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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A INVASÃO / Ricardo Piglia
A INVASÃO / Ricardo Piglia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nos últimos dois meses não têm feito outra coisa além de adivinhar aqueles passos crescendo no corredor e o tranco da fechadura, as vozes e as risadas abafadas, no outro quarto.
E agora tornam a imaginar a luz amarelada descendo da única lâmpada, iluminando as paredes manchadas de umidade, a mesa encostada na janela com cortinas como teias de aranha e os dois ali abraçados, os olhos de Páez cravados naquele trecho do tabique.
Estão imóveis, um de cada lado da mesa, à espera do silêncio que sempre vem depois que as vozes se apagam, depois do último roçar das roupas no chão, do estalo dos pés nus contra a madeira.
Esse silêncio que, agora, obriga os dois a se moverem com cautela, como se coubesse a eles preservá-lo, evitar que o menor atrito (riscar um fósforo, abrir o jornal, sentar na cama) ecoe batendo contra o tabique e passe para o outro lado.
O quarto, sem janelas, mal iluminado pela luz da claraboia, paira numa penumbra cinzenta. O silêncio penetra pelas frestas da porta junto com a luz do outro quarto.
Até que Páez apaga a luz de cima e acende o abajur e os riscos amarelados se atenuam; então Luis levanta a cabeça e topa com o olhar de Martín.
Desvia os olhos mas os dois sabem que o silêncio começou a se quebrar, muito lentamente, numa espécie de respiração leve, abafada. Como se alguém respirasse com sofreguidão, mas sem abrir a boca, com os dentes cerrados.

 


 


Martín apalpa a mesa, procurando os cigarros. Quando se abaixa para pegar os fósforos no bolso do paletó, os dois tornam a se olhar e Martín flagra o gesto de Luis passando a mão pelo rosto nervosamente.

Luis olha a mão encharcada de suor e sente o corpo travado. Evita os olhos de Martín e tenta continuar lendo sem levantar a cabeça, mexendo os lábios como se estivesse rezando.

Os gemidos se repetem, cada vez mais violentos.

As letras do livro dançam. Luis ergue o rosto e fita a porta no meio do tabique; depois tira os óculos com um gesto brusco. Diante dele o rosto de Martín parece saltar para trás e borrar-se; é uma mancha difusa.

Agora os gemidos cessam, se apagam; são um ronco ávido.

Luis limpa as lentes dos óculos com a bainha da camisa.

De repente ouve-se uma espécie de grito, um misto de súplica e prazer, e Luis empurra a cadeira e se levanta, bruscamente. Está de frente para o tabique; olha de um lado para o outro, como se procurasse alguma coisa, até que por fim acende a luz e abre o armário. Vira-se com uma garrafa de genebra na mão; começa a encher um copo. Deixa a garrafa sobre a mesa e fica um instante assim, imóvel, como escutando aquela voz de mulher que se embarga e sufoca; depois parece acordar, procura o rádio numa das prateleiras do armário e o liga com um só movimento, sem olhar para Martín.

A música é um estampido que abafa os barulhos do outro quarto.

Os dois se olham de frente, um de cada lado da mesa. Luis está tenso e aperta o copo com a palma da mão.

Martín olha para ele quase sorrindo, numa espécie de careta, enquanto estica a mão até o rádio.

Quando a música para, o silêncio se reforça como se alguém tivesse fechado uma janela. Isso dura apenas um instante, porque logo as vozes e os ruídos abafados retornam.

Luis apoia as mãos na mesa como querendo se segurar. O suor se acumula sobre seus olhos.

- Que é que você está fazendo? - diz.

- Como assim, que é que eu estou fazendo?

- Não vê que eu quero estudar?

- E daí? Por acaso agora você precisa do rádio para estudar?

Falam em voz baixa, contidos.

- Ou são eles que não te deixam estudar? - diz Martín depois de uma pausa. - Vai me dizer que eles te atrapalham? - E sorri, em silêncio.

- Deixa de ser idiota - Luis fala sem encará-lo, os olhos fixos na beirada da mesa.

- Ou te deixam nervoso? - Martín inclina-se em direção a Luis, e baixa ainda mais a voz, que se mistura aos sussurros do outro quarto. - Ou você faz isso pelo Páez? Vai me dizer que fica se segurando por causa do Páez? - Joga o corpo para trás e fica outra vez ereto, esperando.

Luis deixa-se cair na cadeira e ergue o rosto, brilhante de suor. Corre os olhos pela cintura de Martín e depois baixa a cabeça como se fosse continuar lendo.

Martín o olha de cima, sem falar.

No silêncio, Luis pensa reconhecer a voz de Páez misturada aos gemidos, à respiração agitada, à voz de Martín, que agora voltou a se lançar sobre a mesa até ficar quase suspenso, muito perto de Luis, que vira o rosto.

Martín crava os dedos na bochecha de Luis e o obriga a encará-lo.

- Hein? Por que você não responde?

Os dois se olham de perto, com as caras muito juntas, como se fossem se beijar.

- Ou vai me dizer que não está ouvindo nada?

Luis se espreme contra o encosto da cadeira.

Do outro lado chega uma espécie de choro, um resfolegar que se confunde com o ruído metálico da cama.

Luis sente a respiração quente de Martín no rosto.

- Ou será que você não sabe que eles estão enfiados aí dentro?

Continuam imóveis por um momento: Martín quase caindo sobre o corpo de Luis, que o olha virando a cabeça, como que hipnotizado.

- Ou você quer ver os dois? - diz Martín, que, repentinamente, apoia a mão no braço de Luis, apertando-o contra a mesa.

Luis tenta se soltar, mas Martín quase o arranca da cadeira com um gesto imprevisto, brutal.

Luis cambaleia, segura-se na beirada da mesa. Martín está diante dele com um braço estendido.

- Quer que eu te mostre? - pergunta, mexendo os dedos. - Vem cá - muito perto de Luis, que joga o corpo para trás.

Mas Martín estica o braço e toca seu rosto como se quisesse acariciá-lo. Luis o empurra, tenta safar-se dele e os dois lutam, encurralados entre o armário e a mesa, abraçados, ofegantes.

Martín vai dominando Luis, carrega todo o peso do corpo sobre suas costas até que o obriga a ajoelhar-se.

Os dois se amontoam junto à porta.

Martín está encurvado sobre as costas de Luis, espreme seu rosto contra a fechadura.

Com a maçaneta cravada na testa, Luis reconhece o outro quarto, a janela, o encosto de uma cadeira e duas pernas de mulher que parecem flutuar no vazio. Isso só dura um instante, porque em seguida ele afrouxa o corpo, apoia as mãos no chão e se joga para trás, contra Martín que o abraça e o obriga a virar-se, a olhá-lo.

Ficam frente a frente, muito próximos, sufocados, envoltos no resfolegar cada vez mais violento, uma mistura confusa de suspiros e vozes que vêm do outro quarto.

Luis aperta as costas contra o tabique e sente a pressão dos dedos de Martín, que o segura pelo braço, um pouco acima do cotovelo.

- Será que você não percebe? Será que não percebe que isso tem que acabar de uma vez por todas? Que isso está fodendo com a vida da gente?

- Isso o quê? - A voz de Luis soa rouca, alta demais.

- Isso, de eles virem aqui todo dia, de encurralarem a gente neste quarto, de passarem a tarde inteira aí.

- Mas o quarto também é dele. Acontece...

- Acontece que o Páez traz ela aqui para foder com a gente. Para esfregar a mina na nossa cara.

- Você está louco.

- Louco não. Estou é cheio, cansado dessa provocação.

Os dois estão muito próximos, quase um sobre o outro.

Martín o encara sem dizer nada.

- Ou vai me dizer que você não fica a fim dela? - diz, pouco depois.

Luis sente-se sufocado pelo corpo de Martín, que o espreme contra a mesa. Vira-se para o lado, vê o copo e bebe a genebra de um gole. Depois procura a garrafa e torna a encher o copo até a boca. Quando levanta o rosto topa com os olhos de Martín.

- Por que você não responde?

- Responder o quê?

Martín o encara.

- Você sabe...

- Eu sei o quê?

- O que a gente tem que fazer para acabar de uma vez com isso. Para mostrar para ele que nem você nem eu somos veados.

Pela primeira vez Luis procura o rosto de Martín.

No outro quarto recomeçaram os sussurros, as risadas abafadas.

Luis fala a custo, com a voz alterada.

- E o Páez?...

- Somos dois. Ou você está com medo dele?

- Não é isso, é que...

- Então? - interrompe-o Martín.

Os dois se encaram.

Um canto da boca de Martín está tremendo.

Luis é o primeiro a desviar os olhos.

Agora Martín vira as costas para ele, está de frente para a porta.

Luis vê um pedaço de sua boca e seu queixo no caco de espelho pendurado no tabique, até que Martín apaga a luz e, de repente, tudo se desvanece. No escuro, Luis sente na boca o gosto metálico da genebra e a garganta seca e adivinha a silhueta imprecisa de Martín desenhada contra a luz que penetra do outro quarto, pelas frestas da porta. Pensa ouvir, ao longe, o apito de um trem. Passa a mão pelo rosto, tentando limpar o suor amontoado sobre os olhos e, enquanto o corpo de Martín cobre as linhas amareladas da porta, apalpa a mesa à procura do copo.

Depois, quando Martín encontra a maçaneta, bebe a genebra de um só gole.


O MURO


Não morremos de velhos,

morremos das velhas feridas.

Ernest Hemingway

Eles acabaram faz uma semana, mais ou menos. Hoje de manhã um dos velhos fez um buraco entre dois tijolos, mas não conseguiu ver nada do outro lado. Ficou cavoucando com o dedo e depois com um graveto que arrancou do salgueiro; parece que do lado de fora o cimento já estava seco, porque ele ficou lá meia hora, dá-lhe cutucar, e nada.

Poder olhar a rua é uma grande coisa. As pessoas passam fazendo gestos e rindo e às vezes até cumprimentam a gente e volta e meia passa um caminhão ou um ônibus e uma vez passou um circo. Eu vi muitos circos na vida mas nenhum tão importante como aquele: um homem comandava a caravana, de fraque, cartola e sei lá mais o quê, andando pelo meio da rua, com uma bengala vermelha para cima e para baixo, e atrás dele toda a companhia: os caminhões com alto-falantes, cheios de dançarinas, trapezistas, mágicos e um pouco de tudo, mais o trator com as jaulas e lá dentro os leões, e os ursos, e os tigres, e até um elefante. A parada inteira no meio de uma tremenda zona, com muita música e um cara que falava no microfone, e os palhaços pulando de lá pra cá todos pintados. Não consigo lembrar o nome do circo, mas eu sempre penso nos bichos, em como um dos caminhões estava diferente, um Ford 28, com uma espécie de torre cheia de bandeiras e cartazes. Eu penso nisso e num dos palhaços que me cumprimentou da calçada. Ele se inclinou com o chapéu na mão e desapareceu de um salto.

Mas às vezes me pego pensando que o circo não passou e eu é que sonhei tudo, como vira e mexe volto a dirigir a 39, que agora deve estar toda enferrujada, encostada nalgum galpão lá para as bandas de Escalada, quem sabe.

O que eu quero dizer é que aqui sentado olhando as pessoas, ou os caminhões, ou o vento que carrega os papéis como se os fizesse dançar, o dia passa voando; quando a gente vai ver já é de noite e não tem mais tempo para ficar pensando besteiras.

Quando tinha a cerca de alfena, as pessoas, os caminhões, e até o circo se tivesse passado naquela época eram vultos, não passavam de vultos, e a gente se enchia de olhar, era tudo igual. Para poder enxergar alguma coisa você precisava ficar lá de plantão, meio agachado, olhando entre os galhos um trecho de rua do tamanho desta lajota. Além do mais, ninguém aguentava muito tempo de pé com os galhos machucando a cara e a cintura doendo.

Até que vieram os pedreiros e começaram a derrubar a cerca. Eu não podia acreditar: aqui nunca fazem o que a gente precisa. Os pedreiros cavaram um buraco ao pé da tela, uma espécie de vala que rodeava todo o Asilo. Depois a cerca tombou de um puxão e apareceu a rua. E quando tocaram fogo na alfena a gente ficou olhando as chamas que iam pegando nos troncos e nas folhas; e atrás da fumaça e das fagulhas estava a rua: dava para ver quase meio quarteirão. Da esquina até a metade de uma casa verde, meio velha, com uma espécie de jardim, de dois por um, se tanto, com um tremendo de um pinheiro, que até parecia que a casa tinha sido construída embaixo dele.

Nessa casa aí mora um sujeito que deve ter um trabalho estranho. Ele sai quase de noite, mais ou menos nesta hora, e já vi ele voltar de madrugada. Já vi umas duas ou três vezes, lá para as seis da manhã quando me levanto antes de dar o sinal. Porque eu não suporto a cama quando estou acordado; prefiro levantar mesmo que ainda falte uma hora para o sinal, e que o pátio e os corredores estejam vazios e escuros. Os outros fazem de tudo para ficar mais um pouco, parecem mulheres. Fingem que estão dormindo e reclamam toda vez que alguém vem chamar. Eu por mais de trinta anos me levantei às quatro para estar em Escalada antes das seis. E se a gente levanta todo dia na mesma hora acaba se acostumando e não consegue pegar no sono de novo, por mais que fique rolando na cama. É por isso que quando eu acordo não entendo direito onde estou, e às vezes acho que tenho que levantar e sair correndo para pegar o das 4h40 e os rapazes já estão no galpão tomando mate, enquanto as caldeiras esquentam. Às vezes até escuto o barulho das locomotivas e uma vez apareceu o inglês e falou que eu podia continuar trabalhando; aí eu andava de novo na 39, a toda, como se eu não tivesse arrebentado ela todinha contra aquela merda de trem de carga, em 42.

Mas acho que isso eu sonhei. Que nem a história do circo.

E, agora que me lembrei, eu estava falando dos pedreiros. Eles ficavam lá trabalhando até de noite. E era como se nunca fossem acabar.

Eu ficava ali em pé do lado da vala, batendo papo. Porque às vezes a gente sente como uma necessidade de falar, e com esses velhos não dá. Passam o dia inteiro parados, imóveis, como se dormissem, procurando o sol e falando sempre a mesma coisa. Por isso eu passava as tardes conversando com os pedreiros; explicava para eles como é que funcionava uma 39, uma 42. Contava para eles o que a gente sente em cima de uma locomotiva a toda, tocando o apito sem parar, com a caldeira soltando faíscas e tão cheinha de carvão que parece que os vagões vão sair dos trilhos e disparar pelo campo afora. Uma tarde eu contei para eles a batida da 39, a história do trem de carga e toda a confusão com os ingleses, quando começaram a dizer que eu andava mal da vista, que não tinha visto os sinais, que isto, que aquilo, e no fim me aposentaram, os filhos da puta. Os pedreiros davam risada como se eu tivesse contado uma piada e continuavam trabalhando e gritavam coisas para as mulheres. Eu também falava coisas para as mulheres que passavam rebolando. Olhava para elas, falava "que gostosa", para que os pedreiros escutassem, mas para dizer a verdade eu não sentia nada.

O caso é que eles no fim foram embora, e eu fiquei sem ninguém para conversar. Sozinho que nem uma múmia, olhando os velhos que passam dando voltas no pátio como se não soubessem aonde ir. Mas mesmo assim aqui estou bem melhor do que na casa do meu filho. Aqui você pode ficar sentado o tempo que quiser, de manhã até de noite, sem ninguém rondando e cochichando e empurrando você de um lado para o outro como se fosse um móvel. Foi por isso que eu vim. Não preciso que ninguém venha me falar coisa nenhuma, e meu filho é um frouxo e a mulher do meu filho uma puta. Por isso juntei minhas coisas, guardei tudo no baú e vim para cá, com os velhos. Toquei a campainha. Ainda tinha a cerca de alfena: "Meu filho foi viajar, eu queria ficar aqui por um tempo", comecei a explicar para o sujeito que atendeu, mas ele parecia surdo e ficou só fazendo sinais com as mãos e lá dentro tive que explicar tudo de novo para o porteiro que estava tomando mate. Por um tempo, não como esses outros que ficam aqui até morrer. Eu só estou esperando melhorar um pouco, até que as mãos parem de tremer, para ir atrás de um emprego. Sei lá, qualquer coisa. Bom mesmo seria uma banca. Uma banca de chapa, numa esquina, toda amarelinha...

Para tudo isso, olhar a rua me ajudava muito. Entre olhar uma coisa aqui e outra ali, entre seguir os ônibus e olhar as pessoas, quando a gente vai ver passa a molecada da escola fazendo bagunça e tocam os sinos da igreja que quase nem dá para ouvir misturados com o barulho da rua. Por isso eu fico louco da vida com o que fizeram. E mais ainda depois, de noite, quando estou lá sozinho no escuro com a cabeça vazia porque não aconteceu nada durante todo o bendito dia. Aí me vem o medo de dormir. Eu fico quieto, de olho aberto, e escuto os velhos respirando ou se queixando e às vezes se ouve um trem lá longe e não quero fechar os olhos porque se eu pegar no sono não vou acordar nunca mais...

