscura carreira dum dos homens mais eminentes da classe judiciária, é necessário entrar aqui em algumas considerações que servirão para revelar
sua vida e seu caráter e que demonstrarão, por outro lado, algumas das engrenagens dessa grande máquina denominada justiça. O sr. Popinot foi classificado pelos
três presidentes que teve sucessivamente o Tribunal do Sena numa categoria de juizada, única palavra capaz de traduzir a ideia a exprimir. Não alcançou nessa companhia
a reputação de capacidade que seus trabalhos lhe haviam antecipadamente granjeado. Do mesmo modo como um pintor é invariavelmente encerrado na categoria dos paisagistas,
dos retratistas, dos pintores de história, de marinha ou de gênero pela classe dos artistas, dos conhecedores ou dos tolos que por inveja, por onipotência crítica
ou por preconceito o bloqueiam em sua inteligência, crendo todos que há calosidades em todos os cérebros, estreiteza de julgamento que o mundo aplica aos escritores,
aos homens de Estado, a todos os que começam por uma especialidade antes de serem proclamados universais; assim, Popinot teve seu destino e foi murado em seu gênero.
Os magistrados, os advogados, os procuradores, todos quantos labutam no terreno judiciário distinguem dois elementos numa causa: o direito e a equidade. Somente
a equidade resulta dos fatos; o direito é a aplicação dos princípios aos fatos. Um homem pode ter razão por equidade e não ter razão por justiça, sem que o juiz
seja censurável. Entre a consciência e o fato há um abismo de razões determinantes desconhecidas do juiz e que condenam ou legitimam um fato. O juiz não é Deus,
sua missão consiste em adaptar os fatos aos princípios, julgar espécies variáveis ao infinito servindo-se duma medida determinada. Se o juiz tivesse o poder de ler
na consciência e deslindar os motivos a fim de proferir sentenças justas, cada juiz seria um grande homem. A França necessita de cerca de seis mil juízes; nenhuma
geração tem seis mil grandes homens a seu serviço e com mais forte razão não pode encontrá-los para sua magistratura. No meio da civilização parisiense, Popinot
era um habilíssimo cádi que, pela natureza de seu espírito e à força de confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabara percebendo o desacerto das aplicações
espontâneas e violentas. Auxiliado por sua intuição judiciária, atravessava o invólucro da dupla mentira sob o qual os litigantes ocultam o interior dos processos.
Juiz como o ilustre Desplein era cirurgião, penetrava nas consciências como aquele sábio penetrava nos corpos. Sua vida e seus hábitos o haviam levado à descoberta
dos pensamentos mais secretos através do exame dos fatos. Esquadrinhava um processo como Cuvier escavava o húmus do globo. Como esse grande pensador, avançava de
dedução em dedução antes de concluir e reproduzir o passado da consciência como Cuvier reconstruía um anoplotério (Anoplotério: ruminante fóssil da era terciária.).
A propósito de uma informação, despertava às vezes à noite, surpreendido por um filão de verdade que brilhava subitamente em seu pensamento. Impressionado com as
profundas injustiças que coroam essas lutas em que tudo prejudica os homens de bem e beneficia os patifes, concluía muitas vezes contra o direito em favor da equidade
em todas as causas em que se tratasse de questões de algum modo divinatórias. Passou, assim, entre seus colegas, por um espírito pouco prático; suas razões demoradamente
deduzidas retardavam as deliberações. Quando Popinot percebeu o desgosto com que o ouviam, passou a dar sua opinião sucintamente. Dizem que julgava mal os casos
dessa natureza; mas, como sua capacidade de apreciação era notável, seu julgamento lúcido e sua penetração profunda, foi considerado possuidor duma vocação especial
para as penosas funções de juiz de instrução. Ficou, pois, como juiz de instrução durante a maior parte de sua vida judiciária. Embora suas qualidades o tornassem
eminentemente apto para essa difícil carreira e ele tivesse a reputação de ser um profundo criminalista que gostava de suas funções, a bondade de seu coração constantemente
o torturava e ele ficava esmagado entre sua consciência e a compaixão como um torno. Embora mais bem retribuídas que as de juiz civil, as funções de juiz de instrução
não tentam a ninguém; são muito incômodas. Popinot, homem modesto e de virtuoso saber, sem ambição, trabalhador infatigável, não se queixou de sua sorte; fez ao
bem público o sacrifício de suas inclinações e de sua bondade e deixou-se remover para as águas tranquilas da instrução criminal, onde soube ser, ao mesmo tempo,
servo e benfazejo. Às vezes, seu escrivão levava ao acusado dinheiro para comprar tabaco ou uma roupa quente no inverno, ao acompanhá-lo do gabinete do juiz à Souricière
(Souricière: o sentido próprio da palavra é "ratoeira".), prisão temporária onde se conservam os acusados à disposição do instrutor. Sabia ser juiz inflexível e
homem caridoso. Assim, ninguém obtinha confissões mais facilmente que ele sem recorrer aos ardis judiciários. Tinha, por outro lado, a perspicácia do observador.
Esse homem, aparentemente de uma bondade tola, simplório e distraído, descobria as manhas dos crispins (Crispim: personagem da comédia italiana, tipo de criado engraçado
e impertinente.) das galés, desmascarava as criadas mais astuciosas e subjugava os celerados. Circunstâncias pouco comuns haviam aguçado sua perspicácia; mas, para
descrevê-las, é necessário penetrar em sua vida íntima, pois o juiz era apenas o seu lado social; havia nele um outro homem, maior e menos reconhecido.
Doze anos antes do dia em que esta história começa, em 1816, durante a terrível carestia de gêneros que coincidiu fatalmente com a permanência na França dos chamados
aliados (Aliados: nome que se dava aos confederados (ingleses, russos, prussianos e austríacos) que em 1814 e 1815 invadiram a França para restaurar os Bourbons.),
Popinot foi nomeado presidente da comissão extraordinária instituída para socorrer os indigentes de seu bairro, no momento em que projetava abandonar a rua do Fouarre,
onde a casa que ocupava o desgostava tanto quanto à esposa. O grande jurisconsulto, o profundo criminalista, cuja superioridade parecia aos colegas uma aberração,
tinha, havia cinco anos, percebido os resultados judiciários sem lhes ver as causas. Subindo as águas-furtadas, vendo as misérias, estudando as cruéis necessidades
que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliando, enfim, suas longas lutas, foi acometido de compaixão. O juiz tornou-se então o São Vicente de
Paulo (São Vicente de Paulo (1581-1660): sacerdote famoso por sua caridade, fundador da obra dos Enfants Trouvés (isto é, na Roda dos Expostos).) dessas crianças
grandes, desses trabalhadores enfermos. Sua transformação não foi completa desde o primeiro momento. A beneficência, como os vícios, tem seu atrativo. A caridade
consome a bolsa dum santo como a roleta devora as posses dum jogador, gradualmente. Popinot começou de infortúnio em infortúnio, de esmola em esmola; e, após ter
levantado todos os farrapos que formam uma espécie de curativo sob o qual supura uma chaga febril, tornou-se, ao fim de um ano, a providência de seu bairro. Fez-se
membro do comitê de beneficência e do escritório de caridade. Em qualquer lugar em que as funções devessem ser exercidas gratuitamente, ele as aceitava e agia sem
ostentação, à maneira do homem da capinha (O homem da capinha: nome dado pelo povo ao joalheiro Edmé Champion (1766-1852), filantropo que distribuía sopa aos pobres
de Paris.) que passa a vida a levar sopa aos mercados e aos lugares onde há gente faminta. Popinot tinha a ventura de agir num círculo mais vasto e numa esfera mais
elevada; vigiava tudo, prevenia o crime, dava trabalho aos operários desocupados, fazia internar os inválidos, distribuía seus recursos com discernimento por todos
os pontos ameaçados, constituindo-se o conselheiro da viúva, o protetor das crianças desamparadas, o comanditário dos pequenos negócios. Ninguém, no Tribunal nem
em Paris, conhecia essa vida secreta de Popinot. Há virtudes tão luminosas que comportam a obscuridade; os homens se apressam a ocultá-las. Quanto aos favorecidos
do magistrado, trabalhando todos durante o dia e estando fatigados à noite, eram pouco indicados para fazer-lhe o elogio; tinham a ingratidão própria das crianças,
que nunca podem pagar suas dívidas porque devem demais. Há ingratidões forçadas; mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.
A partir do segundo ano de seu apostolado secreto, Popinot acabara convertendo em sala de visitas o salão do pavimento térreo de sua casa, que era iluminado pelas
três janelas com grades de ferro. As paredes e o teto dessa grande peça haviam sido caiados e o mobiliário constava de bancos de madeira semelhantes aos das escolas,
um armário tosco, uma escrivaninha de nogueira e uma poltrona. No armário ficavam seus registros de beneficência, seus talões de vales de pão, seu borrador. Mantinha
uma verdadeira escrita comercial, a fim de não se deixar lograr pelo coração. Todas as pobrezas do bairro eram enumeradas, classificadas num livro onde cada infortúnio
tinha sua conta, como os diversos devedores na casa dum comerciante. Quando havia dúvida sobre alguma família, sobre um homem a socorrer, o magistrado encontrava
às suas ordens as informações da polícia de segurança. Lavienne, criado feito para o patrão, era seu ajudante de campo. Resgatava ou renovava as cautelas do monte
de socorro e corria aos lugares mais necessitados enquanto o patrão trabalhava no Tribunal. Das quatro às sete da manhã, no verão, e das seis às nove, no inverno,
a sala enchia-se de mulheres, crianças, indigentes, aos quais Popinot dava audiência. Não havia necessidade de estufa no inverno, pois a multidão era tão compacta
que a atmosfera ficava aquecida; Lavienne apenas jogava palha sobre o assoalho muito úmido. Com o decorrer do tempo, os bancos haviam ficado polidos como acaju envernizado;
depois, à altura dum homem, a parede recebera uma certa pintura escura feita pelos andrajos e pelas roupas sujas daquela pobre gente. Esses desgraçados estimavam
tanto Popinot que, nas manhãs de inverno, enquanto se agrupavam diante de sua porta à espera de que ela se abrisse, as mulheres aquecendo-se com esquentadores e
os homens remexendo-se para se aquecer, jamais um murmúrio perturbara seu sono. Os trapeiros, as pessoas de profissões noturnas conheciam aquela casa e frequentemente
viam o gabinete do magistrado iluminado em horas tardias. E mesmo os ladrões diziam, ao passar: Essa é a casa dele, e a respeitavam. A manhã pertencia aos pobres,
a tarde aos criminosos e a noite aos trabalhos judiciários.
O gênio de observação que Popinot possuía era, pois, necessariamente, bifrons (Bifrons: "de duas frentes" ou "duplo" (em latim no original).): descobria as virtudes
da miséria, os bons sentimentos ofendidos, as belas ações em princípio, as dedicações ignoradas, como ia procurar no fundo das consciências os mais leves esboços
do crime, os fios mais tênues dos delitos, para tudo discernir neles. O patrimônio de Popinot representava mil escudos de renda. Sua esposa, irmã do sr. Bianchon
pai, médico em Sancerre, trouxera-lhe outro tanto duas vezes. Morrera havia cinco anos e deixara a fortuna ao marido. Como os vencimentos de juiz substituto não
são muito grandes e Popinot era juiz efetivo havia quatro anos apenas, é fácil perceber a causa de sua economia em tudo quanto se referisse à sua pessoa ou a seu
modo de vida, tendo em conta o quanto eram medíocres seus rendimentos e grande sua caridade. Por outro lado, a indiferença relativa ao vestuário, que assinalava
em Popinot o homem preocupado, não é a característica da alta ciência, da arte cultivada com paixão, do pensamento constantemente em atividade? Para completar este
retrato, bastará acrescentar que Popinot fazia parte do pequeno número de juízes do Tribunal do Sena aos quais a condecoração da Legião de Honra não fora concedida.
Tal era o homem que o presidente da segunda câmara do Tribunal a que pertencia Popinot, incluído havia dois anos entre os juízes civis, incumbira de proceder ao
interrogatório do marquês d'Espard, a propósito do requerimento de interdição apresentado por sua esposa.
A rue du Fouarre, onde formigavam tantos infelizes desde cedo, pela manhã, tornava-se deserta às nove horas e retomava seu aspecto sombrio e miserável. Bianchon
apressou, portanto, o trote do cavalo a fim de surpreender o tio no meio da audiência. Não foi sem um sorriso que pensou no contraste que faria o juiz ao lado da
sra. d'Espard; prometeu-se, porém, convencê-lo a vestir-se de maneira a não ficar muito ridículo.
"Meu tio terá pelo menos um casaco novo?", pensava Bianchon, ao entrar na rue du Fouarre, onde as janelas do salão do pavimento térreo projetavam uma luz amortecida.
"Acho bom ir lá em cima entender-me com Lavienne."
Ao ouvir o ruído do cabriolé, uma dezena de pobres surpresos saíram de sob o pórtico e descobriram-se ao reconhecer o médico; pois Bianchon, que tratava gratuitamente
os doentes que o juiz lhe recomendava, não era menos conhecido que o tio pelos infelizes que lá se aglomeravam. Bianchon avistou o tio no meio da sala, cujos bancos
estavam realmente cheios de indigentes que apresentavam as grotescas singularidades de costumes diante das quais se detêm na rua mesmo os transeuntes menos dotados
de temperamento artístico. Certamente um desenhista, um Rembrandt, se algum houvesse atualmente, teria concebido lá uma de suas mais notáveis composições, ao ver
aquelas misérias ingenuamente impotentes e silenciosas. Aqui o rosto enrugado dum austero velho de barba branca, de crânio apostólico, representava um perfeito São
Pedro. Seu peito, parcialmente descoberto, deixava ver músculos salientes, índice dum temperamento de bronze que lhe servira de ponto de apoio para sustentar todo
um poema de desgraças. Lá, uma jovem senhora dava de mamar ao filhinho mais novo para impedi-lo de gritar, enquanto mantinha outro, de cerca de cinco anos, entre
os joelhos. Aquele seio cuja alvura brilhava no meio dos andrajos, aquela criança de carne transparente e seu irmão, cuja atitude revelava um futuro moleque, enterneciam
a alma por uma espécie de gracioso contraste com a longa fila de rostos avermelhados pelo frio, no meio da qual aparecia aquela família. Mais longe, uma velha, pálida
e abatida, exibia essa máscara repelente de pauperismo revoltado, disposto a vingar num dia de sedição todas as penas passadas. Havia lá também o operário jovem,
débil, preguiçoso, cujo olhar cheio de inteligência denunciava elevadas faculdades sufocadas por necessidades inutilmente combatidas, calando-se a propósito de seus
sofrimentos e prestes a morrer de fome por não encontrar ocasião de atravessar as grades do imenso viveiro onde se agitam essas misérias que se entredevoram. As
mulheres estavam em maioria; os maridos, que tinham de seguir para as oficinas, deixavam-lhes, sem dúvida, a tarefa de advogar a causa do lar com esse espírito que
caracteriza a mulher do povo, que é quase sempre a rainha do casebre. Viam-se lenços rasgados sobre todas as cabeças, roupas manchadas de lama, mantas em frangalhos,
blusas sujas e esburacadas, mas, em todos eles, olhos que brilhavam como chamas vivas. Conjunto horrível, cujo aspecto inicialmente inspirava desgosto, mas que logo
causava um certo terror ao se perceber que, puramente fortuita, a resignação daquelas almas, atormentadas por todas as necessidades da vida, era uma especulação
baseada sobre a caridade. As duas velas que iluminavam o salão tremeluziam numa espécie de nevoeiro causado pela atmosfera infecta daquele local mal arejado.
O magistrado não era o personagem menos pitoresco no meio daquela assembleia. Tinha na cabeça um gorro de algodão arruivado. Como estava sem gravata, o pescoço,
vermelho de frio e enrugado, destacava-se acima da gola puída do velho roupão. Sua fisionomia fatigada tinha essa expressão meio estúpida conferida pela preocupação.
Sua boca, como a de todos os que estão trabalhando, estava contraída como uma bolsa da qual se amarrou o cordão. A testa franzida parecia suportar o fardo de todas
as confidências que lhe faziam: ele sentia, analisava e julgava. Atento como um usurário, seus olhos abandonavam os livros e os apontamentos para penetrar no foro
íntimo dos indivíduos, aos quais examinava com a rapidez de visão pela qual os avarentos exprimem suas inquietações. De pé atrás do patrão, pronto para executar
suas ordens, Lavienne fazia certamente o policiamento e acolhia os recém-chegados, encorajando-os contra a própria vergonha. Quando o médico apareceu, houve um movimento
nos bancos. Lavienne voltou-se e ficou estranhamente surpreso de ver Bianchon.
- Ah, és tu, meu rapaz! - disse Popinot, estendendo os braços. - Que te traz aqui a esta hora?
- Tive medo de que o senhor fizesse hoje, antes de nos encontrarmos, certa visita judiciária a respeito da qual quero falar com o senhor.
- Pois bem - disse o juiz, dirigindo-se a uma gorda mulherzinha que estava de pé diante dele -, se não me diz que lhe sucede, não posso adivinhá-lo, minha filha.
- Decida-se - disse-lhe Lavienne. - Não tome o tempo dos outros.
- Meu senhor - disse por fim a mulher, corando e baixando a voz de maneira a só ser ouvida por Popinot e Lavienne -, sou vendedora ambulante. Tenho meu filho mais
novo pelo qual devo pagar a mensalidade de quem o cria. Tinha escondido o meu dinheiro...
- Bem, e seu homem o tirou? - disse Popinot, prevendo o desfecho da confissão.
- Sim, senhor.
- Como se chama?
- Pomponne.
- E seu marido?
- Toupinet.
- Rue du Petit-Banquier? - perguntou Popinot, folheando seu registro. - Ele está preso - acrescentou, lendo uma observação à margem do espaço onde estava inscrito
o casal.
- Por dívidas, meu caro senhor.
Popinot fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Mas, senhor, não tenho com que sortir meu carrinho de mão, o proprietário me procurou ontem e obrigou-me a pagar-lhe, senão eu teria ido para a rua.
Lavienne inclinou-se para o patrão e disse-lhe algumas palavras ao ouvido.
- Então, de quanto precisa para comprar suas frutas no mercado?
- Ora, meu caro, eu precisaria, para continuar meu comércio, de... sim, precisaria muito de dez francos.
