Biblio "SEBO"
Se vós, leitor amigo, alguma vez, por um dos mil caprichos que a vida nos proporciona, vos virdes obrigado a permanecer um dia inteiro em Poitiers, onde, como suponho, não tendes parentes nem amigos, nem interesses que vos chamem, ficareis, ao cabo de uma hora, tomado por profundíssimo aborrecimento, por esse aborrecimento que é como que atmosfera própria da província e, muito principalmente, de Poitcu. Como esta cidade, onde tal fluido invisível, mil vezes mais funesto do que o mistral e o sirôco, seja tão penetrante e subtil " se infiltre no nosso ser de forma tão rápida e tão imprevista, só existe Burgos.
Ainda em Burgos, para compensar o terrível pesadelo, tendes a visita a uma das. mais belas e imponentes catedrais que a fé católica edificou.
Basta ela para entreter a admiração durante uma semana, sem falar do palácio de Jacques Cosur, outra maravilha, onde podeis, para distrair, meditar à vontade na ingratidão dos reis. Enfim, as ruas desertas, onde a erva cresce por entre as pedras, os grandes prédios tristemente ocultos no fundo de luxuosos pátios, dão em breve ao aborrecimento melancólico carácter que não deixa de ter seu encanto. Burgos possui a poesia do claustro. Poitiers é um túmulo.
Se - Deus vos livre de tal - algum génio malfazejo vos fizer demorar aí alguns dias, o melhor que tendes a fazer é sair da cidade e seguir até aos campos que ficam a dois passos.
Os arredores, sem serem pitorescos, são alegres e virentes. Ide às margens do Clain, pequeno ribeiro ao qual o Vienne concede a honra de banhar os prados da capital do seu departamento. O Clain não se sente por isso nem mais orgulhoso, nem mais turbulento. Igual e modesto no seu curso, é ribeirinho honesto que parece não reparar em que desliza junto de uma régia corte, de um bispado e de uma prefeitura.
Se seguirdes pelo atalho, subindo a corrente do rio, após duas horas de caminho, encontrareis um vale formado pelo circular alargamento de duas colinas por onde corre o Clain. Imaginai dois anfiteatros de verdura fronteiriços e separados pelo rio que a ambos reflecte.
Uma velha ponte de arcos, coberta de musgo e de avencas, liga as duas margens. Alargando-se neste ponto, o ribeiro forma como que um lago de belas ondas lisas como um espelho, e que, de facto, se tomaria como um espelho feito de uma só peça, até à barragem onde o cristal se quebra e voa em irisada poeira.
Entretanto, à direita, orgulhosamente assente sobre o planalto da colina, ergue-se o castelo de La Seiglière, verdadeira jóia da Renascença, vendo a seus pés a sombria massa do arvoredo do seu parque, enquanto, à esquerda, na margem oposta, meio oculto por um massiço de carvalhos, o castelo de Vaubert parece contemplar, com aspecto humilde e sofredor, a soberba atitude do seu opulento vizinho.
De-certo vos agradará este cantinho de terra e se, antes, tiverdes ouvido contar o drama desenrolado nesse aprazível vale, com certeza sentireis, ao visitá-lo, um pouco do misterioso encanto que sempre imana de todos os lugares consagrados pela história, e procurareis talvez ainda o sinal dos passos que afloraram a relva ou evocareis, sob as árvores, as desaparecidas sombras.
Único herdeiro de um nome destinado a morrer com ele, o último marquês de La Seiglière vivia regiamente nas suas terras, caçando, levando vida faustosa, fazendo bem aos seus trabalhadores, sem prejuízo dos seus privilégios, quando de repente o solo estremeceu e se ouviu como que surdo trovejar, semelhante ao ruído do mar que vai tornar-se borrascoso. Era o prelúdio da grande tempestade que ia abalar o mundo. O marquês de La Seiglière não se perturbou e mal se comoveu: era desses espíritos fúteis e encantadores que, nada tendo visto nem compreendido do que se passava em volta deles, se deixaram surpreender pela onda revolucionária, como as crianças pelo encher da maré. Ou perseguisse um veado nos seus frondosos parques, ou preguiçosamente reclinado nos estofos da sua carruagem, perto da jovem e formosa esposa, sentiu-se arrastado pelo galope dos seus cavalos, à sombra das suas árvores, na areia das suas alamedas; fosse porque reunisse em volta da sua sumptuosa mesa os fidalgos seus vizinhos, fosse porque, do alto da sua varanda, contemplasse com orgulho os prados, os campos de trigo, as florestas, as propriedades e o gado que lhe pertenciam, o que é certo é que sob qualquer ponto de vista por que encarasse a questão política e social, a ordem presente parecia lhe tão perfeitamente organizada, que não admitia que se pudessem ocupar a sério de substituí-la. Contudo, menos por prudência do que por tom, fez parte dessa primeira emigração que não foi, a bem dizer, senão um passeio de recreio, uma viagem de moda e de fantasia; tratava-se de deixar joeirar o grão e dar ao céu tempo para se apresentar de boa feição. Em vez, porém, de dissipar-se, o grão ameaçou desde logo tornar-se horrível tormenta; e o céu, longe de se apresentar com bom parecer, carregou-se de nuvens sangrentas donde já se escapavam relâmpagos e raios.
O marquês principiou a entrever que as coisas poderiam tornar-se mais sérias e durar mais tempo do que a princípio imaginara. Regressou precipitadamente a França, arrecadou à pressa o que pôde realizar da sua imensa fortuna e correu a juntar-se à mulher que o esperava nas margens do Reno. Acoutaram-se numa pequena cidade da Alemanha, onde se instalaram modestamente e viveram em pouco dourada mediocridade: a marquesa, plena de graça, de resignação e de beleza tocante; o marquês, cheio de esperança e de confiança no futuro, até ao dia em que soube sucessivamente que um punhado de vadios, sem eira nem beira, não haviam receado derrotar o exército da boa causa, e que um dos seus caseiros, chamado João Stamply, se permitira comprar e possuía, em boa e legítima propriedade, o parque e o castelo de La Seiglière.
Desde que existiam Stamply e de La Seiglière, sempre houvera Stamply ao serviço dos últimos, embora a família Stamply se pudesse gabar, por direita razão, de datar de tão longe como a família dos patrões. Era uma dessas raças de servidores dedicados e fiéis, cujo tipo desapareceu com a grande propriedade senhorial. Simples couteiros que haviam sido de pais a filhos, os Stamply fizeram-se rendeiros; pouco a pouco, à custa de trabalho e de economia, mercê também das bondades do castelo, que lhes não fez míngua, tinham acabado por se encontrarem senhores de alguns teres. Não se sabia ao certo em quanto se lhes orçava a fortuna; mas diziam-nos mais ricos do que eles queriam deixá-lo supor, e ninguém ficou surpreendido na região quando, após o decreto da Convenção que declarava propriedades nacionais todos os bens territoriais dos emigrados, se viu o rendeiro João Stamply adjudicar para si, no leilão, a moradia de seus antigos amos. Feito isto, continuou a viver na sua granja como anteriormente, activo, laborioso, mantendo-se afastado; comprando sem bulha, por baixo preço, bocado a bocado, as terras já vendidas ou sequestradas reunindo, juntando ano a ano novos despojos da desmembrada propriedade. Enfim, quando a França pôde respirar e a calma se foi restabelecendo, por uma bela manhã de primavera, meteu a mulher e o filho no carrito de verga que habitualmente lhe servia de caleça; depois, sentando-se na boleia, com o chicote numa das mãos e as rédeas na outra, foi tomar posse do castelo que era como que a capital do seu pequeno reino.
Este acto de posse foi menos triunfante e menos alegre do que seria para imaginar. Ao percorrer os vastos aposentos a que o abandono imprimira grave e solene carácter, debaixo desses tetos, por cima desses sobrados, por entre esses lambris ainda muito impregnados da lembrança dos antigos donos, a senhora Stamply, que não era mais do que boa rendeira, sentiu-se singularmente conturbada; quando se viu em frente do retrato da marquesa, a quem logo reconheceu pelo fresco e gracioso sorriso, a excelente mulher não pôde conter-se. O próprio Stamply não conseguiu evitar viva comoção que não cuidou de dissimular.
- Olha, João - disse a rendeira, enxugando os olhos - Não fiquemos aqui os nossos corações não se sentiriam bem. Envergonho-me da nossa fortuna ao lembrar-me de que talvez a senhora marquesa sofra miséria; por mais que diga que esta fortuna foi por nós ganha laboriosamente, sinto como que remorsos. Não te parece que estes retratos nos observam com aspecto irritado e que vão falar Vamos embora. Este castelo não foi feito para nós, dormiremos aqui mau sono e, acredita, já é de mais nada nos faltar, enquanto que há La Seiglière na penúria. Anda, voltemos para a nossa granja. Foi aí que teu pai morreu, foi aí que nasceu teu filho; é aí que temos vivido felizes. Continuemos a viver aí com simplicidade: as pessoas de bem ver-nos-ão com simpatia, os invejosos respeitarnos-ão e Deus, ao ver que usofruimos a nossa riqueza com modéstia, olhar-nos-á sem cólera e abençoará os nossos campos e o nosso filho.
Assim falou a rendeira porque tinha o coração bem formado e, ainda que sem grande instrução, era mulher de senso recto e de são juízo. Ao notar que o marido a escutava com ar pensativo e parecia prestes a ceder, voltou a insistir; mas Stamply de-pressa se refez da comoção que não pudera reprimir a princípio. Recebera alguma instrução, roçava pelas ideas modernas. Embora conservasse pelo marquês de La Seiglière, menos ainda do que pela marquesa, uns restos de respeito e até de reconhecimento, à medida que enriquecia, os instintos da propriedade haviam-no empolgado pouco a pouco e tinham acabado, nos últimos tempos, por invadi-lo e absorvê-lo. Demais, possuía um filho os filhos são sempre maravilhoso pretexto para animar e legitimar nas famílias os excessos do egoísmo e os abusos do interesse pessoal.
- Tudo isso é muito bonito - volveu por sua vez
- mas um castelo fez-se para ser habitado, e suponho que não comprámos este para lhe meter dentro os nossos bois e os nossos carneiros. Se nossos amos deixaram a região, a culpa não é nossa não fomos nós que pusemos as suas pessoas à margem da lei e lhes sequestrámos os bens. Não roubámos esses bens adquirimo-los pelo nosso trabalho e o da nação. Já não há fidalgos os títulos foram abolidos; todos os franceses são iguais e livres, e não sei porque os Stamply não dormiriam aqui tão bem como dormiam os La Seiglière.
- Cala-te, Stamply, cala-te - bradou a rendeira respeita a fatalidade, não ultrajes a família que durante tanto tempo alimentou a tua.
- A ninguém ultrajo - replicou Stamply um pouco confuso - digo apenas que, embora continuemos a viver na granja, isso em nada mudaria a face à questão; aqui vejo que só os ratos viveriam à vontade. É verdade que não passamos de rústicos a nossa educação e a nossa situação estão em desacordo, convenho mas, se sofremos por isso, devemos velar por que nosso filho não venha a sofrer um dia pela mesma causa é dever nosso educá-lo em virtude da posição a que a nossa fortuna lhe permita tomar mais tarde. Lastimarte-ás quando vires esse endiabrado Bernardo, de espada cingida, com duas dragonas de ouro E tu própria, bem queria saber porquê, no fim de contas, porque não havias de ser, como a senhora marquesa, a providência destes campos e o ornamento deste castelo
- Por não ter sido criado num palácio, o nosso filho não há de valer menos do que os outros e a senhora marquesa, ao abandonar a sua moradia, não deixou nele o segredo da graça e da beleza que possuía - tornou a bondosa mulher, abanando a cabeça Repara, Stamply, que estas pessoas tinham uma coisa que a nós há de sempre faltar-nos; pode muito bem adquirirem-se-lhe os domínios, mas essa coisa nunca se adquirirá.
- Muito bem passaremos sem ela que a guardem e bom proveito lhes faça O que é certo é que estamos na nossa casa e nela ficaremos.
Foi dito e feito. Estava-se, então, no princípio da primavera; era a primeira do século. O Bernardito andava pelos oito anos era, em toda a acepção da palavra, um vivo demónio que possuía em elevado grau todos os defeitos da idade barulhento, ladino, refilão, indisciplinado, dando-se com todos os patifórios da terra, ora agredindo, ora agredido, nunca entrando em casa se não com o fato em farrapos ou com alguma contusão na cara.
Stamply começou por dar um preceptor a esse amável menino depois, fiado em que esse preceptor faria dele um homem, dispòs-se a gozar sossegadamente e sem ostentação da posição que se criara pelo simultâneo concurso dos seus trabalhos e dos acontecimentos. Infelizmente estava escrito lá em cima que a sua vida não seria mais do que uma longa série, raramente interrompida, de dissabores, de atribulações e de terríveis desgostos.
A princípio, o moço Stamply mostrou-se rebelde aos benefícios da educação, não porque fosse destituído de inteligência e aptidão, mas era de índole indomável em que os instintos turbulentos sufocavam ou contrariavam todos os outros. Desanimou sucessivamente a paciência de três preceptores que, de comum acordo, largaram a partida depois de haverem perdido nela todo o seu latim.
O próprio pai, desanimado também, resolveu meter o filho num dos liceus de Paris, na esperança de que o afastamento, o pão seco, a prisão e o regimen militar, que reinava então nos colégios, conseguissem fazê-lo um anjo. A separação não se deu sem desgosto. Tal como o vemos, Bernardo era o amor, o orgulho e a alegria da mãe. Ao vê-lo partir, a boa mulher sentiu quebrar-se lhe o coração quando, à hora da despedida, o cingiu nos braços, teve como que o pressentimento de que nunca mais tornaria a vê-lo e de que o abraçava pela última vez.
E, de facto, a pobre mãe não mais deveria tornar a ver o filho. A saúde alterara-se-lhe sensivelmente. Habituada aos trabalhos da granja, a ociosidade consumia-a. De dia, vagueava, como alma penada, pelos aposentos à noite, quando conseguia dormir, sonhava que via a marquesa de La Seiglière esmolando à porta do seu castelo. Só tinha Bernardo, que espalhava em volta dela um pouco de movimento, de ruído e de alegria. Quando na casa deixou de ecoar a voz alegre, e a rendeira não teve à sua beira o Bernardito para a aturdir e distrair, sentiu-se tomada de sombria melancolia, e não tardou a definhar-se. O marido esteve muito tempo sem o notar. Conservava os seus hábitos de trabalho e de actividade. Raramente ficava em casa; andava sem cessar por montes e vales, visitava os seus domínios, olhava por tudo, e dava-se às vezes o prazer de atirar a algumas lebres ou alguns perdigotos naquelas terras onde os seus antepassados tinham guardado a caça senhorial. Por-fim acabou por notar o estado enlanguescente da humilde e triste castelã.
- Que tens - perguntava-lhe às vezes - Não és uma mulher feliz Que te falta Que te é preciso? Fala, dize o que desejas.
- Ai! - respondia ela-falta-me o modesto bem-estar doutros tempos. Queria, como nessa época, mungir as nossas vacas e fabricar a nossa manteiga; queria fazer o caldo para os nossos pastores e moços de lavoura; queria tornar a ver o meu Bernardito queria trazer aqui, todas as manhãs, os nossos ovos, a nossa nata e o nosso leite a fumegar. Lembras-te, Stamply, de como a senhora marquesa gostava da nossa nata Quem sabe, pobre criatura, se ela a tem tão boa agora!
- Ora, ora - replicava Stamply - A nata é boa em toda a parte. Fica certa de que à senhora marquesa nada lhe falta. O marquês não partiu com as mãos a abanar e iria jurar em que há nas suas gavetas mais bons luizes de ouro do que nós possuímos de maus escudos de seis libras. Se não levou consigo, na carteira, o castelo, o parque e as terras, nada podemos fazer; não é a nós que devem pedir contas. É preciso ser razoável. Quanto ao Bernardito, hás de tornar a vê-lo o garoto não morreu. Imaginas que, se em vez de o mandar estudar e instruir, seria mais aceitável conservá-lo aqui para andar à caça dos ninhos durante o verão, e, durante o inverno, bater-se com bolas de neve com todos os vadios desta região
- Seja como for, João, não é aqui o nosso lugar e foi mau dia aquele em que deixámos a nossa granja.
Ao ouvir estas palavras, que continuamente acudiam em todos os discursos da mulher, Stamply encolhia os ombros e retirava-se mal-humorado. Entretanto, a mulher piorava de dia para dia. Espírito fraco, consciência timorata, a pobre castelã dentro em pouco perguntou a si-própria se o marido não a enganara, se as coisas se teriam passado tão honestamente como dizia, se seria verdade ser legitimamente adquirida aquela fortuna, e se o castelo nada teria que censurar à probidade da granja. Mercê dessa constante batalhação, depressa passou da dúvida à convicção, do escrúpulo ao remorso. Desde então entregou-se à idea de que Stamply roubara e espoliara traidoramente os amos. Isso tornou-se dentro em pouco uma monomania que não lhe dava paz nem tréguas a-pesar-de todos os esforços tentados pelo marido para lhe demonstrar que estava louca, essa loucura só aumentou, e a tal ponto, que o próprio Stamply quàse perdeu a cabeça e viu-se obrigado a fechá-la e a vigiá-la, pois andava por toda a parte a repetir que o marido, ela e o filho não eram mais do que uma família de patifes, de bandidos e de espoliadores. Morreu num estado de exaltação difícil de descrever, julgando ouvir a turba-multa que acudia para a agarrar, e suplicando ao marido que restituísse aos La Seiglière o seu castelo e os seus domínios, demasiado contente - acrescentou ela ao expirar - se pudesse por esse preço salvar a cabeça do cadafalso e a sua alma do fogo eterno.
João Stamply não era precisamente um espírito forte. Sem falar na dor que sentiu, a morte da mulher feriu-o de estranha forma. Embora demonstrasse certo desprezo pela classe nobiliárquica, continuava a existir nele um velho fundo de veneração pelos amos a quem substituira, e, embora interrogasse a consciência e se julgasse irrepreensível, não podia às vezes evitar o ser perturbado pela sua lembrança. Contudo, dissipadas as impressões fúnebres, tornou a levar a mesma vida e reportou para o filho ausente todos os seus pensamentos e ambições.
Aos dezasseis anos, concluida a sua educação, Bernardo voltou para casa. Era então bonito rapaz, alto, magro, elegante, de coração ardente, com olhos chispantes, todo cheio dos ardores da idade, que excitavam ainda as belicosas influências de uma época ébria de glória e de combates. Até essa data a vida do castelo quâsi não se diferençara da da granja. No regresso de Bernardo tomou nova feição. Alheio aos factos passados, tendo apenas vaga lembrança dos La Seiglière, confusa idea dos acontecimentos que o haviam enriquecido, o rapaz parecia gosar dos benefícios da sua posição sem escrúpulos, sem perturbação e sem remorso. Novo, possuía todos os gostos, todos os instintos da mocidade. Caçou, rebentou cavalos, assombrou a região pelo luxo das equipagens e fez, como costuma dizer-se, saltar os escudos paternos, tudo com a maior satisfação do digno Stamply, que não se sentia em condições para reconhecer no filho maneiras de grã-senhor. Tudo caminhava pelo melhor, quando, certa manhã, Bernardo foi ter com o pai e usou desta linguagem
- Pai, gosto muito de ti e deveria sentir-me feliz em passar a vida ateu lado. No entanto, aborreço-me e só aspiro a deixar-te. Que queres Tenho dezoito anos e é vergonha gastar pólvora com lebrachos, quando gloriosamente se poderia queimar pelo serviço da França. A existência que levo sufoca-me e mata-me. Todas as noites, vejo o imperador a cavalo, à testa das suas tropas, e acordo sobressaltado, julgando ouvir o troar do canhão. Chegou a hora em que o meu sonho deve realizar-se. Preferias ver a minha mocidade consumir-se em vãos prazeres Se gostas de mim, deves querer ser orgulhoso da tua ternura. Não chores, sorri antes ao pensar nas alegrias do regresso. De feito, que de alegrias, que de enebriamentos Voltarei coronel, pendurarei a minha cruz à cabeceira da tua cama e à noite, ao canto da lareira, referir-te-ei as batalhas em que entrei.
E o cruel partiu. Nem as advertências nem as lágrimas, nem os rogos puderam demovê-lo. Por essa época eram todos assim. Dentro em pouco chegavam cartas dele que eram como que gloriosos boletins, rescendendo todas ao cheiro da pólvora, todas escritas no dia seguinte ao de um combate. Alistado como voluntário num regimento de cavalaria, sargento após a batalha de Essling, oficial um mês depois, em seguida à batalha de Wagram, onde o imperador o notara, seguia a passos agigantados impelido pelo demónio da glória. Foi um dos que provaram, no dizer de Puisaye, que um ano de prática supre vantajosamente todas as manobras e aprendizagens das paradas de quartel. Todas as suas cartas eram um hino à guerra e ao herói que era o seu deus. Nos princípios do ano de 1811, o seu regimento encontrava-se em Paris, e Bernardo aproveitou uma licença de alguns dias para correr a abraçar o velho pai. Como era encantador no seu uniforme de tenente de hussares Como o dólman azul com agulhetas de prata fazia sobressair com graça a elegância do seu porte, esbelto e flexível como a haste de salgueiro novo Como lhe ficava bem no ombro a pelica forrada de peles Como o seu escuro bigode dava graça aos lábios finos e rosados Que aspecto tão bélico lhe não dava a grande espada e que ruído tão agradável não fazia o tinir das esporas Stamply não se fartava de contemplá-lo num sentimento de ingénua admiração, beijava-lhe as mãos e duvidava de que fosse o filho.
Como o sol no poente, o astro imperial brilhava cintilantemente, quando mortal frémito percorreu o coração de França. Um exército de quinhentos mil homens, em que a mãe pátria contava duzentos-e-setenta mil dos seus mais fortes e mais audaciosos filhos, acabava de passar o Niémen para ir ferir Inglaterra no gelado seio da Rússia. O regimento de Bernardo fazia parte da reserva de cavalaria comandada por Murat. Recebeu-se no castelo uma carta datada de Wilna, depois outra em que Bernardo contava que fora feito capitão de esquadrão após o feito de Volontina, em seguida, terceira, depois nada mais. Dias, semanas, meses se passaram: nada de notícias Soube-se apenas que uma batalha, a mais terrível que se tem dado nos tempos modernos, se travara nas planícies de Moscovo; a vitória custara vinte mil homens ao exército francês. Vinte mil homens, e cartas, nenhumas! O imperador esta em Moscovo e não aparecem cartas de Bernardo. Stamply continua a esperar diz-se que o castelo de La Seiglière fica longe do Kremlin, e que, entre esses dois pontos, o serviço de correios não poderia, mormente em tempo de guerra, fazer-se com muita regularidade. Mas correm sinistros boatos; dentro em pouco esses surdos boatos transformam-se em grito de pavor, e a França, enlutada, conta com terror o que resta das suas legiões. Que se passava no castelo O que se passava em todos os pobres corações esfacelados que procuram um filho nessas fileiras dizimadas pelo frio e pela metralha. Stamply resolvera dirigir-se ao ministério da guerra para saber o que havia a respeito do destino de Bernardo; a resposta não se fez esperar; Bernardo caíra morto na batalha de Moscovo,
A dor não mata: Stamply ficou de pé. Simplesmente envelheceu vinte anos em menos de alguns meses, e, passado certo tempo, viram-no mergulhado numa espécie de marasmo que se aproximava da imbecilidade.
Encontravam-no, ao sol ou à chuva, vagueando pelos campos, de cabeça descoberta, de sorriso nos lábios, esse sorriso vago e dúbio, mais triste e desolador do que as lágrimas. Quando saiu desse estado, o pobre homem veiu pouco a pouco a notar uma coisa em que o seu espírito nunca se detivera até então: é que não tinha à sua volta nem amizades nem relações de espécie alguma e que se encontrava absolutamente isolado julgou até entrever que era, na região, alvo de desprezo e de reprovação geral. E era verdade havia longos anos. Enquanto durara o terror e Stamply ficara modestamente na sua granja, quàse não se haviam preocupado, nos arredores, com a sua fortuna e com as suas sucessivas aquisições quando, porém, dias mais calmos se seguiram a esses tempos de pavor e o rendeiro se instalou publicamente no castelo senhorial, começaram a abrir muito os olhos; quando, enfim, os brazões e os títulos reapareceram ao de cima da água, como despojos após a tormenta, de toda a parte se elevou contra o desgraçado castelão formidável concerto de injúrias e calúnias. Que se diz O que se não diz! Uns: que tinha roubado, arruinado, expulso, espoliado os amos; outros: que fora apenas o secreto agente do marquês e da marquesa e que, abusando da confiança deles, recusava restituir os domínios e o castelo que resgatara e o dinheiro dos La Seiglière. As boas almas que, em 93, ficariam encantadas por ver cortar o pescoço do marquês, desataram a exaltar-lhe as virtudes e a chorar o seu exílio. Os tolos e os maus alegravam-se; aos próprios olhos de honrada gente, a probidade dos Stamply foi, pelo menos, equívoca. O triste fim da bondosa rendeira, os remorsos, que deixava estalar nos seus derradeiros dias, davam pasto às mais ultrajantes suspeitas a maneira por que Bernardo levara a vida durante a sua permanência em casa do pai acabara por exasperar a inveja. Fora, em Poitiers e nos arredores, um alarido universal. Enfim, nada houve, até a própria morte do rapaz, que não servisse de pretexto ao insulto: reconhecia-se nisso um efeito de cólera divina, uma expiação merecida, demasiado suave, no dizer de alguns. Longe de lamentar Stamply, acabrunharam-no, atiraram-lhe à cara o cadáver do filho.
Enquanto Bernardo vivera, absorto na sua alegria e no seu orgulho paternal, não só Stamply não dera pela espécie de reprovação que pesava sobre ele, mas ainda não suspeitara das caluniosas opiniões espalhadas a seu respeito. E' assim que as coisas se passam vulgarmente o mundo preocupa-se, agita-se, inquieta-se e brama, enquanto na maior parte das vezes as pessoas a quem afecta esse ruido estão metidas no seu canto, felizes e tranquilas, sem sequer suspeitar da honra que o mundo lhes dá. Mas quando, após a morte do filho, que fora todo o seu enlevo, Stamply lançou, para um lado e outro, olhares desolados, não encontrando uma mão amiga, nem um coração afectuoso, nem um rosto benévolo, o pobre homem acabou por perceber que em volta dele havia como que um cordão sanitário. Os seus trabalhadores e rendeiros odiavam-no, porque saíra deles os fidalgotes seus vizinhos afastavam-se ao vê-lo e não lhe correspondiam à saudação. Enfim, nos últimos tempos, os garotos insultavam-no e apedrejavam-no quando atravessava a aldeia.
- Olha - diziam entre si - aquele é o velho Stamply que fez fortuna, despojando os amos!
Ele passava, de cabeça baixa, com os olhos razos de lágrimas. O seu espírito, que, sob o duplo peso do desgosto e da idade, já tinha descido muito, acabou por se apagar sob o sentimento do desprezo público a sua consciência, que nunca estivera perfeitamente tranquila, começou a perturbar-se. Em suma: no seu castelo, no meio dos seus vastos domínios, viveu sozinho, miserável e proscrito.
Há pouco apontei-vos o castelo de Vaubert, meio oculto por um massiço de carvalhos e contemplando melancolicamente a orgulhosa fachada do castelo que domina as duas margens do Clain. O castelo de Vaubert nem sempre teve o aspecto que hoje lhe vemos. Antes que a revolução por lá passasse, era um vasto castelo com torres e bastiões, pontes-levadiças e fossos, ameias e plataformas, verdadeira praça forte que esmagava com a sua imponente massa a arquitectura elegante e florida do seu esbelto e gracioso confrade. Os domínios, que em volta se comprimiam e constituíam desde tempos imemoriais a baronia de Vaubert em nada cediam, nem pela extensão, nem pela riqueza, às propriedades dos La Seigliere. Quem dizia lá Seiglière e Vaubert dizia os senhores da região. Aparte algumas rivalidades inevitáveis entre vizinhos de tão elevada estirpe, as duas casas viveram sempre em intimidade quási que perfeita, que se apertou mais ainda, nos derradeiros tempos, com a apreensão do perigo comum. Ambas emigraram no mesmo dia, seguiram a mesma rota e escolheram o mesmo canto de terra estranha para aí viverem mais chegados no infortúnio do que o haviam sido na prosperidade juntando o que tinham conseguido realizar dos seus teres, estabeleceram-se debaixo do mesmo teto, em comunhão de bens, de esperanças e de saudades: mais saudades do que esperanças, mais esperanças do que bens. Como o marquês, o senhor de Vaubert tinha a mulher e mais um filho, ainda criança, destinado a crescer no exílio.
Esses patrícios, a quem tanto caluniaram, quando houve liberdade para o fazer, mostraram, pelo menos nesses tempos de provação, que sabiam suportar a má sorte como se nunca tivessem conhecido a boa. Nessas almas habituadas ao luxo e à indolência, nesses espíritos levianos na sua maioria, frívolos e dissipadores, encontraram-se, nos dias da desgraça, imprevistos recursos de energia, de coragem e de fácil resignação. Assim, a pequena colónia a que aludimos instalou-se alegremente na sua pobreza e começou por viver nela com amável filosofia. A casa que ocupava, no extremo de um bairro da cidade, compunha-se de um corpo central flanqueado por dois pavilhões um chamava-se o castelo de Vaubert; o outro, o castelo de La Seiglière. De dia, visitavam-se, conforme as leis da etiqueta; à noite, juntavam-se na sala comum. Ambas traziam a essas pequenas reuniões a sua requintada delicadeza e as suas boas maneiras. A senhora de La Seiglière e a senhora de Vaubert acrescentavam a isso o encanto das suas graças e da sua beleza uma já impregnada dessa melancolia desinteressadamente própria dos seres destinados a morrer cedo de mais; a outra, índole menos poética, espírito buliçoso, activo, aventuroso, digna de brilhar em mais amplo teatro, no meio das intrigas que se urdiam então nos salões de Viena e de Coblentz. Consolavam-se com uma boa palavra, vingavam-se com um sarcasmo; nunca se alteravam até à cólera. Tanta filosofia baseava-se, conveniente é dizê-lo, num grande fundo de ilusões e em completa ininteligência dos factos. Em geral, estava nisso um pouco do segredo dessa coragem, dessa energia, dessa fácil resignação a que nos referimos. Persistia-se em acreditar que a grande obra que se consumava não passava de sangrenta parada, feita por um bando de assassinos; esperava-se de mês para mês ver a França castigada e reconduzida ao bom caminho. A ruína das suas esperanças modificou singularmente os espíritos e levou-os à força a uma apreciação mais justa e mais sensata dos acontecimentos ocorridos. Desde que essas crianças, que tinham brincado estouvadamente no exílio, compreenderam que a brincadeira era grave e que o exílio os tomava a sério, muitas delas pensaram em regressar à França, umas para se imiscuírem nas manobras do partido realista, que principiava a agitar-se nas secções de Paris; outras para tentarem recolher, se ainda fosse tempo, alguns despojos da sua fortuna. O barão de Vaubert fez parte destes últimos. Nunca, a bem dizer, se mostrara entusiasta pela emigração; a mulher arrastara-o contra-vontade; mantivera a convicção de que poderia, com certa habilidade, conservar a cabeça e os bens. O marquês de La Seiglière, fosse por firmeza, fosse por teimosia, declarara que só regressaria a França com os seus legítimos senhores. O senhor de Vaubert partiu sozinho, ficando de voltar para junto da mulher e do filho ou de chamá-los para o pé dele, conforme o resultado dos seus passos e do caminhar dos acontecimentos.
O senhor de Vaubert encontrou o castelo mutilado, as ameias abatidas, os fossos atulhados, os escudos quebrados, as terras fragmentadas e vendidas. Era um espírito bastante positivo, impregnado de ideas cavalheirescas, e não se perdoava o haver-se deixado ludibriar. Regressado sob um falso nome, obteve a custo a sua irradiação da lista dos emigrados e retomou o seu lugar assim que as elevadas classes da sociedade principiaram a reconstituir-se. Só se tratava de retomar a baronia foi com esse fim que empregou todas as suas faculdades.
Não ha nada como a adversidade para desenvolver no coração humano os instintos industriosos cujo conjunto constitue esse mau génio a que se chama o génio dos negócios. bom é acrescentar que o momento fora bem escolhido. Época de ruína e de reconstrução, se as antigas fortunas desabavam como castelos de cartas, as fortunas modernas cresciam como cogumelos no dia seguinte ao de uma chuvada. Havia lugar para todas as ambições: os intrusos enxameavam o solo; os particulares enriqueciam de um dia para o outro com aventurosas especulações e, no meio da prosperidade individual, só o Estado se encontrava arruinado.
O senhor de Vaubert lançou-se nos negócios com a aventurosa audácia das pessoas que nada têm a perder; sem se deixar levar pelo desânimo, pela dificuldade da empresa, propôs-se corajosamente reconquistar e reconstituir a herança que recebera dos pais e que tinha a peito transmitir ao filho. No entanto, anos decorreram antes que o êxito lhe coroasse os esforços e só perto de 1810 é que conseguiu resgatar o que lhe restava do solar, juntando a isso algumas terras circunvizinhas. Estava nesse ponto da tarefa, que contava levar a bom resultado, quando a morte o surpreendeu, ao acabar de escrever à mulher a pedir-lhe que ela e o filho viessem para junto dele, e aos quais não via há quási quinze anos.
Entretanto, o que se passara no exílio? O marquês envelhecera; a senhora de Vaubert já não era nova seu filho Raul tinha dezoito anos; havia dez que a senhora de La Seiglière falecera dando à luz uma filha que se chamava Helena e prometia ser formosa como o fora a mãe. A carta do senhor de Vaubert resolveu a baronesa a partir logo. A separação foi dolorosa. A-despeito-da diferença de idades, as duas crianças amavam-se com ternura. A senhora de Vaubert e o marquês de La Seiglière tinham-se ligado pela convivência e pela fatalidade. Alguns, por espírito de maldade, pretenderam que se haviam consolado reciprocamente na sua viuvez; essas opiniões, porém, quási nos não interessam. O facto é que, próximo a deixarem-se, sentiram-se comovidos e perturbados. Eram velhos amigos. A baronesa insistiu em levar o marquês e a filha, oferecendo-lhes irem continuar em Vaubert a vida que tinham levado em terra estrangeira e deixou vislumbrar a esperança de um um dia Helena a Raul. O marquês não dissimulou que semelhante união lhe satisfaria os mais queridos votos; por várias vezes, de si para si, tinha acalentado esse sonho. Tomou conhecimento da proposta da baronesa e, desde esse instante, os dois filhos encontraram-se noivos um do outro. Quanto à oferta de regressar a França e de ir fixar-se em Vaubert, o senhor de La Seiglière, embora lhe custasse separar-se dos seus companheiros de infortúnio, deu a entender muito claramente que a considerava como inaceitável. As suas ideas de há vinte anos não tinham avançado. Não perdoava ao senhor de Vaubert ter comprometido o seu nome nos fornecimentos dos exércitos e não era homem para compartilhar dos benefícios de uma fortuna resgatada por semelhante preço. Finalmente, por nada deste mundo consentiria em ver tão de perto o velho trono da França ocupado por um usurpador e os domínios de La Seiglière na posse de um dos seus rendeiros. A seus olhos, Bonaparte e Stamply não passavam de dois espoliadores que media pela mesma bitola a um chamava o Stamply dos Bourbons ao outro o Napoleão de La Seiglière. Era curioso e aprazível ouvi-lo a este respeito; espírito amável, aliás, que não podia deixar-se de estimar. Em resumo, cheio de confiança no futuro que reintegraria a monarquia e os servidores nos seus bens, direitos e privilégios, obstinou-se em não querer tornar a pôr os pés em França enquanto não se expulsassem os Stamply de toda a espécie, uns à bengalada, outros a tiro de peça.
O regresso da senhora de Vaubert foi todo um poema de pungentes decepções e de amargas desilusões. Pela carta do marido, que não abordava pormenor algum e que, até então, sempre exagerara o êxito dos seus empreendimentos, a baronesa imaginara que vinha encontrar o castelo pouco mais ou menos conforme o deixara, com todas as suas dependências. Em Poitiers nem por isso ficou muito surpreendida por não ver, com a carruagem brazonada, o senhor de Vaubert, a quem tivera o cuidado de prevenir na véspera. Havia forte motivo para que o senhor de Vaubert falhasse ao encontro mas a baronesa não o suspeitava. Como estava com pressa de pisar as suas terras, deu o braço ao filho, e ambos, alcançando as margens do Clain, seguiram pelo atalho que devia conduzi-los a Vaubert. Seria preciso ter-se envelhecido no exílio para compreender as comoções que deviam apossar-se do coração dessa mulher quando aspirou e reconheceu pelo perfume o ar desses campos entre os quais haviam decorrido os melhores dias da sua mocidade. O seio arfou-lhe e os olhos encheram-se lhe de lágrimas. Digamos em seu louvor que não era apenas o sentimento da propriedade recuperada que assim a perturbava. Essas comoções, sentia-as ela ao pisar o solo da França; simplesmente, naquele momento, misturava-se aí, naturalmente, uma embriaguez mais suave, porque se é justo censurar o egoísmo das pequenas almas que confinam a pátria nos limites dos seus domínios, justo se torna também reconhecer que o campo paterno e o teto hereditário são na pátria como que segunda pátria.
Raul, que não se recordava desses lugares, não compartilhava do enternecimento da mãe sentia, contudo, o coração pulsar-lhe de orgulho e de alegria ao pensar que esse castelo, essas florestas, essas granjas, esses prados, que tanta vez entrevira em sonhos, como fabulosas margens, tinha-os na mão e que tocava enfim essa senhorial opulência que bem grande lhe fora descrita, pela qual sempre suspirara. À medida que iam andando, a senhora de Vaubert mostrava-lhe o oceano de verdura, que se desenrolava ante eles, e dizia com complacência
- Tudo isto é teu, meu filho. Rejubilava com os entusiasmos desse rapaz e fazia gala, sobretudo, ao introduzi-lo no gótico solar dos 30
antepassados, verdadeira fortaleza por fora, por dentro verdadeiro palácio onde se respirava o luxo de dez gerações. Contudo, admirava-se por não ver vir ao seu encontro nem o senhor de Vaubert, nem qualquer deputação de rendeiros e de raparigas de campo aparecesse para lhe festejar o regresso, a oferecer-lhe flores e a prestar-lhe homenagem. O próprio Raul que, por ter nascido entre privações, não deixara de receber a educação consoante as ideas da sua raça, a quem cedo haviam sido enfeudadas as conversas da mãe e do marquês de La Seiglière, Raul, ficara tristemente surpreendido com a pouca solicitude de que era alvo à sua passagem. Mas, por Deus qual não foi o pasmo da baronesa quando, na volta do atalho, descobriu o que lhe restava da coutada e do castelo, e Raul, ao ver a mãe em dolorosa e muda observação, perguntou-lhe que casebre era aquele que de tal maneira contemplava
Ela, a princípio, recusou acreditar no que os olhos viam como o sol acabava de desaparecer, pensou a sério que era efeito de crepúsculo e que era joguete de uma miragem de nova espécie. Contudo, concluiu o trajecto com passo menos firme e de coração menos alegre. E era de facto, verdade
A mata desaparecera e dela só restava um grupo de carvalhos. O castelo não passava de mutilado corpo que escondia as feridas sob uma mortalha de hera. Os fossos estavam transformados em hortas a capela já não existia os torreões estavam desfeitos a fachada caía em ruínas. E nem um criado no limiar da porta. I nem um tiro nem um ramo nem um discurso nem outros gritos além dos pios das andorinhas que voavam pelo ar azul do céu Por toda a parte, pelas circunvizinhanças, a solidão e o silêncio dos túmulos. A senhora de Vaubert continuava a andar, e o filho repetia, ao acompanhá-la com ar surpreso
- Onde vamos Para onde me leva, mãe
A baronesa caminhava em silêncio. Quando penetrou nesse devastado ninho, sentiu as pernas fraquejarem-se-lhe e o coração a morrer-lhe no peito. O interior estava mais sombrio ainda e mais devastado do que parecia por fora. Os sobrados estavam podres, os lambris tirados, tiradas também as decorações de damasco e de couro de Holanda tirados os quadros, tirados os móveis góticos e os móveis da Renascença salas despejadas, aposentos desertos, paredes nuas e escalavradas, apenas, num ponto ou noutro, nos tetos, alguns vestígios de douraduras pelas janelas, alguns farrapos de seda esquecidos, desbotados pela humidade e roídos pelos ratos.
- Onde estamos, minha mãe - perguntava Raul, ao passear em volta de si admirado olhar.
A senhora de Vaubert andava de casa em casa sem responder. Por fim, depois de haver procurado em vão uma alma através daquelas ruínas, encontrou na cozinha um velho criado profundamente adormecido ao pé do pano da chaminé. Abanou-o com violência pelo braço, perguntando por diversas vezes com voz imperiosa e breve
- Onde está o senhor de Vaubert
- O senhor de Vaubert, minha senhora - volveu o velho, esfregando os olhos - Está no cemitério.
- Você enlouqueceu, homenzinho - replicou com vivacidade a baronesa, que já não sabia onde tinha a cabeça - Que queria você que ele fôsse fazer ao cemitério
- Minha senhora - respondeu o velho servidor fez o que eu fazia há pouco dorme profundo sono.
- Morreu - bradou a baronesa.
- E já está enterrado há mais de um mês - ajuntou tranquilamente o velho.
Ao grito que ela soltou, o bom do homem olhou atentamente e reconheceu a senhora de Vaubert tinha sido, noutros tempos, um dos criados da casa era ele o único sobrevivente agora. A idade e os achaques quási o tinham tornado imbecil. Contou como o barão, no momento em que acabava de resgatar o castelo e duas pequenas granjas que constituíam todas as suas propriedades territoriais, morrera sem ter tempo de mandar fazer as reparações e os embelezamentos que deviam pôr o solar em estado de receber condignamente a baronesa e o filho.
A senhora de. Vaubert estava aterrada Raul não queria acreditar no que via nem no que ouvia. Moído pela fadiga da viagem e pelas comoções de regresso, o baronête adormeceu numa cadeira de palhinha e a mãe passou a noite na única e pouco limpa cama que existia na casa.
Na manhã seguinte, ao sair do quarto, a senhora de Vaubert encontrou Raul a passear melancolicamente pelo castelo dos seus antepassados. Olharam um para o outro sem proferir palavra. Entretanto, a baronesa procurava ainda iludir-se com respeito à sua situação mas quando se levantaram os selos e se liquidou a herança, ou fosse porque, enquanto vivo, o senhor de Vaubert tivesse dissipado por um lado o que ganhara por outro, ou fosse porque se iludisse a si-próprio acerca do resultado das suas operações, a mulher e o filho foram obrigados a reconhecer que, na realidade, a sua herança se limitava ao castelo no estado em que hoje o vemos, a duas pequenas granjas de medíocre valor e a uma importância de cinquenta mil francos que o barão depositara no cartório do notário, alguns dias antes de morrer. Era o mais claro e o mais nítido dos seus teres. Organizaram a sua vida modestamente, e a forma por que o fizeram quâsi não diferiu da que tinham usado no exílio.
A senhora de Vaubert estavam reservadas outras decepções não menos cruéis. A medida que vivia nesse solo que o arado revolucionário removera de alto a baixo e dividira ao infinito, à medida que observava o que se passava nessa França, grande então, próspera e cheia de glória, à medida que estudava a constituição territorial do país e via a propriedade moderna já consagrada por longos anos de júbilo, sossegada, inatacável, baseada no direito comum, sentiu todo o vácuo e todo o nada das ilusões do partido da emigração; compreendeu que, vendo as coisas pelo melhor prisma, o regresso dos Bourbons ao seu reino não reintegraria necessariamente o marquês de La Seiglière na posse dos seus domínios; imaginava que Napoleão, no auge do poder, estava ainda menos solidamente sentado no trono do que a fortuna de Stamply no planalto da sua colina e que se poderia expulsar um a tiros de canhão, sem que fosse permitido expulsar o outro à bengalada, Estas reflexões esfriaram pouco a pouco a senhora de Vaubert, com respeito ao projectado casamento entre seu filho e a menina de La Seiglière. Prestes a deixar o marquês e a filha, deixou-se levar pelo enternecimento das despedidas; a distância, a fria razão recuperou o seu império. Raul era bonito, elegante, esbelto, pobre, mas de raça nobre, porque os de Vaubert remontavam ao primeiro barão cristão. Numa época de fusão e de aliança em que, para agradar ao chefe do Estado, os intrusos da véspera procuravam brazonar as portas dos seus coches e enobrecer os seus escudos com o roçar dos velhos pergaminhos, Raul podia evidentemente aspirar a um casamento rico que lhe permitisse aumentar a fortuna da família. Essas ideas desenvolveram-se insensivelmente e tomaram, de dia para dia, no espírito da baronesa, forma mais clara e decisiva. Amava ternamente o filho, sofria tanto no seu amor como no seu orgulho por ver o futuro desse rapaz consumir-se e estagnar no aborrecimento da pobreza. Nova ainda ela própria, mas, no entanto, já nessa idade, ávida de bem estar e segurança em que os cálculos do egoísmo já substituíram os generosos impulsos da alma, sem custo se adivinha tudo o que germinava de ambições pessoais sob a solicitude, aliás muito sincera, da mãe pelo filho.
A senhora de Vaubert, que a princípio se pusera à parte, só se misturando com essa fracção de nobreza que se obstinava em lamentar se no seu canto, pensava a sério em agarrar-se à fortuna do império e em procurar para o filho algum casamento desigual, mas lucrativo, quando, de súbito, soube que a águia imperial, ferida mortalmente nos campos da Rússia, já não tinha para os raios da guerra senão uma garra meio partida. A baronesa achou prudente esperar e ver, antes de tomar qualquer resolução, de que lado vinha a borrasca que se desencadeava em todos os pontos do horizonte. Foi por essa época, se bem nos lembramos, que Stamply recebeu a notícia da morte do filho. Esse boato chegou aos ouvidos da senhora de Vaubert que resolveu, caridosamente, que fosse justiça do céu e não mais se preocupou com o caso. Odiava Stamply por conta própria e por conta do marquês. Só com desprezo falava nele. As exageradas narrativas que fazia da posição do senhor de La Seiglière e da filha não tinham contribuído pouco para desencadear sobre a cabeça do pobre diabo todas as cóleras e maldições da região. Estavam as coisas nesse pé, quando, certa tarde, tudo pareceu tomar nova feição.
Sentada junto de uma janela aberta, a senhora de Vaubert parecia mergulhada em profunda meditação. Não eram as harmonias nem a imagem de uma linda tarde de verão que a mantinham assim sonhadora e recolhida. Contemplava com sentimento de tristeza e de inveja o castelo de La Seiglière, cujas janelas eram beijadas pelos derradeiros raios do sol, e que resplandecia em toda a sua glória, com os seus festões e os seus arabescos, os seus campanários e zimbórios, enquanto a tufada sombra do parque lhe ondulava aos pés ao acariciador sopro da briza. Via, ao mesmo tempo, as ricas granjas agrupadas em torno. Na amargura do seu coração, pensava em que esse castelo, parque e terras eram propriedade de um rústico e de um labrego. Raul surpreendeu-a no meio dessas reflexões. Tomou lugar junto da mãe e, como ela, conservou-se, calado, a contemplar com ar triste a extensão da paisagem emoldurada pela janela aberta.
Esse rapaz ha muito que andava minado por sombria melancolia. Como não sentia gosto pelo estudo, que só lhe poderia encantar a pobreza, gastava a energia em passeios estéreis, em impotentes desejos. Nessa tarde, num passeio solitário pelos campos, encontrara alegre grupo de jovens cavaleiros que voltavam para a cidade, em grande equipagem de caça, ao ruído das trompas, escoltados pelas matilhas e pelos monteiros. Ele não tinha monteiros, nem matilhas, nem puro sangue em que pudesse dissipar os seus desgostos: voltara para casa mais desanimado e mais sombrio do que costumava. Apoiou-se às costas da cadeira, encostou a cabeça à mão, e a senhora de Vaubert viu correr duas lágrimas pelas emagrecidas faces do filho.