Esse medo é mais de agora. Antigamente, às vezes, eu me lembrava da curva e do vulto preto do trem de carga vindo para cima de mim, me lembrava da batida e acordava coberto de suor, aí eu começava a pensar nas coisas que tinha visto durante o dia, lembrava de todas elas, uma por uma, e era como se estivesse vendo tudo de novo nesse momento, até que de repente, sem perceber, eu pegava no sono. Mas agora não tenho no que pensar e deve ser por isso que volta e meia me aparece a minha velha toda de verde, igualzinha ao dia em que a gente se conheceu; eu me lembro de cada coisa gozada: ela usava uma fita no cabelo que estava meio desamarrada e caindo para um lado, eu fiquei a tarde inteira para lhe falar "seu laço está solto", mas não tive coragem. Se ela fosse viva na certa ia dizer que não, que isso foi outro dia ou que era um chapéu e não uma fita ou qualquer outra bobagem só para me contradizer. Porque me contradizer mesmo era com ela. Se estivesse aqui e eu lhe contasse que tenho me lembrado cada vez mais dela, na certa não ia acreditar. Mas é assim mesmo. Agora, desde que os pedreiros foram embora, eu lembro cada vez mais da minha velha, e de todas as coisas que fiz. Deve ser porque aqui dentro não acontece nada e aí a gente não tem o que fazer. No começo, mal que mal, se eu ficava na ponta dos pés, chegava a ver o teto dos ônibus, o alpendre das casas, mas um dia cruzei o pátio, sentei aqui como todas as manhãs e quando vi que estavam colocando a última fileira de tijolos não acreditei, como se dali a pouco fossem derrubar tudo e viessem me dizer: "Viu, velho? era tudo brincadeira."... Mas acabaram o reboco, limparam até a última mancha do chão, recolheram as ferramentas e foram embora. Aí comecei a me lembrar de todas as coisas, da tarde em que arrumei o emprego na ferrovia, do dia em que casei e chovia para cacete e para pular as poças a velha levantava o vestido com uma das mãos e com a outra segurava o chapéu, um chapéu preto, todo cheio de penas, que dava vontade de rir. Eu me lembro de tudo como se estivesse acontecendo agora. E não gosto nem um pouco disso. Não gosto porque é como se você já não tivesse mais o que fazer além de pensar nas coisas que fez. Como se não tivesse mais o que fazer além de ficar sentado aqui, neste banco, quieto feito uma múmia, sem nada se mexendo em volta, só as folhas das árvores lá no alto quando venta, e os velhos zanzando de lá para cá, atrás do sol. Passar os dias sem fazer nada olhando o muro que eu já conheço de cor, a emenda dos tijolos e cada buraquinho e aquele risco ali que sobe todo torto e parece um trilho visto de muito longe, quando você vem na locomotiva a todo vapor e os trilhos se juntam e parecem um só, um risco comprido, um risco preto que sobe até, todo torto...


UMA LUZ QUE SUMIA


para J. C. Scarpati

Porque apareceu de uma hora para outra, lá na frente, inconfundível entre os homens e as mulheres e os velhos, malencarados, de cinza, gordos, lindas, pela rua Lavalle hoje às onze da noite. Todos bem no meio, um muro, todos combinados para não me deixar passar e para você é fácil ir em frente com esse corpo quadrado e duro. Na Lavalle todo mundo vem para cima da gente e eu não sei o que fazer, não sei por que sigo atrás dele: para te ver no chão, para que você perceba de uma vez por todas, para que entenda, eu sigo você. Mas tem o medo, como sempre. Essa coisa no estômago e na palma das mãos que lá, em Bolívar, não era medo. "O que acontece é que neste fim de mundo não tem saída, você está amarrado, não tem como fazer nada. Este país começa na avenida General Paz, por isso você precisa ir embora, porque não tem como fazer nada. Porque você não pode fazer nada se não está em Buenos Aires, no país. Eu não quero acabar como meu irmão, entende? Estou cheio da província. Quero fazer alguma coisa na vida, por isso vou embora, porque Buenos Aires está me esperando, está esperando por gente como eu, jovem, com vontade de meter as caras." Foi por isso que eu vim. Com $3.500 na mala, em fevereiro, plantado ao lado do monumento ao general Roca, com a roupa grudada no corpo e o suor nos olhos e essa vontade de gritar, no meio daquele mundo de gente que te atropela, que não para de se mexer, com vontade de abraçar meus ombros, baixar a cabeça e gritar: "Vocês vão ver, seus filhos da puta!" ou "Viva a Pátria!". Gritar que estou aqui, eu, Diego Zavala. Com vontade de dar uns gritos, como quando você é moleque na hora da sesta e sente até dor de garganta de tanto falar baixo, de não poder gritar porque todo mundo está dormindo e todo mundo sempre dorme a sesta lá em Bolívar. Mas agora acabou porque isto aqui é a estação Constitución, com seu telhado de vidro, enorme e cheia de trens, com gente por tudo que é lado, homens, mulheres, que te atropelam e passam por cima de você porque está em Buenos Aires e não em Bolívar e isto aqui não é a rua San Martín às sete da noite. "Como vai seu Pedro?" "Boa noite, minha senhora." "Muito bem, obrigado." Isto aqui é a capital, o país, ninguém te conhece, entende? Você anda, anda e tudo está coberto de gente estranha, cheio de homens e mulheres que você não conhece, que nunca viu e todos passam andando muito seguros, porque nasceram aqui e é como se fossem os donos. São muitos e caminham atropelando a gente, pela Lavalle, mas dele todo mundo tem medo, um milhão de pessoas que têm medo dele e o deixam passar que nem meu pai lá em Bolívar, por isso ele caminha tão seguro e o deixam passar, forte e tranquilo, segurando na mão do papai, subindo a escada. O saguão e a escada sobre a rua Lima. PENSÃO COM COMIDA "LA EMILIA". Meia volta na praça e lá estava. Dois meses adiantados, com comida, quarto dividido, café da manhã à parte, almoço às 12h30, jantar às 21h00, quem não aparece, não come. Ainda tinha $1.500 quando saí para bater perna pelo centro. Por Buenos Aires nadando em luz, sempre cheia de gente, com gente por tudo que é lado. E eu andava e andava para me acostumar e conhecer a cidade. Saber ir para qualquer lugar sem ter que pedir informação, seguro como todo mundo, olhando de frente. Entrar no café, falar para o garçom: O mesmo de sempre, e que ele te cumprimente e todos te reconheçam e escutem você. Ter amigos portenhos, ir com eles para Bolívar no fim de semana e apresentar para a Nilda: "Minha namorada. Um amigo". Para minha família: "Um amigo de Buenos Aires". E eu mesmo vou ser de Buenos Aires, portenho, com um quarto perto da estação Constitución, Lima 1235. Por isso voltei para o quarto todo contente, na primeira noite. Cansado mas feliz por estar deitado de cara para o teto, pensando na imensidão de gente que vive aqui, em Buenos Aires, amontoada, e é com eles que você tem que brigar ou fazer alguma coisa, não sei o quê, mas alguma coisa e aí começaram a me bater na cabeça, minha cabeça era um tambor, tudo era um tambor que batia no compasso, Buenos Aires, a avenida Corrientes, a pizzaria Los Inmortales, tudo batendo, se mexendo, ritmadamente, um, dois, um, dois, pulando, todo de azul, um blusão que dizia POMPEYA, a toalha branca no pescoço que pulava, branco e azul, azul e branco, alta no céu uma águia guerreira[1]. Ele pulava corda às seis da manhã, quando o conheci.

- Quer dizer que você vai dividir o quarto comigo? - gritou como se me cumprimentasse, pulando. Pulando. E o que é que a gente pode falar para um cara que pula, vestido de azul, às seis da manhã, dentro de um quarto de pensão, como se estivesse numa praça cheia de árvores?

Não lembro o que eu respondi. Na certa pensei que estava sonhando enquanto ele falava aos berros sem parar de pular, dizia alguma coisa sobre o treino, "porque para a academia eu não volto, mas assim que eu ganhar e passar para a semifinal a rapaziada vai se lembrar de mim, porque a rapaziada tem que se lembrar" e eu olhava para ele deitado na cama, sem abrir a boca, e ele continuava lá quicando no chão, de um lado para o outro. No começo achei que era brincadeira, mas ele não parou de se mexer nem de fazer flexões até que deu meio-dia e tudo de novo à tarde e no dia seguinte e toda manhã. Às vezes eu fugia. Zanzava por aí ou entrava no cinema. Só que mais cedo ou mais tarde tinha que voltar, sentar na cama ou ficar olhando para o teto e ouvir você respirar forte e lançar murros contra o espelho. Eu queria me abstrair, ignorar o cara, não existem teus bufos, teus pulos, estou sozinho, sossegado, mas parecia que ele vinha para cima, procurava meus olhos e eu sorria ou olhava para o chão e toda vez que eu levantava o rosto lá ele estava me olhando e às vezes, sem parar de pular, destampava a falar: "Sabe quanto tempo faz que estou na profissão?" e eu fazia cara de distraído, "Como é?" "Dezessete anos, meu filho, com quinze eu já era meio-médio e em 56 fui vice-campeão no torneio Luvas de Ouro. Perdi a final para o Ansaloni, que depois foi campeão argentino. Agora ando meio por baixo, mas logo, logo eles vão ver. Estou com trinta e dois anos, ainda sou um garoto. Archie Moore tem mais de quarenta, quase dá para eu começar de novo..." "Ah, é?"... E o que é que eu podia responder? Pois se você falava como se eu fosse transparente, você falava para aquele cara de azul que aparecia no espelho, meio abaixado, esquivando o ar. Pular, respirar com força, é só o que te interessa. Que é que você sabe da vida? É por isso que nunca consegui conversar com ele e fazer que entendesse por que eu estava em Buenos Aires, por que vim para cá. Que nem aquela vez que eu falei para você: "Eu sou de Bolívar e vim para Buenos Aires porque quero fazer alguma coisa na vida e em Bolívar não tem chance e se a gente tem as coisas bem claras não pode deixar por menos, foi por isso que eu vim. Além do mais se você não está em Buenos Aires não tem como fazer nada neste país." Falei bem devagarinho que era para você entender. E não achou nada melhor para dizer do que: "Quer dizer que você é do interior?". E eu não sou do interior, nasci em Bolívar, província de Buenos Aires, a 330 km daqui. É por isso que eu digo que com você não dá para se entender. Não fazia nada a não ser pular corda ou ficar largado na cama, de olho aberto. Aí a melhor coisa era dormir, nunca mais acordar, dormir o dia inteiro até que por fim ligassem da Duperial como o Esteban me prometeu. Dormir até, mas às seis da manhã o quarto se enchia de golpes e de pulos e o dia nunca acabava. Eu ficava na cama, tentando não olhar para você, não topar com seu rosto duro e suado; cravava os olhos num canto do quarto, no desenho da parede, e ficava horas assim, olhando como ia mudando de forma e começava a parecer um avião ou uma árvore.

Às vezes de repente eu me sentia sufocado, não aguentava mais, e era aí eu que olhava para você e sorria; falava qualquer coisa, mesmo que ele não me escutasse, mesmo assim eu falava, de esportes, de boxeadores, de qualquer coisa, só para esquecer o silêncio da semana inteira, sem nada além dos "por favor, pode me passar o sal?", "para a segunda da noite, no meio, se possível", "um maço de San Diego e uma caixa de fósforos". E de repente a gente precisa falar. Lembra aquela quinta-feira? Três dias sem poder sair do quarto, tudo mergulhado naquele cheiro azedo e pesado, de suor. Foi por isso que eu comecei a falar com você, de qualquer coisa: "Eu, quando era moleque, gostava de colecionar figurinhas de boxeadores. Ainda me lembro de alguns deles. César Brion. Você conheceu o César Brion?" Ele estava no chão, com as coxas apertadas contra o rosto, separando e juntando os pés e volta e meia olhava para mim lá de baixo, sem dizer nada. "Além disso eu tenho um tio que é louco por boxe. Quando o Gatica foi lá em Bolívar ele queria me levar para assistir uma luta dele. No fim não deu para ir porque meu pai disse que isso era coisa para a negrada. Mas depois eu vi o Gatica na rua. Parecia um louco. Você conheceu o Gatica? Dizem que ele estava arrumado com o Perón." Ele mexia as pernas, pedalando no ar sem responder e eu continuava, contente por ele não me interromper. "E o Lavorante, então? Seis meses inconsciente. Quando eu penso nessas coisas, francamente não entendo como é que tem gente que pratica boxe. Porque, quer saber de uma coisa?, agora que a gente tem mais confiança, para mim, francamente, o boxe é uma carniçaria. É só você ver que todo boxeador acaba meio louco. Você nunca teve vontade de largar dessa vida? De deixar tudo, montar um negócio e viver em paz?" Ele mexia as pernas, deitado no chão, todo vermelho e tão concentrado que, mesmo sem responder, eu achei que ele estava escutando e não tinha o que dizer. Por isso continuei falando quase sem pensar. "Você já está com trinta e dois anos. Trinta e dois, não é? Eu não sei como você ainda não percebeu que tem que largar dessa vida se não quiser ficar inútil ou estropiado para sempre. Que nem esses caras que acabam pedindo esmola ou vendendo qualquer porcaria, feito trapos..."

De repente parou de mexer as pernas, ficou deitado com o corpo tenso, a cara virada, olhando para mim: "Escuta aqui", falou. A voz parecia brotar do chão, entre os pés da mesa.

- Escuta aqui, ô cabecita negra[2] de merda, por que você não fica na sua me deixa em paz? Eu já estava neste quarto antes de você. Estava aqui sozinho, sossegado. E treinava em paz, sem ninguém para ficar me olhando o dia inteiro. Eu preciso ganhar essa luta, entende? Então vê se não me enche o saco, fica na sua e não me enche o saco.

- Calma, meu velho...

- Não me chama de velho... cabecita... Ou você ainda não entendeu que não te aguento mais? - Eu tinha sentado na cama e sentia uma espécie de frio, como um buraco na boca do estômago e ele continuava lá no chão, espremido entre as cadeiras e o criado-mudo. Eu só conseguia ver um pedaço da cara dele e os pés, e sua voz soava esquisita, rouca, vindo lá de baixo. - A gente não aguenta mais vocês todos. Saem da sarjeta para se meter em tudo que é lado, e ainda por cima querem dar palpite e encher o saco. O único erro do Perón foi trazer vocês. Agora a gente é que tem que aguentar. Eu nasci em Pompeya, e não posso ter um quarto só para mim. Percebe o que vocês são?

Tinha sentado no chão e falava mexendo os braços, cada vez mais alto. De repente parou mas depois pareceu me descobrir de novo e disse que estava farto de eu olhar para ele, de sempre ficar olhando para ele e quem eu pensava que era.