O juiz fez um sinal a Lavienne, que tirou dum grande saco dez francos e os deu à mulher, enquanto o juiz inscrevia o empréstimo em seu registro. Ao ver o transporte
de alegria que fez estremecer a vendedora, Bianchon percebeu as ansiedades que sem dúvida haviam agitado a mulher enquanto se dirigia de sua casa à do juiz.
- Para o senhor - disse Lavienne ao velho de barba branca.
Bianchon chamou o criado à parte e perguntou-lhe quanto tempo ainda duraria a audiência.
- O sr. Popinot recebeu duzentas pessoas esta manhã e ainda há oitenta a atender - disse Lavienne. - O doutor tem tempo de fazer suas primeiras visitas.
- Meu rapaz - disse o juiz, voltando-se e segurando Bianchon pelo braço -, aqui tem dois endereços, perto daqui, um à rue de Seine e o outro à rue de l'Arbálète.
Dá um pulinho lá. À rue de Seine, uma mocinha acaba de se asfixiar, e à rue de l'Arbálète encontrarás um homem que é preciso mandar para teu hospital. Espero-te
para o almoço.
Bianchon voltou uma hora mais tarde. A rue du Fouarre estava deserta, o dia começava a clarear, o juiz subia a seus aposentos, o último pobre cuja miséria o magistrado
acabara de mitigar ia saindo e o saco de Lavienne estava vazio.
- Então, como estão eles?
- O homem morreu - respondeu Bianchon -, mas a moça escapará desta.
Desde que ficara privado do olhar e da mão duma mulher, o apartamento onde morava Popinot adquirira uma fisionomia em harmonia com a do morador. O desleixo dum
homem absorvido por uma ideia dominante imprimia seu cunho singular a todas as coisas. Por toda a parte, uma poeira inveterada, e os objetos espalhados mostravam
a mudança do destino que haviam sofrido, lembrando a desordem duma casa de solteirão. Papéis em vasos de flores, frascos de tinta vazios em cima dos móveis, pratos
esquecidos, isqueiros fosfóricos convertidos em velas no momento em que era preciso fazer uma consulta, mudanças de móveis começadas e abandonadas e, por fim, todos
os amontoamentos e os espaços vazios ocasionados por tentativas não realizadas de arrumação. Mas o gabinete do magistrado, particularmente agitado por essa contínua
desordem, denunciava sua marcha sem interrupções, a pressa de um homem sobrecarregado de ocupações, perseguido por necessidades que se entrecruzam. A biblioteca
dava a impressão de ter sofrido uma pilhagem, os livros espalhavam-se pelo chão, uns empilhados de costas com as páginas abertas, outros caídos com as folhas contra
o assoalho; os autos de processo, dispostos em linha ao longo do armário de livros, atulhavam o assoalho. Esse assoalho não se encerava havia dois anos. As mesas
e os móveis estavam cobertos de ex-voto levados pela pobreza agradecida. Sobre os copos de vidro azul que ornavam a lareira viam-se dois globos de vidro em cujo
interior se misturavam diversas cores, o que lhes dava a aparência dum produto da natureza. Ramos de flores artificiais, quadros onde aparecia o monograma de Popinot
rodeado de corações e perpétuas decoravam as paredes. Aqui, caixas em pretensioso trabalho de marcenaria e que não podiam servir para nada. Ali, pesos de papéis
do tipo das obras executadas nas galés pelos forçados. Essas obras-primas de paciência, esses rébus de gratidão, esses ramos murchos davam ao gabinete e ao quarto
do juiz o aspecto dum bazar de brinquedos. O velhote usava essas coisas como memento, enchia-as de notas, de penas abandonadas e de papéis miúdos. Esses sublimes
testemunhos duma caridade divina estavam cobertos de pó, sem brilho. Alguns pássaros perfeitamente empalhados, mas roídos pelas traças, destacavam-se nessa floresta
de bagatelas onde dominava um angorá, o gato favorito da sra. Popinot, a quem um naturalista na miséria o restituíra sem dúvida com todas as aparências da vida,
pagando assim com um tesouro eterno uma pequena esmola. Algum artista do bairro, a quem o coração desencaminhara os pincéis, fizera igualmente os retratos do sr.
e da sra. Popinot. Até na alcova viam-se bordados, paisagens em ponto de marca e cruzes de papel dobrado cujos floreios atestavam um trabalho insensato. As cortinas
das janelas estavam enegrecidas pela fumaça e os cortinados já não tinham cor. Entre a lareira e a longa mesa quadrada sobre a qual trabalhava o magistrado, a cozinheira
servira duas taças de café com leite sobre uma mesinha auxiliar. Duas poltronas de acaju estofadas com crina esperavam o tio e o sobrinho. Como a luz interceptada
pelas janelas ainda não atingia aquele lugar, a cozinheira deixara duas velas cujo pavio desmesuradamente longo formava um morrão e emitia essa luz avermelhada que
faz a vela durar mais, graças à morosidade da combustão, truque descoberto pelos avarentos.
- Meu caro tio, o senhor devia vestir uma roupa mais quente quando desce à sala de visita.
- Não quero deixar a pobre gente esperando! Então, que queres de mim?
- Vim convidá-lo para jantar amanhã na casa da marquesa d'Espard.
- Alguma parenta nossa? - perguntou o juiz, com uma expressão tão ingenuamente preocupada que Bianchon se pôs a rir.
- Não, meu tio, a marquesa d'Espard é uma ilustre e poderosa dama que apresentou um requerimento ao Tribunal pedindo a interdição de seu marido, e o senhor foi
incumbido...
- E queres que eu vá jantar com ela! Estás louco? - disse o juiz, empunhando o código do processo. - Toma, lê o artigo que proíbe ao magistrado beber e comer na
casa duma das partes a que deve julgar. A tua marquesa que venha me visitar, se tiver alguma coisa para dizer-me. Devo, realmente, ir interrogar seu marido amanhã,
após ter examinado o caso esta noite.
Levantou-se, apanhou uns autos que se achavam sob um peso de papéis ao alcance de sua vista e disse, após ter lido o título:
- Aqui estão as peças do processo. Já que essa ilustre e poderosa dama te interessa - disse -, vejamos a petição!
Popinot cruzou o roupão cujas abas estavam sempre caindo e deixavam seu peito descoberto; molhou as fatias de pão no café frio e procurou a petição, que leu, permitindo-se
alguns parênteses e algumas discussões nas quais o sobrinho tomou parte.
III - O REQUERIMENTO

"Ao senhor presidente do Tribunal civil de primeira instância do departamento do Sena, com sede no Tribunal de Justiça.
"A sra. Joana-Clementina-Athenais de Blamont-Chauvry, esposa do sr. Carlos-Maurício-Maria Andoche, conde de Nègrepelisse, marquês d'Espard (boa nobreza), proprietária;
residente a referida sra. d'Espard à rue du Faubourg Saint-Honoré, nº 104, e o referido sr. d'Espard à rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, nº 22 (Ah, sim, o presidente
me disse que era no meu bairro!), por seu advogado, sr. Desroches... (Desroches: já encontrado em Uma estreia na vida e O coronel Chabert.)"
- Desroches! Um obscuro agente de negócios, um homem malvisto pelo Tribunal e pelos colegas e que prejudica os clientes!
- Pobre rapaz! - disse Bianchon. - Desgraçadamente, é pobre e se mexe como um diabo numa caldeirinha, eis tudo.
"Tem a honra de expor a V.S.a, senhor presidente, que há um ano as faculdades morais e intelectuais do sr. d'Espard, seu marido, sofreram tão profunda alteração
que constituem atualmente o estado de demência e de imbecilidade previsto pelo artigo 486 do Código Civil e reclamam, em defesa de sua fortuna e de sua pessoa e
no interesse dos filhos, que conserva em sua companhia, a aplicação das disposições estabelecidas pelo mesmo artigo;
"Que, com efeito, a situação moral do sr. d'Espard, que, há alguns anos, vinha dando lugar a graves receios em vista do sistema que adotou para a gerência dos
seus negócios, percorreu, principalmente durante este último ano, uma deplorável escala de depressão; que a vontade foi a primeira a sentir os efeitos do mal e que
sua abolição deixou o marquês d'Espard exposto a todos os perigos duma incapacidade constatada pelos fatos seguintes:
"Há muito tempo, todos os rendimentos produzidos pelos bens do marquês d'Espard passam, sem causas plausíveis e sem vantagens mesmo temporárias, às mãos duma velha
senhora cuja repelente fealdade é notória, e chamada sra. Jeanrenaud, residente ora em Paris, à rue de la Vrillière, nº 8; ora em Villeparisis, perto de Claye, departamento
de Seine-et-Marne, e em favor de seu filho de trinta e seis anos de idade, oficial da ex-guarda imperial, a quem, graças a seu prestígio, o marquês d'Espard colocou
na guarda real como comandante de esquadrão do primeiro regimento de couraceiros. Essas pessoas, reduzidas em 1814 à extrema miséria, têm adquirido sucessivamente
imóveis dum valor considerável, entre outros, e ultimamente um grande palacete à rue Verte, onde o sr. Jeanrenaud está fazendo despesas consideráveis a fim de lá
se instalar com a sra. Jeanrenaud, sua mãe, para facilitar o casamento que tem em vista, despesas essas que já se elevam a mais de cem mil francos. Esse casamento
está sendo promovido pelas negociações do marquês d'Espard junto a seu banqueiro, o sr. Mongenod (Mongenod: banqueiro inventado por Balzac e que atende a várias
personagens de A comédia humana.), a quem pediu a sobrinha em casamento para o referido sr. Jeanrenaud, prometendo empenhar seu prestígio para conseguir-lhe a dignidade
de barão. Essa nomeação foi feita, realmente, por decreto de Sua Majestade datado de 29 de dezembro último, a pedido do marquês d'Espard, como pode ser atestado
por S. Exª o sr. ministro da Justiça, se o Tribunal julgar conveniente recorrer a seu testemunho;
"Que nenhuma razão, mesmo aquelas que a moral e a lei igualmente reprovam, pode justificar o domínio que a viúva Jeanrenaud assumiu sobre o marquês d'Espard, que,
por outro lado, a vê muito raramente; nem explicar sua estranha afeição pelo referido senhor barão Jeanrenaud, com quem suas comunicações são pouco frequentes; sua
autoridade, contudo, parece tão grande que sempre que eles precisam de dinheiro, mesmo que seja para satisfazer simples fantasias, essa senhora e seu filho..."
- He! He! Razão que a moral e a lei reprovam! Que quererá insinuar-nos o escrevente ou o advogado? - disse Popinot.
Bianchon pôs-se a rir.
"... essa senhora ou seu filho conseguem do marquês d'Espard, sem nenhuma discussão, o que pedem, e, na falta de dinheiro em moeda corrente, o sr. d'Espard assina
letras de câmbio negociadas pelo sr. Mongenod, que se ofereceu à requerente para testemunhá-lo;
"Que, além disso, em apoio desses fatos, aconteceu recentemente que, por ocasião da renovação dos arrendamentos da propriedade d'Espard, tendo os arrendatários
dado uma vultosa soma para a continuação de seus contratos, o sr. Jeanrenaud se apoderou imediatamente dela;
"Que a vontade do marquês d'Espard concorreu tão pouco para a entrega dessa soma que quando lhe falou no caso ele deu a impressão de não se lembrar dele; que todas
as vezes que pessoas sérias o interrogaram sobre sua dedicação para com esses dois indivíduos, suas respostas demonstraram uma tão completa abdicação de suas ideias,
de seus interesses, que deve existir nesse caso um motivo oculto para o qual a requerente pede a vigilância da justiça, visto ser impossível que esse motivo não
seja criminoso, abusivo e extorsivo ou de natureza da alçada da medicina legal, a não ser que se trate duma dessas obsessões que se incluem no abuso das forças morais
e que só se pode qualificar servindo-se do termo extraordinário de possessão..."
- Diabo! - exclamou Popinot. - Que dizes disso, doutor? Esses fatos são muito estranhos!
- Poderiam ser - respondeu Bianchon - um resultado do poder magnético.
- Acreditas, então, nas bobagens de Mesmer (Mesmer: Friedrich Anton Mesmer (1733-1815), médico alemão, fundador da teoria do "magnetismo animal", parecido com
o magnetismo mineral (a força de atração exercida pelo ímã), mas de origem psíquica, e que, em termos de hoje, se chamaria influência hipnótica. Mesmer pretendia
curar seus doentes com a ajuda de uma selha, à volta da qual os pacientes, segurando-a, formavam uma espécie de cadeia.), na sua selha magnética, na visão através
das paredes?
- Sim, meu tio - disse gravemente o doutor. - Enquanto o ouvia ler esse requerimento, estava pensando nisso. Declaro-lhe que já verifiquei, em outra esfera de
ação, vários fatos análogos, relativamente ao domínio sem limites que um homem pode assumir sobre outro. Contrariamente à opinião de meus colegas, estou convencido
do poder da vontade, considerada como uma força motriz (Dizendo-se convencido da força da vontade, Bianchon está exprimindo uma ideia cara ao próprio Balzac.). Tenho
verificado os efeitos dessa possessão, excluída toda a hipótese de combinação e charlatanismo. Os atos prometidos ao magnetizador pelo magnetizado durante o sono
foram escrupulosamente cumpridos no estado de vigília. A vontade de um tornara-se a vontade do outro.
- Qualquer espécie de ato?
- Sim.
- Mesmo criminoso?
- Mesmo criminoso.
- Só te escuto por seres tu.
- Um dia lhe darei provas disso - disse Bianchon.
- Hum! Hum! - fez o juiz. - Suponho que se a causa dessa pretendida possessão pertença a essa ordem de fatos, seria difícil constatá-la e fazer admiti-la perante
a justiça.
- Já que essa sra. Jeanrenaud é terrivelmente feia e velha, não vejo que outro meio de sedução poderia ter - disse Bianchon.
- Mas - replicou o juiz - em 1814, época na qual a sedução se teria verificado, essa mulher devia ter catorze anos menos; se ela esteve ligada durante dez anos,
antes disso, com o sr. d'Espard, esses cálculos de data nos reportam a vinte e quatro anos atrás, época na qual a senhora podia ser moça e bonita e ter conquistado,
por meios muito naturais, tanto para ela como para seu filho, sobre o sr. d'Espard, um domínio a que certos homens não se sabem eximir. Se a causa desse domínio
parece repreensível aos olhos da Justiça, é justificável aos olhos da natureza. A sra. Jeanrenaud pode ter se zangado com o casamento contraído provavelmente nessa
época pelo marquês d'Espard com a srta. de Blamont-Chauvry e pode ser que no fundo de tudo isso não tenha havido mais que uma rivalidade de mulher, uma vez que o
marquês já não mora, há muito tempo, com a sra. d'Espard.
- Mas essa fealdade repelente, meu tio?
- O poder das seduções - replicou o juiz - está na razão direta da fealdade; é uma velha questão! Além disso, e a varíola, doutor? Mas continuemos.
"Que, a partir de 1815, para poder fornecer o dinheiro pedido por essas duas pessoas, o marquês d'Espard foi morar com seus dois filhos à rue de la Montagne-Sainte-Geneviève,
num apartamento cuja pobreza é indigna de seu nome e de sua fortuna (a gente vive como quer!); que lá mantém os dois filhos, o conde Clemente d'Espard e o visconde
Camilo d'Espard, num sistema de vida em desacordo com seu futuro e sua posição; que muitas vezes a falta de dinheiro é tão grande que recentemente o proprietário,
um sr. Maraist, fez a penhora dos móveis que guarneciam o apartamento; que, quando essa penhora foi executada em sua presença, o marquês d'Espard auxiliou o oficial
de Justiça, prodigalizando-lhe todas as demonstrações de cortesia e de atenção que teria tido com uma pessoa elevada acima dele em dignidade..."
O tio e o sobrinho entreolharam-se sorrindo.
"Que, além disso, todos os atos de sua vida, afora os fatos alegados com relação à sra. viúva Jeanrenaud e ao barão Jeanrenaud, seu filho, têm características
de loucura; que, há uns dez anos pelo menos, ele só se ocupa da China (Ele só se ocupa da China... A China preocupava bastante o próprio Balzac. O interesse data,
talvez, de sua mocidade, quando viu o pai, fanático da longevidade, entusiasmar-se pelos chineses por viverem mais que os outros. Um de seus amigos, o pintor Auguste
Borget, fez uma viagem à China, cujo relatório Balzac analisaria num artigo em 1842. O símbolo pitoresco do "Mandarim" é outra prova desse interesse.), de seus costumes,
de seus modos de vida, de sua história, e que confronta tudo com os hábitos chineses; que, interrogado a esse respeito, confunde as questões do momento, os acontecimentos
da véspera com os fatos relativos à China; que censura os atos do governo e a conduta do rei, embora por outro lado pessoalmente o estime, comparando-os com a política
chinesa;
"Que essa monomania impeliu o marquês d'Espard a ações destituídas de bom-senso; que, contrariamente aos hábitos de sua classe e às ideias que professava a respeito
dos deveres da nobreza, ele se meteu num negócio comercial para o qual subscreve diariamente obrigações à vista que ameaçam atualmente sua honra e sua fortuna, visto
que acarretam para ele a qualidade de comerciante e podem, na falta de pagamento, levá-lo à falência; que essas obrigações, contraídas com vendedores de papel, impressores,
litógrafos e coloristas, que lhe forneceram os elementos necessários a essa publicação intitulada História pitoresca da China e que sai em fascículos, são de tamanho
vulto que esses mesmos fornecedores suplicaram à requerente que pedisse a interdição do marquês d'Espard a fim de salvar seus créditos..."
- Esse homem é louco! - exclamou Bianchon.
- Isso é o que pensas! - disse o juiz. - É preciso ouvi-lo. Quem só escuta um sino só ouve um som.
- Mas parece-me...
- Parece-me - disse Popinot - que se algum parente quisesse tomar conta da administração de meus bens e que, em lugar de ser um simples juiz, cuja situação moral
os colegas podem examinar todos os dias, eu fosse duque e par, qualquer advogado um pouco astuto, como Desroches, poderia redigir um requerimento semelhante contra
mim.
"Que a educação de seus filhos vem sendo prejudicada por essa monomania e que ele os obriga a aprender, contrariamente a todas as normas de ensino, os fatos da
história chinesa, que contradizem as doutrinas da religião católica, e os faz estudar dialetos chineses..."