- Meu filho, meu menino, meu Raul! - exclamou, cingindo-o contra o peito.
- Ah, minha mãe! - bradou o rapaz com amargura - Para que me enganou Para que me embalou em vã e louca esperança Para que me alimentou, desde a mais tenra idade, sonhos insensatos? Para que me fez entrever, do seio da pobreza, as margens encantadas a que nunca mais devia aproar? Porque não me ensinou o amor pela mediocridade? Porque não me fez estudar de maneira a limitar os meus desejos e as minhas ambições? Porque não me educou cedo na humildade e na resignação que convinham ao nosso destino Ser-lhe-ia tão fácil!
A estas merecidas censuras, a senhora de Vaubert só respondia baixando a cabeça, quando se ouviram gritos fora de casa e que lhe chamaram a atenção. Ergueu-se, aproximou-se da varanda e reconheceu, ao fim da ponte lançada sobre o Clain, Stamply, a quem uma chusma de mariolas perseguia, agredindo-o à vergastada. O velho proscrito, sem tentar reprimir as hostilidades, fugia tão de-pressa quanto lho consentiam a idade e os sapatos ferrados. A senhora de Vaubert seguiu-o largo tempo com a vista e depois recaiu em meditação. Saiu dela sorridente e radiante. Que acontecera? Menos que nada: uma idea. Mas uma idea basta para mudar a face ao mundo.
Alguns dias depois, a senhora de Vaubert, de braço dado com o filho e, sob o pretexto de passear pelos arredores, chegou à margem direita do Clain. Era a primeira vez, após o regresso, que resolvera tocar essa margem. Ao passar pela frente do gradeamento do parque, deteve-se alguns instantes; como se cedesse ao impulso das recordações, abriu o portão e entrou.
- Que faz, minha mãe - bradou Raul, que debalde se esforçava por detê-la no limiar - Não receia ultrajar o marquês e a filha pondo os pês nestas terras Não será falsear ao mesmo tempo o culto da amizade e a religião da desgraça? Enfim, com os sentimentos de ódio e de desprezo que ambos professamos contra o proprietário desses locais, afigura-se-lhe que seja aqui o nosso lugar?
- Anda, meu filho, anda; não é ultrajar o marquês procurar nestas sombras as lembranças que deixou. Onde vês um insulto à desgraça, o próprio marquês de La Seiglière só veria piedosa romagem. Anda - repetiu, apoiando-se meigamente ao braço de Raul - nada temos a recear de maus encontros: é a hora em que, todos os dias, vejo o senhor Stamply passar para visitar os seus domínios. De resto devo confessar-te, meu filho, que me refiz um pouco das minhas prevenções e que o homem não me parece merecer, por fim de contas, o ódio e o desprezo com que a região o persegue. Direi até que há neste destino proscrito e desgraçado no seio da prosperidade qualquer coisa de comovente e que, sem querer, me interessa.
- Pois quê, minha mãe! - volveu o rapaz - Um rendeiro que desalojou os seus senhores! Um servo que enriqueceu à custa dos despojos dos amos! Um miserável
- Miserável, é precisamente esse o termo, Raul replicou a senhora de Vaubert, interrompendo-o - Tão miserável, que me arrependo agora de ter juntado a minha voz às que o acusam. O céu tem tratado este infeliz com bastante rigor para que nos seja permitido mostrar por ele alguma indulgência. Mas, meu filho, deixemos esse homem, pois não é dele que se trata. Olha - acrescentou, arrastando-o para uma alameda que seguia à beira da água - a cada passo encontro alguma imagem dos meus belos anos; creio respirar a alma da senhora de La Seiglière em todos estes perfumes.
Assim conversando, caminhavam de-vagar, quando, ao voltar a alameda, se encontraram quási cara-a-cara com Stamply que, pelo seu lado, passeava solitariamente pelo parque. Raul fez um movimento para se afastar mas a baronesa reteve-o e adiantou-se para o homenzinho que, não sabendo a que atribuir a honra de semelhante encontro, se desfazia em cumprimentos.
- Perdôe-me - disse ela com graça - a liberdade que tomei de entrar assim na sua propriedade. Estas belas sombras acordam-me tão gratas recordações, que não pude resistir mais tempo ao desejo de visitá-las.
- Agradeço-lhe mais que lhe perdoo, minha senhora - respondeu o velho Stamply, que logo reconhecera a senhora de Vaubert - É a maior honra, a única, que tenho recebido neste local desde que o habito.
Depois, como se compreendesse que a honra não era feita a ele, fosse por discreção, fosse por humildade, o velho fez menção de retirar-se, em seguida a haver convidado os visitantes a continuarem o seu passeio a senhora de Vaubert, porém, interpelou-o com bondade
- Porque nos deixa tão de-pressa É querer darnos a entender que a nossa visita é indiscreta e lhe perturbamos a solidão. Se assim não é, fique; o senhor não é de mais entre nós.
Enleado com tantas delicadezas, Stamply não sabia como demonstrar a sua gratidão e apenas conseguira exprimir a sua estupefacção. Era não só a primeira vez que via nas suas propriedades visitas de tal importância, mas ainda que ouvia dirigirem-se-lhe algumas palavras delicadas e benévolas. E era a senhora de Vaubert, a baronesa de Vaubert, a maior fidalga da região, a amiga dos La Seiglière, que se dignava tratá-lo assim, a ele, Stamply, o velho mariola, como sabia que o tratavam naqueles lugares. Como não ficou ao sentir no seu braço o da baronesa e esta lhe disse com meigo sorriso e em tom quási familiar
- Vamos, senhor Stamply, seja meu cavalheiro e meu guia
Só as pobres almas réprobas, amarradas pela calúnia ao pelourinho da opinião, conhecem o preço de inesperado testemunho de simpatia e benevolência: por muito leve que seja, aferram-se a ela com arrebatamento e nela se apoiam com um sentimento de indescritível gratidão é a haste da erva que a pomba apresenta à formiga que se afoga. Ao sentir no seu o braço da baronesa de Vaubert, Stamply foi tomado de alegria quàse idêntica à que experimentou o leproso da cidade de Aosta quando sentiu a mão apertada por mão amiga o prazer seria completo, se o pobre diabo estivesse menos embaraçado com o trajo e o seu porte. Verdade seja que a sua pessoa contrastava estranhamente com a da senhora de Vaubert que, na sua ruina, humilhava a pobreza do vizinho pela elegância e pela graciosidade de maneiras.
- Se me tivesse acudido à idea de que tão grande honra me estava reservada, ter-me-ia vestido esta manhã um pouco melhor - observou ao olhar com tristeza para os sapatos de fivelas de cobre avermelhado, as meias de lã azul, o colete de fustão e a calça de veludo de algodão, quási no fio.
- Ora, adeus - exclamou a baronesa - Deixe-se de cerimónias. O senhor está em sua casa.
Estas palavras: - está em sua casa - chegaram ao coração de Stamply e acabaram por insuflar-lhe grande satisfação. Está em sua casa! Esta frase tão simples, que mal se atrevia a dirigir a si-mesmo, tanto a consciência que tinha do desprezo público o abalava cruelmente no sentimento da sua própria estima, aquela frase proferida pela senhora de Vaubert não era formal desmentido aos injuriosos comentários dos maus Não era, de facto, para esse homem como clara rehabilitação, como solene consagração dos seus direitos e da sua fortuna Entretanto, o jovem de Vaubert, cuja surpresa era, pelo menos, igual a de Stamply, conservava-se junto da mãe, frio, calado, altivo, não sabendo que concluir nem imaginar da cena, pelo menos, estranha, que se passava a seus olhos.
Sempre a caminhar, sempre a conversar, chegaram, por insensíveis desvios, em frente da fachada do castelo. Estava um dia abrazador; o céu conservava-se carregado de nuvens. Havia perto de uma hora que a senhora de Vaubert seguia por baixo das sombras quentes que nenhuma briza refrescava Sentou-se num dos degraus da escadaria e passou o lenço pela testa e pelo rosto, enquanto Stamply se mantinha defronte dela, imóvel e dando voltas ao largo chapéu de feltro que não cessara de ter na mão durante todo o passeio.
- A senhora baronesa chegaria ao cúmulo da bondade - disse com ar súplice - se se dignasse descansar alguns momentos em minha casa. Sentir-me-ia deveras comovido com tão grande favor, de que aliás me não reconheço digno.
- Mãe, - disse logo Raul, que estava com pressa de acabar com aquela comédia cujo fim e sentido não atingia - Minha mãe, está a preparar-se grande temporal; mal temos tempo, antes que ele estale, de voltar para casa.
- Pois bem, meu filho, deixemos passar o temporal - respondeu a senhora de Vaubert, levantando-se Visto que o nosso amável vizinho nos oferece tão cordial hospitalidade, vamos esperar sob os seus tetos que o céu permita que regressemos aos nossos.
A estas palavras, o rosto de Stamply tornou-se radiante, a boca abriu-se-lhe num sorriso de beatitude. Que triunfo, na verdade, não foi para ele receber a senhora de Vaubert e mostrar assim a toda essa gente, que não deixaria de informar a região, que era menos desconsiderado que os maus que se comprazem em dizê-lo e os tolos em acreditá-lo Leicester, ao receber a rainha Isabel no castelo de Kenilworth, não se sentiu mais feliz nem mais altivo do que nesse momento Stamply quando viu a baronesa subir os degraus da escadaria e penetrar os umbrais da sua porta. Raul acompanhou a mãe num movimento de mau humor que esta fingiu não notar e em que Stamply não reparou, absorvido como estava na sua alegria e felicidade. Quando, em seguida a ter introduzido na sala os seus hóspedes, o pobre diabo se safou para velar pelos cuidados da hospitalidade, Raul, uma vez a sós com a mãe, ia enfim pedir que lhe explicasse aquele enigma cuja chave baldadamente tentava encontrar havia uma hora; mas foi inibido de fazê-lo por outro sentimento de curiosidade que lhe fez fechar a boca e abrir muito os olhos.
Embora nada se tivesse mudado na disposição das casas, o interior do castelo de La Seiglière já não correspondia à magnificência do exterior. Tudo aí se ressentia da incúria e dos hábitos menos do que aristocráticos, burgueses quando muito, do novo proprietário. Acrescente-se que os vinte anos que haviam decorrido não tinham amarelecido a frescura das tapeçarias. Esses florões fanados, esses dourados enegrecidos, esse luxo sem mocidade, esses vestígios de um esplendor em que a vida já não se revelava, constituíam o interior menos alegre que imaginar se possa. Era belo e triste como as vastas salas do palácio de Versalhes, que se admiram ao atravessá-las, mas onde se sente que se morria de aborrecimento se houvesse obrigação de habitá-las. Aí só havia a sala onde acabavam de ser introduzidos a senhora de Vaubert e o filho, que conservou, por favor muito especial, a frescura e o brilho, a mocidade e a vida. Dir-se-ia que a senhora de La Seiglière o animava ainda com a sua graça e a sua beleza. Bernardo, enquanto vivera, tivera o gosto de orná-la e de embelecê-la com todos os tesouros que o marquês não pudera levar consigo para o exílio Stamply, após a partida e mesmo até depois da morte do filho, quisera, em religião pela sua memória, que este aposento fosse tratado com tanto disvêlo como no passado, como se Bernardo devesse voltar aí de um momento para o outro. Assim, tudo nessa quadra respirava o esplendor dos antigos senhores. Não havia senão damascos de Génova, tapeçarias em ponto de Beauvais, armários Boule inçados de objectos de arte, cristais brilhantes, grupos de biscuit, porcelanas de Saxe e de Sèvres, rendas de ouro ao correr do teto, pastorais de Watteau por cima das portas; havia aí com que fornecer vinte páginas de encantadoras descrições a alguns desses espíritos levianos que criaram a poesia do inventário e se mostram menos preocupados com o mobiliário de alma do que com o mobiliário das casas. Depois de haver observado tudo com atenta inveja, depois de haver reconhecido e tocado com o dedo tudo quanto vira, o que até então só tinha visto em sonhos enganosos, Raul aproximou-se da janela e pôs-se a contemplar com aspecto sombrio o arruinado castelo de Vaubert, que nunca lhe parecera tão pobre e tão desolado como naquela hora. Entretanto, a baronesa olhava para o filho com complacência, sorridente e serena como se tivesse na sua mão a varinha mágica que devia reerguer as torres do seu castelo e restituir a Raul a fortuna dos seus antepassados.
Stamply voltou daí a pouco, acompanhado por dois moços de lavoura que traziam, com ar embasbacado, bandejas carregadas de xaropes, de doces, de morangos e de vinhos de Espanha. A multidão de servos, que se compunha de cozinheira, jardineiro e guardadora de perus, comprimia-se na ante-câmara e tentava ver, pela porta semi-aberta, a senhora baronesa e o filho. Após a posse de Stamply, era a primeira vez que o castelo se encontrava em semelhante festa.
- Mas isto é de finíssimo gosto - disse a senhora de Vaubert com o mais amável sorriso - O senhor faz-nos uma recepção régia.
Stamply inclinou-se, perturbou-se, titubeou depois, ao notar que os dois moços de lavoura, em seguida a terem colocado as bandejas em cima do mármore da consola, se haviam sentado em cadeiras, repotreando-se à vontade, agarrou-os pelos ombros e pô-los fora da sala.
- Sabe - volveu a baronesa, que não pudera deixar de rir com aquela cena - sabe que merecia ser nomeado conservador geral dos castelos de França Este nada perdeu do seu antigo esplendor; creio até que lhe deu novo brilho. Por outro lado, consta que os domínios de La Seiglière redobraram de valor sob a sua administração. Por esse facto, o senhor é o mais rico proprietário da região.
- Ai, senhora baronesa - respondeu tristemente o ancião - Deus e os homens bem caro me fizeram pagar esta propriedade que me invejam Deus levou-me a mulher e o filho; os homens têm-se farto de me ultrajar. O velho Job era menos desgraçado na sua miséria do que eu sou no seio da riqueza. A senhora tem um filho consulte a sua alegria e compreenderá a minha dor.
- Compreendo-a, sim dizem que seu filho era um herói.
- Ah, minha senhora, era a minha vida - exclamou o velho, sufocando as lágrimas e os soluços.
- Os desígnios de Deus são impenetráveis-tornou a senhora de Vaubert com melancolia - Quanto ao juizo dos homens, creio que faria mal em se preocupar com ele. Fartaram-se de o ultrajar, disse Não sabia; o senhor é que o declarou. Qae importa a opinião dos tolos, se possue a estima das pessoas de bem.
A estas palavras, Stamply abanou a cabeça em ar de desgosto, em sina! de negativa.
- O senhor calunia-nos - prosseguiu a senhora de Vaubert com vivacidade - Imagina que eu estaria aqui se não o estimasse Afigura-se-me que sou interessada no assunto para não ser suspeita de parcialidade a seu favor. Amiga dos La Seiglière, durante quinze anos compartilhei do seu exílio como eles, vi os meus bens sequestrados e vendidos pela república. A república despojou-nos dispôs do que não lhe pertencia que lhe sirva de eterna vergonha Mas o senhor, comprador de boa-fé, que pagou de pronto, de que podem censurá-lo Quem o acusa A adversidade pôde azedar-nos não sufocou em nossos corações o sentimento da justiça. O nosso ódio nada tem que ver consigo. Quanta vez não ouvi o marquês e a senhora de La Seiglière felicitaren-se por que os seus domínios tinham caído nas mãos do mais probo dos seus rendeiros
- Será verdade, minha senhora - bradou Stamply num gesto de alegria e de surpresa - A senhora marquesa e o senhor marquês falaram de mim sem cólera E eu pensava que não era para eles senão um objecto de desprezo e de execração
- E porquê - replicou a baronesa, sorrindo Recordo-me de que, alguns dias antes de morrer, a pobre marquesa me dizia ainda...
- Morreu a senhora marquesa - exclamou Stamply com doloroso espanto.
- Dando à luz uma menina, formosa hoje como o foi a mãe. Ia eu dizendo - prosseguiu a senhora de Vaubert - que alguns dias antes de morrer, a marquesa me falava de si, da senhora Stamply a quem apreciava e estimava. Só se referia a ela com essa tocante bondade que o senhor de-certo não esqueceu. O marquês intrometeu-se na conversa e esteve a citar vários exemplos de dedicação e de fidelidade que muito honraram a sua família. "São almas nobres, acrescentou a senhora de La Seiglière. Na nossa infelicidade, quási é consolador pensar em que os nossos despojos foram parar a mãos tão puras e tão honradas".
- Minha mãe - disse Raul que, de pé junto do vão da janela, sofria visivelmente ao ouvir assim falar a senhora de Vaubert - O vento já varreu a tempestade o céu clareou; podemos, sem perigo, voltar para casa.
A baronesa levantou-se, e, virando-se para Stamply, disse:
- Agradeço a sua boa hospitalidade e felicito-me pelo acaso que me deu ensejo para o conhecer e faço sinceros votos para que as nossas relações não se limitem a este primeiro encontro. Depende de si que estes votos se realizem. Não se esqueça, lembre-se muita vez de que há na outra margem vizinhos que estimarão sempre recebê-lo.
Ao ouvir estas palavras pronunciadas com uma graça que fazia sobressair a expressão a um ponto impossível de descrever, a senhora de Vaubert, retirou-se de braço dado com o filho e acompanhada por Stamply que só deixou os hóspedes no portão do parque, depois de se haver curvado até ao chão.
- Enfim, minha mãe - exclamou o rapaz - vai explicar-me o que acabo de ver e de ouvir. Ontem, ainda, desprezava, odiava este homem; até hoje só me falou dele em termos desprezadores que estranha revolução se operou de repente nas suas ideas e nos seus sentimentos?
- Meu Deus Nada mais simples e julgava já ter-te dito, meu filho - replicou a baronesa sem se sensibilizar - Ao contrário desse cidadão de Atenas que condenou Aristides ao ostracismo porque estava cansado de ouvir-lhe as verdades, à força de ouvir dizer mal de Stamply, acabei por pensar bem. Se prevenções legítimas, se a minha velha amizade pelos La Seiglière, se a ignorância dos factos em que vivi durante quase vinte anos puderam arrastar-me a palavras inconsideradas, desde há muito que tinha saudades agora, tenho remorsos.
- Deus me livre, minha mãe - redarguiu Raul - de censurar os seus juízos e de criticar os seus actos mas não está incumbida pelos La Seiglière para absolver em nome deles o detentor dos seus domínios. Imagina que o marquês lhe perdoará, agora, o tê-lo tornado cúmplice da sua indulgência
- Ora, vamos, meu filho - bradou a baronesa com um gesto de impaciência - seria preciso vibrar o derradeiro golpe nesse coração já ferido tão cruelmente Devia entrar naquele teto hospitaleiro para me fazer eco das maldições do exílio Sou culpada, sou criminosa por haver tentado verter algumas gotas de bálsamo nas chagas daquele desgraçado Ah, como a mocidade é desapiedada Não sei se o marquês me perdoaria; mas estou certa de que do alto do céu a alma da marquesa me sorri e me aprova.
A visita de Stamply não se fez esperar. Apresentou-se, uma tarde, no castelo de Vaubert, no trajo mais elegante que pôde escolher no seu guarda-roupa de rendeiro rico. Raul estava ausente. Como não se encontrava incomodada com a presença do filho, a baronesa acolheu o vizinho com toda a espécie de consideração e de garridice; levou-o brandamente a falar do filho e pareceu interessar-se por tudo o que dizia. Calcule-se a satisfação desse pobre velho em encontrar um coração benévolo com o qual pudesse expandir livremente os seus desgostos Entretanto acabou por notar o modesto mobiliário da sala em que se encontrava; ao lembrar-se do que tinham sido noutros tempos e do que eram agora os Vaubert e os Stamply, foi tomado de um vago sentimento de pudor e de enleio que as almas delicadas facilmente compreenderão. Como que para aumentar o enleio da sua visita, a baronesa referiu-lhe as decepções do seu regresso e como, em vez do castelo e dos domínios, só encontrou um pombal e uns restos de terra, mas fê-lo com tanta graça e jovialidade, que Stamply, embora susceptível e desconfiado, não pôde vislumbrar qualquer sombra, e, pelo contrário, sentiu-se liberto de grande peso ao ver a maneira por que a senhora de Vaubert se adaptara à sua sorte.
- Fique para jantar - convidou ela - Meu filho foi passar o dia a casa de um amigo e só volta à noite far-me-á companhia. A solidão é triste na nossa idade. Que quer - acrescentou alegremente, reatando o quebrado fio da conversa - Todos têm o seu desgosto. Afiança-se que as revoluções têm o seu lado bom; nós pagámos para o acreditar. Não nos queixamos. Prouvesse a Deus apenas, conforme bastantes vezes repetia a minha pobre e bemquerida marquesa, prouvesse a Deus que todos os que se aproveitaram do nosso desastre fossem tão honrados como o senhor! Mais fácil se nos tornaria a resignação.
Jantar na companhia da baronesa de Vaubert não foi só para Stamply a máxima honra, foi também a maior alegria que gosou e como há muito não tinha. é principalmente na hora das refeições que o isolamento se faz sentir cruelmente. Era a hora do dia que Stamply mais receava. Quando lhe era preciso sentar-se à mesa defronte do lugar vago de Bernardo, a tristeza tornava-se-lhe maior e muita vez lhe acontecia, como ao rei de Thule, beber as lágrimas pela sua taça... O jantar não era sumptuoso; mas a senhora de Vaubert supriu o luxo do serviço pelo encanto do seu espírito. Cercou o conviva de mil pequenas atenções delicadas, lisongeou-o, amimou-o, acarinhou-o como uma criança, sem aparentar notar o seu desastramento e os disparates que fazia e dizia em matéria de etiqueta e de saber viver. Houve um instante em que o velho a mirou com um olhar cuja expressão não tentaremos definir. Lembrem-se do bom olhar tão meigo, tão terno, tão reconhecido que tem o cão de caça para o dono que o acaricia. O pobre homem pôde crer que já não estava só no mundo e que possuía uma família.
A datar desse dia, estabeleceram-se frequentes relações entre os dois castelos. A senhora de Vaubert, à força de rogos e de advertências, conseguiu que o filho tolerasse a presença de Stamply e o acolhesse, se não com benevolência, pelo menos sem demasiada soberba e altivez. Ao mesmo tempo estudou, para os lisongear, os gostos e manias do velho. Chegou até a querer conhecer as minúcias do seu interior e velou com solicitude toda maternal por que nada faltasse ao seu bem-estar. Stamply não resistiu a tanta sedução e deixou-se apanhar como mosca no mel. O seu coração de-pressa passou da gratidão ao afecto, do afecto ao hábito. A melhor parte dos dias comia em Vaubert, onde jantava três vezes por semana. De manhã demorava-se lá antes de visitar as terras; regressava à tarde para falar de Bernardo e dos negócios do dia, que vivamente preocupavam os espíritos. Nas noites calmas, a senhora de Vaubert apoiava-se-lhe no braço e iam ambos passear pelas margens do Clain. Imagine-se o inebriamento do velho Stamply de braço dado com uma baronesa, conversando familiarmente com ela e, ao longo das margens, onde tanta vez o haviam saudado à pedrada, tendo a sua parte nas barretadas que dirigiam à companheira Verdade seja que um reflexo de consideração que cercava a nobre senhora o atingia. Se os seus criados não o roubavam menos, respeitavam-no mais. Em suma: seria preciso encontrar novas palavras para a comparação já tão usada do oásis no deserto para descrever em poucas palavras o que foi na desolada vida desse homem a encantadora aparição da baronesa de Vaubert. O seu fim de outono recebeu dela como que um suave brilho. A saúde revigorou-se-lhe, o humor alegrou-se, o carácter azimado pelo desgosto, retomou a sua nativa bondade. Teve, como é costume dizerse, o seu verão de S. Martinho mas o maior benefício que tirou dessas relações foi recuperar a estima de sipróprio e de sentir-se rehabilitado a seus próprios olhos. Acabou-se-lhe a perturbada consciência forte de tão bela amizade, levantou a cabeça e sofreu alegremente a sua sorte.
Dentro em pouco, a essas salutares influências, a senhora de Vaubert encontrou outras, mais lentas e mais misteriosas, que Stamply suportou sem procurar dar por isso. Depois de se haver assenhoreado da vida dêsse homem, assenhoreou-se-lhe do espírito, que moldou a seu talante e talhou como um bloco de cera. Ela estudou-se e conseguiu apagar nele até ao último vestígio as ideas revolucionárias. Soube, à custa de subtilezas, reconciliá-lo com o passado que o oprimira e confundi-lo com os princípios que o haviam libertado. Reconduziu-o, sem ele mesmo dar por isso, ao ponto donde partira, e fê-lo retomar, sem que ele o suspeitasse, a carapaça do servo e vassalo sob a qual haviam vivido os seus antepassados. Ao mesmo tempo, o nome do marquês de La Seiglière e o nome da filha apareciam em todas as suas conversas, mas com tanta reserva, que Stamply nem sequer pensava em barafustar. Chegou, sem esforço, a enternecer-se pelo futuro da jovem Helena a quem a senhora de Vaubert não se cansava de apresentar-lhe como o vivo retrato da mãe. Era a mesma graça, o mesmo encanto e a mesma bondade. Stamply concordava em que a tal respeito a menina de La Seiglière devia ser, de facto, um anjo. Tivera algumas prevenções contra o marquês a senhora de Vaubert aplicou-se pacientemente a abafar esse velho fermento de 93. A adversidade - dizia ela - é uma rude escola na qual se aprende de-pressa. Gabava-se, por sua parte, de ter aprendido muito nela e muito esquecera. O senhor de La Seiglière, ao ouvi-la, tornara-se na emigração o mais perfeito modelo de todas as virtudes esse marquês tão altivo honrar-se-ia naquele momento em apertar a mão do seu antigo rendeiro e tratá-lo de amigo. Stamply respondia que, em tal situação, far-lhe-ia grande honra.
Meses decorreram assim em doce intimidade em que Raul não se intrometeu; o pobre rapaz andava triste e procurava o isolamento. Ora, enquanto se passavam sem bulha esses acontecimentos no vale de Clain, Waterloo acabara de fechar a grande epopeia do império. O tempo urgia. Em carta muito recente, o marquês de La Seiglière, convencido mais do que nunca de que a queda de Napoleão ia necessariamente arrastar a de Stamply, e de que o primeiro acto dos Bourbons, após o seu definitivo regresso a França, seria reintegrar todos os emigrados na propriedade dos seus domínios, recordava generosamente à sua amiga a promessa que tinham trocado de unir um dia Helena a Raul. A senhora de Vaubert julgou acertado apressar o desfecho da comédiasinha de cujo segredo era a única conhecedora.
A sua convivência com o rendeiro-castelão era, como pode calcular-se, grande motivo de pasmo para a região. A maledicência e a calúnia não tinham faltado à chamada. Todos se admiravam, se indignavam até ao ver que uma amiga dos La Seiglière se ligasse com o homem que os despojara. Corria o boato de que visava ao fim de se fazer desapossar por Stamply. A nobreza chamava traição e os plebeus escândalo. Fosse por ignorar o que se dizia, fosse porque não ligasse grande importância a esses mexericos, a baronesa prosseguira até então na sua idea, sem sequer virar a cabeça para ouvir os gritos da turba, quando, de repente, Stamply julgou notar sintomas de frieza nos testemunhos dessa amizade que tão feliz e tão orgulhoso o tornava. A princípio sentiu apenas surdo mal-estar que não se explicava como esses sintomas, porém, tomassem de dia para dia mais decisivo carácter, começou a assustar-se seriamente, É que, de facto, a senhora de Vaubert já não era a mesma, embora se esforçasse por dissimular a mudança que nela se operava, e não era a alma susceptível e terna do pobre Stamply que podia iludir-se com isso. Sofreu durante muito tempo em silêncio e o que sofreu não poderia descrever-se porque voltara para esse lado todas as suas faculdades afectivas, tinha posto nessa afeição todo o seu coração, toda a sua vida. Por muito tempo o respeito lhe fechou a boca mas uma tarde, ao encontrar a senhora de Vaubert mais distraída, mais reservada, mais constrangida que era costume, exprimiu a sua inquietação talvez de forma indiscreta, mas com certeza comovente. A senhora de Vaubert pareceu sensibilizada com a observação, mas manteve-se impenetrável.
- Que se passa, minha senhora Pressinto qualquer fatalidade grande.
A senhora de Vaubert mal respondeu; apenas, quando ele se preparava para se retirar, lhe tomou as mãos, que apertou nas suas com terna efusão, o que mais aumentou os terrores do pobre velho.
Na manhã seguinte, Stamply passeava pelo seu parque, ainda muito agitado com a cena da véspera, quando lhe entregaram uma carta da parte da senhora de Vaubert.
Menos lisongeado do que aterrado com tão rara honra, rasgou o sobrescrito com trémula mão e leu, por entre lágrimas, as linhas que seguem
" O senhor pressentia grande fatalidade os seus pressentimentos eram justos. Se deve sofrer como eu própria sofro, é uma grande fatalidade de facto. É preciso não nos tornarmos a ver é a sociedade que assim o quer. Se me atingissem só a mim, arrostaria com alegria as suas arremetidas; mas devo, em atenção a meu filho, impôr-me sacrifícios que nunca a opinião me arrancaria. compreende qual a necessidade que nos separa, e que seja consolação para si lembrar-se de que o seu coração não está mais profundamente ferido do que o da sua afeiçoada
Baronesa de VAUBERT."
Stamply a princípio só compreendeu uma coisa: é que acabava de perder a única felicidade que tinha na terra. Depois, ao reler a carta, sentiu cair-lhe em cima todas as maldições e todos os ultrages cujo peso lhe fora aliviado durante tanto tempo pela amizade da senhora de Vaubert. Viu-se mergulhado mais do que nunca no abismo da solidão julgou tornar a perder Bernardo. Era mais do que uma afeição que se quebrava para ele, era um hábito. Que faria doravante dos seus dias ociosos, das suas noites desocupadas Para onde dirigir o seu coração e os seus passos Nenhum alvo; por toda a parte, em sua volta, o abandono, o silêncio, as estepes desoladas. Cheio de desespero, tomou o caminho de Vaubert.
- Minha senhora - bradou ao entrar na sala em que a baronesa se encontrava sozinha - que lhe fiz Em que pude desmerecer-lhe Porque me haver estendido a mão, se devia afastá-la mais tarde Porque me chamou, se devia escorraçar-me sem dó Porque me tirou dos desgostos, se para eles me havia de arremessar de novo tão de-pressa Olhe para mim estou velho, tenho os meus dias contados. Não podia esperar mais algum tempo Pouco mais viverei.
A senhora de Vaubert esforçou-se a princípio por tranquilizá-lo, protestando o seu afecto e prodigalizando-lhe ternas palavras. Quando o viu mais calmo, tentou fazê-lo compreender os motivos imperiosos a que tivera de ceder. Pôs aí aparentemente extrema reserva e estranha delicadeza; mas, na realidade, cada uma dessas palavras feriu o coração de Stamply como se fora a lâmina de um punhal. Um resto de orgulho o manteve e o reanimou.
- Tem razão, minha senhora - disse, levantando-se - Eu é que sou um insensato. Afasto-me sem me lamentar e sem murmurar. Lembre-se apenas de que nunca ousaria solicitar-lhe a honra que me 53
concedeu lembre-se também de que nunca a enganei e de que, desde o nosso primeiro encontro, eu próprio lhe denunciei os ultrajes e as calúnias que toda a gente amontoava sobre a minha cabeça.
Proferidas estas palavras, encaminhou-se resolutamente para a porta, mas, exausto pelo esforço de dignidade que acabava de fazer, caiu numa cadeira e deixou que as lágrimas lhe caíssem pelas faces.
Ao notar tão sincera dor, a senhora de Vaubert ficou verdadeiramente comovida.
- Ouça, meu amigo - volveu-Pensa de-certo que sem esforço me resignei a quebrar as relações que causavam tanta alegria a si como a mim. Senti por si terna afeição; comprazia-me na idea de que era qualquer coisa de boa e de consoladora na sua existência. Por seu lado, ajudava-me a suportar o fardo de tão triste vida. A sua bondade encantava-me; a sua presença afastava-me o tédio. Imagina que resolvi voluntariamente rasgar o seu coração e o meu Por muito tempo hesitei por fim, julguei dever, por atenção a meu filho, dar satisfação a esta sociedade estúpida e má à qual não sacrificaria, se se tratasse só de mim, um único cabelo da sua cabeça. Tinha de fazê-lo, fi-lo. Entretanto acrescentou após alguns instantes de reflexão silenciosa, fixando de repente em Stanply um olhar que o fez estremecer - se houvesse algum meio de conciliar as exigências da minha posição com o cuidado das suas felicidades, se houvesse um meio de impor silêncio aos clamores da multidão e assegurar à sua velhice dias felizes, honrados e tranquilos...
- Fale, minha senhora, fale; que meio será esse
- tornou o ancião com a alegria do náufrago que julga ver branquejar uma vela no horizonte.
- Meu amigo - prosseguiu a senhora de Vaubert -reflecti maduramente sobre o seu futuro. Depois de o haver encarado sob todas as fases e sob todos os aspectos, sou obrigada a reconhecer que ele não é muito para invejar e que o senhor é, na verdade, o mais desafortunado dos mortais. Tinha razão; o velho Job na sua miséria era menos para lamentar do que o senhor no seio das suas prosperidades. Rico como é, não tem em que empregar as suas riquezas. Os homens levantaram entre si e eles uma barreira de opróbrio e de ignominia. O ultraje, a injúria, o desprezo público, eis o que há até agora de mais evidente nos seus rendimentos. Encontra-se por um fio na vida social; cortado esse fio, não terá uma alma onde possa albergar a sua. Vejo-lhe a velhice entregue a cuidados mercenários. Não terá até, na derradeira hora, a consolação de legar a qualquer ente amado essa fortuna que tão cara lhe tem saído; apenas lhe resta um herdeiro, o Estado, de todos os herdeiros o menos interessante e o mais ingrato. Agora, trata-se de se saber se lhe seria mais suave ter uma família que o estimasse como pai, envelhecer cercado de amor e ternura, não ouvir senão um concerto de bênçãos, de fixar os seus últimos olhares nos felizes que tivesse criado, a-fim-de deixar após a sua morte querida e venerada memória.
- Uma família... eu - exclamou o velho com voz desvairada - Eu, Stamply, o velho tratante, como me chamam, cercado de ternura e de amor!... Concertos de bênçãos!... Venerada e querida a minha memória Ai, minha senhora, onde está essa família Minha mulher e meu filho estão no céu e eu estou sozinho no mundo.
- Essa família, ingrato - replicou a senhora de Vaubert, sorrindo - já a tem quase na mão.
Se possuísse certa finura ou vaidade, Stamply poderia julgar que a senhora de Vaubert solicitava nesse momento o ensejo de um casamento desigual; mas o pobre homem não era fino nem vaidoso e, a-despeito-da intimidade das suas relações com a baronesa, nunca esquecera que distância separava ainda o campónio intruso da grande fidalga arruinada. Ficou, pois, de braços pendentes, indeciso, não sabendo como interpretar as últimas palavras que acabara de ouvir.
- Já alguma vez perguntou a si-próprio, meu amigo - prosseguiu a senhora de Vaubert com serenidade qual teria sido a glória de Bonaparte se, compreendendo a sua missão divina, esse oficial aventureiro, depois de ter esmagado as facções, tivesse restituído aos Bourbons o trono dos seus antepassados? Suponhamos por momentos que, em vez de pensar em fundar uma dinastia, esse corso, hoje miserável e proscrito, cheio de opróbrios, encarcerado e amordaçado como uma fera, tivesse posto a sua espada e a sua ambição ao serviço dos nossos legítimos príncipes: que destino não empalideceria ante o destino desse homem! O mundo, que o amaldiçoa, contemplá-lo ia com admiração; os reis, que lhe juraram a perda, disputar-se-iam a honra de lhe apertar a mão; e, realmente, imperador a partir do dia em que deixasse de o ser, a auréola que lhe cingisse a fronte humilharia o brilho do diadema.
- E o meu Bernardo ainda estaria vivo - acrescentou Stamply, suspirando.
- Meu amigo - redarguiu a senhora de Vaubert por que estranho esquecimento, por que fatal encantamento, não compreendemos, um e outro, que a Providência colocara na sua mão um destino quási semelhante e que dependia de si realizar tão lindo sonho
A estas palavras, Stamply começou a arrebitar as orelhas como lebre que ouve moverem-se em sua volta as hastes das estevas.
- Ah, pelo menos, o meu amigo está a tempo continuou a baronesa com entusiasmo - O que esse homem não soube fazer, o senhor pode consegui-lo na esfera menos elevada em que Deus o colocou. Consulte o coração, meta a mão na consciência: o coração é
puro, a consciência intacta. Os homens, contudo, julgam-no doutro modo; e ao senhor, por irrepreensível que seja, nunca aconteceu sentir-se inquieto e mal disposto quando se lembra de que o último rebento de uma família que encheu de benefícios a sua enlanguesce, deserdada, em terra estranha Pois bem: o senhor pode, com uma só palavra, legitimar os seus bens, envergonhar a inveja, desarmar a opinião, transformar em aplausos os ultrages com que o assediam, confirmar-se na sua própria estima e dar ao mundo um desses grandes exemplos que de longe em longe levantam a humanidade.
- O velho avarento não leva tão alto as suas ambições, minha senhora - respondeu Stamply, meneando a cabeça - Não tem a pretensão de dar exemplos ao mundo; não é a ele que compete a tarefa de levantar a humanidade; mais humildes cuidados o reclamam. De resto, minha senhora, não atinjo...
- Se não atinge, está tudo dito - replicou friamente a senhora de Vaubert.
Stamply atingira, compreendera bem de mais. Embora rendeiro de nascença e campónio de origem, não era, repetimos, nem fino, nem astuto, nem sequer perspicaz, mas tinha o coração desconfiado e nele a desconfiança poderia suprir a astúcia. Não só percebeu o fim a que a baronesa queria visar, mas ainda julgou entrever que era o segredo das amabilidades que recebera.
- Entendo-a, senhora baronesa - disse por fim com esse profundo sentimento de tristeza que experimentam as almas ternas quando, profundando a afeição que julgavam sincera e desinteressada, descobrem, sob a primeira camada, um abismo sem fundo de egoísmo Creio apenas que labora em erro. Não tenho que legitimar os meus bens só os devo ao meu trabalho. Quanto à menina de La Seiglière, é muito verdade que nunca me lembro sem enternecimento dessa criança que, como me disse, é o vivo retrato da mãe. Bastas vezes tentei socorrê-la; quis fazê-lo, mas não me atrevi.
- Fez muito bem. Ha infortúnios que não poderiam aceitar outro socorro que não fosse as simpatias que inspiram, nem outros benefícios além dos votos que se formulam para eles - respondeu a senhora de Vaubert com dignidade - Mas deixe-me dizer-lhe - acrescentou em tom mais afectuoso - que não me tinha compreendido. Eu só pensava na sua felicidade. Raciocinava não em virtude dos seus deveres, mas simplesmente tendo em vista o seu bem-estar. Que me escapou que o fira ou o ofenda O acaso fez com que o encontrasse o seu futuro interessa-me. Sinto que sou para si um consolo gosto muito de si por isso. Entretanto acontece que o mundo invejoso e cioso nos separa. O meu coração confrange-se o seu assusta-se. No entanto, afigurou-se-me, tolamente talvez, que chamando o marquês de La Seiglière e a filha para lhes oferecer que partilhassem de uma fortuna que o senhor não sabe em que empregar, assegurava aos seus velhos amos o sossego, a paz e a honra. A minha imaginação exaltou-se com isso. Via-o já cercado de afeições e de homenagens em vez de quebrar-se, a nossa intimidade aperta-se o mundo que o proscreveu, procura-o; as vozes que o amaldiçoam, bemdizem-no; Deus levou-lhe um filho adorado, restitue-lhe uma filha adorável. À vista deste quadro comovo-me, sensibilizo-me submeto-lhe esta idea. Admitamos que sonhei. E depois, seja feliz. Quero crer que exagerei a desgraça da sua situação. Refere-se à solidão a natureza é boa, o mundo não é para temer. É rico a fortuna, por fim de contas, é coisa encantadora desejo ardentemente que ela baste para substituir tudo o que lhe falta de afectos.
Dito isto, com tanta naturalidade, que o velho ficou um pouco abalado, a senhora de Vaubert levantou-se e, sob o pretexto de fazer uma visita nas vizinhanças, retirou-se, deixando Stamply sozinho e entregue às suas reflexões, que nada tinham de alegres.
Stamply saiu medíocremente encantado com uma proposta que não lhe agradava de forma alguma, ainda mesmo que fosse feita unicamente tendo em vista a sua felicidade. Era um excelente velho nunca dissemos que fosse um santo. Havia nele, contudo, uma paixão contra a qual deviam quebrar-se todas as insinuações da senhora de Vaubert. Não é raro encontrar, nessas naturezas brandas, moldáveis e maleáveis à mais pequena pressão, um ponto duro, resistente, infrangível, que esforço algum poderia quebrar: é o anel de aço na cadeia de ouro. Stamply era avarento a seu modo; tinha a paixão da propriedade. Gostava dela por si-própria, como certos espíritos gostam do poder. Todos os seus rendimentos se destinavam a compras de terras; foi assim que conseguiu, pouco-a-pouco, por sucessivas usurpações, reconstituir na sua integridade o antigo domínio de La Seiglière. Acabara até de lhe juntar muito recentemente umas três granjas alienadas havia mais de um século.
Haver levado a cabo essa obra só em homenagem ao marquês, de-certo seria uma coisa bela; Stamply, porém, não tinha, como êle-próprio confessara, a pretensão de dar aos seus contemporâneos tão estrondoso exemplo de abnegação, de sacrifício e de desinteresse. Pensou em que a senhora de Vaubert falava muito sem cerimónia a tal respeito e em que, antes de dar decisão ao caso, valia a pena estudá-lo com atenção. Voltou para casa, resignado à perda de uma amizade que tão cara se fazia pagar.
A princípio, a resignação foi-lhe fácil. A afeição ferida, o amor-próprio ofendido, o receio de ter caído num logro reanimaram nele um resto de calor, de força e de energia.
Todos os seus velhos instintos de independência e de igualdade despertaram e voltaram, por instantes, à superfície mas essa espécie de irritação de-pressa se extinguiu como fogo de palha. Contraíra na frequência da senhora de Vaubert o hábito das conversas familiares e das expansões íntimas. Reduzido bruscamente ao silêncio, o coração não tardou a sentir-se atingido de mortal aborrecimento. Perdeu em menos de dois dias essa paz íntima e essa doce serenidade que haurira nas suas relações. Privada do seu único arrimo, a consciência recomeçou a fraquejar-lhe. A vaidade colocou-se à parte para atormentar essa pobre alma. A sua expulsão de Vaubert já não era mistério. Corria o boato geral de que a senhora de Vaubert expulsara ignominiosamente o velho tratante, e o caso era discutido acaloradamente por todos. Stamply poderia ignorar os discursos idiotas que corriam a seu respeito; mas, uma tarde, ao atravessar o parque, ouviu os criados que, não o sabendo tão perto, se divertiam alegremente à custa da sua desventura. Os seus rendeiros, perante os quais, em tempos mais ditosos, se vangloriara de ilustre amizade, fingiam inquirir junto dele notícias da baronesa. Se ficava em casa, passeando de quarto em quarto com aspecto apoquentado, a criadagem vinha com ar beato ter com ele e perguntava-lhe, ora um, ora outro, porque é que o patrão, para se alegrar e distrair, não ia visitar a senhora baronesa. Se se decidia a sair para percorrer tristemente os campos, a criadagem dizia, à maneira de reflexão, mas em voz alta bastante para que Ele ouvisse
- Olha, o nosso patrão vai passar algumas horas com a senhora baronesa!
Ainda que fosse de índole sofredora, mais de uma vez esteve tentado a dar-lhes uma coça mestra.
As palavras senhora baronesa soavam-lhe constantemente nos ouvidos e no coração. A vista do castelo de Vaubert mergulhava-o em infindáveis melancolias; permanecia por vezes longas horas, calado, imóvel, a contemplar o perdido e saudoso Éden. Até o próprio amor da propriedade, a que
já aludimos, não lhe bastava a senhora de Vaubert desenvolvera nele outros instintos, outros apetites, outras necessidades não menos imperiosas. De resto, esse amor, o único que lhe restava na terra, estava envenenado na sua origem. Recordava-se, aterrado, do miserável fim da excelente senhora de Stamply, dos seus escrúpulos, aos seus terrores, dos seus remorsos, das últimas palavras que proferira antes de morrer. Pensava nisso de dia; sonhava-o de noite; exaltada pelo abandono, a imaginação dava-lhe um sono povoado de lúgubres visões. Ou era o espectro irritado da mulher, ou a sombra chorosa da senhora de La Seiglière.
Após umas semanas de existência assim torturada, voltou-se, sem o cuidar, para a idea que a baronesa lhe indicara como porto de salvamento. A princípio foi apenas um ponto luminoso, cintilante na bruma, em longínquo horizonte. Insensivelmente, esse ponto alastrou, aproximou-se e brilhou como se fora farol. A força de examiná-lo em todos os sentidos, Stamply acabou por encará-lo pelo lado poético. Era uma alma desconfiada, mas um espírito simples, honesto e crédulo. Perguntou de si-para-si se a senhora de Vaubert não lhe revelara, com efeito, o segredo da felicidade. Admitindo que ela só tivesse em vista os interesses do marquês de La Seigliére e da filha, foi obrigado a concordar que, também para seu proveito ela nada poderia imaginar de melhor.
A perspectiva das felicidades que ela lhe entremostrara desligou-se pouco a pouco das nuvens que a obscureciam e apareceu-lhe sob encantadora luz. Imaginou o seu lar embelecido com a presença de jovem e meiga criatura; viu-se introduzido, pelo reconhecimento do marquês, na sociedade que o repelira ouviu um concerto de louvores elevar-se sobre os seus passos; julgou ver a senhora de La Seiglière, a bondosa senhora Stamply e Bernardito sorrirem-lhe do céu. Contudo, detinha-o ainda a desconfiança no pendor dos seus bons sentimentos. A que título, de resto, o marquês e a filha entrariam nesse castelo e nesses domínios Resignar uma fortuna tão laboriosamente adquirida não seria confessar que fora usurpada Em vez de confundir a inveja, não iria fornecer-lhe novas armas Antes de tomar qualquer resolução, Stamply decidiu visitar a senhora de Vaubert para a consultar; assim, porém, que arriscou algumas palavras sobre o assunto que lá o levava, ela interrompeu-o logo, dizendo:
- Desejo não falar mais no caso. Ha coisas que não se pesam nem se discutem. Repito-lhe que só busquei, só quis a sua felicidade. No meu pensamento não se tratava do marquês nem da filha: apenas se tratava de si, a tal ponto, que, se a minha idea lhe sorriu e o marquês a isso se resignasse, o bemfeitor, no meu entender não seria o senhor, mas ele. Arrecade a sua fortuna não somos ciosos dela. Diz-se que a pobreza é amarga para aqueles que conheceram a riqueza. Enganam-se o contrário é que deve dizer-se. Conhecemos a fortuna e a pobreza é-nos querida,
Depois, em seguida a informar-se da saúde do seu velho amigo e de que modo levava a existência, a senhora de Vaubert deu-lhe delicadamente a entender que devia retirar-se, o que ele fez, muito maravilhado com a elevação dos sentimentos que acabava de ouvir expressar. Acusou-se por ter caluniado intenções tão desinteressadas, e, embora achasse um pouco estranho que neste caso o marquês passasse a bemfeitor e ele a protegido, foi, o mais tardar, na manhã seguinte, entregar-se, de pés e mãos ligados, à discrição da senhora de Vaubert, que não pareceu alegre nem surpreendida. Demonstrou até viva repugnância em meter-se em tal assunto, no receio que tinha, dizia ela, de ofender as susceptibilidades dos seus amigos. Stamply mostrou-se tanto mais ardoroso, quanto menos entusiasmo a senhora de Vaubert aparentava e, se pudesse ser divertido ver o coração vencido pelo espírito, a bonomia explorada pela astúcia, teria sido de-certo agradável cena ver o bondoso homem suplicar à baronesa, que se defendia, a interceder por ele, a-fim-de que o marquês se dignasse consentir em voltar à posse de um milhão de propriedades.
