Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A INVASÃO / Robin Cook
A INVASÃO / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A INVASÃO

 

Nas gélidas vastidões do espaço interestelar, um minúsculo ponto de matéria-antimatéria surgiu do vácuo flutuando, criando um intenso clarão de radiação eletromagnética. Para a retina humana, esses fenômenos teriam parecido a súbita emergência e expansão de um ponto de cores representando todo o espectro de luz visível. Naturalmente, nem os raios gama, os raios X e mesmo os infravermelhos e as ondas de rádio seriam perceptíveis à limitada visão do homem.

Simultaneamente à explosão de cores, a testemunha humana teria visto o surgimento de um número astronômico de átomos, sob a forma de uma concreção negra, disciforme e giratória. O fenômeno pareceria um videoteipe passado em reverso do objeto caindo em um lago cristalino de fluidos, cujas ondulações eram a urdidura do espaço e do tempo.

Ainda viajando próximo à velocidade da luz, o imenso número de átomos aglutinados disparou em direção às distantes regiões do sistema solar, atravessando como um raio as órbitas dos planetas gasosos mais distantes — Netuno, Urano, Saturno e Júpiter. No momento em que a concreção alcançou a órbita de Marte, sua rotação e velocidade haviam desacelerado significativamente.

O objeto podia agora ser visto pelo que era: uma espaçonave intergaláctica cuja superfície externa brilhante assemelhava-se ao ônix extremamente polido. A única irregularidade em seu desenho disciforme era uma série de protuberâncias ao longo da face superior da extremidade da borda. O contorno de cada uma dessas protuberâncias refletia a silhueta da maciça nave-mãe.

Não havia outras distorções em sua superfície: nada de vigias, saídas de ar ou antenas. Não havia nem mesmo linhas de junção estruturais.

Entrando velozmente nas fímbrias da atmosfera terrestre, a temperatura externa da espaçonave elevou-se. Uma cauda flamejante pareceu iluminar o céu noturno no rastro da nave, à medida que os átomos atmosféricos excitados pelo calor desprendiam fótons em protesto.

A nave continuou a desacelerar, tanto em termos de rotação quanto de velocidade. Lá embaixo, as luzes cintilantes de uma cidade desavisada surgiram, sendo, porém ignoradas pela nave pré-programada. Foi por sorte que o impacto ocorreu num espaço árido e rochoso, onde se espalhavam vários penedos. Apesar da velocidade relativamente baixa, o pouso foi mais uma colisão controlada do que uma aterrissagem propriamente dita, lançando pedra, areia e pó em ondas pelo ar. Quando a nave finalmente parou, estava meio enterrada na areia. Os destroços lançados ao ar com o impacto desabaram sobre sua superfície polida.

Depois que a temperatura externa caiu abaixo dos duzentos graus centígrados, uma abertura vertical, semelhante a uma fenda, surgiu ao longo da borda. Aquilo não parecia uma porta mecânica. Era como se as próprias moléculas trabalhassem de comum acordo para permitir que se penetrasse o exterior inconsútil da nave.

A abertura deixou escapar vapor, evidência de que o interior da nave guardava a frigidez do espaço. Lá dentro, uma série de computadores executavam diligentemente seqüências automáticas. Amostras da atmosfera e do solo da Terra foram arrastadas para dentro da nave, a fim de serem analisadas. Esses procedimentos automatizados funcionaram como o planejado, inclusive o isolamento de formas de vida procarióticas (bactérias), retiradas do pó. As análises de todas as amostras, inclusive do DNA nelas contido, confirmaram que o destino correto fora alcançado. Teve início então a seqüência de aparelhamento. Enquanto isso, uma antena estendeu-se na direção do céu, preparando-se para a transmissão em freqüência de quasar, a fim de anunciar que Magnum chegara.

 

 

22:15

— Ei, ei! — dizia Candee Taylor, enquanto batia no ombro de Jonathan Sellers. Naquele momento, Jonathan estava muito ocupado, beijando-lhe o pescoço. — Terra para Jonathan, responda, por favor! — acrescentou Candee, começando a dar pancadinhas na cabeça do rapaz com os nós dos dedos.

Tanto Candee quanto Jonathan estavam com dezessete anos, no terceiro ano da Escola Secundária Anna C. Scott. Jonathan acabara de tirar a carteira de motorista e, embora ainda não tivesse permissão para usar o carro da família, pegara emprestado o VW de Tim Appleton. Apesar de terem aula naquela noite, Candee e Jonathan deram uma escapulida e dirigiram-se ao penhasco que se erguia acima da cidade. Ambos haviam esperado ansiosamente por essa primeira visita à “alameda do amor” favorita dos jovens da escola Para ajudar a criar o clima, como se precisassem de alguma ajuda, o rádio estava ligado na KNGA, a emissora que tocava sem intervalos os quarenta maiores kits da parada de sucesso.

— O que foi? — perguntou Jonathan, enquanto apalpava o ponto sensibilizado no alto de sua cabeça. Candee tivera de acertá-lo com força razoável para desviar sua atenção. Jonathan era magro e muito alto para sua idade. A arrancada de crescimento por que passam os adolescentes fora apenas vertical, para alegria de seu treinador de basquete.

— Queria que você visse a estrela cadente. — Sendo uma ginasta, Candee era significativamente mais desenvolvida do que Jonathan no aspecto físico. Seu corpo era motivo de admiração por parte dos garotos e de inveja por parte das garotas. Ela poderia ter namorado praticamente qualquer um que desejasse, mas escolheu Jonathan graças a uma combinação de seu jeito engraçadinho com sua habilidade com os computadores, que eram também um dos interesses de Candee.

— O que tem demais numa estrela cadente? — gemeu Jonathan. Ele ergueu os olhos para as estrelas, mas rapidamente voltou a olhar para Candee. Não tinha certeza, mas pensou que um dos botões da blusa dela que, ao chegarem ali estava abotoado, agora estava misteriosamente desabotoado.

— Ela atravessou todo o céu — disse Candee, traçando com o dedo indicador uma linha no pára-brisa para dar ênfase. — Foi incrível!

À meia-luz no interior do carro, Jonathan só conseguia distinguir o imperceptível movimento dos seios de Candee, que desciam e subiam com a respiração. Ele achou aquilo mais incrível do que qualquer estrela que pudesse existir. Estava prestes a inclinar-se para tentar beijá-la quando, aparentemente, o rádio se autodestruiu.

Primeiro o volume subiu, alcançando um nível ensurdecedor, e instantaneamente seguiu-se uma seqüência de ruidosos estalidos e silvos. Fagulhas saltaram do painel, de onde também subiu uma espiral de fumaça.

— Merda! — gritaram Jonathan e Candee em uníssono, ao mesmo tempo em que instintivamente tentavam afastar-se do receptor lançando faíscas, ambos saltando do carro. Já na segurança do exterior, perscrutaram o interior do carro, quase esperando pelas chamas. Em vez disso, porém, as centelhas pararam quase tão abruptamente quanto haviam começado. Aprumando-se, eles se entreolharam por sobre a capota do carro.

— Que diabos euvou dizer a Tim? — gemeu Jonathan.

— Olhe a antena! — exclamou Candee.

Mesmo na escuridão, Jonathan pôde ver que a ponta havia enegrecido.

Candee estendeu a mão e a tocou.

— Ai! — exclamou. — Está quente!

Ouvindo um burburinho de vozes, Jonathan e Candee olharam à sua volta. Outros jovens haviam saído de seus carros. Uma nuvem de fumaça acre pairava sobre o local. Os rádios que estiveram ligados, fosse tocando rap, rock ou música clássica, haviam queimado o fusível. Pelo menos era o que todos estavam dizendo.

 

22:15

A Dra. Sheila Miller morava num dos poucos edifícios residenciais da cidade. Ela gostava da vista, da brisa que vinha do deserto e da proximidade com o Centro Médico da Universidade. Dos três aspectos, o último era o mais importante.

Aos 35 anos de idade, ela se sentia como se tivesse vivido duas vezes. Casara-se cedo, ainda na universidade,com um colega do curso pré-médico. Eles tinham tanta coisa em comum! Ambos acreditavam que a medicina era o interesse que os absorveria por toda a vida e que partilhariam esse sonho. Infelizmente, a realidade excluíra de maneira brutal o romantismo, graças aos rígidos horários de ambos. Ainda assim, o relacionamento poderia ter sobrevivido, se George não houvesse tido a irritante idéia de que sua carreira como cirurgião era mais importante do que o caminho escolhido por Sheila, primeiro na clínica médica e depois na emergência. No tocante à responsabilidade doméstica, ficara tudo sobre os ombros de Sheila.

A decisão de George de aceitar, sem antes discutir com ela, uma bolsa de estudo de dois anos em Nova York fora a gota d’água. A constatação de que George esperava que ela o seguisse na mudança, quando Sheila acabara de aceitar a posição de chefe do departamento de emergência do Centro Médico da Universidade, mostrou-lhe o quanto os dois eram incompatíveis. Qualquer romance que um dia existira entre eles havia muito se evaporara; assim,com pouca discussão e sem nenhuma paixão, dividiram a coleção de CDs e os números antigos das publicações médicas, e cada um seguiu seu caminho. No que dizia respeito a Sheila, o único legado foi uma leve amargura em relação às supostas prerrogativas masculinas.

Naquela noite em particular, como na maioria das outras, Sheila estava ocupada lendo sua interminável pilha de revistas médicas. Ao mesmo tempo, gravava um antigo clássico do cinema que estava sendo exibido na TV,com o intuito de assistir ao filme no final de semana. Assim, o apartamento estava em silêncio, salvo pelo ocasional tilintar dos sinos chineses na varanda.

Sheila não viu a estrela cadente avistada por Candee, mas no mesmo momento em que esta e Jonathan se assustavamcom a destruição do rádio no carro de Tim, Sheila era igualmente abalada por uma catástrofe semelhante ocorridacom seu videocassete. De repente, o aparelho começou a faiscar e zumbir, como se estivesse prestes a lançar-se ao espaço.

Arrancada das profundezas da concentração, Sheila ainda teve a presença de espírito de puxar a tomada da parede. Infelizmente, tal manobra teve pouco efeito. Foi só quando ela desconectou o fio que o aparelho silenciou, embora continuasse a expelir fumaça. Com cautela, Sheila tateou a superfície do painel. Estava quente, mas certamente não o bastante para pegar fogo.

Praguejando em silêncio, Sheila retornou à leitura. Vagamente, cogitou de levar o videocassete para o hospital no dia seguinte, para ver se um dos técnicos em eletrônica não podia consertá-lo. Justificou a idéia com o fato de sua agenda estar lotada. Não tinha como arranjar tempo para levar o aparelho até a loja onde o comprou.

 

22:15

Pitt Henderson fora escorregando aos poucos, de modo que agora estava praticamente na posição horizontal, esparramado no sofá surrado, apertado em seu quarto no terceiro andar do dormitório do campus da universidade, diante do aparelho de TV preto-e-branco de treze polegadas, que ganhara dos pais em seu último aniversário. A tela podia ser minúscula, mas a recepção era boa e a imagem nítida como um cristal.

Pitt planejava se formar naquele ano na universidade. Fazia o curso pré-médico, na área de química. Embora fosse um aluno apenas ligeiramente acima da média, conseguira garantir uma vaga na faculdade de medicina através de trabalho duro e responsabilidade. Era o único formando em química que optara pelo programa de estudo e trabalho, e vinha estagiando no Centro Médico da Universidade desde o segundo ano, a maior parte do tempo nos laboratórios. No momento, estava numa etapa de revezamento, trabalhando no departamento de emergência. No decorrer daqueles anos, Pitt adquirira o hábito de tornar-se útil em qualquer setor do hospital a que fosse designado.

Um enorme bocejo fez seus olhos lacrimejarem e o jogo de basquete a que ele estivera assistindo começou a enevoar-se à medida que sua mente mergulhava no sono. Pitt era um rapaz de 21 anos, corpulento e musculoso, que na escola secundária fora um astro do futebol americano, mas que na universidade não conseguira incorporar-se ao time. Superara a decepção e a transformara numa experiência positiva, concentrando-se ainda mais no objetivo de ser médico.

No momento exato em que as pestanas de Pitt se tocaram, o tubo de imagem de sua adorada TV explodiu, espalhando cacos de vidro sobre seu abdômen e peito. Aconteceu no mesmo instante em que o rádio de Jonathan e Candee e também o videocassete de Sheila sofreram a avaria.

Durante um segundo, Pitt não se moveu. Estava atônito e confuso, sem saber se a perturbação que o acordara fora externa ou interna, como um daqueles sobressaltos que experimentava às vezes assim que caía no sono. Depois de ajeitar os óculos no nariz e de se ver fitando as profundezas de um tubo de raios catódicos queimado, soube que não estava sonhando.

— Merda! — praguejou ele, pondo-se de pé e sacudindo cuidadosamente os cacos de vidro de seu colo. Lá fora, no corredor, ele ouviu várias portas se abrirem, rangendo as dobradiças.

Saindo do quarto, Pitt olhou de um lado e do outro. Vários estudantes,com os mais diversos tipos de roupa, entreolhavam-se com expressões estupefatas.

— Meu computador acaba de queimar um fusível — disse John Barkly. — Eu estava navegando na Internet. —John ocupava o quarto à direita do de Pitt.

— A droga da minha TV explodiu — anunciou outro estudante.

— Meu rádio-relógio praticamente pegou fogo — informou um outro. — Que diabos está acontecendo? Será algum tipo de brincadeira?

Pitt fechou a porta e olhou os tristes restos de sua adorada TV. Uma brincadeira, refletiu ele. Se pegasse o sujeito responsável, ele o arrebentaria...

 

7:30

Deixando a Main Street em direção ao Costa’s Diner, um pequeno restaurante 24 horas, o pneu traseiro direito do Toyota preto com tração nas quatro rodas de Beau Stark bateu no meio-fio, fazendo o veículo dar um solavanco. Sentada no banco do passageiro, Cassy Winthrope bateu com a cabeça na janela lateral. Ela não se machucou, mas o tranco fora inesperado. Felizmente, estava usando o cinto de segurança.

— Meu Deus! — exclamou Cassy. — Onde você aprendeu a dirigir, sabe-tudo?

— Engraçadinha — disse Beau, envergonhado. — Virei um pouquinho cedo demais, foi só isso.

— Deveria me deixar dirigir, se está preocupado — retrucou Cassy.

Beau conduziu o carro através do estacionamento coberto de cascalho, que já estava cheio, e parou numa vaga em frente ao restaurante.

— Como sabe que estou preocupado? — perguntou ele, freando e desligando o motor.

— Quando você mora com uma pessoa, começa a interpretar todos os pequenos sinais que ela lhe dá — afirmou Cassy, enquanto soltava o cinto de segurança e descia do carro. — Principalmente quando essa pessoa é o seu noivo.

Beau fez o mesmo, mas, quando seu pé tocou o chão, escorregou sobre uma pedra. Ele agarrou-se à porta aberta para não cair.

— Está resolvido — decidiu Cassy, tendo percebido mais esse último sinal da desatenção e temporária falta de coordenação de Beau. — Depois do café, eu dirijo.

— Eu posso dirigir muito bem — disse Beau, irritado, batendo a porta do carro com força e trancando-a com o controle remoto. Juntou-se a Cassy atrás do veículo e seguiram em direção à entrada do restaurante.

— Com certeza, assim como pode se barbear muito bem — replicou Cassy.

Beau trazia uma pequena floresta de pedacinhos de lenço de papel colados aos vários cortes e arranhões que infligira a si próprio naquela manhã.

— E também fazer café — acrescentou Cassy. Em casa, Beau havia derrubado a cafeteira e, ainda por cima, quebrado uma de suas canecas.

— Bem, talvez eu esteja um pouco preocupado, sim — admitiu Beau,com relutância.

Beau e Cassy estavam vivendo juntos havia oito meses. Ambos tinham 21 anos e estavam no último ano de seus cursos, como Pitt. Os dois se conheciam desde o primeiro ano da universidade, mas nunca haviam saído juntos, cada um certo de que o outro estava sempre envolvido com outra pessoa. Quando por fim foram unidos inadvertidamente pelo amigo comum, Pitt, que na ocasião andava saindo ocasionalmente com Cassy, eles se combinaram como se seu relacionamento estivesse predestinado.

A maioria das pessoas achava que eles se pareciam um com o outro e quase podiam passar por irmão e irmã. Ambos tinham cabelos castanho-escuros espessos, pele cor de oliva sem imperfeições e olhos azuis de uma tonalidade incrivelmente cristalina. Os dois também possuíam uma inclinação atlética e com freqüência faziam exercícios juntos. Algumas pessoas brincavam que se tratava de uma versão morena dos bonecos Ken e Barbie.

Acredita mesmo que vai ter uma resposta do pessoal de Nite? — indagou Cassy, enquanto Beau abria a porta para ela. O que quero dizer é que a Cipher é “apenas” a maior empresa de software do mundo. Acho que você está se arriscando a uma grande decepção.

— Não tenho a menor dúvida de que vão me ligar — disse Beau com confiança, entrando no restaurante atrás de Cassy. — Depois do currículo que mandei, irão me ligar a qualquer minuto. — Ele afastou um dos lados do paletó Cerruti, deixando-a ver a ponta do telefone celular guardado no bolso interno.

O elegante traje de Beau naquela manhã não era por acaso. Ele fazia questão de se vestir elegantemente todos os dias. Acreditava que parecer bem-sucedido trazia o sucesso. Felizmente, seus pais, ambos trabalhando, podiam e estavam dispostos a satisfazer suas vontades. A seu favor, havia o fato de se esforçar muito, ser um aluno aplicado e tirar notas excelentes. Confiança não era algo que lhe faltasse.

— Ei, pessoal! — chamou Pitt de uma mesa junto às janelas da frente. — Aqui!

Cassy acenou e abriu caminho em meio às pessoas. Costa’s Diner, afetuosamente chamado de “pé-sujo”, era um ponto de encontro dos universitários, principalmente para o café da manhã. Cassy deslizou para o banco em frente a Pitt. Beau fez o mesmo.

— Vocês tiveram algum problema com a TV ou o rádio ontem à noite? — perguntou Pitt, excitado, antes mesmo de dizerem olá. — Estavam com algum aparelho ligado por volta das dez e quinze?

Cassy fez uma expressão de desdém exagerado.

— Ao contrário das outras pessoas — afirmou Beau com fingida arrogância —, nós estudamos à noite.

Sem a menor cerimônia, Pitt atirou um guardanapo embolado na testa de Beau. Estivera brincando nervosamente com o papel, enquanto esperava que Beau e Cassy chegassem.

— Pois saibam, seus idiotas que não têm a menor idéia do que está se passando no mundo real, que ontem à noite, às dez e quinze, um monte de rádios e TVs em toda a cidade se queimou — informou Pitt. — Inclusive a minha TV. Algumas pessoas acham que foi uma brincadeira de alguns caras do departamento de física e euvou lhes dizer uma coisa: estou furioso.

— Seria bom se isso acontecesse no país todo — disse Beau. — Com uma semana sem televisão, a média nacional de QI certamente subiria.

— Suco de laranja para todo mundo? — perguntou Marjorie, a garçonete, que se aproximara da mesa. Antes que alguém pudesse responder, ela começou a servir. Era tudo parte do ritual de todas as manhãs. Em seguida, Marjorie anotou os pedidos e passou-os aos gritos, em grego, por sobre o balcão para os dois cozinheiros.

Quando todos bebericavam o suco, o toque abafado do celular de Beau pôde ser ouvido sob o tecido do paletó. Em sua pressa para atendê-lo, ele derrubou seu copo de suco. Pitt teve de saltar instintivamente a fim de evitar um banho de suco de laranja.

Cassy abanou a cabeça capciosamente, enquanto apanhava uma meia dúzia de guardanapos e secava o suco derramado. Ela revirou os olhos para Pitt e contou a ele que Beau fizera outras proezas daquele tipo nessa manhã.

A expressão de Beau se iluminou quando ele se deu conta de que suas esperanças haviam obtido resposta: o telefonema vinha da organização de Randy Nite. Ele inclusive fez questão de pronunciar o nome, Cipher, com bastante clareza, especialmente para Cassy.

Cassy explicou a Pitt que Beau estava tentando obter um emprego junto ao papa.

— Eu teria prazer em comparecer para uma entrevista — ia dizendo Beau com calma estudada. — Seria uma honra. No momento em que o Sr. Nite quiser me ver, terei prazer em tomar um avião para o Leste. Como mencionei na carta que lhes enviei, estou me formando no próximo mês e, por conseguinte, estarei disponível para começar a trabalhar... Bem, a qualquer momento depois da formatura.

— “Por conseguinte”! — repetiu Cassy, engasgando com o suco de laranja.

— É — concordou Pitt. — De onde ele tirou isso? Essas não parecem as palavras do meu amigo Beau.

Beau fez sinal para que se calassem, fuzilando-os com um olhar de desaprovação.

— Correto — disse ele ao telefone. — O que estou procurando é uma permutação do papel de assistente pessoal do Sr. Nite.

— Permutação? — questionou Cassy, abafando uma gargalhada.

— O que me agrada é o leve e falso sotaque inglês — afirmou Pitt. — Talvez Beau devesse entrar para o teatro e esquecer os computadores.

— Ele é um excelente ator — disse Cassy, fazendo cócegas em sua orelha. — Hoje de manhã estava fingindo ser um bobalhão.

Beau afastou-lhe a mão com um tapa.

— Sim, seria ótimo — continuou ele ao telefone. — Tomarei as providências para estar lá. Por favor, diga ao Sr. Nite que estarei esperando com grande alacridade nosso encontro.

— “Alacridade”? — repetiu Pitt, fingindo provocar o vômito com o dedo indicador.

Beau apertou o botão que punha fim à ligação e fechou o telefone. Fuzilou Cassy e Pitt com o olhar.

— Vocês são mesmo imaturos. Possivelmente esse era o telefonema mais importante de minha vida, e vocês aí fazendo palhaçadas.

— “Vocês são mesmo imaturos”! Esse parece mais com o Beau que conheço — disse Cassy.

— É, quem era aquele outro cara falando no telefone? — perguntou Pitt.

— É o cara que vai estar trabalhando na Cipher em junho próximo — afirmou Beau. — Ouça o que eu digo. Depois disso, quem sabe? Enquanto você, meu amigo, vai perder mais quatro anos na faculdade de medicina.

Pitt deu uma gargalhada.

— Perder quatro anos na faculdade de medicina? — perguntou ele. — Bem, não deixa de ser um ponto de vista curioso, embora distorcido.

Cassy aproximou-se mais de Beau e começou a mordiscar o lóbulo de sua orelha. Beau afastou-a.

— Meu Deus, Cassy, há professores que eu conheço aqui, gente que pode escrever cartas de recomendação para mim.

— Ah, não seja tão quadrado — retrucou Cassy. — Só estamos provocando você porque está tenso. Na verdade, estou pasma que tenham ligado para você da Cipher. É uma vitória e tanto. Imagino que recebam um mundo de pedidos de emprego.

— Vai ser uma vitória ainda maior quando Randy Nite me oferecer um emprego — disse Beau. — Uma experiência inimaginável. É um emprego de sonho. O homem vale bilhões.

— Um emprego que também vai exigir muito de você — lembrou Cassy, pensativa. — Provavelmente vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana, quatorze meses por ano. Não vai sobrar muito tempo para nós, principalmente se eu estiver dando aulas aqui.

— É só uma maneira de dar um empurrão na carreira — disse Beau. — Quero ganhar bem para que nós dois possamos desfrutar a vida.

Pitt fingiu vomitar outra vez e implorou aos companheiros de desjejum que não o deixassem enjoado com aquelas bobagens sentimentais e românticas.

Assim que a comida chegou, o trio comeu rapidamente. Num gesto involuntário, os três consultaram seus respectivos relógios. Não dispunham de muito tempo.

— Alguém topa um cinema hoje à noite? — perguntou Cassy, enquanto terminava o café. — Tenho uma prova hoje e mereço um pequeno descanso.

— Eu não posso, doçura — respondeu Beau. — Tenho um trabalho para entregar daqui a dois dias. — Ele se virou e tentou chamar a atenção de Marjorie para pedir a conta.

— E quanto a você? — Cassy perguntou a Pitt.

— Lamento — disse ele. — Estou de plantão no centro médico.

— E o que me diz de Jennifer? — insistiu Cassy. — Eu podia ligar para ela.

— Bem, você é quem sabe — replicou Pitt. — Mas não por minha causa. Eu e Jennifer terminamos.

— Ah, que pena — disse Cassy, sentida. — Eu achava que vocês formavam um belo casal.

— Eu também — disse Pitt. — Infelizmente ela parece ter encontrado alguém mais ao seu gosto.

Durante um momento os olhos de Cassy e Pitt se encontraram e então ambos desviaram o olhar, experimentando uma pontada de constrangimento e uma leve sensação de déjà vu.

Beau recebeu a conta e a estendeu sobre a mesa. Apesar dos três terem tido vários cursos de matemática na universidade, foram necessários cinco minutos para que calculassem quanto cada um devia, depois de acrescentarem uma gorjeta razoável.

— Quer uma carona para o centro médico? — Beau ofereceu a Pitt quando deixavam o restaurante, saindo para o sol da manhã.

— Obrigado — disse Pitt, de modo ambivalente. Estava se sentindo um pouco deprimido. O problema era que ainda nutria sentimentos românticos em relação a Cassy, a despeito do fato de que ela o rejeitara e de Beau ser seu melhor amigo. Os dois se conheciam desde a escola elementar.

Pitt estava alguns passos atrás dos amigos. Sua vontade era dar a volta até o lado do passageiro do carro de Beau e abrir a porta para Cassy, mas ele não queria fazer o amigo parecer mau. Em vez disso, seguiu-o, e estava prestes a passar para o banco traseiro, quando Beau pôs o braço em seu ombro.

— Que diabos é aquilo? — perguntou ele.

Pitt seguiu o olhar de Beau. Enfiado na areia, bem em frente à porta do motorista, havia um curioso objeto preto e redondo, do tamanho aproximado da moeda de um dólar. Era liso, num formato simétrico abobadado e, à luz do sol, parecia ter um acabamento fosco que tornava difícil dizer se se tratava de metal ou pedra.

— Devo ter pisado nessa porcaria quando saltei do carro — disse Beau. Via-se claramente a marca imprecisa de um pé, formando um ângulo com um dos lados da cúpula arredondada do objeto. — Fiquei imaginando por que teria escorregado.

— Você acha que caiu do seu carro? — indagou Pitt.

— Parece estranho — afirmou Beau. Em seguida, abaixou-se e,com a lateral da mão, afastou parte da areia que cobria parcialmente o curioso objeto. Ao fazê-lo, pôde ver oito domos minúsculos, simetricamente dispostos em torno da borda do objeto.

— Ei, vamos, rapazes! — chamou Cassy de dentro do carro. — Tenho um compromisso na escola onde faço o estágio. Já estou atrasada.

— Só um segundo — respondeu Beau. Em seguida, perguntou a Pitt: — Tem idéia do que seja isso?

— Nem imagino — admitiu Pitt. — Vamos ver se o carro funciona.

— Isso não é do carro, seu idiota — retrucou Beau  com o polegar e o indicador da mão direita, tentou apanhar o objeto, que, no entanto, resistiu a seus esforços. — Deve ser a extremidade de algum bastão ou tubo enterrado.

Usando ambas as mãos para afastar o cascalho e a areia que se amontoavam em torno do pequeno objeto, Beau surpreendeu-se ao conseguir erguê-lo rapidamente. Não era parte de um bastão. A parte de baixo era achatada. Beau o apanhou. Na altura da abóbada, tinha cerca de um centímetro de espessura.

— Merda, esta coisa é pesada para o tamanho que tem — constatou Beau, passando-o a Pitt, que o sopesou na palma da mão. Pitt assoviou e fez uma expressão de perplexidade, devolvendo-o então a Beau.

— Do que é feito? — indagou Pitt.

— Parece chumbo. — Beau tentou arranhar a superfície do objeto com a unha, mas não conseguiu. — Mas não é chumbo. Diabos, aposto que é mais pesado do que chumbo.

— Me faz lembrar uma daquelas pedras pretas que de vez em quando encontramos na praia — disse Pitt. —Você sabe, uma daquelas pedras que ficam rolando para cá e para lá durante anos com as ondas.

Beau contornou a margem do objeto com os dedos indicador e polegar e fez um gesto como se fosse lançá-lo.

— Com essa base plana, aposto que posso fazê-lo quicar na água umas vinte vezes.

— Que disparate! — replicou Pitt. —com esse peso, afundaria depois de quicar uma ou duas vezes.

— Aposto cinco dólares como eu posso fazê-lo quicar pelo menos dez vezes — desafiou Beau.

— Apostado.

— Am! — gritou Beau de repente. Deixando cair o objeto, que mais uma vez ficou meio enterrado na areia e no cascalho, ele agarrou a mão direita com a esquerda.

— O que aconteceu? — perguntou Pitt, alarmado.

— Essa maldita coisa me espetou — disse Beau,com raiva. Ao espremer a base do dedo indicador, fez com que uma gota de sangue aflorasse na ponta.

— Ah, nossa! — exclamou Pitt,com sarcasmo. — Um ferimento mortal!

— Vá se ferrar, Henderson — disse Beau,com uma careta. — Doeu. Parecia a ferroada de uma maldita abelha. Cheguei a sentir no braço.

— Ah, septicemia instantânea — concluiu Pitt, mantendo o sarcasmo.

— Que diabos é isso? — perguntou Beau,com nervosismo.

— Levaria muito tempo para explicar, Sr. Hipocondríaco. Além disso, só estou brincando com você.

Beau abaixou-se e tornou a apanhar o pequeno disco negro. Inspecionou cuidadosamente sua borda, mas nada encontrou que pudesse justificar a ferroada.

— Vamos, Beau! — chamou Cassy, zangada. — Preciso ir. Que droga vocês dois estão fazendo?

— Está bem, está bem — disse Beau, olhando para Pitt e dando de ombros.

Pitt curvou-se e, da base da última marca deixada pelo objeto na areia, ergueu um fino caco de vidro.

— Isso não poderia ter-se prendido a essa coisa de alguma forma e cortado você?

— Suponho que sim — disse Beau. Não achava muito provável, mas não lhe ocorria nenhuma outra explicação. Estava convencido de que não havia como atribuir a culpa ao objeto.

— Beauuuuu! — chamou Cassycom os dentes cerrados.

Beau acomodou-se ao volante de seu 4x4. Ao fazê-lo, distraidamente guardou o curioso disco abobadado no bolso do paletó. Pitt também entrou no carro.

— Agora, sim, vou chegar atrasada — bufou Cassy.

— Qual foi a última vez em que tomou uma vacina antitetânica? — perguntou Pitt do banco de trás.

A menos de dois quilômetros do Costa’s Diner, os Sellers encontravam-se nos estágios finais de sua rotina matinal. A minivan da família já tinha o motor ligado graças a Jonathan, que estava sentado, em expectativa, ao volante do carro. Sua mãe, Nancy, podia ser vista emoldurada pela porta aberta da frente da casa. Vestia um conjunto simples, condizente com sua posição de virologista pesquisadora numa empresa farmacêutica local. Tratava-se de uma mulher pequena, 1,58m de altura,com os cabelos de cachos compactos e louros de uma Medusa.

— Ande logo, meu bem. — Nancy chamou o marido, Eugene, que estava ao telefone da cozinha, falando com um repórter do jornal local, um conhecido seu. Eugene fez sinal pedindo mais um minuto.

Impaciente, Nancy transferiu o peso do corpo de uma perna para a outra e observou o homem que há vinte anos era seu marido. Ele parecia exatamente o que era: um professor universitário de física. Ela nunca conseguira convencê-lo a deixar as calças largas e o paletó de veludo cotelê, a camisa de cambraia azul e a gravata de tricô. Chegara ao ponto de comprar-lhe roupas melhores, mas estas ficaram penduradas, sem uso, no armário. No entanto, ela não se casara com Eugene por sua consciência da moda ou pela falta desta. Haviam se conhecido na universidade e ela se apaixonara perdidamente por sua inteligência, seu humor e a suavidade de suas feições.

Voltando-se, ela olhou para o filho, em cujo rosto podia decididamente ver tanto a si mesma quanto ao marido. Ele lhe parecera assumir uma atitude defensiva nessa manhã, quando ela havia perguntado o que ele fizera na noite anterior na casa do amigo Tim. O tom evasivo, pouco característico de Jonathan, deixou-a preocupada. Nancy sabia das pressões a que eram submetidos os adolescentes.

— Estou sendo franco, Art — ia dizendo Eugene, num tom de voz alto o bastante para que Nancy ouvisse. — Não existe a possibilidade de uma carga tão poderosa de ondas de rádio ter vindo de um dos laboratórios do departamento de física. Eu sugeriria que vocês checassem com as estações de rádio da área. Existem duas, além da rádio universitária. Suponho que possa ter sido alguma brincadeira. Eu simplesmente não sei.

Nancy tornou a olhar para o marido. Ela sabia que era difícil para ele ser indelicado com alguém, mas todos iriam se atrasar. Erguendo um dedo, ela pronunciou as palavras “um minuto” para Eugene. Em seguida, andou até o carro.

— Posso dirigir hoje? — pediu Jonathan.

— Não creio que seja o dia ideal — replicou Nancy. — Já estamos atrasados. Chegue para lá.

— Puxa — queixou-se Jonathan. — Vocês nunca acreditam que eu seja capaz de fazer nada.

— Isso não é verdade — objetou Nancy. — Mas com certeza não acho que seja apropriado fazê-lo dirigir quando estamos com tanta pressa.

Nancy acomodou-se ao volante.

— Cadê o papai? — murmurou Jonathan.

— Está falando com Art Talbot — explicou Nancy. Ela olhou para o relógio. O minuto estava esgotado. Nancy acionou a buzina.

Felizmente Eugene apareceu à porta, que ele então trancou. Correu para o carro e saltou para o banco de trás. Nancy rapidamente deu marcha à ré, saindo para a rua, e acelerou em direção à primeira parada: a escola de Jonathan.

— Lamento fazer todos esperarem — disse Eugene depois de percorrerem uma pequena distância em silêncio. — Aconteceu um fenômeno curioso na noite passada. Parece que vários aparelhos de TV, rádios e até mesmo os mecanismos de portas de garagem eletrônicas foram danificados na área próxima à universidade. Me diga uma coisa, Jonathan: você e Tim estavam ouvindo rádio ou vendo TV por volta das dez e quinze? Pelo que eu saiba, os Appleton moram naquela área.

— Quem, eu? — perguntou Jonathan de pronto. — Não, não. A gente estava... lendo. É, a gente estava lendo.

Nancy olhou o filho com o canto dos olhos. Não pôde deixar de se perguntar o que na verdade ele estivera fazendo.

— Uau! — exclamou Jesse Kemper, conseguindo evitar que um copo fumegante de café entornasse em seu colo quando seu parceiro, Vince Garbon, manobrou o carro da ronda na entrada da Pierson’s Electrical Supply, fornecedores de equipamento eletrônico, localizada a algumas quadras do Costa’s Diner.

Jesse já havia passado dos cinqüenta e ainda era atlético. A maioria das pessoas pensava que ele não tivesse mais de quarenta. Era um homem que impressionava, com um bigode farto compensando o cabelo que escasseava no alto da grande cabeça.

Jesse era um tenente detetive da polícia municipal muito estimado pelos colegas. Fora apenas o quinto afro-americano na força policial, mas, encorajada por sua folha de serviços, a cidade começara um sério trabalho de recrutamento de afro-americanos, ao ponto de agora o departamento espelhar, no aspecto racial, a comunidade.