- Hein? Quem você pensa que é? - gritou enquanto começava a se levantar, apoiando as mãos no chão, dobrando um joelho. "Agora pira daqui, fui claro?" E tudo se misturava, o calor, a umidade, o corpo dele contra a cama; e lá fora a garoa, o asfalto cheio de luz e as pessoas empurrando e não dá para parar ninguém e explicar o que está acontecendo comigo, explicar que não posso voltar para Bolívar e que ele está sempre enfiado no quarto e daí eu tenho que andar, zanzar por aí e sentar nas praças ou entrar nos ônibus e fazer todo o trajeto, pelos subúrbios, por essas ruas estreitas que parecem as de Bolívar, desertas, com casinhas térreas, sem ninguém. Até que no fim voltava, de noite, cansado, esperando que ele estivesse dormindo para deitar na cama, cobrir a cabeça, quieto e calado, contente por ter a noite inteira só para mim, seguro na escuridão como quando chove e a gente passa de carro e todo mundo corre e é como se você flutuasse, aconchegado no quentinho, olhando a chuva pelo vidro. Toda noite eu entrava cheio de esperança e medo, sem saber se ele estava dormindo. Abrir a porta com os sapatos na mão, muito devagar, imóvel no meio do quarto, ouvindo você respirar. E depois do lado da cama que range, alta, de ferro, deitar aos poucos, tentando não fazer barulho, primeiro sentar na borda, deixando o corpo cair no escuro, erguer os pés, girar, girar quase sem apoiar as costas, baixando a cabeça e suspendendo as pernas para que a cama, o quarto e você fiquem calados, me deixem em paz, me deixem sozinho, sozinho sem ninguém por perto, com o rosto coberto pelo lençol, quieto, pensando em voltar para Bolívar, de carro, entrar pela Rivadavia a toda, buzinando, "olhem aqui, seus otários, aprendam de uma vez, vejam quem chegou", chegar levantando a poeira que é para eles aprenderem, buzinar e acordar Deus e o mundo, saber o que andam dizendo por lá, que reação tiveram quando eu fui embora, talvez um recorte no El Pregón, "Viagens: o jovem concidadão Diego Zavala empreendeu na manhã de ontem o caminho de sua realização..." Voltar e mostrar para ele, para que você entenda de uma vez por todas e não continue pensando coisa que não é. Ou acha que eu não sei que você não ganha de ninguém, que banca o valentão sem ter onde cair morto? Eu vi quando você voltou com a cara toda inchada e o lábio roxo e a sobrancelha aberta. Eu vi você agarrado das barras da cama, com o rosto coberto de suor olhando para o teto. Você treinava todo santo dia. "Eu vou ganhar e entrar de novo como semifinalista." Até perfume você colocou para ir lutar. "Eu não estou acabado. Estou com trinta e dois anos, sou um garoto." Eu vi você, nu na cama, pendurado das barras. "Eu perdi, entende? Perdi porque esse desgraçado era canhoto. Canhoto. Por isso ele ganhou de mim, mas eles vão ver... Se o cara é canhoto você precisa mudar todo o esquema e eu fiquei sem fôlego e com dor nas pernas. Mas não estou acabado. E você, está rindo do quê?" "Eu não estou rindo." "Está rindo do quê? Hein, cabecita? Responde", e me batia de leve, com a ponta dos dedos. "Que é que você está pensando? Quem você pensa que é?" Só me empurrando, os dois no meio do quarto. "Hein, quem você pensa que é?" Eu ia recuando, tateando o chão com os calcanhares, devagar, até que de repente senti a parede nas costas, ele vinha para cima de mim, com o rosto cheio de marcas, agarrava meus braços e chorava, "eu perdi porque ele era canhoto e fiquei sem fôlego", com o rosto inchado, ele se pendurava em mim, dizia que ficou sem fôlego e chorava... Por isso eu sei que você não ganha de ninguém, mas eu engulo tudo porque não quero confusão, porque tenho coisas para fazer, coisas importantes para fazer, e por isso engulo tudo: a história do rádio, da janela e que você leve as mulheres para o quarto. Isso também, que apareça com elas sem avisar, só porque a cama é sua. Eu não dei um pio, fiz de conta que não existiam. Eu fechava os olhos e vocês davam risada e ela, aquela loira enorme, tirava a roupa no meio do quarto e eu enterrava a cara no travesseiro e vocês riam cada vez mais e a cama fazendo aquele barulho, eu tapava os ouvidos, mas tinha o rangido metálico da cama e respiravam cada vez mais forte e ela gritava e por isso eu fugi hoje à noite e fui me meter de novo no meio de Buenos Aires cheia de gente, sempre coberta de estranhos que não olham para você e não te cumprimentam e vão passando por cima, andei de um lado para o outro, sem saber aonde ir e agora queria subir numa árvore, me esconder na copa e ficar olhando toda essa gente passar, ver como são sem mim; empoleirado no alto de uma árvore cheia de folhas no meio da Lavalle, ver toda essa gente de cima e você lá na frente, porque eu não vou engolir que não me deixem dormir, por mim você pode trazer quantas mulheres quiser mas eu quero dormir em paz; vou explicar tudinho para ele, escuta aqui, ô antropoide, por que você não pensa no seu futuro? Você ainda não percebeu que é um sub-homem, um miserável, como um gladiador romano, não compreendeu sua tragédia? Você não entende que vai acabar idiota, pedindo esmola, liquidado? Falar com ele usando palavras difíceis, explicar sua própria vida para que não me atropele, a mim, Diego Zavala, humilhá-lo uma única vez, mostrar para ele a diferença, com um revólver, algo concreto e metálico, chegar com um revólver, mirar na cara dele: "Ô, gorila, com a descoberta da pólvora acabaram os valentões", fazer que pule de quatro e grite que eu, Diego Zavala, é que sou mais homem, que eu é que sou mais macho e levar a loira embora; dizer com a maior indiferença, "Ei... é, você mesma... Quer vir comigo para Mar del Plata?... Tenho um dinheirinho sobrando e..." ir para a cama com ela, eu, na sua frente, e fazer que gema e depois ser caridoso: "A piedade nos diferencia dos animais", passar a mão pela cara dele, apertar suas bochechas, segurar a cara com os dedos, a boca aberta, "É por isso que eu não te dou uma surra, entende?" e ver como ele me pede perdão, que a loira e todo mundo o veja, baixando a cabeça, com aquela nuca chata como uma tábua, lá na frente, no meio de toda essa gente que vem para cima de você e anda na contramão, empurrando, e dá vontade de sair no grito, "Deixe eu passar, pombas", correr e correr aos empurrões, às cotoveladas porque ele dobra na Esmeralda, descer as escadas correndo e não ligo que todo mundo vire e pare de perfil, olhando para mim, porque um dos dois vai sumir, entende?, se não vai acontecer alguma coisa, eu vou te matar, "Que é que você está fazendo por aqui, cabeça?" me falou e o metrô vinha vindo muito rápido, quase sem barulho, mergulhado numa luz clara, amarela. "Escuta aqui", falei para ele enquanto todas as portas se abriam ao mesmo tempo com um assobio, um calor sufocante, entravam e saíam, cheio de gente que entrava e saía, gritavam, vendiam jornais e revistas, davam risada e passavam de mãos dadas, "com licença", "deixe eu passar" e agarrei seu braço "Escuta aqui", falei para ele e todas as portas se abriram e era como remexer num formigueiro, todo cheio de gente que entrava, porque eu não aguento mais, entende, seu filho da puta?, não aguento mais e ele passou a mão por meu rosto e de cada buraco escapavam milhares e milhares que corriam de um lado para o outro, e as portas são automáticas e sumia, sorrindo, cada vez mais rápido e eu parado no meio da plataforma vazia, duzentas caras loiras de nariz chato sorriam, duas mil caras todas de perfil através do vidro, no meio da luz, duas mil caras cruzando no metrô cada vez mais rápido, uma luz, uma luz que sumia.


NO BARRANCO


Acontece que as patas dos camelos são de algodão. Por isso não fazem barulho nenhum. Além do mais eles são muito rápidos, tão rápidos que sempre estão atrás da gente e não dá para ver nada por mais que você vire super-rápido. Eles descem de elevador. Têm um elevador que é como se fosse feito de ar. Foi o Carlos que contou isso para ele. Um elevador invisível onde eles descem com os camelos. Daí escolhem as casas e deixam os brinquedos. Ele nunca entendeu por que sempre traziam tanta coisa legal para o Quique, que é um tonto, um chorão que por qualquer coisinha vai logo chamando a mãe, e para o Gabriel, que até sabe andar a cavalo, eles nunca trazem nada. Que será que o Gabriel fez?, pensou, e de repente teve medo; medo por causa dele.

- Ei, você, vai pegar a bola - ordenou-lhe Melo aquele dia, no campinho. Melo, com as mãos na cintura, encharcado de suor: o chefe da turma. Quando os mais velhos jogavam bola, nem o deixavam chegar perto. Mas agora estavam pedindo a bola, para ele. Saiu correndo e a bola estava lá, encostada no meio-fio, embaixo do carro. Ele a devolveu e Melo não lhe disse nada: nem "valeu, garoto", nem nada. Só quicou a bola no chão e voltou para o meio, sem correr, tranquilo, gritando "três a um". Ele não ligou; mesmo que não tivessem dito nada, era como se os mais velhos tivessem deixado que jogasse com eles. "Lá no campinho, sabe?", quis contar para o Gabriel. Mas foi o Gabriel quem lhe disse: "Ei, que é que você fez no casaco?" Ei, no casaco, disse, e a japona nova, a japona cinza novinha em folha tinha duas manchas de graxa meio parecidas com a cabeça de um cavalo.

Por isso teve medo: de levantar e encontrar os sapatos sozinhos, vazios, sem os patins. Se pelo menos o Carlos estivesse lá, ele daria um jeito para que não ligassem, para que todo mundo esquecesse para sempre aquela história da mancha de graxa no casaco cinza, e da xícara de porcelana que ele primeiro bateu com o cotovelo e depois fez um barulho esquisitíssimo, no chão, perto do pé da mesa cheia de visitas. Por favor que os Reis Magos não fiquem sabendo de nada. Carlos sempre o ajudava. Agora dava tristeza e alegria que ele não estivesse lá. Tristeza, porque não estava. E orgulho de ter um irmão fazendo o serviço militar. Quando Carlos chegava, todo mundo, até o Melo, morria de inveja, enquanto ele passeava com seu irmão, que parecia San Martín, vestido de marrom, de botas e com um cassetete de aço.

O pior é que o dia não passava. Teria gostado de fechar os olhos e de repente já estar na manhã seguinte, brincando com os patins; mas nada se mexia, nem uma folhinha, e a sesta não passava e ainda faltava tomar o lanche e trocar de roupa, faltava quase a tarde inteira e depois tinha que jantar e na certa não ia conseguir ficar acordado a noite toda para poder ver quando eles entrassem no quarto de mansinho para deixar os patins. Além do mais era melhor não se iludir, "por causa da história do elevador", pensou enquanto colocava os soldados que sempre estavam apontando as armas, parados, uns de bruços e outros com a corneta, duros feito uns idiotas. Ele os colocava contra o muro, em fila, para que defendessem a cidade das forças inimigas. Até que o Cacique veio largar seu corpão amarelado à sombra do muro e Ricardo foi Tarzã com seu Tantor, com seu grande elefante Cacique que o levaria até a tribo dos Watussi para lutar por Jane e o professor Filander. Mas Cacique se jogava de lado, não conseguia fazê-lo levantar por mais que puxasse da coleira, ficava ali deitado com a língua de fora, tranquilo, batendo com o rabo no chão e não havia jeito de convencê-lo a ser um elefante por um tempo, um tempinho que fosse. Por isso, quando Felisa ia passando com os tapetes, Tarzã virou Dick Tracy. E tinha que seguir Felisa porque era uma assassina. Isso mesmo: uma assassina terrível. Tirou os sapatos e sorrateiramente começou a segui-la por toda a casa, escondendo-se atrás dos móveis, nos cantos, apertando o corpo contra as árvores, embaixo dos móveis escuros, na cozinha, com muito cuidado porque podem avistá-lo do alto da ponte e o problema é cruzar o beco deserto, mal iluminado pela luz que vem do bar. O beco cinzento que vai da cozinha até a escada de onde se pode dominar todo o porto. E cruzava a viela sorrateiramente, na ponta dos pés, com o revólver na mão direita e os sapatos na esquerda quando Felisa gritou que não fosse tonto, que ia lhe dar uma vassourada se continuasse enchendo a paciência.

Por isso foi para a rua, para o sol da sesta que parecia jorrar de cada pedaço de lajota, misturar-se com o ar quente. E andava, ziguezagueando, sem pisar nas lajotas azuis, mas estava cheíssimo de lajotas azuis e volta e meia tinha que pular abrindo os braços, muito concentrado em evitar o pântano maligno. Muito cuidado porque senão era capaz da história da japona voltar e aí os Reis iam passar batido, sem deixar nada para ele, nem patins, nem coisa nenhuma. Por via das dúvidas, esse ano ele pensava deixar, além do capim, água com açúcar. No fundo os camelos são como o Cacique só que maiores, e o Cacique é capaz de fazer qualquer coisa por açúcar. Trevo e água com açúcar. Ele sempre deixava tudo ao pé do muro dos fundos. Sentia uma coisa estranha no corpo inteiro quando pensava nos camelos bebendo água, com a cabeça inclinada no balde que a mamãe usava para lavar a calçada, e depois comendo o capim com aqueles dentões que parece que sempre estão dando risada.

A esquina estava cheia de lajotas azuis. Toda azul como um lago que Gustavo vinha atravessando na maior calma. Por pouco não gritou: Cuidado com o pântano!, mas enquanto pensava nisso eles já tinham se cumprimentado.

Depois do cumprimento e de conversar um pouco, Gustavo falou para ele. Falou aquilo, de repente, como se o xingasse.

- Mas você ainda acredita? - perguntou. - Ainda acredita? - com uma voz fininha, aguda e o rosto cheio de sardas vermelhas. "Macarrão com molho", sempre gritavam para ele, e tinha o cabelo ruivo caindo na testa e a voz esganiçada:

- Você não sabe que são os pais? Essa história dos reis é a maior cascata.

O suor se amontoou sobre seus olhos, uma nuvem úmida que pintava a rua de um cinza estranho e o F da Farmácia Muro estava meio borrado, sem o tracinho do meio. "Queridos senhores Reis Magos", começava a carta. Todo o sol e o calor batendo em seu rosto.

- Claro que eu sabia - gritou. - Eu sabia, entende? Sabia muito antes do que você. - E teve vontade de bater nele, de puxar do seu cabelo, ruivo idiota, e acertar-lhe uns chutes, claro que ele sabia, mas já estava sozinho e o calor entrava por seus sapatos subindo do asfalto amolecido.

Quando foi ver estava em sua gruta entre os bambus. Só ele e Gabriel a conheciam. Uma gruta cheia de portas secretas onde viviam Sandokan, Poncho Negro, Pena Vermelha e, agora, ele, pensando que nunca mais ia sair, que ia ficar ali bem quieto, para o resto da vida, deixando que todo mundo o procurasse porque não queria ver ninguém, nunca mais.

Estava sentado no chão de terra e lá em cima o vento tremia os bambus com um barulho estranho e muito triste, uma espécie de cochicho, e então ele se deitou de bruços, com as mãos na cabeça, pensando que era capaz de tudo ser uma espécie de mentira e então a mamãe e o papai também não existiam: voltava para casa e que ninguém ia lhe dar um beijo nem nada, mal o cumprimentavam porque ninguém estava mais para brincadeira e falavam para ele: "Mas quem é você, garoto?", e o mandavam para um daqueles colégios que o tio Joaquín lhe mostrou, com muros cinza, enormes e escuros, onde moravam as crianças sem pais.

Fazia círculos na terra; desenhava figuras e as apagava com a palma da mão sem entender por que levou bronca aquela noite que tinha visita na sala, os homens do escritório do papai, e como ninguém lhe dava bola, ele sentiu vontade de contar que em sua cama tinha um cavalo azul. Levantou-se descalço e disse da porta: "Na minha cama tem um cavalo azul", e levou bronca de todo mundo, menos do vovô, que sorria para ele.

O vovô loiro, superalto, que o levava nos ombros e lhe falava do lugar onde tinha nascido, um país ensolarado onde a terra era vermelha, cheia de montes e de cavalos selvagens com longos rabos dourados que batiam no chão. Muitíssimos cavalos galopando ao longe e um potro azul que era o chefe e sempre estava quieto, no topo de um morro. E ele lhe contava as brigas entre os cavalos, de noite, levantados sobre duas patas, relinchando nervosos. E falava do cavalo azul que era o mais valente e o mais forte e o mais lindo. Agora seu avô estava viajando, e lhe mandava umas cartas em que dizia que era para ele se comportar e ser bem obediente. O papai é que as lia mas não pareciam do vovô. Se ele estivesse ali, ia lhe explicar. Só que não estava, nem ele, nem o Carlos. "E o Carlos, por que que me falou aquilo dos elevadores se era mentira?" Quando pensou no Carlos já estava fora, passando a palma da mão pelos muros quentes. A rua deserta, achatada pelo sol, se juntava com o barranco da ferrovia, lá longe. Naquele lugar onde ele nunca teve coragem de chegar, onde volta e meia passavam trens, com as locomotivas cobertas de fumaça, o trem inteiro bufando lá no alto, por cima da cidade, no fim da rua. E caminhava devagar olhando os rodamoinhos de poeira, espantado por andar naquela rua tão comprida, cheia de árvores, cheia de mistério, com terrenos baldios e casas desconhecidas. Volta e meia pegava bolinhas de eucalipto do chão e as jogava contra o céu e depois passava a mão pela ponta do nariz e achava o mesmo perfume do inverno, quando a mamãe punha uma porção delas para ferver em cima do aquecedor e tudo era quentinho, com aquele cheiro suave e ele, deitado no tapete, brincava de ser um barco a vela e estavam todos lá: a mamãe costurando e o papai sentado na poltrona, todos juntos, e ele, de repente, começava a gritar de felicidade; batia a mão na boca feliz por estarem todos juntos e dava a correr de um lado para o outro e a mamãe começava a gritar mas ele continuava correndo sem parar porque estava desembestado e não tinha como brecar, apesar da grama que escorregava, e teve que escalar o final o barranco de quatro, cravando os dedos na terra, encurvado, segurando no mato.

Em pé, no topo, com as mãos na cintura, de costas para a cidade, via todo o outro lado do mundo: os moinhos de água e os pinheiros e o riacho onde os mais velhos iam nadar e muito pequena, como uma mancha lá longe, a mata onde Melo dizia que dava para caçar corujas.

Depois começou a caminhar equilibrando-se nos trilhos com os braços abertos e o sol no rosto. Balançava o corpo, pisando o calcanhar com a ponta do outro pé, sem tocar nos dormentes, armando-se de coragem para cruzar para o outro lado, para dar o salto, agora, e cair deslizando pelo barranco, sentado como num escorregador até mergulhar no capim, perto do bambuzal.

Deitado ali, de bruços, à sombra do barranco, era como se o sol tivesse ficado lá na cidade, em sua casa, do outro lado, e ele estava sozinho, na sombra, deitado no capim, ouvindo o zumbido das vespas e o barulho do vento nos bambus secos. Olhava os galhos das árvores contra o céu e sem saber por que se lembrava dos lugares que seu avô lhe contava e até pensou que numa dessas por ali andavam os cavalos selvagens escondidos na mata ou pulando os para-choques de madeira salpicados de mato.

Afundou o rosto no capim fresco, dobrando as pernas sobre as costas, feliz de repente; feliz porque além do mais podia contar tudo aquilo para o Gabriel. Escalar o barranco e descer correndo e ir contar para o Gabriel que tinha atravessado para o outro lado, lá onde ficava a mata cheia de corujas e o riacho. Correr de cabeça baixa pela rua cheia de sol e árvores e cheiro de eucalipto. E chegar na esquina, respirando agitado, com a cara suja de terra e suor. Parar na frente da porta altíssima e marrom e ficar na ponta dos pés para alcançar a argola de bronze.

Um golpe seco que retumba na sesta.

- Tudo bem? - perguntou-lhe Gabriel, parado no umbral, feliz por vê-lo.

Ricardo, com as mãos entrelaçadas nas costas, pensou no lugar que tinha conhecido para lá do barranco, na água com açúcar; pensou que o Carlos também era um mentiroso e que seu avô era o único que falava a verdade, apesar das cartas que não pareciam dele.

Tudo isso ele pensou enquanto lhe perguntava:

- E você, Gabriel? Sabe quem são os Reis Magos?


A ATIRADEIRA


Eu não caio em conversa de criança. Sei que todos os meninos mentem, que sempre fazem cara de santinhos para depois rir nas costas da gente.

O que aconteceu naquele dia foi que eles não podiam imaginar que meu patrão e eu tínhamos resolvido trabalhar, mesmo sendo domingo.

Por isso atravessamos a trilha de terra até o galpão dos fundos.