- Que se estime um pouco o velho Stamply- dizia ele - que ele veja, no final dos seus dias, alegres semblantes sorrirem-lhe que mão amiga lhe cerre os olhos, que lhe seja concedida uma lágrima pela sua morte na terra e no céu, Stamply ficaria contente.
É de calcular que a senhora de Vaubert acabasse por ceder a tão sensibilizadora instância o que não poderá imaginar-se foi a alegria que experimentou a velha criança depois de haver preparado a sua ruina. Apossou-se das mãos da baronesa, que levou ao coração num sentimento de inefável gratidão.
- Porque foi a senhora - prosseguiu, com voz comovida e lágrimas nos olhos - foi a senhora que me mostrou o caminho do céu.
A senhora de Vaubert sentiu que tinha sido crime enganar tão perfeita alma; desta vez, porém, como sempre, depressa fez calar os murmúrios da sua consciência dizendo consigo que o futuro de Stamply se encontrava interessado no êxito desta empresa, que não teria procedido por outra forma para garantir a felicidade desse homem e que em todas as coisas os fins desculpam os meios. Já não se tratava senão de desvanecer o orgulho do marquês, que sabia fidalgo de mais para se baixar alguma vez a receber fosse o que fosse do seu antigo rendeiro. A baronesa escreveu estas linhas:
Torturado de remorsos, sem filhos, sem amigos, sem família, João Stamply aguarda apenas o seu regresso para lhe restituir todos os bens. Volte, pois. Como prémio da sua tardia probidade, esse desgraçado pede apenas que o estimemos um pouco; estimá-lo-emos muito. Lembre-se da frase do bearnês Paris vale bem uma missa.
Decorrido um mês, efectuava-se o regresso do senhor de La Seiglière, simplesmente, sem fausto, nem alarido. Stamply recebeu-o à porta do parque e apresentou-lhe em primeiro lugar, à maneira de chaves em salva de prata, um termo de doação redigido em frases tocantes e no qual o doador, num sentimento de estranha delicadeza, se humilhava ante o donatário.
- O senhor marquês está na sua casa - disse.
O discurso foi pequeno; o marquês achou-o bem floreado. Meteu na algibeira o documento que o reintegrava na posse de todos os seus domínios, abraçou Stamply, tomou-lhe o braço e, seguido pela filha, que caminhava no meio da senhora de Vaubert e de Raul, reentrou no seu castelo, tão moço de espírito como de lá saíra, com o mesmo à-vontade de quem voltasse de um passeio.
E agora, para nos reportarmos às hipóteses da senhora de Vaubert, se Napoleão Bonaparte, reduzida a grandeza do seu papel às mesquinhas proporções de burguesa probidade, acedesse em ser apenas o procurador da família dos Bourbons, se depois de haver levantado, com a ponta da espada, a coroa da França, em vez de a cingir na sua fronte, a cingisse na fronte dos descendentes de S. Luiz, é de crer que a esta hora mais um capítulo enriquecesse o grande livro das régias ingratidões.
Não pretendemos ultrajar nem a realeza nem pessoa alguma, mas o defeito é inato a essa ingrata espécie que se chama o género humano.
Sem virmos procurar os nossos exemplos a tão elevadas alturas, deixemo-nos ficar pelas margens do Clain para ajuizarmos de como são falsas certas fagueiras promessas.
A começo tudo correu bem, os primeiros meses realizaram largamente todas as predições de felicidade que a senhora de Vaubert prodigalizara a Stamply. Podemos até afirmar que a realidade foi além das espectativas do velho. Em 25 de Agosto, por ocasião do aniversário régio, o senhor de la Seíglière reuniu alguns fidalgos da cidade e dos arredores, e Stamply estava sentado entre o marquês e a filha; à sobremesa, a sua saúde tinha sido festejada com entusiasmo logo em se- guida à delLuiz, o desejado. Jantava assim todos os dias à mesa do senhor de La Seiglière, e bastas vezes na companhia da senhora de Vaubert e do seu filho" porque, do mesmo modo que no exílio, as duas casas formaram apenas uma, para falar com propriedade. Pouca gente se recebia: os serões passavam-se em família. Stamply fazia parte de todas as reuniões, honrado como um patriarca e amimado como uma criança, i O marquês exigira que ocupasse o mais belo aposento do palácio. Os criados antigos, que mal o serviram e não o respeitaram melhor, viram-se substituídos por servos diligentes e submissos que velavam pelas suas necessidades e lhe adivinhavam os mais pequenos desejos. Rodeavam-no das máximas atenções tão suaves à velhice; aconselhavam-se com ele em todas as coisas nada se fazia sem ser consultado. Acrescente-se a tantas seduções a presença da menina de La Seiglière pense-se que não se ouvia, em dez léguas em redor, mais do que um hino em honra do mais honesto dos rendeiros.
Entretanto, alguns meses apenas haviam decorrido já a vida do castelo mudara de feição. Tão vivo e ágil, como se tivera apenas vinte anos, o marquês não era homem que se contentasse por muito tempo com as alegrias do lar e com as delícias da intimidade. Recuperara a fortuna como um fato abandonado na véspera e lembrava se tanto do passado como de um aguaceiro. Esperto, jovial, bem disposto, conservara-se no exílio como as prímulas debaixo da neve. Os vinte e cinco anos que acabavam de passar-se nem um dia o haviam envelhecido. Achara o triplo segredo que faz com que se morra novo aos cem anos o egoísmo, a leviandade do coração, a frivolidade do espírito, e, contudo, conservando-se o mais amável e o mais encantador dos marqueses. Ninguém acreditaria, ao cabo de alguns meses, que uma revolução por ali tivesse passado. Restauraram-se os tetos e os lambris, renovaram-se os móveis e os panejamentos, restabeleceram-se as armas e os escudos, lavaram-se, esfregaram-se, apagaram-se em toda a parte os vestígios da invasão dos bárbaros. Para nos servirmos das caritativas expressões da senhora de Vaubert, que já não fazia cerimónia em zombar, tinham limpo os estábulos de Augias. Depois só houve festas e diversões, recepções e caçadas reais. De manhã à noite, muitas vezes da noite ao dia, as carruagens brazonadas apertavam-se no pátio e nas avenidas. O castelo de La Seiglière tornara-se o salão da nobreza da região. Um exército de lacaios e de cozinheiros invadira as ante-câmaras e as cozinhas. Vinte cavalos escavavam nas cavalariças os canis regorgitavam de cães os monteiros tocaram trompa todo o dia. Stamply contara com um lar mais sossegado, com costumes mais simples, com gostos mais modestos e ainda não chegara ao auge das suas decepções.
No primeiro inebriamento do regresso, tudo tinham achado encantador nele o trajo, os gestos, a linguagem, até os seus coletes de fustão. O marquês e a senhora de Vaubert tratavam-no em voz alta de velho amigo, a cada passo. Não se cansavam de ouvi-lo, extasiando-se ante tudo o que dizia. Era o espírito gaulês na sua flor, um coração bíblico, uma alma patriarcal. Quando a vida do castelo tomou brilhante e regular curso, começou-se a notar que ele fazia sombra e manchava o quadro. Não quiseram logo dar-se por achados durante muito tempo ainda só foi para o marquês e para a senhora de Vaubert o bom, o querido, o excelente senhor Stamply: simplesmente, de quando em quando, faziam restrições. De desvio em desvio, de rodeio em rodeio, foram obrigados a declararem-se mutuamente que aquele espírito gaulês era um rústico e aquele coração bíblico um boieiro. Suportavam-lhe as familiaridades depois de as haverem encorajado o que passava, alguns meses antes, pela bonomia de um patriarca só foi, de então por diante, a grosseria de um labrego. Enquanto se limitaram ao círculo da família, pôde haver resignação; no meio do luxo e dos esplendores da vida aristocrática, forçoso foi reconhecer que o excelente homem já não era aceitável. O que o marquês e a baronesa não confessaram um ao outro, e ambos tiveram o cuidado de guardar para si próprios, é que lhe deviam demasiado para o estimar. Semelhante a essa flor alpestre que cresce nos cimos e morre nas baixas regiões, a gratidão só floresce nas almas elevadas. É também parecida com esse licor do Oriente que só se guarda em recipientes de ouro: perfuma as grandes almas e torna-se áspera nas pequenas. A presença de Stamply lembrava ao marquês obrigações importunas; a baronesa queria lhe intimamente mal pelo papel que representara junto dele. Ocuparam-se, pois, em o afastar com todos os respeitos e solicitudes usados pelas pessoas de tom. Sob o pretexto de que o aposento que ocupava estava exposto às nortadas, relegaram-no para o corpo mais isolado do castelo. Certo dia, tendo observado, com afectuosa solicitude, que as festas ruidosas e as refeições sumptuosas não se coadunavam nem com o seu gosto nem com a sua idade, que os seus hábitos e o seu estômago podiam ressentir-se disso, o marquês suplicou-lhe que não se contrafizesse, e decidiu que, de futuro, o serviriam à parte. Debalde Stamply se defendeu, protestando que se acomodava de boa vontade à vida do senhor marquês: este a nada atendeu e declarou que jamais consentiria em que o seu velho amigo se incomodasse para ser agradável aos convidados,
- Está em sua casa - disse - Faça como em sua casa, viva à sua vontade. Na sua idade já não se muda.
E de tal maneira se houve, que Stamply acabou por tomar, como um cartuxo, as refeições no seu quarto. E o resto, em conformidade. Chegaram, por insensíveis transições, a tratá-lo com exagerada delicadeza; o marquês conservou-o a distância à força de atenções; a senhora de Vaubert obrigou-o a fugir sob o cruzado fogo dos grandes ares e das altivas maneiras. Logo que ele aparecia de sapatos ferrados, meias de lã azul e a calça de flanela, fingiam colocar a conversação num tom palaciano: não sabendo como portar-se, Stamply retirava-se confuso, humilhado e de orelha murcha. Assim, a barreira de lama que durante tanto tempo o separara do mundo, transformava-se suavemente num bloco de cristal, barreira transparente, mas tão intransponível como a primeira; simplesmente, o bondoso homem tinha a satisfação de ver através dela que se iam em foguetes de todas as cores os rendimentos desse belo domínio que reconstituira à custa de vinte-cinco anos de trabalho e de privações. À tarde, depois da sua solitária refeição, ao passar por baixo das janelas do castelo, ouvia os risos alegres das conversas misturadas com o trincolejar dos cristais e das porcelanas. De dia, vagueando, triste e só, por essas terras que tanto amara e que já não o conheciam como dono, via, ao longe os cavalos, as equipagens, as matilhas e os monteiros baterem a planície e meterem-se pelas florestas ao toque das trompas. A noite, interrompido muitas vezes no sono, soerguia-se na cama para ouvir o bulício do baile era ele quem pagava aos violinistas. Quanto ao mais, nada lhe faltava. A mesa era-lhe abundantemente servida. Uma vez por semana, o marquês mandava saber notícias dele e quando a senhora de Vaubert o encontrava no caminho, saudava-o com amistoso e encantador gesto.
Ao cabo de um ano importavam-se tanto com Stamply como se ele não existisse ou se nunca tivesse existido. A bulha que por instantes se fizera em volta dele, haviam sucedido o silêncio e o esquecimento. Nem sequer se lembravam já de que ele estivera na posse desse castelo, desse parque e dessas terras. Depois de o haver acolhido, acarinhado, festejado como cão fiel, a sociedade acabara por tratá-lo como cão vadio. O desgraçado nem já gozava dessa consideração que fora. o sonho de toda a sua vida. Julgava-se ou fingia julgar-se que chamando os La Seiglière só o fizera cedendo aos gritos da opinião. Metiam o acto da sua generosidade em conta de forçada probidade, demasiado tardia para que fosse feita por seu livre arbítrio. Enfim, os seus antigos rendeiros, muito altivos por voltarem a sê-lo de um grande fidalgo, vingavam-se, com o mais estrondoso desprezo, por terem vivido sob o governo fraternal de um camponês como eles. Tudo isso se fizera gradualmente, sem dilaceramentos, sem encontrões, quási sem cálculo curso natural das coisas neste mundo. O próprio Stamply levou muito tempo a compreender o que se passava à volta de si. Quando, enfim, os olhos se lhe abriram e viu claro no seu futuro, não se queixou um anjo velava por ele, o contemplava a sorrir.
A menina de La Seiglière herdara da mãe, que não conhecera, e da pobreza em cujo seio crescera, um carácter silencioso, um espírito reflectido, um coração grave. Por contraste bastante vulgar nas famílias, desenvolvera-se em sentido contrário dos exemplos que recebera, sem nada conservar do pai, a quem de resto amava com paixão e que do mesmo modo lhe correspondia simplesmente, o amor de Helena tinha qualquer coisa de protector e de adorãvelmente paternal, enquanto o do marquês se ressentia de todas as puerilidades da mocidade. Educada no isolamento, a menina de La Seiglière não era mais do que uma criança grave. A mãe transmitira-lhe, com o puro sangue dos avós, essa régia beleza que se compraz, como os lírios e os cisnes, na sombra dos castelos, no Sundo dos solitários parques. Alta, magra, elegante, um pouco franzina, tinha a graça ondeante e flexível de uma haste em flor balouçada pelo vento. O cabelo era louro como o ouro dos trigais e, por estranho privilégio, os olhos brilhavam-lhe, sob as pestanas escuras, como duas estrelas de ébano, no alabastro do seu semblante e cuja expressão realçava, sem lhe alterar, a angélica placidez. De andar lento, olhar triste e meigo, calma, serena e semi-risonha, um poeta tê-la-ia querido para modelo de um desses formosos anjos sonhadores encarregados de colher e de levar para o céu os suspiros do mundo, ou então como uma dessas brancas aparições que surgem à beira dos lagos, na argêntea bruma das noites. Nada conhecendo da vida e do mundo senão o que o pai lhe ensinara, assistira sem júbilo à brusca mudança que se lhe operara na existência. Para ela, a pátria era o recanto da terra em que nascera, em que a mãe morrera. A França, que só conhecia pelas desgraças da sua família e pelas narrativas que dela se faziam no exílio, nunca a atraíra, a opulência também não lhe sorria. Longe de haurir, como Raul, nas conversas do marquês, o orgulho e o espírito da sua raça, dele cedo colhera o amor pela humilde condição em que o destino a fizera nascer. Nunca os seus sonhos ou ambições tinham ido além do pequeno jardim que ela-própria cuidava; nunca o marquês de La Seiglière lograra despertar nela um desejo nem sequer um pesar. Sorria com meiguice a tudo o que ele lhe dizia; se chegava a falar da fortuna perdida com demasiada amargura, ela arrastava-o para o jardim, mostrava-lhe as flores dos seus alegretes e perguntava se em França eram mais viçosas ou mais belas. Assim, no dia da partida, devorara as lágrimas; o caso é que, nesse dia, o exílio começara para ela. Ao pisar a terra da França, essa terra atormentada que mal entrevira de longe como revolto mar, Helena não pudera reprimir um sentimento de tristeza e de terror; ao entrar naquele teto hereditário, sentira o coração confranger-se-lhe e os olhos humedecerem-se de lágrimas, que não eram de felicidade. Contudo, dissipadas as primeiras impressões, a menina de La Seiglière aclimara-se sem esforço à sua nova situação. Há naturezas de escol que a fortuna nunca surpreende e que, suportando com a mesma facilidade os mais contrários destinos, se encontram sempre, e sem dar por isso ao nível das suas prosperidades. Conservando sempre a graça e a simplicidade nativas, essa jovem e formosa figura acomodava-se tão naturalmente ao luxo dos seus antepassados, parecia tão pouco admirada de aí se ver, que ninguém, ao observá-la, poderia supor que não tivesse nascido nesse berço, nem que crescesse noutra atmosfera. Continuou a gostar de Raul, como no passado, com fraternal ternura, sem suspeitar de que existisse sentimento mais profundo ou mais alevantado do que o que experimentava por esse rapaz. Nada sabia do amor; os poucos livros que lera eram menos feitos para despertar do que para adormecer juvenil imaginação. As personagens que as narrativas do pai lhe haviam representado de todas as épocas como tipos de distinção, de graça e de elegância, todas mais ou menos se pareciam com o senhor de Vaubert que, perfeitamente nulo, embora distinto, se encontrava assim nos moldes das ideas que Helena podia formar acerca de um esposo. Ambos tinham brincado sob o mesmo umbral e crescido debaixo do mesmo teto. A senhora de La Seiglière embalara a infância de Raul a senhora de Vaubert servira de mãe a Helena. Os dois eram bonitos na flôr dos anos. A perspectiva de um dia se unirem nada tinha que pudesse assustalos muito. Estimavam-se com essa afeição calma bastante frequente entre noivos prometidos antes do tempo e antes do amor. O casamento é um fim a que é bom chegar, mas que é preciso evitar ver-se de muito longe, sob pena de suprimir todas as alegrias do caminho. Alheia a todos os actos como a todos os interesses da vida positiva; de coração recto, mas tendo acerca de todas as coisas apenas noções confusas, falsas ou incompletas mantida, desde a mais tenra idade, na idea de que a família fora despojada por um dos seus rendeiros, Helena acreditava ingenuamente que Stamply não fizera mais do que restituir os bens dos seus senhores mas, embora pensasse nada dever à sua generosidade, começara, logo nos primeiros dias, a sorrir para esse meigo velho, que não se cansava de a contemplar com certo sentimento de respeito e de adoração, como se compreendesse já que, de todas as afeições que o rodeavam, a da formosa menina era a única verdadeira, ingénua e sincera.
De facto, a menina de La Seiglière realizou, sem que o suspeitasse, todas as promessas da senhora de Vaubert liquidou, sem saber, todas as dívidas do marquês. À medida que se afastavam de Stamply, Helena cada vez se sentia mais atraída para ele. Isolada também no meio do bulício e da multidão, misteriosas simpatias bem cedo se deviam estabelecer entre essas duas almas; uma que o mundo repelia a outra que repelia o mundo. Essa amável menina tornou-se, para assim dizer, a Antigona desse novo GEdipo, a Cordélia desse novo rei Lear.
Alegrou-lhe os aborrecimentos e povoou-lhe o isolamento. Foi como que uma pérola no fundo da sua amarga taça, como que uma estrela na sua noite sombria, como que uma flor nos seus ramos emurchecidos. O que há de mais estranho é que, tendo cedido a um sentimento de adorável compaixão, acabou por encontrar junto desse velho companheiro mais alimento para o seu coração e para o seu espírito do que encontrava na sociedade sonora e oca, brilhante e frívola, entre a qual lhe decorriam os dias. Coisa estranha foi, com efeito, esse pobre velho que imprimiu o primeiro movimento e deu o primeiro rebate a essa juvenil inteligência. De manhã, quando ainda tudo dormia no castelo, a noite, quando os candelabros se acendiam para as festas. Helena escapulia-se com ele, quer pelo parque, quer pelos campos. Nas longas conversas que entre ambos havia, Stamply contava as grandes coisas que a república e o império tinham feito: Helena escutava com pasmo e curiosidade essas ingénuas narrativas, que em nada se assemelhavam às que ouvira até então. Por vezes, Stamply dava-lhe a ler as cartas de Bernardo, único tesouro que conservara. Ao lê-las, Helena exaltava-se como potro que acorda ao vibrar de clarins. Outras vezes, falava-lhe da mãe, dessa linda e bem-amada marquesa de quem conservara viva lembrança. A linguagem de Stamply era simples; Helena sentia lágrimas nos olhos ao ouvi-lo. Depois falava de Bernardo, porque era principalmente o querido morto o assunto das suas conversas. Contava-lhe a infância turbulenta, a mocidade impetuosa e o heróico fim. As almas de pomba dão-se bem com os corações de leão; Helena comprazia-se com esses discursos; ela-própria não falava desse moço senão como de um amigo que já não existisse. Assim conversavam um com o outro; e o que demonstra quanto o velho Stamply era bom e encantador carácter é que, nas frequentes conversas, nunca se permitiu um queixume contra os ingratos que o haviam posto à margem, e Helena pôde continuar a acreditar que, despojando-se, não fizera mais do que cumprir rigoroso acto de consciência e de probidade.
Talvez lhe fosse agradável sentir-se amado por simesmo. Sabia que a menina de La Seiglière estava destinada a Raul; não ignorava que o desejo dos pais os tornara noivos um do outro havia já muito tempo; tinha nas suas mãos o fio que dirigira a senhora de Vaubert, enfim: compreendia e sabia tudo. Se se lamentava intimamente, nunca o deu a perceber à sua jovem amiga; ocultou-lhe, como vergonhosa chaga, o espectáculo confrangedor das ingratidões humanas. Quando Helena se afligia com a vida retirada que ele levava, Stamply respondia-lhe com melancolia:
- Que quer O mundo não foi feito para Stamply, nem Stamply para o mundo! E visto que o senhor marquês tem a bondade de me deixar viver no meu cantinho, aproveito. Sempre gostei do silêncio e da solidão; o senhor marquês bem compreendeu que a gente não se modifica na minha idade... Amável menina-acrescentava-a sua presença e os seus meigos sorrisos são as minhas páscoas! Nunca o velho Stamply as sonhara tão belas
Nos últimos tempos quis visitar pela derradeira vez a granja em que lhe morrera o pai, em que lhe nascera o filho, em que, ao partir, deixara a felicidade. Quebrantado já pela doença, havia muito tempo curvado ao peso do desgosto, para lá se dirigiu sozinho, arrimado ao seu bordão de pilriteiro,
A granja estava deserta; toda a gente trabalhava nos campos. Depois de haver entrado na casa rústica, aonde nada mudara; depois de haver reconhecido a arca de carvalho, a cama em forma de armário com as cortinas e cortinados de sarja verde, a imagem da Virgem ante a qual vira, durante dez anos, a mulher orar de noite e de manhã; depois de haver respirado o bom aroma do leite nas escudelas e do pão fresco empilhado na prateleira, foi sentar-se no pátio, num banco de pedra. Estava uma tépida noite de verão. Ouviam-se ao longe a canção das ceifeiras, os ladridos dos cães, o mugir das vacas. Toda a atmosfera estava saturada do cheiro a fenos. Defronte de Stamply, sobre o musgo do telhado, saltitava um bando de pombos arrulhadores.
- Minha pobre mulher tinha razão - exclamou o velho, fugindo desse quadro de perdidas alegrias - Foi um péssimo dia aquele em que abandonámos a nossa granja!
Menos carregado de anos do que de tristezas, morreu dois anos depois do regresso do marquês, sem outra assistência além da da menina de La Seiglière que lhe cerrou os olhos. Ao sentir-se expirar, voltou-se para ela e entregou-lhe as cartas do filho, dizendo:
- Tome, é tudo quanto me deixaram, tudo o que me resta para dar.
Apagou-se da vida sem pena, muito satisfeito por ir encontrar-se com a mulher e com Bernardito.
A sua morte só deixou vacuidade no quarto e no coração de Helena. No castelo falaram dele durante três dias.
- O pobre Stamply - dizia o marquês - digam o que disserem, era um excelente homem!
- Muito aborrecido - suspirava a senhora de Vaubert.
- Muito malcriado! - acrescentava Raul.
- Bela alma - murmurava Helena.
E nisso se resumira o seu elogio fúnebre. Só Helena pagou o tributo de lágrimas que haviam prometido sobre a sua campa. Entretanto, é conveniente acrescentar que o fim do miserável velho sublevou na região a indignação de um partido que principiava a despontar no horizonte político, como então se dizia elegantemente.
Hipócrita, invejoso, sobretudo menos liberal do que o seu nome queria anunciar, esse partido, que se compunha, na província, de advogados palreiros e medíocres, de burgueses importantes e fátuos, fez um herói de Stamply morto, depois de em vida o terem ultrajado. Não era porque se lhe ligasse a mais pequena importância; era porque se detestava a nobreza. Puseram-no num pedestal; concederam-lhe as palmas do martírio, sem saber até que ponto o pobre homem as merecera. Em suma: acusou-se em voz alta a senhora de Vaubert de captação e o marquês de ingratidão; e foi assim que, uma vez, por acaso, essas mesquinhas paixões e esses odiosinhos encontraram no caminho a verdade, sem a procurarem.
No entanto, chegava-se à época marcada para o consórcio de Helena com Raul. Essa data, ainda afastada de mais para a vontade do senhor de Vaubert, não a desejava nem a temia a menina de La Seiglière; via-a avizinhar-se sem impaciência, mas também sem terror. Fosse como fosse, o que pode garantir-se é que sentia menos tristeza do que alegria. As suas conversas com Stamply, a leitura das cartas de Bernardo, que mais de uma vez se surpreendera a reler após a morte do velho companheiro, tinham-na levado a vagas comparações que não eram precisamente muito vantajosas para o nosso moço barão; tudo isso, porém, era deveras confuso para o seu coração e para o seu espírito para que pudesse percebê-lo. Era, de resto, uma alma demasiado leal para conceber a idea de se eximir a compromisso ou faltar à palavra empenhada. Noiva de Raul, a datar do dia em que compreendera o sentido e o alcance do vocábulo, a nobre menina via-se já como sua esposa perante Deus. Enfim, esse casamento era do agrado do marquês. Raul ocultava a sua nulidade sob um fino verniz de graça e de elegância; não lhe faltavam as seduções próprias da idade nem as qualidades cavalheirescas da sua raça; e, numa palavra, a senhora de Vaubert, que estava sempre ao leme, nunca deixava, em certas ocasiões, de lhe dar o espírito que ele não possuía. Tudo caminhava pelo melhor; parecia que nada deveria perturbar o curso dessas prosperidades, quando súbito e inesperado acontecimento veiu entravar essa marcha.
Celebravam-se ao mesmo tempo no castelo os anos do rei, o terceiro aniversário do regresso do marquês às suas terras o as bodas de Raul e de Helena. Esta tríplice solenidade atraíra toda a elevada nobreza da cidade e arredores. Ao cair da noite, o castelo e o parque iluminaram-se; um fogo de artifício foi queimado no planalto da colina; depois abriu-se o baile nas salas, enquanto, cá fora, aldeãs e aldeões bailavam debaixo da ramaria ao som da gaita de foles. A senhora de Vaubert, que chegava ao apogeu das suas ambições, não procurava dissimular a satisfação que lhe ia na alma, Só a presença da menina de La Seiglière justificava suficientemente o orgulho e a felicidade que brilhavam, como dupla auréola, na fronte de Raul. Quanto ao marquês não se sentia menos jubiloso. Sempre que aparecia na varanda, os vassalos faziam vibrar o ar com os gritos: viva o nosso amo viva o nosso fidalgo mil vezes repetidos com entusiasmo que tinha a sua origem no coração dessas boas criaturas e nas adegas do castelo. Stamply falecera havia poucos meses. Quem se lembrava dele Ninguém, salvo Helena que o estimara com sinceridade e cuja memória guardava piedosamente. Nessa noite, a menina de La Seiglière andava distraída, absorta, preocupada. Porquê Nem ela-própria o poderia dizer. Amava o noivo ou, pelo menos, julgava amálo. Ela tinha graça e beleza, amor e mocidade, nobreza e dinheiro; por isso em sua volta só havia meigos olhares e frescos sorrisos a vida não parecia prometerlhe senão carícias e atractivos. Porquê, então, esse coração opresso, esses lindos olhos velados de tristeza? A sua organização fina e subtil; a sua simplicidade delicada e nervosa, estremeceria, como as flores, à aproximação da tempestade sob o pressentimento do seu futuro
Nessa mesma noite, um cavaleiro, em quem ninguém pensava, seguia a margem direita do Clain. Chegado a Poitiers havia menos de uma hora, mal tivera tempo de mandar selar um cavalo e partira a galope, subindo o curso do rio. A noite estava escura, sem luar, sem estrelas. Na volta da vereda, ao descortinar o castelo de La Seigliére, cuja fachada iluminada sobressaía em linhas cintilantes no fundo escurentado do céu, refreou logo o cavalo sob a brusca pressão da rédea. Nesse instante, uma listra de fogo sulcou o horizonte, espalhou-se pelas nuvens e caiu em chuva de ouro, de ametistas e de esmeraldas sobre os campanários e torreões. Como indeciso viajante que já não conhece o caminho, o cavaleiro lançou em volta inquieto olhar; depois, certo de não se haver enganado, tomou as rédeas e continuou o seu rumo. Apeou-se à entrada do parque e, deixando a montada no gradeamento, entrou precisamente no momento em que a multidão campesina, num paroxismo de entusiasmo e de amor, misturava o grito de viva el-rei com o de viva o marquês Todas as janelas estavam engrinaldadas de folhagem e enfeitadas com vitrais; um deles, a mais notável obra-prima de um artista da terra, oferecia aos encantados olhos a augusta cabeça de Luiz XVII, sobre a qual duas divindades alegóricas curvavam ramos de oliveira. Junto da escadaria, a banda de um regimento que estava de guarnição em Poitiers executava com alma a canção nacional Viva Henrique IV.
Supondo-se presa de um sonho, observando tudo, e nada percebendo, ansioso por saber, tremendo de interrogar, o forasteiro perdeu-se por entre a multidão sem ninguém dar por ele. Depois de haver vagueado durante algum tempo, como uma sombra, em volta dos grupos, ao passar junto de uma das mesas que tinham sido colocadas nas avenidas, ouviu certas palavras que lhe chamaram a atenção. Sentado na ponta de um banco, perto de dois antigos naturais do país que, ao beber o vinho do castelo, se entretinham, em tom faceto, a conversar sobre o regresso dos La Seigliére e a morte de Stamply, encostou-se à mesa e, com a cabeça apoiada nas mãos, permaneceu largo tempo assim.
Quando se afastou, o parque estava deserto, o castelo silencioso, os últimos candieiros acabavam de apagar-se e os galos anunciavam o novo dia.
Dois dias depois, no vão de uma janela, ante bonito velador de antiga porcelana de Sèvres carregado de cristais, de pratas douradas e de restos de pequeno almoço, o senhor de La Seigliére, mais deitado do que sentado numa poltrona de costas móveis e de fundo elástico, gozava, em vestuário matinal, dessa situação de bem-estar e de beatitude que de-certo lhe proporcionam florescente egoísmo, saúde robusta, fortuna bem consolidada, carácter feliz e fácil digestão.
Acordara de bom-humor e nunca se sentira tão bem disposto. Envolvido num roupão de seda de grandes ramagens, com a cara bem escanhoada, olhar vivo, lábios vermelhos e sorridentes, a roupa de deslumbrante alvura, a perna fina e bem torneada, a mão branca e rechonchuda meio escondida num punho de rendas, brincando com uma tabaqueira de ouro em que se via gravado um retrato de mulher, que não era a marquesa, o todo exalando suave perfume de Sris e de pó de arrôs, eis como estava, em nada pensando, respirando com delícia o agradável aroma fresco das suas florestas, cujo cimo o outono principiava a amarelecer, e seguindo com olhar distraído os cavalos cobertos de gualdrapas, que voltavam do passeio, quando notou na ponte de Clain a senhora de Vaubert, que se encaminhava para o castelo. Levantou-se, espreguiçou-se, examinou-se dos pês à cabeça, sacudiu com a ponta dos dedos os grãos de rapé espalhados pelos seus bofes de ponto de Inglaterra; depois, debruçando-se da varanda, viu chegar a amável visitante. Por muito pouco observador que seja um espírito, veria na saída matinal da senhora de Vaubert, e sobretudo na sua rapidez e forma de caminhar, o indício certo de um coração violentamente agitado o marquês, porém, não reparou nisso. Quando ela entrou, beijou-lhe galantemente a mão, sem sequer lhe notar a alteração das feições que trazia pálidas.
- Senhora baronesa - galanteou - está cada dia mais nova e mais encantadora. Por esse andar, dentro de alguns meses tem vinte anos.
- Marquês - replicou a senhora de Vaubert com voz sacudida - não se trata agora disso. Falemos a sério, porque o assunto merece-o bem. Está tudo perdido, marquês, tudo perdido, que lho digo eu. O raio caiunos em casa.
- O raio - exclamou o marquês, apontando o céu, que brilhava num azul puríssimo.
- Sim - tornou a senhora de Vaubert-suponha que um raio, estalando no céu sem nuvens, reduzia a pó o seu castelo, queimava as suas granjas, consumia as suas searas não poderia supor nada de mais inverosímil que o golpe que está prestes a atingi-lo. Depois de se haver salvo da borrasca, está ameaçado de sossobrar no porto.
O senhor de La Seiglière empalideceu. Assim que ambos se sentaram, a baronesa perguntou friamente:
- Acredita em almas do outro mundo
- Oh, rainha senhora... - volveu o marquês.
- Pois se não acredita, faz mal - prosseguiu a senhora de Vaubert - O filho de Stamply, esse Bernardo com quem o pai tanta vez nos matava o bichinho do ouvido, esse herói morto e enterrado há seis anos nos gelos da Rússia...
- Que tem - indagou o senhor de Seiglière.
- Que tem - tornou a baronesa - Foi visto ontem na região, viram-no em carne e osso, viram-no, o que se chama ver, e falaram-lhe, e é ele, é Bernardo, Bernardo de Stamply, o filho do seu antigo rendeiro; existe, vive o patife não morreu.
- E que importa isso - redarguiu o marquês em tom despreocupado e com o ar ao mesmo tempo surpreendido e encantado de um homem que, esperando apanhar com um aerolito em cima da cabeça, recebe na ponta do nariz uma pena caída da asa de um abelharuco.
- Como O que importa - bradou a senhora de Vaubert - O filho do Stamply não morreu, está de volta à sua terra, verificaram-lhe a identidade e ainda diz que importa isso
- Pois de-certo - respondeu o senhor de La Seiglière, com pasmo ingénuo - Se esse rapaz tem motivos para amar a vida, tanto melhor para ele que escapou à morte. Quero vê-lo. Porque não se apresentou ainda
- Sossegue, que ele aparecerá - disse a baronesa.
- Que venha - exclamou o marquês - Receberse-á, cuidar-se-à dele; em caso de necessidade dar-se-lhe-â com que viver sem preocupações. Não esqueci a delicadeza do procedimento do pai. O velho Stamply cumpriu com o seu dever por minha vez, cumprirei com o meu. É justo que o rapazote lamente a fortuna que o paisinho me restituiu. Não sou ingrato não se dirá que um La Seiglière deixou na penúria o filho de um fiel servidor. Que me tragam Bernardo se hesitar, tranquilizem-no terá o que pedir.
- E se pedir tudo - observou a baronesa.
A estas palavras, o senhor de La Seiglière estremeceu e virou-se para ela com ar assustado.
- Leu um livro que se chama o Código - inquiriu com calma a senhora de Vaubert.
- Nunca - informou o marquês com orgulho.
- Percorri-o esta manhã por sua intenção. Ontem estava tão adiantada como o marquês; foi por si que me transformei em praticante de advogado. É um livro de estilo bastante árido, muito simpático quando apoia os nossos direitos, mas pouco estimado quando nos contraria as pretensões. Duvido, por exemplo, de que simpatize muito com o capítulo das doações entre vivos. Entretanto, leia-o, recomendo-o às suas meditações.
- Senhora baronesa - exclamou o senhor de La Seiglière, erguendo-se com ligeiro gesto de impaciência quer dizer-me o que tudo isso significa
- Senhor marquês - respondeu a senhora de Vaubert, erguendo-se também com a grave atitude de um advogado - isto significa que qualquer doação a título gratuito é revogada em absoluto no caso de sobrevivência de filho legítimo, mesmo póstumo do doador; isto significa que João Stamply, com o filho vivo, não podia dispor a seu favor senão de metade dos seus bens, e que, não tendo disposto de tudo senão na hipótese de que o filho morrera, essas disposições estão anuladas; enfim, isto significa que o senhor não está em sua casa, que Bernardo vai fazè-lo assinar a restituição de títulos e que na primeira ocasião, munido de uma sentença em boa forma, esse rapaz, a quem falava de dar uma independência, o obrigará a despojar-se e o porá delicadamente na rua. Compreende agora
O senhor de La Seiglière ficou aterrado mas era tal a sua ignorância das coisas da vida, que breve passou do pasmo e do terror ao exaspero e à revolta.
- Importo-me lá com o seu Código e com as suas doações entre vivos - bradou com o arrebatamento de um menino birrento - Quero lá saber disso Alguma coisa dessas me diz respeito O que sei é que estou em minha casa. Para que vem falar-me de doações Restituiram-me o que foi roubado, restituiram-me os bens que me levaram e chamam a isso doação O termo é bonito. Um La Seiglière aceitando doações! A coisa tem sua graça. Como se os La Seiglière houvessem aceitado algum dia qualquer coisa que não viesse da mão de Deus. Com a breca Estou em minha casa, feliz, tranquilo e porque um vadio que se julgava morto toma a liberdade de viver, devo entregar-lhe a fortuna que o senhor seu pai me roubou E' o Código que assim o quer Mas são canibais aqueles que redigiram o seu Código que se diz civil, e eu tenho por impertinente Um Código de usurpador, que consagra de pais a filhos a rapina e o banditismo! Numa palavra o Código Napoleão Reconheço aí a mão de Bonaparte. Pensou no seu lobato é bom pai e lobo previdente.
Falou durante muito tempo nesse diapasão, sem nexo, ao acaso, caminhando a largos passos, batendo os pés no chão, envolvendo-se de uma forma trági-cómica no seu roupão e repetindo de momento a momento com a voz sufocada pela cólera
- Uma doação Uma doação
A senhora de Vaubert a muito a custo o sossegou e o fez compreender o que se passara vinte-cinco anos antes e o que ora se passava. Até então respeitara-lhe as ilusões desta feita, porém, a gravidade da situação já não permitia mais rodeios. Arrancou brutalmente a venda que lhe tapava os olhos, e debalde o pobre marquês resistiu, se debateu e, como um cego a quem subitamente fosse restituída a luz do dia, fechou dolorosamente as pálpebras a senhora de Vaubert dominou-o e, obrigando-o a encarar de frente a luz da evidência, esclareceu-o em todos os pontos com implacável nitidez. Ao observar o pasmo do senhor de La Seiglière, ao ouvir o imparcial resumo da história dos últimos tempos, dir-se-ia que adormecera nas margens do Clain e acordara na China, no meio de um grupo de bonzos e elepróprio disfarçado em mandarim. Restabelecidos os factos e desenhado nitidamente o passado, a baronesa acrescentou com firmeza:
- Agora trata-se de resolver o assunto de futuro. O caso é perigoso mas não é tão mau, que não se possa salvar com certa habilidade e muito sangue-frio. Ora, vejamos, marquês não há dúvida alguma de que esse Bernardo se apresenta aqui de um momento para o outro, não como solicitante, como o marquês a princípio esperava, mas como senhor, de cabeça levantada, a palavra altiva. Não hão-de faltar pessoas que o tenham elucidado dos seus direitos e lhe fornecerão, em caso de necessidade, elementos para os manter. Imagine que ele aparece como vai recebê-lo
- Que vá para o diabo - blasfemou o marquês, rebentando como bomba cujo rastilho se julgasse apagado.
- Mas se se apresentar
- Se ele tal ousar, senhora baronesa, lembrar-me-ei de que não é fidalgo e, mais feliz do que Luiz XIV, não terei de atirar a minha bengala pela janela fora.
- Está doido, marquês.
- Se for preciso pleitear, pleitearemos.
- O marquês é uma criança.
- Terei por mim o rei.
- A lei será por ele.
- Comerei até ao último campo, de preferência a deixar um rácimo de erva.
- Não pleiteie, marquês. Pleitear E sabe o que isso representa Envolver o seu nome em debates escandalosos Meter-se com a justiça E isso para chegar a conclusões previstas, infalíveis, inevitáveis Temos inimigos não lhes dê esse prazer. Possui um brazão não lhe fará essa injúria.
- Mas, por Deus, senhora baronesa, que fazer que: decidir que voltas dar que partido tomar - exclamou o marquês no último extremo.
- vou dizer-lho - replicou a senhora de Vaubert com segurança - Conhece a história de um caracol que se introduziu, atordoado, num cortiço As abelhas amassaram-no com mel e cera, depois, quando assim o tiveram prisioneiro na sua casa, rolaram esse hóspede incómodo e puseram-no fora de casa. Marquês é assim que temos de proceder. De-certo, Bernardo é rústico como o pai aos dons da sua origem deve juntar a brutalidade de soldado e o arrebatamento de rapaz. Impregnemo-lo de cera e mel; prendamo-lo com o visco dos pés à cabeça. Se o irrita, está tudo perdido tratemo-lo com atenções, deixemo-lo aparecer. Surgirá com e ímpeto de uma bala de canhão que se espera ricochetar contra uma parede de granito ou de bronze que se enterre e amorteça o choque num fardo de algodão. Não o ofenda evite, principalmente, discutir os seus direitos ou os dele. Desconfie do seu sangue: o senhor é muito moço ainda Longe de contrariá-lo, lisonjeie-lhe as opiniões humilhe, se tanto for mester, a vitória perante a derrota. O essencial, em primeiro lugar, é levá-lo mansamente a instalar-se como hóspede npreg
- este castelo. Feito isto, ganha tempo o tempo e eu faremos o resto.
- Mas, a-final, senhora baronesa, que papel vamos desempenhar aqui - perguntou altivamente o velho fidalgo.
- Um grande papel, marquês, um grande papel respondeu a baronesa ainda mais altivamente - Vamos lutar pelos nossos princípios, pelos nossos altares e pelos nossos lares vamos combater o direito contra a usurpação vamos defender a legitimidade contra as exacções de odiosa e tirânica lei; vamos disputar os nossos últimos baluartes às invasões de baixa e ciosa burguesia, que nos odeia e quer a nossa ruína. Se vivêssemos nos áureos tempos da cavalaria, dir-lhe-ia que montasse a cavalo e descesse à liça para combater com armas corteses ou então, metido no seu castelo como num forte, o senhor, nós, a nossa gente e os nossos vassalos, de preferência a sairmos vivos, deixar-nos-íamos matar combatendo. Infelizmente hoje os advogados substituíram os campiões e os escrivães os arautos de armas. Visto como vivemos numa época em que mais do que nunca se substituiu o tribunal de justiça por um recinto fechado, as subtilezas da lei, as inspirações da coragem, forçoso é aos mais nobres e mais aguerridos usarem da astúcia à guisa de espada, de espírito à falta de lança. Que queremos nós Não se trata de reduzir esse rapaz à miséria. O marquês será generoso, fará bem as coisas mas, em boa consciência, um pobre diabo que acaba de passar seis meses na neve tem necessidade absoluta, para se sentir comodamente deitado, de estar estendido ao comprido sobre um milhão de propriedades Agora, meu caro marquês, se ainda tem escrúpulos, faça como entender: todo o caso de consciência é respeitável. Vá ter com o senhor Bernardo meta-lhe no dedo como um anel os seus domínios. Se tem essas ideas, porque não junta a essa pequenina lembrança os seus pergaminhos e os seus brazões Vi, esta manhã, Helena, bela, radiante, confiada no futuro: quando regressar, saberá que está completamente arruinada e que só lhe resta o humilde castelo de Vaubert. Iremos para aí viver modestamente, como noutros tempos vivemos no exílio. Em vez de se unirem na opulência, nossos filhos casar-se-ão na pobreza. Seremos alvo de risota de toda a região. Mais tarde, faremos de nossos netos morgados provincianos; venderemos as netas à vaidade de alguns labregos enriquecidos. Esta perspectiva nada tem de alarmante, sem contar com a satisfação de ter continuamente à vista o castelo de La Seiglière as sombras deste belo parque, e o senhor Bernardo a caçar, a viver alegremente, a gosar de excelente vida nas terras do marquês.
- Sabe, baronesa - bradou o senhor de La Seiglière - que tem o engenho de uma Médicis
- Ingrato Tenho o engenho da alma - respondeu, a sorrir, a senhora de Vaubert - Que quero eu Que peço eu A felicidade dos entes que amo. Para mim, não tenho ambições. Imagina que me aterra seriamente, quanto a mim, a idea de viver consigo, em família, no meu pequeno solar Por Deus Há muito tempo que me afiz à pobreza o meu Raul nunca sonhou fortuna. Mas o marquês, mas a sua linda Helena, mas os filhos que nascerem de encantadora união, é isso, marquês, o que me preocupa.
Mantinham essa demorada conversa, quando um lacaio anunciou que um desconhecido, que recusava dizer quem era, pedia para falar ao senhor marquês.
- É o nosso homem - disse a baronesa.
- Manda entrar - ordenou o marquês.
- Lembre-se - deu-se pressa em acrescentar a senhora de Vaubert - de que todo o êxito da empresa depende deste primeiro encontro.
No pavimento do corredor soou um pisar brusco, firme e sonoro, e qi logo o personagem anunciado entrou militarmente, de bota alta, de esporas, de boné e de chibata na mão. Embora evidentemente experimentado pela fadiga e pelo sofrimento, era homem que aparentava, o máximo, trinta anos. De fronte descoberta, já sulcada de precoces rugas, de faces emagrecidas, olhos enterrados nas órbitas, lábios delgados e pálidos, sombreados com espesso e escuro bigode, o ar franco e decidido, a atitude orgulhosa e até um pouco altiva, tinha um dôsses semblantes que passam por feios aos olhos do vulgo, mas que os artistas têm em geral a fraqueza de achar belos. A farda azul, abotoada até à gola, moldava-lhe o busto elegante, direito e esbelto. Mal entrou na sala, que pareceu reconhecer, o olhar suavizou-se e o coração pareceu perturbar-se-lhe repondo-se, porém, com rapidez, da involuntária comoção, inclinou-se levemente a alguns passos da baronesa e depois interpelou o marquês:
- É ao senhor de La Seiglière que tenho a honra de falar - perguntou com gélida delicadeza e com voz que ainda se ressentia do hábito do comando.
- O senhor o disse. Por minha vez, posso saber...
- Um instante - replicou friamente o rapaz - Se, como suponho, é à senhora de Vaubert que tenho a honra de dirigir-me, queira ficar, minha senhora acrescentou - porque a sua presença não é de mais entre nós.
Um relâmpago de alegria perpassou pelos olhos da senhora de Vaubert, completamente certa da vitória numa batalha cujo plano concebera e que ia poder dirigir. Por seu lado, o senhor de La Seiglière respirou mais à vontade ao sentir que ia manobrar debaixo das ordens de tão grande capitão.
- Queira sentar-se-convidou o marquês, sentando-se também quási em frente da baronesa.
O mancebo ocupou o lugar que o marquês lhe indicou e instalou-se bastante cavalheirescamente; depois passou-se um momento de silêncio entre esses três personagens, o silêncio solene que precede os combates decisivos, quando dois exércitos se encontram frente-a-frente. O marquês abriu a caixa de ouro, meteu o polegar e o indicador e sorveu uma pitada de rapé de Espanha, vagarosamente e aos poucos, com uma graça muito especial, por completo perdida nos nossos dias.
- Ouço-o - disse o marquês,
Após alguns segundos de recolhimento, o forasteiro encostou-se ao braço da poltrona em que estava sentado, a par do velho fidalgo.
- Senhor marquês - principiou, alteando a voz com autoridade - passaram trinta anos e nessa época grandes coisas iam dar-se. A França estava na espectativa. Nova aurora surgia no horizonte. Novo mundo estava prestes a desabrochar. Corriam pela atmosfera surdos boatos que enchiam as almas de alegria ou de terror, de esperança ou de pasmo. Parece que o senhor não era do número dos que então esperavam e se regozijavam, pois foi um dos primeiros que abandonaram a pátria ameaçada para fugir para o estrangeiro. A pátria chamou-o, era o seu dever; o senhor ficou surdo ao apelo, era de-certo a sua vontade ela confiscou-lhe os bens; estava no seu direito.
Ao ouvir estas palavras, o marquês, esquecido já do papel que tacitamente aceitara, pulou na poltrona como gamo ferido; um olhar da senhora de Vaubert conteve-o.