Vince guiou o sedã sem distintivo em torno do edifício e parou diante de uma porta de garagem aberta, perto de uma radiopatrulha municipal.

— Preciso ver isso — disse Jesse, descendo do banco do passageiro.

Voltando de uma saída para um café, ele e Vince ouviram no rádio que um ladrãozinho reincidente, de nome Eddie Howard, fora encontrado depois de passar a noite encurralado por um cão de guarda. Eddie era tão conhecido do departamento de polícia que era quase um amigo.

Esperando até que seus olhos acostumados à luz do sol brilhante se ajustassem ao interior sombrio, Jesse e Vince ouviram vozes à direita, atrás de uma estante de prateleiras maciças que iam do chão ao teto. Quando deram a volta até lá, encontraram dois policiais uniformizados recostados, como se tivessem parado para fumar um cigarro. Grudado a um canto estava Eddie Fjoward. À frente dele, um enorme pitbull preto e branco, imóvel como uma estátua. Os olhos fixos do animal estavam colados em Eddie, como duas bolas de gude negras.

— Kemper, graças a Deus — disse Eddie, permanecendo rígido, enquanto falava. — Leve esse bicho para longe de mim!

Jesse olhou para os dois policiais uniformizados.

— Já telefonamos e o proprietário está a caminho — esclareceu um deles. — Normalmente não chegam aqui antes das nove.

Jesse assentiu e voltou-se para Eddie.

— Há quanto tempo está aí?

— A droga da noite toda — disse Eddie. — Espremido contra essa parede.

— Como entrou? — indagou Jesse.

— Simplesmente andando — respondeu Eddie. — Estava perambulando pela vizinhança e de repente a porta da garagem se abriu sozinha, como num passe de mágica. Então, entrei para me certificar de que tudo estava bem. Você sabe, eu quis ajudar.

Jesse deu uma gargalhada breve e zombeteira.

— Acho que o totó aqui pensou que você quisesse outra coisa.

— Vamos lá, Kemper — gemeu Eddie. — Tire essa fera de perto de mim.

— No devido tempo — respondeu Jesse,com uma risadinha.

— No devido tempo. — Em seguida, tornou a dirigir-se aos policiais. — Vocês verificaram a porta da garagem?

— Com certeza — replicou o segundo policial.

— Algum sinal de que a entrada tenha sido forçada? — perguntou Jesse.

— Acho que Eddie está falando a verdade com relação a isso — respondeu o policial. Jesse abanou a cabeça.

— Aconteceram mais coisas estranhas na noite passada do que se pode imaginar.

— Principalmente neste lado da cidade — acrescentou Vince.

Sheila Miller estacionou o BMW vermelho conversível em sua vaga cativa perto da entrada da Emergência. Deslizando o banco dianteiro para a frente, ela olhou o videocassete queimado. Tentou pensar numa forma de levar o aparelho, a valise e uma pilha de pastas para sua sala numa só viagem. Parecia pouco provável que conseguisse até que viu um Toyota utilitário preto parar na área de descarga e dele saltar um passageiro.

— Por favor, Sr. Henderson — chamou Sheila quando reconheceu Pitt. Ela fazia questão de saber o nome de todos que trabalhassem em seu departamento, do recepcionista ao cirurgião. — Posso lhe falar por um momento?

Embora estivesse obviamente com pressa, Pitt voltou-se ao ouvir seu nome. Reconheceu de imediato a Dra. Miller. Timidamente, mudou de direção, desceu os degraus da plataforma de carga e aproximou-se do carro dela.

— Sei que estou um bocadinho atrasado — disse Pitt, nervoso. A Dra. Miller tinha a reputação de ser uma administradora severa. Seu apelido entre os funcionários do escalão mais baixo, principalmente os residentes do primeiro ano, era “Senhora Dragão”. — Mas não vai acontecer de novo — acrescentou Pitt.

Sheila consultou o relógio e então voltou a olhar para Pitt.

— Você está indicado para começar medicina no outono.

— Isso mesmo — respondeu Pitt, seu pulso acelerando.

— Bem, pelo menos tem uma aparência melhor do que a maior parte dos alunos deste ano — observou Sheila, ocultando um sorriso. Ela podia perceber a ansiedade de Pitt.

Confuso pelo comentário, que lhe pareceu um elogio, Pitt simplesmente assentiu. Na verdade, ele não sabia o que dizer. Tinha a sensação que ela estava brincando com ele, mas não estava muito certo.

—Vou lhe dizer uma coisa — começou Sheila, fazendo um gesto com a cabeça na direção do assento traseiro. — Se você levar esse vídeo para a minha sala, não mencionarei essa grave infração ao sub-reitor.

Pitt agora tinha uma razoável certeza de que a Dra. Miller estava caçoando dele, mas ainda assim achava melhor manter a boca fechada. Sem dizer nada, apanhou o videocassete e seguiu a Dra. Miller, entrando na Emergência.

Havia uma atividade moderada, principalmente devido a alguns pequenos acidentes de trânsito no começo da manhã. De quinze a vinte pacientes aguardavam na sala de espera, contando-se mais alguns na seção de trauma. Os funcionários presentes na recepção cumprimentaram a Dra. Millercom sorrisos, mas lançaram olhares perplexos a Pitt, especialmente aquele que deveria ser rendido por Pitt.

Eles seguiram pelo corredor principal e estavam prestes a entrar na sala de Sheila quando ela avistou Kerry Winetrop, um dos técnicos em eletrônica do hospital. Manter todo o equipamento de monitoramento do hospital funcionando era uma tarefa que ocupava em tempo integral várias pessoas. Sheila chamou o homem, que obsequiosamente se aproximou.

— Meu videocassete teve um problema ontem à noite — disse Sheila, indicando com a cabeça o aparelho nas mãos de Pitt.

— Seja bem-vinda ao clube — disse Kerr. — A senhora e mais um bando de gente. Parece que houve uma sobretensão na rede de TV a cabo na área da universidade cerca de dez e quinze da noite de ontem. Eu já dei uma olhada em alguns aparelhos que as pessoas trouxeram hoje cedo.

— Sobretensão, é? — observou Sheila.

— Minha TV explodiu — disse Pitt.

— Pelo menos minha TV está OK — ponderou Sheila.

— Ela estava ligada quando o vídeo queimou? — indagou Kerry.

— Não — respondeu Sheila.

— Bem, esse é o motivo por que ela não explodiu — afirmou o eletricista. — Se estivesse ligada, a senhora teria perdido também seu tubo de imagem.

— O vídeo tem conserto? — perguntou Sheila.

— Só se trocarmos a maior parte das peças — esclareceu Kerry. — Para lhe dizer a verdade, fica mais barato comprar um novo.

— Que pena — lamentou-se Sheila. — Justo agora que eu finalmente aprendi a acertar o relógio deste.

Cassy subiu correndo os degraus da Escola Secundária Anna C. Scott e entrou no momento em que a sineta anunciava o começo da primeira aula. Lembrando a si mesma que se desesperar em nada ajudaria, ela disparou pela escada principal acima e atravessou apressada o corredor até a sala que lhe fora designada. Estava na metade do mês de observação das aulas de inglês numa turma do terceiro ano. Essa era a primeira vez que se atrasava.

Parando à porta para tirar o cabelo do rosto e alisar a frente do recatado vestido de algodão, não pôde deixar de ouvir o evidente pandemônio que acontecia no interior da sala. Esperara ouvir a voz estridente da Sra. Edelman, mas em vez disso veio uma mixórdia de vozes e risadas. Cassy entreabriu a porta e olhou para dentro da sala.

Os alunos estavam casualmente espalhados pela sala. Alguns de pé, outros sentados sobre a tampa dos aquecedores e nas mesas. Era uma colméia de grupos isolados de conversa.

Abrindo um pouco mais a porta, Cassy pôde ver o porquê daquele caos. A Sra. Edelman não estava presente.

Cassy engoliu em seco. Sua boca se ressecara. Durante um segundo, debateu sobre o que fazer. Sua experiência com garotos do ginásio era mínima. Toda a sua prática de ensino até ali fora no nível elementar. Concluindo que tinha pouca escolha e respirando fundo, empurrou a porta e entrou.

Ninguém prestou atenção a ela. Avançando até a mesa da Sra. Edelman, na frente da sala, Cassy viu um bilhete com a letra da professora, que dizia simplesmente: Srta. Winthrape, eu me atrasarei por alguns minutos. Por favor, comece a aula. Com o coração disparado, Cassy relanceou os olhos pela cena que tinha diante de si. Sentiu-se incompetente, uma impostora. Ela não era uma professora, pelo menos não ainda.

— Com licença! — gritou Cassy, sem obter resposta.

Gritou então mais alto. Por fim, berrou o mais alto que pôde, o que produziu um silêncio perplexo na sala, fazendo com que ela se visse agraciada com cerca de trinta pares de olhos fixos, cujas expressões iam da surpresa à irritação por terem sido interrompidos, passando ainda pelo franco desdém.

— Por favor, voltem a seus lugares — disse Cassy. Sua voz tremia mais do que ela gostaria que transparecesse.

Relutantes, os alunos fizeram o que lhes foi pedido.

— Muito bem — prosseguiu Cassy, tentando ganhar confiança. — Sei qual era a tarefa de vocês, portanto, até a Sra. Edelman chegar, que tal discutirmos o estilo de Faulkner num sentido geral? Algum voluntário para começar?

Os olhos de Cassy percorreram a sala. Os alunos, que momentos antes eram a imagem da animação, agora pareciam talhados em mármore. A expressão daqueles que ainda olhavam para ela era vazia. Um garoto ruivo impertinente franziu os lábios num beijo silencioso no momento em que os olhos de Cassy encontraram os seus. A jovem ignorou o gesto.

Cassy podia sentir o suor que brotava junto à linha de seus cabelos. As coisas não estavam indo bem. No fim da segunda fileira de cadeiras, ela viu um garoto louro absorto com um computador laptop.

Relanceando os olhos pelo gráfico das cadeiras afixado no meio do mata-borrão que cobria a mesa da professora, Cassy leu o nome do garoto: Jonathan Sellers.

Tornando a erguer os olhos, Cassy tentou outra vez:

— OK, pessoal. Eu sei que é legal bagunçar a minha aula. Afinal, sou apenas uma estudante que ainda vai ser professora e vocês todos sabem muito mais sobre o que se passa aqui do que eu, mas...

Naquele momento, a porta se abriu. Cassy virou-se, esperando ver a competente Sra. Edelman. Em vez disso, porém, a situação tornou-se ainda pior. O Sr. Partridge, o diretor, entrou na sala.

Cassy entrou em pânico. O Sr. Partridge era um homem austero e um rígido disciplinador. Cassy só o vira uma vez, quando ela e seus colegas passavam pela etapa da orientação. Ele deixara bem claro que o programa de estágio não lhe agradava e que só concordara com ele sob coação.

— Bom dia, Sr. Partridge — Cassy conseguiu dizer. — Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Apenas continue!—respondeu asperamente o Sr. Partridge.

— Fui informado do atraso da Sra. Edelman e então resolvi passar aqui para observar um pouco.

— Naturalmente — disse Cassy, voltando a atenção para os alunos paralisados e limpando a garganta. —Jonathan Sellers — chamou. — Talvez você pudesse começar o debate.

— É claro — assentiu Jonathan, agradavelmente. Cassy deixou escapar um imperceptível suspiro de alívio.

— William Faulkner foi um dos principais escritores americanos — anunciou Jonathan, tentando fazer suas palavras parecerem de improviso.

Cassy podia ver que ele estava lendo na tela do computador, mas não se importava. Na verdade, sentia-se grata por seu expediente.

— Ele é conhecido pela vivida caracterização de seus personagens e por seu estilo rebuscado...

Tim Appleton, sentado na frente de Jonathan, tentava em vão abafar uma risada, pois sabia o que o amigo estava fazendo.

— Muito bem — disse Cassy. — Vamos ver como essas características se aplicam à história que lhes foi pedida que lessem para hoje. — Ela voltou-se para o quadro-negro e escreveu “personagens vividos” e ao lado “estrutura narrativa complexa”. Então, ouviu a porta do corredor se abrir e fechar. Lançando um olhar naquela direção, ficou aliviada em ver que o carrancudo Sr. Partridge se fora.

Voltando a encarar a turma, sentiu-se feliz ao ver as mãos erguidas de vários alunos dispostos a participar da discussão. Antes de passar a palavra a um deles, Cassy dirigiu a Jonathan um sorriso discreto, porém agradecido. Ela não tinha certeza, mas acreditou ver que o garoto enrubescia antes de voltar a atenção para seu laptop.

 

11:15

O Olgavee Hall, com fileiras de assentos escalonadas, era um dos maiores auditórios da faculdade de administração. Embora não fosse aluno da pós-graduação, Beau recebera permissão especial para assistir a um curso de marketing avançado que era extremamente popular entre os alunos de administração. Na verdade, era tão popular que necessitava da lotação do Olgavee. As palestras eram animadas e estimulantes. O curso era ministrado num estilo interativo, com um professor diferente a cada semana. A desvantagem era que cada aula exigia muita preparação. Era necessário estar pronto para ser requisitado a qualquer momento.

Beau, porém, atipicamente, estava tendo problemas em se concentrar na palestra desse dia. E a culpa não era do professor. Era sua. Para consternação de seus vizinhos imediatos, assim como dele mesmo, Beau não conseguia parar de se remexer em sua cadeira. Começara a sentir dores incômodas nos músculos, o que o impedia de encontrar uma posição confortável. E ainda por cima tinha uma dor de cabeça indefinida por trás dos olhos. O que piorava as coisas era o fato de estar sentado no centro do auditório, na quarta fileira, imediatamente à frente do palestrante. Beau sempre fazia questão de chegar cedo para conseguir o melhor lugar.

Ele podia perceber que o palestrante estava ficando irritado, mas não sabia o que fazer.

Tudo começara quando estava a caminho do Olgavee Hall. O primeiro sintoma fora uma sensação de formigamento no nariz, provocando uma onda de espirros violentos. Não levou muito tempo para que ele começasse a assoar o nariz a todo instante. Inicialmente, pensou que havia apanhado uma gripe. Mas agora era obrigado a admitir que devia ser algo mais. A irritação progredira com rapidez, passando dos seios nasais à garganta, que agora estava dolorida, principalmente quando ele engolia. Para tornar as coisas piores, teve início uma tosse persistente, que fazia doer sua garganta tanto quanto o ato de engolir.

A pessoa sentada logo à frente de Beau voltou-se e fuzilou-o com o olhar, depois de um acesso especialmente explosivo de tosse.

À medida que o tempo se arrastava, o pescoço enrijecido de Beau começou a incomodá-lo particularmente. Ele tentou massagear os músculos, mas isso de nada adiantou. Até mesmo a lapela do paletó parecia exacerbar-lhe o desconforto. Pensando que o objeto que parecia de chumbo em seu bolso poderia estar contribuindo de algum modo para aquele mal-estar, Beau apanhou-o e colocou-o sobre a mesa à sua frente. Ele parecia estranho, apoiado ali sobre suas anotações. Sua forma perfeitamente redonda e simetria singular sugeriam tratar-se de uma peça manufaturada, no entanto Beau não tinha a menor idéia se era mesmo. Por um momento, pensou que talvez pudesse ser um peso para papéis de desenho futurista, mas rejeitou a idéia como por demais prosaica. O mais provável era que fosse uma minúscula escultura, mas honestamente ele não saberia dizer. Ocorreu-lhe a vaga idéia de levá-lo ao departamento de geologia a fim de perguntar se não poderia ser o resultado de um fenômeno natural, como um geodo.

Ao refletir sobre o objeto, Beau foi levado a examinar o minúsculo ferimento na ponta de seu dedo indicador. Agora via-se um ponto vermelho no centro de alguns milímetros de pele pálida e azulada, em torno dos quais havia um halo avermelhado de uns dois milímetros. O local estava levemente dolorido ao toque. Era como se um médico o houvesse espetado com uma daquelas estranhas lancetas usadas para extrair uma pequena amostra de sangue.

Um calafrio interrompeu os pensamentos de Beau, sacudindo-lhe o corpo. O tremor foi seguido por um acesso prolongado de tosse. Quando finalmente conseguiu recuperar o fôlego, reconheceu a inutilidade de tentar ficar até o fim da palestra. Ele não estava aproveitando nada e, além de tudo, estava atrapalhando os colegas e o palestrante.

Beau juntou seus papéis, tornou a guardar a suposta miniatura no bolso e se levantou. Precisou pedir licença múltiplas vezes a fim de mover-se lateralmente ao longo da fileira. Devido ao espaço restrito, sua saída causou uma significativa comoção. Um dos alunos chegou a deixar cair o fichário de folhas soltas, que se abriu e espalhou o conteúdo.

Quando Beau finalmente conseguiu chegar ao corredor, viu de relance o palestrante protegendo os olhos de modo a ver com clareza quem estava causando toda aquela confusão. Aquela era uma pessoa a quem Beau não pediria uma carta de recomendação.

Sentindo-se tanto emocional quanto fisicamente exausta ao fim do dia letivo, Cassy desceu a escadaria principal da escola e alcançou o caminho no formato de ferradura diante do prédio. Estava bastante claro para ela que, do ponto de vista do professor, preferia a escola elementar à secundária. Em sua opinião, os secundaristas, já adolescentes, em geral pareciam excessivamente egocêntricos e interessados em desafiar com freqüência os seus limites. Ela achava até mesmo que alguns deles eram decididamente maldosos. Mil vezes uma criança da terceira série, inocente e ávida em aprender, refletiu ela.

O sol da tarde aqueceu o rosto de Cassy. Protegendo os olhos com a mão, ela examinou a profusão de veículos estacionados ali. Estava procurando o 4x4 de Beau, que insistia em ir buscá-la todas as tardes e costumava estar sempre à sua espera quando ela saía. Obviamente, hoje seria diferente.

Procurando um lugar para sentar, Cassy viu um rosto familiar esperando ali perto. Era Jonathan Sellers, da aula de inglês da Sra. Edelman. Cassy foi até ele e o cumprimentou.

— Ah... oi — gaguejou Jonathan. Ele olhou à sua volta, nervoso, esperando não ser visto por nenhum dos colegas de turma. Podia sentir o rosto queimando. O fato era que em sua opinião Cassy era a professora mais bonita que eles já haviam tido, e fora o que ele dissera a Tim depois da aula.

— Obrigada por quebrar o gelo hoje de manhã — agradeceu Cassy. — Foi uma grande ajuda. Por um momento, pensei que estivesse num enterro, no meu enterro.

— Foi pura sorte eu estar tentando ver o que havia sobre Faulkner em meu laptop.

— Ainda acho que foi preciso coragem da sua parte para dizer alguma coisa — afirmou Cassy. — Eu agradeço. Aquele certamente foi o pontapé inicial. Tive medo de que ninguém falasse.

— Meus amigos às vezes sabem como ser sacanas — admitiu Jonathan.

Uma mini van azul-escura parou junto ao meio-fio. Nancy Sellers curvou-se sobre o banco dianteiro e abriu a porta do passageiro.

— Oi, mãe — disse Jonathan,com um aceno um tanto constrangido.

Os olhos brilhantes e inteligentes de Nancy Sellers saltavam do filho de dezessete anos para a jovem bastante sexy, já em idade universitária. Ela sabia que o interesse do filho por garotas crescera subitamente, mas aquela situação parecia um pouquinho inadequada.

— Você não vai me apresentar à sua amiga? — indagou Nancy.

— Ah, claro — disse Jonathan, fitando a rachadura na calçada. — Essa é a Srta. Winthrope.

Cassy inclinou-se para diante e estendeu a mão.

— Prazer em conhecê-la, Sra. Sellers. Pode me chamar de Cassy.

— Cassy, então — replicou Nancy, apertando a mão estendida da jovem. Houve um silêncio breve, porém incômodo, antes que Nancy perguntasse há quanto tempo Cassy e Jonathan se conheciam.

— Mãeeee! — gemeu Jonathan. Ele soube instantaneamente o que ela estava insinuando e ficou mortificado. — A Srta. Winthrope é estagiária na aula de inglês.

— Ah, entendo — disse Nancy,com um certo alívio.

— Minha mãe é uma virologista pesquisadora — informou Jonathan para mudar de assunto e tentar explicar como ela era capaz de dizer uma coisa tão estúpida.

— É mesmo? — replicou Cassy. — Trata-se certamente de um campo interessante e importante no mundo de hoje. A senhora trabalha no Centro Médico da Universidade?

— Não, sou funcionária da Serotec Pharmaceuticals — respondeu Nancy. — Mas meu marido trabalha na universidade. É o diretor do departamento de física.

— Nossa mãe! — exclamou Cassy. Estava impressionada. — Não é de se admirar que tenham um filho tão brilhante assim.

Sobre o capô da van dos Sellers, Cassy avistou Beau entrando no caminho em forma de ferradura.

— Bem, foi um prazer conhecê-la. — Cassy disse a Nancy. Em seguida, virando-se para Jonathan: — Obrigada mais uma vez por hoje.

— Não foi nada — insistiu Jonathan.

Cassy dirigiu-se meio saltitando meio correndo para o ponto onde Beau havia estacionado.

Jonathan observou-a ir, hipnotizado pelo movimento de suas nádegas sob o fino vestido de algodão.

— Bem, você vai comigo para casa ou não? — perguntou Nancy para quebrar o encanto. Estava voltando a pensar que alguma coisa estava acontecendo e que ela ignorava o que fosse.

Jonathan sentou-se no banco da frente depois de colocar cuidadosamente o laptop no assento de trás.

— Por que ela estava agradecendo a você? — indagou Nancy quando se afastavam. Ela podia ver Cassy entrando num veículo utilitário, dirigido por um rapaz atraente cuja idade regulava com a da jovem. As preocupações de Nancy tornaram a se desfazer. Era difícil educar um adolescente: num minuto você se sentia orgulhosa, no seguinte, preocupada. Era uma montanha-russa emocional para a qual Nancy não estava preparada. Jonathan deu de ombros.

— Como eu disse, por nada.

— Puxa vida! — exclamou Nancy, frustrada. — Conseguir arrancar uma informação, por menor que seja, de você, me faz lembrar daquele ditado que fala sobre tirar leite de pedra.

— Me dá um tempo, mãe — foi a resposta de Jonàthan. Quando passavam pelo 4x4, ele tornou a olhar Cassy de soslaio. Ela estava sentada no carro, conversando com o motorista.

— Você parece péssimo — observou Cassy. Ela havia girado o corpo no banco de modo a olhar diretamente para o rosto de Beau. Cassy nunca o vira tão pálido assim. O suor brotava emm sua testa, como minúsculos cabochões de topázio. Os olhos do rapaz estavam vermelhos, expelindo secreção.

— Obrigado pelo elogio — replicou Beau.

— É verdade — disse Cassy. — Qual o problema?

— Não sei — respondeu Beau. Ele cobriu a boca, enquanto tossia. — Comecei com isso pouco antes da aula de marketing e está piorando. Acho que peguei uma gripe. Sabe, dores musculares, dor de garganta, nariz escorrendo, dor de cabeça, essas coisas.

Cassy estendeu a mão e tocou-lhe a fronte suada.

— Você está quente — constatou.

— Estranho, pois estou com frio. Estou tendo calafrios. Cheguei a me enfiar na cama, mas assim que me vi debaixo de cobertores, senti calor e chutei-os para longe.

—-Deveria ter ficado na cama — observou Cassy. — Eu podia ter pegado uma carona com um dos outros estagiários.

— Não havia como entrar em contato com você — retrucou Beau.

— Homens! — exclamou Cassy, saltando do carro. — Vocês nunca admitem quando estão doentes.

— Aonde está indo? — indagou Beau.

Cassy não respondeu. Em vez disso, deu a volta pela frent do carro e abriu a porta de Beau.

— Chega pra lá — disse ela. — Eu dirijo.

Posso muito bem dirigir — insistiu Beau.

— Sem discussão. Anda logo!

Beau não tinha energia para protestar. Além disso, ele sabia que era melhor mesmo, ainda que não admitisse.

Cassy deu a partida no carro. Na esquina, ela virou à direita ao invés de à esquerda.

— Aonde diabos você está indo? — perguntou Beau com a cabeça latejando, ele queria voltar para a cama.

— Vamos para a enfermaria estudantil no Centro Médico da Universidade — explicou Cassy. — Não estou gostando do seu jeito.

— Eu vou ficar bem — queixou-se Beau, mas não continuou a protestar. Estava se sentindo pior a cada minuto.

A entrada da enfermaria estudantil era por dentro da Emergência e, quando Cassy e Beau passavam, Pitt os viu e saiu detrás do balcão da recepção.

— Santo Deus! — exclamou Pitt ao olhar para Beau. — Por acaso a organização Nite cancelou sua entrevista? Ou você foi atropelado pela equipe feminina de atletismo?

— Não estou precisando das suas piadinhas — murmurou Beau. — Acho que peguei uma gripe.

— Acho que não está enganado — disse Pitt. — Venha, fique aqui num dos biombos da Emergência. Não creio que eles o queiram assim lá no ambulatório estudantil.

Beau deixou-se conduzir até um cubículo. Pitt facilitou a consulta, trazendo uma das enfermeiras mais simpáticas e então saindo para buscar um dos médicos mais experientes da Emergência.

Beau foi rapidamente examinado pelo médico e a enfermeira. Uma amostra de sangue foi colhida e ele foi colocado no soro.

— Isso é só para hidratá-lo — explicou o médico, dando um tapinha no frasco do soro. — Acho que temos aqui uma gripe séria, mas seus pulmões estão limpos. Ainda assim, creio que é melhor você ficar na enfermaria estudantil, pelo menos por algumas horas, para ver se conseguimos baixar essa febre e controlar a tosse. Enquanto isso, teremos tempo para dar uma olhada no exame de sangue, no caso de alguma coisa ter me escapado.

— Não quero ficar no hospital — queixou-se Beau.

— Se o médico diz que você deve ficar, você vai ficar — afirmou Cassy. — Não quero ouvir nenhuma bobagem machista.

Pitt pôde mais uma vez agilizar as coisas e em meia hora Beau estava confortavelmente instalado num dos quartos reservados aos alunos. Parecia um típico quarto de hospital,com piso de vinil, mobília de metal, um aparelho de TV e uma janela que dava para o gramado. Beau foi vestido com um pijama. Suas roupas foram penduradas no armário e a carteira, o relógio e a mini escultura negra fora  guardada num armário tipo cofre, preso ao topo da cômoda. Cassy programou a combinação do cadeado com os quatro últimos dígitos do telefone de seu apartamento.

Pitt despediu-se, voltando à recepção da Emergência.

— Confortável? — perguntou Cassy. Beau estava deitado de costas, de olhos fechados. Fora-lhe administrado um inibidor da tosse, que já estava fazendo efeito. Ele estava exausto.

— Tanto quanto se pode esperar — murmurou ele.

— O médico disse que eu voltasse daqui a algumas horas — informou Cassy. — Os exames já estarão prontos e o mais provável é que eu possa levá-lo para casa.

—Vou estar aqui — disse Beau. Agradava-lhe a estranha e lânguida sensação de sono que ia se apossando dele, como um bem-vindo cobertor. Nem mesmo ouviu Cassy fechar a porta ao sair.

Nunca antes Beau dormira tão profundamente. Não chegou nem mesmo a sonhar. Depois de várias horas nessa espécie de coma, seu corpo adquiriu uma leve fosforescência. Dentro do armário tipo cofre, o mesmo ocorreu com o objeto disciforme preto, particularmente com uma das oito pequenas excrescências abobadadas que se enfileiravam ao longo da borda do objeto. De repente, o minúsculo disco destacou-se e começou a flutuar. Seu brilho intensificou-se até tornar-se um ponto de luz, como uma estrela distante.

Movendo-se lateralmente, o ponto de luz entrou em contato com a lateral do cofre, mas não desacelerou com um silvo abafado e algumas faíscas, ele atravessou o metal, deixando um buraco pequenino, perfeitamente simétrico, atrás dele.

Uma vez livre do confinamento do cofre, o ponto de luz seguiu diretamente para Beau, fazendo com que a luminosidade deste se intensificasse. Aproximou-se do olho direito de Beau, pairando a alguns milímetros sobre ele. Lentamente, a intensidade do ponto de luz diminuiu até readquirir sua cor preta opaca normal.

Alguns impulsos visíveis de luz desprenderam-se do pequeno objeto e chocaram-se com a pálpebra de Beau. Instantaneamente, o olho se abriu, enquanto o outro permanecia fechado. A pupila exposta foi dilatada ao máximo, restando apenas uma estreita faixa de íris.

Impulsos de radiação eletromagnética foram então despachados para o interior do olho aberto de Beau, basicamente no comprimento de onda da luz visível. Era um computador fazendo um download para outro, e a operação durou quase uma hora.

— Como está nosso paciente predileto? — Cassy perguntou a Pitt quando atravessou a porta da Emergência. Pitt só a viu depois que ela falou. A Emergência estava movimentada e o mantinha muito ocupado.

— Bem, pelo que sei — respondeu Pitt. — Dei uma olhada nele algumas vezes, e a enfermeira também. O tempo todo ele dormiu como um bebê. Não creio nem que tenha se mexido. Devia estar exausto.

— O exame de sangue ficou pronto? — quis saber Cassy.

— Ficou, e está tudo normal. A contagem de leucócitos estava ligeiramente alta, mas apenas os linfócitos mononucleares.

— Ei, lembre-se de que está falando com uma leiga — disse Cassy.

— Desculpe — pediu Pitt. — Em outras palavras: ele pode ir para casa. E então, o procedimento normal: muito líquido, aspirina, descanso, amor e carinho.

— O que preciso fazer para que seja liberado? — indagou Cassy.

— Nada — respondeu Pitt. — Já cuidei de toda a burocracia. Só precisamos levá-lo para o carro. Vamos,vou dar uma ajuda.

Pitt pediu licença à enfermeira-chefe para se ausentar por alguns minutos. Ele apanhou uma cadeira de rodas e começou a atravessar o corredor, a caminho da enfermaria estudantil.

— Acha que a cadeira de rodas é necessária? — perguntou Cassy, preocupada.

— É melhor levá-la, para o caso de haver algum problema — disse Pitt. — Beau tinha as pernas bastante trêmulas quando veio para cá.

Chegaram ao quarto e Pitt bateu levemente. Não obtendo resposta, ele entreabriu a porta e olhou lá para dentro.

— Exatamente como pensei — disse ele. Então, abriu bem a porta, empurrando a cadeira de rodas. — A Bela Adormecida ainda não se mexeu.

Pitt parou a cadeira e seguiu Cassy até a cama. Cada um dirigiu-se a um lado diferente da cama.

— O que foi que eu lhe disse? A própria imagem da tranqüilidade. Por que não o beija e vê se ele não vira um sapo?

— Devemos acordá-lo? — perguntou Cassy, ignorando a tentativa de Pitt de fazer graça.

— Vai ser difícil levá-lo para casa se não o acordarmos.

— Ele parece tão calmo — observou Cassy. — Também parece infinitamente melhor do que antes. Na verdade, sua cor está normal.

— Acho que sim — concordou Pitt.

Cassy estendeu a mão e delicadamente sacudiu o braço de Beau, ao mesmo tempo em que chamava seu nome baixinho. Como este não respondesse, ela sacudiu com um pouco mais de força.

Os olhos de Beau piscaram, se abrindo. Ele olhou os dois amigos, indo de um ao outro.

— Ei, como é que vocês estão? — perguntou.

— Creio que nós é que devemos fazer esta pergunta — replicou Cassy.

— Eu? Estou bem — respondeu Beau. Então seus olhos percorreram rapidamente o quarto. — Onde estou?

— No centro médico — esclareceu Cassy.

— O que estou fazendo aqui? — quis saber Beau.

— Não se lembra? — Cassy estava preocupada.

Beau abanou a cabeça. Em seguida, atirou os lençóis para um lado e passou os pés sobre a borda da cama.

— Não se lembra de ter se sentido mal na aula? — insistiu Cassy. — Não se recorda de que eu o trouxe para cá?

— Ah, sim — disse Beau. — Está voltando. É, lembro, sim. Eu estava me sentindo péssimo. — Então olhou para Pitt. — Nossa, o que foi que vocês me deram? Me sinto um outro homem.

— Parece que você só precisava de um bom sono. Exceto por um pouco de soro para hidratar, na verdade não lhe demos nada.

Beau se levantou e espreguiçou-se.

— Talvez fosse bom eu vir aqui me hidratar mais vezes — disse ele. — Que diferença! — Lançou um olhar à cadeira de rodas. — Para que essa coisa?

— Para você, no caso de precisar — explicou Pitt. — Cassy veio levá-lo para casa.

— Eu certamente não preciso de uma cadeira de rodas — afirmou Beau. Em seguida, tossiu e fez uma careta. — Bem, minha garganta ainda está um pouco dolorida, e eu ainda estou com um pouco de tosse, mas vamos embora daqui. — Dirigiu-se ao armário e apanhou suas roupas. Retirou-se para o banheiro e empurrou a porta, quase fechando-a. — Cassy, pode apanhar minha carteira e meu relógio nesse cofre? — pediu ele, pela porta entre aberta.

Cassy caminhou até a cômoda e ajustou a combinação.

— Se vocês não precisam mais de mim, vou voltar à recepção — anunciou Pitt.

Cassy voltou-se, enquanto enfiava a mão no cofre.

— Você foi um amor — disse ela, sua mão agarrando a carteira e o relógio de Beau. Então os tirou e fechou a porta. Indo até Pitt, ela o abraçou. — Obrigada pela sua ajuda.

— Ora, sempre que precisar — disse Pitt, constrangido. Ele olhou para os próprios pés e em seguida para a janela. Cassy sempre conseguia deixá-lo perturbado.

Beau saiu do banheiro ainda ajeitando a camisa.

— É, obrigado, meu amigo — disse. Deu um soco de leve no braço de Pitt. — Eu agradeço de verdade.

— Fico feliz que esteja melhor — replicou Pitt. — Até mais. — Pitt agarrou a cadeira de rodas e saiu do quarto, empurrando-a.

— É um grande sujeito — afirmou Beau. Cassy assentiu.

— Vai dar um ótimo médico. Ele é muito atencioso.

 

22:45

Charlie Arnold trabalhava no Centro Médico da Universidade havia 37 anos, desde seu décimo sétimo aniversário, quando decidira abandonar a escola. Começara no Departamento de Manutenção, aparando a grama, podando as árvores e limpando os canteiros de flores. Infelizmente, uma alergia a grama o tirara daquela área. No entanto, como fosse um funcionário muito estimado no hospital, a administração lhe ofereceu uma posição na faxina. Charlie aceitara e gostava do trabalho. Principalmente nos dias quentes, gostava mais do que trabalhar ao ar livre.

Charlie gostava de trabalhar sozinho. O supervisor lhe dava uma lista dos quartos a serem limpos e lá ia ele. Nessa noite, tinha mais um quarto para visitar: um dos reservados aos alunos da universidade. Estes eram sempre mais fáceis do que os quartos comuns do hospital, nos quais ele nunca sabia o que iria encontrar. Dependia da doença do último ocupante. As vezes as condições eram bastante ruins.

Assoviando baixinho, Charlie abriu a porta, empurrou o balde com o esfregão e puxou o carrinho de limpeza.com as mãos nos quadris, ele examinou o quarto. Como esperara, só precisava passar levemente o pano com desinfetante e tirar a poeira. Foi até o banheiro e deu uma olhada. Não parecia nem mesmo ter sido usado.

Charlie sempre começava pelo banheiro. Depois de vestir as grossas luvas de proteção, ele esfregou o chuveiro e a pia e desinfetou o vaso sanitário. Em seguida, limpou o chão.