Lembro que na rua estava passando um carro de propaganda com alto-falantes no teto; e que eu fui ouvindo a música até que viramos e, de repente, o paredão abafou o barulho.

Aí o vento trouxe as vozes e as risadas.

Quando os descobrimos eles se agacharam, tentando se esconder entre os ferros, mas já era tarde.

Nenhum dos quatro tinha mais do que doze anos.

Entravam para roubar pedaços de chumbo que depois jogavam com a atiradeira.

Disseram que tinham ido lá porque o Nacho garantiu que era amigo do patrão e que o patrão deixava ele catar chumbo no meio da sucata.

Meu patrão tomou deles as atiradeiras que levavam penduradas do pescoço e jogou todas elas no fosso de cimento que antes, quando a oficina ficava lá e não na avenida, servia para lubrificar os carros por baixo.

De castigo, os moleques começaram a varrer, como o patrão mandou.

Enquanto varriam ele perguntou se sabiam ler. Os quatro sabiam e os quatro tinham lido o cartaz:

ENTRADA PROIBIDA

Mas entraram lá por culpa do Nacho, que disse, repetiram, que era amigo do patrão.

Nacho, magro e moreno, varria em silêncio.

Nós tínhamos que desmontar umas portas de chapa para poder consertar o teto do galpão de lavagem. O mais alto dos quatro meninos me ajudava por ordem do patrão. Trabalhava muito concentrado e me chamava de "senhor".

Afrouxamos os pregos e os arrancamos com a trincha. Depois tiramos as chapas e as amontoamos num canto. Cortamos os tirantes, dois compridos e dois curtos, e começamos a preparar o suporte.

Trabalhamos a madeira na beira do fosso para poder serrar para baixo sem risco de bater no chão e estragar o serrote. O garoto segurava firme o tirante e me olhava de esguelha.

Dali a pouco parece que se armou de coragem e falou muito sério:

- Senhor, deixa eu ir pegar a atiradeira?

- Eu não tenho nada com isso. Por mim, estava dormindo a sesta. Pergunta para o patrão, se ele te dá ela de volta - respondi.

Ele continuou ajudando, sério e concentrado. Dava vontade de rir aquela sua cara de preocupação. Parecia ser o chefe da turma e de quando em quando olhava para os outros, como se os quisesse tranquilizar.

Continuamos trabalhando no sol. Montamos o suporte e começamos a pregar as chapas. De vez em quando ele levantava a cabeça e me olhava sem dizer nada, sério, com a testa brilhante de suor. Chegava a incomodar o jeito como ele me olhava, como se a culpa fosse minha e me exigisse de volta a atiradeira trançada, de forquilha de madeira, que a gente podia ver lá embaixo, no antigo fosso de lubrificação.

Até que falei para ele:

- Quando eu deixar cair o martelo, você desce lá para buscar e aí pega a atiradeira.

Ele sorriu e continuou segurando o tirante que eu martelava cansado.

O martelo bateu contra o chão com um barulho surdo.

- Ei garoto, vai lá embaixo pegar o martelo - gritei.

Ele desceu correndo a escada manchada de sol. De cima parecia muito forte. Eu via seus ombros e a cabeça despenteada.

Tive a impressão de que o patrão tinha parado de trabalhar.

O garoto se agachou para apanhar a atiradeira.

Esperei até que ele a guardou, apressado, entre a camisa e o peito; então me virei e gritei para o meu patrão:

- Patrão, o menino escondeu a atiradeira na camisa.


MATA HARI 55


O maior incômodo desta história é ela ser verdadeira. Engana-se quem pensa que é mais fácil contar fatos verídicos do que inventar um enredo, suas relações e suas leis. A realidade, como se sabe, tem uma lógica esquiva; uma lógica que, às vezes, parece impossível de narrar. Diante do risco de violentá-la com a ficção, preferi transcrever, quase sem alterações, o material que gravei em sucessivas entrevistas. A fidelidade do Gründig W2A portátil serve como testemunha da veracidade deste relato que me foi feito, pela primeira vez, entre o entardecer e a meia-noite de um dia de verão, no Bar Ramos, na esquina das ruas Corrientes e Montevideo.

R.P.

Fita 1 - lado A

Tenho certeza que ele nunca lhe disse: "Você tem que ir para a cama com o Ordóñez". Quer dizer: nunca o disse assim, de forma tão violenta. Foi uma manobra a distância que no fim fugiu do seu controle. Uma espécie de bumerangue: você o joga como quem não quer nada e, se não se abaixa, ele corta a tua cabeça.

Você precisava conhecer a figura para entender: faz o tipo trágica, apaixonada. Quando escolhe um papel, vai até o fim: se possível de mártir, puta ou enfermeira no Congo. Qualquer coisa, contanto que seja algo heroico. Com rajadas de metralhadoras e feridos esparramados pelo chão. Ou, então, garota que dorme com peronista para salvar a Pátria enquanto cai o pano e o pessoal da banda ataca a marcha de San Lorenzo.

Quando a conheci tinha dado para mudar de nome. Até então seu nome tinha sido Marta ou Luísa, ou algo assim, mas achava que era vulgar demais. No começo andou meio perdida. Dali a dois meses tinha passado por Ligeia, Lola e estava em Delfina, enquanto lia a biografia de Pancho Ramírez.

Dois anos mais tarde, quando a encontrei de novo, ainda não tinha se decidido.

Imagino que ele soube qual era a dela dez minutos depois de conhecer a figura. Quando percebeu a chance, ele a foi conduzindo, seduzindo aos poucos: dali a pouco a carregou a duas ou três reuniões com distribuição de armas, Hino Nacional e nomes falsos, e no fim a embrulhou no papel de Mata Hari nacional.

Tudo isso em julho ou agosto de 55, uns dias antes da revolução. Não acho que ela entendesse muito de Comandos Civis, Cristo Vence nem nada daquilo, mas estava fascinada com o mistério, o perigo, a clandestinidade em que tudo aquilo vinha empacotado.

No começo se encontravam com ela em Palermo, sem sair do carro, dando voltas no lago com os faróis apagados e falando em voz baixa, até que a deixavam feito uma seda, convencida de tudo.

Eles a engrupiam com toda a mis-en-scène, coitadinha, ela que no fundo sempre quis ser Eva Perón.

Na certa pensava na Revolução Francesa, no desfile pela avenida Santa Fé depois da queda da Bastilha, todo mundo no capô do carro erguendo as metralhadoras, enquanto chovem flores das janelas, o vento agita as bandeiras e todos cantam.

Claro que quando a revolução e o desfile aconteceram ela não estava entre os presentes e sim estudando gramática na Aliança Francesa porque queria ir para a Europa.

Mas isso foi depois.

Naquele tempo ela pensava o dia inteiro na Libertação e fazia, sem perceber, o tipo barrete frígio e olhos flamejantes. Você nem faz ideia de como ela estava carregada de literatura. Por isso eu fico com raiva quando penso em como eles a usaram. Quando ela me contou, estive a ponto de denunciar todo mundo para a polícia, mas não fazia sentido e além do mais já tinha um cheiro de revolução no ar. Por outro lado, eram inofensivos: garotões da FUBA[3], entende?, deslumbrados com as crônicas da Resistência Francesa, dos maquis lutando contra a Gestapo, coisas assim.

Fita 1 - lado B

Você não vai acreditar. Parece mentira, sabe? O modo como eu conheci aquela gente e tudo o mais. Me lembra alguma coisa, um filme, sei lá. É estranho, entende? Como se tivesse acontecido com outra pessoa e eu, agora, pudesse olhar para ela daqui, como se nada, e lembrar.

Além disso, eu conheci o Javier por acaso. Porque para mim tudo começou quando conheci o Javier. Bom, não sei se começou bem aí, mas foi por causa dele. Eu sabia que ele andava metido em política, mas eu não ligava muito para essas coisas; na verdade, o pior era a gente não ter tempo para se ver: às vezes, até de sábado e domingo ele tinha reunião e eu me dopava sozinha, num cinema ou andando pela rua.

Não sei se eu estava apaixonada por ele. Gostava muito dele, isso sim. Seu cabelo era de uma cor tão diferente, você precisava ver, um loiro puxando para o cinza, meio acinzentado, e quando o sol batia ficava todo iluminado, parecia um Deus.

Saíamos muito de vez em quando, mas cada vez menos e tenho certeza que tudo teria acabado se não fosse aquela tarde na Faculdade, quando ele me perguntou: "Você o conhece?" "Quem?", falei. "Esse aí que você cumprimentou." "O Germán? Conheço, por quê?" "Você sabe o que ele é?" E eu, muito besta, respondi: "Claro que sei, ele é advogado". E nem percebi que ele estava falando do peronismo. E olhou para mim como se não tivesse me escutado.

"Então você o conhece?", falou, e como eu pensei que era ciúme colei meu corpo ao dele e comecei a dar explicações.

Depois disso ele mudou. Agora que eu percebo. Naquele tempo achava o máximo a gente se ver mais seguido, que o Javier tivesse começado a falar de política comigo, querendo que eu entendesse.

Eu me entusiasmo com muita facilidade, é sempre igual. Quando fui ver já estava indo nas reuniões.

Além do mais era tão emocionante, tão misterioso, precisava ver. Parecia mentira que em plena Buenos Aires pudesse ter gente com armas, fazendo reuniões secretas e querendo preparar uma revolução.

Eu achava que isso estava estampado na cara da gente. Às vezes eu andava pela rua e sentia que todo mundo me olhava ou que estava sendo seguida por um policial disfarçado.

A gente se encontrava em bares exóticos em Constitución ou no Bajo; depois ia para um hotel em Adrogué cheio de eucaliptos. Eles me davam os endereços escritos de um jeito estranho, em papéis duplicados ou com algum número trocado. Depois, para poder entrar, tinha que dizer umas frases. Um cara te perguntava: "E os condores?" E você tinha que responder: "Voam devagar..."

Uma vez eu estava tão contente que quando o cara me perguntou: "E os condores?", respondi: "Vão bem, obrigada". Lá dentro caíram de pau em cima de mim e falaram que eu não era séria ou que não levava as coisas a sério, ou algo parecido. E o pior é que eu não me aguentava de vontade de rir.

Mas se eu te falasse que não levava aquilo a sério estaria mentindo. Eu acreditava em tudo: que eles tinham razão e que era preciso derrubar o Perón para salvar a Pátria.

Eu queria fazer algo, qualquer coisa, mas eles sempre falavam que devia esperar. Ficavam o tempo todo organizando grupos, comandos e coisas assim, claro que eu mal ficava sabendo de nada, porque nas reuniões tudo era cifrado. Continuei indo durante quase três meses e nunca me escalaram para fazer coisa nenhuma.

Só uma vez saí com eles de carro e passamos a toda pela praça do Congresso, jogando papéis. Se você quer saber, não senti nada, foi como dar uma volta.

Até que por fim começaram a "Operação Ordóñez". Era assim que eles a chamavam: "Operação Ordóñez", mas eu logo percebi o que era. Não porque tivessem dito qualquer coisa, foi só uma sensação.

Volta e meia me acontece isso de, de repente, perceber alguma coisa no ar, e quando me perguntam por quê, eu não sei o que dizer.

No começo ainda quis falar disso com o Javier, mas não tive como. Além do mais, não tinha certeza; quer dizer, não ia saber como explicar aquilo e ele ia dizer que era loucura minha porque nenhum deles tinha dito: "Precisamos que você vá para a cama com o Ordóñez". Pelo menos não assim, diretamente, mas eu senti no ar.

Andava o dia inteiro com uma sensação estranha: sabe quando a gente está num terraço ou num lugar bem alto e tem medo de cair mas ao mesmo tempo tem vontade de se jogar? Então, uma coisa assim.

Além disso, você vai rir da minha cara: fui me lembrar de um filme da Michèle Morgan em que ela tem que ir para a cama com um alemão. É durante a guerra e ela tem que ir para a cama com um alemão. Sei lá, me lembrei disso e achei que eles estavam esperando que a proposta partisse de mim, que não tinham coragem de me pedir. Foi por isso que me levantei e falei assim para eles: "Vocês sabem que eu conheço o Ordóñez." Levantei, sabe?, sozinha no meio da reunião e tentando não olhar para o Javier. Eu, muito tonta, tinha vergonha de olhar para ele e não queria que ele se sentisse mal, mas enquanto estava lá falando tinha certeza de que ele ia me interromper. Que ia dizer para eu me sentar. Na verdade não sei o que eu teria respondido se ele tivesse dito alguma coisa, mas tanto faz, porque o Javier continuou fumando, sem levantar a cabeça, olhando para o chão.

Daí eu perguntei se interessava. "Se interessar", falei, "posso ligar para ele".

Fita 2 - lado A

Quando ela me ligou, achei estranho. Parecia que estava desesperada para me ver, e eu, você sabe, desconfio por princípio dos arroubos passionais. Principalmente os dela, que se entusiasma até o delírio com o romance que estiver lendo e quando calha de encarnar a Temple Drake é melhor tirar o time de campo por alguns dias ou levar ela no cinema para assistir uma história das carmelitas descalças, para contrabalançar. De qualquer jeito, como você pode imaginar, eu também me deixei levar pelo entusiasmo e marcamos um encontro para a mesma noite.

Fazia séculos que eu não falava com ela. Tínhamos nos conhecido em Mar del Plata, no verão de 53. O caso durou até meados de julho, já em Buenos Aires, e foi murchando suavemente apesar das mútuas juras de amor eterno.

Depois ainda nos encontramos três ou quatro vezes na cidade, principalmente no início, quando o bronzeado dela ainda não tinha desbotado por completo. Em geral acabávamos na cama, alegremente e sem complicações, desejando mútua felicidade e prontos telefonemas.

Fiquei quase um ano sem notícias dela até que uma tarde - dois ou três meses antes disso que estou te contando - cruzei com ela por acaso na Faculdade e ela me cumprimentou com muita pressa, como se tivesse medo que eu parasse. Achei que era porque estava com um daqueles caras da FUBA, que sabia que eu era peronista, e não queria que o cara percebesse que nos conhecíamos.

Por isso também fiquei surpreso quando, de uma hora para outra, ela me ligou, toda oferecida, com tanta vontade de me ver e de conversar comigo.

Aí eu me aprontei como se fosse ao teatro Colón, com terno preto e lavanda Yardley, mas no fundo bastante desconfiado.

Ficamos de nos encontrar na confeitaria Jockey, na rua Florida; eu cheguei cedo e tratei de logo pagar o café, para poder sair com ela assim que entrasse, ir para um lugar com mais clima, evitar as formalidades caminhando pela rua.

Foi ver a figura entrar, levantar para ir ao seu encontro e quase cair para trás.

Enquanto ela ia entrando, eu passava por entre as mesas e não podia acreditar no que via. Lembro muito bem de ter até parado no meio do salão com todo mundo olhando para mim. Parecia... Como é que eu vou te explicar?... Sabe uma sufragista? Lembra daquelas minas de botas que levavam cartazes e saíam no La Vanguardia? Algo parecido, mas não exatamente porque era mais patético. Estava fantasiada, juro. Fantasiada de homem, sei lá: com um pulôver preto e o cabelo grudado no rosto, sem pintura e com um par de sapatões desses de andar na neve. Era triste, dava vontade de comprar roupa para ela.

Coitadinha, porra, quando eu penso.

"Você está linda", falei quando íamos saindo, e ela me olhou como se quisesse me matar e disse: "Você não muda, mesmo?", ou algo assim.

Descemos a rua Viamonte até Leandro Alem; ela andava dura, como se escondesse o corpo, e para piorar não conseguíamos sair do "E você, tudo bem?" e demais considerações igualmente espontâneas sobre o calor e a umidade de Buenos Aires.

No fim acabamos no "La Escalerita" um de cada lado da mesa, e calados.

De quando em quando ela passava a mão pelo cabelo, como se lembrasse seus tempos de esplendor ou quisesse se despentear para ficar mais feia ainda.

Por fim trouxeram o uísque e aí eu respirei aliviado porque pelo menos tinha alguma coisa para fazer.

Dali a pouco tínhamos bebido tanto para disfarçar o silêncio que estávamos os dois bem altos: eu querendo levá-la imediatamente para a cama, apesar do uniforme, e ela martelando com sei lá que história e querendo ir embora. "Mas pra que porra você me ligou?", eu pensava ou dizia, e ela tinha resolvido se emocionar e dizer que me amava ou que tinha me amado, algo assim, porque confundia o tempo dos verbos e de quebra ainda deu para chorar.

Cada vez que ela começava com a história do amor, eu sentia a esperança renascer. "Isso! Agora vai!", pensava, "Agora vamos para a cama, e um abraço". Que nada. Você nem imagina como ela é persistente. Voltava a chorar, a passar a mão pelo nariz e a querer ir embora.

Eu tentava acalmá-la e ela então queria me explicar algo, mas imagino que eu estivesse obcecado e a única coisa que queria que ela me explicasse era porque tinha se vestido daquele jeito, como quem vai a um piquenique. "Você não entende", ela me dizia, "eu estou muito mudada". "Não tenho a menor dúvida." Eu a interrompia para dizer que não tinha a menor dúvida que estava muito mudada e pegava no braço dela e jurava por Deus que ia fazer todo o possível para que voltasse a ser a mesma de antes e ela de novo me dizia que eu não estava entendendo e eu jurando e ela querendo explicar e eu dizendo para ela.

Ficamos nisso durante uma hora.

Até que no fim dei um basta naquela embromação, puxei de seu braço e a coloquei num táxi que Deus mandou passar pela rua Tucumán.