- Esses bens, tornados propriedade da nação, propriedade legal e legítima, foram comprados por um dos seus rendeiros à custa do suor dele; e depois de haver trabalhado muito, quando ao cabo de vinte-cinco anos de fadigas e de labores, cerziu, para assim dizer, farrapo a farrapo, o domínio dos seus antepassados, enquanto o senhor, de braços cruzados, estava fora, ocupado em nada fazer, se não os seus hostis votos à glória e à grandeza da França, ele despojou-se de tudo como de um manto e pô-lo nos seus ombros.
- Co'a breca!... - exclamou o marquês, fora de si. Segundo olhar da senhora de Vaubert o susteve e o manteve mudo onde estava.
- Por que encantamento, esse homem, que nada lhe devia e a quem o senhor não estimava, usou para consigo de tal excesso de generosidade, de amor e de entusiasmo Como se decidiu a resignar nas suas mãos essa santa propriedade do trabalho, a única que Deus reconhece e abençoa? Talvez o senhor me possa informar. O que eu lhe posso afirmar é que, vivo o filho, esse homem nem sequer se lembraria de que o senhor existia. O caso é que morreu sem reservar ao menos para si um canto da terra para o seu derradeiro sono, deixando-o pacífico possuidor de uma fortuna que não lhe deu ao senhor mais trabalho do que abrir as mãos
para a receber.
O marquês ia para replicar, quando a baronesa lhe cortou a palavra ou, melhor, lha tirou.
- Visto que me permitiu assistir a esta conferência - disse ela na sua mais meiga voz, em tom de estranha urbanidade - desculpe que nela tome parte. Não tentarei refutar algumas das suas expressões no que elas tiveram para nós de cruel e de ofensivo. O senhor é moço essa nova aurora de que falou, se a tivesse visto desaparecer, saberia, como nós, que foi uma aurora de sangue. Quanto às censuras que nos dirigiu de havermos desertado do solo de França e de permanecermos surdos aos apelos da pátria, permita-me que ria um pouco delas. Se lhe dissessem que este castelo ameaça ruína, este pavimento lhe oscilasse debaixo dos pés e este teto, quàse a cair, rangesse e estalasse por cima da sua cabeça, ficaria assim sossegadamente sentado na poltrona Se o carrasco, com o machado disfarçadamente escondido atrás das costas, o chamasse com voz meiga, o senhor corria pressuroso para ele Deixemos essas puerilidades. E, já agora, mais uma palavra. Acusa-nos de haver formulado, no exílio, votos hostis à glória e à grandeza do país. Engana-se. Nós vemo-lo pela primeira vez; não sabemos quem é nem o interesse que o move sentimos simplesmente que não vem como amigo, mas a nobreza que transparece em si faz-nos desejar conquistar a sua estima, a-despeito-das suas antipatias. Creia que se encontram nas fileiras da emigração, talvez muitos caluniados, corações generosos, que se conservaram franceses em terra estrangeira. Debalde a pátria nos relegou do seu seio nós tinhamo-la levado no coração. Pergunte ao marquês se os nossos votos não a acompanharam, a esta querida e ingrata pátria, em todas as campanhas e em todos os campos de batalha Ele que diga se cada um dos seus triunfos não acordou orgulhosos ecos em nossas almas Rocroi não exclui Austerlitz Bouvines e Marengo são irmãos. Não é a mesma bandeira, mas é sempre a vitoriosa França.
- Muito bem, muito bem - aplaudiu o marquês, abrindo a caixa de rapé.
E levando ao nariz uma pitada, acrescentou, mentalmente
- Decididamente, a baronesa, é levadinha do diabo
- E agora - tornou a senhora de Vaubert - regulada esta continha, se veio aqui só para nos lembrar o que se deve à memória do melhor dos homens, se é a isso apenas que se limita a sua missão, acrescentarei que é, de-certo nobre tarefa, mas desde que as nossas dívidas estão liquidadas, o senhor teve trabalho inútil. Enfim, se deseja saber por que encantamento o senhor Stamply resolveu reintegrar no seu domínio uma família que sempre cumulara seus pais de bondades, dir-lhe-ei que obedeceu aos instintos da sua formosa alma. Afirma que, em vida do filho, o senhor Stamply nem sequer se lembraria de que esta família existia estou em crer que lhe calunía a memória. Se o filho surgisse entre nós...
- Se o filho surgisse - exclamou o desconhecido, contendo um gesto de súbita cólera - Suponhamos que volta, com efeito suponhamos que esse rapaz não morreu, como se julgou, como se julga ainda suponhamos que, deixado como morto num campo de batalha, apanhado vivo pelo exército inimigo, se visse arrastado de estepe em estepe até ao fundo da Sibéria. Após seis anos de terrível cativeiro, num solo de gelo e sob um céu de ferro, livre, vai tornar a ver a pátria e o velho pai, que já não o espera. Parte, atravessa a pé desoladas planícies, mendigando alegremente o seu pão pela estrada, porque no fim desse martírio está a França e também, miragem encantada, julga entrever já o telhado paterno a fumegar no longínquo horizonte. Chega o velho pai morreu, a sua herança outros a receberam, já não tem teto nem lar. Que faz Indaga e logo sabe que o seu afastamento foi aproveitado para captarem a afeição de um pobre velho crédulo e sem defesa; sabe que, depois de o haverem levado, à força de astúcia, a despojar-se do que tinha, lhe pagaram os benefícios com a mais negra ingratidão sabe, finalmente, que o pai morreu mais só, mais triste, mais abandonado do que vivera. Que fará então Isto são apenas suposições. Irá ter com os autores dessas baixas manobras e dessas cobardes maquinações dir-lhes-á: Sou eu, eu, a quem julgavam morto, o filho do homem de quem abusaram, a quem despojaram, traíram e deixaram morrer de aborrecimento e de desgosto. Sou eu, Bernardo Stamply Que responderiam Eles é o que lhe pergunto, senhor marquês, é o que lhe pergunto, senhora de Vaubert.
- O que responderiam Eles - bradou o senhor de La Seiglière que, tendo presumido demasiado ou muito pouco de si, aceitando o papel que a senhora de Vaubert lhe confiara, acabara de sentir todo o seu sangue de patrício subir-lhe ao rosto - pergunta o que responderiam - acrescentou com a voz estrangulada pelo orgulho e pela cólera.
- Nada de mais simples - volveu a senhora de Vaubert com encantadora ingenuidade -Dir-lhe-iam senhor, meu amigo, a quem amámos sem conhecer, a quem chorámos como se o tivessemos conhecido Bemdito seja Deus que nos restitui o filho para nos consolar da perda do pai Venha viver entre nós, venha descansar no meio das nossas ternuras dos sofrimentos do cativeiro venha ocupar na nossa intimidade o lugar que seu pai tão pouco tempo ocupou enfim, venha ajuizar por si-próprio de que maneira nós praticamos o esquecimento dos benefícios. Confundamos os nossos direitos, formemos uma única família; e que a calúnia, ao ver a união das nossas almas, se cale e respeite a nossa ventura. Aqui tem o que responderiam os autores de baixas manobras e de cobardes maquinações. Mas diga - acrescentou a senhora deVaubert, comovida -não compreende que imaginando aterrar-nos com isso talvez despertasse em nós quási que uma esperança o jovem amigo que pranteámos...
- Vive - respondeu o desconhecido - e desejo que esse amigo não lhes custe mais lágrimas do que as que verteram quando correu o boato da sua morte.
- Onde está Que faz Por que espera Por que não aparece - perguntou sucessivamente a baronesa.
- Está na sua presença - respondeu Bernardo simplesmente.
- O senhor é o senhor é... - bradou a senhora de Vaubert com uma explosão de alegria e de surpresa que não seria melhor representada se se tratasse da ressurreição de Raul - De facto - acrescentou, lançando-lhe enternecido olhar - tem todos os traços de seu pai, e, principalmente, o aspecto franco, leal e bom. Marquês, como vê, é bem o filho do nosso bom amigo.
- Senhor - disse por sua vez o marquês de La Sanglière, menos fascinado ainda pelo olhar da baronesa do que pelo abismo que se lhe abria debaixo dos pés, mas demasiado altivo e bem fidalgo para descer a fingir entusiasmos que não sentia - quando, após vinte-cinco anos de exílio, voltei para os domínios de meus avós, o senhor seu pai, que era um excelente homem, recebeu me à porta e dirigiu-me este simples discurso Senhor marquês, está na sua casa. Nada mais lhe direi: senhor Bernardo, está na sua casa. Queira olhar para ela como sua não devo consentir, não consinto que vá para outra. Chegou com intenções hostis, mas não desespero de o trazer a melhores sentimentos. Comecemos por nos conhecer, talvez acabemos por nos estimar. Isso ser-me-á fácil se por seu lado não o conseguir, nunca será tarde para entrar em acordo e encontrar-me-á sempre disposto a combinar consigo tudo quanto lhe seja agradável.
- Senhor marquês-respondeu Bernardo com orgulho
- não quero conhecê-lo nem estimá-lo. Entre nós nada ha de comum no presente nada poderia existir no futuro. Não servimos o mesmo Deus não sacrificamos no mesmo altar. O senhor odeia o que eu adoro; eu adoro o que o senhor odeia. Odeio o seu partido, a sua casta, as suas opiniões odeio-o pessoalmente. Dormiríamos mal sob o mesmo teto. Estaria sempre disposto a contemporizar comigo no que me fosse agradável nada espero da sua bondade, nada espere da minha. Só sei de uma combinação possível entre nós: é a prevista pela lei. O senhor está aqui apenas na qualidade de donatário. O doador só dispôs dos seus bens na convicção de que o filho morrera, e o acto de doação faz fé; pois que vivo, senhor não está em sua casa, por que a casa é minha.
- That is the question - cantarolou o senhor de La Seiglière, resumindo em quatro palavras tudo o que sabia de Shakespeare.
- Ah - bradou a senhora de Vaubert com a tristeza de uma esperança perdida - O senhor não é Bernardo não é o filho do nosso velho amigo.
- Senhora baronesa - replicou bruscamente o rapaz - não passo de soldado. A minha mocidade foi principiada nas campanhas, acabou nos bárbaros, no meio de áridas estepes. Os campos de batalha e as enxovias geladas do Norte tais foram até agora as salas que frequentei. Nada sei do mundo há dois dias nem sequer suspeitava dos seus rodeios e perfídias. Creio naturalmente, sem esforço, na honra, na franqueza, na dedicação, na lealdade, em todos os grandes e belos instintos da alma. Pois bem Embora neste momento ainda o meu coração se esforce por duvidar de que a astúcia, a arteirice e a duplicidade possam ir tão longe, eu, minha senhora, não acredito na sua sinceridade.
- O senhor - bradou a baroneza de Vaubert - não é o primeiro coração nobre que cede às sugestões dos maus e a quem a calúnia feriu as santas crenças; mas, antes de se decidir pelo ódio, será preciso assegurar-se de que não deve amar, de que não pode amar.
- Olhe, minha senhora - volveu Bernardo para concluir - deve compreender que quanto mais habilidade empregar, menos conseguirá convencer-me. Percebo agora como meu pobre pai se deixou enredar por tantas seduções; houve momentos em que a senhora me apavorou.
- É muita honra para mim - redarguiu a senhora de Vaubert, rindo - Nunca disse tanto com certeza das balas inimigas e das baionetas estrangeiras.
- Sim, sim - acrescentou o marquês - sabe-se que é um herói.
- Alistado voluntariamente aos dezoitos anos apontou a baronesa.
- Tenente de hussares aos dezanove - informou o marquês.
- Três anos depois, chefe de esquadrão.
- Notado pelo imperador em Wagram.
- Condecorado pela mão do grande homem depois do combate de Volontina - confirmou a senhora de Vaubert.
- Ah, não há que dizer - acrescentou o marquês, metendo resolutamente as mãos no bolso dos calções
- É bom reconhecer que eram valentes
- Acabemos com isto! - volveu Bernardo, por momentos indeciso - Dou-lhe oito dias, senhor marquês, para abandonar a praça. Conto, pela sua reputação de fidalgo, que não me colocará na desagradável necessidade de recorrer à intervenção da justiça.
- Pois sim, senhor, gosto do rapaz - exclamou francamente o marquês, levado sem querer pelo seu amável e leviano carácter, sem ser retido desta vez pela baronesa que, compreendendo o seu fim, lhe largou a rédea e lhe permitiu caracolar em liberdade - Pois sim, senhor com a breca! Agrada-me este rapaz. Afianço-lhe, senhora baronesa, que é um moço encantador. Meu rapaz, ficará aqui. Odiar-nos-emos, execrar-nosemos, questionaremos, faremos o diabo a quatro, mas, com a breca não nos deixaremos. Conhece a história das duas fragatas inimigas que se encontraram em pleno Oceano Uma não tinha pólvora; a outra deulha, e ambas, depois de se haverem canhoneado duas horas, se afundaram. Assim faremos nós. O senhor chega da Sibéria presumo que, deixando-o partir, os tártaros, com medo de lhe aumentarem o peso e retardarem a marcha, não o carregaram de rublos. Falta-lhe pólvora, eu lha darei. Prometo-lhe divertimentos. Enquanto os nossos causídicos, os nossos advogados e os nossos meirinhos se enviam bombas e obúzes, beberemos o vinho das nossas adegas. Estarei em sua casa e o senhor na minha. Como não ha processo bem conduzido que não possa durar vinte anos, teremos ocasião de nos conhecer e de nos apreciar; talvez venhamos a estimar-nos e, no dia em que o nosso castelo, o nosso parque, as nossas florestas, as nossas granjas e os nossos pomares forem levados pela despesa da justiça, nesse dia, quem sabe abraçar-nos-emos.
- Senhor marquês - respondeu Bernardo que não pudera deixar de rir - vejo com prazer que leva as coisas pelo lado alegre; por minha parte, consinta que eu as tome mais seriamente. Não há um canto destas terras que meu pai não tenha regado com o seu suor e até com as suas lágrimas não é próprio fazer delas palco de comédia.
Proferindo estas palavras e depois de haver cumprimentado friamente, encaminhou-se para a porta. O marquês teve um gesto de resignado desespero e a senhora de Vaubert soltou intimamente um rugido de leoa que deixa escapar a presa. Bernardo poderia ter levado nos bolsos o domínio de La Seiglière, que esses dois semblantes não exprimiriam maior consternação. Mais um passo e tudo ficaria concluido. Bernardo ia a abrir a porta da sala quando esta se abriu por si e entrou a menina de La Seiglière.
Helena de La Seiglière entrou vestida com simplicidade, mas sumptuosamente adornada com a sua loura e branca beleza. Opulentamente enrolados na nuca, os seus cabelos emolduravam-lhe com madeixas e tranças de ouro o rosto, colorido ainda pela animação do andar e pelos quentes beijos do sol. Os seus olhos negros brilhavam com essa meiga chama, radiação das almas virginais, que ilumina e não queima. Um cinto azul, de pontas flutuantes, juntava e apertava-lhe em torno do busto os mil pregueados de um vestido de musselina que lhe encobria todo o corpo elegante e flexível. Um sapato de camurça branca fazia sobressair a quebra aristocrática do seu pequenino pé, estreito e comprido. Um ramo de flores de campo lhe enfeitava o corpo do vestido Depois de haver atirado negligentemente com o chapéu de palha de Itália, a umbela de seda cinzenta e um molho de giestas bravas que apanhara num passeio pelas próximas encostas, correu, esbelta e ligeira, primeiro para o pai, a quem ainda não vira naquele dia e depois para a senhora de Vaubert, que a abraçou efusivamente. Foi apenas ao cabo de alguns minutos, ao libertar-se dos braços da baronesa, que Helena deu pela presença de um estranho. Fosse enleio, fosse curiosidade fosse surpresa da alma e dos sentidos, o que é certo é que Bernardo parara junto da porta, ante a aparição daquela meiga criatura e conservava-se de pé, imóvel, em muda contemplação, perguntando a si próprio de-certo desde quando é que as gazelas viviam fraternalmente com as raposas, e as pombas com os abutres O olhar é rápido como o relâmpago mas pensamento mais rápido é ainda. Em menos de um segundo a senhora de Vaubert tudo viu, tudo compreendeu: o rosto esclareceu-se-lhe, a fronte iluminou-se.
- Não reconheces este senhor - perguntou o marquês à filha.
Depois de haver examinado Bernardo com curioso e inquieto olhar, Helena respondeu apenas com um aceno da sua loura cabeça.
- É no entanto um dos teus amigos – acrescentou o velho fidalgo.
A um gesto do pai, meio-perturbada, meio sorridente a menina de La Seiglière avançou para Bernardo. Quando este homem, que nunca tivera até essa data, revelação alguma da graça e da beleza, e cuja mocidade como êle-próprio dissera, decorrera nos campos e nos bárbaros, viu dirigir-se-lhe aquela bela e graciosa criança de candura na fronte, de sorriso nos lábios, ele, que bastas vezes afrontara a morte sem empalidecer, sentiu o coração fraquejar-lhe, a testa aljofrar-se-lhe de suores frios.
- A menina - disse-lhe com voz alterada - vê-me pela primeira vez. Entretanto, se conheceu um desventurado que no mundo se chamou Stamply, não devo ser completamente estranho para si, porque conheceu meu pai.
A estas palavras, Helena fitou nele os seus grandes olhos de gazela assustada; depois fitou alternadamente o marquês e a senhora de Vaubert, que assistiam a esta cena com ar enternecido.
- É o Bernardito - disse o marquês.
- Sim, querida filha - acrescentou a baronesa - é o filho do bom Stamply.
- Senhor Bernardo - disse por fim a menina de La Seiglière, comovida - meu pai teve razão em me perguntar se eu o reconhecia. Tanta vez ouvi falar de si, que me parece agora dever reconhecê-lo de facto. Vive é uma alegria para nós repare em como estou trémula. contudo, por contente que esteja, não posso pensar, sem entristecer, em seu pai, que deixou este mundo na esperança de o encontrar no outro o céu também tem suas dores, suas decepções Sim, meu pai falou verdade: o senhor é um dos meus amigos. O senhor Stamply estimava-me e, eu a ele. Era o meu velho companheiro. com ele, falava de si. Meu pai, mandou preparar os aposentos do senhor Bernardo Porque o senhor está em sua casa.
- Isso mesmo - bradou o marquês - Um endemoninhado que preferia ir alojar-se debaixo da ponte do Clain a habitar e a viver entre nós
- Assim - volveu Helena em tom de meiga censura - quando eu entrei, o senhor afastava-se, ia-se embora, fugia Felizmente, é impossível.
- Impossível - bradou o marquês - Bem se vê que não sabes donde vem Consoante o vês, este senhor vem da Sibéria. A frequência dos kaltnuks tornou-o difícil sobre a qualidade das suas relações e sobre a escolha das amizades. Isso percebe-se; não se lhe pode levar a mal. E depois, esse rapaz odeia-nos; a culpa não é dele. Porque nos odeia Não sabe e eu muito menos mas odeia-nos é mais forte do que ele. Não se é senhor dos seus sentimentos.
- O senhor odeia-nos Eu estimava seu pai e odeia o meu Odeia-me, a mim Que lhe fizemos inquiriu a menina de La Seiglière cuja voz abrandaria um coração de bronze e desarmaria a cólera de um Seita - Não merecemos o seu ódio.
- Mas que faz isso - volveu o marquês - se é do seu gosto odiar-nos, Gostos não se discutem. Pretende que este pavimento lhe queima os pés e que lhe seria impossível pegar olho sob o nosso teto. Aqui está o que é ter dormido sobre peles de renas e vivido em seis pés de neve. Nada lhe agrada tudo lhe parece baço e desencantado.
Em rápida intuição, Helena julgou perceber o que se passava no coração e no espírito desse mancebo. compreendeu que, restituindo os bens aos amos, o velho Stamply despojara o filho e que este, vítima da probidade do pai, recusava por orgulho receber a paga. Desde então, tanto por delicadeza como por dever, redobrou de graça e de insistência até se afastar da sua reserva habitual, para fazer esquecer a Bernardo tudo o que a sua situação comportava de penoso, de difícil e de perigoso.
- Não parta - prosseguiu ela em tom de cariciosa autoridade - Visto recusar ser nosso hóspede, será nosso prisioneiro. Como pôde conceber a idea de que lhe permitiríamos viver noutro ponto que não fosse junto de nós? Que pensaria o mundo? Que diriam os nossos amigos? De-certo não quereria atingir com o mesmo golpe os nossos corações e a nossa reputação. Lembre-se de que não se trata aqui nem de hospitalidade a oferecer, nem de hospitalidade a receber. Devemos demasiadamente a seu pai - acrescentou a amável donzela, que nada sabia, mas que, julgando perceber que Bernardo hesitava por altivez, queria poupar susceptibilidades e fazer, para assim dizer, uma ponte de ouro ao seu orgulho - devemos demasiadamente a seu pai, para que nos possa dever alguma coisa. Nada temos para dar-lhe; só nos resta restituir com uma das mãos o que recebemos com a outra. Aceite, para não nos humilhar.
- Aceitar, ele - bradou o marquês - Ele se livrará disso. O que ele quere é humilhar-nos. Não o conheces preferiria cortar o pulso a apertar-nos a mão.
A donzela descalçou a mão direita e estendeu-a lealmente a Bernardo, perguntando
- É verdade
Ao sentir nos dedos escurecidos pelos trabalhos da guerra e calejados pelas durezas do cativeiro, aquela mão tépida, fina e assetinada, Bernardo estremeceu e empalideceu. Os olhos velaram-se-lhe, as pernas vergaram-se-lhe. Quis falar, a voz expirou-lhe nos lábios.
- Odeia-nos - volveu Helena - Mais uma razão para que fique. O que nos importa principalmente é que não nos odeie; depende disso a nossa glória e a nossa honra. Consinta primeiro que o ensinemos a conhecer-nos. Quando o conseguirmos, então, parta se tiver coragem para o fazer; mas, daqui até lá, repito-lhe, fica em nosso poder. Foi seis anos prisioneiro dos russos, pode muito bem ser nosso uns tempos. É assim tão aterradora perspectiva ver-se estimado Em nome de seu pai, que muita vez me chamava sua filha, fique; quero e exijo; em caso de necessidade, suplico.
- É encantadora! - exclamou a senhora de Vaubert enternecida, enquanto dizia consigo-Está perdido
E era certo. Bernardo estava perdido. A história das suas mudanças pode muito bem resumir-se. Ulcerado pela desgraça, justamente irritado pelas pungentes decepções do regresso, exasperado pelo boato público, ardendo com todas as paixões e com todos os entusiasmos políticos da época, odiando instintivamente a nobreza, impaciente por vingar o pai, apresenta-se no castelo de La Seiglière, com o ódio apoiado no direito, o coração e a cabeça cheios de tempestades, esperando encontrar orgulhosa resistência, pressentindo pretensões altivas, preconceitos de raça, insolente soberba e preparando-se para arrasar tudo isso com o furacão da sua cólera.
Logo de princípio tudo falha; o ódio aborta, a cólera sossobra. O furacão que queria carvalhos para quebrar apenas curva canaviais; o raio que esperava ressaltar de rocha em rocha e de eco em eco, extingue-se sem ruído no vale, onde apenas desperta suaves melodias. Bernardo procura inimigos só encontra aduladores. Tenta ainda de longe em longe disparar um tiro: devolvem-lhe as balas transformadas em açúcar. Contudo, fugindo aos encantamentos da emérita Armida, vai retirar-se depois de ter significado a sua inexorável vontade, quando surge outra feiticeira, tanto mais sedutora quanto não pensa em seduzir. Poder irresistível, encanto eterno e sempre vencedor, eloquência divina da mocidade e da beleza! Bastou aparecer, para Bernardo ficar abalado. Sorriu, e Bernardo ficou desarmado. É uma criança que Deus deve contemplar com amor. A sua fronte respira candura, a boca, sinceridade no fundo do límpido olhar, pode ver-se-lhe a alma desabrochada como linda flor sob a transparência das águas. Nunca a mentira lhe manchou os lábios, nunca a astúcia lhe falseou a luz dos olhos. Fala e, sem saber, o anjo torna-se cúmplice do demónio. Não só contraria como até confirma o que precedentemente se dissera; não há uma palavra de Helena que não venha em apoio de uma palavra da senhora de Vaubert. A verdade tem acentuações vencedoras, que a mais desconfiada alma não poderia desconhecer. É a verdade, é bem ela que fala pela voz de Helena; entretanto, se Helena é sincera, a senhora de Vaubert será também sincera Bernardo hesita. Se estavam ali, contudo, nobres almas caluniadas pela inveja Se aprouve ao pai comprar à custa de toda a sua fortuna alguns anos de alegria, de paz e de felicidade, porque é que Bernardo ousaria queixar-se? Atrever-se-ia a revogar a voluntária e espontânea doação, legitimada pelo reconhecimento Expulsaria implacàvelmente os entes a quem o pai devera viver rodeado de cuidados e extinguir-se entre braços amigos?
Estava nessas reflexões, menos nítidas, porém, no seu espírito, menos determinadas e menos precisas do que acabamos de exprimir, quando a senhora de Vaubert, que se aproximara dele, aproveitou um instante em que a menina de La Seiglière trocava algumas palavras com o marquês, para lhe dizer:
- Agora, conhece todos os autores das cobardes manobras que apontou há pouco. Porque não envolve esta criança nos seus desprezos e nas suas cóleras Como vê, ela também entrou na infame conspiração e que, depois de haver trabalhado para a ruína de seu pai, se entendeu conôsco para o deixar morrer de desgosto.
A estas palavras da senhora de Vaubert, Bernardo estremeceu como se sentisse suave áspide enrolar-se-lhe nas pernas; quàse logo, porém, a menina de La Seiglière, voltando para junto dele, disse:
- A morte de seu pai deixou-me sérios deveres a cumprir consigo. Assisti-lhe ao último momento; recebi-lhe as últimas despedidas, recolhi-lhe o derradeiro suspiro. É como sagrado depósito que deve passar do meu coração para o seu. Venha; talvez lhe seja agradável ouvir falar daquele que já não é desta vida, ao longo dessas avenidas de que ele gostava e que estão cheias ainda da sua imagem.
Enquanto falava, a menina de La Seiglière tinha apoiado a mão no braço de Bernardo, a quem conduziu como uma criança. Assim que se afastaram, o marquês atirou-se para uma poltrona e, livre, enfim, de qualquer constrangimento, deixou transbordar todas as ondas de cólera e de indignação que o sufocavam havia mais de uma hora. Havia nele dois sentimentos inimigos que se degladiavam com encarniçamento, alternadamente vencidos e vencedores: o egoísmo e o orgulho da raça, Decididamente, o egoísmo era o mais forte; mas não podia triunfar sem que o orgulho vencido soltasse gritos de texugo apanhado no laço. Em presença de Bernardo, o egoísmo arrebatara-o ausente Bernardo, o orgulho irritado arrancou-se brutalmente dos braços do rival e logo tomou o ascendente. Houve ainda uma cena de revolta e de arrebatamento que foi, neste género, tudo quanto possa imaginar-se de mais pueril e de mais encantador: suponha-se a graça petulante de um poldro à solta, franqueando sebes e barreiras e saltando pelos verdes canteiros. Não foi sem novos esforços que a senhora de Vaubert conseguiu apanhá-lo, reconduzi-lo e segurá-lo na verdade da situação.
- Ora, vejamos, marquês - volveu depois de, por muito tempo, o ter ouvido com sorridente dó - deixemo-nos de criancices. Por mais que amue, nada muda aos factos acontecidos. O que não tem remédio, remediado está. Ao querer o contrário, o próprio Deus perderia o seu poder.
- Como! - explodiu o marquês - Um patife cujo pai tanta vez lavrou os meus campos e cuja mãe vinha aqui trazer, todas as manhãs, durante dez anos, o leite das suas vacas, vem insultar-me na minha própria casa e nada posso contra ele Não só não o mandarei pôr na rua pelos meus lacaios como ainda em cima deverei amimá-lo, sorrir-lhe e entregar-lhe minha filha nos braços Um vadio que há trinta anos por muito feliz se devia dar por tratar os meus cavalos e levá-los a beber água! Ouviu com que ênfase esse filho do boieiro falou dos suores do pai Quando disseram isto, disseram tudo. O suor do povo O suor de seus pais Impertinente parvos Como se os pais deles tivessem inventado o suor e o trabalho! Imaginam que nossos pais não suaram também Pensam que se suava menos sob a cota de malha do que debaixo do surrão Isto indignou-me, senhora baronesa, ver as pretensões desta canalha que supõi que só ela é que trabalha e sofre, enquanto as grandes famílias só têm de abrir as mãos para tomar castelos e terras. E que lhe parece esse hussar que vem reivindicar um milhão de propriedades, sob o pretexto de que o pai suou E é esta a gente que nos censura o orgulho e a vaidade dos antepassados Este reclama violentamente o preço do suor do pai e depois há de admirar-se de que eu tenha amor ao que custou o sangue de vinte avós meus.
- Por Deus, marquês, tem carradas de razão - replicou a senhora de Vaubert - Tem por seu lado o direito quem lho nega e lho contesta Infelizmente esse hussar tem por si a lei, a lei mesquinha, rabujenta, fastidiosa, burguesa, numa palavra. Mais uma vez o senhor não está em sua casa e esse patife está em casa dele; é isso o que precisa de compreender.
- Pois bem, senhora baronesa - ripostou o marquês
- se assim é, mais vale a ruina do que a vergonha vale mais abdicar da fortuna do que da honra. O exílio não me apavora conheço-lhe o caminho. Partirei, expatriar-me-ei pela última vez. Perderei os meus bens, mas conservarei o meu nome sem mácula. A minha vingança é esta: já não haverá de La Seiglière em França
- Ora, meu caro marquês, a França passará sem eles! - com a breca, senhora baronesa - apostrofou o marquês, vermelho como uma papoula - Sabe o que um dia disse o rei Luiz XIV ao erguer-se de manhã e avistando meu trisavô entre os fidalgos da sua corte Marquês de La Seiglière, disse o rei Luiz, dando-lhe afectuosa palmada no ombro...
- Marquês de La Seiglière, digo-lhe eu agora: não partirá - bradou a senhora de Vaubert com energia Não falhe do mesmo golpe ao que deve a seus avós, ao que deve a sua filha, ao que deve a si-mesmo. Não abandonará cobardemente o legado de seus antepassados. Ficará precisamente porque disso depende a sua honra. De resto, na nossa idade já não há exílio. Isso era bom na mocidade, quando tínhamos diante de nós o futuro e longa esperança. E porque partir - acrescentou em tom bélico - Desde quando se espera, para levantar o assédio, que a praça esteja prestes a renderse Desde quando se bate em retirada, quando há certeza na vitória? Desde quando se abandona, a partida quando se está quási a ganhar Não sente que triunfamos Que Bernardo passe apenas uma noite no castelo e eu amanhã respondo pelo resto.
Nesse instante, a baronesa, que se conservava no vão de uma janela, avistou no vale de Clain seu filho, que se dirigia para a porta do parque. Deixando o marquês entregue às suas reflexões, escapuliu-se mais de-pressa do que um foguete, deteve Raul à porta do gradeamento, reconduziu-o ao castelo de Vaubert e encontrou plausível pretexto para o mandar jantar e passar a noite num castelo vizinho.
Entretanto, Helena e Bernardo seguiam vagarosamente a donzela suspensa do braço do mancebo; ele, tímido e trémulo, ela, redobrando de sedução e de graciosidade. Graciosidade ingénua, sedução fácil! Ela contava com comovedora simplicidade a história dos dois últimos anos que o velho Stamply passara no mundo. Dizia como se tinham conhecido e como se estimaram" os seus passeios, as suas excursões, as suas mútuas confidências e também o lugar que Bernardo ocupava nas suas conversas.
Bernardo ouvia em silêncio e, enquanto ouvia, sentia no braço o corpo flexível e leve de Helena, olhava-lhe para os pés que caminhavam a par dos seus, respirava o seu hálito mais suave do que os perfumes de outono, ouvia o roçagar do seu vestido mais doce do que o murmúrio do vento na folhagem. Sentia já influências que o enfraqueciam; idêntica a essas hastes elegantes ao longo das quais o raio se escapa e desaparece, Helena furtava-lhe o fluido tempestuoso do seu ódio e da sua cólera. Debalde tentava resistir e debater-se: parecido êle-próprio com esse cavaleiro a quem haviam desaparafusado a armadura, sentia cair a cada passo alguns restos dos seus rancores e das suas prevenções. Sempre conversando, tinham voltado ao castelo O dia declinava; o sol, a desaparecer, alongava desmedidamente a sombra dos choupos e dos carvalhos. Chegado junto da escada, Bernardo dispunha-se a despedir-se da menina de La Seiglière, quando esta, sem largar o braço do rapaz, o arrastou meigamente para a sala onde a senhora de Vaubert se encontrava com o marquês, tão grande era o receio de o abandonar só às suas inspirações.
- Sente-se comovido - disse ela logo, dirigindo-se a Bernardo - Como poderia ser doutro modo Este parque foi, para assim dizer, o ninho dos seus belos anos. Criança, brincou por estes relvados; foi debaixo destas sombras que desabrocharam os seus primeiros sonhos de mocidade e de glória. Também seu excelente pai fizera deles, nos derradeiros tempos, o seu passeio predilecto, como se, no desvio de cada avenida, esperasse vê-lo aparecer.
- Ainda o estou a ver - prosseguiu o marquês passar ao longo dos tabuleiros de relva; com o seu cabelo branco, as meias de lã azul, o seu colete de fustão e a calça de veludo, tomá-lo-iam como um patriarca.
- E era de facto um patriarca - confirmou a senhora de Vaubert com unção.
- Palavra de honra - bradou o marquês - Patriarca ou não, era um excelente homem!
- Tão bom Tão simples! Tão encantador! - secundou a senhora de Vaubert.
- E nada tolo! - exclamou o marquês - com o seu aspecto bonacheirão, tinha um modo de ladear as coisas que a todos surpreendia.
- Logo que aparecia, todos se chegavam para ele, fazendo círculo para o ouvir.
- Era um filósofo. Perguntava-se ao ouvir-se, onde ele ia buscar tudo quanto dizia.
- Buscava na sua bela alma - acrescentou a senhora de Vaubert.
- E que belo humor - tornou o marquês, levado na corrente sem querer-Sempre alegre! Sempre satisfeito Sempre uma anedota a contar!
- É verdade - confirmou a senhora de Vaubert tornara a encontrar junto de nós o seu humor sorridente, a sua alegria natural e os ditos engraçados, prova de uma índole feliz. Por muito tempo alteradas pela ferrugem do isolamento, todas as suas amáveis qualidades haviam retomado, em doce intimidade, o seu primitivo brilho e a sua nativa frescura. Não se fartava de repetir que o havíamos remoçado trinta anos. Na sua linguagem ingénua e figurada, comparava-se a um velho tronco sombreado por novos rebentos.
- é bem verdade que era um suave carácter que não podia conhecer, sem se estimar - volveu por sua vez Helena que, supondo ao pai e à baronesa as delicadezas do seu coração e do seu espírito, explicava assim a sua solicitude junto de Bernardo.
- Ah, por Deus - tornou a baronesa - Como adorava o seu imperador Não o contrariassem nesse ponto. Que ardor, que entusiasmo, todas as vezes que falava do grande homem! Falava muitas vezes dele e agradava-nos muito ouvi-lo.
- Sim, sim - continuou o marquês - falava-nos dele bastas vezes, muitas vezes mesmo! Que quer - acrescentou, fulminado por um olhar da senhora de Vaubert e refazendo-se logo - Isso agradava a esse bom homem e redundava em proveito para nós. Por Deus, senhor Bernardo O senhor seu pai deve orgulhar-se no céu por nos haver proporcionado na terra agradáveis momentos.
A conversa estava nesse pé, sem que Bernardo tivesse ensejo de dizer uma palavra, quando um lacaio anunciou que o jantar estava na mesa. O marquês de La Seiglière ofereceu o braço à baronesa. Helena tomou o braço do rapaz, e todos quatro se dirigiram para a casa-de-jantar. O facto dera-se tão rapidamente, tão naturalmente, que Bernardo não percebeu o que se passava senão quando se viu, como que por encanto, sentado junto de Helena, à mesa do fidalgo. O marquês nem sequer o convidara e Bernardo podia ser já havia seis meses hóspede e comensal da casa, que as coisas não se passariam com menos cerimónia. Quis levantarse e fugir, mas a donzela disse-lhe
- Foi por muito tempo o lugar de seu pai; será o seu d'ora em diante.
- Nada aqui mudou - acrescentou o marquês Ha só mais um filho na casa.
- Tocante acordo, encantadora reunião - murmurou a senhora de Vaubert.
Não sabendo se estava acordado, se era joguete de algum sonho, Bernardo desdobrou com vivacidade o guardanapo e ficou como que pregado na cadeira.
Logo ao primeiro prato, o marquês e a baronesa encetaram conversa, fingindo não dar pela presença de mais um conviva, absolutamente como se Bernardo ali não estivesse, ou antes, como fazendo parte da família havia muito tempo. Bernardo conservava-se calado, mal chegava o copo aos beiços e mal tocava nas iguarias que lhe serviam. Não insistiam com ele; fizeram até de conta que não lhe notavam a atitude sombria, pensativa e reservada. Como sempre acontece no fim das refeições, a conversa baseou-se a princípio sobre assuntos banais: algumas palavras trocadas aqui e além, sem a mais pequena alusão à situação presente; o máximo, uma vez por outra, uma indirecta homenagem à memória do bom Stamply. De banalidades a vulgaridades, vieram a falar naturalmente na política do dia. A certas palavras que escaparam ao marquês, Bernardo principiou a arrebitar as orelhas: alguns conceitos partiram da direita e da esquerda; e a discussão estabeleceu-se. A senhora de Vaubert tomou logo as rédeas e nunca automedonte que conduzisse uma quadriga e fizesse voar a poeira olímpica empregou tanta destreza como nessa ocasião a baronesa. O terreno era difícil, cheio de abismos, ouriçado de asperezas, inçado de sebes e de atoleiros; ao primeiro solavanco, o marquês arriscava-se a partir as pernas. Ela conseguiu seguir um caminho tão direito, tão liso e tão areado como a avenida de um castelo régio; rodeou todos os obstáculos, refreou o estouvado entusiasmo do marquês, espicaçou Bernardo sem o irritar, lançou-os, ora a um, ora a outro, a trote, a galope, a passo; em seguida a tô-los feito manobrar, fazer piruetas, encabritar-se e caracolar, de maneira contudo a deixar a Bernardo as honras do torneio, uniu as rédeas, apertou o duplo freio e reconduziu-os fraternalmente ao ponto de partida. Insensivelmente, Bernardo tomara gosto à diversão. Aquecido com aquele exercício, levado sem querer pela boa disposição do marquês, mostrou menos aspereza, mais abandono e quando, à sobremesa, o fidalgo lhe disse ao encher-lhe um copo
- Aqui tem um vinho que o senhor seu pai apreciava desejo que esvasiemos estes copos à memória dele e ao seu feliz regresso.
Maquinalmente, Bernardo levantou o copo, que tocou o do marquês.
Concluído o repasto, levantaram-se da mesa para dar uma volta pelo parque. Estava uma bela noite. Helena e Bernardo caminhavam a-par, precedidos pelo marquês e pela baronesa que conversavam entre si, e cuja voz se perdia no murmúrio da água e no sussurro da folhagem. Ambos iam calados e como que absortos pelo roçagar das folhas secas que os pés levantavam ao caminhar. Quando o marquês e a companheira desapareciam na volta de uma alameda, os dois jovens podiam crer por instantes que vagueavam sozinhos pelo parque deserto, à sombria claridade das estrelas. Mais pura e mais serena do que o azul do céu, que lhe brilhava sobre as cabeças, a menina de La Seiglière não sentia comoção alguma e continuava a andar em passo vagaroso, sonhador e distraído, enquanto Bernardo, mais pálido do que a lua que se mostrava atrás dos ulmeiros, mais trémulo do que as ervas que a brisa da noite agitava, se enebriava, sem saber, com a primeira perturbação do seu coração. De regresso à sala, a conversa retomou o seu curso em volta de um desses lumes claros que alegram as noites outonais. O sarmento crepitava no fogão, as brisas impregnadas do aroma das florestas agitavam os cortinados da janela aberta. Comodamente sentado numa poltrona fofa, perto de Helena que se ocupava, à luz de um candieiro, a bordar um tapete, Bernardo sentia, sem procurar analizá-lo, o encanto deste interior familiar. De quando em quando, o marquês levantava-se e tornava a sentar-se, depois de haver beijado a filha na testa. Outras vezes, era a amável menina que olhava para o pai com amor. Bernardo esquecia-se na contemplação dessas castas alegrias. Entretanto, quiseram conhecer a história do seu cativeiro; o senhor de La Seiglière e a filha juntaram as suas instâncias às da baronesa. É agradável falar de nós e contar os males que sofremos, principalmente depois de se haver jantado bem, e quando se sente suspensa, para assim dizer, dos nossos lábios qualquer Dido ou qualquer Desdémona palpitante, ansiosa, de olhar comovido e de seio agitado. Bernardo caiu no laço, tanto mais, que Helena representava ali, sem o suspeitar, o papel de calhandra cativa encarregada de atrair como chamariz a população alada para as armadilhas do passarinheiro. Contou em primeiro lugar o caso de Moscovo. Indicou a grandes traços o plano dos locais, os movimentos do terreno, a disposição respectiva dos dois exércitos depois, entrou na batalha. Começara em tom grave e simples exaltado pelas suas lembranças, arrebatado pelas próprias palavras como por asas chamejantes, os olhos animaram-se-lhe pouco a pouco, a voz vibrou-lhe como um clarim. Respirou-se o cheiro da pólvora, ouviu-se o sibilar das balas, viram-se os batalhões moverem-se e lançarem-se através da metralha, até ao momento em que, ferido também, à testa do seu esquadrão, caiu sem vida debaixo das patas dos cavalos, no solo juncado de cadáveres. Ao falar assim, era belo a menina de La Seiglière deixara fugir a agulha e, de pescoço estendido, sem respirar, ouvia e contemplava Bernardo com um sentimento de ingénua admiração.
- É um poeta que canta os feitos de um herói exclamou a senhora de Vaubert, entusiasmada.
- O senhor - acrescentou o marquês - pode gabar-se de ter visto a morte de perto. Que batalha Sonharei com ela esta noite. Parece que o senhor não foi dos que menos molharam a sua sopa, mas também que diabo foi fazer o seu imperador a essa maldita Rússia
- Lá tinha a sua idea - replicou altivamente Bernardo - Isso não nos diz respeito.
Depois referiu a forma por que despertara prisioneiro e como de prisioneiro se tornara escravo. Contou com simplicidade, sem ênfase e sem exagero, a sua permanência nos confins da Sibéria, seis anos de servidão entre populações selvagens, mais cruéis ainda, mais implacáveis do que o próprio céu e o próprio clima; tudo o que suportara, a fome, o frio, os duros trabalhos, os tratamentos bárbaros, disse tudo e, mais de uma vez, durante essa funesta narrativa, furtiva lágrima deslizou sob as pálpebras de Helena, brilhou como gota de orvalho nos cílios descidos, e rolou como pérola liquida sobre o bordado que a jovem retomara de-certo para ocultar a comoção.
- Nobre rapaz - disse a senhora de Vaubert, levando o lenço aos olhos - Era esse o prémio reservado à sua heróica coragem
- Com a breca - bradou o marquês - O senhor deve estar cheio de reumatismo.
- Assim se expia toda a glória - volveu a baronesa com melancolia - Assim, muitas vezes, os ramos de loureiro se mudam em palmas de martírio. Pobre amigo, como sofreu - ajuntou, apertando-lhe a mão em gesto de viva simpatia.
- O que lhe predigo - tornou o marquês - é que nos seus dias de velhice há de ser tomado pela gota.
- Após tantos desaires e misérias, deve ser suave - exclamou a senhora de Vaubert - descansar no seio de solícita família, cercado de rostos amigos, apoiado em corações fiéis Feliz do exilado que, de volta ao torrão natal, não encontra o pátio silencioso, a casa vasia, o lar frio e solitário.
- Uma gota da Sibéria - tornou o marquês, esfregando a coxa - E aqui está uma que, embora só provenha do fundo da Alemanha, já é de respeito. Lastimo-o. Uma gota da Sibéria E não deu cabo dos Cossacos
As últimas palavras da senhora de Vaubert tinham chamado bruscamente o rapaz às exigências da sua posição. Acabavam de bater onze horas no pêndulo de esmalte incrustado de cobre que encimava o mármore do fogão. Envergonhado com as suas fraquezas, Bernardo levantou-se e, desta feita enfim, ia retirar-se, já não sabendo que resolver, mas compreendendo ainda, no meio das suas incertezas, que não era ali o seu lugar, quando o marquês, puxando por um cordão de seda, que pendia ao longo do espelho, a porta da sala abriu-se e apareceu no limiar um criado munido de um candelabro de dois ramos, cheios de velas acesas.
- Germano - ordenou o marquês - conduz este senhor aos seus aposentos. São os aposentos - acrescentou, dirigindo-se a Bernardo - que por muito tempo foram ocupados pelo senhor seu pai.
- Fizemos mal - disse a senhora de Vaubert - em prolongar tanto este serão. Devíamos ter-nos lembrado de que carece de repouso mas sentíamo-nos tão felizes em vê-lo e tão encantados em ouvi-lo Perdõi uma indiscreção que tem como única desculpa o encanto das suas narrativas.
- Durma bem - desejou o marquês - Dez horas de sono o refarão das suas fadigas. Amanhã, ao saltar da cama, iremos bater as nossas charnecas e atirar a alguns láparos. Deve gostar da caça é a imagem da guerra.
- Não se esqueça - recomendou a menina de La Seiglière, ainda muito trémula - de que, em primeiro lugar, está em sua casa, depois em casa de amigos que cumprirão com alegria o dever de curar-lhe o coração e apagar nele a mais pequena lembrança de tantos dias maus. Meu pai tentará restituir-lhe a afeição daquele que o senhor perdeu, e eu, se assim quiser, serei uma irmã para si.
- Se gosta de caçadas - bradou o marquês - prometo-lhas reais
- Até imperiais - volveu a baronesa, interrompendo-o.
- Sim, imperiais - tornou o marquês - Caçada a pé, caçada a cavalo, caçada com galgos, caçada com cães corredores Por Deus, se tratar as raposas como tratou os austríacos e os javalis como os russos, lamento os habitantes das nossas matas!
- Conto também - acrescentou a senhora de Vaubert - ter o prazer de recebê-lo muita vez no meu pequeno solar. Seu digno pai, que me honrava com a sua amizade, gostava da minha mesa e do meu lar. Venha falar-me dele no mesmo lugar em que tanta vez me falou de si.
- Adeus, senhor Bernardo, boa noite e bom sono
- despediu-se o marquês, saudando-o com a mão Que o senhor seu pai, do céu, lhe envie agradáveis sonhos.
- Adeus, senhor Bernardo - secundou a baronesa com afectuoso sorriso - Durma na idea de que não se encontra só no mundo.
- Até amanhã, senhor Bernardo - despediu-se, por sua vez, Helena - Era a frase que seu excelente pai e eu trocávamos à noite, ao deixarmo-nos.
Deslumbrado, atordoado, arrastado, fascinado, preso por todos os lados, Bernardo fez um gesto que queria dizer seja o que Deus quiser e, depois de se haver inclinado respeitosamente ante a menina de La Seiglière, saiu, precedido de Germano, que o levou para o mais rico e mais sumptuoso aposento do castelo. Era, de facto, aquele que o pobre velho habitara algum tempo antes de ser relegado como um leproso para a parte mais afastada e mais isolada da moradia simplesmente tinham-no embelecido de maneira singular e, nesse mesmo dia, apressaram-se em apropriá-lo às circunstâncias.
Quando Bernardo entrou, a chama alegre do fogão fazia brilhar os encaixes dourados do teto e as molduras de cobre que bordavam e enquadravam a tapeçaria de veludo verde escuro. Um tapete d'Aubusson juncava o chão de flores tão viçosas e tão brilhantes, que se diriam recentemente colhidas nos prados dos arredores e semeadas ali pela mão de benévola fada. Bernardo que, havia dez anos, só dormira em camas de campanha, na neve, sobre peles de lobo e nos farrapos de hospedarias, não pôde evitar um sentimento de indescritível alegria ao avistar, debaixo da manta de seda pregueada, a roupa branca e fina de um leito que se erguia, como o altar do sono, ao fundo de uma alcova, reduto misterioso formado de panejamentos idênticos às tapeçarias. Todos os requintes do luxo, todas as elegâncias, todas as comodidades da vida estavam reunidas em sua volta e parecia sorrirem-lhe.