Passando para o quarto, retirou os lençóis da cama e esfregou o colchão com um pano. Tirou o pó de todas as outras superfícies horizontais, incluindo o peitoril da janela. Estava prestes a começar a passar o pano no chão, quando uma claridade lhe chamou a atenção. Ficando de frente para o armário, ele fitou o cofre. Embora sua mente lhe dissesse que era absurdo, a caixa de metal parecia estar brilhando, como se houvesse uma luz imensamente poderosa ali dentro. É claro que aquilo não fazia sentido: o cofre era feito de metal e portanto não importava quão forte fosse uma luz, ainda que houvesse uma no interior do cofre, pois seu brilho não transpareceria.

Charlie apoiou o esfregão na borda superior do balde e deu alguns passos na direção do armário, na intenção de abrir a porta do cofre. Entretanto, parou a cerca de três passos dali. O brilho que cercava a caixa ficara mais forte. Charlie chegou a imaginar sentir um calor queimar-lhe o rosto!

O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi sair correndo do quarto, mas ele hesitou. Aquele era um espetáculo confuso e ligeiramente assustador, mas ao mesmo tempo curioso.

Então, para perplexidade de Charlie, uma chuva de faíscas jorrou da lateral do cofre, acompanhada por um silvo semelhante a uma solda elétrica. As mãos de Charlie instintivamente ergueram-se a fim de proteger o rosto das faíscas, mas o movimento se deteve quase no mesmo momento em que começou. Do ponto de onde eram expedidas as faíscas, um disco luminoso e giratório de cor vermelha, do tamanho de uma moeda de um dólar, surgiu. O objeto rasgou o metal, deixando uma fenda fumegante.

Completamente atônito diante do fenômeno, Charlie não conseguia se mexer. O disco giratório movia-se lentamente no sentido lateral, em direção à janela, passando a um passo de seu braço. À janela, o objeto pairou, como se apreciasse a vista do céu noturno. Então sua cor mudou do vermelho para o branco. Uma coroa surgiu, como um estreito halo.

A curiosidade de Charlie impeliu-o a aproximar-se daquele misterioso objeto. Ele sabia que ninguém iria acreditar quando o descrevesse. Estendendo a mão, a palma voltada para baixo, ele a deslizou de um lado para o outro acima do objeto, certificando-se de que não havia ali um arame ou cordão. Não conseguia entender como aquela coisa podia pairar no ar.

Sentindo o calor que emanava do pequeno disco, Charlie fechou as mãos em concha e, lentamente, foi aproximando-as cada vez mais do objeto. Era um calor estranho, que fazia formigar sua pele. Quando suas mãos alcançaram a coroa, o formigamento aumentou.

O objeto ignorou Charlie até que este, inadvertidamente, bloqueou a visão que aquele tinha do céu noturno. No momento em que o fez, o disco moveu-se numa linha lateral e, antes que Charlie pudesse reagir, instantaneamente e sem qualquer esforço abriu um buraco no centro da palma de sua mão! Pele, ossos, ligamentos, nervos e vasos sangüíneos foram todos volatilizados.

Charlie deixou escapar um grito mais de surpresa do que de dor. Fora tudo tão rápido! Ele cambaleou para trás, olhando boquiaberto a mão perfurada, em total incredulidade, e sentindo o inequívoco cheiro de carne queimada. No instante seguinte, a coroa em torno do objeto luminoso se expandiu até alcançar uns trinta centímetros de diâmetro.

Antes que Charlie pudesse esboçar uma reação, uma espécie de silvo começou a soar e rapidamente aumentou de volume até tornar-se ensurdecedor. Ao mesmo tempo, Charlie sentiu uma força puxá-lo em direção à janela. Freneticamente, estendeu a mão intacta e agarrou a cama no momento em que sentia os pés despregarem-se do chão abaixo dele. Rangendo os dentes, ele conseguiu segurar-se, embora a própria cama se movesse. A violência do som e do movimento durou apenas alguns segundos antes que fosse sobrepujada por um barulho que fazia lembrar vagamente um compartimento a vácuo se fechando.

Charlie soltou a cama e tentou pôr-se de pé, mas não conseguiu. Os músculos de suas pernas pareciam borracha. Ele sabia que alguma coisa horrível e errada estava acontecendo, e tentou gritar, pedindo ajuda, mas sua voz estava fraca e ele salivava tão copiosamente que a fala se tornava quase impossível. Reunindo o pouco de força que lhe restava, tentou arrastar-se em direção à porta, mas o esforço foi em vão. Depois de dar apenas alguns passos, começou a ter ânsias de vômito. Momentos depois, a escuridão absoluta caía sobre o corpo de Charlie, violentamente sacudido por uma série rápida e fatal de convulsões epilépticas.

 

2:10

Para os padrões dos apartamentos estudantis, aquele era relativamente luxuoso e espaçoso, e, como fosse localizado no segundo andar, tinha até mesmo uma vista. Tanto os pais de Cassy quanto os de Beau queriam que os filhos morassem em um ambiente decente e assim mostraram-se dispostos a aumentar a mesada dos filhos quando estes decidiram mudar-se dos respectivos dormitórios. Parte da razão para essa generosidade era que ambos tinham currículos acadêmicos estelares.

Cassy e Beau haviam encontrado o apartamento oito meses antes e juntos eles o pintaram e mobiliaram com aquisições de segunda mão, que foram por sua vez lixadas e repintadas. As cortinas eram lençóis de cama disfarçados.

A janela do quarto dava para o leste, o que às vezes era um incômodo devido à intensidade do sol matinal. Não era um quarto propício a que se dormisse até tarde. No entanto, pouco depois das duas da manhã, a escuridão o dominava, exceto por um feixe de luz que entrava diagonalmente pela janela, vinda de um Poste elétrico no estacionamento.

Cassy e Beau dormiam profundamente: Cassy de lado e Beau de costas. Como sempre acontecia, Cassy se movia a intervalos regulares, virando-se primeiro para um lado, depois para o outro. Beau, por sua vez, não se mexera em absoluto. Ele dormia de costas, imóvel, da mesma forma como naquela tarde, na enfermaria estudantil.

Exatamente às duas e dez, os olhos fechados de Beau começaram a brilhar, assim como os números de rádio no mostrador de um velho despertador de corda que Cassy herdara da avó. Depois de alguns minutos, durante os quais foram gradualmente aumentando de intensidade, as pálpebras de Beau se abriram repentinamente. Ambos os olhos estavam dilatados, da mesma forma que ocorreracom seu olho direito naquela tarde, e brilhavam como se fossem fontes de luz.

Depois de alcançarem um pico de luminosidade, começaram a perder a cor até as pupilas readquirirem a sua coloração negra. Então as íris se contraíram até reassumirem um tamanho mais normal. Após piscar algumas vezes, Beau deu-se conta de que estava acordado.

Lentamente, ele se sentou na cama. Assim como quando despertara no hospital, sentiu-se momentaneamente desorientado. Correndo os olhos pelo quarto, não demorou para que identificasse onde estava. Em seguida, ergueu as mãos e estudou-as flexionando os dedos. Suas mãos pareciam diferentes, mas não sabia dizer como. Na verdade, todo seu corpo parecia diferente de uma forma inexplicável.

Estendendo a mão para Cassy, sacudiu-lhe delicadamente o ombro. Ela reagiu virando-se de costas. Os olhos pesados de sono fitaram-no. Quando viu que ele estava sentado, imediatamente imitou-o.

— O que houve? — perguntou, a voz rouca. —Você está bem?

— Ótimo — respondeu Beau. — Perfeito.

— Sem tosse?

— Por enquanto, não. A garganta também está boa.

— Por que me acordou? Quer que eu apanhe alguma coisa para você?

— Não, obrigado — disse Beau. — Pensei que você gostaria de ver uma coisa. Venha comigo!

Beau saiu da cama e deu a volta, parando ao lado de Cassy. Segurou-lhe a mão e a ajudou a levantar-se.

— Quer me mostrar uma coisa agora? — indagou Cassy, lançando um olhar ao relógio.

— Agora mesmo — confirmou Beau, conduzindo-a então a sala de estar e até a porta de correr que levava à sacada. Quando fez sinal para que saísse, Cassy resistiu.

— Não posso sair — disse ela. — Estou nua.

— Ora, venha. Ninguém vai nos ver. Só vai levar um momento e, se não sairmos agora, perderemos.

Cassy debatia-se consigo mesma. À meia-luz, ela não conseguia ver a expressão de Beau, mas ele parecia sincero. A idéia de que isso fosse alguma brincadeira passou por sua cabeça.

— É melhor que seja algo interessante — advertiu Cassy, finalmente passando sobre o trilho da porta de correr.

O ar da noite tinha o frescor habitual e Cassy abraçou a si própria. Ainda assim, todos os pontos eréteis na superfície de seu corpo arrepiaram-se. Ela sentiu toda a pele eriçar-se.

Beau parou atrás dela e envolveu-a nos braços para ajudar a controlar o tremor que ela sentia. Os dois estavam de pé junto à grade, que tinha vista livre para um grande retalho do céu. A noite estava sem nuvens, sem lua, porém clara.

— OK, o que você espera que eu veja? — perguntou ela. Beau apontou para o céu, na direção norte.

— Olhe para lá, na direção das Plêiades, na constelação de Taurus.

— O que é isso, afinal? Uma aula de astronomia? — indagou Cassy. — São duas e dez da manhã. Desde quando você sabe alguma coisa sobre as constelações?

— Olhe! — ordenou Beau.

— Estou olhando. Mas o que devo ver?

Naquele momento, ocorreu uma chuva de meteoros de caudas extraordinariamente longas, todos surgindo velozmente do mesmo ponto do céu, como uma gigantesca exibição de fogos de artifício.

— Meu Deus! — exclamou Cassy, prendendo a respiração até que a chuva de estrelas cadentes cessasse. O espetáculo era tão impressionante que, momentaneamente, ela se esqueceu do frio. — Nunca vi uma coisa assim. Foi lindo. É isso que eles chamam de chuva de meteoro?

— Acho que sim — disse Beau, vagamente.

— Será que vai ter mais? — indagou Cassy, os olhos ainda grudados no ponto de origem.

— Não, isso é tudo — respondeu Beau. Então soltou Cassy e seguiu-a de volta ao interior do apartamento, fechando a porta de correr.

Cassy correu de volta para a cama, mergulhando sob os lençóis. Quando Beau apareceu, ela segurava as cobertas com firmeza em torno do pescoço e estava tremendo. Mandou que ele entrasse sob o cobertor para aquecê-la.

— Com todo prazer — disse ele.

Eles se aconchegaram por um momento e os tremores de Cassy abrandaram. Afastando o rosto da curva do pescoço de Beau, onde se aninhara, ela tentou fitar os olhos do namorado, mas estes estavam perdidos na penumbra.

— Obrigada por me levar até lá para ver a chuva de meteoros — disse ela. — A princípio, pensei que você estivesse tentando me pregar uma peça. Mas eu tenho uma pergunta para fazer: Como sabia que isso ia acontecer?

— Não me lembro — respondeu Beau. —Acho que ouvi e algum lugar.

— Será que leu no jornal? — sugeriu Cassy.

— Não creio. — Beau coçou a cabeça. — Não consigo me lembrar.

Cassy deu de ombros.

—Bem, não importa. O que conta é que conseguimos ver, como foi que você acordou?

— Não sei.

Cassy afastou-se e acendeu a luz de cabeceira. Ela examinou o rosto de Beau, que sorriu sob seu escrutínio.

— Tem certeza de que está tudo bem? — indagou ela. Beau sorriu.

— Claro, tenho certeza — disse ele. — Sinto-me ótimo.

 

6:45

Era uma daquelas manhãs cristalinas, sem nuvens, em que o ar estava tão fresco que quase se podia sentir-lhe o sabor. As montanhas mais distantes sobressaíam com uma nitidez impressionante. O chão, normalmente seco, estava coberto por uma leve camada de orvalho que cintilava como uma porção de diamantes.

Beau ficou ali parado por um momento, absorvendo o cenário. Era como se o estivesse vendo pela primeira vez. Achou inacreditável a variedade de cores das colinas distantes e perguntou-se por que não percebera isso antes.

Estava vestido de maneira casual,com uma camisa de algodão, jeans e sapatos tipo mocassim sem meias. Pigarreou, limpando a garganta. A tosse se fora e a garganta já não doía quando ele engolia.

Passando pela entrada de seu edifício, ele percorreu o caminho que levava à área de estacionamento nos fundos. Na areia que margeava o lado extremo, encontrou o que estava procurando. Três miniesculturas negras, idênticas àquela que encontrara no estacionamento do Costas Diner na manhã anterior. Terminou de desenterrá-las, livrou-as do pó e as guardou em bolsos Separados.

Com a missão realizada, deu meia-volta e refez os passos até o edifício.

Dentro do apartamento, o despertador tocou próximo à cabeça de Cassy. O relógio ficava do seu lado da cama porque Beau tinha o mau hábito de desativá-lo tão rapidamente que nenhum dos dois chegava de fato a despertar.

A mão de Cassy surgiu de sob as cobertas e pressionou a base que o desativava. O despertador silenciou-se por dez deliciosos minutos. Virando-se de costas, Cassy estendeu a mão na direção de Beau, a fim de sacudi-lo, a primeira de muitas vezes. Beau não era uma pessoa matinal.

A mão de Cassy, em sua exploração, encontrou apenas lençóis vazios e frios. O âmbito da busca foi ampliado. Ainda nada. Cassy abriu os olhos e olhou para Beau, mas ele não estava ali. Surpresa pela inesperada mudança na rotina matinal, Cassi sentou-se e ficou atenta a algum ruído revelador vindo do banheiro. A casa estava em silêncio. Beau nunca se levantava antes dela. De repente, ela temeu que seu mal-estar houvesse retornado.

Depois de vestir rapidamente o roupão, Cassy foi até a sala de estar. Estava prestes a chamá-lo pelo nome quando o viu perto do aquário. Ele estava inclinado, examinando os peixes. Estava tão absorto que não a ouviu. Enquanto ela observava, Beau colocou o dedo indicador da mão direita de encontro ao vidro do aquário. De alguma maneira, o dedo concentrou a luz fluorescente do aquário de tal forma que sua ponta se tornou luminosa.

Hipnotizada pela cena, Cassy simplesmente deixou-se ficar ali, continuando a observar. Logo todos os peixes se dirigiram para o ponto em que o dedo de Beau tocava o vidro. Quando ele deslizou o dedo num movimento lateral, os peixes seguiram-no obedientemente.

— Como consegue fazer isso? — perguntou Cassy.

Surpreso com a presença dela, Beau empertigou-se, deixando a mão cair ao lado do corpo. No mesmo instante, os peixes se dispersaram para os cantos opostos do aquário.

— Não ouvi você entrar na sala — disse Beau com um sorriso agradável.

— Isso eu percebi — retrucou Cassy. — O que você estava fazendo para atrair os peixes daquela maneira?

Sei lá — respondeu Beau. — Talvez tenham pensado queu ia lhes dar comida. — Ele aproximou-se de Cassy e apoiou os braços sobre seus ombros. Seu sorriso estava radiante. — Você está linda hoje.

Ah, sim, com certeza — disse Cassy, em tom de brincadeira.

Ela despenteou os cabelos espessos e então fingiu ajeitá-los.

— Perfeito, agora estou pronta para o concurso de Miss América. — Ela fitou os olhos de Beau. Tinham um tom especialmente fulgurante de azul e as escleróticas apresentavam o branco mais puro. — Você é quem está maravilhoso — afirmou Cassy.

— Eu me sinto maravilhoso — disse Beau, inclinando-se para beijá-la nos lábios, mas Cassy escapou por debaixo de seus braços.

— Espere — disse ela. — Esta candidata a miss ainda tem de escovar os dentes. Não quero ser desqualificada por causa do hálito matinal.

— Não há a menor chance de que isso ocorra — replicou Beau, com um sorriso malicioso.

Cassy inclinou a cabeça para um lado.

— Você está muito animadinho hoje — observou ela.

— Como já disse, me sinto ótimo.

— Essa gripe com certeza foi muito rápida — afirmou Cassy. — Eu diria que a sua recuperação foi surpreendente.

— Acho que tenho de agradecer a você por me arrastar para o centro médico — replicou Beau. — Foi lá que as coisas começaram a melhorar.

— Mas o médico e a enfermeira não fizeram nada — lembrou Cassy. — Eles mesmos admitiram.

Beau deu de ombros.

— Então trata-se de uma nova cepa de vírus que causa uma gripe rápida. Mas certamente não sou eu que vou reclamar de sua pouca duração.

— Nem eu — disse Cassy, dirigindo-se ao banheiro. — Por que você não faz um café enquanto eu tomo banho?

— O café já está pronto — informou Beau. —Vou trazer uma xícara para você.

— Nossa, mas que eficiência! — gritou Cassy, atravessando o quarto.

— Neste hotel o serviço é nada menos do que cinco estrelas — brincou Beau.

Cassy continuava a se admirar da rápida recuperação de Beau. Lembrando-se da aparência que ele tinha quando ela entrou no carro em frente à escola Anna C. Scott, ela nunca teria suspeitado de uma coisa dessas. Cassy abriu o chuveiro e ajustou a temperatura. Quando estava ao seu gosto, entrou. A primeira providência era lavar os cabelos, o que fazia todos os dias.

Assim que se viu com o cabelo cheio de xampu, ouviu uma batida na porta do boxe. Sem abrir os olhos, disse a Beau que deixasse a caneca de café em cima da pia.

Enfiando a cabeça sob o jato d’água, ela começou a enxaguar. A próxima coisa que viu era que Beau estava debaixo do chuveiro com ela.

Cassy abriu os olhos, incrédula. Beau estava bem diante dela sob o jato d’água, completamente vestido. Inclusive de sapatos.!

— O que você está fazendo? — perguntou Cassy, confusa. Ela teve de rir. Era uma coisa tão inesperada, tão absurda, para ele fazer.

Beau nada disse. Em vez disso, estendeu as mãos e avidamente puxou o corpo nu e molhado de Cassy para si, enquanto seus lábios buscavam os dela. Foi um beijo profundo, sensual, carnal!

Cassy conseguiu uma chance para respirar, rindo do absurdo que estavam fazendo. Beau também riu, enquanto Cassi colava os cabelos à sua testa.

— Você é louco! — murmurou Cassy. Seus cabelos ainda estavam cheios de espuma de xampu.

— Louco por você, para ser mais preciso — completeu Beau, tentando abrir o cinto.

Cassy ajudou-o, abrindo os botões de sua camisa ensopada, desnudando-lhe os ombros musculosos. A situação podia até ser pouco convencional, principalmente para Beau, em geral metódico e compulsivo, mas para Cassy era excitante. Era de uma espontaneidade tão maravilhosa, e a avidez de Beau acrescentava um tempero extra.

Mais tarde, em meio à sua paixão, Cassy começou a apreciar mais uma coisa. Não só estavam fazendo amor numa circunstância singular, como também de uma forma atípica. Beau a estava tocando de uma maneira diferente. Não conseguia explicar exatamente, mas era maravilhoso, e ela estava adorando. Tinha algo a ver com uma gentileza e sensibilidade maiores do que de costume por parte de Beau, mesmo em meio ao seu ardor irresistível.

Erguendo as mãos acima da cabeça, Pitt espreguiçou-se e olhou para o relógio sobre o balcão da Emergência. Eram quase sete e meia e logo a maratona de seu turno de 24 horas estaria encerrada. Ele já fantasiava quão deliciosa estaria sua cama quando deslizasse o corpo cansado entre os lençóis. O objetivo do exercício era lhe dar uma idéia do que seria sua vida de residente, quando turnos de 36 horas seriam comuns.

— Você devia ir até o quarto onde eles encontraram aquele pobre sujeito da faxina — disse Cheryl Watkins, uma das enfermeiras diurnas que acabava de iniciar seu turno.

— Por quê? — perguntou Pitt. Lembrava-se muito bem do paciente que fora trazido correndo para a Emergência um pouco depois da meia-noite por alguém da equipe de limpeza. Os médicos iniciaram os procedimentos de ressuscitação, mas pararam logo em seguida ao perceber que a temperatura do corpo do paciente era quase a mesma ambiente.

Concluir que o homem estava morto fora fácil. O difícil era saber o que o matara além das evidentes convulsões que sofrera. Havia um curioso buraco exangue em sua mão que um dos médicos pensava ter sido causado pela eletricidade. No entanto, o registro na ficha dizia que ele fora encontrado num quarto sem qualquer acesso a correntes de alta voltagem.

Outro médico percebeu que o paciente apresentava cataratas particularmente densas, o que era estranho, pois no exame físico anual dos funcionários não haviam sido observadas cataratas no homem, e seus colegas de trabalho negaram que ele tivesse alguma deficiência visual. Isso sugeria que o homem sófrera um caso súbito de cataratas, idéia esta rejeitada pelos médicos. Nunca tinham ouvido falar de algo assim, mesmo numa vítima de uma forte descarga de eletricidade.

A confusão acerca da provável causa da morte levou a grande especulação e até mesmo a algumas apostas. A única coisa certa era que ninguém tinha qualquer certeza, e o corpo foi levado para a sala do médico-legista, que daria a palavra final.

— Não vou lhe dizer por que você deveria ver o quarto afirmou Cheryl. — Pois, se o fizesse, você diria que eu estou zombando de você. Só digo que é muito esquisito.

— Me dê uma dica — pediu Pitt. Estava tão cansado que a idéia de percorrer todo o caminho até as dependências do hospital não gerava muito entusiasmo, a menos que fosse por alguma coisa muito especial.

— Você tem de ver por si mesmo — insistiu Cheryl, saindo para uma reunião.

Pitt batia um lápis na testa, enquanto ponderava. A idéia que as circunstâncias pudessem ser assim tão esquisitas o intrigava. Chamando Cheryl, ele perguntou onde era o quarto.

— Na enfermaria estudantil — gritou ela de volta, por sobre o ombro. — Não tem como errar, pois tem uma multidão de pessoas lá tentando entender o que aconteceu.

A curiosidade venceu a fadiga de Pitt. Se tantas pessoas assim estavam interessadas, talvez valesse o esforço de ir até lá. Ele se pôs de pé e arrastou o corpo cansado pelo corredor. Pelo menos a enfermaria estudantil era perto dali. Enquanto caminhava, ocorreu-lhe vagamente que, se se tratasse mesmo de uma coisa estranha, talvez Cassy e Beau gostassem de saber a respeito, pois haviam estado ali na tarde anterior.

Quando dobrou a última esquina que levava à enfermaria estudantil, Pitt pôde ver uma pequena multidão rondando por ali. Ao se aproximar do quarto, sua curiosidade aumentou, pois fosse lá o que tivesse acontecido, fora no mesmo quarto que Beau ocupara.

— O que está acontecendo? — sussurrou Pitt para uma de suas colegas, que também tinha uma bolsa de trabalho no hospital. Seu nome era Carol Grossman.

— Se você souber me dizer... — respondeu Carol. — Quando consegui ver, sugeri que talvez Salvador Dali tivesse passado por aqui, mas ninguém achou graça.

Pitt dirigiu-lhe um olhar confuso, mas ela não prosseguiu. Então ele literalmente abriu caminho à força. Havia tanta gente ali Que precisou avançar aos empurrões. Infelizmente, foi um pouquinho agressivo demais ao fazê-lo e conseguiu esbarrar numa das médicas com força suficiente para fazê-la entornar o café da xícara que tinha nas mãos. Quando a médica, zangada, virou-se para trás a fim de fuzilar Pittcom o olhar, este prendeu a respiração com tanta gente ali, tinha de ser justo a Dra. Sheila Miller!

— Droga! — esbravejou ela, sacudindo o café quente das costas da mão. Estava vestida com o jaleco branco comprido. Várias manchas de café apareceram em seu punho direito.

— Eu sinto muitíssimo — Pitt conseguiu dizer.

Sheila ergueu os olhos verdes para os de Pitt. Ela parecia especialmente severa com os cabelos louros puxados para trás, bem apertados num coque compacto. Seu rosto estava afogueado pela irritação.

— Sr. Henderson! — gritou ela. — Eu peço a Deus para que o senhor não tenha a pretensão de uma especialidade que requeira coordenação, como cirurgia óptica, por exemplo.

— Foi um acidente — defendeu-se Pitt.

— Claro, foi isso que as pessoas disseram sobre a Primeira Guerra Mundial — replicou Sheila. — E pense nas conseqüências! O senhor é o recepcionista da Emergência. O que istá fazendo, em nome de Deus, entrando aqui dessa maneira?

Pitt vasculhou com frenesi sua mente em busca de uma explicação razoável, além da mera curiosidade. Simultaneamente, seus olhos varreram o quarto, na esperança de ver algo que lhe oferecesse uma sugestão. Em vez disso, o que viu o deixou Perplexo.

A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que a cabeceira da cama tinha o formato distorcido, como se houvesse sido aquecida até o ponto de liquefação e então puxada na direção da Janela, com a mesinha-de-cabeceira parecia ter acontecido o mesmo. Na verdade, à medida que seus olhos completavam o circuito do quarto, ele percebeu que a maior parte da mobília dos acessórios do cômodo havia sido deformada, como se fosser feitos de puxa-puxa. Já as vidraças das janelas pareciam ter derretido, com o vidro formando estalactites que pendiam dos si portes.

— O que foi que aconteceu aqui? — perguntou Pitt. Sheila falou entre dentes:

— Para responder a essa pergunta é que esses profissionais estão aqui conversando. Agora volte para a recepção da Emergência!

— Já estou indo — replicou Pitt, rapidamente. Depois de mais uma rápida olhada na estranha transformação do quarto, ele bateu em retirada em meio à multidão. Não pôde deixar de se perguntar qual a extensão do dano que causara à sua carreira ao aborrecer a Senhora Dragão.

— Peço desculpas pela interrupção — disse Sheila, que conversavacom o tenente detetive Jesse Kemper e seu parceiro, Vince Garbon.

— Não tem problema — assegurou Jesse. — Eu não estava entendendo muita coisa mesmo. Quero dizer, estamos diante de uma situação bastante estranha, mas não acredito” que se trate da cena de um crime. Meus instintos me dizem que esse não é um caso de homicídio. Talvez vocês devessem chamar alguns cientistas aqui para nos dizer se um raio poderia ter entrado por essa janela.

— Mas não tivemos uma tempestade ontem — insistiu Sheila.

— Eu sei — disse Jesse, filosoficamente, estendendo as mãos como um súplice. — Mas a senhora disse que os engenheiros excluíram a possibilidade de uma descarga elétrica do edifício. O certo é que parece que o sujeito foi eletrocutado e, se foi mêsmo, talvez tenha sido um raio.

— Eu não consigo acreditar nisso — afirmou Sheila. — Não sou médica-legista, mas sei que, quando um raio atinge uma pessoa, logo abre um buraco. Ele a prende ao chão, geralmente unindo pelos pés, algumas vezes até mesmo estourando os sapatos. Não há evidências de um aterramento aqui. Parece mais coisa de um poderoso raio laser.

—  Ei, é uma hipótese — concordou Jesse. — Não tinha pensado nisso. Vocês não têm raios laser aqui no hospital? Talvez alguém tenha disparado pela janela.

— É claro que temos raios laser no hospital — admitiu Sheila. — Mas nada que pudesse fazer o tipo de buraco que vimos na mão do Sr. Arnold. Além disso, não consigo imaginar que um laser possa ser responsável por essas estranhas distorções que vemos na mobília.

— Bem, estou completamente por fora aqui — afirmou Jesse. — Se a autópsia sugerir que temos um corpo de delito e um homicídio, nos envolveremos. Caso contrário, acho que terão de chamar os cientistas e não a polícia.

— Já ligamos para o departamento de física da universidade — informou Sheila.

— Acho que é o melhor que se tem a fazer — disse Jesse. — Enquanto isso, aqui está meu cartão. — Ele se adiantou na direção de Sheila e lhe entregou o cartão de visita. Também deu um a Richard Halprin, diretor do Centro Médico Universitário, e a Wayne Martinez, chefe da segurança do hospital. — Podem me chamar a qualquer momento. Estou muito interessado, de fato. Essas duas últimas noites foram muito estranhas. Mais coisas esquisitas do que em todos os trinta anos na polícia. Será que estamos na lua cheia?

Ao fim do espetáculo, a música atingiu um crescendo e, com a última percussão dos pratos, o domo do planetário escureceu. Em seguida, todas as luzes se acenderam. Instantaneamente, o auditório irrompeu num ligeiro aplauso, alguns assovios e um balbucio de vozes excitadas. A maioria das cadeiras estava ocupada por crianças da escola elementar, numa excursão. Exceto Pelos professores e acompanhantes, Cassy e Beau eram os únicos adultos presentes.

— Foi muito divertido — disse Cassy. — Eu tinha esquecido o que era um espetáculo num planetário. A última vez que vi um foi na quarta série,com a turma da Srta. Korth.

— Eu também gostei — afirmou Beau com entusiasmo. — É fascinante ver como é a galáxia do ponto de vista da Terra.

Cassy piscou e fitou Beau. Durante toda a manhã ele parecia propenso a sair-se com uma curiosa e inusitada declaração.

— Vamos — chamou Beau, alheio à ligeira perplexidade de Cassy. Ele se levantou. — Vamos tentar sair daqui antes dessas crianças barulhentas.

De mãos dadas, eles saíram do auditório e ficaram peram bulando pelo extenso gramado que separava o planetário do museu de história natural. Compraram cachorros-quentes com 1 molho de pimenta chili e cebola numa carrocinha. Num banco à sombra de uma árvore frondosa, sentaram-se para saborear seu almoço.

— Eu também tinha esquecido de como matar aula pode ser divertido — disse Cassy entre mordidas no cachorro-quente. — Foi uma sorte eu não ter estágio hoje. Isto é, matar aula é uma coisa, mas faltar ao estágio é algo inteiramente diferente. Eu não teria podido vir.

— Fico feliz que tudo tenha dado certo — observou Beau.

— Fiquei surpresa quando você fez essa sugestão. É a primeira vez que você mata aula, não é?

— É — respondeu Beau. Cassy deu uma risada.

— O que é isso? Um novo Beau? Primeiro você age como um animal amoroso e entra no chuveiro com roupa e tudo, e agora, por vontade própria, mata três aulas. Mas não me entenda mal, não estou me queixando.

— É tudo culpa sua — disse Beau. Deixou de lado o cachorro-quente e puxou Cassy para si, envolvendo-a num abraço provocante e sensual. —Você é irresistível. — Ele tentou beijá-la, mas Cassy ergueu a mão e evitou o gesto.

— Espere um segundo — riu ela. — Estou com pimenta pelo rosto todo.

— Quanto mais tempero melhor — brincou Beau.

Cassy limpou o rosto com o guardanapo.

— O que foi que deu em você?

Beau não respondeu. Em vez disso, deu-lhe um beijo longo e delicioso. Assim como no chuveiro, a impulsividade do gesto foi positivamente outro fator a deixá-la excitada.

— Uau, você está se transformando num Casanova de primeira! — disse Cassy, endireitando-se no banco e recuperando o fôlego, enquanto tentava se recompor. O fato de que podia ficar excitada com tanta facilidade, em público e em plena luz do dia, surpreendeu-a.

Beau voltou, feliz, ao cachorro-quente. Enquanto mastigava, levantou a mão para proteger os olhos, enquanto olhava na direção do sol.

— A que distância dizem que a Terra fica do Sol? — perguntou.

— Nossa, eu não sei — replicou Cassy. Tendo tido o desejo estimulado, era difícil mudar de assunto, principalmente para algo tão específico quanto distâncias astronômicas. — Cento e quarenta e poucos milhões de quilômetros.

— É, isso. Cento e quarenta e nove. Isso significa que seriam necessários pouco mais de oito minutos para que o efeito de uma erupção na cromosfera solar chegasse aqui.

— Como? — espantou-se Cassy. Mais uma de suas declarações inusitadas. Ela nem mesmo sabia o que era uma erupção na cromosfera solar.

— Olhe — disse Beau, animado, apontando para o céu, a oeste. — Pode-se ver a lua, mesmo à luz do sol.

Cassy protegeu os olhos e seguiu a linha indicada pelo dedo de Beau. Como era de se esperar, ela mal conseguiu divisar uma imagem diáfana da Lua. Voltou a atenção para Beau. Ele estava se divertindo imensamente, de uma forma cativante, quase infantil. Seu entusiasmo era contagiante e ela não podia deixar de se divertir também.

— O que fez você querer vir ao planetário hoje? — indagou Cassy.

Beau deu de ombros.

— Só interesse — disse ele. — Uma oportunidade para aprender um pouco mais sobre este belo planeta. Agora vamos para o museu. Está disposta?

— Por que não? — replicou Cassy.

Jonathan levou o almoço para fora. Num dia como aquele, detestava ficar na lanchonete lotada, principalmente porque não vira Candee ali. Contornando a bandeirola do losango central, seguiu para as arquibancadas descobertas que ladeavam o campo de beisebol. Sabia que aquele era um dos lugares preferidos de Candee quando queria fugir da multidão. À medida que se aproximava, pôde ver que seus esforços seriam recompensados. Candee estava sentada na arquibancada superior.

Eles acenaram um para o outro e Jonathan começou a subir. Uma leve brisa soprou, levantando a barra da saia de Candee e permitindo tentadores vislumbres de suas coxas. Jonathan tentou disfarçar o olhar.

— Oi — saudou Candee.

— Oi — respondeu Jonathan, sentando-se ao lado dela e apanhando um de seus sanduíches de banana com pasta de amendoim.

— Eca! — disse Candee. — Não acredito que você consiga comer essa coisa.

Jonathan examinou o sanduíche antes de dar uma mordida.

— Eu gosto — afirmou ele.

— O que foi que Tim disse sobre o rádio? — perguntou! Candee.

— Ainda está uma fera. Mas pelo menos não acha mais que foi nossa culpa. A mesma coisa aconteceu com um amigo do irmão dele.

— Ainda podemos pedir o carro emprestado? — indagou Candee.

— Receio que não.

— O que vamos fazer?

— Não sei — disse Jonathan. — Queria tanto que meus pais não fossem tão rígidos em relação ao carro. Eles me tratam como se eu tivesse doze anos. Só me deixam dirigir aquela coisa quando estão junto.

— Pelo menos seus pais deixaram você tirar a carteira — queixou-se Candee. — Os meus vão me fazer esperar até eu ter dezoito anos.

— Isso é criminoso — afirmou Jonathan. — Se tentassem isso comigo, acho que fugiria de casa; Mas também para o que serve minha carteira sem um carro? É tão frustrante meus pais não confiarem em mim. Afinal, eu tenho um cérebro. Além disso, tiro notas boas e não uso drogas.

Candee revirou os olhos.

— Não considero aquela maconha que a gente experimentou como droga — objetou Jonathan. — E quantas vezes nós usamos? Duas!

— Ei, olhe lá — disse Candee, apontando para a plataforma de carga e descarga, local em que os caminhões faziam entregas, pouco mais de vinte metros do local onde estavam. A plataforma ficava no nível do subsolo e chegava-se a ela por uma rampa feita no chão bem atrás da barreira do campo de beisebol. — Aquele não é o Sr. Partridge com a enfermeira da escola? — perguntou Candee.

— Com toda a certeza — confirmou Jonathan. — E ele não parece muito bem. Olhe como a Srta. Golden está amparando o velhote. E ouça como ele está tossindo.

Naquele momento, um antigo Lincoln Town Car surgiu pela lateral do edifício e desceu a rampa. Ao volante, Candee e Jonathan reconheceram a Sra. Partridge, a quem os garotos da escola chamavam Miss Piggy. A Sra. Partridge parecia estar tossindo tanto quanto o marido.

— Que dupla! — comentou Jonathan.