- Neste ponto, Desroches me parece esquisito - disse Bianchon.
- O requerimento foi redigido por seu primeiro ajudante Godeschal (Godeschal: já apareceu em Uma estreia na vida e em O coronel Chabert.), que conheces muito bem
e que não é nada chinês - disse o juiz.
"Que frequentemente deixa os filhos privados das coisas mais necessárias; que a requerente, apesar de suas instâncias, não os pode ver; que o marquês d'Espard
os leva à sua presença apenas uma vez por ano; que, conhecendo as privações a que eles têm sido submetidos, ela tem feito vãos esforços para dar-lhes as coisas mais
necessárias à existência e que lhes faltam..."
- Oh! Senhora marquesa, isso é uma farsa. Quem prova demais não prova nada. Meu caro rapaz - disse o juiz, soltando os autos sobre os joelhos -, onde já se viu
uma mãe tão destituída de coração, de inteligência, de sentimentos a ponto de se mostrar inferior às inspirações sugeridas pelo instinto animal? As mães são tão
astuciosas para se aproximar dos filhos como as moças são capazes de sê-lo para levar a bom ou mau termo uma intriga amorosa. Se tua marquesa tivesse realmente vontade
de alimentar ou vestir os filhos, nem o diabo seria capaz de impedi-la! Hein? É comprida demais essa serpente para um velho juiz engolir! Continuemos.
"Que a idade em que estão os referidos filhos exige, desde já, que sejam tomadas precauções para preservá-los da funesta influência dessa educação, que sejam tratados
de acordo com sua posição e que não tenham sob os olhos o exemplo que lhes dá a conduta do pai;
"Que, em apoio dos fatos presentemente alegados, há provas de que o Tribunal facilmente obterá a repetição; frequentemente o sr. d'Espard tem chamado o juiz de
paz do décimo segundo distrito de mandarim de terceira classe; muitas vezes tem chamado os professores do Colégio Henrique IV de letrados (eles se zangam por isso).
A propósito das coisas mais simples, ele costuma dizer que na China isso não aconteceria; ele faz, no curso duma palestra ordinária, alusão seja à sra. Jeanrenaud,
seja a fatos ocorridos no reinado de Luís XIV e fica então mergulhado numa negra melancolia; às vezes imagina estar na China. Diversos vizinhos, notadamente os srs.
Edmé Becker, estudante de medicina, e Jean-Baptiste Frémiot, professor, domiciliados na mesma casa, pensam, após ter privado com o marquês d'Espard, que sua monomania
em tudo o que se refere à China é a consequência dum plano forjado pelo barão Jeanrenaud e sua mãe para completar a abolição das faculdades morais do marquês d'Espard,
visto que o único serviço que a sra. Jeanrenaud parece prestar ao sr. d'Espard é obter-lhe tudo quanto tenha relação com o império da China;
"Que, finalmente, a requerente se propõe provar ao Tribunal que as quantias absorvidas pelo sr. e sra. viúva Jeanrenaud, de 1814 a 1828, não se elevam a menos
de um milhão de francos.
"Para confirmação dos fatos precedentes, a requerente oferece ao senhor presidente o testemunho das pessoas que privam frequentemente com o marquês d'Espard, e
cujos nomes e profissões figuram abaixo, entre as quais muitos lhe suplicaram que promovesse a interdição do marquês d'Espard como único meio de colocar sua fortuna
ao abrigo de sua deplorável administração e os filhos longe de sua funesta influência.
"Isso considerado, senhor presidente, e tendo em vista os documentos anexos, a suplicante requer a V. S.ª que se digne, uma vez que os fatos acima relatados provam
evidentemente o estado de demência e de imbecilidade do marquês d'Espard acima citado, qualificado e domiciliado, ordenar que, para efetivar sua interdição, o presente
requerimento e os documentos em seu apoio sejam enviados ao sr. procurador do rei, e incumbir um dos srs. juízes do Tribunal de esclarecer o que julgar necessário,
para que sobretudo o Tribunal decida, certa de que V. S.ª fará justiça etc."
- E aqui está - disse Popinot - a determinação do presidente encarregando-me disso! Pois bem, que quererá de mim a marquesa d'Espard? Sei tudo. Irei amanhã com
meu escrivão à casa do marquês, pois isso absolutamente não me parece claro.
- Ouça, meu caro tio, nunca lhe pedi o menor favor ligado às suas funções judiciárias; pois bem, peço-lhe que tenha para com a sra. d'Espard a benevolência que
sua situação merece. Se ela viesse aqui, o senhor a escutaria?
- Sim.
- Pois bem, vá ouvi-la em casa dela! A sra. d'Espard é uma mulher adoentada, nervosa, delicada, que se sentiria mal em seu ninho de ratos. Vá lá à noite, em vez
de aceitar o jantar, já que a lei o proíbe de beber e comer na casa daqueles a quem deve julgar.
- A lei não te proíbe receber donativos de teus mortos? - disse Popinot, julgando perceber um acento de ironia nos lábios do sobrinho.
- Vamos, meu tio, mesmo que seja apenas para descobrir o que há de verdade no caso, atenda meu pedido. O senhor irá lá como juiz de instrução, visto que as coisas
não lhe parecem claras. Que diabo! O interrogatório da marquesa não é menos necessário que o do marido.
- Tens razão - disse o magistrado. - Talvez a louca seja ela. Irei.
- Virei buscá-lo; escreva em sua agenda: Amanhã, às nove horas da noite, ir à casa da sra. d'Espard. Muito bem - disse Bianchon, ao ver o tio anotar o encontro.
Na noite do dia seguinte, às nove horas, o dr. Bianchon subiu a empoeirada escada do tio e o encontrou trabalhando na redação de algum julgamento difícil. O casaco
encomendado por Lavienne não fora remetido pelo alfaiate, de modo que Popinot enfiou seu velho casaco cheio de nódoas e apareceu como o Popinot incomptus (Incomptus:
"despenteado", "tosco" (em latim no texto).) cujo aspecto provocava um sorriso nos lábios dos que não conheciam sua vida íntima. Bianchon conseguiu, contudo, pôr
em ordem a gravata do tio e abotoar-lhe o casaco; escondeu as manchas cruzando as abas do casaco da direita para a esquerda e apresentando assim a parte ainda nova
da fazenda. Mas, em poucos instantes, o magistrado escancarou o casaco no peito pela maneira como meteu as mãos no bolso em obediência ao velho hábito. O casaco,
extremamente enrugado na frente e nas costas, formou uma gibosidade no meio do dorso e produziu entre o colete e as calças uma solução de continuidade pela qual
se mostrou a camisa. Por desgraça, Bianchon só percebeu esse acréscimo de ridículo no momento em que o tio chegou à casa da marquesa.
Um ligeiro esboço da vida da pessoa em cuja casa chegavam naquele momento o doutor e o juiz faz-se necessário aqui para tornar inteligível a conferência que Popinot
ia ter com ela.

IV - UMA MULHER NA MODA

A sra. d'Espard estava, havia sete anos, muito em voga em Paris, onde a moda eleva e rebaixa alternadamente personagens que, ora grandes, ora pequenos, isto é,
ora em evidência e ora esquecidos, se tornam mais tarde criaturas insuportáveis como o são todos os ministros privados de prestígio e todas as majestades decaídas.
Importunos por suas pretensões fanadas, esses saudosistas sabem tudo, maldizem de tudo e, como os dissipadores arruinados, são amigos de todos. Para ter sido abandonada
pelo marido no ano de 1815, a sra. d'Espard devia ter se casado no começo do ano de 1812. Seus filhos tinham, pois, necessariamente, um quinze e o outro treze anos.
Por que acaso uma mãe de família, de cerca de trinta e três anos de idade, estava na moda? Embora a moda seja caprichosa e ninguém possa designar antecipadamente
seus favoritos, embora ela muitas vezes exalte a esposa dum banqueiro ou alguma pessoa de elegância e beleza duvidosas, deve parecer sobrenatural que a moda tenha
assumido maneiras constitucionais conferindo a presidência à idade. Neste caso, a moda fizera como todos, aceitava a sra. d'Espard como moça. A marquesa tinha trinta
e três anos no registro civil e vinte e dois à noite num salão. Mas à custa de quantos cuidados e artifícios! Anéis postiços de cabelo cobriam-lhe as têmporas. Condenava-se
a viver em casa numa semiobscuridade, fingindo-se de doente para permanecer num ambiente de luz velada. Como Diane de Poitiers (Diane de Poitiers (1499-1566): filha
do conde de Saint-Vallier, favorita de Henrique II.), usava água fria para seus banhos; e, como ela, a marquesa deitava-se sobre colchão de crina e dormia sobre
travesseiros de marroquim para conservar a cabeleira, comia pouco, só bebia água, combinava os movimentos para evitar a fadiga e empregava uma exatidão monástica
nos menores atos da vida. Esse rude sistema, segundo dizem, foi levado até o emprego do gelo em vez de água e até o uso de alimentos frios por uma ilustre polonesa
que, atualmente, alia uma vida já secular às ocupações e aos hábitos duma mulher jovem. Destinada a viver tanto quanto viveu Marion Delorme (Marion Delorme: mulher
galante de beleza famosa (1611-1650), heroína de um drama de Victor Hugo. Segundo a lenda, sua morte em 1650 teria sido apenas aparente; depois, teria ainda levado
uma vida cheia de aventuras até morrer em 1741, com 130 anos.), a quem os biógrafos dão cento e trinta anos, a antiga vice-rainha da Polônia apresenta, com quase
cem anos, um espírito e um coração jovens, um rosto gracioso e um corpo encantador; em suas palestras, onde as palavras crepitam como sarmentos no fogo, ela pode
comparar os homens e os livros da literatura atual aos homens e aos livros do século XVII. De Varsóvia, encomenda suas toucas à Casa Herbault. Grande fidalga, tem
a dedicação duma menina; nada, corre como um ginasiano e sabe reclinar-se num sofá como uma moça faceira; insulta a morte e ri da vida. Após ter impressionado outrora
o imperador Alexandre, pode atualmente surpreender o imperador Nicolau pela magnificência de suas festas. Ainda faz algum rapaz apaixonado derramar lágrimas, pois
tem a idade que lhe apraz e as inefáveis dedicações duma rapariga. Ela é, enfim, um verdadeiro conto de fada, se é que não é a fada do conto. Teria a sra. d'Espard
conhecido a sra. Zayonscek (A sra. Zayonscek era esposa de Joseph Zayonscek (1752-1826), general de Kosciusko, que combateu pela independência de seu país até 1812,
quando, na batalha de Wilna, perdeu uma perna e foi feito prisioneiro pelos russos; depois, fez-se partidário destes, tendo sido nomeado pelo czar Alexandre lugar-tenente
do reino da Polônia e príncipe. Ela era famosa por sua elegância e beleza. A Casa Herbault, loja de modas da sociedade aristocrática, existia realmente em Paris.)?
Desejaria ela imitá-la? Seja como for, a marquesa provava a excelência desse regime, sua cútis era pura, sua fronte ainda não tinha rugas, seu corpo conservava,
como o da bem-amada de Henrique II, a flexibilidade, o frescor, atrativos ocultos que trazem e fixam o amor junto duma mulher. As precauções tão simples desse regime
indicado pela arte, pela natureza e talvez pela experiência, encontravam nela, por outro lado, um sistema geral que as corroborava. A marquesa era dotada duma profunda
indiferença por tudo quanto fosse estranho à sua pessoa; os homens a divertiam, mas nenhum lhe havia causado essas grandes excitações que convulsionam fortemente
as duas naturezas e as despedaçam uma pela outra. Não tinha ódio nem amor. Ofendida, vingava-se fria e tranquilamente, à vontade, esperando a ocasião de satisfazer
as más intenções que conservava contra quem quer que se tivesse colocado mal em sua lembrança. Não se inquietava, não se agitava; falava, pois sabia que dizendo
duas palavras uma mulher pode fazer matar três homens. Vira-se abandonada pelo sr. d'Espard com um singular prazer; não levava ele em sua companhia dois filhos que
no momento a aborreciam e que mais tarde poderiam prejudicar suas pretensões? Como seus amigos mais íntimos, do mesmo modo que os adoradores menos perseverantes,
nunca viam a seu lado nenhuma dessas joias de Cornélia (Cornélia: filha de Cipião, mãe de doze filhos, entre os quais os dois Gracos. A alguém que lhe perguntou
por que não usava enfeites, respondeu que os filhos eram suas joias mais bonitas.), que andam dum lado para outro, revelando inocentemente a idade da mãe, todos
a consideravam jovem. Os dois filhos, com quem a marquesa parecia tanto se preocupar em seu requerimento, eram, assim como o pai, tão desconhecidos da sociedade
como a rota do Nordeste é desconhecida dos marinheiros. O sr. d'Espard passava por um sujeito excêntrico que havia abandonado a esposa sem ter contra ela o mínimo
motivo de queixa. Independente aos vinte e dois anos e senhora de sua fortuna, representada por vinte e seis mil francos de renda, a marquesa hesitou muito tempo
antes de tomar uma decisão e de resolver sobre sua existência. Embora desfrutasse as despesas que o marido fizera em seu palacete e conservasse o mobiliário, as
equipagens, os cavalos, toda uma casa montada, enfim, levou no início uma vida retirada durante os anos de 1816, 17 e 18, época em que as famílias se refaziam dos
desastres ocasionados pelas tormentas políticas. Pertencendo, por outro lado, a uma das casas mais notáveis e mais ilustres do Faubourg Saint-Germain, seus pais
a aconselharam a ir morar com a família, após a separação forçada a que a condenava o inexplicável capricho do marido. Em 1820, a marquesa saiu de sua letargia,
apareceu na Corte, nas festas e passou a receber em casa. De 1821 a 1827, levou uma vida faustosa e se fez notar por seu bom gosto e seu vestuário; teve seu dia
e suas horas de recepção; e logo passou a ocupar o trono onde precedentemente haviam brilhado a sra. viscondessa de Beauséant, a duquesa de Langeais, a sra. Firmiani,
que, após seu casamento com o sr. de Camps resignara o cetro em favor da duquesa de Maufrigneuse (A viscondessa de Beauséant aparece em O pai Goriot: é ela quem
introduz Rastignac na alta sociedade de Paris. É também heroína da novela A mulher abandonada. Sra. Firmiani: heroína da novela do mesmo nome.), de quem a marquesa
d'Espard o arrebatou. A sociedade nada mais sabia acerca da vida íntima desta última. Parecia destinada a permanecer por muito tempo no horizonte parisiense, como
um sol prestes a desaparecer no poente, mas que nunca desaparecerá. A marquesa ligara-se estreitamente com uma duquesa não menos famosa por sua beleza do que por
sua dedicação para com a pessoa dum príncipe então desvalido ( Segundo Bouternon e Lognon, tratar-se-ia da duquesa Dorothée de Talloyraud-Périgord, esposa do sobrinho
do príncipe de Talloyraud, que dirigia a casa do tio do marido.), mas habituado a sempre entrar como dominador nos governos futuros. A sra. d'Espard era igualmente
amiga duma estrangeira junto da qual um ilustre e astuto diplomata russo analisava os negócios públicos (Alusão ao embaixador Pozza di Borgo e à sra. Swetchin.).
E, por fim, uma velha condessa acostumada a bater as cartas do grande jogo político a adotara maternalmente. Para qualquer homem de elevada visão, a sra. d'Espard
preparava-se assim para que ao reinado público e frívolo que devia à moda sucedesse uma surda mas real influência. Seu salão adquiria uma consistência política.
As frases Que é que se diz disso na casa da sra. d'Espard? O salão da sra. d'Espard é contrário a tal medida começaram a ser repetidas por um número bastante grande
de tolos para dar a seu rebanho de fiéis a autoridade dum partido. Alguns políticos derrotados, cuidados, mimados por ela, tais como o favorito de Luís XVIII (O
favorito de Luís XVIII era o duque Élie Decazes (1780-1860), primeiro-ministro em 1819 e 1820.), que não mais podia se fazer tomar em consideração, e antigos ministros
prestes a voltar ao poder, diziam-na tão hábil em diplomacia como o era em Londres a esposa do embaixador russo (A esposa do embaixador russo em Londres: a princesa
Liewen, que viveu na capital britânica de 1813 a 1831.). A marquesa fornecera muitas vezes, a deputados e a pares, frases e ideias que da tribuna haviam repercutido
na Europa. Julgara acertadamente muitas vezes alguns acontecimentos sobre os quais os entendidos não ousavam emitir opinião. As principais figuras da Corte iam jogar
uíste à noite em sua casa. Tinha, por outro lado, as qualidades de seus defeitos. Passava por discreta e o era. Sua amizade parecia ser a toda prova. Servia seus
protegidos com uma persistência que provava que ela se preocupava menos de conquistar criaturas que de aumentar seu prestígio. Essa conduta era inspirada por sua
paixão dominante, a vaidade. As conquistas e os prazeres, a que tantas mulheres se apegam, pareciam-lhe apenas meios; queria viver sobre todos os pontos do maior
círculo que a vida possa descrever. Entre os homens ainda jovens que tinham futuro e que se comprimiam nos seus salões nos grandes dias, notavam-se os srs. de Marsay,
de Ronquerolles, de Montriveau, de la Roche-Hugon, de Sérisy, Ferraud, Máximo de Trailles, de Listomère, os dois Vandenesse, du Châtelet etc (Todos personagens de
A comédia humana. De Marsay desempenhará papéis em O contrato de casamento e Outro estudo de mulher; de Ronquerolles é protagonista da História dos Treze; de Montriveau,
amante infeliz da duquesa de Langeais; de la Roche-Hugon foi ludibriado pela sra. de Soulanges na Paz conjugal; de Sérisy é filho do conde de Sérisy, aparecido em
Uma estreia na vida; Ferraud foi quem desposou a viúva do Coronel Chabert; Máximo de Trailles, amante da sra. de Restaud, teve um duelo de interesses com Gobseck
e foi vencido; de Listomère já apareceu em Estudo de mulher, conto que se refere à sua esposa; os dois Vandenesse estavam envolvidos num processo, que se achava
em mãos de Oscar Husson, em Uma estreia na vida; um deles, Félix de Vandenesse, deu provas de sabedoria conjugal em Uma filha de Eva; du Châtelet aparecerá em Ilusões
perdidas.). Muitas vezes acolhia um homem sem querer receber sua esposa, e seu poder era já bastante forte para impor essas duras condições a certas pessoas ambiciosas,
tais como dois famosos banqueiros realistas, os srs. de Nucingen (O famoso banqueiro Nucingen era casado com a filha do pai Goriot.) e Ferdinand du Tillet. Estudara
tão bem o forte e o fraco da vida parisiense, que sempre se conduzira de maneira a não deixar a nenhum homem a mínima vantagem sobre ela. Mesmo que se prometesse
uma soma enorme por um bilhete ou uma carta em que ela se comprometesse, nunca se encontraria um documento desse gênero. Se a aridez de sua alma lhe permitia desempenhar
naturalmente seu papel, sua aparência não a ajudava menos. Tinha um corpo jovem. Sua voz tinha um tom de comando, macia e vigorosa, clara, dura. Possuía em alto
grau os segredos dessa atitude aristocrática pela qual uma mulher apaga o passado. A marquesa conhecia perfeitamente a arte de colocar um espaço imenso entre ela
e o homem que após uma aventura casual se julgasse com direito à familiaridade. Seu olhar altivo sabia negar tudo. Em sua palestra, os grandes e belos sentimentos,
as nobres determinações pareciam emanar naturalmente duma alma e dum coração puros; mas, na realidade, era toda interesse e muito capaz de infamar um homem inábil
no momento de transigir cinicamente em benefício de suas conveniências pessoais. Ao procurar ligar-se a essa mulher, Rastignac soubera descobrir muito bem o mais
hábil dos instrumentos, mas ainda não o utilizara; longe de poder manejá-lo, fazia-se esmagar por ele. Esse jovem condottiere da inteligência, condenado, como Napoleão,
a viver travando batalhas, sabendo que a mínima derrota seria o túmulo de seu prestígio, encontrara em sua protetora um perigoso adversário. Pela primeira vez em
sua vida turbulenta, disputava seriamente uma partida com um parceiro digno dele. Via na conquista da sra. d'Espard um ministério; por isso, servia-a antes de se
servir dela: perigoso começo.