Engenhosa solicitude tudo previra, tudo calculara, tudo adivinhara. A hospitalidade tem delicadezas que raramente escapam à pobreza, mas que nem sempre se encontram nas casas dos mais magníficos hospedeiros; nada faltava a esta, nem o espírito, nem a graça, nem a garridice, mais rara do que a magnificência, Quando Germano se retirou, depois de tudo haver preparado para o deitar do seu novo amo, Bernardo sentiu juvenil prazer em examinar e tocar todos os mil objectos de toucador e cujo uso olvidara. Não ousaremos descrever, por exemplo, em que arroubos o mergulharam a presença de frascos de água de Portugal e o aroma dos perfumados sabonetes. É preciso ter passado seis anos entre os tártaros para se compreenderem essas infantilidades. Aos lados do espelho, meio oculto por tufosde aster, de dálias e de crisântemos abertos em pistolas marchetadas, diamantes e jóias de guerreiros. A um canto do fogão, uma taça preciosamente lavrada regorgitava de moedas de ouro, como que esquecidas ali por descuido. Bernardo não se deteve, nem ante o ouro, nem ante as flores, nem sequer ante as armas. Dando uma volta pelo quarto, caiu em êxtase em frente de uma bandeja de prata dourada cheia de charutos que a senhora de Vaubert mandara comprar: atenção hospitaleira que hoje seria muito simples e banal, mas que nessa época podia passar por um rasgo de audácia e de engenho. Tomou um, acendeu-o à chama de uma vela; depois, indolentemente estendido numa poltrona, envolto num roupão de cachemira, os pés metidos em babuchas turcas, pensou primeiro no pai, " na estranheza do seu destino, na volta imprevista que tinham dado nesse dia os acontecimentos, no rumo que lhe restava escolher. Quebrantado pela fadiga, com a testa abrazada, as pálpebras pesadas, de-pressa as ideas se lhe baralharam e confundiram. Nesse estado de inércia, que poderia chamar-se o crepúsculo da inteligência, julgou ver o fumo do charuto animar-se e formarlhe por cima da cabeça grupos fantásticos. Ora eram seu velho pai e sua velha mãe que subiam ao céu, sentados numa nuvem ora o seu imperador, de pé, em cima de um rochedo, de braços cruzados no peito; ora a baronesa e o marquês dando-se as mãos e dansando uma sarabanda; ora, e isso muitas vezes, uma figura esbelta e graciosa que se inclinava para ele e o olhava a sorrir. Acabado o charuto, atirou-se para o leito, enrolou-se na roupa e adormeceu profundamente.
Fosse por cansaço, fosse por necessidade de recolhimento, a menina de La Seiglière saíra da sala quási ao mesmo tempo que Bernardo. Uma vez sós junto do fogão, a baronesa e o marquês entreolharam-se por instantes em silêncio.
- Pois, meu caro marquês - disse por fim a baronesa - é gentil o Bernardito O pai cheirava a estábulo, o filho cheira a caserna!
- Desgraçado - exclamou o marquês no último paroxismo do exaspero - Julguei que nunca mais acabava com a sua batalha de Moscovo Não haja dúvida que foi uma bela coisa a batalha de Moscovo! O que foi isso Quem conheça isso Quem fala disso Nunca entrei na guerra, mas se alguma vez entrasse... pela espada de meus avós, senhora baronesa, seria outra obra. Aqueles que eu apanhasse não ficariam inválidos porque não mais se levantariam. A batalha de Moscovo E o pateta a dar-se ares de um César e de um Alexandre E são estes os grandes heróis São estas as suas famosas batalhas com as quais o senhor de Buonaparte fez tanto barulho e de que os inimigos da monarquia ainda falam à boca cheia Vê-se que, em resumo, não passavam de pequeninos exercícios higiénicos e salutares os mortos erguiam-se por si-próprios e os feridos ficam de perfeita saúde no fim. Com a breca Quando nos metíamos nisso as coisas passavam-se doutra maneira: quando um fidalgo cai, não mais se levanta, Mas ainda que se seja vilão, um rústico, um Stamply, e quando se tem a felicidade de se fazer matar ao serviço da França, que diacho era escusado voltar a este mundo para contar as suas próprias proezas. Se ele tivesse um pouco de pundonor, coraria por viver e iria, de cabeça para baixo, atirar-se ao rio.
- Que quer, marquês! Ele sabe lá o que é viver!
- redarguiu a senhora de Vaubert, sorrindo.
- Que viva, mas que se esconda Esconde a tua vida - aconselha o sábio - Se amasse a glória, como pretende, não era preferível continuar a passar por morto em vez de vir aqui arrastar os seus farrapos, a sua vergonha, a sua miséria Porque não se deixou ficar na Sibéria Estava bem lá tinha os seus hábitos.
Esse piegas queixa-se do clima: dir-se-ia que nasceu em algodão e cresceu em estufa. Os cossacos são excelentes criaturas, de costumes agradáveis e hospitaleiros. Chamam-lhes bárbaros. Obsequeiem-se estes maltrapilhos, salve-se-lhes a vida, recolham-nos em casa, dêse-lhes destino agradável Aqui têm a gratidão que se logra: tratam-nos como canibais. Iria jurar, diga ele o que disser, que estava lá como um pachá, mas estes vadios nunca estão bem em parte alguma. E depois vêm falar-nos de pátria, de liberdade, de terra natal, de teto paterno que fumega no horizonte Palavrões de que usam para justificar as suas desordens e ocultar o seu mau comportamento!
- Pátria, liberdade, teto paterno, tudo coroado por um milhão de herança; devemos concordar-acrescentou a senhora de Vaubert - que, não sendo precisamente um sacripanta, qualquer deixaria por menos as margens floridas do Don e a intimidade dos basquires.
- A herança de um milhão - bradou o marquês
- Onde diabo quer a baronesa que ele a vá buscar?
- À sua algibeira- replicou a baronesa, descoroçoada por correr sempre atrás dele para o reconduzir à força ao âmago da questão.
- Mas é um homem perigoso, este Bernardo bradou o senhor de La Seiglière - Se me faz ir às do cabo, nem se sabe do que serei capaz: arrastá-lo-ei aos tribunais.
- Está bem - replicou a baronesa - Poupar-lhe-á assim o trabalho de ele o arrastar a si. Por favor, marquês, não recomecemos. A realidade envolve-o e comprime-o por todos os lados. Visto que não pode fugirlhe, encare-a de frente. O que há agora que possa apavorá-lo tanto Bernardo está já enjaulado o leão está açaimado; a presa na sua mão.
- É bonita a minha presa... Por Deus, diga-me o que quer que eu faça dela?
- O tempo o industriará. Esta manhã tratava-se de instalar o inimigo na praça: fez-se. Trata-se agora de o fazer sair: far-se-á.
- Entretanto - volveu o marquês - iremos comendo Sibéria, metralha e Moscovo i Iremos engulindo lâminas de sabre guisadas em neve e biscainhos feitos com geada! E depois, senhora baronesa, não lhe parece que faço aqui um vil papel e um papel de vil. Com a breca Praguejo como Henrique IV, mas afigura-se-me que vou proceder de modo contrário ao do bearnês para reconquistar o meu reino.
- Julga - replicou a senhora de Vaubert - que a coragem só procede a tiros de arcabuz e que as grandes acções só se cometem com a ponta da espada Se a França não foi repartida nestes últimos tempos, partilhada e tirada à sorte como a túnica de Cristo, a quem o deve De casaca bordada, de escarpins e meias de seda, a perna direita apoiada na esquerda, a mão pousada nos bofes da camisa, o senhor de Talleyrand fez mais pela França do que essa frandulagem de calças de pele, que se chamava a velha guarda, e que, contudo, nada soube guardar. Imagina, por exemplo, que não se empregou, neste dia que está a findar, muitíssimo mais engenho do que mostrou o bearnês na batalha de Ivry Manejar o penacho branco à maneira de bandeira, levar tudo à ponta da espada, juncar o solo de mortos e moribundos, não é coisa extraordinariamente difícil. O que é verdadeiramente glorioso é triunfar no campo de batalha que se chama a vida. Consinta que a esse respeito lhe apresente os meus cumprimentos. Teve o sangue frio de um herói, o espírito de um demónio e a graça de um anjo, Olhe, marquês, deixe passar o termo: foi adorável.
- É certo - disse o marquês, cruzando a perna e sacudindo com a ponta dos dedos os bofes de renda - é certo que esse infeliz só viu fogo.
- Ah, marquês, como o domou! De um guante de ferro fez uma luva macia. Sabia-o bravo e valente; mas devo confessar que estava longe de suspeitar em si tão maravilhosa destreza. É bom ser carvalho e saber vergar como o canavial. Marquês de La Seiglière, o príncipe de Bénévent tomou o seu lugar no congresso de Viena.
- Crê isso, baronesa? - perguntou o senhor de La Seiglière, acariciando o mento,
- com a ponta dum dedo, curvaria o arco de Nemrod - tornou, sorrindo, a senhora de Vaubert. Aprisionaria tigres, traria panteras a comer-lhe às mãos.
- Que quer é a história de todos esses entes inferiores. De longe, falam em devorar-nos; dignamo-nos a sorrir-lhes, e todos eles caem, se arrastam aos nossos pés. Seja como for, senhora baronesa, já não estou em idade de fazer de D. Diogo; se esse patusco era fidalgo, eu ainda me lembro das lições de S. Jorge.
- Marquês - retorquiu altivamente a baronesa de Vaubert - se este patusco fosse fidalgo e o senhor fosse D. Diogo, não precisava de ir tão longe para encontrar Rodrigo.
Nesse momento, Raul entrava, enluvado, frizado, de ponto em branco, os olhos piscos, a boca risonha, semblante fresco e rosado, tão irrepreensível dos pés á cabeça como um boneco saído de uma caixa cuidadosamente embrulhada. Vinha buscar a mãe a-fim-de a acompanhar a Vaubert e de-certo também na esperança de cortejar a menina de La Seiglière, a quem não via desde a véspera. O marquês e a baronesa fitaram nele com complacência os seus olhares alegres e encantados foi para eles como que a entrada de um puro sangue num hipódromo ainda enxovalhado com a intromissão de um macho normando. Era tarde; o dia estava a findar; os dois ponteiros do pêndulo estavam quâsi a juntar-se no esmalte da duodécima hora.
Depois de haver estendido a mão ao marquês, a senhora de Vaubert retirou-se pelo braço do filho, a quem reservava para lugar e tempo oportunos a narrativa dos factos para sempre memoráveis que naquele grande dia se haviam dado.
Passada uma hora, tudo repousava nas duas margens do Clain. O senhor de La Seiglière, que adormecera sob o golpe das violentas comoções por que acabava de passar, sonhava que inúmera quantidade de hussares, todos mortos na batalha de Moscovo, dividia silenciosamente os seus domínios via-os fugir a galope, levando consigo cada um o seu love na garupa do cavalo, quer fosse um campo, um prado, uma granja; Bernardo galopava à frente com o parque metido na mala e o castelo num dos arções. Já não tendo debaixo dos pés pedaço algum de terra, o marquês, desvairado, sentia-se rolar no espaço como um cometa, e em vão tentava agarrar-se às estrelas. A senhora de Vaubert, por seu lado, sonhava também e o seu sonho assemelhava-se a um apólogo muito conhecido. Via nova e formosa criatura, sentada em fina relva, com enorme leão amorosamente deitado junto dela, com uma das patas nos joelhos, enquanto um bando de criados, munidos de forcados e de bastões, observava o que se passava, escondido numa floresta de carvalhos. A jovem segurava com uma das mãos a pata de fulva pelagem e com a outra, que empunhava uma tesoura, cortava as garras, que se alongavam docilmente debaixo do veludo. Quando fizera sofrer a mesma operação a todas as patas, a formosa menina tirara da algibeira uma lima com cabo de marfim, e, tomando nos braços a cabeça de loura crina, levantava com mão delicada os espessos e pesados beiços e com a outra limava delicadamente uma dupla fileira de dentes formidáveis. Se, às vezes, o paciente soltava surdo rugido, ela amansava-o logo, ameigando-o com o gesto ou com a voz.
Concluída esta segunda operação, quando o leão já não tinha garras nem presas, a rapariga levantava-se; e os criados, saindo do esconderijo, corriam a fera, que abalava sem resistir, de cauda encolhida e orelha murcha. Quanto a Bernardo, sonhava que no meio de um campo de neve, sob um céu de gelo azulado, via de repente surgir um belo lírio que perfumava o ar; quando se aproximava para o colher, a régia flor transformava-se em fada de olhos de ébano e cabelo louro, que o arrebatava através das nuvens e o depunha em encantadoras margens onde reinava eterna primavera, Por fim, Raul sonhava estar na sua noite de núpcias: no momento de abrir o baile com a juvenil baronesa de Vaubert, descobria com terror que pusera a gravata do avesso.
Só a menina de La Seiglière velava. Encostada ao parapeito de uma janela aberta, com a testa apoiada na mão, cujos dedos se perdiam nas tranças do cabelo, escutava com ar distraído os confusos rumores que subiam dos campos adormecidos, concerto da água, da folhagem e de brizas, nocturnos da criação, linguagem harmoniosa das noites estreladas e serenas. A todas essas vozes e a todos esses murmúrios, a menina de La Seiglière misturava os primeiros estremecimentos de um coração onde a vida principiava a revelar-se. Fazia-se nela como que um ruído de fonte oculta, quási a brotar, soerguendo já o musgo e a relva que a encobriam. Helena fora educada num mundo gracioso, elegante e polido, mas pouco acidentado, frio, correcto, compassado, para não dizermos aborrecido. As suas conversas com o velho Stamply, as cartas de Bernardo, a imagem e a lembrança de um morto a quem nunca conhecera tinham sido toda o poema da sua mocidade. Á força de ouvir falar desse morto, à força de ler e reler essas cartas, que respiravam todas adorável piedade filial unida às exaltações da glória, cartas tanto de criança como de herói, carinhosas e cavalheirescas, todas escritas na embriaguês do triunfo, na manhã seguinte a um dia de combate, ela viera a tomar por ele essa poética afeição que se liga à memória dos juvenis amigos precocemente ceifados. Pouco a pouco, esse sentimento estranho germinara e desabrochara-lhe no seio como misteriosa flor. Como desconfiar de um sonho cuja realidade nunca entrevira? como assustar-se com uma sombra cujo corpo dormia no túmulo Por vezes levava consigo essas cartas nas suas excursões, como o teria feito a um livro amado; nessa mesma manhã, na encosta dos outeiros, sentada sob um macisso de faias, relera a mais tocante, aquela em que Bernardo mandava ao velho pai o primeiro bocado de fita vermelha que lhe brilhara no peito. O bocado de fita ainda aí se encontrava, embaciado pelo fumo da pólvora e pelos beijos do velho Stamply. Helena não pudera deixar de pensar que aquilo valia infinitamente mais do que os cravos, as rosas ou as camélias que o senhor de Vaubert sempre usava na botoeira. Voltava para casa com a cabeça e o espírito todos cheios de expressões ardentes e, ao chegar ao castelo, mal entrava na sala, tinham-lhe mostrado Bernardo, Bernardo ressuscitado, Bernardo de pé e vivo ante ela. Era mais do que o necessário de-certo para surpreender vivamente ociosa imaginação, que até então só fora exaltada por quimeras. A milagrosa aparição desse rapaz, que em nada se parecia com aquele que até então vira e que se aproximava muito do tipo que dele formara confusamente, a posição desse filho que supunha deserdado pela probidade do pai, o aspecto triste e grave, a atitude digna e altiva, o belicoso brilho da fronte e do olhar, o que passara e sofrera, enfim, todos os pormenores desse estranho dia tinham produzido na formosa menina profunda e romanesca impressão. Muitíssimo longe de suspeitar o que se passava nela para poder assustar-se, a menina de La Seiglière deixara-se levar sem perturbação pelas sensações que lhe afluíram ao coração como ondas de vida nova. No entanto, compreendeu que, visto que Bernardo vivia, já não lhe assistia o direito de conservar as cartas que o velho Stamply lhe confiara ao expirar. Perto de se separar delas, o coração confrangeu-se-lhe; tomou todas, uma a uma, e releu-as pela derradeira vez; em seguida, meteu-as num sobrescrito, depois de despedir-se silenciosamente dessas amigas da sua solidão, dessas companheiras dos seus ócios. Feito isto, a menina de La Seiglière voltou para a janela, onde ficou algum tempo ainda a contemplar as estrelas que cintilavam no céu, o branco vapor que traçava no ar a invisível corrente do Clain e a lua. idêntica a um disco de cobre cujos rebordos eram roídos pelo horizonte.
Embora fosse já dia claro havia algumas horas, Bernardo acordou às escuras; apenas um raio de sol, vindo não se sabe donde, cortava em dois o quarto com uma tira luminosa em que girava loucamente um enxame de pequenas moscas envoltas num milhão de átomos, poeira de ouro num sulco de fogo. Depois de haver ficado alguns instantes mergulhado nessa situação de bem-estar e de indolência que não é o despertar nem o dormir, de repente, ao surdo mugido da realidade que começava a subir até ele como o ruído da maré que enche, sentou-se na cama, apurou o ouvido e passeou em volta espantado olhar. O ruído aproximava-se, a maré continuava a encher. Inquieto, desvairado, saltou para fora da cama, puxou os cortinados, abriu as portadas; e, com o espírito e os olhos iluminados ao mesmo tempo viu claro simultaneamente no seu quarto e no seu futuro. A águia que, depois de haver adormecido no ninho, acorda num poleiro de uma gaiola, não experimenta sentimento de raiva e de pasmo mais sombrio nem mais terrível do que o de Bernardo ao lembrar-se do que se passara na véspera. Comprimiu a testa com desespero e apelidou-se de cobarde, de perjuro e de infame. Esteve tentado a atirar pela janela as jarras do Japão, a taça das moedas de ouro, as babuchas turcas, a salva com os charutos e consumar a expiação atirando-se também. Quis ir torcer o pescoço à baronesa perguntou que castigo infligiria ao marquês, e a própria Helena não encontrou perdão ante a sua cólera. Imóvel diante de um espelho, perguntava-se se era de facto a sua imagem que nele se reflectia. Seria ele, de verdade Traidor num dia a todos os seus instintos, traidor às suas opiniões, aos seus sentimentos, à sua origem, aos seus deveres, às suas resoluções, aos seus próprios interesses, pactuava com a nobreza, aceitava a hospitalidade dos expoliadores e assassinos de seu pai! Por que encanto funesto Por que encanto tenebroso Indignado por haverem brincado com ele como com uma criança convencido de que o marquês não passava de um velho sem escrúpulos, de que a filha era apenas uma jovem intrigante educada na escola da senhora de Vaubert, liberto de todos os liames com que insidiosamente o haviam enlaçado, envergonhado e furioso ao mesmo tempo por se ter deixado acorrentar, como Gulliver, pelos anões, pegou no chicote e enterrou o chapéu pela cabeça e, sem sequer se despedir dos seus hospedeiros, saiu do castelo na resolução de só para ele voltar quando pusesse na rua a raça dos La Seiglière.
Ao atravessar um pátio plantado de figueiras, de castanheiros e de tílias, para encontrar as cavalariças, e selar êle-próprio o cavalo que o trouxera, deu de cara com a menina de La Seiglière, que saía do quarto, com simples vestido matinal, ainda mais formosa assim do que a vira na véspera, de fronte tão pura e tão serena, o andar tão calmo, o olhar tão límpido, que Bernardo, ao avistá-la, sentiu a convicção desvanecer-se-lhe com a cólera, do mesmo modo que o sol, ao nascer, dispersa e derrete a bruma das colinas. Suspeitar daquela altiva e meiga criatura de astúcia, de mentira, de intriga e de duplicidade, o mesmo seria que acusar de chacina e de carnificina as pombas de plumagem irisada que debicavam no telhado do pombal vizinho. A rapariga foi logo ao encontro do rapaz, dizendo
- Andava à sua procura.
Àquele timbre de voz mais meigo e mais fresco do que a respiração embalsamada de primavera, mais franco, mais leal e sincero do que o som do ouro sem liga, Bernardo estremeceu e o encanto recomeçou. Encontravam-se nesse instante junto de uma pequena porta que dava para o campo. Helena abriu-a e, colocando a mão no braço de Bernardo, acrescentou
- Venha daí. Ainda é muito cedo e meu pai gabou-se ontem à tarde oferecendo ir consigo bater esta manhã as nossas charnecas e campinas. Será obrigado a contentar-se com um passeio comigo pelos campos. O senhor perde com isso, mas as lebres ganham.
- Escute, menina - volveu Bernardo com voz trémula, libertando-se suavemente da mão de Helena venero-a e estimo-a. Creio-a tão nobre como formosa sinto que duvidar de si, seria duvidar do próprio Deus. A menina gostou muito de meu pai; foi o anjo da guarda da sua velhice. Assistiu-lhe quando doente sentou-se-lhe à cabeceira da cama, ajudou-o a morrer. Seja abençoada e bemdita. Cumpriu com os deveres do ausente; guardarei no coração eterno reconhecimento por si. Contudo, deixe-me ir embora. Nunca poderei explicarlhe os motivos imperiosos que são como que uma lei para mim mas, visto que sofro o juizo dessa lei, pois que tenho força para me arrancar à graça das suas instâncias, deve compreender, menina, que os motivos que mandam em mim são, de facto, muito imperiosos.
- Se o senhor - respondeu Helena de La Seigliére, que julgava conhecer os motivos a que Bernardo aludia-se encontra aqui sozinho, se não tem afeição alguma séria que o chame, se o seu coração está livre de qualquer ligação, de nada sei que possa dispensá-lo de viver junto de nós.
- Sou sozinho no mundo, o meu coração está liberto de qualquer ligação - replicou tristemente o mancebo - Mas lembre-se de que não passo de um soldado de costumes rudes e sem dúvida grosseiros. Não tenho os gostos, nem os hábitos, nem as opiniões do senhor seu pai. Alheio ao mundo em que vivem, serei importuno e eu próprio sofrerei com isso.
- É só isso - redarguiu Helena - Pense, porém, por sua vez, que está nas suas terras e que ninguém jamais se lembrará de lhe contrariar os gostos, os hábitos ou as opiniões. Meu pai é um espírito amável, indulgente e fácil. Nas suas horas de mau humor, não nos verá se preferir, nunca nos verá. Escolherá o género de vida que lhe aprouver e, à parte a temperatura, de que não poderíamos dispor, bastará querer para se julgar ainda em plena Sibéria. Simplesmente não gelará e terá a França à sua porta.
- Fique certa - respondeu Bernardo - de que o meu lugar não é em casa do marquês de La Seigliére.
- O que quer dizer que não é aqui o nosso lugar
- replicou a menina de La Seigliére - porque nós estamos em sua casa.
Assim esses dois corações honestos e encantadores abdicavam, cada um por seu lado. para não se humilharem. Bernardo corou, perturbou-se e calou-se.
- Como vê, não pode partir, e não partirá. Venha daí - acrescentou Helena, retomando-lhe o braço Ontem transmiti-lhe, para assim dizer, os derradeiros dias de seu pai; resta-me ainda um depósito que ele me confiou à hora da morte, e que devo entregar-lhe. Proferindo estas palavras, levou Bernardo, que mais uma vez a acompanhou, e ambos enveredaram por um atalho que atravessava as terras entre duas sebes de espinheiros e de alfeneiros. Estava uma dessas ridentes manhãs ainda não veladas pelas melancolias do outono. Bernardo reconhecia os sítios em cujo meio crescera a cada passo se lhe despertava uma lembrança; a cada volta da sebe, tornava a encontrar uma fresca imagem dos seus verdes anos. Assim caminhando, ambos falavam de recuados dias. Bernardo contava a sua infância turbulenta; Helena referia a sua mocidade grave e séria. Às vezes paravam, quer para trocar uma idea, uma observação, um sentimento, quer para colher as hortelãs ou um digital que ladeavam o caminho, quer para admirar os efeitos da luz sobre os prados e as colinas depois, muito surpreendidos com alguma revelação simpática, continuavam a andar em silêncio até que novo incidente viesse interromper a muda linguagem das suas almas. Se parecia estranho, digamos o termo, inconveniente, para alguns espíritos rigoristas e timoratos, que a filha do marquês de La Seiglière passeasse em vestuário matinal, pelo braço desse rapaz que pela primeira vez vira na véspera, é porque esses espíritos, cujas susceptibilidades estranhas aliás respeitamos, esqueceram que a menina de La Seiglière era demasiado casta e demasiado pura para ter o pudor e o recato que o mundo dá às suas vestais recordar-lhes-emos também que Helena crescera em plena liberdade e que seguindo a secreta inclinação do seu coração julgava cumprir um dever. Ao cabo de uma hora de passeio, chegaram, sem pensar nisso, à granja em que Bernardo nascera. Na presença daquela humilde moradia onde nada mudara, Bernardo não pôde conter a sua comoção. Quis tornar a ver tudo, a visitar tudo; depois foi sentar-se junto de Helena, no pátio, no mesmo banco em que o pai se sentara poucos dias antes de morrer. Ambos estavam enternecidos e permaneceram calados. Quando Bernardo ergueu a cabeça, que durante algum tempo tivera entre as mãos, o rosto estava molhado de lágrimas.
- Contei ontem - disse, virando-se para Helena na sua presença seis anos de exílio e de dura escravidão. Eu sei que a menina é boa, sinto-o. Talvez lamente o meu martírio e contudo, nessa indiscreta narrativa dos meus males e das minhas misérias, não inclui a mais cruel das minhas torturas. Essa tortura não cessou, trago-a comigo como abutre que me dilacera o peito. Quando deixei meu pai, já ele estava velho e só no mundo. Debalde me objectou que só a mim tinha na vida. Abandonei-o sem compaixão a-fim-de correr para o fantasma que se chama a glória. No meio do barulho dos combates e dos enebriamentos da guerra, não me lembrava de que era um ingrato no silêncio do cativeiro, senti-me de repente esmagado ao peso de terrível pensamento. Afigurou-se-me meu velho pai sem parentes, sem amigos, sem família, completamente abandonado, pranteando a minha morte, acusando a minha vida. Desde então, este pensamento de que se queixava de mim e de que acusava a minha ternura não me dá tréguas nem mercê tornou-se o mal do meu coração e pergunto a mim-próprio ainda neste momento se ele me perdoou ao morrer.
- Morreu abençoando a sua memória - respondeu a donzela - Partiu alegre, na doce esperança de ir abraçá-lo no céu.
- Nunca falou de mim com amargura
- Só falava de si com amor, com entusiasmo.
- Nunca amaldiçoou a minha partida
- Só estremecia de orgulho à idea dos seus gloriosos feitos. Já não existia para ele e, contudo, o senhor era ainda toda a sua vida. Pranteava-o e, entretanto, só vivia em si e para si. Quàse ao morrer, entregou-me as suas cartas como sendo o que lhe restava de mais querido e de mais precioso a legar. Essas cartas estão aqui - prosseguiu Helena, tirando-as de um saco de veludo e entregando-as a Bernardo - Ensinaram-me a conhecer e a amar a França; vi muita vez seu pai humedecê-las de beijos e lágrimas.
- A menina - volveu Bernardo em tom comovido - que ajudou o pai a morrer, que ajuda o filho a viver, mais uma vez seja bemdita.
E regressaram mais tristes do que tinham partido. Ainda sob a influência do sonho que tivera de noite, o senhor de La Seiglière recebeu cordialmente Bernardo, que não pôde excusar-se a sentar-se à mesa do almoço, entre o marquês e a filha. Entregue a si-mesmo, o marquês foi encantador; se algumas imprudências lhe escaparam, esses disparates tiveram um carácter de franqueza e lealdade que não desagradava à índole franca e leal do seu hóspede. Finda a refeição, o dia decorreu como um sonho. Bernardo sempre disposto a partir e sempre impedido por qualquer episódio novo. Folheou álbuns com Helena esteve na sala de bilhar com o marquês deixou-se levar de passeio em carruagem descoberta visitou as cavalariças do castelo falou de cavalos com o velho fidalgo, que tinha uma paixão por eles e pretendia ser conhecedor do assunto. À tarde surgiu a senhora de Vaubert que desenvolveu todas as denguices da sua graça e do seu espírito. O jantar decorreu quase alegre. À noite, ao canto do fogão, Bernardo mais uma vez se esqueceu a contar as suas batalhas. Em suma ao soar a meia-noite, depois de haver apertado a mão do marquês, recolheu-se aos seus aposentos e, prometendo afastar-se na manhã seguinte, fumou um charuto, deitou-se e teve agradáveis sonhos.
No entanto, o que era feito do nosso barãozinho Na manhã desse mesmo dia, a senhora de Vaubert, que desviara o filho de se apresentar, na véspera, no castelo, mandou-o chamar para junto dela, inquirindo logo
- Raul, amas-me
- Que pergunta, minha mãe - volveu o rapaz.
- És-me dedicado de corpo e alma
- Já alguma vez o duvidou
- Se graves interesses que me dizem respeito te obrigassem a partir para Paris
- Partiria.
- Imediatamente
- vou partir.
- Sem perder uma hora
- Parto - respondeu Raul, pegando no chapéu.
- Está bem - replicou a senhora de Vaubert Esta carta encerra as minhas instruções só a abrirás em Paris. O correio de Bordéus passa em Poitiers dentro de duas horas. Aqui tens dinheiro. Dà-me um beijo.
Agora, vai-te embora.
- Sem apresentar as minhas despedidas ao marquês e as minhas homenagens à filha - perguntou Raul, hesitante.
- Eu me encarrego disso - replicou a baronesa.
- Contudo...
- Amas-me, Raul
- Que pensarão
- És-me dedicado
- Minha mãe, já parti.
Três horas depois, o senhor de Vaubert seguia para Paris, mais perplexo e menos intrigado do que poderia imaginar-se e convencido de que a mãe o mandava simplesmente comprar as prendas do noivado. Assim que chegou, rasgou o sobrescrito que continha as vontades da mãe e leu as seguintes instruções:
"Diverte-te, vê mundo, relaciona-te apenas com pessoas da tua categoria, não te deslustres nunca na mais pequena coisa, poupa a tua mocidade, não penses em voltar senão quando eu te chamar e descansa em mim o cuidado da tua felicidade."
Raul não percebeu nem tentou perceber. Na manhã seguinte passeava gravemente pelo bulevar, de aspecto frio e compassado e, entre os esplendores de Paris que via pela primeira vez, tão pouco curioso de ver e de observar como quando passeava nas suas terras.
Decorreram semanas, decorreram meses. Sempre resolvido a partir, Bernardo não partia. A estação era óptima; caçou, montou os cavalos do marquês e acabou por se deixar levar na corrente dessa vida elegante e fácil que se chama a vida de castelo. Os ditos do marquês agradavam-lhe. Embora conservasse junto da senhora de Vaubert vago sentimento de desconfiança e de inexplicável mal-estar, sofrera, sem procurar conhecer-lhe os motivos, o encanto da sua graça e do seu espírito. As refeições eram alegres, os vinhos magníficos os passeios, ao entardecer, à beira do Clain ou sob as árvores do parque desfolhadas pelo outono, as conversas em volta do fogão, a discussão, as longas narrativas, abreviavam essas ociosas noites. Quando escapava ao marquês qualquer aristocrático arrebatamento, que rebentava como um obus aos pés de Bernardo, Helena, que se entretinha, à luz do candieiro, com algum trabalho de agulha, levantava a loura cabeça e fechava com um sorriso a ferida que o pai fizera. A menina de La Seiglière, que continuava a crer que o rapaz estava no castelo em posição melindrosa, humilhante e precária, não tinha outra preocupação que não fosse fazê-lo esquecer; esse erro valia a Bernardo tão meigas compensações, que suportava com heróica paciência, de que êle-próprio se admirava, os disparates do incorrigível velho. De resto, embora não se entendessem em coisa alguma, Bernardo e o marquês tinham chegado a sentir um pelo outro uma espécie de afeição. O caracter aberto do filho de Stamply, a sua índole franca e leal, a sua atitude firme, a sua palavra brusca e atrevida, a própria exaltação dos seus sentimentos, sempre que se tratava das batalhas do império e da glória do seu imperador, não repugnavam ao velho fidalgo. Por outro lado, as cavalheirescas puerilidades do grã-senhor agradavam bastante ao moço-soldado. Caçavam juntos, corriam a cavalo, jogavam o bilhar, discutiam política, arrebatavam-se, guerreavam e não estavam longe de se estimarem.
- Por minha fé - pensava o marquês - para hussar, filho de vilão, este excelente rapaz não se comporta mal de todo!
- Para um marquês, volatim do antigo regime dizia Bernardo consigo - este velho bonacheirão não é muito desagradável.
E à noite, ao despedirem-se, e de manhã, quando se encontravam, apertavam-se cordialmente as mãos.
O outono estava a findar; o inverno fez sentir mais ainda a Bernardo as alegrias do lar e as delícias da intimidade. Desde a sua instalação no castelo, julgaram dever afastar por prudência a turba de visitantes. Vivia-se em família as festas tinham cessado. Bernardo, que passara o inverno anterior nas estepes hiperboreas, já não pensou em resistir às seduções de um interior amável e encantador. Reconheceu que, no fim de contas, os nobres eram bondosos e ganhavam vistos de perto; perguntou a si-próprio o que seria feito dele triste e só nesse castelo deserto pensou em que faltariam ao respeito à memória de seu pai, tratando com rigor os entes que lhe haviam alegrado o fim dos seus dias, e que, visto não lhe contestarem os direitos, devia deixar ao tempo, à delicadeza e à bondade dos seus hospedeiros, o cuidado de concluir convenientemente essa estranha história, sem empurrões, sem lutas e sem dilaceramentos. Em resumo: abandonando-se molemente à corrente da onda que o embalava, não lhe faltavam fortes razões para se desculpar a seus próprios olhos e para justificar a sua fraqueza. Havia uma que valia por todas foi a única que ele não confessou a si-próprio.
Para Helena, o tempo corria veloz e rápido para Bernardo, rápido e veloz. Não era mester grande perspicácia para se prever o que ia dar-se nesses dois corações moços o nosso fidalgo, porém, que entendia tanto de amor como de política, nem ao de leve concebia a idea de que o seu sangue pudesse enamorar-se do do seu antigo rendeiro. Por outro lado, a senhora de Vaubert que, com todas as finuras do espírito, nunca suspeitara das surpresas da paixão, não podia raciocinadamente supor que a presença de Bernardo suplantasse a de Raul no coração da noiva. A menina de La Seiglière também não o supunha. Aquela criança conhecia tão pouco o amor, que julgava amar o noivo; conhecendo-se, perante Deus, a esposa do senhor de Vaubert, crendo ser, para Bernardo, apenas generosa, deixara-se levar sem desconfiança na misteriosa corrente que a arrastava.
Muita vez comparara a mocidade heróica deste com a existência ociosa daquele bastas vezes, à leitura das cartas de Raul, recordando-se das cartas de Bernardo, admirava-se muito de encontrar a ternura do noivo menos ardente e menos exaltada do que essa ternura do filho quando, de olhar brilhante, a fronte iluminada de mágicos reflexos, Bernardo falava de glórias e de combates ou, sentado junto dela, a contemplava em silêncio, Helena sentia estremecer-lhe no seio comovido qualquer coisa estranha que nunca sentira em presença do seu bonito noivo mas como poderia ela adivinhar o amor pelos estremecimentos do seu ser, ela que até então tomara por amor um sentimento tíbio e pacífico, sem perturbação nem mistério, sem dor nem alegria Enfim, o próprio Bernardo enebriava-se sem dar por isso com o encanto que o envolvia. Assim, os dois jovens viam-se todos os dias, em toda a liberdade e em toda a inocência, esforçando-se por se fazerem esquecer reciprocamente a respectiva posição. Helena redobrando de graça, Bernardo, de humildade, e não compreendendo, nem um nem outro, que, sob tantos mimos adoráveis, era já o amor que se ocultava. Entretanto, um dia houve em que simultaneamente tiveram vaga revelação.
Pouco tempo antes da chegada de Bernardo, por uma dessas fantasias de mocidade muito familiares à velhice do marquês, este adquirira um puro sangue novo que passava por indomável e que ainda ninguém pudera montar. Helena crismara-o de Orlando, de-certo por alusão ao Orlando furioso. Um pobre diabo, que se dava como centauro, tivera vontade de sujeitá-lo Orlando atirou com ele a terra e o centauro ficara com a espinha partida. Desde então ninguém ousara aproximar-se do animal indomável do qual se gabavam, dez léguas em redor, a maravilhosa beleza e a pureza de raça. Certo dia em que se falou do assunto, Bernardo caprichou em montá-lo, sujeitá-lo, dominá-lo e torná-lo, em menos de um mês, manso e dócil como um cordeiro. A senhora de Vaubert animou-o a tentá-lo o marquês esforçou-se por dissuadi-lo Helena suplicou que não se metesse nisso. Pundonoroso, Bernardo correu às cavalariças e apareceu daí a pouco debaixo da janela em que se encontravam a baronesa, o senhor de La Seiglière e a filha, na sela de Orlando, magnífico e terrível. Indignado com o freio, a boca a espumar, as narinas em fogo e os olhos sanguinolentos como égua selvagem que
sentisse pela primeira vez o freio e a espora, o soberbo animal saltava com incrível fúria, encabritava-se, dava voltas, erguia-se sobre os jarretes de aço, tudo isso com incrível satisfação da senhora de Vaubert, que parecia interessar-se vivamente por esse exercício, e os aplausos do marquês, a quem maravilhavam a graça e a destreza do cavaleiro.
- Com a breca O rapaz é da raça dos Lapitas exclamou, batendo as palmas.
Quando Bernardo voltou à sala, viu Helena mais pálida do que a morte. Durante o resto do dia, a menina de La Seiglière não lhe dirigiu uma palavra, nem um olhar simplesmente, ao serão, como Bernardo, que receava tê-la ofendido, se mantivesse junto dela, triste e mudo, enquanto o marquês e a baronesa estavam absorvidos com uma partida de xadrez, Helena perguntou-lhe friamente e em voz baixa, sem levantar os olhos nem interromper o bordado
- Porque arrisca loucamente a sua vida
- A minha vida - volveu Bernardo, a sorrir grande coisa ela é
- Que sabe disso - tornou Helena.
- Creia que ninguém se interessa por ela - replicou Bernardo com voz trémula.
- Que bases tem para fazer essa afirmação - redarguiu Helena - De resto, é uma impiedade dispor assim de um dom de Deus.
- Cheque e mate - bradou o marquês - Pois meu rapaz - acrescentou, virando-se para Bernardo repito-lhe que é da raça dos Lapitas.
- Pela maneira por que procede - disse por sua vez a senhora de Vaubert - afirmo que antes de oito dias o senhor Bernardo será senhor de Orlando e o conduzirá como um cordeiro.
- O senhor nunca mais montará aquele cavalo disse em tom de fria e calma autoridade a menina de La Seiglière, continuando com os olhos postos no bordado e de maneira a só ser ouvida pelo rapaz que se retirou quàse logo para ocultar a perturbação que lhe ia na alma.
Estavam as coisas neste pé e nada fazia supor que devessem tomar dentro de algum tempo nova feição. Absolutamente estabelecida, a posição de Bernardo parecia inexpugnável. Tudo o que o marquês podia razoavelmente esperar, era que agradasse ao mancebo nada mudar à situação e mantê-la. Para falar claro o marquês era partilhado por dois sentimentos antagónicos. Instintivamente arrastado para Bernardo, estimava-o ou, antes, tolerava-o de boa-mente, sempre que, arrebatado pela leviandade do seu caracter, esquecia a que título o filho de Stamply se sentava à sua mesa e no seu lar; mas nas horas de reflexão, logo que, esmagado sob o sentimento da sua dependência recaía na verdade da situação, o marquês só via nele um inimigo dentro da sua própria casa, uma espada de Damocles suspensa por um fio e rutilando-lhe por cima da cabeça. Havia para ele dois Bernardos o que não lhe desagradava e o que queria ver sumido pelo chão. Já não tinha, quando falava com a senhora de Vaubert, aquelas bonitas cóleras e aqueles encantadores arrebatamentos a que por várias vezes assistimos. Já não era aquele marquês petulante e buliçoso partindo a todo o momento a sua trela, fugindo aos pulos e aos saltos pelos terrenos da fantasia. A realidade domava-o se ainda, alguma vez tentava furtar-se-lhe, a rude amazona segurava-o logo, enterrando-lhe nos flancos as aceradas esporas de ferro. A própria senhora de Vaubert estava longe dessa sólida confiança que mostrara a princípio. Não que ela tivesse abandonado a partida a senhora de Vaubert não era mulher para desanimar logo à primeira, mas, a-pesar-de tudo o que ela dizia para o tranquilizar, o marquês sentia-a hesitante, perturbada, irresoluta. O caso é que a baronesa já não tinha essa confiante intrepidez que portanto tempo a mantivera, e que conseguira fazer passar para o coração do velho fidalgo. Ao estudar Bernardo, ao observá-lo de perto, ao vê-lo viver, soubera convencer-se de que não era com um espírito nem um carácter daqueles que seria fácil entrar em acordos; compreendia que tinha de haver-se com uma dessas almas susceptíveis e altivas que impõem condições, mas que não as recebem, que podem abdicar, mas nunca transigir. Ora, como se tratava aqui da abdicação de um milhão, não era verosímil que Bernardo a isso se resignasse de vontade, muito desinteressado que o supusessem. Só a menina de La Seiglière podia realizar semelhante milagre só ela podia consumar a obra de sedução que, sem ela o saber, a sua beleza, a sua graça e a sua mocidade tinham vitoriosamente começado. Infelizmente Helena não passava de um espírito ingénuo e de uma alma honesta. Se possuía o encanto que torna os leões namorados, ignorava a arte de lhes limar os dentes e de lhes aparar as garras. De que rodeios, de que encantamentos usar para tornar esse nobre coração, sem que o suspeitasse, em instrumento da astúcia e em cúmplice da intriga Tal era o segredo que todo o engenho da senhora de Vaubert em vão procurava encontrar. As suas conversas com o marquês já não tinham o chiste e o entusiasmo que o animavam. Já não possuíam esse altivo desdém, esse soberbo desprezo, essa independência que, mais de uma vez, fizeram sorrir o leitor. Quando o caçador parte de manhã, aos primeiros alvores, cheio de ardor e de esperança, aspira o ar a plenos pulmões e molha com delícia os pés no orvalho dos campos e das campinas. Ao vê-lo assim, de espingarda em bandoleira, escoltado pelos cães, dirse-ia que vai conquistar o mundo. Entretanto, ao bater badalada do meio-dia, quando os cães não conseguiram levantar nem perdizes, nem lebres, e o caçador prevê que regressa a casa, à tarde, com a bolsa vazia, sem ter queimado uma escorva, salvo se atirar aos pintarroxos, atravessando os espinhos que lhe rasgam as polainas, debaixo de um sol de fogo que lhe cai a prumo sobre a cabeça, caminha então lentamente e senta-se desanimado na primeira sebe que encontra. É isso um pouco a história do marquês e da baronesa. Encontram-se à hora do meio dia sem ter conseguido a mais pequena peça de caça e o que é mais para lastimar é que o caçador foi o caçado.
- Então, senhora baronesa - perguntava às vezes o marquês, meneando a cabeça com ar consternado.
- E então, marquês - respondia a senhora de Vaubert - é preciso ver, é preciso esperar. Este Bernardo não é precisamente o tolo que nós imaginávamos. Falsa ou verdadeira, não lhe falta certa elevação nas idéias e nos sentimentos. Hoje toda a gente se confunde. Graças aos benefícios de uma revolução que embaralhou todas as classes e suprimiu todas as linhas de demarcação, a canalha julga ter o coração ao nível do nosso qualquer pé descalço se julgaria desonrado se não ostentasse a altivez de um Rohan ou o orgulho de um Montmorency. Causa dó, mas é assim mesmo. Essa gente acabará por pôr brazões na lama e por possuir armas heráldicas.
- O que é facto, senhora baronesa - acrescentava o marquês - é que jogámos uma péssima partida e nem sequer temos a sorte como desculpa mercê dos seus conselhos, estou em vésperas de perder ao mesmo tempo a fortuna e a honra é demasiado para um só golpe. Como findará esta comédia Repete-me constantemente que a presa é nossa mas, por Deus é a presa que nos apanha. Foi um rato que metemos num queijo de Holanda.
- É preciso ver, é preciso esperar - repetia a senhora de Vaubert - Henrique IV não conquistou o reino num dia.
- Conquistou-o a cavalo, à ponta de uma espada sem mácula.
- Esqueceu a missa.
- Era uma missa rezada; esta que eu ouço dura há três meses e ainda estou no Intróito.
Embora lhe custasse introduzir estranhos no segredo desta aventura, que aliás para ninguém era segredo, e sentisse repugnância em se meter com os homens de leis, o marquês chegara a tal estado de perplexidade, que resolveu ouvir a opinião de um célebre jurisconsulto que prosperava então em Poitiers, onde passava pelo d'Aguesseau da região. O senhor de La Seiglière duvidava ainda da validade dos direitos do seu hóspede recusava acreditar que um legislador, mesmo corso, levasse a iniquidade a ponto de animar e legitimar pretensões tão exorbitantes. Em risco de perder a sua última esperança, mandou certo dia chamar ao seu escritório o tal d'Aguesseau de Poitiers, e explicou-lhe claramente as coisas, com o fim de saber se havia algum meio honesto de se libertar de Bernardo, ou, pelo menos, levá-lo forçadamente a uma transacção que não comprometesse nem a honra nem a fortuna da sua raça.
O célebre advogado, que se chamava dês Tournelles, era um velhote fino, espirituoso e manhoso, de boa nobreza de toga e por essa circunstância estimando pouco a nobreza de espada e não gostando particularmente dos La Seiglière que haviam tratado sempre como burgueses os que usavam togas e gorros de magistrados. Além disso conservara sempre a lembrança de um encontro em que o fidalgo o tratara por cima do ombro, incidente sem importância que datava de há mais de trinta anos, mas cuja recordação fazia ainda sangrar o coração do ofendido. O senhor dês Tournelles ficou intimamente encantado por ver o marquês metido em tão má causa. Depois de haver profundado o assunto, depois de se haver assegurado de que nos próprios termos da doação passada entre o velho Stamply e o seu antigo amo os direitos do donatário estavam integralmente revogados pelo único facto da existência do filho do doador, sentiu maligno prazer em demonstrar ao fidalgo que não só a lei não lhe oferecia meio algum de expulsar Bernardo, mas ainda que autorizava este a pôlos, a eles e à filha, literalmente no meio da rua. À velha raposa não ficou por aí. Sob a forma de argumentação, defendeu o princípio que reintegrava Bernardo na propriedade do pai; desenvolveu a idea do legislador manteve que nisto, longe de ser iníqua, conforme afirmava o senhor de La Seiglière, a lei não era mais do que justa, previdente, prudente e maternal. Em vão o marquês barafustou; debalde acusou a república de concussão, de violência e de usurpação; baldadamente tentou fixar que possuía aquela fortuna não pela liberalidade, mas pela probidade do seu antigo rendeiro em vão tentou mais uma vez esquivar-se pelos mil-eum rodeios que tão bem conhecia: o jurisconsulto provou-lhe delicadamente que, apropriando-se dos bens territoriais dos emigrados, a república só usava do seu legítimo direito e que, restituindo-lhe os domínios, o seu rendeiro só praticara um acto de munificência. Sob o pretexto de esclarecer o assunto, esmagou complacentemente o grande fidalgo sob a generosidade do velho criado. Dotado de inesgotável facúndia, as palavras saíramlhe da boca como de um carcás uma nuvem de frechas; de tal maneira, que o pobre marquês, crivado de picadas e, semelhante a um homem que se atirasse estouvadamente para o meio de um enxame de abelhas, suava por todos os poros e revolvia se na cadeira, maldizendo a idea que tivera de mandar chamar aquele implacável tagarela, pois nem sequer possuía o recurso do arrebatamento e da cólera, tanta graça, tanta delicadeza e destreza usava o carrasco. Houve um instante em que, perdida a paciência, bradou:
- Basta, senhor, basta! Com a breca O senhor está a abusar, me parece, de erudição e de eloquência. Sou suficientemente instruído e não desejo saber mais.