Enquanto ele e Candee observavam, a Srta. Golden conseguiu fazer com que o encurvado Sr. Partridge descesse meio lance de degraus de cimento e entrasse no carro. A Sra. Partridge não saltou do veículo.

— Ele parece estar muito mal — observou Candee.

— Miss Piggy parece pior — replicou Jonathan.

O carro deu marcha à ré, fez a volta e acelerou, subindo a rampa. Na metade desta, esbarrou levemente na parede de concreto. O ruído áspero e desagradável fez Jonathan estremecer.

— Adeus, pintura! — disse ele.

— O que, em nome de Deus, você está fazendo de volta aqui! — perguntou Cheryl Watkins. Ela estava sentada na recepção da Emergência, quando Pitt Henderson passou, arrastando-se, pela porta giratória. Ele parecia exausto,com círculos escuros sob os olhos.

— Não consegui dormir — disse ele. — Então pensei que deveria voltar e tentar salvar o que pudesse de minha carreira médica.

— Do que você está falando? — indagou Cheryl.

— Hoje de manhã, quando fui olhar o quarto de que você falou, cometi uma gafe desastrosa.

— O que foi? — quis saber Cheryl. Vendo que estava perturbado, ela ficou preocupada. Pitt era muito querido na unidade.

— Sem querer, eu esbarrei na Senhora Dragão e ela derramou café em si mesma e no jaleco — contou Pitt. — E eu vou lhe dizer uma coisa: ela ficou uma fera de verdade. Disse que queria saber o que eu estava fazendo lá e eu, estúpido que sou, não consegui pensar em nenhum motivo.

— Oh-oh! — compadeceu-se Cheryl. — A Dra. Miller não gosta de sujar o jaleco, principalmente de manhã cedo.

— Como todos nós sabemos! — disse Pitt. — Ela foi bastante rude. Seja como for, pensei que, talvez, voltando para trabalhar, pudesse ao menos impressioná-la com minha dedicação.

— Mal não vai fazer, embora esteja muito além de sua obrigação — afirmou Cheryl. — Por outro lado, a ajuda é sempre útil e eu vou providenciar para que nossa intrépida líder tome conhecimento do fato. Enquanto isso, por que você não faz o registro de alguns dos casos mais rotineiros? Tivemos um acidente de trânsito grave há uma hora; por isso estamos bastante atrasados e os enfermeiros estão todos ocupados.

Feliz em ter uma tarefa, principalmente uma de que gostava,  Pitt apanhou a ficha de cima da pilha e seguiu para a área de espera dos pacientes. O nome da paciente era Sandra Evans, quatro anos.

Pitt chamou o nome em voz alta. Da multidão de pessoas, pacientemente aguardando nas duras cadeiras de plástico da sala apinhada, uma mãe com a filha se puseram de pé. A mulher tinha trinta e poucos anos e estava bastante enlameada. A criança era encantadora, com cabelos louros cacheados, mas parecia doente e suja. Vestia um pijama manchado e um pequeno roupão.

Tomando-lhes a frente, Pitt levou-as até um reservado para exame, onde ergueu a menina e a colocou sobre a mesa. Seus olhos azuis estavam embaciados e a pele pálida e úmida. Ela estava mal o bastante para não prestar muita atenção ao ambiente da Emergência.

— Você é o médico? — perguntou a mãe. Pitt parecia muito jovem.

— O atendente — informou Pitt. Trabalhando na Emergência já há algum tempo e tendo encaminhado um número suficiente de pacientes já identificados numa pré-seleção, Pitt não se sentia constrangido com sua posição.

— Qual é o problema, anjinho? — perguntou Pitt, enquanto envolvia o braço de Sandra com o medidor de pressão sangüínea, fazendo este inflar.

— Peguei uma grupe — disse Sandra.

— Ela quer dizer gripe — interveio a mãe. — Ela não sabe explicar direito. Acho que é uma gripe. Começou essa manhã,com tosse e espirros.vou lhe dizer uma coisa: as crianças estão sempre tendo alguma coisa.

A pressão sangüínea estava boa. Quando Pitt soltava o aparelho do braço de Sandra, percebeu um Band-Aid colorido na palma da mão direita da garotinha.

— Parece que você tem um dodói também — observou ele, apanhando o termômetro e preparando-se para tirar-lhe a temperatura.

— Uma pedra me mordeu no jardim — informou Sandra.

— Sandra, já te falei para não contar mentiras — repreendeu a Sra. Evans. Era óbvio que a mãe estava no limite de sua paciência.

— Não estou contando mentira — replicou Sandra, indignada.

A Sra. Evans fez uma careta, como se dissesse: “O que foi fazer?”

— Você já foi mordida por muitas pedras? — brincou Pitt, enquanto lia o termômetro. A menina estava com 39,5°C. E anotou a temperatura e a pressão sangüínea na ficha.

— Só uma — respondeu Sandra. — Uma preta.

— Acho que precisamos tomar cuidado com as pedras pretas — disse Pitt. Em seguida, instruiu a mãe para observar a filha com atenção até a chegada do médico.

Pitt voltou para a recepção e pôs a ficha no porta-fichas, onde seria apanhada pelo próximo médico disponível. Estava prestes a acomodar-se atrás do balcão quando a porta de vaivém que levava à parte externa do hospital se abriu bruscamente.

— Me ajudem — gritou um homem, que carregava nos braços uma mulher com convulsões. Ele cambaleou alguns passos na Emergência e ameaçou desabar.

Pitt foi o primeiro a alcançar o homem. Sem hesitar por um só segundo, aliviou o homem de seu fardo, tomando a mulher em seus próprios braços. Era difícil segurá-la, pois ela se encontrava no auge de um acesso convulsivo.

A essa altura, Cheryl Watkins já havia saído por detrás do balcão da recepção, junto com vários dos residentes da Emergência. Até a Dra. Sheila Miller viera correndo de sua sala com os gritos de socorro.

— Para a sala de trauma — ordenou a Dra. Miller. Sem esperar pela maca, Pitt carregou a mulher que se contorcia para os fundos da Emergência com a ajuda de Sheila, que se postara do outro lado da mesa de exame, Pitt deitou a paciente. Ao fazê-lo, seus olhos encontraram-se com os de Sheila pela segunda vez naquele dia. Nenhuma palavra foi trocada, mas dessa vez uma mensagem completamente diferente foi transmitida.

Pitt recuou, dando lugar aos enfermeiros e médicos. Ele ficou ali parado, observando, desejando estar num estágio de seu treinamento em que já pudesse participar.

A equipe médica comandada por Sheila rapidamente fez cessar as convulsões. Mas, quando começavam a avaliar o que as provocara, a paciente teve outro acesso, dessa vez ainda mais violento.

— Por que ela está assim? — gemeu o marido. Todos haviam se esquecido de que ele seguira o grupo. Uma das enfermeiras foi até ele e fez sinal para que saísse. — Ela tem diabetes, mas nunca teve um acesso desses. Isso não devia estar acontecendo. Isto é, tudo que ela tinha era tosse. É uma mulher jovem. Alguma coisa está errada, eu sei disso.

Alguns minutos depois de o marido ser levado para a sala de espera, Sheila ergueu a cabeça rapidamente para olhar o monitor cardíaco. Uma súbita mudança no som das batidas chamara sua atenção.

— Oh-oh — disse ela. — Tem alguma coisa acontecendo aqui e eu não estou gostando nem um pouquinho.

O batimento cardíaco tornara-se irregular. Antes que alguém pudesse reagir, o alarme do monitor disparou. A paciente estava fibrilando.

— Emergência código vermelho! — soou uma voz estridente pelo sistema de som. Outros médicos da Emergência correram para o cubículo em resposta ao aviso de parada cardíaca. Pitt recuou ainda mais, a fim de não atrapalhar. Para ele, o episódio era ao mesmo tempo estimulante e assustador. Perguntou-se se algum dia aprenderia o suficiente para participar com competência de uma situação semelhante.

A equipe trabalhou incansavelmente, mas sem nenhum resultado. Por fim, Sheila endireitou o corpo e passou o antebraço pela testa suada.

— OK, acabou — disse,com relutância. — Nós a perdemos. — Durante os últimos trinta minutos o monitor havia exibido uma linha reta e monótona.

Toda a equipe estava cabisbaixa, abatida.

A velha balança chiou quando o Dr. Curtis Lapree deixou o fígado de Charlie Arnold cair sobre a bacia. A agulha saltou no mostrador.

— Bem, está normal — disse Curtis.

— O senhor esperava que não estivesse? — perguntou Jesse Kemper. Ele e o detetive Vince Garbon estavam assistindo à autópsia do funcionário da faxina do Centro Médico da Universidade. Ambos os policiais estavam vestidos com trajes de proteção descartáveis.

Nem Jesse nem Vince sentiam-se intimidados ou nauseados pela autópsia. Já haviam assistido a uma centena delas no decorrer dos anos, principalmente Jesse, onze anos mais velho do que Vinnce.

— Não — disse Curtis. — O fígado tinha um aspecto normal, uma consistência normal, então eu esperava que o peso também fosse normal.

— Tem alguma idéia do que matou esse pobre sujeito? — indagou Jesse.

— Não — respondeu Curtis. — Parece que vai ser mais um daqueles mistérios.

— Não me diga isso — pediu Jesse,com irritação. — Estou contando com o senhor para me dizer se se trata de um homicídio ou de um acidente.

— Tenha calma, tenente — disse Curtis,com uma risada.

— Só estou brincando com você. A essa altura já deveria saber que a parte do dissecamento na autópsia é apenas o começo. Neste caso, espero que a fase do microscópio seja mais importante. Isto é, simplesmente não sei o que pensar desse buraco na mão. Olhe para isso!

Curtis ergueu a mão de Charlie Arnold.

— A droga do buraco é um círculo perfeito.

— Poderia ser um ferimento a bala? — perguntou Jesse.

— Pode responder a sua própria pergunta — replicou Curtis. — Depois de tantos ferimentos a bala que já viu.

— É verdade. Isso não parece causado por uma bala — afirmou Jesse.

— E com toda a certeza não é — garantiu Curtis. — Teria de ser uma bala à velocidade da luz e mais quente do que o interior do sol. Olhe como tudo ficou cauterizado em volta. E o que aconteceu com o tecido e os ossos ausentes? Você disse que não havia sinais de sangue ou tecido humano no local.

— Nada — confirmou Jesse. — Nem sangue seco. Havia vidro e móveis derretidos, mas nada de sangue ou tecidos.

— O que quer dizer com móveis derretidos? — indagou Curtis, limpando as mãos no avental, após retirar o fígado da balança.

Jesse descreveu o quarto, para absoluto fascínio de Curtis.

— Minha mãe! — exclamou Curtis.

— Tem alguma idéia a respeito? — perguntou o policial.

— Pode-se dizer que sim — admitiu Curtis. — Mas você não vai gostar nada. Eu também não gosto. É uma maluquice.

— Experimente me dizer — pediu Jesse.

— Primeiro, deixe-me mostrar-lhe uma coisa. — Curtis dirigiu-se a uma mesa lateral e trouxe um par de retratores. Encaixando-o na parte interna dos lábios superior e inferior do cadáver, ele expôs-lhe os dentes. A expressão do homem morto transformou-se numa careta horrenda.

— Ah, que horror! — disse Vinnce. — O senhor vai me fazer ter pesadelos.

— OK, doutor — disse Jesse. — O que espera que eu veja além de um trabalho odontológico porco? Parece que o sujeito nunca escovou os dentes.

— Olhe o esmalte dos dentes frontais — pediu Curtis.

— Estou olhando. Parece um pouco estragado.

— Isso mesmo. — Curtis retirou os retratores e voltou a deixá-los sobre a mesa próxima.

— Já chega de rodeios — disse Jesse. — O que o senhor está querendo dizer?

— A única coisa que me ocorre que pode fazer isso com o esmalte dos dentes é um envenenamento agudo por radiação — afirmou Curtis.

Jesse mostrou-se consternado.

— Eu disse que você não iria gostar nada — observou Curtis.

— Jesse está muito perto da aposentadoria — informou. — Não se deve fazer esse tipo de brincadeira com ele.

— Estou falando sério — disse Curtis. — É a única coisa que liga todos os indícios, como o buraco na mão e a mudança ocorrida no esmalte dentário. Até mesmo as cataratas que não foram detectadas em seu último exame anual.

— O que aconteceu afinal com este pobre coitado? — perguntou Jesse.

— Sei que vai parecer loucura — advertiu Curtis. — Mas a única maneira por que posso relacionar todas essas evidências até agora é pela hipótese de que alguém tenha pingado em sua mão uma pelota de plutônio aquecida ao rubro, que abriu este buraco e também o submeteu a uma enorme dose de radiação. Refiro-me a uma dose colossal.

— Isso é absurdo — afirmou Jesse.

— Eu disse que você não ia gostar — admitiu Curtis.

— Não havia indícios de plutônio no local — informou Jessé. — O senhor verificou se o corpo está radioativo?

— Verifiquei, sim. Por questão de segurança pessoal.

— E então?

— Não está — disse Curtis. — Caso contrário, eu não estaria mergulhado nele.

Jesse sacudiu a cabeça.

— Isso está piorando, ao invés de melhorar — disse ele. — Plutônio, que merda! Teríamos uma espécie de emergência nacional. Acho melhor eu mandar alguém até o hospital para se certificar de que não haja pontos de radiação ali. Posso usar o telefone?

— À vontade — disse Curtis, aprazivelmente.

Um súbito acesso de tosse chamou a atenção de todos. Era Mitnael Schonhoff, um técnico legista, que se encontrava na pia, lavando as vísceras. O acesso durou vários minutos.

— Nossa, Mike! — exclamou Curtis. — Acho que você está piorando. E, perdoe-me a expressão, mas está parecendo um cadáver.

— Me desculpe, Dr. Lapree — disse Mike. — Acho que peguei uma gripe. Eu estava tentando ignorá-la, mas agora estou começando a sentir calafrios.

— Vá embora mais cedo — sugeriu Curtis. — Vá para casa e enfie-se na cama, tome uma aspirina e beba um chá.

 — Quero terminar aqui primeiro — disse Mike. — Em seguida,vou etiquetar os frascos com as amostras.

— Esqueça isso — ordenou Curtis. — Pedirei a outra pessoa que termine o trabalho.

— Está bem — concordou Mike. Apesar de seus protestos, estava feliz em ser dispensado.

 

20:15

— Eu fico me perguntando por que a gente nunca vem aqui — disse Beau. — É um lugar muito bonito. — Ele, Cassy e Pitt perambulavam por uma rua só para pedestres no centro da cidade, tomando sorvete, após jantarem comida italiana acompanhada por vinho branco.

Cinco anos antes, o centro comercial assemelhava-se a uma cidade fantasma, pois a maioria das pessoas e dos restaurantes fugiu para os subúrbios. Porém, como muitas outras cidades norte-americanas, esta tivera um redespertar. Algumas reformas de bom gosto haviam dado início ao progresso inevitável. Agora, todo o centro era um banquete tanto para os olhos quanto para o paladar. Multidões perambulavam por ali, desfrutando o espetáculú

— Vocês faltaram mesmo às aulas hoje? — perguntou Pit. Estava impressionado e incrédulo.

— Por que não? — replicou Beau. — Fomos ao planetário, ao museu de história natural, ao museu de arte e ao zoológico. Aprendemos muito, mais do que se tivéssemos ido às aulas.

— É um raciocínio interessante — observou Pitt. —Espero que caiam várias perguntas sobre o zôo nas próximas provas de •

— Ah, você está com inveja — disse Beau, dando um tapinha no alto da cabeça de Pitt.

— Talvez — admitiu Pitt, pondo-se fora do alcance de Beau.

— Trabalhei trinta horas na Emergência desde ontem de manhã.

— Trinta horas? — espantou-se Cassy. — É mesmo?

— Verdade — disse Pitt. Então contou-lhes a história do quarto onde Beau passara a tarde e sobre como derramara café na Dra. Sheila Miller, a mulher que dirigia todo o departamento de emergência.

Tanto Beau quanto Cassy ficaram impressionados, principalmente pelo estado do quarto e a morte do faxineiro. Foi Beau quem fez a maior parte das perguntas, mas Pitt tinha poucas respostas.

— Estão aguardando os resultados da autópsia — acrescentou ele. — Todos esperam que então surja alguma explicação. Neste momento, ninguém tem idéia do que aconteceu.

— Parece horrível — comentou Cassy, fazendo uma careta de repulsa. — Um buraco aberto na mão do homem. Meu Deus, eu nunca poderia ser médica com toda a certeza.

— Tenho uma pergunta para você, Beau — disse Pitt, depois de caminharem alguns momentos em silêncio. — Como foi que Cassy conseguiu convencê-lo a dedicar o dia de hoje à cultura?

— Ei, espere um pouco! — interrompeu Cassy. — Isso não foi idéia minha. Foi de Beau.

— Ah, corta essa — disse Pitt, com ceticismo. — Você quer que eu acredite que... o Sr. Certinho, que nunca perde um dia de aula...

— Pergunte a ele! — ordenou Cassy. Beau apenas riu.

Cassy, decidida a deixar claro que não era ela a culpada por aquele dia frívolo e, apesar da calçada estar muito movimentada, girara o corpo e estava andando de costas de modo a ficar de frente para Pitt.

— Ande, vamos, pergunte a ele — insistiu ela.

De repente, ela colidiu com um pedestre que vinha na direção oposta e que também não estava muito atento. Ambos levaram um ligeiro susto, mas ninguém se machucou.

Cassy imediatamente pediu desculpas, assim como também o transeunte com quem colidira. Ao olhá-lo, porém, Cassy as sustou-se. Aquele era o Sr. Partridge, o severo diretor da escola Anna C. Scott.

Ed também assustou-se.

— Espere um pouco — disse ele, um sorriso abrindo-se em seu rosto. — Eu conheço você. É a Srta. Winthrope, a encantadora estagiária designada para a Sra. Edelman.

Cassy sentiu-se enrubescer, experimentando uma súbita consciência da possibilidade de ter topado com uma pequena catástrofe. O Sr. Partridge, porém, era a gentileza em pessoa.

— Que surpresa agradável — dizia ele. — Ouça, gostaria de lhe apresentar minha esposa, Clara Partridge.

Cassy, obsequiosamente, apertou a mão da esposa do SE Partridge, reprimindo um sorriso. Estava bem consciente de como os alunos chamavam a mulher.

— E este aqui é nosso novo amigo — anunciou o Sr. Partridge, passando o braço em torno do rapaz. — Gostaria de lhes apresentar Michael Schonhoff. É um daqueles dedicados funcionários públicos que labutam no centro legista.

Todos apertaram-se as mãos com as apresentações. Beau estava particularmente interessado em Michael Schonhoff e os dois entabularam uma conversa particular, enquanto Ed Partridge voltava sua atenção para Cassy.

— Tenho tido boas informações sobre seu estágio — afirmou ele. — E fiquei impressionado com sua desenvoltura na aula de ontem, quando a Sra. Edelman se atrasou.

Cassy não sabia responder a esses cumprimentos inesperados. Também não sabia como reagir à inspeção espalhafatosamente lúbrica do Sr. Partridge. Várias vezes os olhos do homem percorreram seu corpo de alto a baixo com o primeiro olhar, ela pensou que poderia estar exagerando, mas depois da terceira vez, soube que o comportamento dele era deliberado.

Por fim os dois grupos se despediram e seguiram caminhos separados.

— Quem diabos é esse Ed Partridge? — perguntou Pitt assim que não podiam mais ser ouvidos.

— É o diretor da escola secundária onde estou fazendo estágio — informou Cassy, meneando a cabeça.

— Ele está nitidamente impressionado com você — observou Pitt.

— Você percebeu a forma como ele estava me olhando? — indagou Cassy.

— Como poderia deixar de ver? — replicou Pitt. — Sentime constrangido por ele, principalmente com aquele barril que tem como mulher bem ao seu lado. O que achou disso, Beau?

— Não percebi — respondeu Beau. — Estava conversando com Michael.

— Ele nunca agiu assim antes — disse Cassy. — Na verdade, costuma ser severo e conservador.

— Ei, pessoal, tem outra sorveteria do outro lado da rua — disse Beau, com entusiasmo. —Vou tomar outro. Alguém mais quer?

Tanto Cassy quanto Pitt abanaram a cabeça negativamente.

— Eu já volto — disse Beau, atravessando a rua correndo para esperar na fila da sorveteria.

— Você acredita em mim quando digo que foi idéia de Beau matar aula hoje? — indagou Cassy.

— Se você está dizendo... Mas tenho certeza que você compreende minha reação. É um pouco inusitado para Beau.

— Você está sendo eufêmico — replicou Cassy.

Ficaram observando enquanto Beau flertava com duas estudantes atraentes. Mesmo de onde estavam, podiam ouvir a risada característica de Beau.

— Ele está feliz como um pinto no lixo — comentou Pitt.

— É uma maneira de ver a situação. O dia de hoje foi bastante divertido, não resta dúvida. Mas esse comportamento de Beau está começando a me deixar um pouco preocupada.

— Como assim?

Cassy deixou escapar uma risada breve e sombria.

— Ele está bonzinho demais. Sei que isso parece loucura e talvez um pouco de cinismo, mas ele não está agindo de maneira normal. Não está se comportando da maneira como Beau costuma se comportar. Faltar à aula é só uma entre outras coisas.

— Que outras coisas? — perguntou Pitt.

— Bem, é algo um pouco pessoal — respondeu Cassy.

— Ei, eu sou seu amigo — disse Pitt, encorajando-a, mas ao mesmo tempo, sentiu a boca ressecar-se. Não estava bem certo de que quisesse ouvir alguma coisa muito pessoal. Por mais que tentasse negar, seus sentimentos por Cassy não eram inteiramente platônicos.

— Ele está diferente sexualmente — afirmou Cassy, hesitante. — Hoje de manhã ele...

Ela interrompeu-se no meio da frase.

— Ele o quê? — insistiu Pitt.

— Não acredito que eu esteja lhe contando isso — disse Cassy, envergonhada. — Vamos dizer apenas que tem alguma coisa diferente nele.

— Ele está assim só hoje?

— Ontem à noite e hoje. — Cassy pensou em contar sobre Beau arrastá-la nua até a sacada, no meio da noite, para ver chuva de meteoros, mas mudou de idéia.

— Todos nós temos dias em que nos sentimos mais vivos — conjeturou Pitt. — Você sabe, quando a comida fica mais saborosa e o sexo... parece melhor. — Ele deu de ombros. Agora era ele quem estava constrangido.

— Pode ser — disse Cassy, sem convicção. — O que pergunto, porém, é se seu comportamento poderia ter alguma relação com a gripe passageira que ele teve. Nunca o vi tão mal embora tenha se recuperado com tanta rapidez. Talvez tenha ficado assustado. Sabe, como se tivesse pensado que ia morrer ou algo assim. Isso lhe parece razoável?

Pitt abanou a cabeça.

— Não pensei que ele estivesse tão doente.

— Você tem alguma outra idéia? — perguntou Cassy.

— Para ser franco, estou um pouco cansado demais para pensar criativamente.

— Se você... — começou a dizer Cassy, detendo-se, porém — Olha o que Beau está fazendo agora!

Pitt olhou na direção do amigo. Beau voltara a se encontrar com Ed Partridge, a mulher e o amigo, Michael. Os quatro estavam absortos numa conversa.

— Sobre o que eles poderiam estar conversando? — indagou Cassy.

— Bem, seja sobre o que for, parecem estar todos de acordo. — observou Pitt. — Estão todos assentindo com a cabeça.

Beau olhou o relógio no painel de seu 4x4. Eram duas e meia da manhã. Ele estava em companhia de Michael Schonhoff e haviam estacionado na plataforma de carga do centro legista, ao lado de um dos carros funerários.

— Então você acha que esta é a melhor hora? — indagou Beau.

— Definitivamente — respondeu Michael. — O pessoal da limpeza a essa hora está no segundo andar. — Ele abriu a porta do passageiro e começou a saltar do carro.

— Não precisa de mim? — perguntou Beau.

— Vou ficar bem — disse Michael. — Por que não espera aqui? Nãovou precisar de tantas explicações se der de cara com a segurança.

— Quais são as chances de encontrar algum segurança?

— Pequenas — admitiu Michael.

— Então vou com você — decidiu Beau, descendo do carro.

— Como quiser — concordou Michael, afável.

Juntos, dirigiram-se para a porta. Michael usou as suas chaves e, segundos depois, estavam no interior do prédio.

Sem uma única palavra, Michael fez sinal para que Beau o seguisse. À distância, podia-se ouvir um rádio. Estava sintonizado num programa de variedades que ia ao ar durante toda a noite.

A rota que seguiram os levou a uma antecâmara a que chegavam descendo uma pequena rampa e à sala onde eram mantidos os corpos. As paredes eram cobertas por compartimentos refrigerados.

Michael sabia exatamente qual compartimento abrir. O estado do mecanismo da porta pareceu ressoar em meio ao silencio. O corpo, sobre uma bandeja de aço inoxidável, deslizou Para fora sem dificuldade.

Os restos de Charlie Arnold estavam num saco plástico transparente, próprio para embalar cadáveres. Seu rosto exibia uma palidez fantasmagórica.

Intimamente familiarizado com o ambiente, Michael apareceu com uma maca com a ajuda de Beau, pôs o corpo sobre ela e fechou o compartimento refrigerado.

Após uma rápida olhada para verificar que a antecâmara ainda estava vazia, eles deslizaram a maca com o corpo rampa acima e atravessaram a porta. Foi preciso apenas mais um minuto para transferir o corpo para a traseira do 4x4.

Enquanto Beau voltava a entrar no carro, Michael foi devolver a maca. Logo ele estava de volta e partiram.

— Isso foi fácil — disse Beau.

— Eu lhe disse que não haveria problemas — afirmou Michael.

Seguiram para o leste, entrando no deserto. Saindo da estrada principal, tomaram uma trilha de terra até se encontrarem num local incontestavelmente ermo.

— Parece bom para mim — disse Beau.

— Eu diria que é perfeito — anuiu Michael.

Beau parou o carro. Juntos, tiraram o corpo do veículo e carregaram-no cerca de trinta metros adiante, onde o pousaram sobre uma proeminência de arenito. Acima deles, estendia-se a abóbada sem lua do céu noturno, com seus milhões de estrelas.

— Pronto? — perguntou Beau. Michael recuou alguns passos.

— Pronto — afirmou.

Beau apanhou um dos discos negros que recolhera naquela manhã epôs sobre o corpo. Quase de imediato, o objeto começou a brilhar e a intensidade da luz foi aumentando rapidamente.

— É melhor voltarmos — disse Beau.

Afastaram-se cerca de quinze metros. A essa altura, o brilho do disco negro chegara ao ponto em que uma coroa começava a se formar e, com isso, o corpo de Charlie Arnold também começou a brilhar. O clarão vermelho do disco transformou-se numa resplandecência branca e a coroa se expandiu, envolvendo também o corpo.

O silvo fez-se ouvir e, com ele, começou um vento que primeiro arrastou as folhas, depois pedras pequenas e, por fim, pedras maiores na direção do corpo. O som instantaneamente tornou-se ensurdecedor, como o ruído de um enorme motor a jato. Beau e Michael agarraram-se um ao outro para não serem arrancados do chão.

O som cessou de maneira tão súbita que provocou uma onda de choque que sobressaltou os dois homens. O disco negro, o corpo e várias pedras, folhas, gravetos e outros entulhos haviam desaparecido. A pedra onde o corpo fora colocado estava quente, sua superfície contorcida numa espiral.

— Isso vai causar um certo alvoroço — afirmou Beau.

— Com certeza — concordou Michael. — E os manterá ocupados por algum tempo.

 

8:15

— Você não vai me dizer aonde foi à noite passada? — perguntou Cassy, com irritação. Ela estava com a mão pousada na maçaneta, prestes a saltar do carro. Beau parara no caminho em forma de ferradura em frente à escola Anna C. Scott.

— Eu já disse: fui só dar uma volta de carro — afirmou Beau. — O que tem demais nisso?

— Você nunca saiu para dar uma volta no meio da noite disse Cassy. — Por que não me acordou e avisou que estava saindo?

— Você estava dormindo profundamente — explicou Beau. — Eu não quis incomodá-la.

— Não pensou que eu poderia acordar e ficar preocupada com você? — perguntou Cassy.

— Me desculpe — disse Beau, estendendo a mão e dando tapinhas no braço de Cassy. — Acho que eu devia mesmo ter acordado você. Mas na hora me pareceu melhor deixá-la dormir.

— Você vai me acordar se isso acontecer de novo? — indagou Cassy.

— Prometo. Nossa, você está fazendo uma tempestade num copo d’água.

— Eu fiquei assustada — disse Cassy. — Cheguei a ligar para o hospital para me certificar de que não estava lá. E para a polícia também, só para ter certeza de que não havia acontecido um acidente.

— OK, está bem — afirmou Beau. — Você já me convenceu. Cassy saltou do veículo, então debruçou-se na janela.

— Mas por que sair de carro às duas da manhã? Por que não dar uma volta a pé, se não conseguia dormir, ou assistir a um pouco de TV? Ou, ainda melhor, por que não ler?

— Não vamos recomeçar — disse Beau,com convicção, porém sem raiva. — OK?

— OK — concordou Cassy, relutante. Ao menos recebera um pedido de desculpas e Beau parecia razoavelmente arrependido.

— Vejo você às três — despediu-se Beau.

Ambos acenaram quando Beau se afastava do meio-fio. Ao chegar à esquina, ele não olhou para trás. Se tivesse olhado, teria visto que Cassy não se mexera do ponto onde a deixara. Ela o viu dobrar a esquina, tomando a direção contrária à da universidade. Cassy abanou a cabeça. O estranho comportamento do companheiro não havia passado.

Beau assoviava baixinho para si mesmo, alegremente, alheio às preocupações de Cassy, enquanto guiava para o centro da cidade. Tinha uma missão e estava concentrado, mas não tanto que não percebesse o número de pedestres e outros motoristas que tossiam e espirravam, principalmente quando parou num sinal. No centro da cidade, era como se quase metade das pessoas apresentasse sintomas de uma infecção nas vias respiratórias. Além disso, muitos estavam pálidos e transpirando.

Alcançando os subúrbios da cidade, no lado oposto àquele em que ficava a universidade, Beau deixou a Main Street, tomando a Goodwin Place. À sua direita ficava o abrigo de animais e ele atravessou o portão de corrente que estava aberto, estacionando perto do edifício da administração. Este era construído com blocos de cimento pintado e janelas de alumínio com persianas.

Vindo por trás do edifício, Beau podia ouvir latidos contínuos. No interior do prédio, encontrou uma secretária, disse o que desejava e esta pediu-lhe que se sentasse numa pequena sala de espera. Beau podia ter lido enquanto esperava, mas, em vez disso, ficou ouvindo atentamente os latidos, até mesmo o miado intermitente de alguns gatos. Ocorreu-lhe que aquela era uma estranha maneira de se comunicar.

— Meu nome é Tad Secolow — apresentou-se um homem, interrompendo os pensamentos de Beau. — Soube que está procurando um cão.

— Isso mesmo — disse Beau, pondo-se de pé.

— Veio ao lugar certo — afirmou Tad. — Temos praticamente qualquer raça que você possa querer. O fato de estar disposto a dar um lar para um cão já adulto lhe oferece uma possibilidade de escolha maior do que se tivesse decidido levar um filhote. Tem alguma idéia sobre a raça?

— Não — respondeu Beau. — Mas saberei o que quero quando o vir.

— Como? — Tad não o compreendera.

— Eu disse que reconhecerei o animal que quero quando o avistar — repetiu Beau.

— Quer olhar as fotos primeiro? — sugeriu Tad. — Temos fotografias de todos os cães disponíveis.

— Preferiria ver os próprios animais — afirmou Beau.

— OK — concordou Tad,com afabilidade. Ele acompanhou Beau, passando pela sala da secretária e pelos fundos do edifício, repleto de gaiolas de animais. Havia no ar um leve cheiro de estábulo, que concorria com um aroma enjoativo de desinfetante. Tad explicou que os cães abrigados no interior do prédio estavam sendo tratados pelo veterinário, que vinha dia sim, dia não. A maioria dos cães não estava latindo. Alguns pareciam doentes.

O pátio nos fundos do abrigo tinha fileiras de jaulas. Ao longo de todo o centro, viam-se duas longas séries fechadas com gradês. O chão de todo o complexo era de concreto. Rolos de mangueiras empilhavam-se, encostados à parede do edifício.

Tad conduziu Beau pelo primeiro corredor. Os cães latiram selvagemente ao virem os dois. Tad fazia comentários constantes sobre as qualidades de cada raça por que passavam. Fez uma pausa maior diante de uma jaula que abrigava um poodle de tamanho médio. O cão tinha o pêlo cinza-prateado e olhos escuros e suplicantes. Parecia compreender a urgência de sua situação.

Beau abanou a cabeça e seguiram adiante.

Enquanto Tad discorria sobre as boas qualidades de um Labrador negro, Beau parou e olhou fixamente para um cão grande e forte, de pêlo castanho-claro, que devolveu seu olhar com uma leve curiosidade.

— Que tal este? — perguntou Beau.

Tad ergueu as sobrancelhas quando viu a que cachorro Beau estava se referindo.

— É um belo animal — disse ele. — Mas é grande e muito forte. Está interessado num cão desse tamanho?

— Que raça é essa? — quis saber Beau.

— Bullmastiff— respondeu Tad. — As pessoas geralmente têm medo deles por causa do tamanho, e esse garotão aí poderia arrancar o seu braço, se quisesse. Mas ele parece ter uma boa índole. A palavra mastiffna na realidade vem de um termo latino que significa “manso”.

— Como é que ele veio parar aqui? — indagou Beau.

— Vou ser franco com você. Os antigos donos tiveram um bebê inesperado. Ficaram com medo da reação do cão e não quiseram arriscar. O cão adora perseguir caças de pequeno porte.

— Abra a porta — sugeriu Beau. —Vamos ver se nos damos bem.

— Vou buscar um enforcador — disse Tad. Ele voltou-se, desaparecendo no interior do edifício.

Beau abaixou-se e abriu uma portinhola por onde se introduzia a comida do animal. O cão levantou-se de onde estava sentado, no fundo da jaula, e aproximou-se para cheirar a mão de Beau, abanando a cauda hesitantemente.

Levando a mão ao bolso, Beau tirou mais um de seus discos Pretos. Segurando-o entre o polegar e o indicador, com este último apoiado no alto do domo, pressionou-o contra o ombro do cão. Quase imediatamente o animal deixou escapar um ganido abafado e recuou um passo, inclinando a cabeça, intrigado.

Beau tornou a guardar o disco no bolso no momento em que Tad retornava com a coleira com enforcador.

— Ele ganiu? — perguntou Tad, alcançando Beau.

— Acho que eu o cocei com força demais.

Tad abriu a porta da jaula. Durante um momento, o cão hesitou, olhando de um homem para o outro.

— Vamos lá, garotão — incitou Tad. — com esse tamanho todo, você não devia ser tão hesitante.

— Qual o nome dele? — perguntou Beau.

— King. Na verdade, é King Arthur. Mas aí já é um pouquinho demais. Já imaginou você gritando “King Arthur” no seu quintal?

— King é um bom nome — aprovou Beau.

Tad pôs a coleira em King e conduziu-o para fora da jaula. Beau estendeu a mão para acariciá-lo, mas King se retraiu.

— Vamos lá, King! — queixou-se Tad. — Essa é a sua grande chance. Não a desperdice.

— Está tudo bem — disse Beau. — Gosto dele. Acho mesmo que é perfeito.

— Quer dizer que vai levá-lo? — indagou Tad.