No táxi ela colou seu corpo ao meu e começou a chorar baixinho, como se não quisesse que eu notasse. De vez em quando dava um desses suspiros que se complicam no nariz e fazem um barulho estranho, quase um grito, e aí o chofer nos espiava, insistente, pelo espelhinho de praxe. Eu fazia um gesto com o rosto, como quem diz "Que é que se há de fazer, meu velho?", e ele seguia rápido Las Heras acima.

Na verdade, agora que eu penso, vistos de fora, do ângulo do chofer, por exemplo, devíamos parecer um tanto exóticos: ela com sua cara de ex-aluna do colégio Nuestra Señora del Huerto só que vestida de escoteiro, e eu de terno preto, camisa azul-clara e alfinete de ouro, o próprio quarentão sádico.

Quando chegamos e eu me adiantei para pagar, o chofer olhou para mim como quem diz: "O senhor não tem vergonha?" Deixei vinte pesos de gorjeta mas, por via das dúvidas, deve ter memorizado o número da minha casa.

Fita 2 - lado B

Lá dentro tudo aconteceu de repente.

Ou agora parece que aconteceu de repente e não foi assim, não tenho certeza.

Lembro que assim que a gente entrou ela foi direto para a janela e ficou olhando a praça, como se pensasse em alguma coisa.

Eu aproveitei para apagar a luz que tinha ficado acesa, para trazer os copos e servir uísque, para encostar a porta do quarto porque isso sempre dá uma má impressão.

E por fim me aproximei, tentando parecer vivamente interessado na paisagem urbana de Palermo Chico, mas quando encostei a mão nela, deu um pulo para trás como se eu a fosse empurrar pela janela.

Cruzou toda a sala de estar e parou num canto, bem embaixo da única luminária acesa. Eu não fiz nada, continuei fumando sem desgrudar os olhos dela. Pensando bem, era bastante absurdo, uma mulher enfiada embaixo de uma luminária de pé, com luz por toda parte. Devia estar sentindo um calor horrível mas tentava disfarçar, sorrindo.

Você precisava ter visto o sorriso dela para poder contar. Estava com todo o rosto sério, clareado pela luz, e arreganhava os dentes como se, na verdade, estivesse a ponto de cair no choro.

Dali a pouco pareceu tomar uma decisão.

- Você não vai me servir um uísque? - perguntou, caminhando até a mesinha de centro.

Pegou um copo e veio na minha direção. Eu estava sentado no sofá e ela parou na minha frente e ficou me olhando de cima, com o copo na altura dos olhos, através do vidro. Balançava o corpo sem sair do lugar, como para me seduzir.

Dava até pena, coitadinha, posando de mulher fatal dentro daquele pulôver todo desbotado e de coturno.

Juro que teve uma hora que estive a ponto de acender a luz, tirar o copo de sua mão e dizer que fosse para casa dormir. Mas não sei se cheguei a pensar nisso ou é uma ideia que me ocorre agora, porque quando fui ver já estávamos no quarto, ela dependurada do meu pescoço e eu tentando desviar dos móveis, sem soltar seu corpo e girando para localizar a cama por cima do seu ombro.

Quando chegamos comecei a falar baixinho, para que ela fosse se acalmando enquanto, a muito custo, tirava seu uniforme até que ficou nua, os dois deitados na cama mas eu ainda de terno e sapato porque não quis me distrair, não fosse começar tudo de novo.

Enquanto eu tirava a roupa, tentei continuar com as carícias, mas é muito difícil, sabe? Não dá para cuidar do estilo se você está todo torto, lutando contra um par de sapatos, e de cueca. Não sei como explicar, já te falei que tudo se misturava, por culpa do uísque, imagino, mas agora fico achando que, aí, aconteceu alguma coisa.

Não me lembro direito, o que sei é que eu estava lá pulando num pé só lutando para tirar os sapatos e que de repente ela estava rindo como antes.

- Você está bem ridículo. Parece um elefante dançando cancã - ela disse, e eu na hora não achei a menor graça, se bem que agora penso que nua e com aquela risada sacudindo seu corpo inteiro ela já era outra, era a de sempre, a do verão de 53.

Foi um acontecimento encontrar de novo com ela, redescobrir aquela curva da barriga, o gosto da boca, relembrar o ritmo certo para ver como arqueava o corpo e gemia como uma gata.

De qualquer jeito o que interessa aconteceu depois, e agora você vai entender por que estou te contando isso e por que quero que você também o conte.

Aconteceu logo em seguida, os dois deitados de costas e fumando, eu acariciava suas coxas, passava bem de leve a mão por sua barriga e de repente ela virou o rosto.

- Germán... - ela disse, e eu perguntei, sem muito entusiasmo, o que ela queria.

- Nada... Nada... - disse olhando o vazio com um sorriso estranho e como se estivesse pensando em outra coisa.

Eu continuei alisando sua barriga, comprovando que ainda havia uma espécie de linha divisória, uma faixa onde sua pele ficava mais clara, entre o ventre e as coxas.

- Germán... - repetiu, dali a pouco.

- Que é?

- Você não vai acreditar...

- Como?

- Estou dizendo que você não vai acreditar...

Eu estava meio cochilando e mal escutava o que ela dizia e respondi qualquer coisa.

- Vou, sim, querida, vou acreditar, não se preocupa, vira para o outro lado e dorme.

Ou qualquer coisa assim, mas ela continuava, com os olhos fixos no ar.

- Parece um sonho. Um filme, sei lá. Como se tivesse acontecido com uma outra pessoa e eu, agora, pudesse olhar para ela daqui, como se nada, e lembrar. Não sei se você está me entendendo...

- Não. Não estou entendendo - respondi, furioso porque na hora de virar tinha derrubado o cinzeiro com o cotovelo, e de repente a cama estava um nojo de guimbas e cinza por tudo que é lado.

E enquanto eu me ajoelhava no colchão, xingando, e tentava recolher a cinza e pôr de volta no cinzeiro, as coisas se complicavam. Principalmente porque a cinza é foda de pegar, logo vai entrando nas dobras do colchão e quase não notei que ela tinha começado a contar tudo aquilo, sem se importar comigo lá lutando com os montinhos de cinza; sem se importar com que eu fosse entendendo aos poucos, enquanto sacudia os lençóis e ela continuava falando como se nada, porque não era para mim (e é a primeira vez que penso nisso) que ela estava revelando detalhadamente as reuniões e os nomes, não era para mim mas para ela mesma. Para ela mesma, entende?


AS ATAS DO JULGAMENTO


Na cidade de Concepción del Uruguay, aos dezessete dias do mês de agosto de mil oitocentos e setenta e um, o Sr. Juiz da primeira instância criminal, Dr. Sebastián J. Mendiburu, assistido por mim, o subscrito Secretário de Atas, constituiu-se na Sala Central do Foro Municipal para tomar declaração do acusado Robustiano Vega como testemunha neste processo, quem, sob o prévio juramento de dizer a verdade sobre tudo o que soubesse e lhe fosse perguntado, fê-lo no seguinte teor:

- O que os senhores não sabem é que ele já estava morto antes. Por isso que eu quero contar tudo do início, para que não pensem que ando arrependido do que fiz, pois uma coisa é a tristeza e outra diferente é o arrependimento, e o que eu fiz já estava feito e não foi mais do que um favor, algo que se faz só para aliviar, algo que não faz diferença para ninguém. Nem para o General.

Porque para nós ele já estava morto antes. Isso os senhores não sabem e agora armam esse escarcéu e andam dizendo que nos baixos de Toledo tivemos medo. Que fizemos isso por medo. Vêm dizer justo para nós que foi por medo de lutar? Nós que botamos para correr don Juan Manuel, e Oribe, e Lavalle, e o Manco Paz? Nós que estávamos aquela tarde em Cepeda, quando o General reuniu todo o mundo do Quinto Regimento numa lombada, e o sol batia de frente e o iluminava, e ele falou que se os portenhos eram mil, bastava com quinhentos dos nossos. "Porque com metade dos meus entrerrianos eu os espanto", disse o General, e o sol apertava seus olhos.

Naquele tempo já contávamos quase dez anos de saber o que é nunca ter fugido, o que é galopar e galopar como que às revoadas, e sentir a terra tremendo embaixo, e remeter aos gritos enquanto os outros são uma poeirada miúda, como se a tropa toda lhes desse caça.

Naquele tempo, lutar era quase uma festa. E quando a gente se juntava era para uma festa e não para morrer. Ouvia um galope, lá longe, que vinha aumentando até que atravessava a vila sem parar, avisando a gente. Na mesma hora as mulheres começavam a choramingar e às vezes dava até dó por causa da colheita, ou porque os bichos estavam de cria nova, ou a gente acabava de se atracar e tinha que deixar a dona com vontade, porque o General dizia que para lutar como se deve ninguém pode ter a mulher junto; porque levar a mulher a tiracolo não é coisa de homem. Era só ele que levava mulher, mas o General era diferente e precisava de mulher pelo mesmo motivo que a gente não precisava.

Todo o Entre Ríos ficava vazio, quando a gente ia embora. Era coisa de não se ver ninguém por lugar nenhum, como se fosse de noite, que não se vê vivalma, cavalo nem nada, porque todo mundo estava lutando. Teve vez de a gente voltar só com a roupa do corpo e era um custo arrebanhar os animais e a mulher, e às vezes o mato tinha tomado conta de tudo e era triste de ver. Por isso que os portenhos mentem quando dizem que cada um dos soldados da confederação era dono de uma fazenda. Mentem, e eu quero que o senhor escreva aí que eles mentem, para que todo mundo fique sabendo. Mentem porque somos muitos e Entre Ríos não dá terra para todo mundo. Pelo menos terra que preste, porque a que fica nos banhados ninguém quer, e o resto, tirando a que é do General e a que o General deu para os oficiais, não sobra terra nem para cair morto. Mas os portenhos vão mentindo já não é de hoje e nem fazem ideia do que se passa por aqui. Eles não sabem como é isso que dava de nos juntarmos quase todos os entrerrianos em dois dias para perguntar ao General quem que era para espantar. Isso de ver chegar soldado de tudo que é lado, que para onde a gente olha tem cavalos, e o General ali de poncho branco, só esperando.

Por isso quem fala que foi por medo não sabe de nada e decerto são portenhos. Não sabem que tudo aconteceu por causa desse mesmo orgulho. Aquela alegria que nos deu da vez que fizemos as cem léguas do Ubajay a Pago Largo numa só galopada de nove dias corridos. Foi na época do Oribe, e tivemos que ir domando potros no caminho porque a metade rebentou na tal galopada, com o sol sempre castigando e a gente só correndo como que para fugir dele. Parecia isso mesmo, que disparávamos do sol que se enfiava dentro da pele, que nos enchia a cabeça de poeira e de cansaço e na certa foi isso que nos fez andar tão ligeiro. Quando chegamos, era cheia do Uruguai. Devia estar chovendo nas cabeceiras, porque ali o céu até doía de tão claro enquanto a gente se amontoava nas margens, e o rio estava tão largo que só dava para ver a sombra da mata, do outro lado. Estava cheio de enxurro e troncos que passavam pulando, e quando não tinha troncos a água ficava quieta e marrom, parecida com a terra. Ficamos ali só olhando, até que o sargento Reyes foi e disse para o General o que todo mundo estava pensando. Chegou-se nele e, sem apear do cavalo, falou aquilo. Então o General galopou de uma ponta a outra com o chapéu no alto, como que agradecendo. A água puxava que dava medo e só muito a passo é que se firmava o vau e era duro nadar levando o cavalo do cabresto e a água estava morna e de repente cortava de tão gelada e a trechos tinha um que dava um berro e uma cabriola e apareciam as patas do cavalo e a barriga, e era que a correnteza tinha carregado com ele e esse já não aparecia mais, pelo menos até o Salado. Dizem que o rio estava cinza de gente, que éramos tantos que em vez de água parecia cheio de entrerrianos. Ficamos nisso perto de uma hora até poder firmar os pés no barro. Dizem que o General foi por um perau e por pouco que não se afoga. Que bracejou feio e acabou agarrado num tronco. Isso é o que dizem, mas tem os que o viram da outra margem, muito sossegado e não sufocado como a gente, que respirava abrindo a boca, porque, uns mais outros menos, todo mundo tinha sentido o gosto de azeite morno da água revirando as tripas.

- Quem disse que não é dessas coisas que eu tenho que falar? Se foi por essas coisas todas que eu fiz o que fiz e o General entendeu que não era para o medo que a gente negava o corpo aquela noite nos baixos. Foi por essas coisas todas que ele ficou sabendo e porque ele, da gente, sabia tudo. Pelo menos enquanto ele foi o de sempre, antes que o mudassem; enquanto foi o de sempre e lutou para vencer e mandou para vencer. Enquanto remeteu com a gente, nas salteadas, também ele lá com a lança e a galope e gritando palavrão, como qualquer um. Enquanto o vimos aparecer nos festejos e se misturar, como se gostasse. E a gente sentia que ele mandava, não porque fosse o General, mas pelo jeito de olhar, com aqueles olhos amarelos, que mandava sem dizer nada, mesmo dançando conosco, na rancharia. Lembro da tarde que desafiou o Dávila, que tinha um alazão invicto, e os dois correram no riacho seco e todo mundo apostava no Dávila, que entrou sossegado, e o General só rindo, como se fosse um desfile. Quando a corrida acabou, só se ficou sabendo que o General era muito bom cavaleiro mas que contra o alazão do Dávila ninguém podia. Ninguém se esquece dele aquela noite, de como ele se ardia pela mulher do Payo, que era loira e de olhos que nem os dele, tanto que ninguém nunca soube onde ele tinha arrumado a tal. Foi isso que o General perguntou para ele:

- Onde você arranjou essa mulher, Chávez? É muito boa.

Pois que a queria com ele.

- É mulher muita para você - ouvimos, e dizem que estava meio passado de cana.

O Payo estava quieto e olhava para ele sem se levantar, como quem diz: "O senhor fala assim, General, porque é quem manda", e aí o General perguntou para ele se não tinha nada para dizer.

- Não tem nada para dizer, Chávez? - E a voz ficou como que pendurada no ar porque já não tinha mais música, só o silêncio, quando falou aquilo, com aquela voz acostumada a mandar.

Dizem que o Payo respondeu com a voz quase sumida:

- O senhor só fica de animação com a minha mulher porque é quem manda, General.

- Você acha mesmo, Chávez? - E fez que fosse com ele e mexeu um braço assim, meio sem vontade, apontando para o escuro, para ver qual dos dois é que estava errado.

Eles se enfiaram lá entre as árvores. A gente ficou no meio de toda a luz. Não se ouvia outra coisa além do vento bulindo com as folhas e um cheiro de couro suado ou de laranjas, e a mulher do Payo lá apertando as mãos, e quando o General saiu, ela já era viúva do Payo e mulher do General.

- Não, senhor. E era por isso mesmo que estávamos com ele. Porque sempre fez o que era devido e dava gosto lutar por ele, que era como a gente, que tinha começado de baixo e conseguiu tudo sozinho: os animais e a terra, até chegar aonde chegou, só com a coragem, já do tempo em que começou a arrear os cavalos no meio dos índios, quando mal rondava os vinte e já ninguém dava jeito de contar nem seus filhos, nem as léguas que ele tinha andado.

- Decerto que sim, mas diferente. Como se só tivesse ficado a carcaça, o couro e mais nada, e por dentro tudo revirado. Na gente dava como uma indignação. Teve uns que se pegaram para o desagravar quando começaram a falar essas coisas, e mais ainda depois do caso do Pavón. Castro foi o primeiro a despachar um correntino que falou que o General estava velho.

- Ele se vendeu para o Mitre - dizem que ele falou, e o Castro, sem muita gana, fez ele sair da venda e o outro que dizia:

- Eu só falei de farra, compadre, eu só falei de farra - com os olhos arregalados pela falta de coragem.

Quando o tal sujeito ficou esticadinho nos deu um sossego, mas era como se começassem a falar o que já andávamos sabendo: que o General estava como que morto.

Tem quem diga que tudo começou quando lhe mataram o Sauce, um tordilho que era uma luz, e o mataram foi por acaso. Dizem que ficou ali agachado, ele que não era de fraquejar, só olhando, e que apalpava seu cangote como com nojo, enquanto o bicho ia morrendo. Depois começou a se abaixar e de repente o rematou com um tiro no meio dos olhos.

Quando se levantou pedindo: "Um cavalo que aguente, caralho", já não era mais o mesmo e tem quem diga que até chorava, mas isso não, porque não era homem para isso, para mudar porque lhe falta o cavalo.

No fundo, nenhum de nós sabe de onde ele tirava aquela vontade de fazer as coisas que nem ele mesmo podia gostar. Aquilo de tomar a terra das viúvas. Ou de nos jogar contra os paraguaios, que nunca nos fizeram mal, e ainda por cima do lado do Mitre. E aquilo com os desertores, de fazer que a gente os lanceasse a seco, como se fossem índios. Ajuntou todos eles no curral grande e nos mandou formar na alameda, como para uma diversão. Daí ia largando os condenados de um em um e depois escolhia um de nós, com o olho. A gente se encolhia em cima do cavalo porque era feio de ver como eles corriam sozinhos e ao sol, no meio da rua, escarrapachados de medo, cada vez mais perto, como se recuassem, até que se enfiavam embaixo da barriga do cavalo. E daí se atiravam no chão ou começavam a estrebuchar e a berrar levantando os braços como se a gente não pudesse fazer outra coisa além de os rachar de uma estocada.

Passamos a tarde inteira nessas vaquejadas até que acabamos acostumando com os gritos e o cheiro de sangue. E eles foram ficando largados, feito uns trapos ao sol, numa fileira embaralhada que chegava quase até a lagoa.