O palácio d'Espard exigia uma numerosa criadagem, e a despesa da marquesa era considerável. As grandes recepções realizavam-se no pavimento térreo; mas a marquesa
morava no primeiro andar da casa. O luxo duma imponente escadaria magnificamente ornada e os apartamentos decorados com o bom gosto aristocrático que antigamente
brilhava em Versalhes anunciavam uma imensa fortuna. Quando o juiz viu o portão abrir-se diante do cabriolé do sobrinho, examinou com um rápido olhar o porteiro
e sua guarita, o pátio, as cavalariças, as disposições da habitação, as flores que adornavam a escadaria, o primoroso asseio dos corrimões, das paredes, dos tapetes
e contou os criados de libré que, ao toque da campainha, acorreram ao patamar. Seus olhos, que, ainda há pouco, no fundo de sua sala do pavimento térreo, sondavam
a grandeza das misérias sob as vestes enlameadas do povo, estudaram com a mesma lucidez de visão o mobiliário e a decoração das peças pelas quais passou, para descobrir
ali as misérias da grandeza.
- Sr. Popinot.
- Sr. Bianchon.
Os dois nomes foram pronunciados à entrada do gabinete onde se encontrava a marquesa, bonita peça recentemente mobiliada de novo e que dava para o jardim do palácio.
A sra. d'Espard achava-se sentada numa dessas antigas poltronas rococó que Madame (Madame: esposa de Monsieur, irmão do rei. (Aqui se trata da esposa do conde d'Artois,
o futuro Carlos X.)) pusera em moda. Rastignac ocupava junto dela, à esquerda, uma cadeira baixa, na qual se acomodara como o primo (Primo. Em italiano no texto.
A palavra tinha um sentido irônico, fácil de se adivinhar.) de uma italiana. De pé, no ângulo da estufa, achava-se um terceiro personagem. Como o sábio doutor percebera,
a marquesa possuía um temperamento seco e nervoso; sem seu regime, sua tez teria adquirido a coloração avermelhada produzida por um constante aquecimento; mas ela
acentuava ainda mais sua alvura artificial por meio dos matizes e dos tons vigorosos dos tecidos de que se cercava e com que se vestia. O vermelho-escuro, o pardo
e o bistre de reflexos de ouro assentavam-lhe maravilhosamente bem. Seu gabinete, copiado do duma famosa lady então na moda em Londres, era de veludo cor de carvalho;
ela, porém, acrescentara numerosos ornatos, cujos belos desenhos atenuavam a exagerada suntuosidade dessa cor régia. Estava penteada como uma moça, em bandós terminados
em cachos que destacavam o oval um pouco alongado de seu rosto; a forma arredondada é tão ignóbil quanto a forma oblonga é majestosa. Os duplos espelhos facetados
que alongam ou achatam à vontade os rostos dão uma prova evidente dessa regra aplicável à fisiognomonia. Ao ver Popinot deter-se à porta como um animal assustado,
alongando o pescoço, com a mão esquerda metida no punho e a direita armada dum chapéu com o forro imundo, a marquesa lançou sobre Rastignac um olhar cheio de escárnio.
O aspecto um pouco simplório do velhote harmonizava-se tão bem com sua expressão amedrontada que, ao ver a fisionomia contristada de Bianchon, que se sentia humilhado
pelo tio, Rastignac não pôde deixar de rir, voltando o rosto. A marquesa cumprimentou com um gesto de cabeça e fez um penoso esforço para se levantar da poltrona,
onde tornou a sentar-se não sem graça, parecendo escusar-se de sua descortesia por uma debilidade fingida.
Nesse momento, o personagem que se achava de pé entre a estufa e a porta cumprimentou discretamente e aproximou duas cadeiras, apresentando-as ao doutor e ao juiz;
depois, quando os viu sentados, voltou a encostar-se à estufa e cruzou os braços. Uma palavra sobre esse homem. Há um pintor contemporâneo, Decamps (Um pintor contemporâneo,
Decamps: Alexandre Gabriel Decamps (1803-1860), autor de coloridas cenas do Oriente e desenhista.), que possui no mais alto grau a arte de tornar interessante tudo
quanto apresente a nossos olhos, seja uma pedra ou um homem. Nesse terreno, seu lápis é mais hábil que seu pincel. Desenhe ele um quarto vazio deixando uma vassoura
encostada à parede, e, se ele quiser, estremecereis; acreditareis que essa vassoura acaba de ser instrumento dum crime e que está molhada de sangue; será a vassoura
de que se serviu a viúva Bancal para varrer a sala onde Fualdès (Fualdès: magistrado assassinado por seus dois amigos em Rodez, no prostíbulo da sra. Bancal, em
1817; o processo teve repercussão excepcional e originou uma canção famosa.) foi degolado. Sim, o pintor desgrenhará a vassoura como um homem encolerizado, eriçará
seus fios como se fossem vossos cabelos agitados; ele se fará intérprete entre a poesia secreta de sua imaginação e a poesia que se desenvolverá na vossa. Após ter-vos
aterrorizado pelo aspecto dessa vassoura, amanhã desenhará outra, junto à qual um gato adormecido, mas misterioso em seu sono, vos afirmará que essa vassoura serve
à esposa dum sapateiro alemão para se dirigir ao Broken (Broken ou Brocken: cimo das montanhas do Harz, na Alemanha, onde a imaginação popular localizava a reunião
das feiticeiras durante a noite do Valpurgis.). Ou então, será alguma pacífica vassoura na qual se suspenderá o casaco dum funcionário do Tesouro. Decamps tem no
pincel o que Paganini (Paganini: Niccolò Paganini (1784-1840), violinista célebre, famoso pela virtuosidade de sua execução.) possuía no arco, uma força magneticamente
comunicativa. Pois bem, seria necessário dar ao estilo esse gênio surpreendente, esse chique do giz, para descrever o homem empertigado, magro e alto, vestido de
preto, de longos cabelos negros, que permaneceu de pé sem nada dizer. Esse cavalheiro tinha um rosto em lâmina de faca, frio, ríspido, cuja tez se assemelhava às
águas do Sena quando estão turvas e arrastam os detritos escuros de algum barco. Fitava o chão, escutava e julgava. Sua atitude assustava. Estava lá como a famosa
vassoura a que Decamps deu o poder acusador de revelar um crime. Algumas vezes, durante a conferência, a marquesa tentou obter um conselho tácito, detendo por um
momento os olhos nesse personagem; mas, por mais insistente que fosse a muda interrogação, ele se conservou grave e rijo como a estátua do Comendador (A estátua
do comendador: alusão à aparição da estátua do pai de uma das vítimas de Don Juan, estátua que o sedutor teria convidado, por troça, a jantar com ele. Segundo a
lenda, ela atendeu ao convite e, agarrando Don Juan pelo pescoço, o levou para o Inferno.).
O bom Popinot, sentado à borda de sua cadeira, diante do fogo, com o chapéu entre as pernas, observava os candelabros dourados, a amálgama, a pêndula, as curiosidades
amontoadas sobre a lareira, enfim, todas aquelas belas ninharias caríssimas de que se cerca uma mulher da moda. Foi arrancado de sua contemplação burguesa pela sra.
d'Espard, que lhe dizia, com sua voz suave:
- Senhor, devo-lhe um milhão de agradecimentos...
"Um milhão de agradecimentos", disse consigo o bom homem, "é demais, não há agradecimento algum."
- ... pelo trabalho que se dignou...
"Se dignou!", pensou ele. "Ela está zombando de mim."
- ... se dignou ter vindo visitar uma pobre suplicante, doente demais para poder sair...
Aqui, o juiz cortou a palavra à marquesa, lançando-lhe um olhar inquiridor, pelo qual examinou o estado de saúde da pobre suplicante. "Tem uma saúde formidável!",
pensou.
- Minha senhora - respondeu ele, assumindo uma atitude respeitosa -, não me deve nada. Embora esta minha diligência não seja de hábito no Tribunal, não devemos
poupar nada para chegar à descoberta da verdade nos casos desta natureza. Em tais questões, nossos julgamentos são ditados menos pelo texto da lei que pelas inspirações
da nossa consciência. Que eu procure a verdade no meu gabinete ou aqui, desde que a encontre, tudo será bem-feito.
Enquanto Popinot falava, Rastignac apertava a mão a Bianchon e a marquesa fazia ao doutor uma pequena inclinação de cabeça cheia de amável indulgência.
- Quem é aquele senhor? - disse Bianchon ao ouvido de Rastignac, mostrando-lhe o homem de preto.
- O cavalheiro d'Espard, irmão do marquês.
- O senhor seu sobrinho me disse - respondeu a marquesa a Popinot - o quanto o senhor é atarefado, e também já sei que é suficientemente bondoso para ocultar um
benefício a fim de dispensar seus favorecidos da gratidão. Parece que esse tribunal o fatiga extremamente. Por que não se duplica o número de juízes?
- Ah minha senhora, não é aí que está a dificuldade - disse Popinot -, embora isso não fosse nada mau. Mas só farão isso quando as galinhas criarem dentes.
Ao ouvir essa frase, que se harmonizava tão bem com a fisionomia do juiz, o cavalheiro d'Espard mediu-o de alto a baixo e deu a impressão de pensar: "Vencê-lo-emos
facilmente".
A marquesa olhou para Rastignac, que se inclinou para ela.
- Aí está - disse o elegante rapaz à marquesa - como são feitos os homens encarregados de se pronunciar sobre os interesses e a vida dos particulares.
Como a maioria dos homens envelhecidos numa profissão, Popinot se deixava voluntariamente arrastar pelos hábitos que nela havia contraído, e que eram, aliás, hábitos
de pensamento. Sua palestra denunciava o juiz de instrução. Gostava de interrogar os interlocutores, apertá-los entre consequências inesperadas, a fazer-lhes dizer
mais do que queriam. Pozzo di Borgo (Pozzo di Borgo: conde Carlo Andrea di Pozzo di Borgo (1768-1842), político corso, inimigo mortal de Napoleão, que entregou a
Ilha aos ingleses. Fugindo à aproximação dos franceses, passou o resto da vida a intrigar, a serviço de vários países, como agente secreto; por fim, foi conselheiro
particular do czar e embaixador da Rússia em Paris durante a Restauração.) divertia-se, segundo se diz, em surpreender os segredos de seus interlocutores, em enredá-los
em suas ciladas diplomáticas; desenvolvia, assim, por um invencível costume, seu espírito impregnado de astúcia. Logo que Popinot mediu, por assim dizer, o terreno
em que se encontrava, julgou necessário recorrer às sutilezas mais hábeis, mais bem disfarçadas e mais confusas em uso no Tribunal para descobrir a verdade. Bianchon
conservava-se indiferente e severo como quem resolve sofrer um suplício silenciando suas dores; intimamente, porém, desejava que seu tio tivesse o poder de calcar
sob os pés aquela mulher, como se pisa sobre uma víbora; comparação que lhe era inspirada pelo vestido longo, a atitude encurvada, o pescoço alongado, a cabeça pequena
e os movimentos ondulantes da marquesa.
- Pois bem, senhor - disse a sra. d'Espard -, por maior que seja minha repugnância em mostrar-me egoísta, já sofro há bastante tempo para desejar que o senhor
termine rapidamente. Terei logo uma solução favorável?
- Minha senhora, farei tudo quanto depender de mim para isso - disse Popinot, com uma expressão cheia de bonomia. - Ignora a causa que determinou a separação existente
entre a senhora e o marquês d'Espard? - perguntou o juiz, fitando a marquesa.
- Sim, senhor - respondeu ela, tomando posição para começar um discurso preparado. - No começo do ano de 1816, o sr. d'Espard, que, havia três meses, mudara completamente
de humor, propôs que eu fosse morar perto de Briançon, numa de suas propriedades, sem a menor consideração para com minha saúde, que aquele clima teria arruinado,
e sem levar em conta meus hábitos; recusei-me a acompanhá-lo. Minha recusa inspirou-lhe censuras tão infundadas que, a partir desse momento, passei a suspeitar da
retidão de seu espírito. No dia seguinte, abandonou-me, deixando-me seu palácio, a livre disposição de meus rendimentos, e foi morar à rue de la Montagne-Sainte-Geneviève,
levando em sua companhia meus dois filhos.
- Com licença, minha senhora - disse o juiz, interrompendo-a -, a quanto montavam esses rendimentos?
- Vinte e seis mil francos de renda - respondeu ela, num parêntese. - Consultei imediatamente o velho sr. Bordin para saber o que era preciso fazer - acrescentou.
- Mas parece que são tantas as dificuldades para tirar a um pai o governo dos filhos que tive de me resignar a viver sozinha aos vinte e dois anos, idade em que
muitas esposas jovens podem cometer tolices. O senhor, sem dúvida, leu meu requerimento; conhece os principais fatos sobre os quais me baseio para pedir a interdição
do sr. d'Espard?
- A senhora - perguntou o juiz - fez todas as tentativas junto dele para obter os filhos?
- Sim, senhor. Mas foram todas inúteis. É muito cruel para uma mãe ser privada da afeição dos filhos, principalmente quando eles podem dar alegrias tão gratas
a todas as mulheres.
- O mais velho deve ter dezesseis anos - disse o juiz.
- Quinze! - respondeu vivamente a marquesa.
Bianchon olhou para Rastignac. A sra. d'Espard mordeu os lábios.
- Por que a idade de meus filhos o interessa?
- Ah! minha senhora - disse o juiz, parecendo não dar atenção ao alcance de suas palavras -, um rapaz de quinze anos e seu irmão, certamente de treze, têm pernas
e inteligência, poderiam vir visitá-la às escondidas; se não vêm, é porque obedecem ao pai e para obedecer-lhe a esse ponto é preciso que o estimem muito.
- Não o compreendo - disse a marquesa.
- A senhora talvez ignore - respondeu o juiz - que seu advogado pretende, em seu requerimento, que seus queridos filhos são muito infelizes na companhia do pai...
A sra. d'Espard disse com uma encantadora inocência:
- Não sei o que o advogado me fez dizer.
- Perdoe-me essas induções, mas a justiça pesa tudo - replicou Popinot. - O que lhe pergunto, minha senhora, é inspirado pelo desejo de bem conhecer o caso. Segundo
a senhora diz, o sr. d'Espard a teria abandonado sob o pretexto mais frívolo. Em vez de ir para Briançon, para onde queria levá-la, ele ficou em Paris. Este ponto
não está claro. Conhecia ele a sra. Jeanrenaud antes do casamento?
- Não, senhor - respondeu a marquesa, com certa contrariedade, apenas percebida por Rastignac e o conselheiro d'Espard.
Sentia-se ofendida por ser interrogada por esse juiz, quando o que pretendia era perverter seu julgamento; mas, como a atitude de Popinot continuava aparvalhada
devido à preocupação, ela acabou por atribuir suas perguntas ao gênio bisbilhoteiro do bailio de Voltaire (O bailio de Voltaire: personagem cheia de curiosidade,
em O ingênuo, de Voltaire. É o primeiro magistrado de uma aldeia bretã, que assedia com perguntas o selvagem canadense, chegando casualmente àquela região.).
- Meus pais - disse ela, continuando - casaram-me com a idade de dezesseis anos com o sr. d'Espard, cujo nome, fortuna e hábitos correspondiam ao que minha família
exigia do homem que seria meu marido. O sr. d'Espard tinha então vinte e seis anos, era gentil-homem na acepção inglesa do termo; suas maneiras agradaram-me, ele
parecia muito ambicioso e eu gosto dos ambiciosos - disse ela, olhando para Rastignac. - Se o sr. d'Espard não tivesse encontrado essa sra. Jeanrenaud, suas qualidades,
sua cultura, seus conhecimentos o teriam elevado, segundo a opinião de seus amigos de então, ao governo. O rei Carlos X, então Monsieur (O rei Carlos X, então Monsieur:
o título Monsieur se dava aos irmãos dos reis da França. Carlos X, durante o reino de seu irmão Luís XVIII, usava também o nome de conde d'Artois.), o tinha em alta
estima e o pariato, um cargo na Corte, um elevado posto, o esperava. Essa mulher transtornou-lhe a cabeça e destruiu o futuro de toda uma família.
- Quais eram, então, as opiniões religiosas do sr. d'Espard?
- Ele tinha - disse ela - e ainda tem grande devoção.
- Não acha que a sra. Jeanrenaud tenha agido sobre ele por meio do misticismo?
- Não, senhor.