— Com certeza. — Beau tomou a coleira, em seguida abaixou-se e deu alguns tapinhas na cabeça de King. O cão lentamente ergueu a cauda e então começou a abaná-la.

— Não disponho de muito tempo — disse Cassy para Pitt. Eles percorriam o corredor, indo da Emergência para a enfermaria estudantil. — Tenho só uma hora de intervalo entre as aulas.

— Só vai levar um minuto — garantiu Pitt. — Só espero que não cheguemos tarde demais.

Por fim, chegaram ao quarto que Beau ocupara. Infelizmente, naquele momento, não podiam entrar. Dois homens carregavam a cama retorcida e desmontada.

— Olhe a cabeceira — disse Pitt.

— Que esquisito — comentou Cassy. — Parece mesmo que derreteu.

Assim que puderam, entraram. Outros homens se encontravam ali, retirando outras peças deformadas, inclusive os suportes de metal do forro do teto. Um deles estava substituindo as vidraças da janela.

— Alguém já tem alguma idéia do que aconteceu? — indagou Cassy.

— Nem uma pista — afirmou Pitt. — Depois da autópsia houve um breve alarme de que pudesse se tratar de radiação, mas o quarto e a área em torno foram testados exaustivamente e não havia qualquer sinal de radioatividade.

— Você acha que tem alguma conexão entre tudo isso e a forma como Beau está agindo? — indagou Cassy.

— É por isso que eu queria que você visse isso. Não consigo imaginar como, mas depois que você me disse que ele estava diferente, comecei a pensar a respeito. Afinal, ele ocupou este quarto na tarde do dia em que isso aconteceu.

— É estranho. — Cassy foi examinar o braço de metal retorcido que antes segurava a TV, tão bizarro quanto a cabeceira da cama. Quando estava prestes a voltar para junto de Pitt, seus olhos por acaso encontraram-se com os do homem que substituía as vidraças.

O trabalhador fitou Cassy por um instante, então seus olhos percorreram o corpo da jovem lascivamente, de modo muito semelhante ao que o Sr. Partridge a olhara na noite anterior.

Cassy aproximou-se de Pitt e puxou-o pela manga. Ele examinava o relógio na parede do quarto. Notara que os ponteiros haviam caído.

— Vamos embora daqui—chamou ela, indo direto para a porta. Já no corredor, Pitt a alcançou.

— Ei, devagar — pediu ele. Cassy reduziu o passo.

— Você viu o modo como aquele homem na janela me olhou? — perguntou ela.

— Não, não vi. O que foi que ele fez?

— Foi como o Sr. Partridge ontem à noite — explicou Cassy.

— O que está havendo com esses homens? É como se estivessem voltando ao comportamento de adolescentes.

— Os operários de obra não são famosos por agirem assim? — indagou Pitt.

 — Foi mais do que o assovio e o “que gracinha” de costume. — afirmou Cassy. — Aquilo foi como um estupro visual. Talvez eu não seja capaz de explicar isso a você. Mas uma mulher saberia do que estou falando. É desagradável, até mesmo assustador.

— Quer que eu vá lá dentro e tome satisfações? — ofereceu-se Pitt.

Cassy dirigiu-lhe um olhar do tipo “está louco?”.

— Não seja bobo — retrucou ela. Chegaram novamente à Emergência.

— Bem, preciso voltar para a universidade — disse Cassi.

— Obrigada por me convidar para vir até aqui, embora ao ver aquele quarto eu não tenha me sentido melhor em absoluto. Não sei o que pensar de tudo isso.

— Sabe de uma coisa? Hoje é o dia em que eu e Beau temos nosso jogo de basquete três por três. Vai ser uma boa oportunidade para eu perguntar a ele o que está havendo. — Não diga que fiz referência a sexo — pediu Cassy.

— Claro que não.vou usar o fato de ele ter matado aula para começar o assunto. Então vou dizer abertamente que ontem à noite durante o jantar e depois, quando dávamos uma volta, não era o Beau que conheço. A diferença é sutil, mas real.

— Vai me contar o que ele disser? — perguntou Cassy.

— Com certeza — garantiu Pitt.

A sala dos policiais no departamento de polícia estava sempre agitada, principalmente em torno do meio-dia. Jesse Kemper porém, estava acostumado àquela agitação e podia facilmente ignorá-la. Sua mesa ficava nos fundos da sala, encostada à parede de vidro que separava a sala do capitão.

Jesse estava lendo o relatório preliminar da autópsia que o Dr Curtis Lapree enviara. E não estava gostando nem um pouco.

— O doutor ainda insiste na idéia de envenenamento por radiação — gritou Jesse para Vince, que estava junto à cafeteira. Vince bebia uma média de quinze xícaras de café por dia.

— Você o informou de que não havia nenhum indício de radiação no local? — indagou Vince.

— É claro que sim — respondeu Jesse, irritado. Jogou a folha única do relatório sobre a mesa e apanhou a fotografia de Charlie Arnold que mostrava o buraco em sua mão. Jesse coçava o alto da cabeça, onde o cabelo começava a escassear, enquanto estudava a foto. Era uma das coisas mais estranhas que já vira.

Vince aproximou-se da mesa de Jesse. A colherzinha tilintava de encontro à lateral da xícara, enquanto ele mexia.

— Esse é o caso mais estranho com que já me deparei — queixou-se Jesse. — Fico lembrando do aspecto daquele quarto e me perguntando o que pode ter acontecido.

— Alguma notícia de parte daquela doutora sobre os cientistas que iriam examinar o local? — perguntou Vince.

— Ah, sim. Ela ligou e disse que ninguém teve qualquer idéia brilhante. Chegou a dizer que um dos físicos descobriu que o metal do quarto estava magnetizado.

— E o que isso significa?

— Não muito para mim — admitiu Jesse. — Liguei para o Dr. Lapree e contei a ele, que disse que um raio pode fazer isso.

— Mas todos concordam que não houve raios naquela noite — afirmou Vince.

— Exatamente. Assim, voltamos à estaca zero.

O telefone na mesa de Jesse tocou. Ele o ignorou e então Vince atendeu.

Jesse rodou na cadeira giratória, atirando a foto da mão de Charlie por sobre o ombro. A fotografia pousou sobre a mesa, em meio à desordem de papéis. Jesse estava exasperado. Ainda não sabia se estava lidando com um crime ou um ato da natureza. Alheio, ouviu Vince, ao telefone, dizer “certo” repetidamente. Por fim, seu parceiro concluiu, dizendo:

— Certo, eu digo a ele. Obrigado por ligar, doutor.

Antes que Jesse pudesse tornar a girar a cadeira, seus olhos avistaram dois policiais uniformizados saindo da sala do capitão. O que atraíra sua atenção era que ambos tinham uma aparência horrível, quase tão pálidos quanto Charlie Arnold na fotografia que ele acabara de atirar por sobre o ombro. Os policiais tossiam e espirravam, como se assolados pela peste.

Jesse era um tanto hipocondríaco e irritava-o o fato de que as pessoas fossem irresponsáveis o bastante para sair por aí es palhando germes por toda parte. Na opinião de Jesse, aqueles homens deveriam ter ficado em casa.

Um “ai!” abafado veio da sala do capitão e Jesse desviou a atenção dos dois policiais doentes. Através do vidro, Jesse pôde ver o capitão chupando um dos dedos. Na outra mão, segurava com cuidado um pequeno disco preto.

— Jesse, você está ouvindo ou não? — insistiu Vince. Jesse deu meia-volta.

— Me desculpe, o que você estava mesmo dizendo?

— Disse que era o Dr. Lapree no telefone — repetiu Vince. — Houve mais uma complicação no caso de Charlie Arnold. O corpo desapareceu.

— Você está brincando!

— Não. O doutor contou que decidiu retirar uma amostra da medula óssea e, quando abriu a geladeira onde fora colocado o corpo, este havia desaparecido.

— Que merda! — praguejou Jesse, pondo-se de pé. — É melhor irmos até lá. Isso está ficando muito esquisito.

Pitt vestiu o uniforme de basquete e foi do dormitório para a quadra de bicicleta. Ele e Beau jogavam regularmente na liga de três por três da universidade. A competição era sempre boa. Muitos dos jogadores poderiam ter participado de torneios intercolegiais, se tivesse existido a motivação.

Como era de hábito, Pitt chegou cedo, a fim de praticar os arremessos. Sentia que levava mais tempo do que os outros para aquecer. Para sua surpresa, Beau já estava lá.

Beau também estava de uniforme, porém encontrava-se na lateral da quadra, atrás de uma grade, conversando absortamente com dois homens e uma mulher. O que era surpreendente era que as três pessoas pareciam profissionais, já quase chegando aos quarenta. Todos os três vestiam-se de modo formal, como executivos. Um dos homens carregava uma elegante valise de couro.

Pitt apanhou uma bola e começou a arremessar. Se Beau percebeu sua presença, não deu qualquer sinal disso. Após alguns minutos, mais uma coisa naquela situação pareceu surpreender Pitt. Era somente Beau quem falava! Os outros apenas ouviam, ocasionalmente demonstrando concordânciacom gestos de cabeça.

Os outros jogadores começaram a chegar, inclusive Tony Ciccone, o terceiro membro do time de Pitt e Beau. Foi só depois de todos terem chegado, inclusive o time adversário, e se aquecido, que Beau concluiu sua conversa com os três executivos e se aproximou de Pitt, que agora fazia alguns exercícios de alongamento.

— Ei, homem, que bom vê-lo! — cumprimentou Beau. — Fiquei com medo de que, depois daquela maratona na Emergência, você não conseguisse vir hoje.

Pitt aprumou-se e fez um arremesso.

— Da forma como você estava se sentindo anteontem, deveria estar surpreso de você estar aqui — disse ele.

Beau deu uma risada.

— Parece que faz séculos que isso aconteceu. Agora me sinto ótimo. Para dizer a verdade, nunca me senti melhor, e vamos arrasar com esses maricas.

Os outros três jogadores continuavam a fazer o aquecimento na outra cesta. Tony amarrava os cadarços de seus tênis de cano longo.

— Se eu fosse você, não seria tão pretensioso assim — disse Pitt, apertando os olhos à luz do sol. — Está vendo aquele sujeito musculoso de calção roxo? Acredite ou não, o nome dele é Rocko e ele é um valentão e, ainda por cima, um bom arremessador.

— Isso não é problema — rebateu Beau, tomando a bola de Pitt e lançando-a na direção da cesta. A bola entrou com um ruído brusco, sem tocar em nada, a não ser na rede.

Pitt ficou impressionado. Eles estavam a uns bons nove metros da cesta.

— E o melhor de tudo: temos uma torcida — afirmou Beau. Juntando a ponta dos dedos polegar e indicador e levando-os aos lábios franzidos, ele soltou um assovio estridente. A cerca de trinta metros dali, um enorme cão castanho-claro ergueu-se da sombra onde estivera deitado e dirigiu-se à quadra, parando na lateral desta. Abaixou o corpo e apoiou a cabeça nas patas dianteiras.

Beau acocorou-se e lhe deu uma série de tapinhas no alto da cabeça. O cão abanou a cauda rapidamente e então baixou-a.

— De quem é esse cachorro? — perguntou Pitt. — Se é que se pode chamar isso de cachorro. Parece mais um pequeno pônei.

— É meu — respondeu Beau. — O nome dele é King.

— Você arranjou um cachorro? — Pitt estava incrédulo.

— Sim — assentiu Beau. — Senti falta de uma companhia canina, então fui ao abrigo de animais hoje de manhã e lá estava ele, esperando por mim.

— Faz uma semana que você disse que não achava justo ter cachorros numa cidade grande — afirmou Pitt.

— Mudei de idéia. Assim que o vi, soube que era o cachorro dos meus sonhos.

— Cassy já sabe?

— Ainda não — disse Beau, coçando King vigorosamente atrás das orelhas. — Não vai ser uma surpresa para ela?

— Isso é um eufemismo — replicou Pitt, revirando os olhos — Principalmente em se tratando de um cachorro desse tamanho. Mas o que há de errado com ele? Está doente? Parece catárgico e está com os olhos vermelhos.

— Ah, ele só está tendo dificuldades para se ajustar — disse Beau. —Acabou de ser solto. Só está comigo há algumas horas

— Ele está salivando — observou Pitt. — Não acha que esteja com raiva, acha?

— Não há a menor possibilidade — afirmou Beau. — Disso eu tenho certeza. — Beau segurou a enorme cabeça do cão entre suas mãos. — Vamos lá, King. A essa altura já devia estar se sentindo melhor. Precisamos de você para torcer por nós.

Beau se levantou, ainda olhando para seu novo companheiro.

— Ele pode estar letárgico, mas é um cão bonito, não concorda?

— Creio que sim — respondeu Pitt. — Mas ouça, Beau, arrumar um cão, principalmente enorme como esse, é um ato extremamente impulsivo e, conhecendo você como conheço, sou obrigado a dizer que é também muito inesperado. Para dizer a verdade, creio que você vem fazendo várias coisas inesperadas ultimamente. Estou preocupado e acho que devíamos ter uma conversa.

— Sobre o quê?

— Sobre você. O modo como está agindo, faltando às aulas, por exemplo. Parece que desde que você teve aquela gripe...

Antes que Pitt concluísse, Rocko, que se aproximara dele por trás, lhe deu um tapa amigável no ombro que o mandou cambaleando vários passos à frente.

— Vocês babacas vão jogar ou vão desistir? — zombou Rocko. — Faz meia hora que eu, Pauli e Duff estamos prontos para liquidar com vocês.

— Acho melhor conversarmos mais tarde. — Beau sussurrou para Pitt. — Os aborígenes estão ficando indóceis.

O jogo começou. Como Pitt adivinhara, Rocko dominava as jogadas com suas táticas intimidadoras. Para consternação de Pitt, o fardo de marcá-lo caíra sobre seus ombros, pois Rocko escolhera fazer sua marcação. Todas as vezes que Rocko recebia a bola, fazia questão de dar uma trombada em Pitt antes de recuar para encaixar um arremesso.

Na metade do jogo, com Rocko e companhia na frente, Pitt pediu falta depois que Rocko, propositadamente, lhe aplicara uma cotovelada no estômago a fim de pegar um rebote.

— O quê? — perguntou Rocko, irritado, jogando a bola com violência no chão, o que fez com que ela subisse uns três metros no ar. — Esse cagão está pedindo uma falta de ataque? De jeito nenhum. A bola é nossa! Não vou mesmo aceitar isso.

— É meu direito — insistiu Pitt. — Eu afirmo que você cometeu a falta em mim. Na verdade, já é a segunda vez que aplica o mesmo truquezinho barato.

Rocko deu um passo na direção de Pitt e propositadamente empurrou-o com o peito, fazendo com que o outro recuasse um passo.

— Truquezinho barato, é? — rosnou Rocko. — Muito bem, valentão, chega de conversa. Vamos ver como o bebê chorão se sai no braço. Vamos lá! Estou esperando.

— Com licença — disse Beau,com afabilidade, interpondo-se entre Pitt e Rocko. — Não creio que essa questão valha uma briga. Vou propor uma coisa: Nós cedemos a bola, mas vamos trocar a marcação. Acho que vou ser seu marcador dessa vez, Rocko, e você pode ser o meu.

Rocko deu uma risada breve, enquanto olhava Beau de cima a baixo. Embora ambos tivessem cerca de 1,80m, Rocko tinha uns dez quilos a mais do que Beau.

— Você não se importa, não é? — perguntou Beau a Pitt.

— De modo algum — respondeu Pitt.

Assim combinados, o jogo recomeçou. O rosto duro e de lábios finos de Rocko exibia um leve sorriso de antecipação. Da próxima vez em que pegou a bola, ele partiu diretamente para cima de Beau,com o movimento rápido das pesadas coxas.

Com excepcional coordenação, Beau conseguiu desviar-se no instante em que Rocko esperava o contato. O resultado foi quase cômico. Esperando a colisão, Rocko tinha o tronco bem à frente de seu centro de gravidade. Como o contato não ocorreu, ele esparramou-se no chão da quadra de asfalto.

Todos, inclusive Pitt, encolheram-se, enquanto Rocko deslizava sobre o asfalto, sofrendo várias escoriações extensas, que foram generosamente salpicadas com fragmentos de cascalho.

Num instante Beau estava ao lado do homem caído com a mão estendida.

— Lamento, Rocko — disse Beau. — Deixe-me ajudá-lo. Rocko fuzilou Beau com o olhar, ignorando seu gesto de ajuda, e levantou-se sozinho.

— Ah! — exclamou Beau com uma careta de simpatia. — Você conseguiu alguns arranhões feios. Acho que é melhor terminarmos o jogo para que possa ir para a enfermaria limpar isso aí.

— Vá para o inferno! — replicou Rocko. — Me dê essa bola. Vamos terminar o jogo.

— Você é quem sabe — disse Beau. — Mas a bola é nossa. Você a perdeu com seu tombinho.

Pitt estivera observando essa troca de palavras com preocupação crescente. Beau não parecia perceber o valentão que Rocko era e o estava provocando. Pitt temia que a tarde terminasse em confusão.

Quando o jogo reiniciou, Rocko continuou a tentar usar suas táticas violentas, mas, em todas as vezes, Beau conseguiu evitar o contato. Rocko caiu várias outras vezes, o que obviamente o irritou; e quanto mais raiva ele sentia, mais facilidade Beau tinha em lidar com ele.

No ataque, Beau se transformara num dínamo. Quando recebia a bola, marcava livremente, apesar dos esforços de Rocko para detê-lo. Em diversos momentos, Beau dera uma volta em torno de Rocko com tamanha arrancada de velocidade que o outro se viu deixado para trás, a confusão estampada em seu rosto. No momento em que Beau enfiou a bola, fazendo a última cesta e ganhando o jogo, o rosto de Rocko estava vermelho de raiva.

— Ei, obrigado por nos deixar vencer — gritou Beau para Rocko. Ele estendeu a mão, mas Rocko ignorou, retirando-se com os companheiros para a lateral, a fim de se secaremcom as toalhas.

Beau, Pitt e Tony dirigiram-se para onde King se encontrava deitado na grama. O cão parecia ainda mais letárgico do que antes do jogo.

— Eu lhe disse que o King ia ajudar — disse Beau.

Tony abriu alguns refrigerantes. Pitt ficou particularmente feliz em ingerir algum líquido e, apesar da respiração ofegante, bebeu uma latinha em tempo recorde. Tony entregou-lhe mais uma.

Pitt estava prestes a começar a segunda lata quando percebeu que Beau fitava casualmente duas estudantes atraentes que vinham pela pista de corrida. As garotas usavam uma minúscula roupa de corrida.

— Belas pernas — comentou Beau.

Foi nesse momento que Pitt notou que o amigo não estava sem fôlego como ele e Tony. Na verdade, Beau não estava nem mesmo suando e ainda não tomara um só gole.

Do canto do olho, Beau viu que Pitt o fitava.

— Algum problema? — perguntou Beau.

— Você não está sem ar como nós — respondeu Pitt.

— Acho que fiquei fazendo cera na quadra, enquanto vocês faziam todo o trabalho.

— Oh, não. Lá vem o brutamontes — avisou Tony. Tanto Beau quanto Pitt se voltaram para ver Rocko atravessando a quadra, vindo em sua direção.

— Não o provoque — sussurrou Pitt, energicamente.

— Quem, eu? — perguntou Beau, inocentemente.

— Queremos uma revanche — grunhiu Rocko quando alcançou o grupo.

— Para mim basta por hoje — disse Pitt. — Estou fora.

— Eu também — acrescentou Tony.

— Então, acho que é isso — concluiu Beau,com um sorriso. — Não seria muito justo se eu jogasse contra vocês três.

Rocko fitou Beau por um instante.

— Você é muito arrogante para um almofadinha.

— Eu não disse que ganharia — observou Beau. — Embora tenha certeza de que não seria muito difícil, a julgar pela maneira como vocês estavam jogando no final.

— Cara, você está procurando — rosnou Rocko.

— É melhor você não levantar a voz — replicou Beau. — Meu cachorro está dormindo bem ao seu lado e está um tanto indisposto.

Rocko baixou os olhos para King, dirigindo-os então novamente para Beau.

— Não dou a mínima para esse saco de merda que é o seu cachorro

— Espere um pouco — disse Beau, pondo-se de pé. — Não estou entendendo muito bem. Você está chamando o meu cachorro de “saco de merda”?

— Pior do que isso — respondeu Rocko. — Acho que ele é uma p...

Com uma velocidade que espantou a todos, Beau estendeu a mão e agarrou Rocko pela garganta. Este também reagiu com rapidez, fechando a mão esquerda e disparando um poderoso gancho.

Beau viu o golpe se aproximando, mas o ignorou. Este o atingiu no lado do rosto, bem à frente da orelha direita,com um ruído seco e firme que fez Pitt estremecer.

Rocko sentiu uma pontada de dor subir pelos nós de seus dedos depois de bater contra o malar de Beau. O soco fora forte e atingira o alvo, e no entanto a expressão facial de Beau não se alterou. Era como se ele não tivesse sentido o golpe.

Rocko estava perplexo com a aparente ineficácia do que até aqui fora sua melhor arma. As pessoas nunca esperavam que um gancho de esquerda poderoso fosse o primeiro golpe numa luta. Aquilo sempre funcionara e, na maioria das vezes, punha fim à luta com Beau, porém, era diferente. A única mudança na aparência dele foi que, depois do soco, suas pupilas se dilataram. Rocko chegou a pensar tê-las visto brilhar.

O outro problema que Rocko estava enfrentando era a falta de oxigênio. Seu rosto foi ficando mais vermelho e os olhos começaram a se esbugalhar. Ele tentou livrar-se do aperto de Beau, contorcendo-se, mas não conseguiu. Era como se estivesse preso por um par de tenazes de ferro.

— Queira me perdoar — disse Beau, com calma —, mas acho que você deve um pedido de desculpas ao meu cachorro.

Rocko agarrou o braço de Beau com ambas as mãos, mas ainda assim não conseguiu livrar seu pescoço do aperto de Beau. Tudo que conseguia fazer era gorgolejar.

— Não estou ouvindo você — disse Beau.

Pitt, que momentos antes se preocupava com Beau, agora estava preocupado com Rocko. O rosto do rapaz estava ficando azulado.

— Ele não está conseguindo respirar — disse Pitt.

— Tem razão — concordou Beau, soltando o pescoço de Rocko e então agarrando um punhado de cabelo do rapaz. Exercendo força para cima, obrigou Rocko a ficar na ponta dos pés. Rocko ainda se agarrava ao braço de Beau com ambas as mãos, mas era incapaz de se libertar.

— Estou esperando o pedido de desculpas — afirmou Beau, aumentando a tensão aplicada ao cabelo de Rocko.

— Sinto muito sobre seu cachorro.—Rocko conseguiu dizer.

— Não diga isso a mim — replicou Beau, calmamente. — Diga ao cachorro.

Pitt estava mudo. Por um segundo, quase pareceu que Beau estivesse suspendendo Rocko no ar.

— Me desculpe, cachorro — gemeu Rocko.

— O nome dele é King — disse Beau.

— Me desculpe, King — repetiu Rocko.

Beau soltou-o. As mãos de Rocko voaram para o alto de sua cabeça. O couro cabeludo queimava com um olhar onde se combinavam raiva, dor e humilhação, Rocko foi se juntar aos seus perplexos amigos.

Beau limpou as mãos.

— Argh! — disse ele. — Me pergunto que tipo de grude ele usa no cabelo.

Pitt e Tony estavam tão perplexos quanto os companheiros de Rocko e fitavam Beau, boquiabertos. Este percebeu suas expressões ao se abaixar para pegar a ponta da coleira de King.

— O que há com vocês? — perguntou ele.

— Como foi que você fez aquilo? — indagou Pitt.

— Do que você está falando? — devolveu Beau.

— Como você conseguiu dominar Rocko com tanta facilidade? — insistiu Pitt.

Beau deu um tapinha na lateral da cabeça.

— Com inteligência — explicou. — O pobrezinho do Rocko usa apenas os músculos. Estes podem ser úteis, mas sua força empalidece comparada à inteligência. É por isso que os humanos dobraram este planeta. Em termos de seleção natural, não há nada que se assemelhe.

De repente, Beau olhou do outro lado do gramado, na direção da biblioteca.

— Oh-oh. Parece que vou ter de deixá-los — disse.

Pitt seguiu o seu olhar. A cerca de cem metros dali, vindo em sua direção, via-se outro grupo de executivos. Dessa vez, eram seis: quatro homens e duas mulheres. Todos carregavam valises.

Beau voltou-se para seus companheiros de time.

— Um excelente jogo, caras — disse, cumprimentando a ambos com uma batida da mão erguida espalmada. Em seguida, dirigiu-se a Pitt: — Vamos ter de deixar a conversa que você sugeriu para uma outra hora.

Em resposta a um puxão, King levantou-se com relutância e seguiu seu dono, atravessando o gramado, para a conferência improvisada.

Pitt olhou para Tony. Este deu de ombros.

— Nunca soube que Beau fosse tão forte — comentou.

— Como um corpo pode desaparecer, diabos? — perguntou Jesse ao Dr. Curtis Lapree. — Isso já aconteceu antes? —Jesse e Vince haviam ido para o necrotério e ladeavam o compartimento refrigerado vazio, onde antes estivera o corpo de Charlie Arnold.

— Infelizmente, sim — admitiu o Dr. Lapree. — Não com freqüência, graças a Deus, mas já aconteceu. A última vez foi há pouco mais de um ano. Foi o corpo de uma jovem, um caso de suicídio.

— O corpo foi encontrado depois? — indagou Jesse.

— Não — respondeu o Dr. Lapree.

— Isso foi registrado na polícia? — quis saber Jesse.

— Para falar a verdade, não sei. Quem cuidou do caso foi o diretor do departamento de saúde, que tratou diretamente com o delegado. Foi um constrangimento geral e portanto procuraram manter o maior sigilo possível.

— O que vocês fizeram desta vez? — perguntou Jesse.

— A mesma coisa — afirmou o Dr. Lapree. — Passei o caso ao legista-chefe, que, por sua vez, o passou ao diretor do departamento de saúde. Antes de fazer qualquer coisa, é melhor vocês consultarem seus chefes. É provável que eu nem devesse ter-lhes contado.

— Entendo — disse Jesse. — E vou respeitar sua confiança. Mas o senhor tem alguma suspeita de por que alguém roubaria o corpo?

— Como médico-legista, sei melhor do que a maioria das pessoas que o mundo está cheio de gente estranha — afirmou o Dr. Lapree. — Existe gente por aí que gosta de cadáveres.

— O senhor acha que neste caso foi esse o motivo? — indagou Jesse.

— Não tenho a menor idéia — admitiu o Dr. Lapree.

— Receamos que o desaparecimento do corpo reforce a idéia de que a morte do homem foi homicídio — disse Jesse.

— Como se o autor do crime não quisesse deixar uma pista — acrescentou Vince.

— Compreendo — afirmou o médico. — Mas o problema com essa linha de raciocínio é que a autópsia já foi feita.

— Sim, mas o senhor ia recolher mais tecido — lembrou Jesse.

— É verdade. Esqueci de recolher uma amostra da medula óssea. Mas isso era só para reforçar minha teoria de um caso agudo de radiação intensa.

— Se o motivo por que o corpo foi levado era para evitar que o senhor obtivesse essa última amostra, então parece tratar-se de um trabalho interno — observou Jesse.

— Estamos cientes disso — concordou o Dr. Lapree. — E revendo todos que tiveram acesso ao corpo.

Jesse suspirou.

— Que caso! — gemeu ele. — A idéia de me aposentar me parece cada vez melhor.

— O senhor nos informe se souber de alguma coisa — pediu Vince.

— Com toda a certeza — garantiu o Dr. Lapree.

Jonathan trancou seu armário no ginásio de esportes. Naquele semestre, ele optara pela educação física como a última aula do dia, e odiara a escolha. Preferia muitíssimo exercitar-se no meio do dia, como um oásis entre as disciplinas acadêmicas.

Deixando a ala do ginásio pela porta lateral, começou a atravessar o pátio. À distância, podia ver um grupo de alunos reunidos em torno do mastro da bandeira. À medida que se aproximava, pôde ouvi-los dando vivas e gritando. E, quando chegou à base do mastro, percebeu o que estava se passando. Um aluno do primeiro ano da escola secundária, a quem Jonathan conhecia superficialmente, estava subindo pela haste. Seu nome era jason Holbrook. Jonathan o conhecia porque fizera parte do time de basquete do primeiro ano.

— O que está acontecendo? — perguntou Jonathan a um de seus colegas de turma, cujo nome era Jeff e que estava parado ali, olhando.

— Ricky Javetz e sua turma encontraram um novo calouro para atormentar — disse Jeff. — O garoto tem de tocar a águia lá em cima ou não vai ser aceito na gangue.

Jonathan protegeu os olhos contra o sol brilhante da tarde.

— Esse mastro é muito alto — observou. — Deve ter uns quinze, dezoito metros, ou mais.

— E é bem fininho na parte mais alta — comentou Jeff. — Fico feliz de não estar lá em cima.

Jonathan olhou à sua volta. Estava surpreso por nenhum professor ter-se materializado para pôr um ponto final naquela situação absurda. Nesse momento, viu Cassy Winthrope surgir da ala direita do prédio da escola. Jonathan cutucou Jeff.

— Lá vem aquela estagiária sexy.

Jeff virou-se para olhar. Cassy estava vestida, como de hábito,com um vestido simples de algodão bem soltinho. Quando o sol o atravessava, os garotos podiam ver a silhueta de seu corpo, inclusive o nítido contorno da calcinha cavada.

— Uau! — exclamou Jeff. — Que avião! Hipnotizados, os garotos observaram Cassy misturar-se à multidão e então reaparecer na base do mastro. Ela jogou no chão alguns livros que carregava, juntou as mãos, levando-as à boca, e gritou para que Jason descesse.

A multidão vaiou a interferência de Cassy.

A quase três quartos do caminho até a águia, Jason hesitou. O mastro estava começando a oscilar. Parecia mais alto do que ele esperara.

Cassy olhou ao redor. A aglomeração de alunos se fechara em torno dela. A maior parte deles estava no último ano e era significativamente maior do que ela. Passou por sua mente o fato de que, em todos os Estados Unidos, professores eram diariamente atacados nas escolas.

Cassy tornou a olhar para o alto do mastro da bandeira. De sua base, a oscilação era visível.

— Você me ouviu? — gritou Cassy novamente, ignorando a multidão, as mãos apoiadas nos quadris. — Desça já daí!

Cassy sentiu que alguém lhe agarrava o braço e deu um pulo. Surpresa, ela se viu fitando o rosto sorridente e malicioso do Sr. Ed Partridge.

— Srta. Winthrope, a senhorita está adorável hoje. Cassy soltou os dedos de Ed de seu braço.

— Tem um aluno a três quartos de altura do mastro — disse ela.

— Eu percebi — replicou Ed, dando uma risadinha enquanto inclinava a cabeça para trás e olhava o aluno agora assustado. — Aposto como ele consegue.

— Não creio que esse tipo de atividade deva ser tolerado — Cassy não conseguiu impedir-se de dizer.

— Ah, por que não? — perguntou Ed. Em seguida, também unindo as mãos e levando-as à boca, gritou para Jason: — Vamos lá, garoto, não desista agora. Você está quase lá.

Jason olhou para cima. Tinha ainda uns seis metros pela frente. Ouvindo a multidão incentivá-lo, recomeçou a subir. O problema era que suas mãos transpiravam e estavam úmidas. A cada avanço, ele descia metade da distância avançada.

— Sr. Partridge — começou Cassy. — Isso não é...

— Fique calma, Srta. Winthrope — disse Ed. — Precisamos deixar nossos alunos se expressarem. Além disso, é divertido ver que um garoto pré-pubescente como Jason é capaz de realizar esse tipo de feito.

Cassy ergueu os olhos. A oscilação era agora mais acentuada. Ela estremeceu ao pensar o que aconteceria se o menino caísse.

Jason, porém, não caiu. Beneficiado pelo apoio da multidão, ele conseguiu chegar ao topo, tocou a águia e começou a descida.

Quando chegou ao solo, o Sr. Partridge foi o primeiro a parabenizá-lo.

— Muito bem, rapaz — disse ele, dando um tapinha nas costas de Jason. — Não achei que fosse conseguir. — Em seguida, o Sr. Partridge olhou para a multidão. — OK, pessoal, hora de se dispersar.

Cassy não foi embora de imediato. Ficou observando o Sr. Partridge acompanhar vários alunos em direção à ala central do prédio, mantendo uma animada conversa com eles. Cassy estava confusa. Encorajar um ato daquele tipo parecia irresponsável e certamente despropositado para o caráter do Sr. Partridge.

— Acho que estes livros são seus — disse uma voz. Cassy voltou-se e deparou-se com Jonathan Sellers estendendo-lhe os livros. Apanhou-os e agradeceu.

— Não há de quê — disse o garoto, olhando na direção do Sr. Partridge, que ia aos poucos desaparecendo. — De repente, ele se transformou num outro homem — afirmou Jonathan, espelhando os pensamentos de Cassy.

— Exatamente como os meus pais — disse uma outra voz.

Jonathan virou-se e viu Candee. Ele não sabia que ela se encontrava no meio do grupo de alunos desde o início. Tropeçando nas palavras, ele a apresentou a Cassy e, ao fazê-lo, observou que os olhos da namorada estavam avermelhados, com um aspecto insone.

— Você está bem? — perguntou ele. Candee assentiu.

— Estou bem, mas não dormi muito essa noite. — Ela lançou um olhar constrangido a Cassy, inibida em falar diante de uma estranha. Ao mesmo tempo, tinha uma grande urgência em desabafar. Como filha única, não pudera falar com ninguém, e estava preocupada.

— Por que não conseguiu dormir? — indagou Jonathan.

— Porque meus pais estão agindo de maneira muito estranha — respondeu Candee. — É como se eu não os conhecesse. Eles estão mudados.

— O que você quer dizer com “mudados”? — perguntou Cassy, pensando imediatamente em Beau.

— Eles estão diferentes — afirmou Candee. — Não sei como explicar, mas estão diferentes. Como o velho Sr. Partridge.

— Há quanto tempo percebeu isso? — quis saber Cassy. Estava atônita; o que estaria acontecendo com as pessoas?

— Foi só ontem, acho — disse Candee.

 

16:15

— Quer fenitoína? — gritou para a Dra. Sheila Miller o Dr. Draper, um dos residentes mais antigos no programa de medicina de emergência do Centro Médico da Universidade.

— Não! — respondeu imediatamente Sheila. — Não quero me arriscar a provocar uma arritmia. Me dê dez miligramas de Valium intravenoso, agora que a cânula está no lugar.

A ambulância municipal telefonara antes avisando que estava trazendo um diabético de 42 anos, no auge de uma crise convulsiva grave. Considerando o que acontecera com a mulher diabética, também com convulsões, no dia anterior, toda a equipe da Emergência, incluindo a Dra. Sheila Miller, estava preparada.

Assim que chegou, o homem foi levado diretamente para um dos reservados, onde a desobstrução de suas vias respiratórias recebera prioridade. Em seguida, uma amostra de sangue foi retirada de imediato. Simultaneamente, os monitores foram acoplados, seguidos por um bolo intravenoso de glicose.

Como as convulsões prosseguissem, outros medicamentos foram necessários. Foi quando Sheila se decidiu pelo Valium.

— Valium administrado — informou Ron Severide, um dos enfermeiros da tarde.

Sheila estava observando o monitor, lembrando-se do que acontecera com a mulher no dia anterior; não queria que aquele paciente tivesse uma parada cardíaca.

— Qual o nome dele? — indagou Sheila, referindo-se ao paciente. A essa altura, o homem já estava na Emergência fazia dez minutos.