- Senhor marquês - replicou severamente o manhoso velho, que tinha tomado gosto pelo jogo e não devia largar a partida senão depois de se haver saciado do sangue da vítima - sou aqui o médico da sua fortuna e da sua honra; julgar-me-ia indigno da confiança que me testemunhou hoje, se não respondesse com toda a franqueza. O caso é grave; não é com restrições da sua parte, e atenções da minha, que poderá desenvencilhar-se dele.
Estas últimas palavras caíram como benéfico bálsamo no ulcerado coração do marquês.
- Nesse caso - volveu com ar hesitante e submisso - não está tudo perdido
- Não, de-certo - respondeu, sorrindo, o astuto dês Tournelles - contanto que se resigne a tudo confessar e a tudo ouvir. Repito-lhe, senhor marquês, que só deve ver em mim o médico que veio para estudar o seu mal e para tentar curá-lo.
Abrandado pelo receio, aliviado pela esperança, animado pela aparente bonomia sob a qual a serpente ocultava os seus pérfidos desígnios, o marquês deixou-se levar por exageradas expansões. Para nos arrimarmos à comparação do jurisconsulto, aconteceu-lhe o que acontece às pessoas que, depois de haverem passado a vida a zombar da medicina, se lançam cegamente nos braços dos médicos logo que julgaram sentir à cabeceira o gélido sopro da morte. À parte alguns pormenores que julgou dever omitir, disse tudo: o seu regresso, a chegada de Bernardo e de que forma esse mancebo se instalara no castelo. Impelido pelo diabólico dês Tournelles, que várias vezes o interrompia com exclamações
- Muito bem Está muito bem E' menos grave do que a princípio supunha; coragem, senhor marquês! Isto vai excelentemente! Sairemos bem da questão! pôs a sua situação a nu, e despiu-se, passe o termo; enquanto, com o queixo apoiado ao bico de corvo da bengala, o velho rábula intimamente sufocava de alegria ao ver o orgulhoso fidalgo estadear as suas enfermidades e a descobrir sem pejo as feridas do seu egoísmo e do seu orgulho. Quando este chegou ao fim das suas confidências, o senhor dês Tournelles tomou um aspecto angustioso e meneou tristemente a cabeça, dizendo
- É grave, muito grave, mais grave do que eu há pouco supunha. Senhor marquês, é conveniente não lhe dissimular que se encontra na mais desastrosa situação em que jamais se encontrou qualquer fidalgo de algum tempo e de algum país. O senhor não está na sua casa. Não é o senhor quem tolera Bernardo, é ele quem o tolera. Está nas mãos dele; depende de um capricho seu. Esse rapaz, de um momento para o outro, pode dar-lhe ordem de despejo. É grave, muito grave, excessivamente grave.
- Bem sei que é grave - exclamou o marquês com mau humor - Pode repetir isso as vezes que quiser que me não dá novidade alguma.
- Não ignoro - prosseguiu tranquilamente o senhor dês Tournelles sem se deter com a interrupção do marquês - estou longe de ignorar que esse rapaz tem todo o interesse em conservá-lo sob o mesmo teto, a si e a sua amável filha, e sei que lhe seria difícil encontrar hóspedes tão distintos e que mais o honrassem. vou mais longe: julgo que é seu dever procurar retê-lo; sustento que a piedade filial lhe recomenda imperiosamente que o encadeie à sua fortuna. Foi tão bom para o pai dele! Disseram com razão que esse velho enriquecera ao despojar-se, tanto o rodearam, no fim dos seus dias, de atenções, de cuidados, de ternuras e de respeitos Espectáculo encantador É belo ver a mão que dá vencida em generosidade pela mão que recebe. Embora eu não tenha o gosto de conhecer o senhor Bernardo, não duvido das suas piedosas disposições até agora: tudo revela nele nobre coração, espírito elevado, alma reconhecida. Mas, além de que não convém que um La Seigliere aceite humilhante condição, a vida é cheia de escolhos contra os quais necessariamente, mais tarde ou mais cedo, vêm quebrar-se as intenções mais puras, as mais honestas resoluções. Bernardo é novo, há de casar-se, terá filhos. Senhor marquês, devo dizer-lhe a verdade: é tudo o que se pode imaginar de mais grave.
- Que diabo - bradou o senhor de La Seiglière, que sentia o sangue afluir-lhe à cara - Eu mandei chamá-lo não para calcular a profundidade do abismo em que caí, mas para me indicar um meio de sair dele. Principie por tirar-me de lá e depois profunde-o.
- Perdão, senhor marquês, perdão - replicou o senhor dês Tournelles - Antes de lhe atirar uma escada, preciso primeiramente de saber o comprimento que ela há de ter. O abismo é profundo, senhor marquês... Que abismo Se consegue tirar-se dele, pode orgulhar-se, como Theseu, de haver visto as sombrias margens. E que história a sua, senhor marquês Que estranhos casos da sorte Que estranhas vicissitudes O marquês de La Seigliere, um dos maiores nomes da história, um dos primeiros fidalgos da França, chamado do exílio por um dos seus velhos servidores! Esse digno homem que se arruinou para enriquecer o seu antigo amo! Esse filho que se julgava morto e que uma bela manhã apareceu a reclamar a sua herança! É um drama, é todo um romance, nada temos de mais interessante nos anais judiciários. Concorde, senhor marquês, em que ficou bastante surpreendido ao ver na sua presença esse moço guerreiro, morto na batalha de Moscovo! Ainda que o seu regresso devesse trazer alguma perturbação à sua existência, eu iria jurar que não lhe foi desagradável ver vivo e de saúde o filho do seu bemfeitor.
- Sem dúvida, sem dúvida! - bradou o marquês, prestes a rebentar e mais vermelho do que um pimentão - Sabe ou não sabe algum meio de me tirar desta situação?
- Por Deus, senhor marquês - exclamou o terrível velho - é mester encontrarmos um. O senhor não pode ficar em tão cruel embaraço. Não se dirá que um marquês de La Seiglière e a filha viveram às tenças do seu antigo rendeiro, todos os dias expostos a serem despedidos vergonhosamente como inquilinos que não pagaram a sua renda. Isso não deve acontecer e não acontecerá.
Ao proferir estas palavras, o senhor dês Tournelles pareceu mergulhar em sábia meditação. Ficou um bom quarto d'hora a traçar com a ponta da bengala círculos no chão ou, de nariz no ar, a ver os ornatos do teto, enquanto o marquês o examinava em silêncio com ansiedade impossível de descrever, mas fácil de compreender, procurando ler o seu futuro na fronte desse endemoninhado homem, e passando alternadamente do desânimo à esperança, conforme a expressão inquieta ou risonha que o pérfido dês Tournelles dava ao jogo da sua fisionomia.
- Senhor marquês - disse por fim - a lei é formal; os direitos do filho de Stamply são incontestáveis. Entretanto, como em direito nada há que não possa contestar-se, tenho a convicção de que com muita argúcia e habilidade talvez consiga fazer desistir das suas pretensões Bernardo Stamply. Mas, aqui é que é o diabo para o fazer chegar a esse ponto seria preciso recorrer às subtilezas da lei e o senhor marquês de La Seiglière nunca acederia a enveredar pelos meandros da chicana.
- Nunca, isso nunca - replicou o marquês de La Seiglière altivo - É preferível saltar pela janela a limpar a lama da escada.
- Já tinha a certeza disso - volveu o senhor dês Tournelles - Esses sentimentos são demasiado cavalheirescos para- que queira combatê-los. Permita-me apenas que lhe observe que se trata do domínio dos seus antepassados, de um milhão de propriedades, do futuro de sua filha e dos destinos da sua raça. Tudo isto deve ser tomado em consideração. Não falo de si, senhor marquês; tem o coração mais desinteressado que jamais tem batido em peito humano; a ruína aterra-o menos do que qualquer mácula no seu brazão. A miséria não o amedronta; viveria, em caso de necessidade, de raíses e de água límpida. É nobre, é elevado, é belo, é generoso. Já estou vendo seguir sem empalidecer o caminho da pobreza. com tal quadro, o meu coração comove-se e a minha imaginação exalta-se; porque, o senhor o disse com razão, o mais magnífico espectáculo que possa ver-se é a luta do homem forte a braços com a adversidade. Mas sua filha, porque o senhor marquês é pai! Se lhe agrada aceitar o papel de Cedipo, imporá a essa amável"menina atarefa de Antigona? Que digo eu? Tão impiedoso como Agamemnon, sacrificá-la-á, nova Ifigénia, sobre o altar do orgulho, ao egoísmo da honra? Concebo que lhe repugne arrastar o seu nome pelos tribunais, arrancar por astúcia à justiça a consagração dos seus direitos. Entretanto, pense no caso... Sempre é um milhão em propriedades! O senhor marquês sente-se bem aqui, este luxo hereditário assenta-lhe como uma luva, é o meio que lhe é próprio. E depois, vejamos em boa consciência: será mais vergonhoso procurar ferir o adversário aproveitando as lições da lei, ou, como noutros tempos entre cavaleiros, visar de lança em punho a junta da viseira ou a falha de couraça
- Então - replicou o marquês após alguns instantes de hesitação silenciosa - se julga poder responder pelo triunfo, por dedicação aos interesses da minha querida e bem-amada filha, resignar-me-ei a esvasiar até às fezes o cálice das humilhações. Vitória do amor paterno - bradou o senhor dês Tournelles - Assim, fica combinado pleitearemos. Só nos resta agora encontrar as subtilezas pelas quais conseguiremos despojar legalmente dos seus legítimos direitos o filho do bondoso homem que doou ao marquês todos os seus bens.
- Com a breca Entendamo-nos - ripostou o velho fidalgo que, em menos de um segundo, corou e empalideceu de vergonha e de cólera - Não é isso o que peço. Julgo que é dever meu transmitir intacto a minha filha o domínio dos seus antepassados mas, com os diabos não pretendo esbulhar esse homem dar-lhe-ei fortuna; tudo farei para lhe garantir honrosa e fácil existência.
- Ah, que nobre coração o seu - volveu o senhor dês Tournelles com enternecimento tão perfeitamente representado, que o próprio marquês se sentiu também enternecido - São assim estes grandes fidalgos a quem se acusa de egoismo e de ingratidão! Pois que o exige, alguma coisa faremos a favor do hussar. De resto, diremos isso em pleno tribunal; por pouco partido que o nosso advogado saiba tirar disso, há de produzir bom efeito no espírito dos juizes.
A estas palavras, o senhor dês Tournelles, tendo pedido alguns instantes para reflectir, para encontrar, conforme êle-próprio dissera, as imperfeições da lei, pareceu mais uma vez mergulhar em profunda meditação. Passados dez minutos, emergiu radiante, de rosto aberto e boca risonha ao ver isso, o senhor de La seglière sentiu a alegria de um homem que, sob o golpe de uma sentença de morte, se vê condenado às galés por toda a vida.
- E então - inquiriu.
- Então, senhor marquês - respondeu dês Tournelles, assumindo de repente aspecto piedoso e consternado - está perdido, perdido sem recursos, perdido sem esperança. Tudo considerado, tudo pesado, tudo calculado, pleitear seria uma loucura comprometeria a sua reputação, sem salvar a fortuna. Ser-me-ia fácil tarefa iludir a lei e arrancá-lo às garras do artigo
960 do capitulo das Doações com o Código, há sempre meio de se arranjarem as coisas. Infelizmente, os termos da acta que o reintegrou nos seus bens são demasiado claros, demasiado precisos, demasiado explícitos, para que seja permitido, com a melhor vontade possível, alterar-lhe e desnaturar-lhe o sentido um advogado mesmo perderia tempo e trabalho. O velho Stamply só lhe doou a fortuna na convicção de que o filho morrera o filho vive assim, o pai, nada lhe doou daqui não há que sair. Mas eu desejaria muito saber - prosseguiu com ar triunfante - porque nos entretemos, o senhor e eu, a procurar tão longe desastroso desenlace, se não fosse impossível, quando temos um, ao alcance da mão, tão honroso como infalível. Por pouco que tenha lido dos autores cómicos, de-certo não lhe passou despercebido que todas as comédias acabam pelo casamento, de tal forma, que parece que o casamento foi especialmente instituído para recreio e utilidade dos poetas. O casamento, senhor marquês, é a mola real, é o deus ex-machina, é a espada de Alexandre a cortar o nó górdio. Veja Molière, veja Regnard, veja todos: como se sairiam das suas invenções, se não arranjassem um casamento Em todas as comédias, o que aproxima as famílias divididas o que termina as contendas o que encerra processos, extingue ódios, coroa os amores O casamento, sempre o casamento. E, por Deus se é certo que o teatro é a pintura e a expressão da vida real, quem nos impede, a nós também, acabar com um casamento A menina de La Seiglière é nova, dizem-na encantadora; por seu lado, o senhor Bernardo é novo ainda e, diz-se, suficientemente belo para agradar. Case-me essas duas mocidades: o próprio Molière, nesta aventura, não procuraria outro desenlace.
Ao ouvir tais palavras, a-despeito-da gravidade da situação, o marquês teve tal acesso de hilaridade, que esteve durante cinco minutos na cadeira, de mãos nas ilhargas e a torcer-se, rindo às gargalhadas.
- Por Deus - exclamou por fim - Ha duas horas que estou sobre brazas e devia-me esta distracção. Por quem é, repita o que disse.
- Tenho a honra de repetir-lhe, senhor marquês redarguiu o maligno velho com imperturbável sanguefrio - que o único meio de conciliar neste assunto o cuidado da sua reputação e dos seus interesses é oferecer a menina de La Seiglière em casamento ao filho do seu antigo rendeiro.
Aquele novo golpe, o marquês não se conteve. Aprumou-se na cadeira, levantou-se, deu duas voltas pelo aposento e tornou a sentar-se, presa das convulsões desse riso doentio originado pelas cócegas. Quando se sentiu um pouco mais calmo, exclamou
- Bem me tinham dito que o senhor era um homem hábil, mas estava longe de suspeitar que fosse de tal força. Com a breca Como caminha de-pressa Que relance d'olhos rápido e seguro Que maneira de arranjar as coisas Para ter, na sua idade, chegado a este ponto de saber e de erudição, mestòrfoi metê-lo muito novo na escola. O senhor seu pai de-certo era procurador. Poderia dar lições a Bartolo, e mestre Cuias não era digno de apertar o nó da sua cabeleira. Por Deus
Que poço de ciência A senhora dês Tournelles, quando a passeia ao domingo por Blossac, deve levar bem erguida a cabeça. Senhor jurisconsulto - acrescentou, mudando bruscamente de tom - esqueceu-se de que o mandei chamar para lhe fazer uma consulta e não a pedir-lhe um conselho.
- Meu Deus, senhor marquês - replicou dês Tournelles sem se escandalizar - compreendo perfeitamente que semelhante proposta lhe revolte os nobres instintos. Coloco-me no seu lugar aceito todas as suas repugnâncias, perfilho todas as suas rebeliões. No entanto, se se dignar reflectir um pouco, há de compreender também que há necessidades às quais o mais legítimo orgulho tem de vergar.
- Acabemos com isto! - ripostou o marquês em tom severo que não admitia réplicas, o que não impediu que o velhaco de dês Tournelhes volvesse com firmeza:
- Senhor marquês, o sincero interesse, as vivas simpatias que me inspira a sua posição, a respeitosa afeição que sempre tive pela sua ilustre família, a franqueza e a lealdade bem conhecidas do meu carácter, tudo me impõi o dever de insistir; insistirei ainda que tenha, devido à minha dedicação, de incorrer nas suas troças e nas suas cóleras. Suponha que um dia lhe falta o pé e cai no Clain não seria criminoso perante Deus e perante os homens aquele que, podendo salvá-lo, não lhe estendesse a mão compassiva Pois bem o senhor caiu num abismo mais profundo do que o leito do nosso rio, e eu creio que faltaria a todos os meus deveres se não empregasse, com risco de feri-lo e de magoá-lo, todos os meios humanamente possíveis para tentar arrancá-lo dele.
- Pois - bradou o marquês - deixe-me afogar em paz, já que assim me apetece; prefiro afogar-me com honra em água pura e transparente a lançar mão da desonra e da vergonha para me salvar.
- Esses sentimentos honram-no. Por eles reconheço em si o digno herdeiro de uma raça de valentes. Receio apenas que encare com tintas demasiado sombrias os perigos de um casamento desigual. É conveniente reconhecer que, com razão ou sem ela, as ideas se modificavam singularmente a esse respeito. Senhor marquês, os tempos vão duros. Embora restaurada, a nobreza tende a desaparecer; sob o fictício brilho que acaba de lhe ser dado, tem já a melancolia de um astro que empalidece e declina. Tenho a convicção de que não poderá encontrar o antigo esplendor senão retemperando o sangue com o da democracia, que transborda de toda a parte. Reflecti maduramente sobre o nosso futuro, porque eu também sou fidalgo, e o que prova a que ponto estou penetrado da necessidade em que estamos de nos ligar à canalha, é que me resignei muito recentemente a casar minha filha mais velha com um meirinho. Que quer? A aristocracia de hoje é como um desses metais preciosos que só podem solidificar-se com um grão de liga. Na nossa época um casamento desigual não passa de um pâra-ráios. Degenerar é conseguir um apoio, premunir-se contra a tempestade. Neste momento prepara-se um jogo de vai-vem curioso de observar: dentro de vinte anos, o fidalgo-burguês terá substituído o burguês fidalgo. Deseja conhecer todo o meu pensamento, senhor marquês?
- Não faço grande empenho nisso - disse de La Seiglière.
- Entretanto, vou dizer-lho - replicou com segurança o abominável velhote - Mercê do seu grande nome, da sua grande fortuna, do seu grande espirito, mercê, enfim, das suas grandes maneiras, acontece naturalmente que é pouco querido na região. Tem inimigos qual o homem superior que não os tem Lamentemos o ser deserdado do céu e da terra que não tenha dois ou três. A esse respeito, foi favorecido, tem muitos e como poderia ser de outro modo O senhor não é popular; nada mais natural visto a popularidade em todos os sentidos não ser mais do que o sinete da tolice e a coroa da mediocridade. Em suma: tem a honra de ser odiado.
- Senhor!...
- Tréguas à modéstia! Odeiam-no. Serve de alvo às balas perdidas de um partido cauteloso cuja audácia aumenta de dia para dia, e que ameaça tornar-se a maioria da nação. Guardo para mim o referir-lhe as baixas calúnias que esse partido sem fé nem lei não se cansa de espalhar, como um veneno, sobre a sua vida. Sei muito bem qual o respeito que lhe é devido para que alguma vez aceda em fazer-me eco dessas cobardes e más opiniões. Censuram-no em voz bem alta por haver desertado da pátria no momento em que a pátria estava em perigo acusam-no de ter conspirado contra a França.
- Senhor - replicou o marquês de La Seiglière, com virtuosa indignação - nunca conspirei contra pessoa alguma.
- Acredito, senhor marquês, estou certo disso; todas as pessoas honestas estão, como eu, convencidas disso infelizmente, os liberais nada respeitam, e as pessoas honestas são raras. Apraz-lhes apontá-lo como um inimigo das liberdades públicas; corre o boato de que detesta a Carta; insinuam que tende a restabelecer nos seus domínios os impostos, a vassalagem e qualquer outro direito feudal. Asseguram que escreveu a sua majestade Luiz XVIII para o aconselhar a entrar na câmara dos deputados de botas e esporas, de chicote na mão, como Luiz XIV no seu parlamento afirmam que festeja todos os anos o dia do aniversário de Waterloo; suspeitam de estar filiado na congregação dos jesuítas; enfim, chegam até a dizer que insulta ostensivamente a glória dos nossos exércitos colocando todos os dias na cauda do seu cavalo uma roseta tricolor. E não se fica por aqui, porque a calúnia não se detém em tão belo caminho pretendem que o velho Stamply foi vítima de indigna, captação e que, como prémio dos seus benefícios, o deixou morrer de desgosto. Não queria assustá-lo; no entanto, devo informá-lo do ponto em que se encontram as coisas; se nova revolução estourasse, e só Deus pode saber o que o futuro nos reserva, seria mester darse pressa em fugir mais uma vez, senão, senhor marquês, eu não responderia pela sua cabeça.
- Sabe que isso é uma infâmia - exclamou o senhor de La Siglière, a quem as palavras do satânico velho acabavam de fazer chegar a mostarda ao nariz sabe que esses liberais são uns autênticos patifes. Eu, inimigo das liberdades públicas Adoro-as, às liberdades públicas, e como poderia detestar a Carta se nem sequer a conheço Os jesuítas, mas com a breca se nunca lhes vi a sotaina E o resto, na mesma proporção não me dignarei responder a acusações que partem de tão baixo. Quanto a uma segunda revolução - acrescentou jovialmente o marquês, como os poltrões que cantam para se tranquilizar - calculo que está a troçar.
- Por Deus, não troço - replicou com vivacidade dês Tournelles - O futuro ameaça-nos com grandes borrascas; o céu está carregado de nuvens lívidas; as paixões políticas agitam-se surdamente; o solo está minado debaixo dos nossos pés. Em verdade lhe digo, a menos que não queira ser surpreendido pelo furacão, que vele, vele sem cessar, apure os ouvidos a todos os boatos, esteja dia e noite acautelado, não tenha repouso nem tréguas, nem descanso e depois tenha as malas preparadas a-fim-de só ter de fechá-las ao primeiro trovão que partir do horizonte.
O senhor de La Seiglière empalideceu e olhou aterrado para dês Tournelles, que, depois de haver gosado por alguns instantes com o terror que acabava de lançar no coração do infeliz, volveu:
- Sente agora, senhor marquês, a oportunidade de um casamento desigual Começa a entrever que um casamento entre o filho de Stamply e a menina de La Seiglière seria, da sua parte, um acto de alta e profunda política? Compreende, que, procedendo assim, mudaria as faces das coisas? Suspeitam-no de odiar o povo: dê sua filha-ao filho de um camponês. Assinalam-no como inimigo da nossa juvenil glória adopte um filho do império. Acusam-no de ingratidão: misture o seu sangue com o do seu bemfeitor. Assim, confunde a calúnia, desarma a inveja, chama a seu favor a opinião pública, cria alianças num partido que quer a sua ruína, garante contra o raio a sua cabeça e a sua fortuna, enfim, acabará a sua velhice no seio do luxo e da opulência, feliz, tranquilo, honrado, ao abrigo das revoluções.
- Senhor - volveu o marquês com dignidade - se for preciso, minha filha e eu subiremos ao cadafalso. Pode espalhar-se o nosso sangue: não se maculará enquanto correr nas nossas veias. Estamos preparados; graças a Deus, a nobreza de França tem provado que sabe morrer.
- Morrer nada é; viver é menos fácil. Se o cadafalso estivesse erguido defronte da sua porta, eu tomálo-ia pela mão e dir-lhe-ia: Suba ao céu! Mas daqui até lá, senhor marquês, que maus dias tem de passar!... Pense...
Peço-lhe que não diga nem mais uma palavra disse o marquês de La Seiglière, tirando do bolso do seu calção de setim preto uma bolsinha de rede que meteu subrepticiamente nas mãos do senhor dês Tournelles. - O senhor divertiu-me singularmente - acrescentou o marquês - Há muito tempo que não ria com tanto gosto.
- Senhor marquês - redarguiu dês Tournelles, deixando cair negligentemente a bolsa no chão - estou suficientemente recompensado pela honra que me fez julgando-me digno da sua confiança; de resto, se é verdade que consegui fazê-lo rir, na situação em que se encontra, é o meu mais belo triunfo e sou eu que fico seu devedor. Sempre que lhe apraza recorrer às minhas fracas luzes, a uma palavra sua, virei, demasiado satisfeito se, como hoje, poder fazer descer ao seu espírito alguma confiança e alguma serenidade.
- O senhor é mil vezes bom.
- Porquê Pode não estar aqui em sua casa e não possuir d'ora em diante, de facto, nem castelo, nem parque, nem florestas, nem domínios, nem sequer um cantinho de terra em que possa levantar a sua tenda, é e será sempre para mim o marquês de La Seiglière, maior no infortúnio do que nunca o foi no auge da prosperidade. Sou assim feito: o infortúnio seduz-me, a adversidade atrai-me. Se as minhas opiniões me tivessem consentido, teria acompanhado Napoleão a Santa Helena. Acredite que a minha dedicação e o meu respeito o acompanharão por toda a parte e que encontrará em mim um fiel cortesão da desgraça.
- Por seu lado, esteja persuadido de que o seu respeito e a sua dedicação me serão preciosíssimo socorro e dulcíssima consolação respondeu o marquês, puxando o cordão de uma campainha.
Dês Tournelles levantara-se. Quâsi a retirar-se, parou, circunvagou um olhar complacente e considerou em todas as suas minúcias o luxo do aposento em que se encontrava.
- Estância deliciosa Encantador reduto! - murmurou como que falando consigo - Tapetes d'Aubusson, damascos de Génova, porcelanas de Saxe, armários de Boule, cristais de Bohémia, quadros de valor, objectos d'arte, fantasias encantadoras... O senhor marquês esta aqui como um rei. E este parque E' uma mata -acrescentou, aproximando-se da janela - Deve, na primavera, ao pé do seu fogão, ouvir cantar à noite o rouxinol.
Nesse instante, a porta da sala abriu-se e apareceu um lacaio.
- Jasmim - disse o senhor de La Seiglière, impelindo com o pé a bolsa que ainda jazia no tapete e deixava ver o ouro a reluzir através das malhas como as escamas de um peixe dourado - apanha isso: é um presente que te fez o senhor dês Tournelles. Adeus, senhor dês Tournelles, adeus. Os meus cumprimentos a sua esposa. Jasmim, acompanha esse senhor; deves-lhe essa delicadeza.
Dizendo estas palavras, virou as costas sem mais cerimónia, encobriu-se com um duplo cortinado no vão de uma janela e encostou a testa à vidraça. Já supunha dês Tournelles fora do castelo quando, de repente, o execrável velho, que deslizara como serpente, se pôs em bicos-de-pés e com a boca na aurícula do ouvido disse a meia voz e com ar misterioso:
- Senhor marquês...
- Pois quê - bradou de La Seiglière, voltando-se bruscamente - ainda aqui está?
- Um último aviso é bom: o caso é grave; quer sair dele Case sua filha com Bernardo.
Depois, mandado para o diabo pelo marquês, o senhor dês Tournelles deu uma reviravolta e, acompanhado por Jasmim, que se desfazia em contumélias, de bengala sobraçada, sorridente e esfregando as mãos, esquivou-se, alegre como uma fuinha que sai de um galinheiro, embriagada pela chacina e lambendo os beiços.
Assim, com todo o ar de não tocar ou de tocar ao de leve nas chagas da sua vítima para as curar, dês Tournelles não fizera mais do que envenenálas e pô-las vivo; assim, o senhor de La Seiglière, que antes se sentia já muito doente, acabava de adquirir a certeza de que a sua doença era mortal e que não se salvaria dela. Tal foi o bom resultado dessa memorável consulta: um marquês afogava-se, um jurisconsulto que passou por ali provou-lhe que estava perdido e pôs-lhe uma pedra ao pescoço, depois de, durante duas horas, sob o pretexto de o salvar, o arrastara e rolara pelo lodo.
Ora o coração do marquês não era o único atormentado no vale do Clain. Sem falar da senhora de Vaubert, que não estava precisamente confiada no desenlace da sua empresa, Helena e Bernardo tinham, cada um por seu lado, perdido o sossego e a serenidade da alma. Havia já muito tempo que a menina de La Seiglière se interrogava com inquietação. Porque é que em qualquer das suas cartas ao senhor de Vaubert não se atrevera nunca a falar da presença de Bernardo De certa temera atrair os motejos do moço-barão, que nunca pudera tolerar o velho Stamply. Mas porque é que, com Bernardo, sempre que se tratava do filho da baronesa, nunca ousara falar do seu próximo enlace Por vezes parecia-lhe que enganava um e outro. De que provinha esse vago terror ou essa triste indiferença que sentia, havia algum tempo, à idea do regresso de Raul Que tinham também as suas cartas, que a princípio a haviam distraído, senão encantado, e agora apenas lhe traziam profundo e mortal aborrecimento De que provinha, finalmente, a sensação de cansaço que a tomava sempre que tinha de lhe responder A todas estas interrogativas, o seu raciocínio perdia-se, Não era só o que se passava nela que assim a perturbava compreendia instintivamente que se agitava em sua "volta qualquer coisa de equívoco e de misterioso. A tristeza do pai, o brusco afastamento de Raul, a sua prolongada ausência, a atitude da baronesa, tudo alarmava essa consciência timorata que um sopro bastaria para embaciar. As cores do rosto estavam fanadas os lindos olhos cavavam-se a sua amável disposição alterou-Se. Para se explicar a perturbação e o mal-estar que sentia junto de Bernardo, esforçou-se por odiá-lo reconheceu que fora depois da chegada deste estranho que perdera a calma e a limpidez dos seus anos juvenis acusou-o intimamente de aceitar com humildade demasiada a hospitalidade de uma família que o pai despojara disse consigo que poderia procurar mais nobre emprego da sua coragem e da sua mocidade, lamentou não lhe ver já orgulho e dignidade. Depois, dedicou-se ao senhor de Vaubert com todas as suas forças e com toda a sua coragem, tomando assim a sua consciência como amor e o seu amor como ódio, afastou-se pouco a pouco de Bernardo, renunciou aos passeios pelo parque, deixou de aparecer na sala e viveu retirada no seu quarto. Reduzido à intimidade do marquês e da baronesa, desde que a menina de La Seiglière ali não estava para encobrir com a sua candura, a sua inocência e a sua beleza as astúcias e intrigas de que fora joguete, Bernardo tornou-se sombrio, extravagante, irascível. Foi então que o marquês, com uma resolução que mereceria ser coberta de todos os epítetos que amontoara atabalhoadamente a senhora de Sevigné a respeito do casamento de uma neta de Henrique II com um cadete de Gasconha, se decidiu bruscamente a passar pelas forcas caudinas que dês Tournelles lhe indicara como o único meio de salvação que lhe restava neste vil mundo.
Desde a sua entrevista com o abominável dês Tournelles, o nosso marquês perdera o sono e o apetite. Mercê da frivolidade do seu espírito, a leviandade do seu carácter, pudera conservar até então alguma esperança, alimentar algumas ilusões. Já não eram, é certo, essa boa disposição, essas alegres saídas, essas loucas empresas temerárias que nos divertiam noutros tempos mas ainda conseguia reagir, de longe em longe, e encontrava aqui e ali o entusiasmo, o chiste, a petulância da sua amável e boa índole. Era uma borboleta ferida, mas que ainda batia as asas, quando, sob o pretexto de se livrar de apuros, o terrível jurisconsulto, pegando-lhe delicadamente com os dedos, o encerrara vivo no estojo de bronze da realidade. Desde então começara para o marquês não experimentado martírio. Que fazer que partido tomar Se o orgulho o aconselhava a retirar-se de cabeça levantada, o egoísmo era de opinião contrária se o orgulho tinha razões para se impor, o egoísmo também as tinha no seu saco boas, senão melhores. O marquês envelhecia; a gota minava-o surdamente vinte-cinco anos de exílio e de privações tinham-no curado das heróicas temeridades e de cavalheirescas exaltações da mocidade. A pobreza não lhe agradava, tanto mais, que vivera na sua intimidade sentia o sangue coagular-se-lhe nas veias só à lembrança desse triste e pálido fantasma que vira durante vinte-cinco anos à sua mesa e no seu lar. Para tudo dizer finalmente, conquanto não gostasse tanto dela como de sipróprio, adorava a filha; o coração confrangia-se-lhe dolorosamente à idea de que esta formosa criatura, depois de se haver aclimado ao luxo e à opulência, pudesse recair na atmosfera pálida e gelada que a envolvera no berço. Hesitava conhecemos mais de um que, em caso idêntico tendo sessenta anos e os membros tomados pela gota, sem ter uma filha adorada como desculpa, olharia para trás duas vezes, antes de abandonar uma fortuna como a do marquês. E, contudo, que fazer Para qualquer lado que se voltasse, o marquês de La Seiglière só via ruína e vergonha. A senhora de Vaubert, que só respondia a tais interrogativas com estas palavras É preciso ver, é preciso esperar - não era de molde a tranquilizá-lo. O fidalgo estava pouco satisfeito intimamente com a sua nobre amiga pelo papel nada nobre que ambos desempenhavam havia seis meses. Por outro lado, a nova atitude que de repente tomara Bernardo gelava de terror o marquês. Desde que Helena já não se encantava com a sua presença, os dias arrastavam-se tristemente, as noites mais tristemente ainda. De manhã, após o almoço a que a menina de La Seiglière deixara de comparecer, Bernardo, deixando o marquês entregue às suas reflexões, montava a cavalo e só regressava à tarde, mais sombrio, mais taciturno, mais feroz do que partira. À tarde, depois do jantar, Helena ia quási logo meter-se no quarto, e Bernardo ficava sozinho na sala, entre o marquês e a senhora de Vaubert que, tendo esgotado os recursos do seu espírito e profundamente desanimada, não sabia que inventar para abreviar o curso das silenciosas horas. Bernardo tinha de quando em quando certa maneira de olhar era para um, ora para outro, que os fazia estremecer dos pés à cabeça. Ele, tão paciente enquanto Helena ali estivera para o conter ou para o sossegar com um sorriso, a uma palavra do marquês ou da baronesa, entregava-se a arrebatamentos que aterravam um e outro. Substituira a narrativa pela acção dava batalhas em vez de as descrever e quando se retirava, a maior parte das vezes pálido e frio de cólera, sem sequer apertar a mão do fidalgo, ficando sós a um canto do fogão, o marquês e a baronesa olhavam-se em silêncio.
- Então, senhora baronesa
- Então, senhor marquês, é preciso ver, é preciso esperar - respondia mais uma vez ainda a senhora de Vaubert.
O marquês, com os pés encostados ao fogão e o nariz quase em cima do lume, deixava-se levar por mudos desesperos, os quais a baronesa nem sequer tentava desviá-lo. Esperavam de um dia para o outto uma ordem de despejo em forma. Não era tudo ainda. O senhor de La Seiglière sabia muito bem que era para a região, conforme lhe dissera o senhor dês Tournelles assunto de risota e de troça, ao mesmo tempo que era alvo de ódio e de desprezo. As cartas anónimas, distracção e passatempo da província, tinham acabado de envenenar-lhe a vida já saturada de absinto e de fel. Não passava um dia que não lhe levassem a respirar algumas dessas venenosas flores que crescem e pululam na podridão dos meios pequenos. Uns tratavam-no de aristocrata e ameaçavam-no com a forca; outros acusavam-no de ingratidão para com o antigo rendeiro e de querer deserdar o filho depois de haver cobarde, traiçoeiramente despojado o pai. A maior parte das cartas vinha cheia de desenhos à pena, pequenos quadros de género plenos de graça e de amenidade, que supriam vantajosamente ou completavam agradavelmente o texto. Era, por exemplo, uma forca onde se via um pobre diabo, que de certo figurava um marquês, ou então o mesmo personagem a braços com um instrumento muito usado em 93. Para acréscimo de tantas angústias, o jornal, que o marquês lia assiduamente desde a sua conversa com o d'Aguesseau de Poitiers, regorgitava de predições sinistras e lamentáveis profecias todos os dias o partido liberal era apresentado como um vulcão que devia constantemente fazer voltar a monarquia, apenas restaurada. Assim se confirmavam já e ameaçavam realizar-se todas as palavras do execrável velho. Aterrado, outros o seriam por menos, o senhor de La Seiglière só sonhava com perturbações e revoluções. À noite sentava-se na cama para escutar a brisa que lhe cantava a Marselhesa quando, por fim, quebrado pela fadiga, conseguia adormecer, era para ver em sonhos o horrendo semblante do velho jurisconsulto que entreabria os cortinados e lhe bradava
- Case sua filha com Bernardo. Ora, o marquês não era homem para se conservar por muito tempo em posição tão violenta e que lhe repugnava a todos os instintos. Não tinha a paciência nem a perseverança que são a base das almas enérgicas e dos espíritos fortes. Inquieto, irritado, humilhado, exasperado, farto de esperar e de nada ver, metido num beco sem saída e não sabendo como tirar-se do aperto, apostar-se-ia um contra cem que o marquês dele sairia bruscamente, num relâmpago mas ninguém, nem sequer a senhora de Vaubert, poderia suspeitar que bomba ia rebentar o único que poderia prevê-lo seria dês Tournelles, pois acendera o rastilho.
Numa tarde de abril, a sós com o marquês, a senhora de Vaubert estava calada e via com ar francamente preocupado as linhas cintilantes que corriam pelas brazas meio consumidas. Ser-lhe-ia fácil, observando-a, constatar que surda inquietação lhe pesava na alma. O seu olhar estava vítreo, a fronte carregada de aborrecimentos a garra adunca do egoísmo prestes a ser esmagado vincava e contraía-lhe a boca, noutros tempos fresca e sorridente. Essa mulher tinha, para dizer a verdade, graves motivos para sustos. A situação tomava de dia para dia mais desesperador carácter, e a senhora de Vaubert principiava a perguntar a si-própria se não seria ela quem se veria apanhada no próprio laço. Decididamente, Bernardo estava em casa dele, e, embora ela não tivesse perdido ainda toda a esperança, embora não tivesse ainda, como se diz, aberto mão de tudo, prevendo, no entanto, que uma hora viria em que o senhor de La Seiglière e a filha seriam obrigados a abandonar a praça, a baronesa já esboçava um plano de combate que deveria seguir no caso de que as coisas se resolvessem tão fatalmente quanto era permitido recear. Não admitindo que o filho desposasse a menina de La Seiglière, sem outro dote além da sua mocidade, da sua graça e da sua beleza, procurava já o meio que deveria adoptar para desligar, junto de Helena e do pai, a palavra e a mão de Raul. Tal era, havia já algumas semanas, o assunto inconfessado das suas íntimas preocupações. Enquanto a senhora de Vaubert estava mergulhada nessas reflexões, sentado do outro lado do fogão o marquês, calado como ela, perguntava de si para si de que modo ia encetar a batalha que estava a ponto de travar-se, como devia proceder, com respeito a Raul e a mãe, para se desligar da palavra e da mão de Helena. -Pobre marquês! -pensava a baronesa, examinando-o de quando em quando às fartadelas. - Se é preciso chegar a este ponto, que terrível golpe não vai Sofrer Conheço-o consola-se ao pensar em que haja o que houver a filha será baronesa de Vaubert. É certo que me ama há perto de vinte anos que se compraz na idea de apertar a nossa intimidade, e de consagrar--se algum modo pelo enlace de nossos filhos. Onde poderei conseguir ânimo para afligir coração tão terno e tão dedicado, para lhe arrancar a derradeira ilusão Prevejo já lutas encarniçadas, recriminações amargas. Nos seus arrebatamentos não deixará de acusar-me de lhe haver namorado a fortuna e de lhe virar as costas na adversidade. Serei forte contra ele e contra mim mesma saberei levá-lo a compreender que seria insensato unir as nossas duas pobrezas, desumano condenar a sua raça e a minha aos daninhos cuidados de eterna mediocridade. Acalmar-se-á gemeremos juntos confundiremos os nossos pesares e os nossos prantos' Virão depois a dor de Helena e as revoltas de Raul. Ah essas duas crianças adoram-se, Deus criara-os um para o outro. Nós os chamaremos à razão. Ao cabo de seis meses estarão conformados. Raul desposará a filha de algum opulento vilão, de-veras satisfeito por enobrecer o seu sangue e de polir os seus escudos. Quanto ao marquês está muito ufano pelos seus avôs e demasiado aferrado às suas velhas ideas para alguma vez consentir em enriquecer à custa de um casamento desigual Pois que está agarrado aos pergaminhos, procuraremos para Helena qualquer morgado dos arredores e mandarei envelhecer o bom marquês para casa do genro.
Assim raciocinava a senhora de Vaubert, vendo as coisas pelo lado pior. Contudo, estava ainda longe de largar a presa. Conhecia Helena, estudara Bernardo. Se não suspeitava do que se passava no coração da jovem - nem a própria menina de La Seiglière o suspeitava - a baronesa soubera ler no coração do mancebo, fora mais além do que ele no segredo das suas agitações. Compreendia vagamente que se podia tirar partido do contacto daquelas duas nobres almas sentia que havia aí qualquer coisa a encontrar, um incidente, um choque a provocar, uma ocasião a fazer nascer. Mas qual Como A razão perdia-se e o seu engenho vencido, mas não rendido, indignava-se com a sua impotência.
- Pobre baronesa - pensava consigo o marquês, lançando-lhe de vez em quando um tímido e furtivo olhar
- nem sequer desconfia do golpe que vou vibrar-lhe. É, sem dúvida alguma, um coração amável e fiel, uma alma leal e sincera. Tenho a convicção de que em tudo isto ela só quis a minha felicidade; iria jurar que, com respeito a si-própria, só tem como única ambição ver o seu Raul desposar a minha Helena. Houvesse o que houvesse, seria solícita em acolher-nos, a mim e a minha filha, no seu pequeno solar e dar-se-ia por feliz em partilhar conôsco do seu modesto bem-estar. Que seu filho despose uma La Seiglière, será sempre bastante para o seu orgulho, bastante para a sua felicidade. Querida e meiga amiga Como se me tornaria agradável, por meu lado, realizar tão encantador sonho, findar os meus dias junto dela. Ao saber que temos de renunciar a isso a esperança por largo tempo acariciada, desatará em sangrentas censuras, talvez merecidas.
No entanto, em boa consciência, seria razoável e prudente expor nossos filhos aos rigores da pobreza, acorrentar-nos, de parte a parte, por um liame de ferro que mais tarde ou mais cedo nos feriria, que acabaríamos por maldizer A baronesa é cheia de sensatez e de juízo acalmados os primeiros rompantes, tudo compreenderá e resignar-se-á: e, como aos Vaubert não agradam os casamentos desiguais, então, Raul é bonito rapaz e conseguir-lhe-emos com facilidade, nos arredores, alguma rica viúva que se dará por muito feliz em ter, à custa da sua fortuna, uma segunda primavera na vida.
Era este o seu raciocínio, mas, para tudo dizer, o marquês estava sobre brazas sentir-se-ia mais à vontade sobre monte de espinhos do que naquele salão, no estofado da sua poltrona. Temia tanto a senhora de Vaubert como uma revolução tinha a consciência das suas traições; à idea da tempestade que ia afrontar, sentia desfalecer-lhe o ânimo. Enfim, com desesperada resolução, tomou coragem às mãos ambas, e iniciou o combate, como atirador, com alguns tiros isolados e muito intervalados.
- Sabe, senhora baronesa - bradou de repente o marquês como homem pouco habituado a este género de escaramuças - que este Bernardo é realmente um rapaz bem extraordinário? Este rapaz agrada-me. Vivo como pólvora, pronto como a sua espada, arrebatado, mesmo colérico, mas leal e franco como o ouro Não é precisamente bonito, mas gosto daquele semblante másculo Que olhos Que testa Possui o nariz das raças régias. Queria saber onde é que o simpático moço foi buscar aquele nariz. E sob o seu escuro bigode, não observou a finura e o encanto da boca Deus me perdói! É uma boca de marquês Tem espírito, distinção; ainda um pouco brusco, um pouco rude, mas já polido, quási transfigurado desde que vive entre nós. É assim que o ouro em bruto se depura no cadinho. E depois, que diabo! é um herói; é da massa de que o imperador fazia duques, príncipes e marechais. Ainda o vejo no Orlando que sangue-frio, que coragem, que intrepidez
Olhe, baronesa: não posso ocultar-lho não me sinto humilhado quando a mão dele aperta a minha.
- De quem fala, marquês - perguntou indolentemente a senhora de Vaubert, sem interromper o curso das suas mudas reflexões.
- Do nosso jovem amigo - respondeu o marquês com complacência - do nosso jovem chefe de esquadrão.
- E diz...
- Que a natureza tem estranhas aberrações e que este rapaz devia ter nascido fidalgo.
- O pequeno Bernardo
- Podia muito bem dizer o grande Bernardo - exclamou o marquês, metendo as mãos nos bolsos do calção.
- Perde a cabeça, marquês - replicou concisamente a senhora de Vaubert, que recuperou a sua atitude grave e pensativa.
Animado por tão bom resultado, como os prudentes guerreiros que, depois de haverem disparado o arcabuz, se ocultassem atrás de uma árvore para o tornarem a carregar com toda a segurança, o marquês ficou queto; houve ainda demorado silêncio, perturbado apenas pelo trilar do grilo que cantava junto do fogão e pela crepitação da braza que acabava de consumir-se.
- Senhora baronesa - bradou bruscamente o senhor de La Seiglière - não lhe parece que fui um pouco injusto para com o bondoso Stamply Devo confessar-lhe que a esse respeito a minha consciência não se encontra perfeitamente tranquila. Parece que, decididamente, esse excelente homem nada me restituiu, deume tudo. Se assim é, sabe que é um dos mais belos rasgos de dedicação e generosidade que a história deve registar nos seus anais Sabe, minha senhora, que esse velho Stamply era uma grande alma e que eu e minha filha devemos erguer altares à sua memória
Demasiado enfronhada no seu egoísmo para poder sequer inquietar-se em saber aonde é que o marquês queria chegar, a senhora de Vaubert encolheu os ombros e não respondeu.
O marquês de La Seiglière principiava a desesperar de encontrar o ponto fraco quando se lembrou muito a propósito da lição de dês Tournelles. Estendeu a mão para um velador de laca, tomou um jornal e, fingindo percorrer-lhe as colunas, perguntou com ar distraído:
- Senhora baronesa, tem lido nestes últimos tempos os jornais
- Para quê - replicou a senhora de Vaubert, com ligeiro gesto impaciente - Em que quer que essas tolices me interessem
- Pela espada de meus avós, minha senhora! bradou o marquês, deixando cair o jornal - Fala bem Concordo em que sejam tolices; as tolices que quiser, mas, com a breca, ou eu não sou quem sou ou essas tolices nos interessam, a si e a mim, muito mais do que pode supor.
- Ora, vejamos, marquês, o que aconteceu - perguntou a senhora de Vaubert com ar aborrecido - Sua majestade digna-se gosar da mais perfeita saúde; os nossos príncipes caçam dansa-se na corte; o povo sente-se feliz, a canalha tem a barriga cheia: o que existe em tudo isso que nos possa alarmar
- Ha trinta anos falávamos da mesma maneira redarguiu o marquês abrindo a caixa do rapé e mergulhando nela delicadamente o indicador e o polegar A canalha tinha a barriga cheia, os nossos príncipes caçavam, dansava-se na corte e sua majestade passava maravilhosamente, o que não impediu que, numa bela manhã, o velho trono de França estalasse e caísse, arrastando-nos na sua queda e enterrando-nos, mortos ou vivos, debaixo dos seus escombros. Pergunta-me o que acontece O que então aconteceu: estamos sobre um vulcão.
- O marquês está doido - volveu a senhora de Vaubert que, toda entregue às suas preocupações, mediocremente convencida então da oportunidade de uma discussão política entre as onze e a meia-noite, não julgou dever dar-se ao trabalho de levantar e combater as opiniões do velho fidalgo.
- Repito-lhe, senhora baronesa, que estamos sobre um vulcão. A revolução não morreu; é um fogo mal extinto que mina debaixo das cinzas. Ha de vê-lo um belo dia estalar e consumir os restos da monarquia. E' um antro onde se reúne uma chusma de vadios que se dizem representantes do povo; é uma mina aberta debaixo do trono e que o fará saltar como uma péla. Os liberais descendem dos sans-culottes; o liberalismo acabará o que principiou o 93. Resta saber se ainda nos deixaremos esmagar mais uma vez sob as ruinas da realeza ou se procuraremos a salvação no próprio seio das ideas que ameaçam engulir-nos.