- A senhora tem um belo palácio - disse bruscamente o juiz, retirando as mãos dos punhos e levantando-se para abrir as abas do casaco e aquecer-se. - Este gabinete
é muito elegante, há cadeiras magníficas, seus aposentos são suntuosos. Morando aqui, a senhora deve lamentar-se, realmente, por ver seus filhos mal-instalados,
malvestidos e malnutridos. Para uma mãe, não imagino nada mais horrível!
- Sim, senhor. Eu tinha tanta vontade de proporcionar algumas diversões a esses pobrezinhos, a quem o pai faz trabalhar de manhã à noite nessa deplorável obra
sobre a China!
- A senhora dá belos bailes, eles aqui se divertiriam, mas talvez adquirissem o gosto da dissipação; contudo, seu pai podia mandá-los aqui umas duas vezes por
inverno.
- Ele mos traz somente no dia primeiro do ano e no meu aniversário. Nesses dias, o sr. d'Espard me faz a fineza de jantar com eles em minha companhia.
- Essa conduta é muito singular - disse Popinot, assumindo a atitude dum homem convencido. - Tem visto essa sra. Jeanrenaud?
- Um dia, meu cunhado, que, por interesse pelo irmão...
- Ah! O senhor é irmão do sr. d'Espard? - disse o juiz, interrompendo a marquesa.
O cavalheiro inclinou-se sem dizer uma palavra.
- O sr. d'Espard, que tem acompanhado o caso, levou-me ao Oratório onde essa mulher vai rezar, pois é protestante. Eu a vi, ela não tem nada de atraente, parece
a mulher dum açougueiro; é extremamente gorda, horrivelmente marcada pela varíola. Tem mãos e pés de homem, envesga os olhos, é um monstro, enfim.
- Inconcebível! - disse o juiz, parecendo o mais tolo de todos os juízes do reino. - E essa criatura mora perto daqui, na rue Verte, num palácio! Acabaram-se os
burgueses!
- Um palácio onde seu filho tem feito despesas loucas.
- Minha senhora - disse o juiz -, moro no Faubourg Saint-Marceau, não conheço essa espécie de despesas. Que é que chama de despesas loucas?
- Ora - disse a marquesa -, uma cavalariça, cinco cavalos, três carruagens, uma caleça, um cupê e um cabriolé.
- Então isso fica muito salgado? - disse Popinot, admirado.
- Enormemente - disse Rastignac, interrompendo-o. - Uma vida assim exige para a cavalariça, para a manutenção das carruagens e o vestuário dos criados entre quinze
e dezesseis mil francos.
- A senhora acha? - perguntou o juiz, com uma expressão de surpresa.
- Sim, no mínimo - respondeu a marquesa.
- E o mobiliário do palácio deve ter ficado salgado também?
- Mais de cem mil francos - respondeu a marquesa, que não pôde deixar de sorrir da vulgaridade do juiz.
- Os juízes, minha senhora - replicou o bom velho -, são muito incrédulos, são mesmo pagos para sê-lo, e eu o sou. O barão Jeanrenaud e sua mãe, nesse caso, teriam
espoliado o sr. d'Espard duma maneira estranha. Têm uma cavalariça que, segundo a senhora, custaria dezesseis mil francos por ano. A mesa, os ordenados dos criados,
as despesas grossas da casa deveriam subir ao dobro, o que exigiria cinquenta ou sessenta mil francos por ano. Acha que essa gente, antes tão pobre, possa ter tamanha
fortuna? Um milhão dá apenas quarenta mil francos de renda.
- Meu senhor, o filho e a mãe colocaram o capital dado pelo sr. d'Espard em títulos, quando estes se achavam a sessenta ou oitenta. Creio que seus rendimentos
devem subir a mais de sessenta mil francos. Além disso, o filho tem ótimos vencimentos.
- Se eles gastam sessenta mil francos - disse o juiz -, quanto gasta a senhora?
- Ora - respondeu a sra. d'Espard -, mais ou menos isso.
O cavalheiro fez um movimento, a marquesa corou, Bianchon olhou para Rastignac; mas o juiz assumiu uma expressão de bonomia que enganou a sra. d'Espard. O cavalheiro
não participou da palestra, pois viu tudo perdido.
- Essa gente, minha senhora - disse Popinot -, pode ser intimada a comparecer perante o juiz extraordinário.
- Essa era a minha opinião - replicou a marquesa, encantada. - Ameaçados pela polícia correcional, teriam entrado num acordo.
- Minha senhora - disse Popinot -, quando o sr. d'Espard a abandonou, não lhe deu uma procuração para gerir e administrar seus bens?
- Não compreendo a finalidade dessas perguntas - disse animadamente a marquesa. - Parece-me que, se o senhor tomasse em consideração a situação em que me coloca
a demência de meu marido, deveria se ocupar dele, e não de mim.
- Minha senhora - disse o juiz -, chegaremos lá. Antes de confiar à senhora ou a outrem a administração dos bens do sr. d'Espard, se ele for interditado, o Tribunal
precisará saber como tem a senhora administrado os seus. Se o sr. d'Espard lhe deu uma procuração, isso constitui um testemunho de confiança, e o Tribunal apreciará
esse fato. A senhora recebeu uma procuração dele? A senhora podia ter comprado e vendido imóveis e colocado capitais?
- Não, senhor. Não é dos hábitos dos Blamont-Chauvry fazer comércio - disse ela, vivamente ferida em seu orgulho nobiliário e esquecendo seu caso. - Meus bens
permanecem intatos e o sr. d'Espard não me deu procuração alguma.
O cavalheiro pôs a mão sobre os olhos para não mostrar a contrariedade que lhe causava a verificação da imprevidência da cunhada, que se matava por suas respostas.
Popinot encaminhara-se diretamente ao fato, apesar dos rodeios do interrogatório.
- Esse senhor - disse o juiz, indicando o cavalheiro - está ligado à senhora por laços de parentesco? Podemos falar abertamente diante desses senhores?
- Fale - disse a marquesa, espantada dessa precaução.
- Pois bem, minha senhora, admito que não gaste mais de sessenta mil francos por ano e essa soma parecerá bem empregada a quem vê suas cavalariças, seu palácio,
sua numerosa criadagem e o modo de vida duma casa cujo luxo me parece superior ao dos Jeanrenaud.
A marquesa fez um gesto de assentimento.
- Ora - continuou o juiz -, como a senhora tem apenas vinte e seis mil francos de renda, diga-se aqui entre nós, a senhora é bem capaz de ter uns cem mil francos
de dívidas. O Tribunal terá, pois, o direito de pensar que existe nos motivos que a levam a requerer a interdição do senhor seu marido um interesse pessoal, uma
necessidade de saldar suas dívidas, se... é... que... as... tem. As solicitações que me foram feitas interessam-me muito por sua situação, examine-a bem, confesse-se.
Ainda estaria em tempo, no caso de minhas suposições serem justas, de evitar o escândalo duma censura que estaria nas atribuições do Tribunal exprimir nas conclusões
de sua sentença, se a senhora não tornar sua posição nítida e clara. Somos obrigados a examinar os motivos dos requerentes assim como a escutar a defesa do homem
a interditar, a investigar se os requerentes não são guiados pela paixão, desencaminhados por ambições infelizmente muito comuns...
A marquesa sentia-se sobre brasas.
- ... E preciso de explicações a esse respeito - dizia o juiz. - Minha senhora, não peço para fazermos cálculos, mas apenas quero saber como tem podido sustentar
um padrão de vida de sessenta mil francos de renda, e isso há vários anos. Há muitas mulheres que realizam esse fenômeno em sua casa, mas a senhora não é dessas
mulheres. Fale, é possível que tenha meios muito legítimos, favores reais, alguns recursos provenientes das indenizações recentemente concedidas; mas, neste caso,
seria necessária uma autorização de seu marido para recebê-las.
A marquesa estava muda.
- Imagine - disse Popinot - que o sr. d'Espard possa querer defender-se, e seu advogado terá o direito de investigar se a senhora tem credores. Este gabinete foi
mobiliado recentemente, seus aposentos não têm mais o mobiliário deixado em 1816 pelo senhor marquês. Se, como a senhora me deu a honra de dizer-me, os móveis são
caros para os Jeanrenaud, ainda o são mais para a senhora, que é uma fidalga. Assim como sou juiz, também sou homem e posso enganar-me. Esclareça-me. Pense nos deveres
que a lei me impõe, nas rigorosas investigações que ela exige quando se trata de declarar a interdição dum pai de família que se acha no vigor da idade. E, desculpe,
senhora marquesa, as objeções que tenho a honra de submeter-lhe e sobre as quais lhe é fácil dar-me algumas explicações. Quando um homem é interditado por demência,
precisa de um curador; quem será o curador?
- Seu irmão - disse a marquesa.
O cavalheiro fez uma inclinação. Houve um momento de silêncio, que foi incômodo para as cinco pessoas presentes. Brincando, o juiz descobrira a chaga daquela mulher.
O rosto burguesmente bonachão de Popinot, do qual a marquesa, o cavalheiro e Rastignac estavam inclinados a rir, adquirira a seus olhos a verdadeira expressão. Observando-o
furtivamente, os três percebiam as mil significações daquela boca eloquente. O homem ridículo transformava-se num juiz perspicaz. Sua atenção em avaliar o gabinete
explicava-se: partira do elefante dourado que sustentava a pêndula para indagar daquele luxo e acabava de ler no fundo do coração daquela mulher.
- Se o marquês d'Espard é louco pela China - disse Popinot, indicando o aparador da lareira -, alegro-me por ver que a senhora também gosta dos produtos desse
país. Mas talvez seja ao senhor marquês que a senhora deve estas encantadoras chinesices - disse ele, indicando preciosos bibelôs.
Essa brincadeira de bom gosto fez Bianchon sorrir, petrificou Rastignac e a marquesa mordeu os lábios finos.
- Meu senhor - disse a sra. d'Espard -, em vez de defender uma mulher colocada na cruel alternativa de ver sua fortuna e seus filhos perdidos, ou de passar por
inimiga do marido, o senhor me acusa! Desconfia de minhas intenções! Concorde comigo que sua conduta é estranha...
- Minha senhora - respondeu vivamente o juiz -, a circunspeção que o Tribunal impõe nos casos dessa natureza lhe teria dado, em qualquer outro juiz, um crítico
talvez menos indulgente do que eu. Por outro lado, acha que o advogado do sr. d'Espard será muito complacente? Não irá ele deturpar intenções que talvez sejam puras
e desinteressadas? Sua vida lhe pertencerá, ele a devassará sem empregar em suas investigações a respeitosa deferência que tenho pela senhora.
- Muito obrigada - respondeu ironicamente a marquesa. - Admitamos por um momento que eu deva trinta mil, cinquenta mil francos. Isso, em primeiro lugar, seria
uma bagatela para as casas d'Espard e de Blamont-Chauvry. Mas se meu marido não está mais no gozo de suas faculdades intelectuais, isso seria um obstáculo à sua
interdição?
- Não, senhora - disse Popinot.
- Embora o senhor me tenha interrogado com um espírito ardiloso que eu não podia imaginar num juiz, numa circunstância em que bastaria a franqueza para informar-se
de tudo - continuou ela - e que eu me sinta autorizada a não lhe dizer mais nada, responderei sem rodeios que minha situação na sociedade, que todos esses esforços
para conservar boas relações estão em desacordo com meu temperamento. Comecei a vida permanecendo por muito tempo na solidão; mas o interesse de meus filhos falou
mais alto e compreendi que devia substituir seu pai. Recebendo meus amigos, mantendo todas essas relações, contraindo dívidas, garanti seu futuro, preparei-lhes
brilhantes carreiras onde eles encontrarão apoio; e, para obter o que eles assim adquiriram, muitos calculistas, magistrados ou banqueiros pagariam de bom grado
tudo quanto isso me custou.
- Aprecio sua dedicação, minha senhora - respondeu o juiz. - Ela a dignifica e não censuro em nada sua conduta. O magistrado pertence a todos: deve conhecer tudo,
precisa pesar tudo.
O tato da marquesa e seu hábito de julgar os homens convenceram-na de que o sr. Popinot não poderia ser influenciado por nenhuma consideração. Esperara encontrar
algum magistrado ambicioso e encontrava um homem de consciência. Imaginou rapidamente outros meios para assegurar o êxito de seu caso. Os criados trouxeram chá.
- A senhora tem outras explicações a dar-me? - disse Popinot, ao ver esses preparativos. - Senhor - respondeu ela com altivez -, cumpra sua missão: interrogue
o sr. d'Espard e tenho certeza de que depois me defenderá...
Ergueu a cabeça fitando Popinot com uma dignidade mesclada de insolência, e o velhote a cumprimentou respeitosamente.
- É bem gentil o teu tio! - disse Rastignac a Bianchon. - Será que não compreende nada, que não sabe quem é a marquesa d'Espard, que ignora sua influência e seu
poder secreto na sociedade? Amanhã ela terá em sua casa o ministro da Justiça...
- Que queres que eu faça, meu caro? - disse Bianchon. - Não te preveni? Esse não é um homem perdido.
- Não - disse Rastignac -, é um homem a perder.
O doutor foi obrigado a cumprimentar a marquesa e seu mudo cavalheiro para correr atrás de Popinot, que, como não era homem de se demorar numa situação incômoda,
já atravessava apressadamente os salões.
- Essa mulher deve cem mil escudos - disse o juiz, ao subir no cabriolé do sobrinho.
- Que pensa do caso?
- Nunca dou opinião antes de ter examinado tudo - disse o juiz. - Amanhã bem cedo mandarei chamar a sra. Jeanrenaud a meu gabinete, às quatro horas, para pedir-lhe
explicações sobre os fatos que lhe dizem respeito, pois ela está envolvida nisto.
- Eu gostaria de saber do desfecho da questão.
- Meu Deus! Não vês que a marquesa é o instrumento desse grande homem seco que não deu uma palavra? Há nele um pouco de Caim, mas do Caim que vai procurar sua
arma no Tribunal, onde, infelizmente para ele, temos mais de uma espada de Sansão (A espada de Sansão: a Bíblia só fala da arma de Sansão, isto é, da queixada de
jumento com que ele matou mil filisteus.).
- Ah! Rastignac - exclamou Bianchon -, que estás fazendo nessa galera (Que estás fazendo nesta galera? Frase proverbial, tirada das Artimanhas de Scapino, de Molière.
Scapino, querendo arrancar dinheiro ao velho Geronte, faz-lhe acreditar que seu filho Leandro está retido numa galera turca de onde só pode sair mediante resgate
elevado. O velho avaro, não querendo perder o filho, paga, mas várias vezes exclama num desespero grotesco: "Que foi ele fazer nessa galera?".)?
- Estamos habituados a ver essas pequenas conspirações nas famílias; não se passa um ano sem que haja julgamentos de improcedência sobre requerimentos de interdição.
De acordo com os nossos costumes, não se fica desonrado por tentativas dessa natureza, e ao mesmo tempo mandamos para as galés um pobre-diabo por ter quebrado a
vidraça que o separava duma gamela cheia de ouro. Nosso Código não é isento de falhas!
- Mas e os fatos expostos no requerimento?
- Meu rapaz, então ainda não conheces os romances judiciários que os clientes impingem aos seus solicitadores? Se estes se condenassem a só apresentar a verdade,
não ganhariam nem os juros do valor do cargo.
No dia seguinte, às quatro horas da tarde, uma gorda senhora, muito parecida com um tonel de vinho em que se tivesse posto um vestido e um cinto, suava e resfolegava
ao subir a escada do juiz Popinot. Custara a sair dum landau verde que lhe ficava à maravilha; não se concebia a mulher sem o landau nem o landau sem a mulher.
- Sou eu, meu caro senhor - disse ela, apresentando-se à porta do gabinete do juiz -, a sra. Jeanrenaud, a quem o senhor mandou chamar sem mais nem menos como
se fosse uma ladra. - Essas palavras vulgares foram pronunciadas num tom de voz natural, escondidas pelos sibilos forçados duma asma e terminadas por um acesso de
tosse. - Não imagina quanto sofro ao passar por lugares úmidos. Com seu respeito, não viverei muito. Enfim, aqui estou.
O juiz ficou pasmo com o aspecto dessa pretensa marechala d'Ancre (Marechala d'Ancre: Leonora Dori, chamada Galigai (1568-1617), irmã de leite e camareira de Maria
de Médicis. Mulher de extrema fealdade, que soube, graças à influência que obteve sobre a rainha, fazer-se desposar pelo mais belo cavalheiro da Corte, Concini,
a quem fez nomear marechal d'Ancre. Após a morte do marido, morto por conspiradores, foi acusada de feitiçaria e queimada na Place de Grève, em Paris.). A sra. Jeanrenaud
tinha o rosto perfurado por uma infinidade de buracos, um rosto redondo como um bolo, pois na boa mulher tudo era arredondado. Tinha os olhos vivos duma camponesa,
a expressão franca, a palavra jovial, cabelos castanhos presos por um falso gorro sob um chapéu verde enfeitado com um velho ramo de orelhas-de-urso. Seus seios
volumosos excitavam o riso, inspirando receios duma grotesca explosão em cada acesso de tosse. As pernas grossas eram daquelas que fazem os moleques de Paris dizerem
que uma mulher é construída sobre estacas. A viúva estava com um vestido verde guarnecido de chinchila, que lhe assentava como uma mancha de graxa num véu duma noiva.
Tudo nela, enfim, estava de acordo com sua última frase: "Aqui estou".
- Há suspeitas - disse Popinot - de que a senhora tenha seduzido o sr. marquês d'Espard para obrigá-lo a dar-lhe somas consideráveis.
- De quê? De quê? - disse ela. - Sedução! Ora, o senhor é um homem respeitável e, além disso, como magistrado, deve ter bom-senso. Olhe para mim! Diga-me se sou
mulher capaz de seduzir alguém. Não posso amarrar os cordões dos meus sapatos nem abaixar-me. Há uns vinte anos, graças a Deus, que não posso mais colocar espartilhos
sob pena de morte violenta. Aos dezoito anos eu era franzina como um espargo, e bonita, posso dizê-lo hoje. Casei-me então com Jeanrenaud, um excelente homem, condutor
de barcos de sal. Tive um filho, que é um belo rapaz; ele é a minha glória; e, sem fazer pouco de mim, é a minha mais bela obra. Meu pequeno Jeanrenaud era um soldado
entusiasta por Napoleão e o serviu na guarda imperial. Ah, a morte de meu marido, que pereceu afogado, revolucionou minha vida; tive a varíola, fiquei encerrada
no quarto sem me mexer e saí de lá gorda como o senhor está vendo, feia para sempre e desgraçada como as pedras... São essas as minhas seduções!