— Louis Devereau — informou Ron.

— Outros registros médicos além do diabetes? — perguntou Sheila. — Algum histórico cardíaco?

— Nada que saibamos — afirmou o Dr. Draper.

— Ótimo. — Sheila começou a acalmar-se. O mesmo se deu com o paciente. Após mais alguns espasmos, as convulsões cessaram.

— Parece bom — observou Ron.

Assim que essa avaliação positiva escapou dos lábios de Ron, os espasmos do paciente recomeçaram.

— É impressionante — disse o Dr. Draper. — Ele continua com as convulsões mesmo com o Valium e a glicose. O que está havendo aqui?

Sheila não respondeu. Estava por demais ocupada observando o monitor cardíaco. Houve uns dois batimentos ectópicos. Ela estava prestes a pedir um pouco de lidocaína quando o paciente sofreu a parada.

— Não faça isso! — gritou Sheila, enquanto se juntava aos outros num esforço para ressuscitá-lo.

De uma maneira estranhamente semelhante à experiência com a mulher um dia antes, Louis Devereau passou da fibrilação à parada cardíaca, a despeito de tudo que a equipe da Emergência fez. Para grande mortificação de todos, foram obrigados a admitir a derrota mais uma vez, e o paciente foi declarado morto.

Sentindo raiva diante da ineficácia de seus esforços, Sheila arrancou as luvas das mãos e atirou-as com violência no recipiente próprio. O Dr. Draper fez o mesmo. Juntos, voltaram para a recepção.

— Ligue para o médico-legista — ordenou Sheila. — Deixe claro para ele a necessidade de tentarmos descobrir o que provocou essa morte. Isso não pode continuar. Esses dois pacientes eram relativamente jovens.

— Ambos eram dependentes de insulina — observou o Dr. Draper. — E ambos tinham diabetes de longa data.

Chegaram ao amplo balcão da recepção. Via-se muita atividade por ali.

— E desde quando o diabetes se tornou uma doença fatal em pessoas de meia-idade? — indagou Sheila.

— Boa pergunta — replicou o Dr. Draper.

Sheila percorreu a sala de espera com os olhos e suas sobrancelhas se ergueram. Havia tanta gente ali que agora as pessoas precisavam esperar em pé. Dez minutos antes, o movimento era normal para aquela hora do dia. Ela virou-se para perguntar a um dos atendentes sentados atrás do balcão se havia alguma explicação para aquela súbita multidão e viu-se frente a frente com Pitt Henderson.

— Você nunca vai para casa? — perguntou ela. — Cheryl Watkins me contou que você voltou poucas horas depois de um plantão de vinte e quatro horas.

— Estou aqui para aprender — disse Pitt. Era uma resposta pensada. Ele a vira aproximar-se do balcão.

— Bem, pelo amor de Deus, não vá ter uma estafa — aconselhou Sheila. — Você ainda nem mesmo começou a faculdade de medicina.

— Acabei de saber que o diabético que deu entrada há pouco faleceu — disse Pitt. — Deve ser muito difícil para vocês lidarem com isso.

Sheila olhou para aquele estudante. Ele a estava surpreendendo. Na manhã anterior, o rapaz a deixara irritada quando derramara café em seu braço num quarto onde ele não tinha nada a fazer. Agora demonstrava uma sensibilidade incomum para alguém de sua idade. Ele também era atraente, com os cabelos negros como carvão e olhos escuros e límpidos. Num fugaz instante, ela se perguntou como reagiria se ele fosse vinte anos mais velho.

— Tenho uma coisa aqui que a senhora vai querer ver — disse Pitt, entregando-lhe uma folha impressa no laboratório.

Sheila apanhou o papel e o olhou.

— O que é isto? — perguntou.

— É o resultado do exame de sangue da paciente diabética que morreu ontem — explicou Pitt. — Pensei que a senhora pudesse se interessar porque todos os números estão inteiramente normais. Inclusive a taxa de açúcar.

Sheila examinou a lista. Pitt estava certo.

— Vai ser interessante ver os números do paciente de hoje — afirmou Pitt. — Pelo que vi, não me ocorre nenhum motivo por que a primeira paciente devesse ter tido uma crise convulsiva.

Sheila agora estava impressionada. Nenhum dos outros alunos que haviam passado pelo programa de trabalho administrativo no hospital demonstrara aquele grau de interesse.

— Conto com você para me trazer os resultados do exame de sangue do paciente de hoje — disse ela.

— Será um prazer — replicou Pitt.

— Agora me diga uma coisa — começou Sheila —, você tem alguma idéia do porquê de tantas pessoas assim na sala de espera?

— Acho que sim. Provavelmente porque a maioria delas deixou para vir depois do trabalho. Estão todas se queixando de gripe. Se verificarmos os registros de ontem e hoje, veremos que estamos recebendo um número cada vez maior de pessoas com os mesmos sintomas. Acho que é alguma coisa que a senhora deveria investigar.

— Mas estamos mesmo na época da gripe. — Sheila estava ainda mais impressionada. Pitt estava de fato pensando.

— Pode ser época da gripe, mas esse surto parece diferente — afirmou Pitt. — Verifiquei com o laboratório e eles ainda não tiveram resultado positivo para gripe em nenhum dos testes realizados.

— Às vezes eles precisam cultivar o vírus da gripe numa cultura tecidual antes de obterem um resultado positivo. Isso pode levar alguns dias.

— É, li sobre isso — concordou Pitt. — Mas, neste caso, acho que há alguma coisa estranha porque todos esses pacientes estão apresentando sintomas respiratórios, e portanto o vírus deveria estar presente em alto título. Pelo menos, era isso o que dizia no texto que li.

— Sou obrigada a dizer que estou impressionada com sua iniciativa — observou Sheila.

— Bem, a situação me preocupa — disse Pitt. — E se for uma cepa nova de vírus? Quem sabe uma doença nova? Meu melhor amigo teve isso há dois dias e ficou muito mal, mas apenas por algumas horas. Isso não me parece a velha gripe com que estamos acostumados. Além disso, depois que se recuperou, ele não é mais o mesmo. Isto é, está saudável, mas vem agindo de maneira estranha.

— O que você quer dizer com estranha? — indagou Sheila, começando a considerar a possibilidade de uma encefalite virótica, uma rara complicação da gripe.

— Como uma pessoa diferente — explicou Pitt. — Bem, não totalmente diferente, só um pouco. O mesmo parece ter acontecido com o diretor da escola secundária.

— Você se refere a uma leve alteração na personalidade? — perguntou Sheila.

— É, acho que se pode dizer isso.

Pitt receava falar-lhe sobre o notável aumento da força e velocidade de Beau e sobre o fato de que este ocupara o quarto que ficara retorcido, temendo perder toda a credibilidade. Já estava nervoso só com aquela conversa com a Dra. Miller; ele não a teria abordado por sua própria iniciativa.

— E mais uma coisa — disse ele afinal, concluindo que, se chegara até ali, era melhor contar tudo. — Consultei a ficha da mulher diabética que morreu ontem. Ela teve sintomas de gripe antes de sofrer as convulsões.

Sheila fitou os olhos escuros de Pitt, enquanto refletia sobre o que ele dissera. De repente, ela ergueu a cabeça e chamou o Dr. Draper, perguntando-lhe se Louis Devereau apresentara sintomas de gripe antes de ter o ataque convulsivo.

— Teve, sim — confirmou o Dr. Draper. — Por que está perguntando isso?

Sheila ignorou a pergunta do Dr. Draper. Em vez disso, tornou a baixar os olhos para Pitt.

— Quantos pacientes já atendemos com essa gripe e quantos estão aguardando?

—  Cinqüenta e três — respondeu Pitt, levantando uma folha de Papel onde mantinha um registro.

Santo Deus! — exclamou Sheila. Durante um momento, ela fitou sem ver o saguão, mordendo a parte interna da bochecha, enquanto considerava as opções. Tornando a voltar-se para Pitt ela ordenou: — Venha comigo e traga essa folha!

Pitt correu para alcançar Sheila, que estava quase correndo.

— Aonde estamos indo? — perguntou ele, quando entravam nas dependências do hospital

— Para a sala do diretor — disse Sheila, sem mais explicações.

Pitt espremeu-se no elevador com a Dra. Miller. Ele tentou ler em seu rosto, mas não conseguiu. Não tinha a menor idéia de porque estava sendo levado para a administração. Temia que fosse Por motivos disciplinares.

Gostaria de falar com o Dr. Halprin imediatamente — disse Sheila a secretária administrativa chefe, cujo nome era Sra. Kapland.

O Dr. Halprin está ocupado no momento — informou a Sra. Kapland com um sorriso simpático. — Mas vou avisá-lo de que a senhora está aqui. Enquanto isso, aceitam um café ou um refrigerante?

— Diga a ele que é urgente — pediu Sheila.

Depois de vinte minutos de espera, a secretária acompanhouos até a sala do diretor do hospital. Tanto Sheila quanto Pitt puderam perceber que o homem não estava se sentindo bem. Estava pálido e tossia quase sem parar.

Após Sheila e Pitt se sentarem, a primeira narrou concisamente o que Pitt lhe contara e sugeriu que o hospital tomasse medidas apropriadas.

— Espere aí — disse o Dr. Halprin entre dois acessos de tosse. — Cinqüenta casos de gripe durante um surto não é razão para a assustar a comunidade. Ora, eu mesmo contraí o vírus, e não estou tão ruim assim, embora, se tivesse escolha, acho que estaria em casa na cama.

- São mais de cinqüenta casos só neste hospital — afirmou a Dra. Sheila.

— Sim, mas somos o maior hospital da comunidade — lembrou Halprin, — Sempre recebemos a maioria dos casos.

— Tive duas mortes de diabéticos previamente controlados e que provavelmente morreram devido a essa doença — insistiu Sheila.

— Uma gripe pode fazer isso — observou o Dr. Halprin. — Infelizmente, todos nós sabemos que ela pode ser uma doença séria no caso de idosos e enfermos.

— O Sr. Henderson sabe de duas pessoas que tiveram a doença e que depois passaram a apresentar alterações de personalidade. Uma delas é o melhor amigo dele.

— A alteração de personalidade é acentuada? — indagou Halprin.

— Acentuada, não — admitiu Pitt. — Porém visível.

— Me dê um exemplo — pediu o Dr. Halprin, enquanto assoava o nariz ruidosamente.

Pitt relatou a súbita atitude despreocupada de Beau e o fato de que faltara às aulas de um dia inteiro para ir a museus e ao zoológico.

O Dr. Halprin abaixou o lenço de papel e olhou para Pitt, sendo levado a sorrir.

— Me desculpe, mas isso não parece extraordinário, em absoluto.

— O senhor precisaria conhecer Beau para perceber o quanto é espantoso — declarou Pitt.

— Bem, temos alguma experiência com essa doença aqui mesmo, neste departamento — afirmou o Dr. Halprin. — Não só eu a peguei hoje, como também minhas duas secretárias ficaram doentes ontem. — Ele inclinou-se e pressionou o botão do intercomunicador, pedindo a ambas que comparecessem à sua sala.

A Sra. Kapland apareceu imediatamente, sendo seguida por uma mulher mais jovem, chamada Nancy Casado.

— A Dra. Miller está preocupada com o vírus dessa gripe que está por aí — explicou o Dr. Halprin. — Talvez vocês duas possam tranqüilizá-la.

As duas mulheres se entreolharam, incertas de quem deveria falar. Como funcionária hierarquicamente superior, a Sra. Kapland começou.

— A gripe veio de repente e eu me senti péssima — disse ela. — Mas quatro ou cinco horas depois, já estava melhorando. Agora me sinto ótima. Há meses que não me sinto tão bem assim.

— Comigo foi muito parecido — afirmou Nancy Casado. — Comecei com tosse e dor de garganta. Tenho certeza de que tive febre também, embora não tenha tirado a temperatura e portanto não saiba se a febre foi alta.

— Alguma de vocês acha que a personalidade da outra mudou depois da recuperação? — indagou o Dr. Halprin.

Ambas deram uma risadinha, cobrindo a boca com a mão. Elas se entreolharam, conspiradoramente.

— O que há de tão engraçado? — perguntou o Dr. Halprin.

— É só uma piadinha particular — explicou a Sra. Kapland.

— Mas, respondendo à sua pergunta, nenhuma de nós acha que nossas personalidades mudaram. O senhor acha isso, Dr. Halprin?

— Eu? — replicou o diretor. — Não creio que eu tenha tempo para prestar atenção a essas coisas, mas não, não creio que alguma de vocês tenha mudado.

— Conhecem outras pessoas que tenham ficado doentes? —  Indagou Sheila às mulheres.

— Muitas — responderam, em uníssono.

— Perceberam alterações na personalidade de alguma delas? — insistiu Sheila.

— Eu não — replicou a Sra. Kapland.

— Nem eu — acrescentou Nancy Casado.

O Dr.Alprin estendeu as duas mãos, as palmas voltadas para cima.

— Não creio que tenhamos um problema aqui — disse ele. — Mas obrigado por virem me procurar. — Ele sorriu.

— Bem, é direito seu — retrucou Sheila, levantando-se. Pitt fez o mesmo, cumprimentando com um gesto da cabeça o diretor e as secretárias. Quando seus olhos encontraram os de Nancy Casado, ele percebeu que ela o olhava de uma forma curiosamente provocante. Os lábios da mulher estavam ligeiramente abertos e a ponta de sua língua brincava nas sombras. Assim que percebeu que ele a olhava, deixou os olhos percorrerem o corpo dele de alto a baixo.

Pitt rapidamente se virou e seguiu a Dra. Miller, deixando a sala do diretor. Sentia-se constrangido. De repente, ele soube o que Cassy estivera tentando lhe dizer naquela manhã, depois que visitaram o quarto que Beau ocupara na enfermaria estudantil.

Equilibrando os livros, a bolsa e a comida chinesa embalada para viagem, Cassy conseguiu enfiar a chave na fechadura e abrir a porta. Depois de entrar, fechou a porta com o pé.

— Beau, já está em casa? — gritou ela, enquanto aliviava sua carga sobre o pequeno aparador perto da porta.

Um rosnado grave e ameaçador fez eriçarem-se os pêlos da nuca de Cassy. O som viera de muito perto. Na verdade, era como se estivesse bem atrás dela. Lentamente, ela levantou os olhos para o espelho decorativo acima do aparador. Um pouco à esquerda de sua imagem, via-se um imenso buli mastiff castanho claro, mostrando as presas enormes.

Sempre muito lentamente, para não assustar o animal já perturbado, Cassy fez meia-volta a fim de ficar de frente para ele. Seus olhos eram como bolas de gude negras. Tratava-se de uma criatura assustadora, que lhe batia acima da cintura.

Beau, mastigando uma maçã, surgiu na porta da cozinha.

— Ei, King! Está tudo bem. Esta é a Cassy.

O cão parou de rosnar e virou-se na direção de Beau, inclinando a cabeça para o lado.

— Esta é Cassy — repetiu Beau. — Ela mora aqui também.

Beau afastou-se da porta, fez um carinho em King e lhe disse “bom menino” antes de beijar Cassy apaixonadamente nos lábios.

— Seja bem-vinda, amor — cumprimentou ele, com animação. — Sentimos sua falta. Onde você estava?

Beau andou até o sofá e sentou-se sobre o braço deste.

Cassy não movera um só músculo. Tampouco o cão, exceto pelo breve olhar que lançou a Beau. Não estava mais rosnando, nas continuava a fitá-la com seu olhar maléfico.

— Como assim? Onde eu estava? — replicou Cassy. —Você deveria ter ido me apanhar. Esperei meia hora.

— Ah, é mesmo. Me desculpe. Tive um compromisso importante e não havia como avisá-la. Você mesma me disse que podia conseguir uma carona com facilidade.

— É, mas quando está programado — afirmou Cassy. — Quando percebi que você não iria mais, todos que eu conhecia já tinham ido embora. Tive de chamar um táxi.

— Puxa! Me desculpe. De verdade. É que de repente está acontecendo tanta coisa. Que tal eu te levar para jantar no Bistrô, seu restaurante favorito, esta noite?

— Mas nós saímos na noite passada — disse Cassy. — Você não tem trabalho da faculdade para fazer? Comprei comida chinesa.

— Bem, como preferir, meu bem — replicou Beau. — Me sinto mal por ter deixado você lá esperando, e então gostaria de me retratar.

— O simples fato de estar disposto a se desculpar já é uma grande coisa — afirmou Cassy, baixando então os olhos para o cão imóvel.

— E por que esta fera está aqui? — perguntou ela. — Está tomando conta dela para alguém?

— Não — respondeu Beau. — É meu cachorro. O nome dele é King.

— Você está brincando.

— Claro que não — disse Beau, erguendo-se do braço do sofá, indo até King e afagando-lhe com força as orelhas. King respondeu abanando a cauda e lambendo a mão de Beau com sua língua enorme. — Pensei que seria bom contarmos com essa proteção.

— Proteção contra o quê? — retrucou Cassy. Ela estava atônita.

— Contra tudo, em geral — respondeu Beau, vagamente. — Um cachorro como este tem o olfato e a audição muito melhores do que os nossos.

— Não acha que deveríamos ter discutido essa decisão? — Perguntou Cassy, o medo já se transformando em raiva.

— Podemos discuti-la agora — afirmou Beau, inocentemente.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Cassy, zangada. Apanhou a comida que trouxera e foi para a cozinha. Tirou as embalagens da sacola e apanhou os pratos no armário, cuidando de bater a porta ao fechá-la. Da gaveta ao lado do lava-louças, tirou os talheres e arrumou a mesa ruidosamente.

Beau apareceu na porta.

— Não precisa ficar aborrecida — disse ele.

— Ah, não? — replicou Cassy, enquanto lágrimas involuntárias assomavam-lhe aos olhos. — É fácil para você dizer isso. Não sou eu que estou agindo de maneira estranha, como, por exemplo, saindo no meio da noite e trazendo para casa um cachorro do tamanho de um búfalo.

Beau entrou na cozinha e tentou abraçá-la, mas Cassy o repeliu e correu para o quarto. Agora ela estava soluçando.

Ele aproximou-se por trás e passou os braços em torno dela. Dessa vez, ela não resistiu. Durante um momento, ele nada disse, deixando-a chorar. Por fim, virou-a de frente para ele e os dois fitaram-se nos olhos.

— OK — disse ele. — Peço desculpas também pelo cachorro. Eu deveria ter falado com você sobre essa idéia, mas minha cabeça tem estado tão assoberbada. Tantas coisas estão me acontecendo ao mesmo tempo. Recebi a resposta do pessoal do Nite. Estou indo até lá para uma entrevista com eles.

— Quando foi que entraram em contato com você? — perguntou Cassy, enxugando os olhos. Ela sabia o quanto Beau estava contando em conseguir um emprego na Cipher Software. Talvez houvesse uma explicação para seu comportamento esquisito.

— Hoje — informou Beau. — É tudo tão promissor!

— Quando vai até lá?

— Amanhã.

— Amanhã! — repetiu Cassy. As coisas estavam acontecendo rápido demais. Estava passando por uma sobrecarga emocional. — Você não ia me contar?

— É claro que eu ia contar a você — afirmou ele.

— E você quer mesmo um cachorro? — insistiu Cassy. — O que vai fazer com ele quando for para a entrevista com o pessoal do Nite?

— Ele vai comigo — respondeu Beau, sem hesitação.

— Você vai levá-lo numa viagem profissional?

— Por que não? É um animal maravilhoso.

Cassy digeriu aquela informação surpreendente. De seu ponto de vista, aquilo parecia, no mínimo, impróprio. Ter um cão parecia incompatível com o estilo de vida dos dois.

— Quem vai sair com ele quando você estiver em aula? E alimentá-lo? Ter um cachorro implica muita responsabilidade.

— Eu sei, eu sei — disse Beau, erguendo as mãos, como se se rendesse. — Prometo tomar conta dele vou levá-lo para andar, alimentá-lo, limpar a sujeira dele e puni-lo se ele roer algum sapato seu.

Cassy sorriu, apesar de tudo. Beau falava como o clichê do garotinho implorando à mãe que lhe desse um cachorro, a mãe sabendo muito bem que acabaria assumindo o fardo de tomar conta do animalzinho.

— Eu o apanhei no abrigo — contou Beau. — Tenho certeza de que vai gostar dele, mas, se não gostar, nós o devolvemos. Vamos ver tudo isso como uma experiência. Daqui a uma semana, decidiremos.

— De verdade? — perguntou Cassy.

— Claro — garantiu Beau. — Vou buscá-lo para que você o conheça apropriadamente. É um excelente cachorro.

Cassy assentiu e Beau saiu do quarto. Ela respirou fundo. Tantas coisas pareciam estar acontecendo ao mesmo tempo. Quando se dirigia ao banheiro para lavar o rosto, Cassy percebeu que o computador de Beau estava executando algum programa estranho e muito rápido. Ela hesitou e olhou para o monitor. Dados sob a forma de textos e gráficos apareciam e desapareciam na tela numa velocidade atordoante. Então uma outra coisa lhe chamou a atenção. Diante do drive do computador, encontrava-se o curioso objeto negro que Beau encontrara alguns dias antes no estacionamento do Costa’s Diner. Cassy já o havia esquecido e, lembrando-se que Beau e Pitt haviam comentado que o objeto era pesado, ela estendeu a mão para ele.

— Aqui está o monstro — anunciou Beau, desviando a atenção de Cassy. Obedecendo às ordens de Beau, King mostrou-se feliz em ir pulando até Cassy e lamber-lhe a mão.

— Que língua áspera — observou Cassy.

— É um ótimo cão — disse Beau, radiante. Cassy deu palmadinhas no flanco de King.

— É forte — comentou ela. — Quanto ele pesa? — Ela se perguntava quantas latas de comida canina ele precisaria por dia.

— Eu diria que uns cinqüenta e poucos — disse Beau. Cassy coçou atrás da orelha de King, em seguida fez um sinal com a cabeça na direção do computador de Beau.

— O que está acontecendo com seu micro? Parece que está descontrolado.

— Só estou fazendo o download de alguns dados pela Internet — respondeu Beau, indo até o aparelho. — Acho que posso desligar o monitor.

— Você vai imprimir tudo isso? — indagou Cassy. — Vai precisar de muito mais papel do que temos.

Beau desligou o monitor, mas certificou-se de que as luzes do disco rígido continuassem a piscar velozmente.

— Então, o que vai ser? — perguntou Beau, aprumando-se.

— A comida chinesa ou o Bistrô? A escolha é sua.

Os olhos de Beau abriram-se de súbito, no mesmo instante dos de King. Apoiando-se em um dos cotovelos, Beau olhou o relógio por sobre o corpo adormecido de Cassy, a fim de ver as horas. Eram 2:30.

Tomando cuidado para que as molas da cama não rangessem, Beau escorregou as pernas para fora da cama e se levantou. Fez um carinho na cabeça de King antes de vestir suas roupas. Em seguida, dirigiu-se ao computador. Um momento antes, a luz vermelha do disco rígido finalmente parará de piscar.

Ele apanhou o disco negro e guardou-o no bolso. Num bloco de anotações ao lado do computador, rabiscou: “Fui andar um pouco. Volto logo. Beau.”

Depois de colocar o bilhete sobre o seu travesseiro, ele e King deixaram silenciosamente o apartamento.

Beau saiu do edifício e deu a volta até o estacionamento. King permanecia ao seu lado, sem coleira. Fazia mais uma noite deslumbrante, com a ampla faixa da Via Láctea descrevendo uma curva acima de suas cabeças. Não havia lua e, como resultado, as estrelas pareciam mais encantadoras.

Mais para o fundo do estacionamento, Beau encontrou uma área onde não havia carros. Tirando o disco negro do bolso, ele o colocou sobre o asfalto. Quase no mesmo instante em que deixou sua mão, o objeto começou a brilhar. Quando Beau e King estavam a quinze metros de distância, ele já começara a formar a coroa e a passar do vermelho para o branco incandescente.

A noite toda Cassy tivera um sono agitado, com muitos sonhos cheios de ansiedade. Ela não tinha a menor idéia do que a acordara, mas de repente se vira fitando o teto, que aos poucos ia sendo iluminado por uma luz incomum.

Cassy sentou-se na cama. O quarto todo tinha um brilho peculiar, crescente, e estava claro que este entrava pela janela. Quando começou a deixar a cama a fim de investigar, percebeu que Beau não estava ali, da mesma forma que na noite anterior. Dessa vez, porém, ela viu que havia um bilhete.

Apanhando o bilhete, Cassy foi até a janela e olhou para fora. Imediatamente viu a fonte do brilho. Tratava-se de uma bola branca de luz que ia aumentando com rapidez sua intensidade, de modo que os carros ao redor iam lançando sombras escuras.

No instante seguinte, a luz desapareceu, como se tivesse sido apagada de repente, dando a Cassy a impressão de que implodira. Em seguida, ela ouviu um som alto e sibilante, que terminou da mesma maneira abrupta.

Sem ter a menor idéia do que vira, Cassy perguntou-se se não deveria chamar a polícia. Enquanto debatia consigo mesma, começou a se voltar para o quarto, quando um movimento no estacionamento chamou sua atenção. Tornando a focalizar os olhos naquela direção, ela viu um homem e um cachorro. Quase imediatamente reconheceu Beau e King.

Certa de que ele devia ter visto a bola de luz, estava prestes a chamá-lo, quando viu outras figuras emergirem das sombras, para sua surpresa, trinta ou quarenta pessoas apareceram misteriosamente.

Havia alguns postes de iluminação limitando a área do estacionamento e assim Cassy podia distinguir alguns dos rostos. A princípio, não reconheceu ninguém. Mas então viu duas pessoas que achou que conhecia. Ela pensou ter visto o Sr. e a Sra. Partridge!

Cassy obrigou-se a piscar várias vezes. Estaria mesmo acordada ou aquilo seria um sonho? Um estremecimento percorreu seu corpo. Era aterrorizante sentir-se confusa sobre seu senso de realidade. Aquilo lhe dava uma compreensão imediata do horror de uma doença psiquiátrica.

Tornando a olhar para o grupo, Cassy viu que as pessoas haviam todas se reunido no centro do estacionamento. Era como se estivessem realizando uma reunião clandestina. Ela cogitou brevemente de se vestir e ir até lá ver do que se tratava, mas teve de admitir para si mesma que estava com medo. A situação toda era surreal.

Então, de repente, teve a impressão de que King a vira na janela. A cabeça do cão voltou-se em sua direção e seus olhos brilhavam como os olhos de um gato quando refletem a luz. Um latido de King fez com que todas as pessoas levantassem os olhos, inclusive Beau.

Cassy recuou, afastando-se da janela, assustada. Os olhos de todas as pessoas brilhavam como os de King. Ela sentiu um arrepio e mais uma vez se perguntou se não estaria sonhando.

Cambaleou até a cama em meio à escuridão e então acendeu a luz. Leu o bilhete, esperando que pudesse haver ali alguma explicação, mas a mensagem era totalmente genérica. Ela pôs o bilhete sobre a mesinha-de-cabeceira e imaginou o que deveria fazer. Chamar a polícia? Mas então, o que diria? Será que eles ririam dela? Ou, se viessem até ali, tudo acabaria sendo um grande constrangimento se houvesse uma explicação razoável?

De repente ela pensou em Pitt. Agarrando o telefone, começou a discar. Mas não terminou. Lembrou-se de que eram três horas da manhã. O que ele poderia fazer ou dizer? Cassy recolocou o fone no gancho e suspirou.

Decidiu que teria de esperar que Beau retornasse. Ela não fazia a menor idéia do que estava acontecendo, mas iria descobrir. Confrontaria Beau e exigiria que ele lhe contasse.

Tendo tomado uma decisão, ainda que passiva, Cassy sentiu-se um pouquinho menos ansiosa. Reclinou-se de encontro ao travesseiro e enfiou as mãos sob a cabeça. Tentou não pensar no que acabara de ver. Em vez disso, esforçou-se para relaxar, concentrando-se na respiração.

Cassy ouviu a porta de entrada do apartamento ranger e sentou-se ereta na cama. Ela adormecera, o que fez com que se perguntasse se estivera sonhando afinal. Contudo, um olhar lançado à mesinha-de-cabeceira revelou o bilhete de Beau, e o fato de a luz estar acesa mostrou a ela que não fora um sonho.

Beau e King apareceram no vão da porta, Beau carregando os sapatos na mão. Estava tentando não fazer barulho.

— Você ainda está acordada — constatou Beau. Parecia desapontado.

— Esperando você — afirmou Cassy.

— Encontrou meu bilhete, não encontrou? — perguntou ele, jogando os sapatos no closet e começando a despir as roupas.

— Encontrei. Agradeço a consideração. — Cassy lutava consigo mesma. Queria fazer perguntas, mas sentia uma certa relutância. A situação toda parecia um pesadelo.

— Ótimo — disse Beau, desaparecendo no banheiro.

— O que estava acontecendo lá fora? — perguntou Cassy, reunindo sua coragem.

— Saímos para dar uma volta, como diz o bilhete — gritou Beau de volta.

— Quem eram todas aquelas pessoas?

Beau apareceu na porta enxugando o rosto na toalha.

— Apenas um grupo de pessoas dando uma caminhada, como eu — respondeu Beau.

— Os Partridges também? — perguntou Cassy, com sarcasmo.

— É, eles estavam lá — disse Beau. — São pessoas agradáveis. Muito animadas.

— Sobre o que estavam falando? — quis saber Cassy. — Vi vocês da janela. Parecia uma reunião.

— Sei que você nos viu. Não estávamos nos escondendo ou coisa parecida. Estávamos apenas conversando, basicamente sobre o meio ambiente.

Cassy deixou escapar uma risada sardônica. Naquelas circunstâncias, não podia acreditar que Beau fizesse uma afirmação tão ridícula.

— Ah, certo — disse ela. — Um encontro de vizinhos para debater o meio ambiente às três da manhã.

Beau veio até a cama e sentou-se na borda. Sua expressão era de profunda preocupação.

— Cassy, qual é o problema? — perguntou ele. — Você está aborrecida outra vez.

— É claro que estou aborrecida — gritou Cassy.

— Fique calma, querida, por favor.

— Ah, pelo amor de Deus, Beau! O que você acha que eu sou? O que está acontecendo com você?

— Nada — afirmou Beau. — Eu me sinto ótimo. As coisas estão indo as mil maravilhas.

— Você não percebe o quanto seu comportamento tem sido estranho?

— Não sei do que você está falando. Talvez meu sistema de valores esteja mudando, mas, que diabos, eu sou jovem, estou na universidade; é de se esperar que eu esteja aprendendo coisas.

— Você não é mais o mesmo — insistiu Cassy.

— É claro que sou. Continuo a ser Beau Eric Stark, o mesmo sujeito que eu era na semana passada e na anterior. Nasci em Brookline, Massachusetts, filho de Tàmi e Ralph Stark. Tenho uma irmã chamada Jeanine e...

— Pare com isso, Beau! — berrou Cassy. — Sei que sua história não mudou; o problema é o seu comportamento. Não percebe isso?

Beau deu de ombros.

— Não lamento, mas sou o mesmo que sempre fui. — Cassy deu um suspiro de exasperação.

— Não é não, e eu não sou a única pessoa que percebeu isso. Seu amigo Pitt também.

— Pitt? — indagou Beau. — Bem, agora que você disse isso, ele de fato mencionou algo sobre eu estar fazendo coisas inesperadas.

— Exatamente — confirmou Cassy. — É sobre isso que estou falando. Ouça! Quero que você consulte um profissional. Ou melhor, iremos nós dois. Que tal? — Cassy deixou escapar outra risadinha sarcástica. — Afinal, talvez o problema seja comigo.

— OK — disse Beau, afavelmente.

— Você irá consultar alguém? — surpreendeu-se Cassy. Ela esperara uma discussão.

— Se isso fizer com que você se sinta melhor, irei sim — concordou Beau. — Mas, naturalmente, terá de esperar até eu voltar da entrevista com o pessoal do Nite, e eu não sei com precisão quando isso será.

— Pensei que você só ficaria fora um dia — disse Cassy.

— Vai ser mais do que isso — afirmou Beau. — Mas exatamente quanto tempo só vou saber quando chegar lá.

 

9:50

Nancy Sellers trabalhava o máximo possível em casa. Com seu computador ligado em rede à central da Serotec Pharmaceuticals e com um grupo de excelentes técnicos em seu laboratório, ela conseguia render mais em casa do que no escritório. A principal razão era que a separação física a protegia da miríade de dores de cabeça administrativas implícitas no gerenciamento de um grande laboratório de pesquisas. A segunda razão era que a tranqüilidade da casa silenciosa favorecia sua criatividade.

Acostumada ao silêncio absoluto, o som da porta da frente sendo fechada bruscamente, às dez para as nove, chamou a atenção de Nancy de imediato. com o pensamento pessimista de que só podia ser alguma notícia ruim, ela saiu do programa no qual estava trabalhando e deixou o escritório doméstico.

Parou na balaustrada, no alto da escada, e olhou para o hall de entrada, no primeiro andar. Jonathan apareceu em seu campo de visão.

— Por que você não está na escola? — perguntou Nancy, já tendo feito uma avaliação mental da saúde do filho. Ele parecia bem ao andar e sua cor também estava boa.

Jonathan parou na base da escada e olhou para cima.

— Nós precisamos conversar com você.

— Nós, quem? — indagou Nancy. Contudo, assim que a pergunta deixou seus lábios, ela viu a jovem surgir atrás do filt e inclinar a cabeça para trás.

— Esta é Candee Taylor, mãe — apresentou Jonathan. Nancy sentiu a boca ressecar. O que ela viu foi um rosto de fada no alto de um corpo de mulher já bem desenvolvido. Seu primeiro pensamento foi o de que a garota estava grávida. Ser mãe de um adolescente era como andar na corda bamba: o desastre estava sempre à espreita.

— Já estou descendo — disse Nancy. — Me esperem na cozinha.

Nancy deu uma rápida passada no banheiro, mais para acalmar suas emoções do que para cuidar da aparência. Nesse último ano vinha se preocupando com a possibilidade de Jonatha envolver-se nesse tipo de problema, à medida que o interesse do filho por garotas disparava e ele se tornava reservado e fechado.

Quando Nancy pensou que estivesse preparada, encontrou os dois na cozinha, já tendo se servido do café que ela mantinha sobre o fogão. Nancy também serviu-se de uma xícara e sentou-se num dos bancos que circundavam a bancada central. Os outros já estavam sentados.

— Muito bem — disse Nancy, preparada para o pior. — Podem começar.

Foi Jonathan quem falou primeiro, pois Candee estava visivelmente nervosa. Ele descreveu como os pais de Candee estavam agindo de maneira estranha. Disse que fora até a casa dela na tarde anterior e vira com seus próprios olhos.

— É sobre isso que queriam falar comigo? — indagou Nancy — Sobre os pais de Candee?

— É — disse Jonathan. — Olhe, a mãe de Candee trabalha na Serotec Pharmaceuticals, no departamento de contabilidade.

— Ah, deve ser Joy Taylor — afirmou Nancy. Estava tentando não deixar transparecer na voz o alívio que sentia. — Conversei com ela muitas vezes.

— Foi o que pensamos — continuou Jonathan. — Pensamos que talvez você estivesse disposta a falar com ela, pois Cande está preocupada de verdade.

— O que há de tão estranho no comportamento da Sra. Taylor? — perguntou Nancy.

— É tanto meu pai quanto minha mãe — disse Candee.

— Eu posso contar do meu ponto de vista — interveio jonathan. — Até ontem, eles não me queriam por lá. Não havia jeito. Mas, de repente, ficaram tão simpáticos que eu não pude acreditar. Chegaram a me convidar para passar a noite lá.