- Não, senhor. Nenhum de nós sabe. Mas dava para se ver. Até que aconteceu aquele caso em Pavón, que foi como um vexame de caso pensado. Fazer a gente vadear o rio para fugir, meio escondidos, e deixar a vitória para os portenhos sem nem uma escaramuça. Sair assim, calados e com vontade, é o que dá vergonha. Isso de ficar vendo como o coronel Olmos (que foi dos que aguentaram firme aquela vez da emboscada em Corral Chico) que se achega nele e diz:

- Com todo o respeito, General, e o senhor me desculpe. Mas por que a retirada?

E ele, com a cara sumida nas rugas, que o manda para o cepo, só por causa da pergunta.

Nenhum dos senhores aqui sabe o que é andar o dia todinho e mais a noite, de uma só puxada, até passar a Entre Ríos, como se nos tivessem botado para correr, como se disparássemos não sei do quê, sendo que estávamos todos inteiros e com aquela coisa bulindo aqui dentro só de pensar que os portenhos iam poder dizer que nos botaram para correr, sendo que nem vimos a cara deles.

Ele galopava sozinho lá adiante e a gente esperava que virasse com aquele sorriso que lhe apaga as rugas, para explicar que essa história de fugir assim, de repente, era uma armadilha para o bando do Mitre. Mas quando apeou no San José não tinha dito palavra, só aquilo para o coronel Olmos.

É dessas coisas que eu quero perguntar para os senhores, que são letrados, mesmo que tenham se juntado aqui para que eu fale. Porque eu não posso dizer mais do que sei e o resto os senhores vão ter que descobrir. E o que eu sei é que tudo o que fizemos foi para remediar o que estava acontecendo e que nos deixava assombrados. Que nos mandasse vestir de gala e esperar a diligência que vinha de Rosário. Ficar ali, no meio da estrada, com o sol que vai fervendo o sangue da gente, e toca esperar. Ver como vinha aparecendo lá no fundo, contra os montes, e depois ia ficando cada vez maior. Vir de escolta por todo o vale para descobrir que tínhamos escoltado portenhos. A gente se deu conta quando apearam na praça, batendo na roupa como se assim fossem tirar a poeira que levavam misturada com o suor. Ficamos sabendo que eles vinham da outra banda do Arroyo del Medio só de ver como estavam vestidos, e não porque o General nos avisasse. Daí pensamos que ele ia era domar aquele bando, mas os recebeu como se precisasse deles, com toda a vila embandeirada e pela janela dava para ver a luz e a mesa cheinha de portenhos e o General todo fantasiado ali no meio, vestido à moda deles. Dizem que os portenhos é que falavam as coisas, falavam do trem, e do porto, e da Pátria, sempre com a voz de quem manda. E o General ouviu tudo calado, como se estivesse com sono.

No dia seguinte fez a gente desfilar na frente desses suados, que enfiavam o lenço na boca quando o galope levantava poeira. E ficamos assim, de lá para cá, fazendo festa para eles, como se não fossem os mesmos "cartoludos que vamos empurrar até o rio para que aprendam o que é ser entrerriano, para que aprendam o que é a Pátria e o que é ser Federal", como ele falou daquela vez, tão quieto no tordilho, depois da batalha de Caseros, antes de entrarmos a florear por Buenos Aires, todos com a fita encarnada e a trote, devagarinho mesmo, para que aprendessem.

Como se não fossem os mesmos.

- É, sim. Foi por tudo isso que eu fiz o que fiz. Mas já tinha acontecido antes, aquela noite nos baixos de Toledo, enquanto a chuva não deixava respirar tomando conta de todo o ar. Foi dessa vez que aconteceu. E não foi por diversão. Nem por medo de lutar, como andam dizendo, mas por braveza e porque o General já não mandava mais nem nele mesmo. E foi dessa vez que falamos para ele. O que aconteceu depois, foi como se não tivesse acontecido. Essa história de que todo o Entre Ríos anda com vontade de guerrear e gritando "Morra Urquiza!" quando para nós, os que lutamos do lado dele, o General já estava morto antes. Essa noite é a que conta. Com o céu sujo de terra e a várzea toda manchada de fogueiras, eu me lembro dessa mais do que da outra e me dói mais, e nenhum de nós, dos que estávamos lá, se esquece dela, porque foi como uma despedida.

Batia um vento cheio de tormenta que trazia como uma tristeza e de repente trouxe a chuva. Uma chuva feia, meio morna e tão forte que foi juntando todo mundo na barranca, perto do rio. Não dava nem para enxergar as caras e era só o barulho da chuva, o cheiro de suor ou de couro molhado e os cavalos se sacudindo. Então, alguém falou aquilo de ir embora. Melhor é voltar para Entre Ríos, o General já não presta, se ouviu, e, como se com isso o tivessem chamado, apareceu, não ele, mas aquela sua voz, tão quieta, perguntando.

- Acontece que nós vamos voltar, General.

- E quem mandou vocês voltarem?

E ouvimos o rio que estava bem perto e crescendo. Aquilo como um trovão que era o rio e mais nada, porque ninguém sabia responder quem é que estava mandando voltar. Ficamos calados enquanto a chuva fazia fechar os olhos e se apertar na sela como para não estar ali, tudo no meio de uma escuridão que mesmo arregalando os olhos não se enxergava nada além da chuva e era como estar só com a alma, em cima do cavalo, até que passava um relâmpago, como um fogaréu, e aí aparecia o barranco coberto de homens, como se brotassem do chão. Eu não fiquei perto do General, mas escutei sua voz misturada com todo o estrondo. Tem uns que dizem que ele estava falando com a gente mas só se ouvia a chuva. Até que no fim começamos a ladear, devagarinho, para o lado daquele estrondo, e entramos no rio que puxava feio, como da outra vez, e no meio daquela água que vinha de todo lado ainda ouvia ele gritar, e às vezes, de repente, era como se o visse, com o poncho meio ruço, cor de cinza, parecendo um tronco arrancado da terra, jogado no meio do rio. Eu não me lembro de nada que não seja a água e os gritos e também de uma hora, no clarão de um relâmpago, que acho que o vi e me deu vontade de dizer para ele vir conosco, para Entre Ríos.

Depois, assim que firmamos o pé no chão começamos a galopar e ouvíamos a voz dele atrás, como se nos quisesse arrear, os gritos chegavam meio deformados pela chuva e pelo vento, que nem um uivo misturado ao galope, e era como se cada vez o General gritasse mais e mais baixo, até que se apagou. Até que não se ouviu outra coisa que não fosse a chuva, repicando nos charcos.

É, foi aí que o fizemos.

O resto aconteceu porque dava dó de ver o coitado, tão apagado. Até as mulheres começaram a reparar. Foi por esse tempo que sumiu a Gringa, que era a melhor mulher de todo o Entre Ríos, que fugiu com o Olmos, sem que ele tenha feito nada além de se inteirar.

De tarde passeava perto do rio, e a gente o olhava de longe e era como ver o vento passar. Andava sozinho e calado e dava uma espécie de indignação.

Também por isso eu fiz o que fiz. Para ajudá-lo.

Mas teve outras coisas, que senão os senhores não armavam esse escarcéu e eu não estava aqui falando disso que só me magoa. Alguma outra coisa andou acontecendo que a gente aqui não se sabe, algo que vem de longe e que foi o que modificou o General. E parece que disso aí não tem quem conheça. Nem os senhores.

Eu logo o maliciei, naquela noite, na fazenda de don Ricardo López Jordán, quando me perguntaram se eu tinha coragem de fazer aquilo. "Você tem coragem de fazer isso, Vega?", me perguntaram, e eu fiquei quieto e não falei nada. Aí pedi seis homens e antes de clarear tratei de ir fazer o que devia, como quem estoura a cabeça de um potro quebrado.

Eu me lembro que entramos a galope e gritando, para nos dar coragem. Os cavalos escorregavam nos ladrilhos e os gritos iam e voltavam pelas paredes quando entramos sem apear, atropelando. Ele apareceu de repente, no fundo do corredor, sozinho e meio nu, contra a luz. Recebeu a gente como se estivesse esperando e não se defendeu. Só fez olhar com aqueles olhos amarelos, como se nos apurasse a alma. Não sei por que fui me lembrar daquela tarde, quando ele apeou do tordilho depois de perder para o Dávila. Ficou ali parado, bem debaixo da luz, com aquela camisa que deixava as pernas de fora, até que o derrubamos.

Quando a Matilde, a filha daquela que foi mulher do Payo Chávez, pulou na frente para defender o pai, eu mesmo ouvi ele dizer para ela não chorar. E foi só isso que ele falou aquela noite e a última coisa que falou na vida. "Não chore, minha filha, não tem porquê", eu ouvi da boca dele enquanto tentava acertar seu corpo nas brechas que me deixava o da Matilde, e o General tinha o rosto escondido nas rugas e os olhos vidrados em alguma coisa, não era em mim que estava bem perto, era alguma coisa mais longe, no povo a cavalo ou na parede meio desbotada de tanto pôr e tirar a bandeira.

E ficou assim com os olhos para o alto, o rosto escondido pela morte, com a Matilde deitada em cima e se manchando de sangue, quando o matei:

- Desculpe, General - eu falei, e tratei logo de acertar o meio do peito para lhe evitar o sofrimento.


MEU AMIGO


para Carlos Piglia, meu irmão

Não. A primeira vez foi num bar na esquina da San Martín com Viamonte. Foi o Lucas que o apresentou e quando o vi, magro, vestido de marrom, sorrindo, me pareceu um perfeito cavalheiro.

Estava em Buenos Aires desde 52. Veio para estudar mas largou. "Porque neste país, meu velho, você precisa cavar a grana em outro lugar." Eu estou no segundo ano de arquitetura; como não vou indo muito bem, ele dizia: "Sai dessa vida, deixa de ser otário, que aí você só está perdendo seu tempo. Se eu falo que é para você sair dessa é porque daqui a dois anos a gente vai estar nadando em ouro". Eu continuava. Porque quero me formar, sabe?

Santiago morava num quarto perto de Constitución, com sacada para a praça. Às vezes saíamos juntos, para beber, jogar bilhar ou dançar; no começo eu não percebi, mas com as mulheres ele sempre ficava na defensiva. "Com as minas você não pode baixar a guarda. São o mais perigoso de Buenos Aires. Você tem que ficar firme, seguro. Porque se não, quando vai ver, elas te deixam na sarjeta, na sarjeta..."

"O que você precisa entender, rapaz", ele vivia repetindo (porque era um desses sujeitos que vivem repetindo tudo. Que contam a mesma coisa várias vezes, sempre igual. Como se esquecessem ou achassem que talvez o contaram para outra pessoa). "O que você precisa entender", dizia, "é que o negócio é não ter ninguém por cima. Mandar. Mandar em você mesmo, rapaz. Se você manda, se faz o que bem entende, se é livre, mais cedo ou mais tarde acaba chegando aonde quiser. Aonde você quiser. Este país dá para tudo." E repetia isso como uma lição.

Sempre me contava que quando veio de Misiones era um morto de fome. "Eu vim com a roupa do corpo e agora dá uma olhada em mim. Dá uma olhada em mim", dizia e arrumava a gravata ou alisava o cabelo. "Mas que é que você está pensando? Que foi fácil?... Acontece que eu logo abri o olho. Vocês, os portenhos, acham que são muito espertos e no fundo são uns otários com rabo. Que nem esses aí que tiraram a sorte grande: você viu os fulanos no jornal? Sorrindo com a maior cara de idiotas e mais o bilhete e o champanhe e os amigos. Daqui a pouco são uns novos-ricos que avançam em tudo enquanto os outros vão tirando toda a grana deles. É assim mesmo, entende?", dizia.

Ele estava sozinho em Buenos Aires. Não tinha ninguém, eu pelo menos não conheci ninguém próximo dele, e da família nunca falava.

"Quando cheguei", contava, "quando cheguei, como ia dizendo, eu era um morto de fome. Um cabecita morto de fome. E tinha medo de tudo, sabe?: do metrô, de atravessar a avenida Diagonal, de pedir informação, de tudo. Mas dali a pouco já peguei o jeito de Buenos Aires. Comecei de carregador na estação Constitución a cinco pesos a mala e quando abri o olho..." E me contava isso como se fosse para me ensinar, sabe? Para que eu aprendesse. Para que saísse do escritório de informações da "Inmobiliaria del Sur S.A". Que saísse de lá, que aquilo era coisa para morto de fome, e metesse as caras de uma vez, "que daqui a dois anos a gente vai estar nadando em ouro. É barbada, rapaz..."

Para ser sincero, eu não posso lhe dizer muito mais. O que ele me contou é que assim que chegou foi morar em La Boca com um sujeito de Santa Fe que tocava piano. E que na época da queda de Perón ele quase foi preso e foi aí que conheceu o Francês "que agora está na Europa, levando uma vida de duque, de duque, e sabe por quê? Porque ele é esperto e manja do assunto. Por isso está lá na Europa que nem um granfa".

Eu, no fundo, sempre gostei de Santiago Santos. É um desses sujeitos que sabem o que querem. Que estão onde estão e ponto final. Firme, concreto. Por isso me parece mentira o que aconteceu ontem. Parece um sonho. Não sei como foi que aconteceu. Não sei mesmo. Ele vivia dizendo: "Você é muito otário, rapaz, acredita em muitas coisas. Parece até que quer botar banca de bacana, de tanta história que você tem. Tudo história de bacana. Mas de quem você acha que vai ganhar desse jeito? Isto aqui é como o boxe. Viu o boxe? É aparar e bater, aparar e bater. O resto é balé. E você sabe o que parece um bailarino do lado de um boxeador?..."

Um bailarino do lado de um boxeador... Era como se fosse invencível, sabe? Um desses homens concretos, que entram para ganhar, só para ganhar...

"Sai dessa vida", ele me disse quando levei bomba em analítica. "Sai dessa vida, deixa de ser otário que o negócio com os brasileiros já começou. Você sabe que a gente mexe com joias. Dedicação exclusiva. Daqui a um ano vamos estar passeando na Europa." Dedicação exclusiva, sabe? Metade do país está metida nisso. É um negócio tão grande que quem entra fica sem saber se é legal ou não, de tanta gente que está metida nele. O senhor chega no banco e diz: "Venho de parte de Gerardo", e pronto, até o gerente se mobiliza. É como trabalhar com divisas, só que mais seguro... Então eu saí daquela vida... Dedicação exclusiva, sei lá. O mundo vira do avesso quando a gente vê tanto dinheiro junto...

Bom, ficamos com esse negócio, e mais nada. Pelo menos comigo foi só isso. Até que depois, ontem, tudo desabou...

Já falei para o senhor que ele achava o fim que eu tivesse uma namorada. Para ele era a última coisa que ainda me restava do bailarino. "As mulheres acabam estragando a gente, você não é livre. E além do mais nunca consegue ficar sossegado." Mas isso é coisa de filme francês, respondia eu, de letra de tango. Só acontecia com as minas fatais, com as do Discépolo[4]. Minha namorada mora em Adrogué, o pai dela é médico. Está estudando psicologia. Não é uma mina como as do tango. Estamos em 1962, meu velho... E para mim, a Marta, minha namorada, era uma espécie de ponte, sabe? Uma garantia. A garantia de que a qualquer momento, quando eu quisesse, podia sair daquela vida. Voltava a estudar, casava e pronto. Era como marcar a diferença, era o meu resto. Como se eu não tivesse entrado no jogo para valer. Só agora é que percebo, veja o senhor, era como jogar trapaceando, já com a certeza de ganhar. "Você está marcando passo, rapaz. Desse jeito você nunca vai chegar lá", ele me dizia. E todo domingo eu ia para a casa da minha namorada como quem volta à ordem, como quem sai do cinema, sei lá.

E ontem ele foi comigo até Adrogué. Meio que forçou a barra, sabe? Como se tivesse decidido tudo de antemão: encontrar comigo em Constitución, "estava passeando, sabe?", e ter "vontade de esticar um pouco as pernas pelas bandas do Sul, de pegar um sol, rapaz".

Chegamos antes do almoço, lá para as onze e meia. Minha namorada mora a três quarteirões da estação. Numa dessas casas velhas e quadradas, com um grande quintal e um portão de ferro. O senhor não conhece Adrogué?... Bom, chegamos às onze e meia e eu apresentei o Santiago como um colega da faculdade. Sentamos para almoçar sem problemas: a mãe numa ponta, o pai na outra, Marta do meu lado, Santiago na frente. Ele estava bem na minha frente. De terno cinza e camisa azul-clara. Só algum tempo depois que já estávamos comendo é que fui perceber que tinha algo de errado com ele. Que estava diferente. Pelo menos que não era o mesmo. Ou que não era quem eu queria que fosse.

Quando começou a falar e eu o olhei, ele me olhou como quem diz: "Deixa de ser otário, rapaz, este mundo é dos boxeadores". Falava recitando, como se aquilo que foi dizer fosse uma lição. No meio de uma frase de seu Ángel, começou:

- Quer dizer que o Miguel não contou que largou os estudos?