- Mas, minha senhora, quais são então os motivos que levaram o sr. d'Espard a dar-lhe quantias...
- Imensas, senhor, diga logo a palavra. Mas, quanto aos motivos, não estou autorizada a declará-los.
- Faz mal. Sua família, justamente preocupada, está providenciando para persegui-lo...
- Deus do céu! - disse a boa senhora, levantando-se bruscamente. - Será possível que ele seja atormentado por minha causa? O rei dos homens, um homem que não tem
igual! Antes que lhe aconteça o mínimo desgosto e, digo mesmo, antes que caia um simples fio de cabelo de sua cabeça, devolveremos tudo, sr. juiz. Escreva isso.
Deus do céu! Vou correndo dizer a Jeanrenaud o que está sucedendo. Essa é boa!
E a velhota levantou-se, saiu, deslizou pela escada e desapareceu.
"Não está mentindo", disse o juiz consigo. "Amanhã saberei tudo, pois irei à casa do marquês d'Espard."
As pessoas que passaram da idade em que o homem gasta sua vida a torto e a direito conhecem a influência exercida sobre os maiores acontecimentos por atos aparentemente
indiferentes e não se admirarão da importância que assumiu o insignificante fato seguinte. No outro dia Popinot apanhou uma coriza, doença sem perigo, conhecida
sob o nome impróprio e ridículo de constipação. Incapaz de suspeitar da gravidade dum adiamento, o juiz, que sentiu um pouco de febre, ficou de cama e não foi interrogar
o marquês d'Espard. Esse dia perdido foi, para este caso, o que foi para o Dia dos Logrados (Dia dos Logrados: em francês Journée des Dupes, nome que se dá ao 11
de novembro de 1630, quando os inimigos de Richelieu, em particular a rainha-mãe e Ana de Áustria, que lhe previam a queda, se viram enganados em suas esperanças.),
o caldo tomado por Maria de Médicis, que, retardando sua conferência com Luís XIII, permitiu a Richelieu chegar em primeiro lugar a Saint-Germain e apoderar-se de
seu real prisioneiro. Antes de acompanhar o magistrado e seu escrivão à casa do marquês d'Espard, talvez seja necessário lançar um olhar para a casa, a vida íntima
e os negócios desse pai de família apresentado como louco no requerimento da esposa.

V - O LOUCO

Encontram-se num e noutro ponto, nos velhos bairros de Paris, várias construções nas quais o arqueólogo reconhece um certo desejo de ornar a cidade e esse amor
da propriedade que leva a dar durabilidade às casas. A casa onde então morava o sr. d'Espard, rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, era um desses antigos monumentos
construídos de pedra de cantaria e a que não faltava certa riqueza de arquitetura; o tempo, porém, havia enegrecido a pedra e o progresso da cidade a havia alterado
por dentro e por fora. Como os ilustres personagens que habitaram outrora o bairro da Universidade se haviam transferido com as grandes instituições eclesiásticas,
essa moradia passara a abrigar indústrias e habitantes aos quais nunca fora destinada. No século passado, uma tipografia estragara o assoalho, escurecera o revestimento
de madeira das paredes e desmanchara as principais disposições internas. Outrora o palácio dum cardeal, essa nobre casa estava atualmente entregue a obscuros locatários.
O estilo de sua arquitetura indicava que fora construída durante os reinados de Henrique III, de Henrique IV e de Luís XIII, na época em que se construíram, nas
proximidades, os palácios Mignon e Serpente, o palácio da princesa palatina e a Sorbonne. Um ancião recordava-se de ter ouvido chamá-la, no século passado, palácio
Duperron. Parecia certo que esse ilustre cardeal a havia construído no centro da fachada interna. Apesar das depredações, o luxo dado pelo arquiteto às balaustradas
e à tribuna das duas escadarias indica a ingênua intenção de recordar o nome do proprietário, espécie de trocadilho arquitetônico (O trocadilho arquitetônico versa
sobre o nome do cardeal Duperron, arbitrariamente relacionado com deux perrons ("duas escadarias").) que nossos ancestrais frequentemente se permitiam. Enfim, em
apoio dessa prova, os arqueólogos podem ver nos dois tímpanos que adornam as duas fachadas principais alguns vestígios de cordões do chapéu romano. O marquês d'Espard
ocupava o pavimento térreo, certamente a fim de desfrutar o jardim, que nesse bairro podia ser considerado espaçoso e estava voltado para o sul, duas vantagens que
a saúde dos filhos imperiosamente exigia. A situação da rua, cujo nome indica seu rápido declive, dava a esse pavimento térreo uma elevação bastante grande para
evitar a umidade. O sr. d'Espard devia ter alugado seu apartamento por uma quantia muito módica, pois os aluguéis eram baratos na época em que ele foi para aquele
bairro, a fim de ficar nas proximidades dos colégios e poder vigiar a educação dos filhos. Por outro lado, as condições em que recebeu aquele local, onde tudo precisava
de reparos, devia, necessariamente, ter decidido o proprietário a mostrar-se muito condescendente. O sr. d'Espard pudera, pois, sem ser tachado de loucura, fazer
algumas despesas para instalar-se convenientemente. A altura das peças, sua disposição, seus revestimentos de madeira de que apenas subsistiam as molduras, a boa
disposição dos tetos, tudo respirava essa grandiosidade que o sacerdote imprimiu às coisas empreendidas ou criadas por ele e que os artistas encontram atualmente
nos mais insignificantes fragmentos que dele restam, seja um livro, uma peça de roupa, uma face de armário de livros ou alguma poltrona. As pinturas que o marquês
mandara fazer mostravam essas tonalidades escuras tão apreciadas pela Holanda, pela antiga burguesia parisiense e que atualmente fornecem belos motivos aos pintores
de gênero. As almofadas da parede eram forradas de papel colado que se harmonizava com a pintura. As janelas tinham cortinas de fazenda barata, mas escolhida de
maneira a harmonizar-se com o aspecto geral. Os móveis eram escassos e bem distribuídos. Quem entrasse nessa moradia não podia deixar de experimentar uma sensação
agradável e repousante, inspirada pela calma profunda, pelo silêncio que lá reinava, pela modéstia e pela uniformidade da cor, no sentido que lhe dão os pintores.
Uma certa nobreza nos detalhes, a rigorosa limpeza dos móveis, uma perfeita harmonia entre as coisas e as pessoas, tudo fazia brotar dos lábios a palavra suave.
Poucas pessoas eram recebidas nesses apartamentos ocupados pelo marquês e seus filhos, cuja existência podia parecer misteriosa a toda a vizinhança. Na parte da
casa que dá para a rua, no terceiro andar, havia três grandes quartos que permaneciam no estado de descalabro e de grotesca nudez em que os deixara a tipografia.
Essas três peças, destinadas aos trabalhos da História pitoresca da China, estavam dispostas de maneira a conter uma secretária, um depósito e um gabinete onde o
sr. d'Espard permanecia uma parte do dia, pois, do almoço às quatro horas da tarde, o marquês ficava em seu gabinete, no terceiro andar, para cuidar da publicação
que empreendera. As pessoas que iam visitá-lo o encontravam lá habitualmente. Muitas vezes, ao voltar das aulas, os filhos subiam àquele escritório.
O apartamento do pavimento térreo constituía, pois, um santuário onde o pai e os filhos ficavam desde o jantar até o dia seguinte. Sua vida familiar era, assim,
cuidadosamente isolada. Tinha como criados apenas uma cozinheira velha que havia muito tempo se afeiçoara à casa e um criado de quarenta anos de idade, que o servia
antes de seu casamento com a srta. de Blamont. A governanta dos filhos ficara com eles. Os minuciosos cuidados atestados pela arrumação do apartamento indicavam
o espírito de ordem e amor maternal que essa mulher dedicava aos interesses do patrão no governo da casa e na direção dos filhos. Austeros e pouco comunicativos,
os três criados pareciam ter compreendido o pensamento dominante da vida privada do marquês. Esse contraste entre seus hábitos e os da maioria dos criados constituía
uma singularidade que dava à casa uma aparência de mistério e auxiliava muito a calúnia a que o próprio sr. d'Espard fornecia elementos. Louváveis motivos haviam-no
levado a tomar a resolução de não fazer relações com nenhum dos locatários da casa. Tomando a seu cargo a educação dos filhos, desejava preservá-los de qualquer
contato com estranhos. Talvez quisesse também evitar os aborrecimentos da vizinhança. Num homem de sua posição, numa época em que o liberalismo agitava particularmente
o Quartier Latin, essa conduta devia excitar contra ele pequenas paixões, sentimentos cuja tolice só é comparável à sua baixeza e engendrados por falatórios de porteiros,
comentários perversos repetidos de porta em porta, ignorados do sr. d'Espard e dos criados. Diziam que seu criado-grave era um jesuíta, sua criada uma sonsa e que
a governanta se ligara à sra. Jeanrenaud para espoliar o louco. O louco era o marquês. Os locatários chegaram aos poucos a tachar de loucura uma porção de coisas
observadas na casa do sr. d'Espard e para as quais não encontravam motivos razoáveis ao passá-las pela peneira de sua apreciação. Confiando pouco no êxito de sua
publicação sobre a China, acabaram persuadindo o proprietário da casa de que o sr. d'Espard estava sem dinheiro, justamente no dia em que, por um desses esquecimentos
que muitas pessoas atarefadas cometem, deixara o cobrador dos impostos enviar-lhe uma intimação para pagar sua quota atrasada. O proprietário então reclamara, já
a 1º de janeiro, seu aluguel, enviando um recibo que a porteira guardara por brincadeira. No dia 15, foi-lhe enviada uma notificação judicial e a porteira a entregara
tardiamente ao sr. d'Espard, que tomou esse ato por um mal-entendido, pois não podia pensar em mau procedimento do homem em cuja casa morava havia doze anos. O marquês
foi surpreendido por um oficial de justiça, enquanto seu criado fora à casa do proprietário levar o dinheiro do aluguel. Essa penhora, perversamente contada às pessoas
com quem ele estava ligado por seu empreendimento, alarmara algumas delas, que começaram a duvidar da solvência do sr. d'Espard devido às quantias enormes que lhe
haviam arrancado, segundo diziam, o barão Jeanrenaud e sua mãe.
As suspeitas dos locatários, dos credores e do proprietário eram, por outro lado, quase que justificadas pela rigorosa economia que o marquês fazia em suas despesas.
Ele agia como um homem arruinado. Seus criados pagavam à vista, no bairro, as mais insignificantes compras e comportavam-se como quem não quer crédito: se tivessem
pedido qualquer coisa sob palavra, talvez tivessem experimentado uma recusa, tal o crédito que os falatórios caluniosos haviam encontrado no bairro. Há comerciantes
que estimam os fregueses que lhes pagam mal, desde que mantenham estreitas relações com eles, ao passo que odeiam excelentes fregueses que se mantêm num plano demasiado
elevado para lhes permitirem intimidade, palavra vulgar, mas expressiva. Os homens são assim. Em quase todas as classes, concedem à camaradagem ou a almas vis que
lhes lisonjeiam as fraquezas os favores que negam à superioridade que os ofende, qualquer que seja a maneira pela qual se revele. O vendeiro que grita contra a Corte
tem seus cortesãos. Finalmente, as maneiras do marquês e dos filhos tinham de gerar más disposições entre os vizinhos e levá-los aos poucos a um grau de perversidade
em que as pessoas não recuam nem diante duma covardia, desde que ela prejudique o adversário que se criou. O sr. d'Espard era fidalgo, como sua esposa era uma ilustre
dama; dois tipos magníficos, já tão raros na França que o observador pode contar nos dedos as pessoas que realizam uma harmonia tão completa. Esses dois personagens
repousam sobre ideias primitivas, sobre crenças por assim dizer inatas, sobre hábitos adquiridos na infância e que não existem mais. Para acreditar no sangue puro,
numa raça privilegiada, para se colocar em pensamento acima dos outros homens, não se necessita ter medido desde o nascimento o espaço que separa a aristocracia
do povo? Para governar não é necessário nunca ter conhecido iguais? Não é preciso, enfim, que a educação inculque as ideias que a natureza inspira aos grandes homens
em cuja fronte ela colocou uma coroa antes que sua mãe tenha podido depositar nela um beijo? Essas ideias e essa educação não são mais possíveis na França, onde,
há quarenta anos, o acaso se arrogou o direito de fazer nobres, temperando-os no sangue das batalhas, dourando-os de glória, coroando-os com a auréola do gênio;
onde a abolição das substituições e dos morgadios, fragmentando as heranças, força o nobre a ocupar-se de seus negócios em vez de se ocupar dos negócios do Estado
e onde a grandeza pessoal não pode mais ser senão uma grandeza adquirida após longos e pacientes trabalhos: época inteiramente nova. Considerado como um remanescente
dessa grande corporação denominada feudalismo, o sr. d'Espard merecia uma admiração respeitosa. Se se considerava superior, pelo sangue, aos outros homens, acreditava
igualmente em todas as obrigações da nobreza; possuía as virtudes e a energia que ela exige. Educara os filhos nos seus princípios e lhes comunicara desde o berço
a religião de sua casta. Um sentimento profundo de sua dignidade, o orgulho do nome, a convicção de que eram grandes por si mesmos geraram neles uma altivez régia,
a coragem dos bravos e a bondade protetora dos castelões; suas maneiras, em harmonia com suas ideias e que pareceriam belas em príncipes, ofendiam toda a gente da
rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, lugar de igualdade, onde, por outro lado, se julgava o sr. d'Espard arruinado e onde, do menor ao maior, todos recusavam os
privilégios da nobreza a um nobre sem dinheiro, pela mesma razão pela qual todos concordam em que os burgueses enriquecidos os usurpem. Assim, o desentendimento
entre essa família e o resto das pessoas existia tanto no moral como no físico.
Tanto no pai como nos filhos o exterior e a alma estavam em harmonia. O sr. d'Espard, então com cerca de cinquenta anos, poderia ter servido de modelo para representar
a aristocracia nobiliária do século XIX. Era franzino e louro, seu rosto possuía na forma e na expressão essa distinção natural que anuncia sentimentos elevados;
tinha, porém, o cunho duma calculada frieza que impunha um pouco o respeito. Seu nariz aquilino, torto na extremidade da esquerda para a direita, ligeiro desvio
que não era destituído de certa graça; seus olhos azuis, sua testa ampla, bastante saliente nas sobrancelhas para formar um espesso cordão que interceptava a luz
e sombreava os olhos, indicavam um espírito reto, suscetível de perseverança, uma grande lealdade, mas davam, ao mesmo tempo, uma expressão estranha à sua fisionomia.
Esse arqueamento da fronte podia, realmente, fazer pensar num pouco de loucura, e suas sobrancelhas espessas e juntas acentuavam ainda mais essa aparente singularidade.
Tinha as mãos brancas e bem cuidadas dos fidalgos, seus pés eram finos e altos. Sua palestra indecisa, não somente na pronúncia, que parecia a de um gago, mas também
na expressão das ideias; seu pensamento e sua palavra produziam no espírito do ouvinte a impressão dum homem que vai e vem, que, para empregar uma palavra da linguagem
familiar, esmiúça, mexe em tudo, se interrompe em seus gestos e não termina nada. Esse defeito, puramente exterior, contrastava com a decisão de sua boca enérgica,
com a expressão resoluta de sua fisionomia. Sua marcha um pouco brusca combinava com sua maneira de falar. Essas singularidades contribuíam para ratificar sua pretensa
loucura. Apesar da elegância, fazia com sua pessoa uma economia sistemática e usava durante três ou quatro anos a mesma sobrecasaca preta, escovada com extremo cuidado
pelo criado. Quanto aos filhos, ambos eram bonitos e dotados dum encanto que não excluía uma expressão de desdém aristocrático. Tinham esse colorido intenso, essa
limpidez no olhar, essa transparência na carne que atestam hábitos puros, métodos no regime e regularidade no trabalho e nas diversões. Ambos possuíam cabelos pretos
e olhos azuis e o nariz torto como o do pai; mas, certamente, fora a mãe que lhes transmitira essa dignidade do falar, do olhar e da atitude, hereditária nos Blamont-Chauvry.
Sua voz pura como o cristal possuía o dom de comover e essa suavidade que exerce tanta sedução; tinham, enfim, a voz que uma mulher gostaria de ouvir após ter recebido
a chama de seus olhares. Conservavam, sobretudo, a modéstia de sua altivez, uma recatada reserva, um noli me tangere (Noli me tangere: "não me toques" (em latim
no original).), que, mais tarde, poderia parecer intencional, tamanho era o desejo de conhecê-los que essa atitude inspirava. O mais velho, o conde Clemente de Nègrepelisse,
completara os quinze anos. Abandonara havia dois anos a bela vestiazinha inglesa que ainda usava seu irmão, o visconde Camilo d'Espard. O conde, que havia cerca
de seis meses não frequentava mais o Colégio Henrique IV, vestia-se como um rapaz entregue aos primeiros prazeres que a elegância proporciona. Seu pai não quisera
fazê-lo estudar inutilmente um ano de filosofia, tratava de dar a seus conhecimentos uma certa correlação pelo estudo das matemáticas transcendentes. Ao mesmo tempo,
o marquês ensinava-lhe as línguas orientais, o direito diplomático da Europa, a heráldica e a história nas grandes fontes, a história nas Constituições dos países,
nos documentos autênticos, nas coleções de leis. Camilo começara recentemente a estudar retórica.
O dia em que Popinot resolveu interrogar o sr. d'Espard foi uma quinta-feira, dia de folga. Antes de seu pai se levantar, às nove horas, os dois irmãos brincavam
no jardim. Clemente estava sendo atazanado pela insistência do irmão, que desejava ir ao tiro ao alvo pela primeira vez e lhe pedia que apoiasse seu pedido ao marquês.