- Ora, marquês, bem se trata agora disso - replicou a baronesa - Preocupa-se com um incêndio imaginário e não vê a sua casa a arder.
- Senhora baronesa - replicou o marquês - não sou egoísta, posso dizer alto e bom som que o interesse pessoal nunca foi o meu fraco nem a minha divisa. Que a minha casa arda ou não, pouco me importa. Não é de mim que se trata aqui, é do futuro de todos nós. Quem se importa, de facto, que a raça dos La Seiglière se extinga silenciosamente no esquecimento e na obscuridade O que importa, minha senhora, é que a nobreza de França não pereça.
- Estou com curiosidade de saber como é que o senhor procederá para que a nobreza de França não pereça
- redarguiu a senhora de Vaubert que, a cem léguas de suspeitar do fim a que tendia o marquês, não pudera deixar de sorrir ao ver aquele espírito frívolo abordar desvairadamente considerações tão árduas e tão perigosas.
- Grave questão que pude levantar, mas que me não compete resolver - tornou o senhor de La Seiglière que, sentindo-se finalmente em bom caminho, continuou em passo mais firme e logo tomou atrevido galope - No entanto, se me fosse permitido emitir algumas ideas sobre tão importante assunto, diria que não é isolando-se nas suas terras e nos seus castelos que a nobreza poderá recuperar a preponderância que tinha noutros tempos nos destinos da nação. Talvez ousasse acrescentar - mas baixinho - que as nossas velhas famílias se aliaram muita vez entre si; que, por não ser renovado, o sangue patrício está gasto; que, para reencontrar a força, o calor e a vida, prestes a escapar-selhe, há necessidade de se misturar ao sangue mais moço, mais quente, mais vivaz do povo e da burguesia; enfim, senhora baronesa, procuraria demonstrar que, visto como o século caminha, devemos caminhar com ele, sob pena de ficar pelo caminho ou de ser esmagado no atoleiro. É duro de pensar, mas é, contudo, preciso ter a coragem de reconhecê-lo os gauleses arrebatam-nos, os francos só poderão esperar salvar-se com a condição de se ligarem aos partidos vencedores e recrutarem-se nas suas fileiras.
Aqui, a senhora de Vaubert, que, logo às primeiras palavras deste discursozinho, se virara um pouco para o lado do orador, encostou-se ao braço da poltrona em que estava sentada, e pareceu escutar o marquês com curiosa atenção.
- Quer saber, baronesa - prosseguiu o marquês de La Seiglière, seguro enfim do seu auditório - quer saber o que no outro dia me dizia o célebre dês Tournelles, um dos espíritos mais vastos, mais esclarecidos da nossa época? Senhor marquês - me dizia esse grande jurisconsulto - os tempos vão maus; adoptemos o povo para que ele nos adopte; desçamos até ele para que ele suba até nós. A nobreza de hoje é como esses metais preciosos que só podem solidificarse combinando-se com um grão de liga. - Pensamento tão profundo, que até quase me causou vertigens. À força de o meditar descobri a verdade no fundo. Verdade cruel, concordo mas mais vale ainda, à custa de certas concessões, garantir-nos a conquista do futuro, do que ocultarmo-nos ou enterrarmo-nos sob a morte de um passado que nunca mais voltará. Com a breca! apostrofou, levantando-se e dando grandes passadas pela casa - ha muito que nos apresentam aos olhos de toda a região como uma casta incorrigível, repelindo do seu seio tudo quanto não seja ela, enfatuada pelos seus títulos, nada tendo aprendido, nada tendo esquecido, cheia de arrogância e de insolência, inimiga da igualdade. Chegou o momento de acabar com essas calúnias e essas tolas acusações; misturemo-nos com a multidão, abramos-lhe a porta de par-em-par, e que os nossos inimigos aprendam a respeitar-nos aprendendo a conhecer-nos Ao proferir estas palavras, o senhor de La Seiglière, aterrado com a sua própria audácia, olhou timidamente para a senhora de Vaubert e tomou a atitude de um homem que, depois de haver acendido o rastilho da pólvora que deve fazer saltar uma mina, não tem tempo de fugir e se prepara para receber um bocado de rocha na cabeça. Deu-se precisamente o contrário. A baronesa, que tinha fraca opinião a respeito do seu velho amigo para não desconfiar da sua candidez e da sua probidade, estava aliás de-veras preocupada consigo mesma para suspeitar de que neste baixo mundo pudesse existir naquela hora outro eu que não fosse ela outro interesse que não fosse o seu. Sem sequer pensar donde vinham o marquês vistas tão novas e tão ousadas, a senhora de Vaubert a princípio não viu nem compreendeu senão uma coisa; foi que o marquês lhe descerrava um pouco a porta por onde Raul poderia escapar-se um dia, se houvesse necessidade disso.
- Marquês - replicou com solicitude - o que disse é cheio de senso; e embora nunca tivesse duvidado do seu elevado critério, embora sempre suspeitasse, sob a graça das suas aparências, de um espírito sério e reflectido, no entanto, devo concordar que fiquei tão surpreendida como encantada por encontrá-lo numa ordem de ideas tão elevadas e tão judiciosas. Dou-lhe os meus parabéns.
Ao ouvir estas palavras, o marquês ergueu a cabeça e olhou para a senhora de Vaubert com a aparência de um homem a quem acabam de atirar à cara com um punhado de rosas em vez de uma carga de metralha que esperava receber. Demasiado egoísta, por seu lado, para nada supor da sua pessoa, longe de notar a aprovação da baronesa, só pensou em rejubilar-se.
- É um pouco a história de todos - replicou jovialmente, afagando o queixo com adorável fatuidade
- Porque possuímos alguma graça, os pedantes e os pretensiosos vingam-se da superioridade das nossas maneiras negando-nos inteligência. Quando nos dignarmos misturar, provaremos que todos os campos de batalha são bons para nós, ver-nos-ão empregar a palavra e o pensamento como antigamente a espada e a lança.
- Marquês - redarguiu a senhora de Vaubert, que teimava em manter a conversa no pé em que ficara para voltar às considerações que há pouco o marquês fazia - é certo que será uma vez uma nobreza, se, em vez de criar alianças, continuasse, como excelentemente disse, a isolar-se nas suas terras e a confinar-se no seu orgulho. É um edifício cambaleante, que ruirá de um dia para o outro, se não tivermos a arte e a habilidade de transformar os aríetes, que o abalam, em arcos-abobadados que o sustentem. Por outros termos, passe a imagem, embora um pouco crua, para nos preservar dos ataques do povo, só nos resta inocularmo-nos dele.
- É isso, exactamente! - bradou o senhor de La Seiglière cada vez mais alegre por não encontrar a oposição que receava - Decididamente, a baronesa é admirável Compreende tudo; nada a surpreende, nada a comove, nada a espanta. Tem o olhar de águia; fitaria o sol de face sem ficar deslumbrada. Pobre baronesa!
- acrescentou mentalmente, esfregando as mãos - a-pesar-de todo o seu espírito, é ela que vem meter-se na ratoeira.
- Este bom marquês - pensava por seu turno a senhora de Vaubert - Não sei que bicho lhe mordeu, mas o atrevido ptéga-me uma bela partida: acaba de lançar a rede em que, em caso de necessidade, mais tarde há de ser apanhado. Marquês - disse em voz alta - há muito que eu tinha essas ideas; confesso, porém, que temia, ao dar-lhe parte delas, irritar-lhe as susceptibilidades e alienar-me o seu coração.
- Que diabo! - replicou o marquês - Mas que má opinião forma sobre o seu velho amigo, baronesa! De resto, além de ter em vista a nossa santa causa, não há prova alguma a que não possa submeter-me e resignar-me; devo dizer-lhe que não sentirei, por meu lado, repugnância alguma em dar o exemplo sendo o primeiro a aventurar-me no único caminho de salvação que se nos oferece. Sempre dei o exemplo; fui eu o primeiro a emigrar. Outros tempos, outros costumes Eu não sou o marquês de Carabas Caminho com o meu século. O povo ganhou as suas esporas e conquistou os seus títulos de nobreza; também possui os seus ducados, os seus condados, os seus marquesados; é Eylau, é Wagram, é Moscovo; esses pergaminhos valem bem os outros! De resto, senhora baronesa, desculpo os seus escrúpulos e aceito as suas hesitações, porque eu próprio levei muito tempo em abrir-me consigo, pois temia ferir os seus preconceitos e declarar guerra a tão fiel amiga.
- É curioso - disse consigo a senhora de Vaubert que começava a arrebitar as orelhas - Onde é que o marquês quer chegar Ferir os meus preconceitos - exclamou em voz alta - Toma-me pela baronesa de Prefintaille Já me ouviu alguma vez recusar reconhecer o que há de grande, de nobre, de generoso no povo Já me ouviu alguma vez denegrir a burguesia Não sei eu que é no seio da plebe que estão hoje refugiados os sentimentos, os costumes e as virtudes da idade do ouro
- Oh, oh, oh - pensou o marquês, a quem a reflexão começara a aparecer - nada disto é claro e nesta rocha deve ocultar-se alguma serpente.
- Quanto a declarar-me guerra a sério, marquês, temia-o - acrescentou a senhora de Vaubert - É porque então presumira tão mal do meu coração como do meu espírito. Bem sabe, amável amigo, que não sou egoísta. Quanta vez não estive a ponto de lhe restituir a sua palavra, ao pensar que em troca da opulência que lhe traria sua filha, meu filho lhe daria um grande nome, o mais pesado de todos os fardos
- Ora - disse consigo o marquês - esta astuta baronesa não procuraria desligar-se do compromisso da mão do filho ao pressentir a minha próxima ruína Baronesa - prosseguiu, dirigindo-se à senhora de Vaubert - esta absolutamente como eu. Muitas vezes me acusei de entravar o futuro do senhor de Vaubert; pergunto agora amiudadamente com terror se minha filha não será um obstáculo ao destino desse nobre mancebo.
- Ora - pensou a senhora de Vaubert, que via desenhar-se na bruma a margem onde o marquês queria aproar o barco - este manhoso marquês pretenderia experimentar-me Cumulado pelas minhas bondades, seria realmente infâmia demasiada Certamente, marquês - continuou, dirigindo-se a ele - custar-me-ia quebrar laços tão encantadores entretanto, se o seu interesse o exigisse, poderia imolar o mais doce sonho de toda a minha vida.
- A reviravolta deu-se - pensou o marquês - Estou logrado, mas pouco importa. Simplesmente deveria esperar semelhante rasgo de perfídia da parte de uma amiga de trinta anos Vá lá a gente fiar-se no desinteresse das afeições e na gratidão das mulheres Baronesa - replicou com um sentimento de dolorosa resignação - se fosse mester renunciar à esperança de unir algum dia estas duas crianças, o meu coração não mais se refaria; pois basta-me pensar nisso para me sentir confrangido. Contudo, atendendo a si, nobre amiga, atendendo ao seu bem amado filho, não há sacrifícios que estejam abaixo da minha abnegação e da minha dedicação.
A senhora de Vaubert abafou no seu coração um rugido de leoa ferida; após um instante de feroz silêncio, fitando de repente no velho fidalgo cintilante olhar, se
- Olhe bem para mim, marquês.
Ao tom com que foram proferidas estas palavras, como lebre que trota pela charneca e que, de focinhe no ar, nota a curta distância o caçador que a espreita, o marquês estremeceu e olhou para a senhora de Vaubert com ar assustado.
- O marquês não passa de um velhaco
- Baronesa
- É um traidor
- Com os diabos, minha senhora
- É um ingrato
Aterrado, fulminado, o senhor de La Seiglière ficou mudo e pregado no seu lugar. Depois de haver gosado alguns instantes do seu pasmo e do seu terror, a senhora de Vaubert disse por fim.
- Tenho dó de si. Quero poupar-lhe a humilhação de uma confissão que não poderia fazer sem morrer de vergonha a meus pés. Resolveu casar sua filha com Bernardo.
- Minha senhora...
- Resolveu casar sua filha com Bernardo - repetiu, autoritária, a senhora de Vaubert - Vi germinar e florescer sob o adubo do seu egoísmo essa resolução há perto de um mês que assisto, sem que o marquês o percebesse, ao trabalho que se faz em si. Como julgou poder representar comigo como mais fino e mais hábil Como é que não compreendeu que com semelhante jogo perderia a partida Esta tarde, logo à primeira palavra que pronunciou, se traiu. Há um mês que eu o observava, o espreitava, o via surgir. Assim, marquês, enquanto o meu espírito, ao qual repugnavam os rodeios, se esgotava para si só em combinações de iodo o género enquanto sacrificava ao cuidado dos seus interesses os meus gostos, os meus instintos, até a rectidão do meu carácter, o senhor, desprezando a fé jurada, tramava contra mim a mais negra das perfídias; conspirava para entregar ao seu inimigo a noiva de meu filho e a praça que eu defendia meditava empregar um golpe de Jarnac ao campião que combatia por si
- Vai longe de mais, baronesa - replicou o marquês, confuso como um pescador que fosse apanhado na própria rede - Nada resolvi, nada decidi: apenas, concordo, desde que sei que o bom do Stamply nada me restituiu, pois que tudo me deu, sinto-me curvado ao peso do reconhecimento e como, dia e noite, mato a cabeça e o coração para encontrar a maneira por que poderíamos, eu e minha filha, pagarmos à memória desse generoso velho, é possível que me acudisse essa idea...
- O marquês curvar-se ao peso do reconhecimento - redarguiu a senhora de Vaubert, interrompendo-o com violência - A menos que não queira que eu ria, não me conte essas coisas. Conheço-o, é um ingrato. Importa-se tanto com a memória do velho Stamply como se importou com a sua pessoa. De resto, nada lhe deve: é a mim que tudo deve. Se não fosse eu, o seu antigo rendeiro morreria sem sequer se lembrar de que o senhor existia. Se não fosse eu, o marquês e a sua filha tiritariam agora ao canto do pequeno fogão da Alemanha. Se não fosse eu, nunca teria voltado a pôr os pés no castelo dos seus antepassados. O senhor sabia-o muito bem, mas fingia ignorar, porque, mais uma vez, o senhor é um ingrato. Olhe. marquês cartas na mesa e jogo franco. Não é o reconhecimento, é o egoísmo que o mantém. Enraivece-o casar sua filha com o filho do seu antigo rendeiro; empalideceu, emagreceu, secou ao pensar em tal. Odeia o povo, odeia Bernardo; nada percebe, não percebeu o movimento que se fez e se faz ainda à nossa volta. Está mais altivo, mais orgulhoso, mais teimoso, mais atrasado, mais infestado de aristocracia, mais incorrigível, numa palavra, do que um marquês de canção, de opereta e de comédia. É o que disse marquês de Carabas mas possui ainda mais egoísmo do que orgulho.
- Pois bem, com a breca! Pense tudo o que quiser - exclamou o marquês, atirando com as conveniências para trás das costas - O que sei é que estou farto do papel que me faz representar; é que desde muito tempo o coração se revolta; é que estou indignado com tantas astúcias e baixas manobras; é que quero acabar com isto a todo o custo. Com os diabos, sim, como disse minha filha desposará Bernardo.
- Acautele-se, marquês, tome cuidado
- Cubra-me com os seus desprezos e as suas cóleras; trate-me de velhaco e de ingrato, lance-me em rosto os epítetos de egoísta e de traidor; pode fazê-lo, assiste-lhe esse direito. É tão desinteressada, senhora baronesa Em todo este caso tem-se mostrado tão franca, tão leal! No fim dos seus dias foi tão boa para o pobre velho Stamply! Rodeou-lhe a velhice de tantos cuidados, ternura e respeitos! Em boa consciência devia-lhe isso, porque foi a senhora que o levou a despojar-se de todos os seus bens.
- Era para si, cruel
- Para mim, para mim! - volveu o marquês, meneando a cabeça - Senhora baronesa, a menos que não queira que me ria, deixe esses contos em paz.
- Assenta-lhe bem acusar-me de ingratidão - tornou com altivez a senhora de Vaubert - o senhor donatário, que encheu de amargura o doador!
- Eu nada sabia; mas a senhora, que tudo sabia, foi impiedosa.
- Foi o senhor - bradou a baronesa - quem expulsou o bemfeitor da sua mesa e do seu lar
- Foi a senhora- exclamou o marquês - quem, depois de haver captado a confiança de um velho crédulo e sem defesa, o repeliu com o pé e o deixou morrer de desgosto.
- Relegou-o para a ante-câmara
- Cavou-lhe a sepultura
- É a guerra, marquês.
- Pois bem Seja a guerra - bradou o marquês Ao menos não morrerei sem a ter feito uma vez
- Pense nisso, marquês: a guerra implacável, a guerra sem tréguas, a guerra sem perdão
- Uma guerra de morte, senhora baronesa - respondeu o marquês, osculando-lhe a mão.
A estas palavras, a senhora de Vaubert retirou-se ameaçadora e terrível, enquanto o marquês, só, pulava de alegria, como um cabrito na sala. De regresso ao solar, depois de haver caminhado pelo quarto, batendo na testa e apertando o peito de raiva, abriu de repente a janela e, como uma gata que espreita um rato, caiu em demorada contemplação ante o castelo de La Seiglière, sobre o qual a lua incidia fazendo-lhe cintilar todos os vidros. A-pesar-da frescura da noite, conservou-se, perto de uma hora, encostada à janela em profunda meditação. De súbito as faces resplandeciam, os olhos iluminavam-se-lhe e, como Ajax ao ameaçar os deuses, lançando para o castelo um gesto de desafio, exclamou:
- Hei de possuí-lo
Dito isto, a baronesa escreveu a Raul este vocábulo único Volta. Depois, quando se deitou, adormeceu num sorriso, o sorriso que deve ter o génio do mal quando resolve a perda de uma alma.
A datar daquela memorável noite, a senhora de Vaubert não voltou ao castelo, e o castelo deu-se bem com isso. Durante os poucos dias que decorreram até ao desenlace desta história, estabeleceram-se entre Bernardo e o marquês relações mais suaves do que haviam sido as primeiras. Como não estava irritado pela presença da baronesa contra quem Bernardo nutrira, mesmo sem querer, um vago sentimento de desconfiança e uma surda cólera, o mancebo tornou-se mais familiar e mais acessível por seu lado, havia algumas semanas, o marquês tomara, pouco a pouco, para com o seu hóspede, uma atitude mais cordial, mais afectuosa, mais terna. Ambos pareciam ter modificado, por comprazer, as suas opiniões e a sua linguagem. À noite, junto do fogão, conversavam, discutiam, mas não disputavam. De resto, desde a desaparição da senhora de Vaubert, as suas conversas tinham um tom menos político e mais íntimo. O marquês falava das alegrias da família, das felicidades do casamento às vezes deixava escapar palavras que faziam estremecer Bernardo e lhe passavam pelo coração como quentes baforadas de felicidade.
Aconteceu que uma noite, o senhor de La Seiglière exigiu meigamente que a filha ficasse na sala, em vez de se retirar para o quarto. Dissipado o constrangimento dos primeiros instantes, essa noite decorreu em horas encantadas o marquês mostrou-se espirituoso, amável, estouvado.
Bernardo, feliz e triste; Helena, sonhadora, silenciosa e sorridente. Na manhã seguinte, os dois jovens encontraram-se no parque o encanto recomeçou, mais inquieto, é verdade, do que fora a princípio, mais velado, por conseguinte mais encantador.
Entretanto, como tratar o assunto com respeito a Helena Por que caminhos curvos levá-la ao fim desejado Por coisa alguma do mundo, o marquês consentiria em revelar-lhe a humilhante situação em que se encontravam havia seis meses, ela e ele, para com Bernardo. Conhecia bem de mais a nobre e altiva criatura, sabia muito bem com que alma tinha de haver-se. Era contudo essa alma honesta e simples que se tratava de tornar cúmplice do egoísmo e da traição.
Um dia estava o senhor de La Seiglière mergulhado nessas reflexões, quando sentiu dois braços carinhosos cingirem-lhe o pescoço ao levantar os olhos avistou, como lírio pendente sobre a sua cabeça, o rosto de Helena que o fitava a sorrir. com um movimento de brusca ternura, apertou-a ao peito e teve-a por muito tempo abraçada, cobrindo-lhe de carícias e de beijos os louros cabelos. Quando ela se lhe libertou dos braços, Helena viu duas lágrimas rolarem dos olhos do pai que nunca chorava.
- Meu pai - exclamou ela, ao tomar-lhe efusivamente as mãos - tem desgostos que oculta de sua filha. Sei, tenho a certeza; não é de hoje que o noto. Que tem, meu pai Em que coração, se não for o meu, confiará as angústias do seu Já não sou a sua bem amada filha Quando ambos vivíamos no fundo da nossa pobre Alemanha, bastava-me sorrir-lhe para ficar consolado. Fale, meu pai. Em nossa volta passa-se qualquer coisa de estranho, de inexplicável. Que é feito dessa amável jovialidade que me alegrava a alma Está triste a senhora de Vaubert parece inquieta, eu própria ando agitada e sofro porque de-certo sinto que sofre. Por que sofre Se a minha vida nada pode, não diga.
Ao ver assim a vítima oferecer-se espontaneamente no altar do sacrifício, o marquês não se conteve àquelas acentuações tão verdadeiras, àquela voz tão encantadora e tão meiga, a velha criança desatou a chorar encostada ao peito de Helena desvairada.
- Meu Deus Que se passa De todas as desgraças que possam atingi-lo, não há uma única que seja maior do que o meu amor - exclamou a menina de La Seiglière, que caiu nos braços do pai, também debulhada em pranto.
Embora sinceramente comovido e verdadeiramente enternecido, o marquês julgou belíssima a ocasião para não a deixar fugir, e o negócio bem entabolado merecia ser aproveitado. Num momento, esteve prestes a dizer tudo, a confessar tudo a vergonha reteve o e também o receio de ferir o orgulho de Helena, que não deixaria de revoltar-se ao primeiro vislumbre do papel que lhe reservavam para o desenlace daquela aventura. Preparou-se uma vez mais para rodear a verdade, em lugar de encará-la de frente. Não que esta maneira de proceder estivesse precisamente na índole do seu carácter muito longe disso; mas o marquês não estava no seu ser. A senhora de Vaubert tinha-o levado por um caminho funesto donde dóra em diante só podia sair senão com astúcia e habilidade. Uma vez fora da estrada real, somente se pode voltar para lá atravessando campos e seguindo por atalhos. Depois de haver enxugado as lágrimas da filha e de se haver refeito de tão viva comoção, principiou por tornar a fazer, com algumas variantes, a cena que representara com a baronesa: porque, bom é reconhecê-lo, não era, como a senhora de Vaubert, imaginação fértil em expedientes no entanto, mercê das lições que recebera nos últimos tempos, o marquês tinha já mais de um estratagema no seu saco. Lamentou o rigor e a inclemência dos dias lastimou os destinos da aristocracia que representava, imagem tão nova como original, por um navio constantemente batido lpela onda revolucionária. Aproveitando a ignorância de Helena, que sempre vivera fora das preocupações da coisa pública, pintou com sombrias cores, a incerteza do presente, as ameaças do futuro. Empregou todos os tesouros do vocabulário então em uso fez desfilar todos os espectros e todos os fantasmas que os jornais ultra-realistas expediam cintados, todas as manhãs, aos seus assinantes o solo estava minado, o horizonte estava carregado de tempestades a hidra das revoluções levantava as suas sete cabeças; o grito guerra aos castelos ia soar de um momento para o outro o povo e a burguesia, como duas hienas devoradoras, esperavam pelo sinal para caírem sobre a nobreza sem defesa, saciar-se com o seu sangue e dividir os despojos. Não havia a certeza de que Robespierre estivesse bem morto; corria o boato de que o papão de Córsega fugira da sua ilha. Enfim, pôs em jogo e amontoou tudo o que julgou aterrar uma juvenil imaginação. Depois de tudo dito, a menina de La Seiglière perguntou com um sorriso calmo e sereno
- É só isso, meu pai Se o solo está minado debaixo dos nossos pés, se o céu está negro, se a França, como diz, nos detesta e quer a nossa ruina, que fazemos aqui Partamos, voltemos para a nossa querida Alemanha vamos viver para lá como antigamente, pobres, ignorados e em sossego. Se se grita guerra aos castelos deve também gritar-se paz às cabanas! Que nos falta? A felicidade com pouco se contenta, a opulência não vale um desgosto.
Não era o caso do velho fidalgo que sabia felizmente um caminho mais seguro para chegar a esse nobre coração.
- Minha filha - replicou, abanando a cabeça -são belíssimos esses teus sentimentos: há trinta anos não tinha outros. Fui um dos primeiros que deram o sinal da emigração pátria, castelo, fortuna hereditária, domínio dos antepassados, tudo abandonei nada me custou para dar essa prova de dedicação e de fidelidade à realeza em perigo. Era novo e valente. Hoje estou velho, minha Helena o corpo traiu o coração o sangue já não tem coragem a lâmina gastou a bainha. Não passo de um pobre velho, comido pela gota e pelo reumatismo, cheio de dores e de achaques. com receio de assustar a tua ternura, ocultei cuidadosamente os sofrimentos e os males que suporto. O caso é, minha filha, que não posso mais. Julgam-me fresco e lépido, ágil e bem disposto não há ninguém, ao ver-me, que me dê mais meio século de vida. Enganadoras aparências De dia para dia, declino e me apago. Olha para as minhas pobres pernas dir-se-iam fusos - acrescentou com ar dolorido, mostrando uma coxa vigorosa e redonda -Tenho o peito muito doente! Não nos iludamos não sou mais do que um ramo seco que um golpe de vento breve me arrebatará.
- Que está para aí a dizer, meu pai! - exclamou a menina de La Seiglière, lançando-se chorosa ao pescoço do novo Sixto V.
- Vai, minha filha - acrescentou o marquês com melancolia - seja qual for a força moral que recebi do céu, torna-se cruel na minha idade retomar o caminho do exílio e da pobreza, quando na terra há apenas a esperança e o desejo de morrer tranquilamente e juntar os ossos à cinza dos antepassados.
- Não morrerá, há de viver - afirmou Helena, cingindo-o no peito - Deus, a quem reso por si, Deus justo e bom, deve-o ao meu amor; far-me-á a graça de tomar a minha vida para prolongar a sua. Quanto ao outro perigo que nos ameaça, meu pai, é assim tão grande e pungente como parece imaginar Deixe me dizer-lhe que talvez se alarme sem razão. Porque é que o povo o odiará Os seus camponeses estimam-no porque é bom para eles. Quando passo ao longo das sebes, interrompem os trabalhos para me saudarem benevolamente assim que me vêem ao longe, os filhos correm para mim, alegres e buliçosos mais de uma vez, dentro das cabanas, as mães me agarram a mão para a levarem meigamente aos lábios. Não é esse o povo que o odeia. Fala de solo minado de boatos sinistros, de sombrio horizonte Repare: a terra floresce e verdeja, o sol está azul, o horizonte é puro; não ouço gritos, mas apenas o trinar do tentilhão e o canto longínquo dos boieiros e dos pastores; não vejo outra revolução que não seja a que a primavera acaba de fazer contra o inverno.
- Bondoso coraçãozinho, que não vê e não ouve nesta terra de perversos, se não as imagens da natureza e as harmonias da criação - observou o marquês, ao beijar a testa de Helena com sincera comoção Minha filha - acrescentou após uns instantes de silêncio - ha trinta anos as coisas não se passavam doutro modo. Como hoje, os campos reverdeciam e floriam, os pastores cantavam no flanco das colinas, os tentilhões chilreavam debaixo do arvoredo, e tua mãe, minha filha, era, como tu, o anjo bento destes campos. No entanto, foi preciso fugir. Crê na minha velha experiência o futuro é sombrio e ameaçador. E' quási sempre sob os céus serenos que se agita a cólera dos homens e que estala o raio das revoluções. Suponhamos, contudo, que o perigo ainda venha longe, admitamos que eu tenha tempo de morrer sob o teto de meus pais. Posso morrer em paz, na idea de que te deixarei só, sem amparo, sem arrimo, no meio da tempestade e da tormenta Quando já não existir que será feito da minha adorada filha E' o senhor de Vaubert quem te protegerá nestes tempos de terror Desgraçadas crianças que usara um nome que atrai os raios. Ao unirem-se, vocês duplicariam as funestas probabilidades; não passariam de ser um para o outro um encargo, um perigo mais cada um de vocês terá contra si duas fatalidades em vez de uma denunciar-se-iam um e outro ao furor dos ódios populares. Falei disso há dias afectuosamente à baronesa na nossa solicitude alarmada, perguntavam-nos se seria prudente e ajuizado dar seguimento a esses projectos de casamento.
Ao ouvir estas palavras, Helena estremecera e dirigiu ao pai um olhar de gazela assustada.
- E julguei perceber - continuou o senhor de La Seiglière - que a baronesa não estaria longe de me restituir a palavra e de recuperar a sua em troca. Marquês - me dizia ela com esse elevado critério que nunca a abandona, - unir estas duas crianças, não será querer que dois navios perdidos tentem salvar-se um ao outro Isolados, ainda cada um por seu lado tem a probabilidade de se livrar de apuros de-certo sossobram ao unir as duas fortunas. -Assim falava a mãi de Raul. Devo acrescentar que é também a opinião do célebre dês Tournelles, velho amigo da nossa família, e que, sem nunca te ter visto, se interessa muito por ti. Marquês - me observou certo dia esse grande jurisconsulto - um dos mais amplos espíritos da nossa época, dar sua filha a esse joven de Vaubert, é abrigá-lo num dia de trovoada debaixo de um carvalho em campina rasa, é atrair-lhe sobre a cabeça o fogo do céu.
- Meu pai - respondeu a donzela com fria dignidade - o senhor dês Tournelles não é para aqui chamado; apenas reconheço à própria senhora de Vaubert o direito de desprender a minha mão da do filho. O senhor de Vaubert e eu estamos, perante Deus, prometidos um ao outro. Tenho a sua palavra e ele a minha. Só Deus, que recebeu os nossos juramentos, pode desligar-nos dela,
- Longe de mim a idea - volveu o marquês de querer pregar-te a traição e o perjúrio Receio apenas que exageres a gravidade e a solenidade dos compromissos contraídos. Raul e tu estão prometidos, nada mais; ora, como se diz na região, promessas e casamento são duas coisas diversas. Enquanto não se realizar o sacramento, pode-se sempre, de comum acordo, desligar sem melindrar Deus nem ferir a honra. Antes de desposar tua mãe, eu fora noivo nove vezes, a nona aos trêse anos e a primeira aos sete meses. Depois, minha Helena, Deus me livre de contrariar as tuas inclinações. Concebo que as tenhas pelo joven de Vaubert. Ambos foram criados no exílio e na pobreza; pode parecer-lhes agradável voltarem para lá juntos. Na vossa idade, meus queridos filhos, não há triste perspectiva que a paixão não alegre, não encante e não ilumine. Entre dois, sofrer e amar é a felicidade da juventude, Entretanto, tenho notado que em geral a essas ligações que se formaram tão perto do berço falta-lhes qualquer coisa que faz o encanto do amor. Não me dou como entendido em matéria de sentimento; contudo, acabei por descobrir que se gosta pouco do que se vê muito. O nosso joven barão é, aliás, amável e gracioso cavalheiro, um pouco frio, um pouco compassado e, porque não dizê-lo um pouco nulo, mas puro como um lírio e róseo como uma rosa. Aquele não endureceu as mãos no trabalho, o fogo do inimigo não lhe tisnou o rosto. Tem em especial uma forma de pentear-se que me encantou sempre.
O senhor de Vaubert é um homem galante, meu pai - replicou Helena gravemente.
- Por Deus! Acredito E esse digno rapaz que nunca deu que falar dele é um herói modesto que nunca aborrecerá ninguém com a narrativa das suas vitórias. Com a breca, minha filha - bradou o marquês, mudando bruscamente de tom - É triste dizê-lo, mas é forçoso: os nossos fidalgos de hoje têm a aparência de acreditar que só às pessoas do povo fica bem fazerem grandes coisas. No meu tempo, a juvenil nobreza procedia doutro modo, graças a Deus! Eu que te falo... não entrei na guerra, é verdade; mas, pela espada de meus avós! quando foi preciso mostrar-me, mostrei-me, e ainda me citam na corte como um dos primeiros fieis que se apressaram em ir protestar, com a sua presença no estrangeiro, contra os inimigos da nossa velha monarquia. Aqui tens, minha filha, o que teu pai fez; se não fui coroado de louros no exército de Conde, é porque me custava de-veras colher palmas regadas com o sangue da França.
- Mas meu pai - tornou Helena com voz hesitante
- a culpa não é do senhor de Vaubert se viveu até agora inactivo e obscuro; embora possua um coração de leão não pode dar batalhas a si-próprio.
- Ora, ora! - bradou o marquês -As almas sedentas de glória encontram sempre meio de saciar a sua sede. Eu, quando emigrei, estava resolvido a partir para me ir bater com os moicanos; se fui para a Alemanha em vez de ir para a América, foi porque, na hora do perigo, compreendi que me devia à nossa bela França. Olha para esse Bernardo. Ainda não tem vinte-oito anos, e já possui uma fita na botoeira: passou como vencedor pelas capitais da Europa; fez-se matar em Moscovo. Contava só vinte anos quando o imperador, que, diga-se o que se disser, não era um tolo, o notou na batalha de Wagram. O que digo, minha filha, não é para te desligares de Raul. Não quero mal a esse rapaz por nada ser. De resto, é barão; na sociedade é bonito. Não se pode exigir mais.
- Meu pai - redarguiu Helena, cada vez mais perturbada - o senhor de Vaubert ama-me, tem a minha fé e, para mim, é o suficiente.
- Que te ama, creio-o tanto mais que raramente dei por isso os fogos ocultos são os mais terríveis sei apenas que no seu lugar não iria para Paris a gosar a vida precisamente no dia imediato àquele em que o moço herói veiu instalar-se debaixo do nosso teto.
- Meu pai!... - bradou Helena, vermelha como uma papoula.
- é verdade que Raul te escreve todos os meses uma carta. Apenas li uma: bonito estilo, papel pergaminho, boa ortografia, pontuação exacta. Mas, por Deus, minha filha! Peço-te que acredites que no nosso tempo não era assim que escrevíamos ao meigo objecto da nossa chama.
- Meu pai! - bradou de novo a menina de La Seiglière com voz suplicante, mas sorrindo ao de leve.
Aqui, o insidioso marquês, ao julgar a praça suficientemente desmoralizada, voltou às primitivas baterias. Demonstrou que, nesse tempo de provação, a nobreza só tinha probabilidades de salvação criando alianças abaixo dela. Representou com a filha o papel que, alguns meses antes, dês Tournelles representara com ele. Mais uma vez se descreveu pobre, exilado, proscrito, mendigando como Belisário e morrendo longe da pátria. Mais uma vez os olhos de Helena se humedeceram; depois, numa transição habilmente feita, veio a falar do velho Stamply; enterneceu-se com a probidade do antigo rendeiro e lastimou não o haver recompensado suficientemente enquanto foi vivo. Soube despertar os escrúpulos daquele moço coração, sem, contudo, lhe despertar suspeitas. Do pai ao filho apenas ia um passo. Exaltou Bernardo e representou-o ora como um dique contra o furor das ondas, ora como um abrigo durante a trovoada. Em resumo de rodeio em rodeio, pé ante pé, passo a passo, chegou suavemente aos seus fins, isto é: a perguntar-se em voz alta, sob a forma de reflexão, se, nesses maus dias, uma aliança com Stamply não daria aos de La Seiglière mais vantagem e segurança do que uma aliança com os de Vaubert. O marquês estava nessa altura do seu discurso, quando se interrompeu bruscamente ao notar Helena tão pálida e tão trémula, que julgou tê-la matado.
- Vamos, vamos - disse o marquês, tomando-a nos braços - tu não estás em presença de um carrasco. Falei, como Calchas, em arrastar-te ao sacrifício e em te imolar nos degraus do altar Que diabo! Tu não és Efigénia nem eu Agamemnon. Conversávamos, raciocinávamos, nada mais. Compreendo que ao primeiro embate uma La Seiglière se revolte e se indigne à idea de um casamento desigual; mas, minha filha, repito-te pensa em ti, no teu velho pai, na dedicação da menina de Sombreuil. Esse Bernardo não é fidalgo mas quem é hoje fidalgo Dentro de vinte anos, ninguém se abaixara para apanhar um título. Queria que pudesses ouvir dês Tournelles a conversar sobre este assunto. Quem serve tão bem o seu país não carece de avós, disse o sublime Voltaire. De resto, em todos os tempos houve casamentos desiguais; as grandes famílias só vivem e se perpetuam por casamentos desiguais. Para acabar com os normandos, um rei de França. Carlos, o Simples, casou a filha Ghiséle com um tal RolIão, que não passava de um chefe de vadios, provando com este facto que era menos simples do que pretendiam. Muito recentemente, um aventureiro casou com a filha dos Césares. E depois produzirá bom efeito na região desposares um Stamply; ver-se-à que não somos ingratos dir-se-á que sabemos reconhecer um bom procedimento por minha parte, quando me encontrar no céu, de cara a cara com a alma do meu velho rendeiro, então, confesso que me não há de ser desagradável poder participar a esse excelente homem que a sua probidade foi premiada na terra e que doravante as nossas duas famílias formam uma só. Isso também dará prazer a esse bom homem, porque ele adorava-te, minha Helena eram um casal de amigos. Não te tratou ele muita vez por sua filha? Nessas circunstâncias enfileirava entre os profetas.
O marquês falava assim havia um quarto de hora, desenvolvendo, para vencer as repugnâncias da filha, tudo quanto aprendera de finura, de manha e de astúcia na escola da baronesa, quando, de repente, Helena, que se desprendera pouco a pouco dos braços do pai, se escapuliu, viva e ligeira como uma ave; o marquês ficou boquiaberto no meio de uma frase; viu-a correr pelo relvado do parque e desaparecer por entre os ramos.
Depois de haver seguido com os olhos por largo tempo, o marquês, batendo na testa com ar pensativo, perguntou a si-próprio:
- Por acaso minha filha amará o hussar Que case com ele, ainda vá... mas que o ame. Com os diabos
Porque é que a menina de La Seiglière fugiu de repente dos braços do pai? Porque é que, alguns momentos antes, a palidez da morte lhe passara pelo rosto Porque é que, quase logo, o sangue lhe refluíra violentamente ao coração? Porque é que, enquanto o marquês tentava demonstrar-lhe a necessidade do seu casamento com Bernardo, fugira, agitada, trémula, desvairada e, contudo, viva, alegre e ligeira? Uma vez no fundo do parque, deixou-se cair num montículo e, silenciosas lágrimas lhe rolaram sem esforço ao longo das faces, pérolas húmidas, gotas de orvalho sobre as perfumadas pétalas de um lírio. Assim, o amor e a ventura têm lágrimas como primeiro sorriso, como se tivessem, ao nascer, o instinto da sua fragilidade e a consciência de que nascem para sofrer.
Estava-se em fins de abril. O parque não era amplo bastante para lhe conter o enebriamento da alma. Helena levantou-se e dirigiu-se para o campo. A seus pés, a terra floria; o céu azul sorria-lhe por cima da cabeça a vida cantava-lhe no seio moço. Esquecera Raul e só pensava em Bernardo. Seguia ao acaso, absorta em pensamento vago, misterioso e encantador, parando de longe em longe para lhe respirar o perfume e encaminhando para Deus as alegrias que lhe inundavam todos os recônditos da alma: porque era, consoante já dissemos, uma natureza tão grave como terna e profundamente religiosa.
Só quando viu o sol descer no horizonte é que Helena pensou em regressar ao castelo. Ao voltar, do cimo da colina a que subira, e se preparava para descer, avistou Bernardo que passava a cavalo pelo vale. Estremeceu meigamente, com o olhar comovido a segui-lo por muito tempo na planície. Regressou, reflectindo no destino desse mancebo que julgava pobre e deserdado: pela primeira vez, a menina de La Seiglière se pôs a contemplar com um sentimento de felicidade e de orgulho o castelo do pai que os raios do sol poente abrazavam, e o mar de verdura, que a brisa da tarde fazia ondular em torno. Entretanto, ao descobrir na outra margem o pequeno castelo de Vaubert, sombrio e carrancudo atrás do seu souto de carvalhos aos quais a primavera não reverdecera ainda os ramos, não pôde evitar um movimento de tristeza e de terror, como se compreendesse que era dali que devia partir o raio que lhe arrazaria toda a vida. Esse raio não se fez esperar. Ao chegar ao gradeamento e quando ia a transpor-lhe o limiar, Helena foi abeirada por um criado da baronesa, que lhe entregou um pacote sobrescritado e selado com o tríplice sinete das armas de Vaubert. Ao reconhecer no endereço a letra do jovem barão, que chegara na véspera e cujo regresso ela ignorava, a pobre menina empalideceu, rasgou o sobrescrito com mão trémula, e encontrou, metida entre as suas próprias cartas que Raul lhe devolvia, uma carta desse rapaz. Helena rasgou o sobrescrito ainda húmido e, depois de a haver lido, permaneceu aterrada, como se, com efeito, e fogo do céu lhe tivesse caido aos pés.
Muito parecido com esses autómatos que, carregando-se em certa mola, se faz à vontade aparecer e desaparecer, o senhor de Vaubert voltara como partira, a uma ordem da mãe, com o mesmo sorriso nos lábios e com o mesmo nó na gravata. Embora não fosse precisamente uma águia, era, contudo, um espírito recto, uma alma honesta, um coração bem formado. Não só nunca enveredara pelas intrigas da mãe, mas, ainda, graças aos tesouros de inteligência e de perspicácia com que o céu o doara, podemos afirmar que nunca suspeitava delas. Até agora, ingenuamente pensara, como Helena, que o velho Stamply, despojando-se, não fizera mais do que restituir aos La Seiglière os bens que não lhe pertenciam e que nisso o bondoso homem obedecera unicamente às sugestões da sua consciência. Raul, a bem dizer, nunca se preocupara muito com todo esse assunto e dele só vira os resultados, que, para falar claro, não lhe desagradaram. Pobre, tivera sempre o gosto pela opulência e não imaginava que uma moldura de um milhão pudesse estragar um bonito retrato. Contudo, amava Helena menos pela sua riqueza do que pela sua beleza amava-a a seu modo, fria, mas nobremente. Sabia, aliás, o que vale uma palavra dada e recebida nunca o sopro dos vis interesses lhe maculara a flor da honra e da mocidade. Ao saber o que se tinha passado durante a sua ausência, a milagrosa ressurreição do filho de Stamply, o seu regresso à pátria, a sua instalação no castelo, os seus incontestáveis direitos, donde, inevitavelmente resultava a completa ruina do marquês e da família, o senhor de Vaubert, como é fácil de supor, não se entregou a muito vivos entusiasmos de alegria o rosto alongou-se-lhe singularmente e o jogo da sua fisionomia apenas exprimiu medíocre satisfação quando, porém, depois de lhe haver mostrado o fundo das coisas, a senhora de Vaubert perguntou resolutamente ao filho o que tencionava fazer em tais conjunturas, o mancebo ergueu a cabeça e não hesitou um instante. Declarou simplesmente, sem esforço, que nada mudava em absoluto os compromissos que contraíra para com a donzela e que estava disposto, como anteriormente, a desposar a menina de La Seiglière.
- Não esperava menos de si - replicou a senhora de Vaubert com altivez - é bem meu nobre filho. Infelizmente ainda não é tudo. O marquês, para conservar a fortuna, resolveu casar a filha com Bernardo.
- Pois bem, minha mãe - volveu o senhor de Vaubert, que não deixou transparecer comoção alguma
- Se a menina de La Seiglière julga poder, sem prejudicar a honra, retirar a sua mão da minha, que a menina de La Seiglière fique livre; não deixarei, porém, de me encontrar comprometido com ela enquanto ela não for a primeira a deixar de estar comprometida para comigo.
- É um excelente coração - bradou, num movimento de alegria, a baronesa, que compreendeu que o assunto ia encetar-se consoante o desejara - Escreva nesse sentido à menina de La Seiglière. Seja digno, mas também terno a-fim-de que não possa supor que escreveu simplesmente para descargo de consciência. Feito isso, haja o que houver depois, terá cumprido dignamente os deveres de fiel namorado e de nobre cavalheiro.
Sem mais delongas, o senhor de Vaubert sentou-se à secretária e, num bonito papel que trouxera de Paris, lustroso, perfumado, timbrado com as armas da sua casa, escreveu as seguintes linhas, a que a baronesa, depois delas tomar conhecimento, embora desejasse encontrar mais paixão, deu a sua maternal aprovação. Assim, iam começar as hostilidades. Nas mãos da astuta baronesa, aquela dupla folha de papel lustrosa, brazonada, perfumada e cheia na primeira lauda por esplêndida letra inglesa, não passava de uma bomba que, arremessada à praça, devia, ao rebentar, causar prejuízos previstos, calculados e de um efeito quase certo.
Menina Helena
"Chego e sei ao mesmo tempo da revolução que se deu no seu destino, e das novas disposições que tomou o senhor seu pai para substituir sobre a sua cabeça a herança dos seus antepassados, que o regresso do filho do seu antigo rendeiro acaba de lhe arrebatar. Se para esses fins o senhor marquês julgava poder tomar sobre si o desligar duas mãos e dois corações ligados havia dez anos perante Deus, Deus os ajuizará; eu abstenho-me. Não assenta bem à pobreza medir-se com a riqueza. Simplesmente, a minha honra, menos ainda do que o meu amor, obriga-me a declarar-lhe, Helena, que, se não compartilha dos sentimentos do senhor seu pai, e não pensa, como ele, que a fé jurada seja apenas uma palavra vã, eu teria tanto prazer em partilhar consigo de minha modesta condição como Helena teria em partilhar comigo do seu luxo e da sua opulência. Após esta confissão, de cuja sinceridade não me fará a afronta de duvidar, nada acrescentarei; é a si apenas que compete doravante decidir da minha sorte e da sua. Se repelir a minha humilde oferta, aceite essas cartas que já não me pertencem; sofrerei sem me queixar nem murmurar. Se acede, pelo contrário, em vir embelezar a minha vida e o meu lar, restitua-me esses preciosos penhores, cingilos-ei com alegria e reconhecimento de encontro a um coração fiel e dedicado.
Raul.
Chamada violentamente ao sentimento da realidade, Helena não hesitou, como Raul não hesitara. Depois de sair da espécie de pasmo em que acabava de lançá-la a leitura daquelas poucas linhas, correu ao quarto, e aí, sufocando sem desfalecimento o seu senho de uma hora o máximo, raio que se extinguira ao cintilar, flor quebrada no momento de desabrochar, pegou numa pena para escrever e assinar a sentença de morte da sua própria felicidade; mas, não tendo coragem para o fazer, contentou-se em meter as cartas num sobrescrito e em remetê-las imediatamente a Raul. Feito isso, ocultou a cabeça nas mãos e não pôde deixar de verter algumas lágrimas, ai! muito diversas das que chorara de manhã. Entretanto, sob a melancolia de vago pesar mal definido, de-pressa sentiu surda inquietação agitar-se e crescer-lhe no peito. Ao ler num relance de olhos o bilhete do senhor de Vaubert, não viu claramente e de um modo nítido, apenas percebera uma coisa: que o mancebo lhe recordava solenemente a fé jurada, sob pena de perjúrio e de traição; na exaltação da sua consciência, Helena não cuidara do resto. Uma vez tranquilizada pelo sacrifício, com o espírito mais sereno e os sentidos mais afinados, rememorou pouco a pouco algumas expressões da carta do seu noivo, às quais não ligara grande importância, mas que lhe haviam deixado confusa e penosa impressão. De repente, as palavras prensavam-se, e, ao tornarem-se cada vez mais distintas as suas reminiscências, tirou dentre o vestido e o cinto o bilhete de Raul, que aí pusera para lhe defender e proteger o coração; depois de o haver relido com atenção, depois de haver esmiuçado todas as palavras e profundado todas as frases para lhes fazer ressaltar a luz, a menina de La Seiglière leu-a mais uma vez; depois, passando insensivelmente da surpresa a reflexão, acabou por se abismar em profunda meditação.