Essa foi a primeira coisa que o ouvi dizer. Aí olhei para ele, sabe?, para que piscasse ou sorrisse para mim. Para que falasse que era brincadeira. Mas não, ele continuou, sem olhar para mim, como se eu não existisse, e falou que eu fazia "muito mal em não lhes contar. Vai ver que nem avisou que também deixou o emprego. Pô Miguel, que que é isso?" Foi isso que ele disse, entende?, "pô, Miguel, que que é isso?". Tinha um pouco de brilhantina em cima da orelha, uma espécie de bolinha redonda e branca. Olhei para ele sorrindo, como se estivesse brincando, e que logo fosse dizer: "Eu brinco com o Miguelito porque com essa história de juntar dinheiro para os móveis, outro dia..." Olhei para ele sorrindo. Tinha certeza de que era brincadeira. Isso acontece com a gente, não é? Quando alguém fala uma dessas coisas que não dá para falar, a gente pensa: "Esse cara está de sacanagem. Quer dar uma de engraçadinho, não falei que era um gozador?" Quando o olhei, sorrindo, ele estava sério. Sério. Que nem a Marta, que olhava para mim, que nem dona Luísa. Que nem seu Ángel, que perguntou: "Como disse, moço? Como disse?", ele lhe perguntou, entende? Bastava ele dizer: "Nada, estou brincando, é que outro dia, na faculdade..." Ou qualquer coisa. Mas não. "Eu perguntei", disse ele, "se o Miguel não comentou com vocês que largou os estudos e que agora se dedica a outras coisas". Todos olhavam para ele, sabe?, e parecia que ia ficando meio agoniado. "Além do mais nesse tipo de negócio o estudo não faz a menor falta. De que merda serve o estudo neste país? O senhor me diga francamente, seu diploma de médico serve para alguma coisa? Enquanto a gente daqui a três anos vai estar na Europa levando um vidão. Negócio com joalherias, senhores. Dedicação exclusiva..."

Falava sem parar.

"Cala a boca, rapaz", disse, "que é que há? Você não quer que tua namorada fique sabendo a quantas anda a tua vida?" "Cala a boca rapaz." "Cala a boca rapaz" e não sei o que deu em mim. A única coisa que eu fazia era dizer: "Deixe eu explicar, seu Ángel, deixe eu explicar". Isso e mais nada, percebe? Enquanto isso, ele falava sem parar. Da história da mansão em Flores, da história dos remédios... Era uma coisa tão estranha. Estranha, sabe? Como se, de repente, a gente pudesse dizer qualquer coisa. Apertar docemente as mãos de uma mulher muito feia e dizer: "Francamente, como deve ser difícil viver com essa cara..." Uma coisa assim, estranha. Como assistir a um filme antigo. Um desses dramas mudos, do início do século, cheios de gestos, onde todo mundo sofre e que a gente agora morre de rir quando assiste... É como se não tivesse acontecido comigo... Nem sei o que falei. O que eu lembro é que ninguém me ouvia e ele me dominava ou sei lá o quê. "Cala a boca, rapaz, deixa eu acabar." E dizia para eles que eu ia para Adrogué todo domingo só porque lá podia tomar sol e comer bem; que eu era "um pouco medroso, mas um bom rapaz, um bom rapaz"... Falou de tudo. De tudo o que ele bem entendeu. Também de quando ele veio de Misiones e de que "os portenhos são uns otários com rabo, pode escrever". E de que "o negócio é mandar, seu Ángel, mandar"...

Eu quase que não me lembro de nada, tudo é muito distante, uma espécie de névoa. Sinto um embrulho no estômago e lembro que sentia um embrulho no estômago cada vez que olhava para a travessa de raviólis esfriando, na mesa, todo mundo calado e ele sem parar de falar. Parece um sonho. É uma coisa difícil de explicar... como se fosse engraçado. Como um velório, sabe os velórios?, quando de repente alguém inventa de contar piadas e a gente começa a sentir que vai dar risada. A gente está triste, mas começa a ter uma vontade louca de rir. Primeiro faz caretas e tenta disfarçar, com o lenço ou com qualquer coisa, mas depois ri e não para mais de rir. Todo mundo olha e a gente ri e cada vez tem mais e mais vontade de rir...

Assim mesmo. Entende, delegado?


A INVASÃO


Com o golpe do trinco ele os pressentiu atrás, no fundo da cela.

Continuou imóvel, de cara para a porta, até que os barulhos na sala de plantão se apagaram. Então deu meia-volta e os encontrou onde previra: um deles em pé, sem tocar a parede, como equilibrando-se e não vestido de todo; o outro, um moreno de óculos, deitado no chão.

Lá fora tinham tirado seu cinto e o cordão de seus coturnos. Sentia a roupa frouxa e desconfortável, como se estivesse nu.

Foi até o centro, desajeitado, arrastando os coturnos abertos e parou, indeciso. A calça escorregava por seus quadris e ele a segurou com a mão direita.

No fundo da sala os outros dois o olhavam. O mais alto se balançava suavemente. Tocava a parede com o ombro e tornava a se afastar. Fumava sem tirar o cigarro da boca.

Aquele que tinha entrado sorriu.

- Meu nome é Renzi - disse.

Segurando a calça com a mão esquerda caminhou na direção deles, com a direita estendida.

- Renzi...

O que estava em pé apoiou-se na parede e abanou a cabeça. Mais que um cumprimento pareceu querer afirmar algo. "Celaya", Renzi pensou escutar.

O moreno, sentado no chão, quase deitado, com as pernas abertas e o rosto borrado pela sombra da parede, não se mexeu.

Renzi passou a mão direita pela calça, como se a limpasse. Recuou até a outra parede e se sentou. A sala estava quase às escuras; começava a anoitecer. A única janela, estreita e alongada, era uma fresta, uma mancha de luz pendurada perto do teto. Inclinou-se para um lado e apoiado no ombro procurou algo no bolso da calça. Tirou um cigarro, fez um bolo com o maço vazio e o jogou. A bola de papel rolou pelo chão e foi parar entre as pernas do moreninho. Com o cigarro na boca, Renzi vasculhou os bolsos da camisa procurando fósforos.

- Você tem fogo? - disse, olhando para Celaya.

Celaya continuou imóvel. Renzi o olhava de baixo. Celaya parecia distraído, examinava as próprias unhas. Depois desviou os olhos e acendeu um fósforo raspando-o na sola do coturno. Ficou assim, em pé, com a chama iluminando sua mão os dedos, a pele amarelenta e manchada de nicotina.

Visto do chão o rosto de Celaya se deformava no escuro. Renzi levantou-se, devagar, apoiando uma das mãos no chão. Sentiu o calor limpo da chama enquanto tragava e a fumaça arranhava sua garganta. Embaixo o fósforo se apagava lentamente. Renzi o continuou olhando até que virou uma brasa rosada.

- E você? - disse, enquanto Celaya começava a sentar e o corpo do moreno aparecia de repente, como se brotasse do chão. - E vocês - corrigiu-se - por que os mandaram?

- Nos mandaram aonde? - Celaya falou devagar, escolhendo as palavras.

- Aqui - Renzi o olhava. - Para o xadrez...

Celaya parecia fascinado com alguma coisa na parede, acima da cabeça de Renzi.

- Para o xadrez? - parou, como se custasse a entender. - Por desertar...

- Ah... - Começou a dizer Renzi, incomodado sem saber por quê. - E faz muito tempo? - Talvez pelo sorriso do moreninho, por sua mão que ia e vinha, acariciando o peito entre as dobras da camisa.

Celaya demorou um momento para responder, com se estivesse pensando.

- Três meses - aproximara-se do moreno e os dois estavam muito perto um do outro, formando um vulto na penumbra, um só corpo disforme. Inclinando-se, Renzi podia distinguir claramente metade do rosto do moreno, iluminado pela luz que se filtrava pela janela; a outra metade era uma mancha oculta atrás do ombro de Celaya. Parecia ter a pele muito lisa. "Por causa do suor", pensou Renzi que sentia a transpiração sobre os olhos.

- Três meses...? - A fumaça alterou sua voz. - E como foi que pegaram vocês?

Esperou a resposta e o moreno também olhou para Celaya, que esfregava o tornozelo, sem falar.

- E você? Por que te meteram em cana? - disse Celaya como resposta.

Renzi o olhou, surpreso; depois pisou o cigarro no chão.

- Por causa de um rolo com o "bode" Pelliza. Ele tem cisma comigo porque sou estudante e além disso...

- Por quanto tempo? Cortou-o Celaya, baixando a cabeça. Parecia procurar alguma coisa no chão.

- Não sei. - Incomodava-o o tom prepotente de Celaya. - Não sei por quanto tempo.

O moreno se inclinou e falou com Celaya em voz baixa.

Renzi pensou ouvir a risada de Celaya.

Depois ficaram imóveis, calados.

- Escuta, tem que dormir no chão? - perguntou Renzi, pouco depois.

- Não. Já vão trazer os colchões.

- Quando?

- Quando o quê?

- Vão trazer os colchões.

- Logo mais - Celaya parecia cansado, aborrecido.

- E vamos dormir os três aqui? - disse Renzi abarcando a cela com um gesto.

- Vamos. Os três.

- E a comida? Também temos que...

- É, também tem que comer aqui - interrompeu-o Celaya. - Tem que fazer tudo aqui. - Falava lentamente, sério. - Se você quiser cagar, vai ter que ir nessa porta aí - apontou-a com um cabeceio - chamar o oficial de plantão e falar assim: "Senhor tenente, estou com vontade de cagar".

No chão o moreninho ria em silêncio, arreganhando as gengivas.

- Entendeu? - insistiu Celaya. - Entendeu? Ou precisa que eu te explique mais alguma coisa?

- Não, não preciso - Renzi fez um esforço para olhá-lo de frente. - Mas se precisar eu te aviso e você me ensina. - Tentou repetir o tom de Celaya. - Eu te aviso e você me ensina - repetiu.

Celaya buscou seu rosto.

- Escuta aqui, meu querido - disse -, é bom você não bancar o machinho aqui dentro, está me entendendo? Isto aqui não é a universidade; por isso é melhor você ficar sentadinho aí e não encher o saco.

- Ei, quem você pensa que é? - começou a dizer Renzi, tentando se levantar, recolhendo uma perna. Quando estava meio ajoelhado, Celaya o empurrou com a ponta dos dedos e Renzi perdeu o equilíbrio.

As pernas de Celaya eram agora dois tubos cinza, crescendo do chão. Renzi jogou a nuca para trás, buscando seu rosto, lá no alto, mas parou na faixa leitosa da pele da cintura onde a camisa escapava fora da calça.

- Estou falando sério. Não enche o saco. Vê se dorme, conta carneirinhos, bate uma punheta. Mas não enche o saco.

Renzi apertou-se contra a parede e esticou as pernas.

Sentia a boca seca, o corpo mole, como se estivesse recheado de espuma. Tornou a revirar os bolsos procurando um cigarro inutilmente.

Celaya acabava de sentar. O moreno, inclinado sobre ele, falava em voz baixa. Ouviu-se o riscar de um fósforo e a chama iluminou o rosto dos dois. De quando em quando parecia acender-se um círculo vermelho que saltava de um lado para o outro. "Estão fumando o mesmo cigarro", pensou Renzi com nojo e ao mesmo tempo com vontade de pedir-lhes uma tragada, sentir o calor áspero da fumaça entrando nos pulmões. Conteve-se, com a garganta seca. Sem saber por quê, procurou não tossir, como se tossir fosse uma fraqueza ante Celaya.

Sua garganta arranhava, ardia.

Não quebrar o silêncio pesado, cheio de ruídos surdos: ao longe, vozes de comando ou um latido.

Pigarreou várias vezes.

Depois juntou saliva na boca e fez com que escorresse pela garganta para diminuir a ardência. Por um momento achou que Celaya tinha falado com ele. Era um murmúrio fraco, como alguém assobiando baixinho.

A escuridão tomava toda a cela. Desorientado, apalpou a parede tentando reconstruir o quarto, enquanto, do lado de fora, alguém acendia uma luz e a claridade penetrava diluída pela janela, iluminando de leve o rosto de Celaya, o peito nu do moreno, um quadrado irregular do chão sebento.

Tudo estava mergulhado numa penumbra esverdeada. As silhuetas foram se recortando, de novo. Renzi imaginou a luz do outro lado. A lâmpada suja, com os bichos revoando contra a parede, perto da janela, iluminando a entrada do banheiro.

Localizou os corpos de Celaya e do moreno. Teve a impressão de que se mexiam e ouviu-os murmurar. Estavam juntos, quase um sobre o outro. Era uma risada, apenas isso. Uma leve respiração, um arfar. Mexeu-se para um lado procurando distingui-los melhor e nesse instante a luz o cegou. Piscou, ofuscado. Por fim vislumbrou, no meio da luz que entrava pela porta aberta, o sargento de plantão e um soldado que arrastava um tacho cilíndrico.

Apanhou o prato de metal, a colher. Comeu devagar, de pé. O monte de batatas e feijões em água morna se embolavam e dissolviam na boca. Engoliu sem respirar e recostou-se na parede, de cara para o ar fresco.

Fora os soldados de plantão conversavam em voz baixa. Esquadrinhou o salão circular da sala de plantão, a escrivaninha encostada na parede, e - pelo vidro da janela - um trecho da trilha de cascalho cortada, de repente, pela escuridão. Ao fundo, longe, a luz da entrada, como que suspensa no ar, iluminava um círculo do asfalto da estrada.

Dentro da cadeia, Celaya e o moreninho comiam juntos, sentados num canto.

Renzi devolveu o prato quase cheio.

Apanhou o colchão e as mantas. Quando a porta ia se fechando, chegou a ver o encosto de uma cadeira e um ângulo da escrivaninha.

Depois ouviu o golpe metálico do trinco.

Na escuridão o reflexo da luz permaneceu algum tempo em seus olhos. Cerrou as pálpebras e aos poucos foi acostumando os olhos à penumbra.

O suor encharcava seu corpo. Sentia a roupa áspera, grudada na pele.

Ao fundo, o moreno estendia os colchões.

Renzi tirou um coturno, o outro, e começou a se despir. Tirou a calça, ergueu o rosto e deparou com o moreninho que olhava para ele, imóvel.

Renzi foi o primeiro a desviar os olhos.

Depois ajeitou o colchão num canto, fez um travesseiro enrolando a calça no blusão e, ao procurar as mantas, esbarrou no corpo de Celaya.

Estava em pé, olhando para ele.

- Não, meu querido. Vai mais para lá - disse, abanando a mão como quem espanta alguma coisa. - Mais, mais para lá. Aí você vai ficar mais tranquilo - disse, e Renzi pensou ouvir a risada do moreninho, de novo. Foi até junto da parede, sem dizer nada.

Deitou-se e, apesar do calor, cobriu-se com a manta.

Encurvados, muito juntos, mal iluminados pela luz que vinha da janela, Celaya e o moreno eram um vulto disforme. Pareciam rir ou falar, em voz baixa.

O moreno tirara a roupa. Pela primeira vez, Renzi o via de corpo inteiro. Era muito mais baixo do que tinha pensado. Ao lado de Celaya, alto, maciço, o corpo do moreno sumia, pálido. Tinha os braços sem pelos e as mãos frouxas, como sem força, e os dedos amarelecidos nas pontas, perto das unhas que se enredavam no cabelo de Celaya.

Quando Renzi caiu em si já fazia algum tempo que o moreno acariciava a nuca de Celaya. As mãos deslizavam pelo pescoço, subiam até a base das orelhas, desciam pelo peito e começavam a abrir a calça.

Do chão, Renzi vê o queixo do moreno, os lábios brincando com os mamilos, no pescoço, na boca de Celaya; os dois corpos se enlaçam tombados no colchão, como se lutassem; o corpo do moreno é um arco, Celaya está encurvado sobre ele, os gemidos e as vozes se misturam, os dois corpos se balançam e os gemidos e a voz embargada de Celaya se misturam, são um só arfar violento enquanto Renzi se espreme contra o cimento, de cara para a parede, encolhido entre as mantas.


SUAVE É A NOITE


para F. Scott Fitzgerald

... querer me acalmar sobre uma lettera 22 com a Luciana ali deitada é inútil. Ficar procurando explicações, querendo acertar não sei que destino, livrando-me de culpas, fatalidade, bobagens do gênero. Vontade de, no fundo, mudar as coisas, mas agora é tarde, modificar os detalhes, como se os detalhes, dizer-lhe não seja idiota, não faça drama Luciana, dizer-lhe meninota boba, senhora minha, qualquer coisa para não vê-la sumir na chuva, meio torta por causa da água, com a saia colada às coxas e aí tudo estava resolvido, e eu como se nada, abrigado no alpendre, olhando a chuva, fumando e esperando que amainasse.

De qualquer jeito não sei se deve ser contado assim. Agora as coisas se diluem, distantes, e parece muito natural que a noite de ontem tenha acontecido há muitíssimo tempo; que a noite de ontem, hoje mesmo, venham antes, por exemplo, daquela tarde em que os dois corríamos desviando dos carros e paramos morrendo de rir no meio da praça e nos beijamos pela primeira vez, interrompidos pelo riso, enquanto as pessoas viravam para nos olhar e no alto um avião pairava no ar e ela disse que me amava: "acho que te amo muito", disse ela e eu respondi qualquer bobagem "acho que você está louca", ou algo assim, em voz baixa, e a luz idiota daquele poste acesa às três da tarde fazia brilhar ainda mais seu cabelo ruivo quando ela afastou o corpo e eu achei que ia sentar ou algo assim mas começou uma espécie de dança "eu? eu sou louca como uma pata, nunca viu uma pata louca?", os braços colados ao corpo, as mãos como asinhas, dando estranhos mugidos, imitando os gritos que ela dizia ser os gritos das patas no cio: "das patas com tesão" disse, e tinha os olhos cinza meio clareados pelo sol e pelo riso.

Gestos, cenas que agora se ampliam aqui, enquanto escrevo neste quarto que dá para o telhado do vizinho, apagando, deformando o que aconteceu ontem à noite, a festa, sua voz ao telefone me convidando e eu que ria sem entender o motivo, "e desde quando precisa de motivo para dar uma festa?", ela me disse e eu pensei: "cuidado, ir sem Beatriz". "Não. Beatriz está com Antônio não sei se você lembra." Que idiota, como se a Luciana precisasse me ver sem Beatriz ou não a conhecesse até melhor do que eu. "Para você ela é um desses cômodos confortáveis, sabe? Um banheiro" (eu não a via no escuro, mas na certa estava sacudindo o corpo inteiro de tanto rir). "Isso mesmo: uma espécie de banheiro."