O visconde abusava um pouco de sua fraqueza e gostava de brigar frequentemente com o irmão. Ambos puseram-se, pois, a discutir e a lutar como colegiais. Correndo
pelo jardim, um atrás do outro, fizeram tanto barulho que despertaram o pai, que chegou à janela sem que eles ouvissem graças ao ardor do combate. O marquês deliciou-se
em contemplar os dois filhos, que se entrelaçavam como duas serpentes e mostravam os rostos animados pelo emprego de suas energias: seus rostos estavam brancos e
rosados, seus olhos lançavam faíscas, seus membros retorciam-se como cordas no fogo; caíam, levantavam-se, pegavam-se novamente como dois atletas num circo e davam
ao pai uma dessas alegrias que recompensariam os mais rudes desgostos de uma vida agitada. Duas pessoas, uma no segundo e outra no primeiro andar da casa, olharam
para o jardim e logo disseram que o velho louco se divertia fazendo os filhos brigarem. Várias cabeças apareceram em seguida nas janelas; o marquês as viu, disse
uma palavra aos filhos, que imediatamente subiram à janela dele, saltaram para dentro do quarto, e Clemente obteve sem dificuldade a permissão que Camilo queria.
Na casa toda só se falou na nova manifestação de loucura do marquês.
Quando Popinot chegou, ao meio-dia, acompanhado do escrivão, à porta onde perguntou pelo sr. d'Espard, a porteira o conduziu ao terceiro andar, contando-lhe que
o sr. d'Espard, naquela manhã mesma, fizera os filhos brigarem e ria, como um monstro que era, ao ver o mais moço morder o mais velho até fazer sangrar e que, certamente,
desejava que eles se matassem.
- E quer saber por quê? - acrescentou ela. - Nem ele o sabe.
Enquanto a porteira dizia ao juiz essa frase decisiva, chegaram ao patamar do terceiro andar, diante duma porta coberta de cartazes anunciando os fascículos sucessivos
da História pitoresca da China. Aquele patamar lodoso, aquele corrimão imundo, aquela porta onde a tipografia deixara suas marcas, aquela janela estragada e os tetos
onde os aprendizes se haviam divertido desenhando monstruosidades com a chama fumacenta das velas, os montes de papéis e de lixo acumulados nos cantos, de propósito
ou por desleixo, todos os detalhes do quadro que se oferecia aos olhos condiziam tão precisamente com os fatos alegados pela marquesa que, a despeito de sua imparcialidade,
o juiz não pôde evitar de acreditar neles.
- É aqui, senhores - disse a porteira. - Essa é a fábrica onde os chineses comem o suficiente para alimentar todo o bairro.
O escrivão olhou sorrindo para o juiz, e Popinot a custo conseguiu manter-se sério. Entraram ambos no primeiro quarto, onde se achava um velho que sem dúvida fazia
simultaneamente o serviço de auxiliar de escritório, de caixeiro de loja e de caixa. Esse velho era o mestre Jacques da China (Mestre Jacques: personagem do Avarento,
de Molière, que acumula as funções de cocheiro e cozinheiro de Harpagon; o termo designa um factótum.). Longas prateleiras, onde estavam amontoados os fascículos
publicados, guarneciam as paredes da peça. Ao fundo, um tabique de madeira e gradeado, internamente enfeitado de cortinas verdes, formava um gabinete. Uma gateira
destinada aos recebimentos e pagamentos indicava que ali ficava a caixa.
- O sr. d'Espard? - disse Popinot, dirigindo-se a esse homem vestido com uma blusa cinzenta.
O caixeiro abriu a porta dum segundo quarto, onde o magistrado e o escrivão viram um venerável ancião, de cabeleira branca, vestido com simplicidade, condecorado
com a cruz de São Luís, sentado diante de uma secretária e que interrompeu seu trabalho de comparar folhas coloridas para olhar para os recém-chegados. Essa peça
era um escritório modesto, cheio de livros e de provas. Havia ali uma mesa de madeira preta, destinada, sem dúvida, ao trabalho de uma pessoa que no momento se achava
ausente.
- O senhor é o marquês d'Espard? - perguntou Popinot.
- Não, senhor - respondeu o velho, levantando-se. - Que deseja dele? - acrescentou, aproximando-se e testemunhando por sua atitude maneiras nobres e hábitos devido
à educação dum fidalgo.
- Desejaríamos falar-lhe de assuntos inteiramente pessoais - respondeu Popinot.
- D'Espard, aqui estão uns senhores que querem falar contigo - disse então esse personagem, entrando na última peça, onde o marquês se encontrava junto à lareira
lendo os jornais.
Esse último gabinete tinha um tapete velho, as janelas eram guarnecidas de cortinas de tecido de cor cinza, e não havia ali mais que algumas cadeiras de acaju,
duas poltronas, um arquivo, uma secretária do tipo Tronchin (Uma secretária do tipo Tronchin: móvel com estante para escrever em pé. Seu nome provém do de um médico
famoso que a utilizava.) e, sobre a lareira, uma pêndula ordinária e dois velhos candelabros. O ancião entrou na frente de Popinot e do escrivão e ofereceu-lhes
duas cadeiras, como se fosse o dono da casa, e o sr. d'Espard deixou que ele o fizesse. Após os cumprimentos, durante os quais o juiz observou o suposto louco, o
marquês perguntou naturalmente qual era o objeto da visita. Popinot olhou para o ancião e para o marquês com uma expressão significativa.
- Acho, senhor marquês - respondeu-lhe -, que a natureza de minhas funções e a investigação que me traz aqui exigem que estejamos a sós, muito embora o espírito
da lei admita que, nestes casos, os interrogatórios recebam uma espécie de publicidade doméstica. Sou juiz do tribunal de primeira instância do departamento do Sena
e incumbido pelo senhor presidente de interrogá-lo sobre os fatos articulados num requerimento de interdição apresentado pela sra. marquesa d'Espard.
O ancião se retirou.

VI - O INTERROGATÓRIO

Quando o juiz e o acusado ficaram a sós, o escrivão fechou a porta, sentou-se sem cerimônia diante da secretária, onde espalhou seus papéis e se preparou para
lavrar a ata. Popinot não cessara de observar o sr. d'Espard, examinando o efeito produzido sobre ele por essa declaração, tão cruel para um homem no gozo da razão.
O marquês d'Espard, cujo rosto era ordinariamente pálido como os rostos das pessoas louras, tornou-se subitamente rubro de cólera; teve um ligeiro sobressalto, sentou-se,
deixou o jornal sobre a lareira e baixou os olhos. Logo depois, recuperou a dignidade do fidalgo e olhou para o juiz, como se procurasse em sua fisionomia indícios
de seu caráter.
- Como é que não fui avisado de tal requerimento? - perguntou-lhe.
- Senhor marquês, como as pessoas cuja interdição é requerida são consideradas destituídas do gozo da razão, a notificação do interrogatório é inútil. O dever
do Tribunal consiste em verificar, antes de tudo, as alegações dos requerentes.
- Não há nada mais justo - respondeu o marquês. - Pois bem, senhor, queira indicar-me a maneira como me devo conduzir...
- Basta responder a minhas perguntas, sem omitir nenhum detalhe. Por mais delicadas que sejam as razões que o tenham levado a agir de maneira a dar à sra. d'Espard
o pretexto para seu requerimento, fale sem receio. É desnecessário dizer-lhe que a magistratura conhece seus deveres e que, num caso destes, o mais rigoroso segredo...
- Senhor - disse o marquês, cujas feições denunciaram um sincero pesar -, se de minhas explicações resultasse uma censura à conduta mantida pela sra. marquesa
d'Espard, que resultaria disso?
- O Tribunal poderia exprimir uma repreensão nas razões de sua sentença.
- Essa repreensão é facultativa? Se eu combinasse com o senhor, antes de responder, que nada seria dito de ofensivo contra a sra. d'Espard no caso de seu relatório
me ser favorável, o Tribunal tomaria meu pedido em consideração?
O juiz fitou o marquês, e ambos trocaram então pensamentos igualmente nobres.
- Noël - disse Popinot ao escrivão -, retire-se para outra peça. Se precisar de você, chamarei. Se, como sou levado a crer, há mal-entendidos neste caso, posso
prometer-lhe, senhor, que, a pedido seu, o Tribunal agiria com cortesia - acrescentou ele, depois que o escrivão se retirou. - Há um primeiro fato alegado pela sra.
d'Espard, o mais grave de todos, e sobre o qual peço que o senhor me esclareça - disse o juiz, depois duma pausa. - Trata-se da dissipação de sua fortuna em benefício
duma sra. Jeanrenaud, viúva dum condutor de barcos, ou melhor, em benefício de seu filho, coronel, para quem o senhor teria arranjado uma colocação, por quem o senhor
teria empenhado o prestígio que desfrutava junto ao rei, levando, finalmente, sua proteção a ponto de procurar conseguir-lhe um bom casamento. O requerimento faz
pensar que essa prova de amizade ultrapassa em dedicação a todos os sentimentos, mesmo aqueles que a moral reprova...
Um súbito rubor animou o rosto e a fronte do marquês; brotaram-lhe, mesmo, lágrimas nos olhos e seus cílios ficaram molhados; depois, um justo orgulho dominou
essa emotividade que, num homem, é considerada fraqueza.
- Realmente, senhor - respondeu o marquês com a voz alterada -, o senhor me deixa numa estranha perplexidade. Os motivos de minha conduta deviam morrer comigo...
Para falar neles, tenho de descobrir feridas secretas, confiar-lhe a honra de minha família e, coisa delicada que o senhor saberá apreciar, falar de mim. Espero,
senhor, que tudo fique em segredo entre nós. O senhor saberá encontrar nas fórmulas judiciárias um meio que permita redigir uma sentença sem que nela constem minhas
revelações...
- Tudo é possível, nesse sentido, senhor marquês.
- Algum tempo depois de meu casamento - continuou o sr. d'Espard - minha esposa fez tamanhas despesas que fui obrigado a recorrer a um empréstimo. Sabe qual foi
a situação das famílias nobres durante a Revolução? Até então não me fora permitido ter um administrador nem um procurador. Atualmente todos os fidalgos são mais
ou menos obrigados a tratar de seus próprios negócios. A maioria de meus títulos de propriedade fora trazida de Languedoc, da Provença ou do Condado para Paris,
por meu pai, que temia, com toda a razão, as investigações que os títulos de família e isso que então chamavam de pergaminhos dos privilegiados acarretavam a seus
portadores. Somos Nègrepelisse pelo nome. D'Espard é um título adquirido no reinado de Henrique IV, que nos doou os bens e os títulos da casa d'Espard, sob a condição
de sobrepor às nossas armas o escudete dos d'Espard, antiga família do Béarn, aliada, pelas mulheres, à casa d'Albret: esquartelado; o 1º e o 4º de ouro, com três
palas de sable; o 2º e o 3º de blau, com duas patas de grifo de prata, unhadas de goles, passadas em aspas; e por divisa o famoso des partem leonis (Des partem leonis:
frase latina que significa "Dá a parte do leão". A primeira parte da frase contém o nome d'Espard; tais trocadilhos são frequentes nas divisas dos brasões, e Balzac
tinha por eles um gosto particular.). Na época dessa aliança, perdemos Nègrepelisse, cidadezinha tão célebre nas guerras de religião como o foi meu ancestral que
levava seu nome. O capitão de Nègrepelisse ficou arruinado pelo incêndio de seus bens, pois os protestantes não pouparam nenhum amigo de Montluc (Montluc: Blaise
de Montluc (1501-1577), marechal da França, inimigo cruel dos calvinistas. Suas crueldades lhe valeram o título de "açougueiro realista". Autor de célebres Memórias.).
A Coroa foi injusta para com o sr. de Nègrepelisse, ele não obteve o bastão de marechal, nem um posto no governo, nem indenização; o rei Carlos IX, que o estimava,
morreu sem ter podido recomendá-lo; Henrique IV auxiliou muito seu casamento com a srta. d'Espard e proporcionou-lhe o domínio dessa casa; mas todos os bens de Nègrepelisse
já haviam passado para as mãos dos credores. Meu bisavô, o marquês d'Espard, ficou, como eu, à frente de seus negócios bastante moço devido à morte do pai, que,
após ter dissipado a fortuna da esposa, não lhe deixou nada mais que propriedades transferidas da casa d'Espard, mas penhoradas. O jovem marquês d'Espard viu-se,
pois, ainda mais embaraçado porque tinha um posto na Corte. Particularmente bem-visto por Luís XIV, a proteção do rei constituiu para ele um alvará de fortuna. Neste
ponto, senhor, foi lançada sobre nosso escudo uma nódoa ignorada, horrível, uma mancha de lama e de sangue, que estou empenhado em lavar. Descobri esse segredo nos
títulos relativos à propriedade de Nègrepelisse e nos arquivos de correspondência.
Nesse momento solene, o marquês falava sem gaguejar e não lhe escapava nenhuma das repetições que lhe eram habituais; todos, aliás, já devem ter observado que
as pessoas que, nas coisas ordinárias da vida, sofrem desses dois defeitos se desembaraçam deles quando uma intensa paixão anima suas palavras.
- Veio a revogação do Édito de Nantes (O Édito de Nantes, promulgado por Henrique IV, em 1598, outorgava diversos direitos aos calvinistas da França; sua revogação,
em 1685, por Luís XIV, motivou a emigração de grande número de protestantes.) - continuou. - Talvez o senhor ignore que, para muitos favoritos, isso constituiu uma
ocasião de fazer fortuna. Luís XIV deu aos grandes de sua Corte as terras confiscadas às famílias protestantes que não regularizaram sua situação pela venda de seus
bens. Algumas pessoas favorecidas puseram-se, como então se dizia, à cata dos protestantes. Tenho provas de que a fortuna atual das duas famílias ducais se compõem
de terras confiscadas a infelizes comerciantes. Não explicarei ao senhor, homem da Justiça, as manobras empregadas para armar ciladas aos refugiados que tinham grandes
fortunas a levar, basta que o senhor saiba que a propriedade de Nègrepelisse, composta de vinte e duas freguesias e com prerrogativas de cidade, como a de Gravenges,
que outrora nos pertencera, estavam nas mãos duma família protestante. Meu avô as obteve por doação feita por Luís XIV. Essa doação foi baseada em atos assinalados
por uma terrível iniquidade. O proprietário dessas terras, julgando que pudesse voltar para a França, simulara uma venda e fora à Suíça encontrar-se com a família,
que mandara para lá no primeiro momento. Queria, sem dúvida, aproveitar todos os prazos concedidos pelo decreto para regularizar seus negócios. Esse homem foi detido
por ordem do governador, o fideicomissário declarou a verdade, o pobre comerciante foi enforcado e meu pai ficou com as duas propriedades. Eu preferia poder ignorar
a parte que meu avô desempenhou nessa intriga, mas o governador era seu tio materno e desgraçadamente li uma carta pela qual ele lhe pedia que se dirigisse a Deodatus,
nome convencionado entre os cortesãos para se referir ao rei. Há nessa carta, a propósito da vítima, um tom de brincadeira que me horrorizou. Enfim, senhor, as quantias
enviadas pela família refugiada para resgatar a vida do pobre homem foram retidas pelo governador, que nem assim salvou o comerciante.
O marquês d'Espard fez uma pausa, como se essas recordações ainda fossem muito penosas para ele.
- Esse desgraçado se chamava Jeanrenaud - continuou. - Esse nome basta para explicar-lhe minha conduta. Foi sempre com uma intensa dor que pensei na vergonha secreta
que pesava sobre minha família. Essa fortuna permitiu a meu avô desposar uma Navarreins-Lansac (Uma Navarreins-Lansac: isto é, descendente de duas famílias da alta
aristocracia inventada por Balzac.), herdeira dos bens desse ramo mais moço, muito mais rico então do que o ramo mais velho dos Navarreins. Meu pai tornou-se desde
então um dos maiores proprietários do reino. Pôde assim desposar minha mãe, que era uma Grandlieu (Uma Grandlieu: família de alta aristocracia balzaquiana. Foi Clotilde
de Grandlieu a quem Calisto du Guénic abandonou seduzido pela sra. de Rochefide (em Beatriz).) do ramo mais moço. Embora mal adquiridos, esses bens nos foram singularmente
proveitosos. Resolvido imediatamente a reparar o mal, escrevi à Suíça e não descansei enquanto não encontrei a pista dos herdeiros do protestante. Acabei por saber
que os Jeanrenaud, arrastados à extrema miséria, haviam deixado Friburgo e tinham voltado a morar na França. Descobri, por fim, no sr. Jeanrenaud, simples tenente
de cavalaria no tempo de Bonaparte, o herdeiro dessa infeliz família. A meus olhos, senhor, o direito dos Jeanrenaud era claro. Para que a prescrição se estabelecesse
não era necessário que os detentores das terras pudessem ser impugnados? A que autoridade os refugiados se dirigiam? Seu tribunal estava lá em cima, senhor, ou melhor,
o tribunal estava aqui - disse o marquês, batendo sobre o coração. - Não quis que meus filhos pudessem pensar de mim o que pensei de meu pai e de meus antepassados:
quis legar-lhes uma herança e um brasão sem mácula, não quis que a nobreza fosse uma mentira, em minha pessoa. Afinal, politicamente falando, os emigrados que reclamam
contra as confiscações revolucionárias têm direito de conservar ainda os bens que são fruto de confiscações obtidas criminosamente? Encontrei no sr. Jeanrenaud e
em sua mãe uma probidade rude. Ao falar, pareciam recear que me estivessem espoliando. Apesar da minha insistência, não aceitaram mais que o valor que tinham as
terras quando minha família as recebeu do rei. Esse preço foi combinado entre nós em um milhão e cem mil francos, que me facultaram pagar aos poucos, de acordo com
minha conveniência, sem juros. Para alcançar esse resultado, tive de me privar de meus rendimentos durante muito tempo. Nesse ponto, senhor, começa a perda de algumas
ilusões que eu alimentava a respeito do caráter da sra. d'Espard. Quando lhe propus deixar Paris e ir para a província, onde, com a metade de seus rendimentos, poderíamos
viver dignamente e assim completar mais depressa uma restituição de que lhe falei sem lhe citar a gravidade dos fatos, a sra. d'Espard chamou-me de louco. Descobri
então o verdadeiro caráter de minha mulher. Ela teria aprovado sem escrúpulos o comportamento de meu avô e troçado dos huguenotes. Espantado de sua indiferença,
de sua falta de afeição pelos filhos, que ela me entregava sem pesar, resolvi deixar-lhe sua fortuna, após ter saldado nossas dívidas comuns. Não seria ela quem
haveria de pagar minhas tolices, disse-me. Como não dispunha de rendimentos suficientes para viver e prover a educação de meus filhos, decidi instruí-los pessoalmente
e fazer deles homens de coração e cavalheiros. Empregando meus rendimentos em títulos públicos, pude saldar minha dívida muito mais rapidamente do que esperava,
pois aproveitei oportunidades que aumentaram minhas rendas. Reservando quatro mil francos para mim e meus filhos, eu só poderia pagar vinte mil escudos por ano,
o que exigiria quase dezoito anos para me libertar desse encargo, ao passo que recentemente saldei o milhão e cem mil francos que devia. Assim, tive a ventura de
realizar essa restituição sem ter causado o menor prejuízo a meus filhos. Aí está, senhor, a razão dos pagamentos feitos à sra. Jeanrenaud e a seu filho.