Era um espírito puro, um coração piedoso e fervente, uma alma imaculada que nunca tocara, nem sequer com a ponta das asas, o lodo da vida. Todas as ilusões se lhe albergavam no peito. Acreditava no bem naturalmente, sem esforço e nunca suspeitara do mal. Para tudo dizer numa palavra, era tal a sua ingénua candura, que nunca chegara a suspeitar da lealdade, da boafé e do desinteresse da própria senhora de Vaubert. No entanto, desde a instalação de Bernardo, compreendera vagamente que se tramava em volta dela qualquer coisa de equívoco e de misterioso. Embora de índole confiante e nada curiosa, preocupava-se confusamente, sobretudo ao ver alterar-se e entenebrecer-se a boa disposição do pai, a quem sempre conhecera, mesmo no fundo do exílio, alegre, risonho, leviano, encantador. Admirara-se do súbito desaparecimento de Raul e da sua prolongada ausência, a que não conseguira dar suficiente motivo: não deixara de notar a brusca mudança que de repente se operara nos hábitos mundanos do marquês e da baronesa, a datar do dia em que Bernardo compartilhara da vida do castelo enfim, perguntara a si-própria por diversas vezes, nas suas horas de perturbação e de terror, como é que esse mancebo, na força da vida, aceitara durante tanto tempo uma condição humilhante e precária, em lugar de procurar criarse posição independente, como conviria a um carácter enérgico e altivo. Que se passava Helena ignorava-o, mas de-certo se passava alguma coisa de estranho, que tentavam ocultar-lhe. A carta do baronête foi um relâmpago na sombria noite. À força de reflectir no caso, se a menina de La Seiglière não adivinhou toda a verdade e em toda a sua clareza, pelo menos viu aparecer como que luminoso ponto que, embora imperceptível, a encaminhou nas suas investigações. Uma vez no caminho, Helena recordou alguns discursos incompletos escapos ao velho Stamply, no decurso da sua prolongada agonia e cujo sentido ela em vão tentava interpretar: lembrou-se em todas as suas minúcias do solícito acolhimento, mais do que hospitaleiro, que se fizera ao regresso do filho, depois de se haver humilhado a velhice do pai; em resumo passeou, como um archote, a carta de Raul através de todos os incidentes que haviam assinalado a permanência de Bernardo. De episódio em episódio, chegou ao ponto de perguntar-se porque é que a baronesa se afastara do castelo havia uma semana e mais porque é que o senhor de Vaubert, em vez de escrever-lhe, não se apresentara pessoalmente; depois, quando enfim chegou á conversa que algumas horas antes tivera com o pai, sentindo nessa ocasião todo o seu sangue indignado subir-lhe às faces, levantou-se altivamente e saiu com passo firme para ir ter com o marquês.
À mesma hora, sentado junto de um velador, o nosso marquês, à espera do jantar, estava ocupado em molhar biscoitos num copo de vinho de Espanha; embora cruelmente ferido no seu orgulho, sentia-se com apetite e gosava desse sentimento de bem-estar e de satisfação que se experimenta depois de se haver sofrido dolorosa operação ante a qual tanto tempo passara. Acabara de vez com a baronesa, quase estava tranquilizado com as disposições da filha; quanto ao assentimento de Bernardo não se preocupava. Pouco perito em matéria de sentimento, conforme ele próprio confessara, o marquês ouvira o bastante para ter entrevisto havia tempo que o hussar não era insensível à beleza de Helena de resto seria caso para admirar que esse filho de vilão não se desse por satisfeito em misturar o sangue de seu pai ao dos seus antigos amos. A esse respeito, estava tranquilo apenas se afligia por não haver encontrado por parte da filha mais obstáculos e resistência. A idea de que uma La Seiglière pudesse amar um Stamply mergulhava-o em consternação impossível de descrever-se; era o fel do seu cálice.
- Que a mão se una ainda desigual, ainda vã, mas, por Deus ao menos salvemos o coração - dizia de si para si, indignado.
Em compensação, o que o encantava nesta aventura era pensar na cara que deviam fazer no seu solarzito a senhora de Vaubert e o grande idiota do filho. Reflectindo nisso, o marquês esfregava as mãos, movia-se na poltrona, entregava-se a gestos de gatos em liberdade; e, ao lembrar-se do que a baronesa tanta vez lhe repetira que Paris valia bem uma missa, desatou a rir nas suas costas ao pensar em que tudo isso ia acabar por uma missa, a missa do casamento.
Estava num desses acessos de alegre disposição, quando a porta da sala se abriu e a menina de La Seiglière entrou, tão grave, tão altiva, tão verdadeiramente régia, que o marquês, depois de se haver levantado para a acolher nos carinhosos braços, ficou interdito perante ela.
- Meu pai - disse logo com voz alterada, mas calma, a formosa e nobre criatura - responda francamente, lealmente, como bom fidalgo; seja o que for que tenha de revelar-me, esteja certo de antemão de que nunca me encontrará abaixo dos deveres e das obrigações que possa impôr-me o cuidado da sua glória. Responda, pois, sem rodeios, peço-lhe em nome de Deus vivo, em nome de minha santa mãe, que nos vê e nos ouve.
- Com a breca! - pensou o marquês - Aqui está um princípio que nada promete de bom.
- Meu pai - perguntou a donzela com firmeza a que título reside o senhor Bernardo entre nós
- Que pergunta! - bradou o marquês cada vez mais assustado, mas fazendo o possível por manter-se a título de hóspede e de amigo, suponho eu. Devemos muito à memória do bondoso homem que era seu pai para que alguém tenha o direito de ficar surpreendido ao ver esse rapaz sentado à minha mesa. A propósito - acrescentou, tirando do bolso um relógio de ouro esmaltado, suspenso de uma corrente cheia de berloques, anéis e sinetes - o mariola do Jasmim não toca hoje para o jantar Vês esta jóia Parece que nada vale, mas na verdade vale um escudo de seis libras; não o daria pelos diamantes da coroa. E' uma história que devo contar-te. Imagina tu que certo dia, foi em mil-setecentos...
- Meu pai tem outra história a contar-me - volveu gravemente Helena, atalhando-o com autoridade - uma história mais recente em que se trata de uma jóia mais preciosa do que essa, pois se trata da nossa honra. O senhor Bernardo está aqui como hóspede, segundo me disse; resta-lhe ainda, meu pai, dizer-me qual de nós é que recebe hospedagem, qual de nós a dá
Ao ouvir estas palavras, sob o olhar que Helena lhe lançava, o marquês, mais branco do que os bofes da sua camisa, deixou-se cair pesadamente numa poltrona.
- Está tudo perdido - pensou com desespero imenso - A danada baronesa deu com a língua nos dentes!
- Enfim, meu pai - tornou a implacável donzela, cruzando os braços nas costas da poltrona em que o senhor de La Seiglière estava aniquilado - perguntolhe se estamos em casa do senhor Bernardo ou se esse mancebo está na nossa.
Farto de astúcias e de intrigas, convencido, de resto, de que a filha estava ao facto de tudo, o marquês nem sequer pensou em corrigir a verdade, e mitigá-la no que podia ter de demasiado amarga para o seu orgulho e para o seu amor-próprio.
- Com a breca! - bradou, levantando-se com ar exasperado - Se queres que te diga, nem eu próprio sei. Aproveitaram-se da minha ausência para fazer um código de leis infames; o senhor do Buonaparte, que nunca simpatizou comigo, introduziu-lhe um artigo expressamente para embrulhar os meus negócios. E conseguiu-o, o corso Uns pretendem que estou na casa de Bernardo, outros afirmam que Bernardo está na minha; estes, que o velho Stamply me deu tudo, aqueles que me restituiu tudo. Como vês tudo isto é um caso intrincado dês Tournelles não sabe que pensar dele e o diabo perderia o seu latim. De-resto, minha filha, é bom que saibas que foi essa infernal baronesa que nos pôs nesta péssima situação. Lembra-te de como vivíamos agradavelmente no nosso buraquinho da Alemanha Eis que um dia a senhora de Vaubert - aprende a conhecê-la-imagina querer fazer-me entrar de novo na posse da fortuna de meus pais, sabendo muito bem que, nos termos das nossas convenções, essa fortuna voltaria mais tarde para o filho. Escreve-me a dizer que o meu antigo rendeiro esta cheio de remorsos, que me chama em altos gritos e que não poderá morrer em paz senão depois de me haver restituido todos os bens. E eu acredito Compadeci-me da consciência perturbada desse excelente homem, não queria que pudesse acusar-me de ter causado a perda de uma alma. Parto, apresso-me e o que é que uma bela manhã descubro Que esse digno homem nada me restituiu e que foi um presente que me fez. É pelo menos isto o que dizem os meus inimigos. Que eu tenho inimigos e, segundo dizia dês Tournelles, qual é a criatura superior que não os tem Entretanto, Bernardo, que se julgava morto, cai-nos em cima da cabeça como uma avalanche na Sibéria. Que vai acontecer? O senhor de Buonaparte arranjou tão bem as coisas, que é impossível saber-se. Estou em casa de Bernardo Bernardo está em minha casa Nada sei nada se sabe; o próprio dês Tournelles não percebe. Tal é a história, tal é a questão.
Helena crescera fora de todas as preocupações da vida real. Nunca suspeitara dos interesses positivos que tão grande papel desempenham na existência humana, que a absorvem quási por completo. Como não tinha, sobre todas as coisas, recebido outros ensinamentos que não fossem os do pai, que era a ignorância personificada, mais serena e mais florescente do reino, os conhecimentos que possuía a menina de La Seiglière, em direito francês, deviam igualar-se às que podia ter sobre a legislação japonesa; mas essa donzela, que nada sabia, possuía, contudo, ciência maior, mais firme, mais infalível do que a dos jurisconsultos mais hábeis, dos mais consumados legistas. Numa alma simples e honesta conservava tão puro, tão límpido, tão luminoso como o recebera, o sentimento do justo e do injusto que Deus depôs, como um raio da sua suprema inteligência, no seio de todas as criaturas. Ela ignorava as leis dos homens; mas a lei natural e divina estava escrita no seu coração como em livro de ouro, e nenhum sopro maléfico, nenhuma paixão ruim lhe alterava o sentido nem lhe embaciava os sagrados caracteres. Deslindou, pois, sem custo a verdade das nuvens que seu pai tentava ainda obscurecer; sob o bordado soube descobrir a trama. Enquanto o marquês falava, foi encostar-se ao mármore do fogão e conservou-se largo tempo de pé, calada, com os dedos perdidos nas tranças do cabelo, olhando com mudo espanto para o abismo em que acabava de ser precipitada como pomba mortalmente ferida ao voejar no azul do céu e que cai com a asa quebrada, sangrenta e palpitante, entre os canaviais de impuro pântano.
- Assim, meu pai - disse por fim sem mudar de atitude e sem desviar os olhos do infeliz fidalgo que, não sabendo a que santo apegar-se, girava em torno da filha como alma penada - assim esse velho, cuja vida findou tristemente no abandono e na solidão, despojou-se para nos enriquecer! Ah, louvado seja Deus que me inspirou estimar esse generoso homem pois que, se não fosse eu, o nosso bemfeitor morreria sem que mão amiga lhe fechasse os olhos!
- Que queres - volveu o marquês com ar enleado - A baronesa mostrou-se em tudo isto de uma horrível ingratidão. Quanto a mim, gostava desse velho divertia-me; encontrava-lhe bons modos e verdade, verdadinha, sentia prazer em vê-lo. Pois bem! A baronesa não podia suportá-lo. Esfalfei-me em dizerlhe - Senhora baronesa, o velho Stamply é um excelente homem fez-nos bem devemos-lhe algumas atenções. -Se fosse a acreditar nela, teria acabado por expulsá-lo de minha casa. O próprio rei, mesmo que mo tivesse pedido, não seria bem sucedido.
- Assim - tornou Helena após nova pausa - quando esse rapaz se apresentou, munido dos seus direitos, em vez de lhe restituírem lealmente os bens do pai e de nos retirarmos de cabeça levantada, obtivemos, à custa de humildade, que consentisse em conservar-nos em casa dele, em que nos deixasse viver sob o seu teto De sua filha, que nada sabia, fizeram uma cúmplice
- Quis partir - bradou o marquês - Mal Bernardo se fez anunciar, eu já estava de bengala na mão e chapéu na cabeça. Foi a baronesa quem me reteve; foi ela que nos jogou, foi ela que nos perdeu.
Aqui, a menina de La Seiglière voltou-se altivamente, disposta a pedir contas ao pai da conversa que ambos haviam tido naqueles mesmos aposentos; mas a palavra expirou-se-lhe nos lábios o peito entumeceu-se-lhe, as faces coraram, caindo numa poltrona, desfez-se em pranto; o peito aliviou-se-lhe em soluços. Seria simplesmente o orgulho revoltado que gritava nela O amor sufocado não misturaria ali os seus suspiros aos gritos da dignidade ofendida? O coração mais puro, mais virginal continua a ser um abismo em que a sonda se desvaira e cujo fundo nenhuma tocou. Ao ver o desespero da filha, o marquês acabou de perder a cabeça. Caiu de joelhos ante Helena e tomou-lhe as mãos que cobriu de beijos, chorando por sua vez como uma criança grande que era.
- Minha filha, meu tesouro! - bradava ele, cingindo-a nos braços - acalma-te, poupa teu velho pai; não o faças morrer de dor a teus pés. Queres partir? Partamos. Vamos viver no fundo das florestas como dois selvagens; se o preferes, voltemos para a nossa velha Alemanha. De que me serve a fortuna, se choras? Pouca importância lhe dou. Vendendo as jóias, o relógio e os berloques, sempre terei flores para a minha Helena. Vamos para onde quiseres; estarei bem em toda a parte em que tu me sorrias. Dizia esta manhã que não chegava a ter um sopro de vida; mentia. Tenho uma saúde de ferro. Olha para esta coxa: não se diria bronze moldado em meia de seda Neste inverno, cacei sete lobos; fatigo Bernardo a acompanhar-me e conto esperar enterrar a baronesa, que tem menos quinze ou vinte anos do que eu, ao que afirma, porque a conheço demasiadamente agora para que acredite apenas em metade do que ela diz. Vamos, enxuga de-pressa esses formosos olhos; um sorriso, um beijo, o teu braço no meu e, alegres boémios, viva a pobreza
- Ah, meu nobre pai, torno a encontrá-lo - exclamou a menina de La Seiglière com arrebatada alegria Disse: partamos não nos demoremos aqui, onde já estivemos tempo de mais.
- Partir! - exclamou o estouvado velho, que fiara muito do seu primeiro movimento, desejando bastante reter as palavras que imprudentemente proferira - Partir - repetiu com espanto - Mas, minha pobre filha, para onde diabo queres que a gente vá? Não sabes que estou em guerra aberta com a baronesa, que nem sequer nos resta o recurso de ir emagrecer à sua mesa e tiritar de frio junto do seu fogão
- Se a senhora de Vaubert nos repelir, iremos para onde Deus nos levar - volveu Helena - Mas, ao menos, sentiremos que trilhamos o caminho da honra.
- Ora, vejamos - tornou o senhor de La Seiglière, sentando-se com ar meigo ao lado de Helena - Está muito bem que se vá para onde Deus nos levar, não poderia até escolher-se melhor guia; infelizmente, Deus que alimenta os filhos dos passarinhos, não é tão liberal para com os filhos dos marqueses. E' encantador dizer-se Partamos, vamos para onde Deus nos levar Agrada às ingénuas imaginações; quando, porém, se parte, se andam seis léguas e se chega à noite com a perspectiva de dormir, sem ter ceado, ao ar livre, principia a achar-se o caminho de Deus um pouco rude. Se se tratasse só de mim, há muito que já teria calçado as sandálias de peregrino e retomado o bordão do exílio; mas trata-se de ti, minha Helena! Ponhamos de parte essas piedosas infantilidades; conversemos sensatamente, com calma, como convém entre velhos amigos como nós. Vejamos: Não haverá outro meio de harmonizar este caso com satisfação para todas as partes interessadas Por exemplo: o que eu esta manhã te dizia
- Seria a sua vergonha e a minha - replicou Helena, friamente - Sabe o que o mundo diria? diria que vendeu sua filha: à pobreza não assiste o direito de um casamento desigual. Que pensaria o senhor de Vaubert? E que pensaria esse rapaz, para quem corri solícita na suposição de que estivesse pobre e deserdado? Enquanto um me acusaria de traição, o outro suspeitaria de que só lhe fizera a corte à fortuna, e ambos me desprezariam. Marquês de La Seiglière, levante a cabeça e o coração: nobreza e pobreza obrigam. Que há então de tão terrível no destino, que nos coube em partilha? Estamos sem abrigo? Respondo pelo senhor de Vaubert.
- Mas, com a breca! - apostrofou o marquês - Repito-te que entre mim e a baronesa há uma guerra de morte.
- O rei nos auxiliará - volveu Helena - Deve ser bom, justo e grande, visto que é o rei.
- Ah, sim, o rei! Nem sequer suspeita do que fiz por ele. A era das grandes ingratidões data do estabelecimento da monarquia.
- Iria lançar me a seus pés, diria Senhor...
- Recusaria ouvir-te.
- Pois bem, meu pai - bradou a menina de La Seiglière com firmeza - restar-lhe-á sua filha. Sou nova e animosa; amo-o, trabalharei.
- Pobre pequena - disse o marquês, beijando as mãos da loura heroína - Os trabalhos desses bonitos dedos não bastariam para sustentar uma cotovia engaiolada. Voltando ao que esta manhã te dizia, supõis que seria a minha vergonha e a tua? Orgulho-me de ter, em ponto de honra, a epiderme muito fina e contudo não vejo as coisas como tu, minha Helena. Ponhamos de parte a questão do mundo; faça-se o que se fizer, tome-se o partido que se tomar, o mundo tem sempre que dizer. Bem tolo é quem lhe liga importância. Receias que o senhor de Vaubert te acuse de traição e de perjúrio Quanto a isso, sossega; a baroneza é uma raposa matreira que nunca permitirá que o filho se ligue à nossa ruína; embora não duvide do desinteresse de Raul, aqui para nós, é um pobre pateta que há de ser sempre levado pela mãe. Quanto a Bernardo, por que havia de desprezar-te? Concordo em que não poderia sensatamente aspirar ao amor de uma La Seiglière; mas a paixão não raciocina e esse rapaz, minha filha, ama-te.
- Ama-me - perguntou Helena com voz trémula.
- Por Deus! Adora-te - volveu o marquês.
- Que sabe a esse respeito, meu pai - murmurou a menina de La Seiglière com voz moribunda e tentando sorrir-se.
- Não há dúvida - pensou o marquês, abafando um suspiro de resignação - de que minha filha ama o hussar. que sei a respeito disso - bradou - A minha mocidade não está tão longe, que me faça esquecer como é que essas coisas se passam. No inverno, ao canto da lareira, quando referia as batalhas, imaginas que era pelos bonitos olhos da baronesa que gastava tanta pólvora, tanta eloquência e tanta espadeirada? A partir da noite em que deixaste de aparecer, o diabo não lhe arrancaria três palavras. Não percebi desde logo a causa da sua tristeza, do seu silêncio e do seu aspecto sombrio Não lhe vi a fronte iluminar-se quando voltaste a aparecer E no dia em que se expôs a partir as costelas ao montar Orlando, não calculaste que era uma bravata de namorado Adora-te, que to digo eu. E de resto, fosse ele um príncipe real sempre queria ver se tinha a ousadia de não te adorar!
O marquês deteve-se para contemplar a filha, que continuava a ouvi-lo. Àquelas palavras do pai, Helena sentira o seu sonho, mal abafado ainda, estremecer-lhe no coração. Conservava-se ali pensativa, silenciosa, esquecida de que acabava de reatar o elo da cadeia que para sempre a ligava a Raul, deixando-se levar, sem dar por isso, na insensível corrente que a arrastava para uma margem onde cantavam a mocidade e o amor.
- Vamos - disse consigo o marquês - teremos dois casamentos desiguais em vez de um.
E, tomando alegremente o seu partido, já esfregava as mãos, quando, de repente, a porta da sala se abriu com ruído, e a senhora de Vaubert entrou como um pé de vento nos aposentos, seguida de Raul, impassível e grave.
- Venha, amâvei e nobre menina - bradou a baronesa, abrindo os braços para Helena - venha, para que eu a cinja nos braços. Ah, eu bem sabia - acrescentou efusivamente enquanto cobria de beijos a fronte e os cabelos da menina de La Seiglière - sabia muito bem que entre a opulência e a pobreza, a sua bela alma não hesitaria! Meu filho, beije sua mulher; minha filha, beije seu marido: são dignos um do outro.
Enquanto assim falava, atraíra brandamente Helena para o moço-barão, que lhe osculou respeitosamente a mão.
- Veja-os, marquês - continuou com ar enternecido - Veja-lhes os transportes. Diga agora, embora tenha um coração de aço, ou uma ursa o tivesse amamentado no berço, diga se tem coragem para quebrar tão encantadores laços. Já não é apenas da sua glória que se trata d'ora em diante, é também da felicidade dessas duas nobres criaturas.
- Com os diabos! - bradou o marquês, cuja estupefacção renunciamos descrever - Diabos ou a baronesa me levem, se percebo alguma coisa!
- Senhor marquês - disse Raul, estendendo-lhe mão leal - as revoluções pouco me deixaram da fortuna de meus pais, mas esse pouco pertence-lhe.
- Está bem, senhor de Vaubert - disse Helena.
- Magnânimas crianças! - exclamou a baronesaEstá comovido, marquês. Os seus olhos humedecem-se; uma lágrima lhe rolou pelas faces. Por que procura evitar o enternecimento que o empolga As pernas dobram-se-lhe o coração está prestes a desfazer-se. Não se constranja, deixe operar a natureza. Ela opera, sinto-o, vejo-o. Os seus braços entre-abrem-se, vão-se abrir, abrem-se... Raul, corra a abraçar seu pai-acrescentou, empurrando o jovem barão para os braços do marquês e vendo-os com inebriamento abraçarem-se de má vontade.
- E nós, meu velho amigo - tornou ela depois não nos abraçaremos?
- Abracemo-nos - disse o marquês.
E enquanto se conservavam abraçados, o marquês disse a meia voz:
- Não sei onde quer chegar, baronesa, mas sinto que trama alguma coisa de abominável.
- O marquês volveu a baronesa - não passa de um velhaco.
- Raul, Helena e o senhor também, meu velho amigo - prosseguiu logo com efusão, unindo todos três num mesmo olhar e num mesmo abraço - Se devo acreditar na alegria que me inunda, o solar de Vaubert vai ser o asilo da paz, da felicidade e das ternuras mútuas vamos realizar lá o mais doce e o mais encantador sonho que jamais se haja efectuado na terra. Seremos pobres, mas teremos como riqueza a união das nossas almas; o quadro da nossa humilde fortuna ofuscará mais de uma vez o esplendor do luxo e o fausto da opulência. Como nós o mimaremos, marquês! Que de amor e cuidados em torno da sua velhice para o fazer esquecer dos bens que perdeu! Amado, querido, acariciado, acarinhado, um dia compreenderá que esses bens eram pouco lamentáveis, admirar-se-á de haver podido por instantes pensar em resgatá-los à custa da sua honra...
Depois de ter arriscado algumas observações que Raul, Helena e a senhora de Vaubert" combateram todos três, depois de ter inutilmente procurado uma saída por onde escapar-se, perseguido, encurralado, apanhado no laço, o marquês exclamou jovialmente:
- Pois bem, com a breca! Seja assim Minha filha será baronesa e esse velho patifório do dês Tournelles não terá o prazer de ver uma La Seiglière desposar o filho de um vilão.
Ficou logo resolvido que o marquês, no mais breve prazo, assinaria uma acta de desistência a favor de Bernardo e que, feito isso, o fidalgo desapossado se retiraria com a filha para o pequeno castelo de Vaubert onde depois se procederia ao casamento dos jovens namorados. Reguladas assim as coisas, a baronesa deu o braço ao marquês, Raul ofereceu o seu a Helena e todos quatro foram jantar ao solar.
Ora, enquanto se dava esta revolução no castelo, que fazia Bernardo Seguia ao passo do cavalo ao longo das veredas que acompanham o Clain, com a cabeça, o espírito e o coração cheios de uma única imagem. Amava. Naquela natureza livre e altiva que o roçar do mundo não fizera empobrecer, o amor não se conservara muito tempo no estado de vaga aspiração, de sonho flutuante e de misterioso sofrimento; em breve se tornara paixão ardente, enérgica, vivaz e profunda. Bernardo fazia parte dessa geração activa e turbulenta cuja mocidade decorrera nos campos de batalha e que não tivera tempo nem de amar nem de sonhar. Aos vinte-sete anos, a essa hora ainda matinal em que os descendentes da nossa ociosa geração dispersavam loucamente em todas as direcções as suas forças sem emprego, só conhecera a bela paixão da glória. Podia até muito à vontade prever-se que nunca o germe do amor sério viria cair nessa alma, lhe absorveria a seiva e se desenvolveria como vigoroso arbusto em terra virgem e fecunda. Viu Helena e amou-a. Por que artes poderia defender-se Ela tivera como partilha a graça e a formosura, a candidez e a inteligência, todas as elegâncias da sua raça, sem ter dela as ideas acanhadas nem as opiniões bolorentas. com a régia altivez do lírio, exalava como ele suave e doce perfume; à poesia do passado juntava os instintos sérios da nossa idade. E essa nobre criatura viera para ele, de mãos abertas e sorriso nos lábios Falava-lhe do velho pai, que ajudara a morrer Fora ela quem substituirá o filho ausente à cabeceira do velho, quem lhe recolhera as derradeiras despedidas e o último suspiro. Vivera da sua vida, à mesa perto dela e junto dela à lareira. Ao referir os perigos por que passara, vira humedecerem-se-lhe os lindos olhos; vira-os incendiarem-se ao narrar as suas batalhas. Como não deveria amá-la? Amara-a a princípio com inquieto e encantador amor, como todo o sentimento que se desconhece; depois, ao ver Helena retirar-se bruscamente dele, com silencioso e feroz amor, como toda a paixão sem esperança. Foi então que, mergulhando simultaneamente no seu coração e no seu destino, ficara ferido de terror. Acabava de compreender ao mesmo tempo que, levado pelo encanto, aceitara sem reflectir uma situação equívoca; que a sua honra perigava e ameaçava sossobrar nesse atoleiro e, que para sair dele doravante, ser-lhe-ia preciso desapossar, arruinar, expulsar a donzela a quem amava, e o pai.
Como se resignaria a isso, ele que desfalecia só à idea de que os seus hospedeiros podiam de um dia para o outro retirar-se por sua livre vontade, ele que muita vez se interrogava com terror sobre o que seria dele sozinho no castelo deserto, se lhes desse a fantasia de mudarem os seus penates para outro sítio Se amava Helena acima de todas as coisas, não era apenas a ela que amava. Mesmo entre os seus arrebatamentos e as suas cóleras, sentia-se intimamente atraído para o marquês. Tomara assim uma espécie de afeição por todas as minúcias desse interior familiar de cuja fácil graça e estranha urbanidade nunca suspeitara. A idea de desposar Helena, idea que conciliava tudo e ante a qual o fidalgo não recuara, Bernardo nem sequer a entrevira. Sob as suas maneiras bruscas, sob a energia do seu carácter, sob o ardor que o consumia, ocultava todas as delicadezas, toda a timidez de receoso espirito e de alma terna. A consciência que tinha dos seus direitos tornara-o humilde em vez de o tornar ousado tinha a desconfiança e o pudor da fortuna. Entretanto, havia mais de uma semana que tudo tomara, tanto em sua volta como nele mesmo, nova face. Em torno de si as florestas e os prados reverdeciam; a menina de La Seiglière reaparecera-lhe na vida como a primavera na terra. Readquirida a presença de Helena, as recentes conversas que tivera com o marquês, a amizade cordial, quàsi meiga, que lhe testemunhava o velho fidalgo, algumas palavras que lhe haviam escapado na manhã dêsse mesmo dia, tudo isso, de envolta com a cálida brisa, com o aroma das salas, com os alegres raios do sol, enchia Bernardo de inexplicável perturbação, de um enebriamento sem nome, desse vago sentimento de terror que é o primeiro frémito da felicidade.
Assim perturbado, sem se atrever a perguntar-se o motivo, Bernardo regressava ao galope do seu cavalo, porque a noite já principiava a cair das encostas sobre a planície, quando, ao desembocar na ponte, descobriu a pequena caravana que se dirigia para Vaubert. Fez parar a montada e reconheceu em primeiro lugar, na penumbra do crepúsculo, a menina de La Seiglière pelo braço de um rapaz, que logo supôs dever ser o jovem barão. Bernardo não conhecia Raul e nada sabia do projectado enlace; entretanto, o coração confrangeu-se-lhe.
Sofria também por ver a intimidade reatada entre o marquês e a baronesa. Depois de haver seguido por algum tempo os dois pares, com um olhar de desgosto, meteu o cavalo a passo, voltou lentamente ao castelo, jantou sozinho, contou tristemente as horas e pensou em que aquela noite de solidão, a primeira que desse modo passava após o seu regresso, não mais acabaria. Deu vinte vezes a volta ao parque, retirou-se descontente para o quarto e permaneceu encostado à varanda da janela, até que viu passar, como duas sombras, por debaixo da folhagem, o senhor de La Seiglière e a filha, cuja voz lhe chegou aos ouvidos no silêncio da noite.
No dia seguinte, na refeição da manhã, foi em vão que esperou por Helena e por seu pai. Jasmim, a quen interrogou, respondeu que o senhor marquês e a filha tinham partido, havia uma hora, para Vaubert, prevenindo os criados de que só voltariam para jantar.
Durante esse dia, que decorreu com maior lentidão ainda do que decorrera a noite da véspera, Bernardo notou a desusada azáfama dos criados que andavam, num vai-vem do castelo ao solar, do solar ao castelo como se se tratasse de nova instalação. Pressentiu qual' quer terrível desastre. Num momento, esteve tentado a ir ao castelo, porém, um sentimento de invencível repulsa, quase de horror, o afastara sempre dele. Compreendera também, como Helena, que era aí que se forjava o raio que ouvia já ribombar no horizonte?
Contudo, ainda se arriscou até meio caminho; ao avistar pelo braço de Raul, na outra margem, por entre a argêntea folhagem dos choupos, Helena, da qual êle não podia distinguir nem o andar acabrunhado nem o pálido rosto, sentiu o ciúme mordê-lo no seio como se fora uma áspide. Era de alma terna e meiga, mas ipetuosa e terrível. Voltou para o quarto, despendurou pistolas suspensas na moldura do espelho, e premiu gatilhos com dedos bruscos e violentos; depois, envergonhado com a sua loucura, atirou-se para cima da cama, e esse coração de leão chorou. Porquê Não sabia. Sofria sem conhecer a causa do seu mal, do mesmo modo que na véspera ignorava donde lhe vinham a felicidade e a vida.
A noite foi menos borrascosa. Ao anoitecer, desatou a andar pelo parque à espera do regresso do marquês. A brisa refrescou-lhe a fronte, a reflexão pacificou-lhe a alma. Pensou que nada mudara na sua vida e voltou pouco a pouco a sonhos melhores. Havia alguns instantes que se sentara num banco de pedra, no mesmo lugar em que, tanta vez, junto de Helena, vira, no outono passado, as folhas amarelecidas desprender-se e voltear-lhes por cima das cabeças, quando, de repente, a areia da alameda estalou docemente sob ligeiros passos um roçagar de vestido se fez ouvir ao longo do espinheiro em flor; erguendo os olhos, Bernardo avistou diante dele a menina de La Seiglière, pálida, triste e mais grave que de costume.
- Era a si que procurava, senhor Bernardo - disse ela logo com voz meiga e calma.
com efeito, Helena fugira na esperança de encontrálo. Sabendo que só lhe restavam duas noites para passar sob o teto que já não era o do pai, prevendo bem que todas as relações se iam quebrar dora em diante entre ela e esse mancebo, viera ter com ele, não por fraqueza, mas por altivez de sentimento de si-própria, não querendo que, se ele algum dia descobrisse as astúcias e as intrigas que se haviam urdido em volta da sua fortuna, pudesse acreditar ou até supor que ela fora sua cúmplice. Não dissimulava, aliás, que antes de retirar-se tinha para com ele obrigações a cumprir; que devia pelo menos uma despedida a esse hóspede tão delicado, que ela nunca pudera suspeitar dos seus direitos, pelo menos uma reparação a essa alma tão magnânima a quem ousara, na sua ignorância, acusar de servilismo. Compreendera enfim que devia a esse rapaz instrui-lo pessoalmente da sua próxima partida, para lhe poupar a humilhação, se não a dor.
- Senhor Bernardo -prosseguiu Helena depois de se haver sentado junto dele com comoção que não tentou esconder - dentro de dois dias, meu pai e eu teremos abandonado este parque e este castelo que já nos não pertencem não quis sair dele sem lhe dizer quanto foi bom para meu pai e que com isso ficarei sensibilizada no mais profundo da minha alma durante o resto da minha vida. Sim, foi tão bom, tão generoso, que pude ignorá-lo até ontem.
- Parte, Helena, parte - bradou Bernardo com voz desvairada - Que lhe fiz Acaso sem querer ofendi-a a si ou ao senhor seu pai Não passo de soldado, nada sei da vida nem do mundo; mas partir, não partirá!
- Assim é preciso - tornou Helena - a nossa honra quer e a sua exige-o. Se meu pai, ao afastar-se, não se mostra tão afectuoso para consigo como devia ser ou queria parecer, perdôi-lhe. Meu pai é velho na sua idade, há fraquezas. Não lhe queira mal por isso sinto-me ainda bastante rica para poder acrescentar a sua dívida de reconhecimento à minha e para ambos liquidar.
- Parte - repetiu Bernardo - se parte, Helena, que vai ser de mim Estou só no mundo não tenho parentes, nem amigos, nem família; as únicas amizades que encontrei quando voltei, separei-me delas violentamente para juntar a minha vida a vossa. Para ficar aqui, junto de seu pai, repudiei a minha casta, abjurei da minha religião, desertei da minha bandeira, reneguei meus irmãos d'armas não. existe um único que, neste momento, me aperte a mão. Se se devia partir, porque não se fez isso quando me apresentei pela primeira vez Chegava então com o coração e a cabeça cheios de ódio e de cólera. Queria vingar-me, estava disposto a fazê-lo odiava seu pai execrava todos os outros nobres. Porque não partiram então Porque não me cederam a praça Porque me disseram: Confundamos os nossos direitos, formemos uma única família agora que esqueci que estou em casa de seu pai ou se seu pai está na minha, agora que me ensinaram a amar o que detestava, a honrar o que desprezava, agora que se criaram dentro de mim novo coração e nova alma, vá de se afastar, vá de fugir de mim, vá de me abandonar
"Assim, Helena - prosseguiu Bernardo com melancolia, levantando a cabeça ardente, que muito tempo apertou então as mãos - vejo que só trouxe consigo à vossa existência a desordem, a perturbação e a fatalidade, eu que daria a vida com embriaguez para lhe poupar um desgosto Assim, terei passado no seu destino como um temporal para o fanar e quebrar, eu que verteria com alegria todo o meu sangue para fazer nele germinar uma flor! Vivia calma, feliz, sorridente, desabrochada como um lírio entre o luxo dos seus antepassados, e foi preciso que eu voltasse expressamente do fundo das áridas estepes para a iniciar nas dores da pobreza, eu que voltaria triunfante para o exílio gelado donde saio para lhe deixar a minha parte de sol.
- A pobreza não me assusta - volveu Helena Conheço-a já vivi com ela.
- Entretanto, Helena - exclamou Bernardo com arrebatamento - se, exaltado pelo desespero como na guerra pelo perigo, ousasse dizer-lhe por minha vez o que ainda não ousei dizer a mim-próprio Se lhe dissesse por minha vez Confundamos os nossos direitos e formemos uma única família Se, animado pelo seu perdão e pela sua bondade, ousado pela afeição quási paternal que o senhor marquês me testemunhou nestes últimos dias, me esquecesse até a estender-lhe trémula mão, ah, de-certo ma repeliria, a esta mão de soldado ainda endurecida pelos trabalhos do cativeiro, e, indignando-se com razão ao ver que um amor partido de tão baixo tenha ousado levantar-se até si, cobrir-me-ia de desprezo e de cólera. Mas se pudesse esquecer como eu esqueceria se o caso se dera consigo, que algum dia pude pretender à herança de seus pais se pudesse continuar a acreditar, como eu acreditaria que a si compete a riqueza, a mim a pobreza, e se lhe dissesse ainda com voz súplice e humilde: Conserve-me num canto donde apenas a possa ver e admirar em silêncio não lhe serei nem incómodo nem importuno; só me encontrará no caminho quando me chamar; uma palavra, um gesto, um olhar far-me--iam desaparecer na poeira, talvez não me repelisse, compa decer-se-ia do meu desgosto e essa compaixão eu a abençoaria e me tornaria mais altivo do que se cingisse uma coroa de rei.
- Senhor Bernardo - tornou Helena, levantando-se com dignidade - não sei que de coração tão elevado possa igualar-se o seu coração não sei que de mão não possa honrar-se apertando a sua. Aqui tem a minha é a despedida de uma amiga que nas orações sempre se lembrará de si.
- Ah! - exclamou Bernardo, atrevendo-se pela primeira vez, ai! pela última, a levar aos lábios a nívea branca mão de Helena - Leva-me a vida, mas, nobre criança, que vai ser de si e de seu velho pai?
- O nosso futuro está garantido - volveu a menina de La Seiglière sem se lembrar de que, ao querer poupar a compaixão de Bernardo, dava ao infeliz um golpe mortal - O senhor de Vaubert é também um nobre coração encontrará tanta felicidade em partilhar comigo a sua modesta fortuna como eu própria a encontraria se partilhasse com ele a minha opulência.
- Ama-o - perguntou Bernardo.
- Creio já ter-lhe dito - replicou a menina de La Seiglière, hesitando - que fomos criados juntos no exílio.
- Ama-o - repetiu Bernardo.
- A mãe dele serviu-me de mãe, nossos pais fizeram-nos noivos desde o berço.
- Ama-o - perguntou Bernardo mais uma vez.
- Tem a minha promessa - respondeu Helena.
- Então, adeus - acrescentou Bernardo em tom sombrio - Adeus, sonho perdido - murmurou com voz sufocada, seguindo com os olhos, por entre lágrimas, Helena, que se afastava, pensativa.
O dia seguinte era o dia marcado para a assinatura da acta de desistência. Ao bater do meio-dia o marquês, Helena, a senhora de Vaubert e um notário, vindo expressamente de Poitiers, encontravam-se reunidos no salão do castelo, que já se ressentia da desordem da próxima partida. Só se esperava por Bernardo. Helena conservava-se grave e altiva; o marquês, satisfeito por acabar com aquela situação, estava leve como uma borboleta.
- Pois bem, senhora baronesa - dizia ele jovialmente, esfregando as mãos - iremos viver no seu solar, iremos retomar um pouco a vida que levávamos na Alemanha! Há de ser encantador podermos ainda julgar-nos no exílio. E' devido a si, generosa amiga, que ao último dos La Seiglière não há de faltar pão e sal
A senhora de Vaubert sorria, mas violenta preocupação se lhe traía na fronte e no olhar.
Bernardo entrou daí a pouco, de botas e esporas, de chicote em punho. A baronesa a princípio observou-o inquieta; mas ninguém poderia adivinhar no rosto desse homem o que lhe ia na alma.
Depois de haver lido em voz alta e inteligível a acta que antecipadamente redigira, o marquês tomou uma pena, arregaçou o punho de renda de Inglaterra, assinou sem pestanejar, e ofereceu a Bernardo, com estranha delicadeza, a folha de papel selado.
- Senhor - disse-lhe sorrindo com graça - ei-lo reapossado autenticamente no suor do senhor seu pai.
O momento era decisivo; a senhora de Vaubert empalideceu e fixou em Bernardo ardente olhar.
Bernardo hesitou impassível e abstracto, parecia nada ter visto, nada ter ouvido. Um relâmpago de triunfo brilhou nos olhos da baronesa.
- Com a breca - exclamou o marquês - Está com cerimónias agora
- Nobre rapaz - murmurou a baronesa com voz enternecida.
Como se despertasse em sobressalto, Bernardo estremeceu, tomou a folha de papel da mão do marquês com brusco gesto militar, dobrou-a em quatro, meteu-a na algibeira do jaquetão, que abotoou logo, e depois retirou-se gravemente, sem ter proferido palavra.
A senhora de Vaubert estava consternada.
- Vamos - disse o marquês, em esplêndida disposição - Aqui está um belo dia que só nos custa um milhão.
- Enganar-me-ia eu - perguntou de si para si a senhora de Vaubert, com aspecto visivelmente preocupado - Este Bernardo decididamente não passaria de
um velhaco, Deus. Que ar tão triste e sombrio ele tinha, - disse consigo a menina de La Seiglière, cujo coração estremecia sob vago pressentimento.
O dia findou entre os preparativos da expatriação. O marquês despendurou pessoalmente e com certa alegria os veneráveis retratos de seus avós e para todos encontrou um dito de espírito. Helena ocupou-se em guardar os livros, os bordados, os álbuns, as paletas e as aquarelas. Bernardo, em seguida ao acto que acabava de reintegrá-lo solenemente nos seus direitos, montara a cavalo; voltou ainda antes de anoitecer. Ao atravessar o parque, avistou Helena que velava, de janela aberta; permaneceu largo tempo, apoiado a uma árvore, a contemplá-la.
Helena passou a pé toda a noite, ora encostada ao parapeito da janela, vendo, à luz das estrelas, as bonitas sombras que ia deixar para sempre, ora andando em volta do quarto, despedindo-se intimamente desse fofo ninho de sua mocidade.
Fatigada, deitou-se vestida em cima da cama aos primeiros alvores da manhã. Dormia havia perto de uma hora ligeiro sono, quando foi bruscamente acordada por terrível tumulto; correu à janela: embora não fosse época de caça, avistou os picadores do castelo reunidos, uns a cavalo e tocando trompa com toda a força, outros segurando a matilha completa, que soltava desenfreados ladridos na sonora atmosfera da manhã.
A menina de La Seiglière começara a perguntar-se se era o dia do seu exílio, que assim se celebrava com tanta bulha, e o que podia ocasionar aquela serenata ruidosa e matinal, quando, de repente, soltou um grito de terror ao ver aparecer por entre a matilha, no meio dos picadores que pareciam também tomados de terror, Bernardo, de botas e esporas, como na véspera, e montado em Orlando. Refreando com graça o ardor do terrível animal, fê-lo avançar a passo até debaixo da janela em que se encontrava Helena, mais pálida do que a morte em seguida, ergueu os olhos para a donzela e, depois de a haver cumprimentado respeitosamente, enterrou as esporas nos flancos do corsel e partiu como um raio, seguido de longe pelos picadores, ao estrondoso vibrar das trompas.
- Ah, desgraçado - exclamou a menina de La Seiglière, torcendo os braços de desespero - Quer ir, vai matar-se!
Quis correr, mas para onde Orlando ia mais depressa de que o vento. Ficara na véspera combinado que Raul e a mãe viriam no dia seguinte, de manhã, buscar o marquês e a filha para os levar e instalar definitivamente na nova residência. Quando Helena se dispunha a sair do quarto para se dirigir à sala, encontrou no limiar Jasmim, que, como arauto da fatalidade, lhe apresentou numa salva de prata uma carta. Helena voltou precipitadamente ao quarto, abriu a carta e leu as seguintes linhas, evidentemente escritas à pressa
Helena;
Não parta, fique. Que quer que eu faça desta fortuna Só poderia empregá-la em fazer algum bem a menina fà-lo-à melhor do que eu, com mais encanto, de uma forma mais agradável a Deus. Peço-lhe apenas que me ponha em pensamento em metade de todos os seus benefícios isso me trará felicidade. Não se importe com o meu destino estou muito longe de ficar sem recursos. Tenho a minha patente, as minhas dragonas e a minha espada. Retornarei o serviço já não é a mesma bandeira, mas é ainda a França. Adeus, Helena. Amo-a e venero-a. Quero-lhe mal apenas por ter pensado um pouco em embaraçar-me com um milhão mas perdoo-lhe e bemdigo-a porque
amou meu velho pai.
Bernardo.
Na mesma carta encontrava-se um testamento ológrafo assim concebido:
Dou e lego à menina Helena de La Seiglière tudo o que possuo na terra em legítima propriedade.
Feito no meu castelo de La Seiglière, em 25 de Abril de 1819.
Quando Helena entrou na sala, onde acabavam de chegar a senhora de Vaubert e o filho, estava tão pálida, tão desolada, que o marquês exclamou
- Que tens tu
A baronesa e Raul rodearam-na logo a donzela permaneceu fria e muda.
- Ah, agora, falta-te coragem - disse-lhe o marquês.
Helena não respondeu.
Avizinhava-se a hora da partida. A baronesa continuava a esperar que Bernardo viesse pôr algum obstáculo e, nada vendo aparecer, dissimulava a custo o seu mau-humor. Por seu lado, o jovem barão não estava, para se dizer francamente, transportado de entusiasmo. Enfim, esfriado pelo ambiente, o marquês já não sentia a boa disposição de que dera provas durante todos esses dias.
- Então já sabem - disse de repente - que o mágico do Bernardo nos serviu esta manhã um prato à sua maneira
- De que se trata, marquês - inquiriu a baronesa que, ao nome de Bernardo, arrebitou as orelhas.
- Quer acreditar, baronesa, que esse filho de boieiro nem sequer esperou que tivéssemos partido para tomar posse dos meus bens Ao nascer do sol, foi para a caça, escoltado pela minha matilha e acompanhado por todos os meus picadores.
Aqui, a menina de La Seiglière, que se aproximara da porta aberta de par em par sobre as escadas, soltou terrível grito e caiu nos braços do pai, que mal teve tempo de ampará-la. Orlando acabava de percorrer a longa alameda como pedra lançada por uma funda: a sela estava vasía e os estribos batiam nos dilacerados flancos do corsel.
Algum tempo depois, houve no castelo de La Seiglière uma cena sofrivelmente cómica; foi quando o malicioso velho, que de-certo não foi esquecido e a quem chamamos dês Tournelles, veio mostrar ao marquês que, desde a morte de Bernardo menos que nunca ele estivera em sua própria casa, e a convidá-lo a sair imediatamente, se não queria incorrer nos rigores da administração dos domínios, mas para não prolongar a narrativa
Dois meses após a morte de Bernardo, que foi naturalmente atribuída a louca imprudência, um incidente doutro género preocupou muito os grandes e pequenos, bonitos e feios espíritos da cidade e arredores foi à entrada como noviça da menina de La Seglière num convento da ordem das filhas de S. Vicente de Paulo. Aludiram ao caso diversamente uns viram nele o resultado de grande piedade e de fervorosa vocação outros suspeitaram de algum amor fora de Deus. Aproximam-se mais ou menos da verdade; mas ninguém pôs o dedo na ferida, salvo contudo, o nosso marquês cujo resto da existência foi envenenado pela idéia de que decididamente a filha amara o hussar. Entretanto quando pôde, com o testamento de Bernardo em punho denegar das suas pretensões a herança sem esforço na administração dos domínios o marquês teve de concordar em que esse rapaz fizera bem as coisas. Continuou a viver como no passado, sem que o afastamento da filha em nada lhe alterasse os hábitos. Morreu de comoção em 1830, ao ouvir uma chusma de garotos que se agrupara debaixo das janelas para cantar a Marselhesa e partirem-lhe alguns vidros. O nosso moço barão entrou numa rica família plebeia em que representa o papel de Jorge Dandin, mas em sentido inverso. O sogro zomba-lhe dos títulos e censura-o pelos escudos com que os pagou; a mulher trata-o por barão e atraiçôa-o. A senhora de Vaubert ainda vive. Passa os dias de sentinela em frente do castelo de La Seiglière todas as noites sonha que está transformada em gata e que vê dansar-lhe na frente, sem sequer poder estender a patita, o castelo metamorfoseado em rato. Após a morte do pai, a menina de La Seiglière dispôs de toda a fortuna a favor dos pobres: afirma-se até que o castelo se tornará dentro em breve casa de refúgio para os indigentes.
Julio Sandeu
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