Claro que quando Luciana disse isso estava completamente bêbada. Eu tinha ouvido um barulho, embaixo, e depois os passos na escada e alguém riscando um fósforo. "Beatriz?", eu disse, procurando a luz. "Não. Não acende"; falava erguendo exageradamente a voz, como se estivesse bêbada e quando acendi Luciana pareceu brotar do escuro, com o cabelo caindo no rosto, linda e envelhecida, fugaz. "Vou embora. Se você não apagar a luz, eu vou embora." "Que foi, ficou louca?", e já não a via mais, eu a imaginava no escuro dando voltas de um lado para o outro, atropelando as coisas, esbarrando em tudo, até que sentou na beirada da cama, em silêncio.

Por isso digo que foi besteira pensar em Beatriz, que não tem nada a ver, e que agora na certa está dormindo sem saber de nada, com seu ar entre ingênuo, e malévolo, e doce, com aquele rosto que de repente amolece e parece que se desmorona, como se não a obedecesse, quando ela tenta endurecê-lo, porque eu, quase sem querer, tem já vários quarteirões que estou andando distraído, deixando-me levar pelo silêncio até que sinto a presença de Beatriz, tensa, controlada, e por fim escuto sua voz, meio sumida: "Pode-se saber o que está acontecendo com você?" E eu olho para ela, espantado: "Nada, o que podia estar acontecendo?", e é como se um fio se soltasse por dentro e suas bochechas desabassem. Uma marionete, aquela manhã, quando seu rosto apareceu e já era tarde porque a Luciana tinha subido a mesma escada, bêbada, e Beatriz, entrando, nos acordou, e ela disse da cama, com as mantas cobrindo seu corpo nu. "Oi, queridinha", disse, "não fique brava que eu já estou indo". E um canto da boca de Beatriz tremia, apoiada na parede, sem se mexer, enquanto Luciana se vestia, muito devagar, no meio do quarto, se agachava procurando as meias e eu, na cama, sem saber como fazer para pegar a calça.

E essa foi a última vez.

Quer dizer, até hoje.

Sem contar uma tarde em que a vi passar com o Patricio e o vento inflava seu vestido e como sempre lhe jogava o cabelo no rosto, essa foi a última vez, porque na noite anterior tínhamos resolvido que estava tudo acabado, amigavelmente, com a nojenta delicadeza desses casos.

Já não me lembro quem de nós dois teve a ideia de comemorar o final naquela boate, uma espécie de casa de chá, que fomos descobrir pouco depois da meia-noite, bem no fundo de um bosque de eucaliptos.

"Caralho, a gente molha o pé inteiro com todo esse mato", falei, porque estava chuviscando e a grama sujava a barra da minha calça, e acho que enquanto eu sapateava no capacho feito um idiota, ela descobriu o balanço. "Que coisa mais absurda", disse, "você não acha incrível um balanço numa boate?" e já saiu correndo. "Que é que você vai fazer, sua tonta?", eu lhe disse, no meio das árvores, e ela já subia e descia com o corpo e a nuca e o cabelo todo jogado para trás e o balanço soltava uns guinchos que nem de coelho e ela danou a gritar "é como ter o vento na barriga", parecendo um papel, uma folha que vai e vem, carregada pela chuva ou pelo vento.

Depois atravessamos o salão achinesado, iluminado com lanterninhas verdes, para nos enxugar no banheiro, que tinha as duas portas separadas por um biombo. "Vou entrar com você", disse ela sorrindo, o cabelo pingando sobre o rosto. "Como?" E ela cruzou os dedos sobre os lábios. "Sh, eu vou com você para ver como é que é." "Ficou louca? E se alguém vê a gente?" "Não tem ninguém, não está vendo que não tem ninguém?", e a luz crua do banheiro parecia isolar os gestos, multiplicá-los no espelho e ela olhava tudo entre espantada e divertida. "Então vocês usam estas coisas, que barato! Parecem peniquinhos", e ria, indo de um lado para o outro, até que entrou um cara e olhou para ela pensando que tinha se enganado, mas logo em seguida me viu, e ela o cumprimentava fazendo reverências...

Às vezes a gente precisa acreditar nos sinais, nos avisos que não soube enxergar. Agora (agora depois de eu ter aberto a porta do quarto de Luciana e recuar como que ofuscado) aquela madrugada na boate me parece uma repetição, um signo de tudo o que aconteceu esta noite. Vai ver que é por isso que estão misturadas, por isso não sei se foi hoje de madrugada ou daquela vez, há mais de três meses, que Luciana levantou o rosto como quem procura a chuva anunciada pelo vento, e eu vi seus olhos, duas chagas no meio da cara, até que ela se mexeu, imperceptivelmente, como se quisesse evitar a luz afiada do amanhecer e em voz muito baixa, quase num sussurro, disse que ia embora. "É melhor eu voltar sozinha", disse, e eu a deixei ir, fiquei olhando-a se afastar, perder-se entre as pessoas, sem fazer nada, sem chamá-la.

E depois, aquela noite, ela subiu pela última vez até meu quarto, meio bêbada, e eu não a vi mais, até a noite da festa, até ontem. Entrei e ela estava encolhida num canto tocando violão, com gente espalhada pelos lugares mais inverossímeis; e ela cantava com sua voz rouca, envolta na fumaça pálida dos cigarros. Quando ergueu o rosto todos aplaudiram, falaram, como se a obedecessem. Então se levantou e o vestido deixou ver suas coxas; o cabelo preso, o rosto acinzentado pela fumaça, "uma estátua", pensei, "uma imagem de gesso envelhecida".

Acenou com a mão, eu sorri. Fiquei olhando-a vir, desviando das pessoas que dançavam; seu rosto ia se construindo, se definindo conforme se aproximava. Lembro que tentei pensar numa frase para recebê-la. "Você fica muito bem de cabelo preso, parece uma estátua", ou qualquer coisa assim; mas ela parou inesperadamente no meio do caminho e eu fiquei quieto, vendo-a dançar com Patricio.

Tinha tanta gente que dava muito bem para ignorar os conhecidos. Era tudo uma mistura de gritos e rostos pulando descompassados. Volta e meia deparava com Luciana, recortada contra a multidão com seu vestido ocre. Nós nos olhamos duas ou três vezes, mas ela continuou dançando, sorrindo e como que divertida.

Eu fiquei zanzando de um lado para o outro, escapulindo de vez em quando para o fundo da sala, à procura da mesa onde se amontoavam as garrafas.

No quarto ou quinto uísque as coisas melhoraram e acabei dançando alguns tangos, sem muito entusiasmo, com uma menina magra e levemente vesga, o que lhe dava um ar entre malvado e obsessivo.

Acabei largando o corpo numa poltrona que afundava e me obrigava a ficar numa posição realmente absurda, com os cotovelos espremidos entre os joelhos.

- Está se divertindo?

A voz veio de trás e para ver se era mesmo a Luciana tive que virar o corpo inteiro até que a vi encostada na parede.

- Que nem doido.

Encurvada examinava o vestido. Um fiapo, um fio branco todo enrolado, e ela o segurava entre os dedos na altura dos olhos e o analisava, atenta.

- Você fica estranha com o cabelo desse jeito.

De qualquer maneira era absurdo continuar incrustado naquela poltrona, contorcendo-me para poder vê-la.

- Está parecendo uma estátua - disse a ela enquanto tentava me levantar, bracejando desajeitadamente.

- Ah é? - respondeu, sempre com ar distraído, soprando o fiapo que balançava no ar.

Quando consegui a muito custo sentar no braço da poltrona, eu a olhei de frente pela primeira vez, e foi como recordar seus olhos, aquele jeito felino de sua pupila aumentar e diminuir.

- A única coisa que não muda em você são os olhos - disse-lhe, mas ela não respondeu e continuou bebendo o uísque até o fim.

Olhava para mim sem mexer a cabeça, com o copo empinado e contra os dentes, tamborilando com a ponta dos dedos até que o cubo de gelo escorregou pela borda.

- Para que você me ligou?

- Cadê a Beatriz? Ficou em casa? - disse ela como resposta.

- Deixa de brincadeira.

- Não seja tonto - disse ela imitando meu tom, sem deixar de me olhar.

Em seus lábios brilhava um fio amarelado, uma espécie de espuma que a borda do copo tinha deixado ali.

- Você tem uma sujeira - eu lhe disse e ela recuou e passou a mão pelo rosto. - Aí não. Aí. Mais perto da boca. - Então me inclinei e esfreguei os dedos em seus lábios. Quando ergui os olhos topei com o corpo de Patricio.

- Tudo bem, Emilio? - disse, e Luciana agarrou seu pulso, não a mão, o pulso, como se fosse um objeto, o encosto de uma cadeira.

Os três começamos a falar, um de cada vez, para que os silêncios não se alongassem demais, enquanto a música e o barulho dos pés e dos gritos se misturavam numa zoeira incrível.

- Aqui é muito fechado - disse Patricio. - No jardim teria sido bem melhor. Pena que garoou.

- O que vocês estão comemorando? - perguntei olhando o rosto de Patricio, a cor estranha, meio violácea, do rosto de Patricio.

- Nada - respondeu Luciana. - Não sei por que a gente só pode dar festas quando tem algo para comemorar.

- A Luciana tem fases - disse Patricio buscando minha cumplicidade, delicadamente. - Agora são as festas, faz algum tempo foi a pintura, encheu a casa de telas e quando...

- Tudo bem, querido, agora vamos deixar minhas fases para lá - interrompeu-o, largando seu pulso. - Prefiro dançar.

Patricio fez um movimento como se fosse acompanhar Luciana e eu senti a mão dela em meu braço, ao mesmo tempo que ficava na ponta dos pés para relar os lábios no rosto de Patricio.

Descobri o sorriso dele, atrás, em pé num canto, quando num giro ficamos frente a frente, e ele me cumprimentou erguendo o copo. Tornamos a girar, Luciana ficou de cara para Patricio e depois nos embrenhamos no meio de todos os que nos empurravam de lá para cá.

Luciana parecia não ter ossos, só a carne fofa pendurada em mim.

- Que é que você está querendo? - eu lhe disse, pouco depois.

- Nada. Não estou querendo nada. O que você esperava que eu estivesse querendo? Deixa de ser elementar.

- Então por que você ligou para mim? Para me encher o saco?

De perto, o rosto de Luciana era uma máscara linda e manchada, com dois borrões escuros junto dos olhos onde o suor tinha empapado o rímel.

- Quer mesmo saber o que eu estou querendo? Buscar pedrinhas. Brinquedos perdidos. Que alguém se apaixone por mim como antigamente, por exemplo. Como há muitíssimo tempo aqueles rapazinhos bobos que eu amava feito louca. É isso que estou querendo.

De repente sentia seu cheiro de uísque misturado com essência francesa e suor.

- Me livrar de tudo isso - custava-lhe modular a voz e falava arrastado. - De toda essa sujeira.

- Se você está dizendo isso por causa do bafo do uísque, pode ficar sossegada que quase não dá para notar.

Ela ficou como que paralisada. Os que vinham atrás nos empurraram rindo e eu a agarrei pelo braço para puxá-la, mas ela se safou com um gesto brusco.

Continuei sozinho e fui me encostar numa mesa, perto da janela. Eu a vi chegar, insegura, atarantada e sorrindo, até apertar o corpo contra a mesa e me chamar, acenando com a mão, com movimentos atrapalhados e absurdos.

- Venha cá, fofinho, venha que a Luciana quer dizer uma coisa no seu ouvido - foi dizendo em voz baixa enquanto se inclinava, e os dois formamos uma ponte sobre a mesa.

- Você é um babaca - sussurrou.

Depois passou a mão pelo rosto como se espantasse um bicho e a vi caminhar, rígida, em direção a Patricio.

Fiquei ali mais um pouco, debruçado na janela.

Fora, a bruma diluía a silhueta afiada das lanças, na grade de ferro que rodeava a casa.

A noite estava quieta, muito quente.

Caminhei pelo jardim, margeando a grade até os fundos. Vista de trás a casa parecia um caixão, alto e escuro. A música diminuía e voltava a aumentar, arrastada pelo vento. Começou a garoar. Era como uma névoa amarelada que rodeava as lâmpadas. Num dos lados da casa a luz escoava por entre as árvores e quando encontrei a escada, ela se apagou de repente e tudo ficou escuro. Comecei a subir às apalpadelas. A luz voltou a bater no meu rosto e por um momento eu os vi amontoados no centro do salão; os rostos brilhantes se apagaram de repente e acabei de entrar, xingando quem tinha inventado aquela brincadeira com a luz.

Estavam em círculo e, no meio, Luciana se sacudia sozinha, balançava o corpo ao ritmo da música, descalça e com o cabelo solto. No escuro só se ouviam as palmas e quando a luz voltava o rosto suado de Luciana parecia brotar de repente, escondido pelo cabelo que cobria seus olhos. Até que, bruscamente, houve uma confusão de vozes e barulhos e Patricio e Luciana cruzaram a porta, iluminados. Ele a levava pelo braço, quase no ar, arrastando-a, enquanto ela jogava o cabelo para trás com gestos rígidos, e a música continuava tocando e todos se olhavam, com os rostos brilhando, como se pedissem desculpas, em silêncio.

Ficaram imóveis por um momento e depois começaram a se mexer, embaraçados. As vozes foram aumentando aos poucos.

Continuaram dançando mais algum tempo, chateados porque a coisa estava liquidada e era inútil querer encompridar aquilo, enquanto um garçom começava a recolher as garrafas e todos debandavam em grupos furtivos até que restaram três ou quatro casais, dançando sozinhos no meio da sala vazia.

Eu fiquei até o fim mas não vi Luciana. Então terminei a genebra e desci sozinho, devagar, atrás dos retardatários que atravessavam o jardim desalinhados e com olheiras.

Havia um cheiro de tempestade no ar e a névoa quase não deixava passar a luz brancacenta do amanhecer.

Parei para acender um cigarro; as luzes da casa iam se apagando uma a uma. Quando retomei a caminhada rumo à grade, enquanto o chuvisco aumentava, alguém me pegou pela mão.

- Espera aí, fofinho, para que tanta pressa? - disse Luciana e parecia outra, mais indefesa ou algo assim, tinha lavado o rosto, imagino, porque sua pele estava cinzenta e limpa, com os olhos como duas chagas no meio do rosto.

Fomos andando devagar até o alpendre e a água já batia ruidosamente contra as chapas.

Não consigo me lembrar do que falamos. O que sei é que eu não dei importância e que nesse momento aquilo não tinha importância; era uma dessas conversas entrecortadas, balbuciantes, de fim de noite, enquanto clareia e a gente sente o corpo como recheado de algodão ou de estopa e os olhos feridos pela luz leitosa do amanhecer.

Quase não me lembro de nada além da chuva no telhado e da voz de Luciana misturada ao barulho da água. Eu sentia minha cabeça vazia e a única coisa que queria era que passasse um taxi, levá-la comigo, para casa, tomar um banho e ir com da para a cama. Mas não passava táxi nenhum, e Luciana andava de um lado para o outro. Eu a segurava pelo cotovelo mas ela não parava quieta, nesse espaço insignificante, com o cabelo escondendo seus olhos e o rosto cinzento, não parava quieta parecia um bicho dentro da jaula ou uma mão mexendo-se com cuidado, tateando para recolher um monte de cacos de vidro do chão.

Até que de repente tocou meu rosto de leve com os lábios e foi para a chuva.

Andava tão devagar, toda torta, flutuando naquela bruma cinzenta, que eu pensei que fosse voltar. Absurdamente pensei que tinha ido para a chuva porque sim mas que ia voltar; e fiquei olhando como se afastava, e já ia saindo para buscá-la quando ela parou, sepultada pela chuva; agachou-se tateando o chão e depois rodopiou num pé só com um braço esticado e eu gritei que voltasse por causa da chuva ou por não sei o quê mas ela continuava andando, agora descalça, com os sapatos na mão, cada vez menor até que virou um ponto ocre no meio da chuva.

E eu fiquei ali, sem pensar em nada, esperando a chuva diminuir para vir pelo Bajo, andando sem pressa, desviando das poças, enquanto o sol se diluía entre as nuvens e as pessoas encurvadas, e as lojas começavam a abrir e Luciana andava por algum lugar dessa garoa, ela também olhando a cara amarrada dos que madrugavam espantados de ver aquela moça, ensopada e descalça, com o cabelo colado no rosto, escondendo os olhos para não sentir a luz afiada do amanhecer entrando pelas vidraças do seu quarto, subindo numa cadeira para vedá-las, abrigar-se na suave escuridão da noite, esquecer o dia lá fora que vem vindo aos poucos, deixando o vestido escorregar por seu corpo molhado, nua quando a encontraram, com as janelas fechadas, o quarto escuro e Luciana tapando os olhos com o braço como quem tenta apagar o sol, de barriga para cima na areia e perto do mar, ao meio-dia.

 

 

[1] Alta en el cielo un águila guerrera, primeiro verso do hino à bandeira argentina. (N.T.)
[2] Modo pejorativo de nomear, na capital argentina, os migrantes mestiços ou o "povão" em geral. (N.T.)
[3] Sigla da Federación Universitaria de Buenos Aires. (N.T.)
[4] O compositor de tangos Enrique Santos Discépolo. (N.T.)

 

 

                                                                  Ricardo Piglia

 

 

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