- Quer dizer - perguntou o juiz, contendo a emoção que a narrativa lhe causara - que a senhora marquesa conhecia os motivos de seu afastamento?
- Sim, senhor.
Popinot deixou escapar um suspiro bastante expressivo, levantou-se bruscamente e abriu a porta do gabinete.
- Noël, pode ir embora - disse ao escrivão. - Senhor - continuou o juiz -, embora o que acaba de me dizer seja suficiente para esclarecer-me, desejaria ouvi-lo
a respeito dos demais fatos alegados no requerimento. O senhor, por exemplo, está metido num negócio comercial que foge aos hábitos dum nobre.
- Não podemos tratar deste assunto aqui - disse o marquês, convidando por um gesto o juiz a sair. - Nouvion - acrescentou, dirigindo-se ao ancião -, vou descer
para minha casa, meus filhos voltarão logo e jantarás conosco.
- Senhor marquês - disse Popinot, à escada -, então este não é o seu apartamento?
- Não, senhor. Aluguei estas peças para instalar os escritórios desta empresa. Veja - acrescentou, mostrando-lhe um cartaz -, essa história é publicada por uma
das mais respeitáveis livrarias de Paris, e não por mim.
O marquês fez o juiz entrar no pavimento térreo, dizendo-lhe:
- Este é o meu apartamento.
Popinot ficou naturalmente comovido pela poesia espontânea que se sentia sob aquele teto. O tempo estava magnífico, as janelas estavam abertas e a brisa do jardim
espalhava pelo salão odores de plantas; os raios do sol alegravam e animavam os revestimentos de madeira um pouco escuros das paredes. Diante disso, Popinot concluiu
que um louco seria muito pouco capaz de criar a suave harmonia que o surpreendia.
"É dum apartamento assim que preciso", pensou. - Vai sair logo deste bairro? - perguntou-lhe em voz alta.
- Acho que sim - respondeu o marquês. - Mas esperarei que meu filho mais moço tenha terminado os estudos e que o caráter de ambos esteja inteiramente formado,
antes de introduzi-los na sociedade e de levá-los para junto da mãe; além disso, após ter-lhes dado a sólida instrução que possuem, quero completá-la fazendo-os
viajar pelas capitais da Europa, para que vejam homens e coisas e se habituem a falar as línguas que aprenderam. Eu não podia falar-lhe - acrescentou, fazendo o
juiz sentar-se no salão - nessa publicação relativa à China diante dum velho amigo de minha família, o conde de Nouvion, que regressou da imigração sem dinheiro
e com quem realizei esse negócio, menos por mim que por ele. Sem confiar-lhe os motivos de meu afastamento da sociedade, disse-lhe que estava arruinado como ele,
mas que ainda tinha dinheiro suficiente para empreender um negócio a que ele se poderia dedicar utilmente. Meu preceptor foi o abade Grozier (O abade Grozier: Jean
Baptiste Grozier (1743-1823), jesuíta, conservador da Biblioteca do Arsenal a partir de 1817, autor de uma Descrição geral da China, baseada nos relatórios de missionários.
Aparecerá, ainda, em Ilusões perdidas, para arbitrar uma discussão sobre o papel da China.), que, mediante minha recomendação, Carlos X nomeou seu bibliotecário
da biblioteca do Arsenal, que lhe foi presenteada quando ele era Monsieur. O abade Grozier possuía profundos conhecimentos sobre a China, seus usos e costumes, e
me fizera seu herdeiro numa idade em que é difícil que a gente não se fanatize pelo que aprende. Aos vinte e cinco anos eu sabia chinês e confesso que nunca pude
evitar de ter uma admiração inflexível por esse povo, que conquistou seus conquistadores, cujos anais remontam incontestavelmente a uma época muito mais remota que
a dos tempos mitológicos ou bíblicos, que por suas instituições imutáveis conservou a integridade de seu território, cujos monumentos são gigantescos, cuja administração
é perfeita, onde as revoluções são impossíveis, que considerou o belo ideal um princípio infecundo de arte, que levou o luxo e a indústria a tão alto grau que não
podemos sobrepujá-lo em nenhum ponto, ao mesmo tempo que se iguala a nós naquilo em que nos consideramos superiores. Mas, senhor, se frequentemente me acontece gracejar
comparando à China a situação das nações europeias, isso não quer dizer que eu seja chinês; sou um fidalgo francês. Se o senhor tiver dúvidas sobre a situação financeira
desta empresa, poderei provar-lhe que temos dois mil e quinhentos subscritores desse monumento literário, iconográfico, estatístico e religioso, cuja importância
tem sido apreciada em toda a parte; nossos subscritores pertencem a todas as nações da Europa, temos apenas mil e duzentos na França. Nossa obra custará cerca de
trezentos francos, e o conde de Nouvion ganhará com ela seis a sete mil francos de renda, pois seu bem-estar foi o móvel secreto desta empresa. Para mim, ela representará
a possibilidade de dar alguns prazeres a meus filhos. Os cem mil francos que ganhei nela, mesmo contra a minha vontade, pagarão suas lições de armas, seus cavalos,
seus vestuários, seus espetáculos, seus professores de boas maneiras, as telas que enlambuzam, os livros que desejam comprar, enfim, todas essas pequenas fantasias
que os pais têm tanto prazer em satisfazer. Se eu tivesse necessidade de recusar esses prazeres a meus filhos, tão dignos, tão corajosos no estudo, o sacrifício
que estou fazendo a nosso nome me teria sido duplamente penoso. Na verdade, senhor, os doze anos durante os quais tenho estado afastado da sociedade para educar
meus filhos acarretaram-me o mais completo esquecimento na Corte. Abandonei a carreira política, perdi toda minha carreira histórica, uma honraria a mais que podia
legar a meus filhos, mas nossa casa não sofrerá o mínimo prejuízo e meus filhos serão homens eminentes. Se não obtive o pariato, eles o conquistarão nobremente,
consagrando-se aos negócios de seu país, e lhe prestarão serviços inesquecíveis. Ao mesmo tempo que purifiquei o passado de nossa casa, assegurei-lhes um glorioso
futuro; não representa isso uma bela tarefa, apesar de secreta e sem glória? Ainda tem algum esclarecimento a pedir-me?
Nesse momento veio do pátio o ruído de vários cavalos.
- Aí estão eles - disse o marquês.
Logo depois, os dois meninos, cujo trajar era ao mesmo tempo elegante e simples, entraram no salão, de botas, esporas e luvas, agitando alegremente os chicotes.
Seus rostos corados traduziam o viço da vida ao ar livre, estavam resplandecentes de saúde. Ambos apertaram a mão do pai, trocaram com ele, como entre amigos, um
olhar cheio de muda ternura e cumprimentaram friamente o juiz. Popinot considerou completamente desnecessário interrogar o marquês sobre suas relações com os filhos.
- Divertiram-se bastante? - perguntou-lhes o marquês.
- Sim, meu pai. Na primeira vez que atirei, abati seis alvos em doze tiros! - disse Camilo.
- Onde foram passear?
- No bosque, onde vimos nossa mãe.
- Ela falou com vocês?
- Íamos tão depressa que com certeza nem nos viu - respondeu o jovem conde.
- Mas então por que não foram falar com ela?
- Acho que ela não gosta de ser abordada por nós em público, meu pai - disse Clemente em voz baixa. - Já estamos muito grandes.
O juiz tinha o ouvido bastante apurado para ouvir essa frase, que enuviou a fronte do marquês. Popinot sentiu prazer em ver o espetáculo que lhe ofereciam o pai
e os filhos. Seus olhos, cheios de enternecimento, detinham-se sobre o rosto do sr. d'Espard, cujas feições, atitudes e maneiras lhe apareciam como um símbolo da
probidade sob sua mais bela forma, a probidade inteligente e cavalheiresca, a nobreza em todo seu esplendor.
- Como, como vê, senhor - disse o marquês, readquirindo a gagueira -, como vê, a Justiça, a Justiça pode entrar aqui, aqui, a qualquer hora; sim, a qualquer hora
aqui. Se há loucos, se há loucos, esses só podem ser os filhos, que são um pouco loucos pelo pai; e o pai, que é muito louco pelos filhos; mas é uma loucura de bom
quilate.
Nesse momento, fez-se ouvir na antecâmara a voz da sra. Jeanrenaud, e a boa mulher entrou no salão a despeito das observações do criado.
- Não ando com rodeios! - gritava ela. - Sim, senhor marquês - disse ela, cumprimentando a todos -, preciso falar com o senhor agora mesmo. Que diabo! Cheguei
um pouco tarde, pois já está aqui o sr. juiz criminal.
- Criminal! - repetiram os dois filhos.
- Há razão de sobra para que eu não o tenha encontrado em casa, pois o senhor está aqui. Pois é! A Justiça sempre aparece quando se trata de fazer o mal. Vim dizer-lhe,
senhor marquês, que combinei com meu filho devolver-lhe tudo, pois nossa honra está ameaçada. Meu filho e eu preferimos restituir-lhe tudo a causar-lhe o mínimo
desgosto. É preciso mesmo ser muito estúpido para querer interditá-lo...
- Interditar nosso pai? - exclamaram os dois filhos, encostando-se ao marquês. - Que é que há?
- Xi, senhora! - disse Popinot.
- Deixem-nos a sós, meus filhos - disse o marquês.
Os dois meninos foram para o jardim, sem fazer a menor observação, mas muito preocupados.
- Minha senhora - disse o juiz -, as quantias que o senhor marquês lhe entregou são legitimamente devidas, embora lhe tenham sido dadas em virtude dum princípio
de excepcional probidade. Se os que possuem bens confiscados duma ou doutra maneira, mesmo por manobras pérfidas, estivessem, cinquenta anos mais tarde, obrigados
a restituições, poucas propriedades legítimas seriam encontradas na França. Os bens de Jacques Coeur (Jacques Coeur (1395-1456): rico comerciante de Bourges, tesoureiro
de Carlos VII, a quem forneceu dinheiro para a guerra contra os ingleses, mas que o exilou por causa de uma conspiração tramada pelos inimigos do banqueiro. Sua
memória foi reabilitada no governo de Luís XI.) enriqueceram vinte famílias nobres, as confiscações abusivas decretadas pelos ingleses em benefício de seus partidários,
quando o inglês possuía metade da França, fizeram a fortuna de várias casas principescas. Nossa legislação permite que o senhor marquês disponha de seus rendimentos
a título gratuito sem que ele possa ser acusado de dissipação. A interdição dum homem se baseia na completa ausência de razão em seus atos; mas, aqui, a causa dos
pagamentos que lhe foram feitos reside nos motivos mais sagrados e mais respeitáveis. Assim, pode ficar com tudo sem remorso e deixar que o mundo interprete mal
essa bela ação. Em Paris, a mais pura virtude é alvo das mais sórdidas calúnias. É uma desgraça que as condições atuais de nossa sociedade façam parecer sublime
a conduta do senhor marquês. Para honra de nossa pátria, eu desejaria que semelhantes atos fossem considerados naturais; mas nossos costumes chegaram a tal ponto
que sou forçado, por comparação, a considerar o sr. d'Espard como um homem a quem se deveria conferir uma coroa em vez de ameaçá-lo dum processo de interdição. Durante
todo o curso de uma longa vida judiciária, nunca vi nem ouvi nada que me tenha comovido mais do que o que acabo de ver e ouvir. Mas não há nada de extraordinário
em encontrar a virtude sob sua mais bela forma, uma vez que é praticada por homens que pertencem à classe mais elevada. Após ter-me manifestado dessa maneira, espero,
senhor marquês, que fique certo de meu silêncio e que não tenha a mínima preocupação sobre o julgamento, se chegar a haver julgamento.
- Muito bem, já não é sem tempo - disse a sra. Jeanrenaud. - Isso é que é juiz! Olhe, meu caro senhor, eu o beijaria se não fosse tão feia. O senhor fala como
um livro.
O marquês estendeu a mão a Popinot e este bateu docemente com a sua na do marquês, dirigindo a esse grande homem da vida privada um olhar cheio de harmonias penetrantes,
que o marquês correspondeu com um amável sorriso. Esses dois espíritos tão perfeitos, tão ricos, um burguês e divino, o outro nobre e sublime, vibraram em uníssono
suavemente, sem choque, sem explosão de paixão, como se fossem duas luzes puras que se fundissem. O pai dum bairro inteiro se sentia digno de estreitar a mão daquele
homem duas vezes nobre, e o marquês experimentava no íntimo do coração uma emoção que o advertia de que a mão do juiz era uma daquelas de onde saem incessantemente
tesouros duma inesgotável bondade.
- Senhor marquês - acrescentou Popinot, cumprimentando-o -, sinto-me feliz em dizer-lhe que desde as primeiras palavras de meu interrogatório considerei inútil
a presença de meu escrivão.
Depois, aproximou-se do marquês, levou-o para o vão duma janela e disse-lhe:
- Já é tempo de voltar para casa. Acho que neste caso a senhora marquesa sofreu influências que o senhor deve começar a combater desde já.
Popinot saiu, voltou-se várias vezes no pátio e na rua, comovido pela recordação do episódio, que constituiu uma dessas impressões que se implantam na memória
para ali reflorir nas horas em que a alma procura consolar-se.
"Aquele apartamento me serviria muito bem", pensou, ao entrar em casa.
No dia seguinte, pelas dez horas da manhã, Popinot, que redigira na véspera seu relatório, dirigiu-se ao Tribunal com a intenção de fazer rápida e boa justiça.
Ao entrar no vestiário para vestir a toga e pôr o cabeção de juiz, o contínuo disse-lhe que o presidente do Tribunal lhe pedia que passasse por seu gabinete, onde
o esperava. Popinot dirigiu-se imediatamente para lá.
- Bom dia, meu caro Popinot - disse-lhe o magistrado, levando-o para o vão duma janela.
- Senhor presidente, trata-se dum caso sério?
- Uma insignificância - disse o presidente. - O ministro da Justiça, com quem tive a honra de jantar ontem, chamou-me à parte. Ele soube que o senhor foi tomar
chá na casa da sra. d'Espard, de cujo caso fora incumbido. Deu-me a entender que seria conveniente que o senhor não funcionasse nessa causa.
- Ah, senhor presidente, posso afirmar-lhe que saí da casa da sra. d'Espard no momento em que o chá foi servido; além disso, minha consciência...
- Sim, sim - disse o presidente -, o Tribunal inteiro, a Corte, todo o pessoal da Justiça o conhece. Não lhe repetirei o que disse do senhor a S. Exa; mas o senhor
sabe: a esposa de César não deve ser suspeitada (A esposa de César não deve ser suspeitada: palavras com que César teria explicado por que repudiara a mulher, cujo
procedimento dera lugar a suspeitas sem que houvesse provas. Dito empregado para significar que determinadas pessoas de alta colocação devem ficar acima de qualquer
suspeita.). Assim, não vamos fazer dessa ninharia um caso de disciplina, mas uma questão de conveniência. Aqui entre nós, trata-se menos do senhor que do Tribunal.
- Mas, senhor presidente, se o senhor soubesse a natureza... - disse o juiz, ensaiando tirar o relatório do bolso.
- Estou persuadido de antemão de que o senhor agiu com a mais rigorosa independência nesse caso. Eu mesmo, na província, quando simples juiz, muitas vezes tomei
mais que uma taça de chá com pessoas que eu devia julgar; mas basta que o ministro da Justiça tenha falado nisso, que se possa falar do senhor, para que o Tribunal
evite uma discussão a esse respeito. Qualquer conflito com a opinião pública é sempre perigoso para uma corporação constituída, mesmo quando esta tenha razão sobre
aquela, porque as armas não são iguais. O jornalismo pode dizer tudo, imaginar tudo; e nossa dignidade nos proíbe tudo, mesmo a resposta. Além disso, já conferenciei
com seu presidente, e o sr. Camusot (O sr. Camusot. Encontrá-lo-emos ainda, como magistrado ambicioso e de poucos escrúpulos, em Gabinete das antiguidades.) acaba
de ser designado para preencher a vaga resultante da dispensa que o senhor vai solicitar. É uma coisa arranjada em família. Peço-lhe, finalmente, sua recusa como
um serviço pessoal; em troca disso, receberá a cruz da Legião de Honra, que lhe é devida há tanto tempo. Eu mesmo me encarregarei disso.
Ao ver o sr. Camusot, um juiz recentemente chamado dum Tribunal do interior para o de Paris e que entrou cumprimentando o juiz e o presidente, Popinot não pôde
conter um sorriso irônico. Esse rapaz louro e pálido, cheio de secreta ambição, parecia disposto a enforcar e a absolver, ao sabor dos reis da terra, tanto os inocentes
como os culpados, e a seguir o exemplo dos Laubardemont (Laubardemont: barão Jacques Martin Laubardemont (1590-1653), tipo do magistrado corrupto. Instrumento dócil
de Richelieu, por quem foi feito conselheiro de Estado; tornou-se famoso por suas sentenças iníquas, sobretudo nos casos de Urbain Grandier, Cinq-Mars e de Thou.
Segundo a tradição, seria dele a frase seguinte: "Dai-me a linha mais indiferente da mão de um homem: sempre encontrarei nela por onde fazê-lo enforcar".) em vez
do dos Molé (Molé: Matthieu Molé (1584-1656), tipo do magistrado honesto e intrépido, procurador-geral e, depois, presidente do Parlamento, cujos direitos defendia
contra as arbitrariedades da Corte nas circunstâncias mais difíceis.). Popinot retirou-se cumprimentando o juiz e não se dignou revelar a mentirosa acusação levantada
contra ele.
Paris, fevereiro de 1836.

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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