— Por que eles pensariam que você passaria a noite lá? — quis saber Nancy.

Jonathan e Candee trocaram olhares. Ambos enrubesceram.

— Quer dizer que eles sugeriram que vocês dois dormissem juntos? — perguntou ela.

— Bem, eles não disseram isso exatamente — afirmou Jonathan. — Mas foi o que entendemos.

— É claro que posso conversar com ela — disse Nancy, com sinceridade. Estava estarrecida.

— Não é só o modo como estão agindo — acrescentou Candee. — É como se fossem outras pessoas. Há alguns dias eles praticamente não tinham amigos. Agora, de repente, estão recebendo visitas... a qualquer hora do dia e da noite, para falar sobre as florestas tropicais e a poluição, e coisas desse tipo. Gente que eu posso jurar que eles nunca encontraram antes e que agora anda pela casa. Sou obrigada a trancar a porta do meu quarto.

Nancy pousou a xícara de café. Sentia-se envergonhada de suas suspeitas iniciais. Olhou para Candee e, em vez de uma mulher sedutora, viu uma menina assustada. A imagem tangeu as cordas de seu instinto maternal.

— Vou conversar, sim, com sua mãe — repetiu Nancy. — E você é bem-vinda aqui, se quiser ficar em nosso quarto de hóspedes. Mas vou ser clara com vocês dois: Nada de brincadeiras, e acho que vocês sabem a que me refiro.

— O que vão querer? — perguntou Marjorie Stephanopolis. Tanto Cassy quanto Pitt perceberam seu sorriso radiante. — Que dia lindo, não acham?

Cassy e Pitt trocaram olhares perplexos. Essa era a primeira vez que Marjorie tentava conversar com eles. Os dois se encontravam num dos reservados do Costa’s Diner, na hora do almoço.

— Para mim, um hambúrguer, batata frita e uma Coca — pediu Cassy.

— Para mim também — disse Pitt. Marjorie recolheu os cardápios.

— Trarei seus pedidos o mais rápido que puder — afirmou a garçonete. — Espero que apreciem o almoço.

— Pelo menos alguém está contente hoje — comentou Pitt, enquanto observava Marjorie desaparecer de volta à cozinha.

— Nos três anos e meio em que venho aqui, isso é o máximo que já a ouvi dizer.

— Você nunca come hambúrgueres e batata frita — observou Cassy.

— Nem você — lembrou-lhe Pitt.

— Foi a primeira coisa que me veio à cabeça — disse Cassy. — É que estou tão apavorada. E estou lhe dizendo a verdade sobre ontem à noite. Eu não estava tendo alucinações.

— Mas você mesma me disse que se perguntou se estava acordada ou sonhando — lembrou Pitt.

— Me convenci de que estava acordada — replicou Cassy, zangada.

— Está bem, fique calma. — Pitt correu os olhos pelo restaurante. Várias pessoas ali perto estavam olhando para eles.

Cassy debruçou-se sobre a mesa e sussurrou:

— Quando todos olharam para mim, inclusive o cachorro, os olhos deles estavam brilhando.

— Cassy, por favor...

— Estou dizendo a verdade! — exclamou ela.

Pitt arriscou outro olhar pelo salão. Um número de pessoas ainda maior os fitava agora. Estava claro que a voz de Cassy as estava incomodando.

— Mantenha a voz baixa! — sussurrou Pitt, energicamente.

— OK.

Cassy também podia perceber os olhares que estavam atraindo.

— Quando perguntei a Beau sobre o que estavam falando lá fora às três da manhã, ele me respondeu: “O meio ambiente” — Contou Cassy.

— Não sei se rio ou se choro. Acha que ele estava brincando?

— Não, absolutamente — afirmou Cassy, com convicção.

— Mas a idéia de uma reunião no estacionamento, no meio da noite, para falar sobre o meio ambiente é absurda.

— Assim como também o fato de que seus olhos cintilavam — acrescentou Cassy. — Mas você ainda não me contou o que Beau disse na conversa que teve com ele ontem.

— Não tive oportunidade. — Pitt, então, contou a Cassy tudo que acontecera durante o jogo e depois dele. Cassy ouviu com grande interesse, principalmente a parte sobre o encontro de Beau com os executivos bem-vestidos, na quadra de esportes.

— Tem alguma idéia do que eles estavam falando? — indagou Cassy.

— Nem uma pista — disse Pitt.

— Poderiam ser funcionários da Cipher Software? — perguntou Cassy. Ela continuava esperando que surgisse uma explicação razoável para tudo aquilo que estava acontecendo.

— Não sei — respondeu Pitt. — Por que está perguntando isso? — Antes que Cassy pudesse responder, Pitt percebeu que Marjorie estava parada a alguma distância, segurando duas Cocas. No instante em que a viu, ela se aproximou e pôs os refrigerantes sobre a mesa.

— Os sanduíches já vão sair — disse ela, alegremente. Depois que Marjorie tornou a desaparecer, Pitt observou:

— Devo estar ficando paranóico. Eu poderia jurar que ela estava ali parada escutando nossa conversa.

— E por que ela faria isso? — replicou Cassy.

— É a pergunta que me faço — disse Pitt. — Me diga uma coisa: Beau foi à aula hoje?

— Não, ele foi para a Cipher Software — informou Cassy. — Foi por isso que perguntei sobre eles. Beau me disse que entraram em contato com ele ontem. Calculei que tivessem telefonado, mas talvez tenham vindo pessoalmente. Seja como for, ele foi até lá para uma entrevista.

— E quando volta?

— Ele não sabia.

— Bem, talvez isso seja bom — disse Pitt. — Quem sabe quando ele vier já não tenha voltado ao normal?

Marjorie reapareceu trazendo os sanduíches. Com um floreio, ela os colocou diante dos dois fregueses e até mesmo girou o prato ligeiramente, para posicioná-los com perfeição, como se o Costa’s Diner fosse um restaurante fino.

— Tenham um bom apetite! — desejou Marjorie, alegremente, antes de desaparecer outra vez na cozinha.

— Não é só Beau quem está se comportando de maneira diferente — observou Cassy. — Ed Partridge e a mulher também, e já ouvi sobre outros. Acho que o que quer que esteja acontecendo, está se espalhando. Acho até que tem alguma coisa ver com essa gripe que anda por aí.

— Amém! — exclamou Pitt. — Tenho a mesma sensação. Na verdade, foi o que eu disse ontem à chefe da Emergência.

— E qual foi a reação dela? — quis saber Cassy.

— Melhor do que eu imaginava. A chefe da Emergência uma mulher inflexível e objetiva, chamada Dra. Sheila Miller. No entanto, mostrou-se disposta a me ouvir e até mesmo me levou para falar com o diretor do hospital.

— Qual foi a reação dele?

— Não ficou impressionado — respondeu Pitt. — Mas ele próprio apresentava os sintomas da gripe, enquanto falávamos com ele.

— Tem alguma coisa errada com a comida? — perguntou Marjorie, reaparecendo ao lado da mesa.

— Não, está tudo bem — disse Cassy, exasperada com a interrupção.

— Mas nem tocaram nos sanduíches — observou Marjorie — Se houver algum problema, posso trazer outra coisa para vocês.

— Estamos bem! — replicou Pitt, bruscamente.

— Bem, me chamem, se precisarem. — E saiu apressada

— Ela está me deixando maluca — disse Cassy. —Acho que preferia quando ela era emburrada.

De repente, a mesma idéia ocorreu a Cassy e a Pitt.

— Ah, meu Deus! — exclamou Cassy. — Acha que ela teve a gripe?

 — É o que me pergunto! — disse Pitt, igualmente preocupado. — É óbvio que o comportamento dela mudou.

— Precisamos fazer alguma coisa — decidiu Cassy. — Quem deveríamos procurar? Tem alguma idéia?

— Para falar a verdade, não. Bem, quem sabe devêssemos voltar à Dra. Miller? Pelo menos ela foi receptiva. Queria dizer que há outras pessoas com mudanças de personalidade. Só mencionei Beau.

— Você se importa que eu vá também? — perguntou Cassy.

— Em absoluto. Na verdade, até prefiro. Mas vamos agora mesmo.

— Estou pronta.

Pitt correu os olhos em vão pelo restaurante para pedir a conta a Marjorie. Não a encontrando, suspirou com exasperação. Era frustrante que, depois de importuná-los por toda a refeição, na hora em que precisavam, ela não estava em lugar algum.

— Marjorie está atrás de você — disse Cassy, apontando por sobre o ombro de Pitt. — Está na caixa registradora, num papo animado com Costa.

Pitt girou o corpo na cadeira. Nesse momento, Marjorie e Costa voltaram a cabeça em sua direção, fixando os olhos nos dele. Havia uma intensidade em seu olhar que fez Pitt estremecer.

Pitt tornou a virar-se, ficando de frente para Cassy.

— Vamos dar o fora daqui — disse ele. — Devo estar mesmo ficando paranóico. Não sei por quê, mas tenho certeza de que Marjorie e Costa estavam falando da gente.

Beau nunca estivera em Santa Fé, mas ouvira muitas coisas boas sobre a cidade e estava ansioso para vê-las. E não ficou desapontado: gostou imediatamente do lugar.

Ele chegara na hora prevista no pequeno aeroporto e fora apanhado por um jipe Cherokee, espaçoso como uma limusine! Nunca vira um veículo daqueles antes e, a princípio, achou cômico. Depois de andar nele, porém, estava pronto a acreditar que poderia ser superior a uma limusine normal devido à sua altura. Naturalmente, tinha de admitir para si mesmo que não tinha muita experiência com limusines de qualquer espécie.

Por mais atraente que Beau tenha achado Santa Fé como um todo, a cidade era apenas um arauto da beleza da propriedade na qual estava situada a Cipher Software. Depois de passarem por um portão de segurança, Beau pensou que o lugar mais parecia um balneário de luxo do que um estabelecimento comercial. Campos verdes, ondulados e exuberantes, estendiam-se entre edifícios modernos, bem-proporcionados e distribuídos espaçadamente. Densas florestas de coníferas e lagos espelhados completavam a paisagem.

Beau foi deixado no edifício central, que, como todos os outros, era uma construção de granito e vidro tingido de dourado. Várias pessoas que Beau já havia conhecido receberam-no e disseram-lhe que o Sr. Randy Nite estava à sua espera no escritório.

Quando Beau e seus acompanhantes subiam por um elevador de vidro acima de um átrio repleto de plantas, perguntaram-lhe se estava com fome ou sede. Beau respondeu que estava bem.

O escritório de Randy Nite era imenso, ocupando a maior parte da ala oeste do terceiro e último andar do edifício. Era um quadrado com cerca de quinze metros de lado, três dos quais delimitados por vidraças que iam do chão ao teto. No centro desse extenso espaço, via-se a mesa de Randy, uma laje de dez centímetros de espessura de mármore negro e dourado.

Randy estava ao telefone quando Beau foi introduzido na sala, mas imediatamente se levantou e gesticulou para que Beau se acomodasse numa cadeira de couro preto de design moderníssimo, sinalizando que demoraria só mais alguns minutos ao telefone. Tendo cumprido sua função, os acompanhantes retiraram-se silenciosamente.

Beau vira Randy em fotografias inúmeras vezes, assim como também na TV. Pessoalmente, parecia tão jovem quanto nas fotos, com a massa de cabelos ruivos e um punhado de simpática sardas salpicadas pelo rosto amplo e de aspecto saudável. Os olhos cinza-esverdeados mostravam um brilho de divertimento. Tinha a altura aproximada de Beau, mas não era tão musculoso, embora aparentasse estar em boa forma.

— O novo software estará chegando às lojas no mês que vem — Ia dizendo Randy — E a campanha publicitária está pronta para começar na próxima semana. Vai ser uma campanha soberba. As coisas não poderiam ser melhores. O mundo vai ser tomado de assalto. Acredite em mim!

Randy desligou e exibiu um sorriso largo. Vestia-se casualmente com um blazer azul, jeans desbotado e tênis. Não era por acaso que Beau estava vestido num estilo semelhante.

— Bem-vindo — cumprimentou Randy, estendendo a mão, que Beau apertou. — Devo dizer que minha equipe nunca recomendou alguém antes tanto quanto você. Durante as últimas quarenta e oito horas, ouvi elogios sem parar. E isso me intriga. Como um acadêmico do último ano conseguiu ser um relações públicas tão bem-sucedido?

— Suponho que se trate de uma combinação de sorte, interesse e trabalho árduo, à moda antiga — respondeu Beau.

Randy sorriu.

— Muito bem colocado — Disse ele. — Também me disseram que você gostaria de começar, não no marketing direto, mas como meu assistente pessoal.

— Todo mundo tem de começar de algum lugar — afirmou Beau.

Randy riu com entusiasmo.

— Gosto disso. Autoconfiança e senso de humor. Faz com que me lembre de mim mesmo quando comecei. Vamos! Deixe eu lhe mostrar a empresa.

— A Emergência parece lotada — comentou Cassy.

— Nunca vi isso aqui assim antes — disse Pitt.

Estavam atravessando o estacionamento, em direção à entrada da Emergência. Várias ambulâncias estavam lá com suas luzes piscando. Viam-se carros estacionados de uma maneira aleatória e a segurança do hospital tentava organizar as coisas.

A própria entrada estava repleta com as pessoas que transbordavam da sala de espera.

Subindo os degraus, Pitt e Cassy tiveram literalmente de abrir caminho até o balcão de recepção. Pitt viu Cheryl Watkins e gritou para ela:

— Que diabos está acontecendo aqui?

— Fomos inundados pela gripe — explicou Cheryl. Ela própria espirrou e em seguida tossiu. — Infelizmente, os funcionários não são imunes.

— A Dra. Miller está aqui? — perguntou Pitt.

— Ela também está trabalhando com os outros — afirmou Cheryl.

— Espere aqui — disse Pitt a Cassy. — Vou ver se consigo encontrá-la.

— Tente ser rápido — pediu Cassy. — Nunca gostei de hospitais.

Pitt apanhou um jaleco branco, vestiu-o e pendurou o crachá no bolso do peito. Em seguida, começou a procurar pelos biombos. Encontrou a Dra. Miller com uma mulher idosa que desejava ser internada. A mulher se encontrava numa cadeira de rodas, pronta para ir para casa.

— Sinto muito — dizia a Dra. Miller, terminando de preencher a ficha da Emergência e prendendo-a com a prancheta num compartimento na parte posterior da cadeira de rodas. — Os sintomas de gripe que a senhora apresenta não são suficientes para que a internemos. Tudo de que a senhora precisa é descanso, um analgésico e líquidos. Seu marido estará aqui num instante para levá-la.

— Mas eu não quero voltar para casa! — queixou-se a mulher. — Quero ficar no hospital. Meu marido me dá medo. Ele não é mais o mesmo. É uma outra pessoa.

Naquele momento o marido apareceu, trazido por um dos enfermeiros para apanhar a mulher. Embora tão idoso quanto ela, parecia bem mais ágil e mentalmente alerta.

— Não, não, por favor! — gemeu a mulher ao vê-lo. Ela tentou agarrar a manga da Dra. Miller quando o marido começou a empurrar sua cadeira rapidamente para fora do reservado, em direção à saída.

— Acalme-se, querida — dizia o homem num tom tranqüilizador. —Você não vai querer incomodar esses bons médicos.

Quando tirava as luvas de látex usadas durante o exame dos pacientes, Sheila avistou Pitt.

— Bem, você estava mesmo certo sobre esse surto de gripe estar aumentando. Por acaso ouviu a conversinha que acabei de ouvir?

Pitt fez que sim com a cabeça.

— Receio que possa ter havido uma mudança de personalidade por parte do marido.

— Foi o que pensei também — disse Sheila, enquanto jogava fora as luvas. — Mas, naturalmente, as pessoas idosas têm uma tendência à desorientação.

— Sei que a senhora está ocupada — começou Pitt —, mas poderia me dar um minuto do seu tempo? Eu e uma amiga gostaríamos de lhe falar. Não sabemos a quem mais recorrer.

Sheila concordou imediatamente, a despeito do caos na Emergência. As opiniões de Pitt no dia anterior começavam a parecer proféticas. Ela agora estava convencida de que essa gripe era diferente; no mínimo porque um vírus de gripe ainda precisava ser isolado.

Ela levou Pitt e Cassy para a sua sala. Assim que a porta foi fechada, o lugar pareceu uma ilha de tranqüilidade no meio de uma tempestade. Sheila sentou-se. Estava exausta.

Cassy contou toda a história da transformação de Beau depois da doença. Embora se sentisse constrangida em relação a certas partes, não omitiu nada. Relatou até mesmo o que acontecera na noite anterior, inclusive a estranha bola de luz, o encontro clandestino e o fato de que os olhos de todos brilhavam.

Quando Cassy terminou, Sheila nada disse de imediato. Estivera o tempo todo rabiscando distraidamente com um lápis. Por fim, ela levantou os olhos.

— Em circunstâncias normais, com uma história dessas, eu a mandaria direto para a psiquiatria e deixaria que cuidassem de você. Mas essas não são condições normais. Não sei o que Pensar a cerca disso tudo, mas devemos estabelecer os fatos que pudermos. Então Beau foi acometido por essa enfermidade há três dias...

Cassy e Pitt assentiram em uníssono.

— Eu gostaria de vê-lo — disse Sheila. — Acha que ele estaria disposto a vir aqui e ser examinado?

— Ele disse que sim — afirmou Cassy. — Cheguei a lhe pedir que consultasse um profissional.

— Pode trazê-lo aqui hoje? — perguntou Sheila. Cassy abanou a cabeça.

— Ele está em Santa Fé.

— Quando é que volta?

Cassy foi tomada por uma onda de emoção.

— Eu não sei — conseguiu falar, por fim. — Ele não quis me dizer.

— Este é um dos meus locais preferidos no complexo, ou Zona, como gostamos de chamá-lo — disse Randy, fazendo o carrinho elétrico de golfe parar e saltando. Beau saiu pelo outro lado e seguiu o magnata do software, subindo uma pequena colina gramada. Quando chegaram ao topo, a vista era espetacular.

Diante deles estendia-se um lago cristalino, habitado por patos selvagens. A tela de fundo era a floresta virgem desenhada contra as Montanhas Rochosas.

— O que acha? — perguntou Randy, orgulhoso.

— É formidável — respondeu Beau. — Mostra o que a atenção com o meio ambiente pode fazer e nos oferece um raio de esperança. É trágico e inacreditável que uma espécie inteligente como os seres humanos tenha causado todo esse dano a um planeta tão maravilhoso. Poluição, lutas políticas, divisão racial, superpopulação, má administração do potencial genético...

Randy estivera balançando a cabeça, em concordância, até o último item, quando então lançou um rápido olhar na direção de Beau. Este, porém, fitava, sonhador, as montanhas distantes. Randy perguntou-se o que Beau quereria dizer com “má administração do potencial genético”. Entretanto, antes que pudesse perguntar, Beau prosseguiu:

— Essas forças negativas precisam ser controladas, e podem ser. Eu acredito firmemente que existem recursos adequados para reverter o dano causado ao planeta. Basta apenas um grande visionário para carregar a tocha, alguém que conheça os problemas, que tenha o poder e que não tema ir à frente.

Um sorriso de agradecimento abriu-se involuntariamente no rosto de Randy. Beau captou-o pelo canto do olho. O sorriso por si só fez com que Beau soubesse que tinha Randy exatamente onde queria.

— Com toda a certeza essas idéias são muito visionárias para um universitário — afirmou Randy. — Mas você acredita de fato que a natureza humana, tal como ela é, pode ser controlada o suficiente para fazer com que isso aconteça?

— Compreendi que a natureza humana é um empecilho — admitiu Beau. — Entretanto, com os recursos financeiros e as conexões mundiais que você reuniu com a Cipher Software, creio que os obstáculos podem ser contornados.

— É bom ter visão — disse Randy. Embora em sua opinião Beau fosse excessivamente idealista, estava ainda assim impressionado. Mas não o bastante para permitir que Beau começasse como seu assistente pessoal. Ele começaria no marketing direto e subiria por seus próprios esforços, como todos os seus assistentes.

— O que é aquilo ali naquele monte de cascalho? — indagou Beau.

— Onde?

Beau foi até o ponto que indicara e abaixou-se, fingindo apanhar um de seus discos negros, que ele na verdade havia tirado do bolso. Aninhando-o na palma de sua mão, voltou-se para Randy e estendeu o objeto.

— Não sei o que é — disse Randy. — Mas, nesses últimos dias, vi alguns de meus assistentes com outros iguais a esse. Do que é feito?

— Não sei dizer — respondeu Beau. — Mas é pesado, então talvez seja metal. Mas segure-o. Talvez você possa dizer.

Randy apanhou o objeto e sopesou-o.

— Uma coisinha bastante densa — observou ele. — E que superfície lisa. E olhe essas protuberâncias simetricamente dispostas à borda dele... Am! — gritou Randy, deixando cair o disco a fim de apertar o dedo, onde uma gota de sangue rapidamente se formou.

— Essa maldita coisa me furou!

— Que estranho — disse Beau. — Deixe eu dar uma olhada.

— E tem outras pessoas que também estão apresentando mudanças de personalidade — disse Cassy a Sheila. — Por exemplo, o diretor da escola onde faço estágio vem agindo completamente diferente desde que teve a gripe. Também já ouvi falar de outros, mas não os vi pessoalmente.

— Com honestidade, é essa mudança do estado mental que mais me preocupa — Afirmou Sheila.

Cassy, Pitt e a doutora estavam a caminho da sala do Dr. Halprin. Munida de novas informações, Sheila estava confiante em que o diretor do centro médico teria uma reação diferente daquela do dia anterior. Quando chegaram, porém, uma decepção os aguardava.

— Lamento, mas o Dr. Halprin telefonou hoje de manhã dizendo que ia tirar uma licença — informou a Sra. Kapland.

— Nunca soube que o Dr. Halprin houvesse faltado a um único dia de trabalho no hospital — observou Sheila. — Ele disse o motivo?

— Disse que ele e a mulher precisavam passar mais tempo juntos — respondeu a Sra. Kapland. — Mas ele vai ligar. Quer deixar um recado?

— Voltaremos depois.

Sheila girou sobre os calcanhares, e Cassy e Pitt apressaram-se em acompanhá-la. Alcançaram-na no elevador.

— E agora? — indagou Pitt.

— É hora de dar um telefonema para quem deveria estar cuidando desse problema — replicou ela. — O Dr. Halprin tirar o dia de licença por motivos pessoais é estranho demais.

— Detesto suicídios — disse Vince, ao virar à direita na Main Street. Mais adiante, via-se uma aglomeração de carros da polícia, dos bombeiros e ambulâncias. Uma multidão de espectadores era contida por uma fita delimitando a cena do crime. A tarde ia chegando ao fim e a noite começava a cair.

— Mais do que homicídios? — perguntou Jesse.

— É. Nos homicídios, a vítima não tem escolha. com os suicidas, acontece justamente o contrário. Não consigo imaginar o que seja matar a si mesmo. Só de pensar me dá calafrios.

— Você é estranho —  Observou Jesse. Com ele, ocorria o oposto. Era a inocência da vítima de um homicídio que o perturbava. Não conseguia sentir a mesma simpatia por um suicida. Achava que, se uma pessoa quisesse se matar, isso era problema dela. A dificuldade era determinar se o suicídio era mesmo suicídio e não um homicídio disfarçado.

Vince estacionou o mais perto da cena possível. Sobre a calçada, um pedaço de lona amarela cobria o cadáver. O único sangue visível era uma trilha que escorria para o meio-fio.

Os dois detetives saltaram do carro e olharam para cima. Na saliência de uma janela, seis andares acima, eles viram vários dos rapazes da perícia examinando o local.

Vince espirrou violentamente duas vezes seguidas.

— Saúde! — disse Jesse, de modo automático.

Jesse aproximou-se de um policial uniformizado parado ao lado da barreira cercada pela multidão.

— Quem está no comando aqui? — perguntou ele.

— Bem, é o capitão — respondeu o policial.

— O capitão Hernandez está aqui? — replicou Jesse, surpreso.

— É, lá em cima — disse o outro.

Jesse e Vince trocaram olhares confusos, enquanto seguiam na direção da entrada. O capitão raramente se aventurava ao local de um crime.

O edifício pertencia à Serotec Pharmaceuticals. Era a sede dos escritórios administrativos e de pesquisa. A divisão manufatureira ficava fora da cidade.

No elevador, Vince começou a tossir. Jesse afastou-se o máximo que permitia o pequeno recinto.

— Puxa — queixou-se ele. — O que há de errado com você?

— Não sei — respondeu Vince. — Talvez eu esteja tendo uma reação alérgica ou coisa parecida.

— Bem, cubra a boca quando tossir — disse Jesse. Chegaram ao sexto andar. A frente do edifício era ocupada por um laboratório de pesquisa. Havia vários policiais uniformizados perto de uma janela aberta. Jesse perguntou onde estava o capitão e os homens apontaram na direção de um escritório que se via de um lado.

— Não creio que a presença de vocês seja necessária — Disse o capitão Hernandez ao ver Jesse e Vince entrando. — A cena está toda gravada.

O capitão Hernandez apresentou Jesse e Vince à meia dúzia de funcionários da Serotec que se encontrava na sala, assim como ao investigador que encontrara a fita. Seu nome era tom Stockman.

— Rode a fita mais uma vez, Tom— Pediu o capitão Hernandez. Tratava-se de um filme em preto-e-branco feito por uma câmera de segurança com uma objetiva grande-angular. O som parecia ecoar. Via-se um homem de baixa estatura, num jaleco branco do laboratório, encarando a câmera. Ele apoiara-se na janela, parecendo ansioso. Diante dele, havia vários funcionários da Serotec, todos com jalecos brancos semelhantes. Eram vistos de costas, pois estavam de frente para o homem baixinho. Jesse calculou que fossem as mesmas pessoas que agora se encontravam no escritório.

— O nome dele era Sergei Kalinov — Informou o capitão Hernandez. — De repente, ele começou a gritar para que todos o deixassem em paz. Isso está na parte inicial da fita. Pode-se ver claramente que ninguém o está tocando e nem mesmo ameaçando.

— Ele simplesmente saltou pela janela — Disse um dos funcionários da Serotec. — Não sabíamos o que fazer.

Sergei então começou a soluçar, dizendo que sabia que estava infectado e que não poderia suportar aquilo.

Um dos funcionários era visto então adiantando-se na direção de Sergei.

— Aquele é o chefe dos técnicos, Mario Palumbo — Indicou o capitão. — Está tentando acalmar Sergei. É difícil ouvir a sua voz porque ele está falando muito baixinho.

— Eu só estava dizendo a ele que queríamos ajudar — Disse Mario, na defensiva.

De repente, Sergei virou e correu em direção à janela, lutando para abri-la. A pressa frenética sugeria que ele temia que interferissem. No entanto, nenhum dos presentes, inclusive Mario, tentou detê-lo.

Assim que conseguiu abrir a janela, Sergei subiu ao parapeito. Olhando a câmera pela última vez, ele saltou no espaço.

— Ai, cara... — gemeu Vince, desviando o olhar.

Até mesmo Jesse experimentou uma desagradável sensação de queda em seu estômago ao ver aquele homenzinho aterrorizado matar-se. Na continuação da fita, viu quando vários dos funcionários da Serotec, entre os quais Mario, foram até a janela e olharam lá para baixo. Só que aquelas pessoas não estavam agindo como se estivessem horrorizadas. Era mais como se estivessem curiosas.

Em seguida, para surpresa de Jesse, fecharam a janela e voltaram ao trabalho.

Tom interrompeu a fita. Jesse olhou para os funcionários da Serotec. Como haviam acabado de assistir à angustiante seqüência outra vez, ele teria esperado alguma reação. No entanto, não houve nenhuma. Estavam todos estranhamente alheios ao caso.

Tom recolheu a fita e estava prestes a guardá-la na sacola das provas com uma etiqueta de custódia anexa, quando o capitão Hernandez a apanhou.

— Eu cuido disso — Declarou o capitão.

— Mas esse não é...

— Eu cuido disso — Repetiu o capitão, de maneira autoritária.

— Está bem — Concordou tom, embora soubesse que aquele procedimento não era aceitável.

Jesse observou o capitão sair da sala com a fita na mão. Em Seguida, olhou para tom.

— Ele é o capitão — Disse tom, na defensiva.

Vince tossiu violentamente bem às costas de Jesse, que se voltou e lançou-lhe um olhar furioso.

— Santo Deus! Você vai contaminar a todos nós se não cobrir a boca.

— Me desculpe — Disse Vince. — De repente, comecei a me sentir péssimo. Está fazendo frio aqui?

— Não, não está frio — Afirmou Jesse.

— Merda, devo estar com febre — Queixou-se Vince.

Quem sabe não seria melhor sairmos e irmos comer num restaurante mexicano? — Sugeriu Pitt.

— Não, estou com vontade de cozinhar — Afirmou Cassy.

— Isso sempre me acalma.

Caminhavam sob as lâmpadas simples das gambiarras que cobriam a feira ao ar livre, em estilo europeu. As principais mercadorias à venda eram produtos e frutas frescas comprados diretamente das fazendas nos arredores. Mas havia também outras barracas que vendiam de tudo, de peixe a antigüidades e objetos de arte. Era um local popular, colorido e festivo. Naquele momento, quando a noite começava a cair, havia muitas pessoas fazendo compras.

— Bem, o que você quer fazer? — perguntou Pitt.

— Uma salada de macarrão — respondeu Cassy. — Salada primavera.

Pitt segurava a bolsa, enquanto Cassy escolhia os produtos. Era particularmente meticulosa ao selecionar os tomates.

— Não sei o que vou fazer quando ele voltar — disse Cassy.

— Da forma como estou me sentindo agora, não quero nem mesmo vê-lo. Pelo menos não até eu ter certeza de que voltou ao normal. Essa história toda está me deixando cada vez mais assustada.

— Tenho um apartamento à disposição — disse Pitt.

— Verdade?

— Fica perto do Costa’s Diner. O proprietário é meu primo em segundo grau, ou coisa parecida. Ele é professor no departamento de química, mas está de licença este semestre na França, vou até lá alimentar os peixes e molhar as plantas. Ele convidou para ficar lá, mas era muito trabalhoso me mudar na ocasião.

— Acha que ele não se incomodaria se eu me hospedasse lá? perguntou Cassy.

— Não — disse Pitt. — O apartamento é grande. São três quartos. Se você quiser, posso ficar lá também.

— Acha que eu estou exagerando? — indagou Cassy.

— Em absoluto — afirmou Pitt. — Depois daquela demonstração no jogo de basquete, eu mesmo estou um pouco cauteloso com ele.

— Meu Deus! Não posso acreditar que estejamos falando assim sobre Beau — disse Cassy, com emoção.

Instintivamente, Pitt aproximou-se e abraçou Cassy, que, também instintivamente, fez o mesmo. Ficaram assim abraçados, por um momento alheios às outras pessoas que enxameavam à volta deles fazendo suas compras. Depois de alguns instantes, Cassy fitou os olhos escuros de Pitt. Ambos experimentaram uma fugaz sensação do que poderia ter sido. Então, de súbito constrangidos, eles se soltaram e rapidamente voltaram à tarefa de escolher tomates.

Com as compras feitas, entre as quais se incluía uma garrafa de vinho seco italiano, encaminharam-se para o carro. A rota para o estacionamento levou-os através da seção do mercado de pulgas. De repente, Pitt parou diante de uma das barracas.

— Meu Deus! — exclamou ele.

— O que foi? — perguntou Cassy, pronta para sair correndo. Nervosa como estava, esperava o pior.

— Olhe! — disse Pitt, apontando na direção do mostruário da barraca.

Os olhos de Cassy vasculharam uma impressionante coleção de trastes que uma placa anunciava como antigüidades. Em sua maioria, eram objetos pequenos, como cinzeiros e animais de cerâmica, mas havia alguns maiores, como estátuas de gesso para jardim e abajures. Viam-se também várias caixas de vidro de bijuterias velhas e baratas.

— O que você quer que eu veja? — indagou Cassy, impaciente.

— Na prateleira de cima — indicou Pitt. — Entre a caneca de cerveja e o par de suportes de livros.

Eles se aproximaram da barraca. Cassy agora viu o que chamou a atenção de Pitt.

— Mas que interessante — comentou ela. Enfileirados com precisão, estavam seis objetos disciformes pretos, semelhantes ao que Beau encontrara no estacionamento do Costa’s Diner.

Cassy fez menção de apanhar um, mas Pitt agarrou-lhe a mão.

— Não toque nisso! — disse ele.

— Eu não ia quebrá-lo — defendeu-se Cassy. — Só queria sentir seu peso.

— Eu não quero é que isso machuque você! — afirmou Pitt. — E não o contrário. De alguma forma, Beau foi ferido pelo dele. Ou pelo menos foi o que Beau pensou. Que coincidência ver essas coisas aqui! Havia esquecido completamente que Beau encontrou um. — Ele inclinou-se e examinou um dos discos mais de perto. Lembrava-se de que ele e Beau não haviam conseguido chegar a uma conclusão sobre o material de que era feito.

— Ontem à noite vi o que Beau achou — disse Cassy. — Estava na frente do computador quando Beau fazia o download de um mundo de coisas pela Internet.

Pitt tentou atrair a atenção do proprietário para perguntar sobre os discos, mas o homem estava ocupado com outro freguês.

Enquanto os dois examinavam os discos e esperavam que o dono da barraca ficasse livre, um homem atarracado e sua mulher passaram a frente deles.

— Olhe aqui mais algumas daquelas pedras pretas sobre as quais Gertrude estava falando ontem à noite — disse a mulher.

O homem deu um resmungo.

— Gertrude disse que encontrou quatro dessas no quintal de sua casa — continuou a mulher, acrescentando então com uma risada: — Pensou que pudessem ser valiosas até descobrir que as pessoas estavam encontrando essas pedras por toda parte.

A mulher segurou um dos discos.

— Uau! É pesada — disse ela, fechando os dedos em torno dele. — E o material é frio.

Estava prestes a entregá-lo ao homem, quando gritou:

— Ai! — E o atirou, irritada, de volta à prateleira. Infelizmente, o disco deslizou e caiu alguns centímetros abaixo, dentro de um cinzeiro, que se espatifou em milhões de pedacinhos.

O som do vidro se quebrando chamou a atenção do proprietário. Vendo o que acontecera, ele exigiu o pagamento pelo cinzeiro perdido.

— Eu não vou pagar coisa alguma — disse a mulher, com indignação. — Essa coisinha preta cortou meu dedo. — Em desafio, ela ergueu o dedo médio ferido. O gesto enfureceu o proprietário, que o interpretou erroneamente como obsceno.

Enquanto a mulher e o proprietário discutiam, Pitt e Cassy entreolharam-se, em busca de confirmação do que haviam visto na escuridão que se avolumava. Quando a mulher ergueu o dedo, este lhes parecera tomado de uma leve iridescência azul!

— O que poderia ter causado isso? — sussurrou Cassy.

— Você pergunta a mim? — replicou Pitt. — Não tenho nem certeza de que aconteceu mesmo. Foi só por um segundo.

— Mas nós dois vimos — insistiu Cassy.

Foram necessários mais vinte minutos para que o proprietário e a mulher chegassem a um acordo. Depois que ela e o homem se foram, Pitt perguntou ao dono da barraca sobre os discos negros.

— O que você quer saber? — indagou o homem, mal-humorado. Fora ressarcido em apenas a metade do valor do cinzeiro.

— Sabe o que eles são? — inquiriu Cassy.

— Não tenho a menor idéia.

— Por quanto são vendidos?

— No começo, conseguia até dez dólares — disse o homem. — Mas isso foi há um ou dois dias. Agora eles estão surgindo do nada, a feira está cheia deles. Mas vou fazer uma coisa para vocês: estes aqui são de uma qualidade excepcional. Faço todos os seis Por dez dólares.

— Alguém mais foi ferido por um desses discos ?—perguntou Pit.

— Bem, um deles me espetou também — confessou o homem, dando de ombros. — Mas não foi nada: só uma espetadinha. Só que eu não consegui descobrir como ele me furou. — Apanhou um dos discos. — São tão lisinhos quanto um bumbum de bebê...

Pitt segurou o braço de Cassy e começou a puxá-la para longe dali. O homem ainda gritou:

— Ei, o que me dizem de oito dólares?

Pitt ignorou-o. Então contou a Cassy sobre a garotinha na Emergência, que fora repreendida pela mãe por dizer que uma pedra preta a mordera.

— Acha que foi um daqueles discos? — interrogou Cassy.

— É o que estou me perguntando. Porque ela também estava com gripe. Por isso estava na Emergência.

— Está insinuando que o disco negro teve alguma coisa a ver com o fato de ela pegar a gripe?

— Sei que parece loucura — respondeu Pitt. — Mas essa também foi a seqüência com Beau: ele foi espetado e então, algumas horas depois, ficou doente.

 

9:15

— Quando foi que você ouviu sobre essa entrevista coletiva de Randy Nite? — perguntou Cassy.

— Hoje de manhã, quando assistia ao jornal Today — disse Pitt. — O âncora disse que a NBC estaria transmitindo ao vivo.

— E mencionaram mesmo o nome de Beau?

— Isso foi o que me deixou estupefato — replicou Pitt. — Veja, ele foi lá apenas para fazer uma entrevista de emprego e agora vai participar de uma coletiva na TV. Isso é muitíssimo esquisito.

Cassy e Pitt estavam na sala dos médicos, na Emergência, assistindo a uma TV de treze polegadas. Sheila Miller ligara para Pitt cedo e lhe dissera que fosse até lá e levasse Cassy. O lugar era chamado de sala dos médicos, mas era usado por todos os funcionários da Emergência para relaxar por alguns momentos e para quando traziam comida de casa ou da rua.

— Para que viemos aqui? — perguntou Cassy. — Detesto faltar às aulas.

— Ela não disse... — respondeu Pitt — Mas tenho o palpite de que ela, de algum modo, passou por cima do Dr. Halprin e quer que falemos com a pessoa que ela contactou, seja lá quem for.

— Vamos mencionar o que aconteceu ontem no início da noite? — inquiriu Cassy.

Pit ergueu a mão para silenciar Cassy. O âncora do programa anunciava que Randy Nite havia chegado. No momento seguinte, o conhecido rosto de menino de Randy encheu a tela.

Antes de começar a falar, ele virou-se para o lado e tossiu. Voltando aos microfones, desculpou-se antecipadamente por sua voz e disse:

— Ainda estou me recuperando de uma gripe, portanto sejam pacientes comigo.

— Oh-oh. Ele também — comentou Pitt.

— Pois bem — começou Randy. — Bom dia para todos. Para aqueles que não me conhecem, meu nome é Randy Nite, e sou um vendedor de software.

Risadas discretas podiam ser ouvidas vindas da platéia presente. Enquanto Randy fazia uma pausa, o âncora elogiava a modéstia bem-humorada de Randy; aquele era um dos homens mais ricos do mundo e havia poucas pessoas nos países industrializados que não conheciam Randy Nite.

— Convoquei uma entrevista coletiva hoje para anunciar que estou começando um novo projeto... De fato o empreendimento mais excitante e mais importante da minha vida.

A platéia deixou escapar um murmúrio de excitação. Haviam esperado grandes notícias, e parecia que não ficariam desapontados.

— Esse novo projeto — continuou Randy — Se chamará Instituto para um Novo Começo e será patrocinado por todos os recursos reunidos da Cipher Software. Para descrever esse projeto novo e audacioso, gostaria de lhes apresentar um jovem de uma tremenda visão. Senhoras e senhores, por favor recebam meu novo assistente, o Sr. Beau Stark.

Cassy e Pitt entreolharam-se boquiabertos.

— Não posso acreditar — disse Cassy.

Beau dirigiu-se para a plataforma do orador em meio a aplausos. Vestia um terno bem-cortado e tinha os cabelos escuros penteados para trás com gel. Transpirava a confiança de um político.

— Obrigado a todos vocês por comparecerem — cumprimentou Beau com um sorriso encantador. Seus olhos azuis brilhavam como safiras engastadas no rosto bronzeado. — O Instituto para um Novo Começo é muito apropriadamente denominado. Estaremos procurando os melhores e mais brilhantes nos campos da ciência, medicina, engenharia e arquitetura. Nosso objetivo será reverter as tendências negativas a que vem sendo submetido nosso planeta. Podemos acabar com a poluição! Podemos pôr um fim aos conflitos sociais e políticos! Podemos criar um mundo condizente com uma nova humanidade! Nós podemos e o faremos!

Os repórteres presentes à coletiva irromperam num frenesi de perguntas. Beau ergueu as mãos para silenciá-los.

— Não estaremos respondendo perguntas hoje. O propósito desta reunião foi simplesmente fazer o anúncio. Daqui a uma semana convocaremos outra coletiva na qual nosso programa será apresentado com detalhes. Obrigado a todos pela presença.

A despeito das perguntas gritadas pelos repórteres, Beau desceu da plataforma, abraçou Randy Nite e, então, os dois, de braços dados, desapareceram da tela.

O comentarista tentou preencher a lacuna deixada pelo término precipitado da entrevista. Começou a especular sobre quais seriam exatamente os objetivos específicos do novo instituto e o que Randy Nite teria querido dizer quando afirmou que o projeto seria financiado por todos os recursos da Cipher Software reunidos. Ele ressaltou que tais recursos eram substanciais, mais do que o produto nacional bruto de muitos países.

— Meu Deus! — exclamou Cassy. — Pitt, o que está acontecendo com Beau?

— Acho que ele foi bem na entrevista para o emprego — disse Pitt, tentando fazer graça.

— Isso não é motivo de riso — repreendeu-o Cassy. — Estou ficando cada vez mais apavorada. O que vamos dizer à Dra. Miller?

— Por ora acho que já dissemos o bastante — afirmou Pitt.

— Ora, Pitt! — queixou-se Cassy. — Precisamos contar a ela sobre o que vimos ontem à noite e sobre os disquinhos pretos. Temos de...

— Cassy, espere aí — disse Pitt, segurando-a pelos ombros.

— Pense por um segundo como essa história vai lhe soar. Ela é a nossa única chance de fazer com que alguém importante perceba o que está acontecendo. Não creio que devamos abusar.

— Mas tudo que ela sabe neste momento é da existência dessa estranha gripe.

— É exatamente o que estou querendo dizer. Já conseguimos chamar a atenção dela para a gripe e para o fato de que esta parece causar mudanças na personalidade. Receio que, se começarmos a falar sobre coisas malucas, como, por exemplo, que a gripe é disseminada por discos pretos minúsculos ou, ainda pior, que vimos uma luz azul fugaz no dedo de uma pessoa depois de ela ser picada por um disco negro, ninguém nos dará ouvidos. A Dra. Miller já ameaçou nos mandar para a psiquiatria.

— Mas nós vimos aquela luz azul — insistiu Cassy.

— Achamos que vimos — replicou Pitt. — Ouça, primeiro precisamos fazer com que as pessoas se interessem pelo problema. Assim que tiverem investigado essa gripe e souberem que alguma coisa estranha está acontecendo, então contamos tudo a elas.

A porta se abriu e Sheila meteu a cabeça na sala.

— O homem com quem quero que vocês falem acaba de chegar — informou ela. — Mas ele estava com fome e eu o mandei para a cantina. Vamos para a minha sala e nos aprontaremos para quando ele voltar.

Cassy e Pitt levantaram-se e seguiram Sheila.

— Muito bem, vocês dois — disse Nancy Sellers a Jonathan e Candee. — Quero que vocês esperem aqui no carro, enquanto entro e converso com a mãe de Candee. Parece razoável? Os dois assentiram.

— Eu lhe agradeço muito por isso, Sra. Sellers — disse Candee.

— Você não tem de me agradecer — afirmou Nancy. — O simples fato de que seus pais estavam ocupados demais para falar ontem à noite quando telefonei e de terem preferido não retornar a ligação me diz que alguma coisa está muito errada. Eles nem mesmo sabiam que você passaria a noite lá em casa.

Nancy desceu da van, acenou para os dois e começou a caminhar na direção da entrada principal da Serotec Pharmaceuticals. Ainda dava para ver a mancha na calçada, onde o pobre Sr. Kalinov havia se chocado contra o concreto. Ela não conhecia o homem bem, pois era um funcionário relativamente novo do departamento de bioquímica, mas a notícia a entristecera. Sabia que ele tinha família e duas filhas adolescentes.

Entrando no edifício, Nancy perguntou-se o que deveria esperar. Após a morte ocorrida no dia anterior, ela não tinha certeza sobre como toda a empresa estaria funcionando. A cerimônia fúnebre estava marcada para aquela tarde. Imediatamente, porém, ela pressentiu que tudo já havia voltado à rotina.

O departamento de contabilidade ficava no quarto andar e, quando subia no elevador lotado, ela percebeu que as conversas estavam normais. Podia-se ouvir até mesmo risadas. A princípio, Nancy sentiu-se aliviada com o fato de as pessoas não se deixarem perturbar pelo episódio. Mas quando todos no elevador explodiram numa gargalhada devido a um comentário que Nancy não ouvira suficientemente bem para compreender, ela começou a sentir-se pouco à vontade. Aquela alegria parecia desrespeitosa.

Nancy encontrou Joy Taylor com facilidade. Sendo uma das mais antigas no setor, tinha sua própria sala. Quando Nancy transpôs a porta aberta, Joy estava ocupada em seu terminal de computador. Como Nancy lembrava, tratava-se de uma pessoa reservada, aproximadamente do tamanho de Nancy, só que muito mais magra. Nancy calculou que Candee houvesse puxado ao pai.

— Com licença — disse Nancy.

Joy levantou os olhos. Suas feições miúdas registraram uma irritação momentânea com o fato de ser interrompida. Em seguida, sua expressão suavizou-se e ela sorriu.

— Olá. Como vai?

— Bem — respondeu Nancy. — Não tinha muita certeza de que iria lembrar-se de mim. Sou Nancy Sellers. Meu filho Jonathan e sua filha Candee são colegas de turma.

— É claro que me lembro de você — afirmou Joy.

— Que tragédia terrível a de ontem — comentou Nancy, enquanto pensava em como trazer à baila as questões que queria discutir.

— Sim e não. Para a família, com certeza. Mas, por acaso, sei que o Sr. Kalinov tinha uma doença renal séria.

— É? — surpreendeu-se Nancy. O comentário a deixou confusa.

— É, sim — reafirmou Joy. — Há anos ele fazia hemodiálise semanalmente. Falava-se até em transplante. Tinha genes ruins. O irmão sofria do mesmo problema.

— Eu não sabia desses problemas de saúde.

— Posso ajudá-la em alguma coisa? — perguntou Joy.

— É, pode sim — respondeu Nancy, sentando-se. — Bem, na verdade, eu gostaria de conversar com você. Tenho certeza de que não é nada sério, mas achei que deveria pelo menos mencionar o fato a você. Gostaria que fizesse o mesmo por mim se Jonathan a procurasse.

— Candee foi procurar você? — indagou Joy. — Para falar sobre o quê?

— Ela está preocupada. E, para falar a verdade, eu também. Nancy percebeu um leve endurecimento nas feições de Joy.

— Com o que Candee disse estar preocupada?

— Ela acha que as coisas mudaram em casa. Por exemplo: disse que, de repente, você e seu marido estão recebendo muitas visitas. Isso a deixou insegura. Aparentemente algumas pessoas chegaram a entrar em seu quarto.

— Temos tido visitas, sim — afirmou Joy. — Tanto eu quanto meu marido começamos a participar ativamente em causas ambientais. E isso requer trabalho e sacrifício, mas nós estamos dispostos a ambos. Não gostaria de vir à nossa reunião desta noite?

— Obrigada, mas fica para outra hora — recusou Nancy.

— Basta me dizer quando. Mas agora preciso voltar ao trabalho.

— Só mais um instante — disse Nancy. A conversa não estava indo bem. Joy não estava sendo receptiva, a despeito dos esforços diplomáticos de Nancy. Era hora de usar um pouco mais de franqueza. — Meu filho e sua filha também tiveram a impressão de que vocês os estavam estimulando a dormirem juntos. Gostaria que soubesse que não concordo com isso, em absoluto. Na verdade, sou totalmente contra.

— Mas eles são saudáveis e seus genes combinam-se bem — objetou Joy.

Nancy lutou para manter a calma. Nunca ouvira uma declaração tão ridícula. Não conseguia entender a atitude casual de Joy em relação àquela questão, principalmente com o crescente problema da gravidez em adolescentes. Igualmente exasperante era a serenidade da mulher diante da óbvia agitação de Nancy.

— Jonathan e Candee de fato formam um belo casal — Nancy forçou-se a dizer. — Mas eles só têm dezessete anos e certamente não estão prontos para as responsabilidades da vida adulta.

— Se é isso o que você pensa, respeitarei sua opinião — disse Joy. — Mas eu e meu marido achamos que existem muitas questões mais importantes, como a destruição das florestas tropicais, por exemplo.

Nancy já ouvira o bastante. Estava claro para ela que não iria ter uma conversa racional com Joy Taylor. Então se levantou.

— Obrigada pela atenção — agradeceu, formalmente. — Minha única recomendação é que talvez você devesse ficar um pouco mais atenta ao estado de espírito de sua filha. Ela está preocupada.

Nancy virou-se para sair.

— Só um momento — pediu Joy. Nancy hesitou.

— Você parece muito ansiosa — disse Joy. — Acho que posso ajudá-la. — Ela abriu a gaveta superior de sua mesa e cuidadosamente tirou dali um disco preto. Colocando-o na palma da mão, estendeu-o na direção de Nancy. — Eis aqui um presentinho para você.

Nancy já estava convencida de que Joy Taylor era mais do que um pouquinho excêntrica, e esse oferecimento não-solicitado de um talismã só veio a reforçar aquela impressão. Nancy inclinou-se para a frente, a fim de olhar mais de perto. Não tinha a menor idéia do que era aquele estranho objeto.

— Pegue-o — encorajou Joy.

Por curiosidade, Nancy estendeu a mão para o objeto. Então, pensou melhor e retirou a mão.

— Obrigada... — disse ela — Mas acho melhor eu ir embora.

— Pegue — insistiu Joy. — Ele irá mudar a sua vida.

— Gosto da minha vida como ela é — replicou Nancy. Em seguida, fez meia-volta e deixou a sala. Enquanto descia no elevador, assombrava-se com a conversa que acabara de ter e que não correra como esperara. E agora tinha de pensar no que iria dizer a Candee. com Jonathan, naturalmente, a história era bem diferente. Diria a ele que ficasse bem longe da residência dos Taylor.

A porta da sala da Dra. Miller se abriu e tanto Pitt quanto Cassy se puseram de pé. Um homem careca, porém relativamente jovem, entrou na sala, seguido pela Dra. Miller. O homem estava vestido com um terno cinza amarrotado e comum. Óculos sem aros empoleiravam-se na ponta do nariz largo.

— Este é o Dr. Clyde Horn — apresentou Sheila a Cassy e Pitt. — É um agente de investigação epidemiológica dos Centros de Controle de Doença, em Atlanta. Trabalha especificamente na unidade de gripe.

Por sua vez, Cassy e Pitt foram apresentados a Clyde.

— Creio que vocês dois são os residentes mais jovens que já vi — observou Clyde.

— Não sou residente — afirmou Pitt. — Na verdade, só começo a faculdade de medicina no outono.

— E eu faço o curso de formação de professores — disse Cassy.

— Ah, entendo — replicou Clyde, obviamente confuso, no entanto.

— Pitt e Cassy estão aqui para apresentar o problema numa perspectiva pessoal — esclareceu Sheila, enquanto fazia sinal a Clyde para que se sentasse.

Todos se acomodaram.

Sheila então fez uma apresentação dos casos de gripe que estavam recebendo na Emergência. Estava de posse de alguns gráficos e tabelas, os quais mostrou a Clyde. O que mais impressionava era o que mostrava o rápido aumento no número de casos nos últimos três dias. O segundo mais curioso tratava do número de mortes de pessoas com os mesmos sintomas, associados a várias doenças crônicas, tais como diabetes, câncer, problemas renais, artrite reumatóide e enfermidades do fígado.

— Vocês conseguiram determinar a cepa do vírus? — indagou Clyde. — Quando falou comigo no telefone, isso ainda não tinha sido feito.

— E ainda não foi — respondeu Sheila. — Na verdade, ainda nem mesmo isolamos o vírus.

— Isso é curioso — observou Clyde.

— A única coisa que observamos consistentemente é uma acentuada elevação de linfocinas no sangue — disse Sheila, entregando outro gráfico a Clyde.

— Puxa vida, esses números são altos — comentou Clyde.

— E você disse que os sintomas são todos típicos de gripe?

— São — confirmou Sheila. — Apenas mais intensos do que o habitual e geralmente localizados no trato respiratório superior. Não tivemos nenhum caso de pneumonia.

— O vírus certamente estimulou o sistema imunológico — afirmou Clyde, continuando a estudar o gráfico das linfocinas.

— O curso da doença é bastante curto — informou Sheila.

— Ao contrário da gripe normal, ela alcança um pico em questão apenas de horas, cinco ou seis. Doze horas depois, os pacientes aparentemente estão bem.

— Melhores do que antes da doença — acrescentou Pitt. Clyde franziu a testa.

— Melhores? — interrogou. Sheila assentiu.

— É verdade — disse ela. — Assim que se recuperam, os pacientes exibem uma espécie de euforia com níveis de energia aumentados. O estranho é que muitos também se comportam como se tivessem sofrido uma mudança de personalidade. E é por isso que Pitt e Cassy estão aqui. Eles têm um amigo comum que, segundo insistem, está agindo como uma pessoa diferente depois de sua recuperação. Seu caso talvez tenha uma importância especial porque ele pode ter sido a primeira pessoa a ser contaminada com esse vírus específico.

— Foi realizado algum exame neurológico? — indagou Clyde.

— Certamente — respondeu Sheila. — Em alguns pacientes. Mas estava tudo normal, inclusive o fluido cerebrospinal.

— E quanto ao seu amigo, seja lá qual for o nome dele? — perguntou Clyde.

— Seu nome é Beau — disse Cassy.

— Ele não fez nenhum exame neurológico — informou Sheila. — Pensamos nisso, mas no momento ele não está à disposição.

— Em que aspectos a personalidade de Beau está diferente? — quis saber Clyde.

— Praticamente em todos — disse Cassy. — Antes da gripe, ele nunca faltava às aulas. Depois que ficou bom, não voltou mais à universidade. E acorda no meio da noite e sai para encontrar-se com pessoas estranhas. Quando perguntei sobre o que estava conversando com aquelas pessoas, ele disse que era sobre o meio ambiente.

— Ele tem noção de tempo, lugar e pessoas? — indagou Clyde.

— com toda a certeza — afirmou Pitt. — Sua mente parece especialmente aguçada. Ele também parece bem mais forte.

— Fisicamente? — perguntou Clyde. Pitt assentiu.

— Mudança de personalidade em seguida a uma gripe não é comum — disse Clyde, enquanto distraidamente coçava o alto da cabeça calva. — Essa gripe é única em outros aspectos também. Nunca ouvi falar de um ciclo tão curto. Que coisa estranha! Vocês sabem se os outros hospitais na área estão recebendo o mesmo tipo de problema?

— Não sabemos — disse Sheila. — Mas é muito mais fácil para os Centros de Controle de Doença descobrirem isso.

Uma batida forte na porta fez com que Sheila se levantasse. Tendo deixado instruções específicas para que não fossem incomodados, ela receou que houvesse chegado alguma emergência médica. No entanto, quem entrou na sala foi o Dr. Halprin. Atrás dele estava Richard Wainwright, o técnico de laboratório chefe, que ajudara a elaborar os gráficos que Sheila estava apresentando. Richard tinha o rosto vermelho e, nervosamente, mudava o peso do corpo de um pé para o outro.

— Olá, Dra. Miller — disse o Dr. Halprin alegremente. Ele havia se recuperado por completo de sua enfermidade e agora era a própria imagem da saúde. — Richard acabou de me informar que temos um visitante oficial.

O Dr. Halprin atravessou a sala e apresentou-se a Clyde como diretor do hospital. Richard, constrangido, permanecia parado junto à porta.

— Receio que o senhor tenha sido chamado aqui sob pretextos menos do que lícitos — disse o Dr. Halprin a Clyde, sorrindo afavelmente. — Como diretor da instituição, qualquer pedido de ajuda aos CCDs tem de passar por mim. Isso está expresso em nosso estatuto. A menos, naturalmente, que se trate de uma doença grave. Mas esse não é o caso da gripe.

— Lamento muitíssimo — desculpou-se Clyde, pondo-se de pé. — Minha impressão foi de que havíamos recebido uma solicitação legítima e que estava tudo em ordem. Não era minha intenção intrometer-me.

— Sem problemas — disse o Dr. Halprin. — Foi apenas um mal-entendido sem importância. A verdade é que não precisamos dos serviços dos CCDs. Mas venha à minha sala e poderemos esclarecer tudo. — Ele passou o braço pelos ombros de Clyde e conduziu-o em direção à porta.

Sheila girou os olhos, frustrada. Cassy, já perturbada e pressentindo que estavam prestes a perder uma oportunidade importante, parou diante da porta, bloqueando a saída.

— Por favor, Dr. Clyde — disse ela. — O senhor precisa nos ouvir. Alguma coisa está acontecendo nesta cidade. As pessoas estão mudando com essa doença. E isso está se espalhando.

— Cassy! — chamou Sheila, bruscamente.

— É verdade — insistiu Cassy. — Não dê ouvidos ao Dr. alprim. Ele também teve a gripe. É um deles!

— Cassy, já chega! — exclamou Sheila, agarrando Cassy e arrastando-a para um lado.

— Lamento por isso, Clyde — disse o Dr. Halprin, tranqüilizador. — Posso chamá-lo de Clyde?

— Claro — respondeu Clyde, olhando nervosamente por sobre o ombro, como se esperasse ser atacado.

— Como pode ver, esse pequeno problema está causando um significativo abalo emocional — continuou o Dr. Halprin, enquanto indicava que Clyde o precedesse, passando para o corredor. — Infelizmente, isso está perturbando a objetividade. Mas discutiremos isso em minha sala, e poderemos cuidar dos preparativos para levá-lo de volta ao aeroporto. Inclusive, tenho uma coisa que gostaria que levasse para Atlanta para mim. Algo que acredito vá interessar aos CCDs.

Sheila fechou a porta depois que os dois saíram, apoiando-se nela.

— Cassy, não creio que isso tenha sido inteligente.

— Me desculpe — disse Cassy. — Não pude evitar.

— É por causa de Beau — Pitt explicou a Sheila. — Ele e Cassy estão noivos.

— Você não precisa se desculpar — afirmou Sheila. — Fiquei igualmente frustrada. O problema é que agora estamos de volta à estaca zero.

A propriedade era magnífica. Embora houvesse sido gradualmente reduzida a menos de cinco acres no decorrer dos anos, a casa principal ainda se encontrava em bom estado. Fora construída no início do século, no estilo dos castelos franceses. A pedra usada era granito local.

— Eu gosto — disse Beau, girando no meio do grandioso salão de baile com os braços abertos. King encontrava-se sentado perto da porta, como se temesse ser deixado sozinho na mansão. Randy e uma corretora chamada Helen Bryer estavam parados a um lado.

— São quatro acres e seiscentos — disse a Sra. Bryer a Randy. — Não é um terreno grande para o tamanho da casa, mas é adjacente à propriedade onde se encontra a Cipher e portanto a extensão efetiva de terra seria muito maior.

Beau caminhou até as imensas janelas e deixou que a luz do sol cascateasse sobre ele. A visão era estupenda. com um lago espelhado no primeiro plano, lembrava-lhe da vista que se tinha da colina nas terras da Cipher.

— Ouvi seu anúncio hoje de manhã — disse a Sra. Bryer. — Devo lhe dizer, Sr. Nite, que acho que seu Instituto para um Novo Começo parece maravilhoso. A humanidade ficará agradecida.

— Uma nova humanidade — acrescentou Randy.

— Sim, certo — concordou a Sra. Bryer. — Uma nova humanidade despertada para as necessidades do meio ambiente. Acho que estávamos precisando de alguma coisa nesse gênero há muito, muito tempo.

— Não imagina quanto — disse Beau de onde estava, parado ao lado da janela. Em seguida, dirigiu-se até onde se encon- travam Randy e a Sra. Bryer. — Esta casa é perfeita para o instituto. Ficaremos com ela!

— Como? — perguntou a Sra. Bryer, embora houvesse ceguramente ouvido Beau. Ela pigarreou e olhou para Randy em busca de confirmação. Este assentiu. Beau sorriu e deixou o salão, sendo seguido por King.

— Bem, isso é maravilhoso! — exclamou a Sra. Bryer, excitadamente, ao recuperar a voz. — É uma propriedade fabulosa. Mas os senhores não desejam saber quanto o proprietário está pedindo?

— Telefone aos meus advogados — respondeu Randy, entregando um cartão à Sra. Bryer. — Eles irão preparar os papéis. — Em seguida, saiu do salão, à procura de Beau.

— É claro, Sr. Nite — replicou a Sra. Bryer, piscando. Sua voz ecoou no salão agora vazio. Ela sorriu para si mesma. Era a venda mais estranha que já fizera, mas que comissão!

A chuva soava como grãos de areia batendo na janela à direita da mesa de Jesse. Estrondos de trovões contribuíam para a atmosfera. Jesse gostava de tempestades de relâmpagos. Lembravam-lhe dos verões de sua infância, em Detroit.

Já era final de tarde e, em circunstâncias normais, Jesse estaria pronto para ir embora. Infelizmente, porém, Vince Garbon telefonara naquela manhã, doente, e Jesse precisava fazer o trabalho de dois. Tendo mais uma hora de trabalho burocrático pela frente, ele apanhou a caneca vazia e afastou-se de sua mesa. Após anos de experiência, sabia que mais uma xícara não o impediria de dormir aquela noite e o ajudaria a suportar o restante do dia.

A caminho da cafeteira comum, Jesse ficou surpreso com a quantidade de policiais, seus companheiros, que estavam tossindo, espirrando ou fungando. E ainda havia os ausentes por estarem doentes, como Vince. Havia alguma coisa por aí e Jesse considerava uma bênção não ter sido contaminado.

Voltando para sua mesa, por acaso olhou para a sala do capitão através da divisória de vidro. Para sua surpresa, o capitão estava de pé à janela, voltado para a sala dos policiais, com as mãos para trás e um sorriso de contentamento grudado no rosto. Quando percebeu o olhar de Jesse, ele acenou e lhe dirigiu um sorriso dentuço.

Jesse respondeu ao aceno. Mas, enquanto se sentava, perguntou-se o que estaria acontecendo com o capitão. Em primeiro lugar, o chefe raramente ficava até tarde, a menos que houvesse alguma operação especial e, em segundo, ele estava sempre de mau humor à tarde. Jesse nunca o vira sorrir depois do meio-dia.

Depois de acomodar-se novamente e com a caneta na mão pairando sobre um dos inúmeros formulários, Jesse arriscou outro olhar para a sala do capitão. Outra vez, para sua surpresa, o capitão continuava no mesmo lugar, exibindo o mesmo sorriso. Como um voyeur,, Jesse ficou observando o capitão por algum tempo, tentando adivinhar o motivo por que estaria sorrindo. Aquele não era um sorriso divertido. Era, sim, de satisfação.

Balançando a cabeça, perplexo, Jesse tornou a concentrar a atenção na pilha de formulários que tinha diante de si. Detestava trabalho burocrático, mas este precisava ser feito.

Meia hora mais tarde, com vários dos papéis já preenchidos, Jesse tornou a levantar-se de sua mesa. Dessa vez era devido a um chamado da natureza. Como sempre, o café já atravessara seu corpo.

Dirigindo-se ao banheiro masculino no fim do corredor, lançou um olhar à sala do capitão e ficou aliviado ao vê-la vazia. Jesse não se demorou no interior do lavatório. Fez o que tinha de fazer e saiu o mais rápido possível pois havia ali uma meia dúzia de sujeitos tossindo, espirrando e assoando o nariz.

No caminho de volta à mesa, Jesse seguiu até o bebedouro para molhar a garganta. Isso o levou a passar diante da mesa de registro de pertences, onde foi avistado pelo sargento Alfred Kinsella através da tela de arame de seu cubículo.

— Ei, Jesse! — chamou Alfred. — O que há de novo?

— Não muita coisa. Como vai indo aquele seu problema no sangue?

— Nenhuma mudança — disse Alfred, pigarreando. — Ainda preciso fazer transfusões de vez em quando.

Jesse assentiu. Assim como a maioria dos homens do departamento, ele doara sangue para Alfred. Lamentava pelo colega. Não podia imaginar o que seria ter uma doença grave que os médicos não conseguiam nem mesmo diagnosticar.

— Quer ver uma coisa estranha? — indagou Alfred. Ele tornou a pigarrear e então tossiu violentamente várias vezes, levando a mão ao peito.

— Você está bem? — perguntou Jesse.

— Sim, acho que sim — disse Alfred. — Faz uma hora mais ou menos que comecei a me sentir mal.

— Você e todo mundo — afirmou Jesse. — O que queria me mostrar de tão estranho?

— Essas coisinhas aqui.

Jesse aproximou-se do balcão alto do cofre de pertences. Viu que Alfred tinha uma série de discos negros à sua frente, cada um deles com cerca de 3,5cm de diâmetro.

— O que é isso? — indagou Jesse.

— Não tenho a menor idéia — replicou Alfred. — Na verdade, esperava que você pudesse me dizer.

— De onde eles vieram?

— Sabe a onda de infratores primários que foram trazidos nessas duas últimas noites e fichados por coisas malucas como atentado ao pudor ou por conduzirem reuniões em massa em lugares públicos sem permissão?

 Jesse assentiu. Todos estavam falando sobre isso e o próprio Jesse presenciara alguns comportamentos estranhos ultimamente.

— Cada uma dessas pessoas trazia uma dessas miniaturas pretas.

Jesse aproximou o rosto da tela metálica para olhar melhor. Os disquinhos pretos pareciam tampas de garrafas. Havia cerca de vinte deles.

— São feitos de quê? — indagou ele.

— Quisera eu saber, mas são pesados para o tamanho que têm — respondeu Alfred. Então, espirrou várias vezes e assoou o nariz.

— Deixe-me ver um deles — pediu Jesse, estendendo a mão por entre a tela com a intenção de apanhar um deles. Alfred agarrou-lhe o braço.

— Cuidado! — advertiu. — Eles parecem perfeitamente lisos, mas podem espetar. É meio estranho, pois não consegui encontrar nenhuma ponta neles. No entanto, já fui furado várias vezes. Parece uma picada de abelha.

Seguindo o conselho de Alfred, Jesse apanhou uma caneta esferográfica no bolso e usou-a para puxar um dos discos. Para sua surpresa, não foi fácil. Eram de fato pesados e era especialmente difícil virar um deles de cabeça para baixo. Jesse desistiu.

— Bem, é com você — disse ele. — Não tenho a menor idéia do que sejam essas coisas.

— Obrigado pelo menos por olhar — agradeceu Alfred, em meio a um acesso de tosse.

— Parece que você piorou só nesse pouco tempo em que estou aqui — observou Jesse. — Talvez fosse melhor ir para casa.

— Vou tentar agüentar. Comecei meu turno às cinco. Jesse seguiu para sua mesa, planejando ficar mais meia hora, no máximo, mas não foi muito longe. Às suas costas, ouviu outro acesso de tosse e o ruído de uma queda.

Fazendo meia-volta, viu que Alfred desaparecera do campo de visão. Correndo de volta ao balcão, ouviu algumas pancadas, como se alguém estivesse chutando os armários. Esticando-se sobre o balcão, Jesse olhou para baixo. Ali estava Alfred, no chão, com as costas arqueadas e o corpo estremecendo. Estava tendo uma convulsão.

— Ei, pessoal! — gritou Jesse. — Temos um homem caído no registro de pertences.

Jesse mergulhou de cabeça sobre o balcão de registros, derrubando a maior parte dos objetos que ali se encontravam, inclusive os aproximadamente vinte discos pretos. Atento à figura convulsionária de Alfred, ele não percebeu que todos os discos pousaram levemente no chão, na posição correta.

A primeira coisa que Jesse fez foi apanhar as chaves de Alfred e atirá-las sobre o balcão para que outros pudessem destrancar a porta do cubículo. Embora Jesse tivesse uma chave, a maioria não tinha. Em seguida, ele forçou um bloco de papel entre os maxilares fortemente cerrados de Alfred. Estava prestes a desabotoar o colarinho da camisa quando viu algo que o deixou estupefato. Os olhos de Alfred exsudavam uma espécie de espuma!

Atônito diante daquele espetáculo, Jesse se empertigou. Nunca vira nada parecido. Era como espuma de banho.

Dentro de segundos, outros policiais juntaram-se a Jesse. Todos estavam igualmente perplexos com a espuma que aumentava.

— Que diabo de espuma é essa? — perguntou um dos homens.

— O que importa? — replicou Jesse, rompendo o transe. — Vamos chamar uma ambulância. Agora!

Ouviu-se um estrondo de trovões simultâneo ao ruído da maca atravessando velozmente a entrada principal da Emergência do Centro Médico da Universidade, empurrada por dois paramédicos corpulentos. Alguns passos atrás, seguia Jesse Kemper. Sobre a maca, Alfred Kinsella ainda era dominado pelas convulsões. Seu rosto estava azulado e a espuma ainda saía de seus olhos, como se estes fossem duas garrafas de champanhe que houvessem sido sacudidas.

Sheila, Pitt e Cassy apareceram, saídos da sala de Sheila, onde haviam passado a maior parte do dia confrontando todos os casos de gripe, inclusive os registrados nesse dia. Sheila ouvira a comoção e reagira imediatamente. Ela fora prevenida pela enfermeira-chefe que um estranho caso estava a caminho. Os paramédicos haviam avisado com antecedência, quando deixavam o departamento de polícia.

Interceptando a maca, Sheila olhou para Alfred. Vendo a espuma, ela orientou os paramédicos para que levassem o paciente para o biombo reservado a casos de contaminação. Ela nunca vira nada parecido e não estava disposta a correr riscos. Enquanto a maca era rapidamente conduzida ao local indicado, Sheila chamou a atenção da enfermeira-chefe e lhe disse que convocasse um neurologista imediatamente.

Jesse agarrou o braço de Sheila.

— Lembra-se de mim? Sou o tenente detetive Jesse Kemper. O que há de errado com o policial Kinsella?

Sheila soltou-se.

— É isso que gostaríamos de descobrir. Pitt, venha comigo; esse vai ser um teste de fogo. Cassy, leve o tenente Kemper para a minha sala. A sala de espera está cheia demais.

Cassy e Jesse observaram Sheila e Pitt correndo pelo corredor atrás da maça.

— Fico feliz por não ser médico — afirmou Jesse.

— Somos dois então — replicou Cassy. Em seguida, apontou na direção da sala de Sheila. — Venha! Vou lhe mostrar onde o senhor pode esperar.

A espera não foi muito longa. Dentro de meia hora Sheila e Pitt apareceram à porta. Suas expressões eram fúnebres. Não era difícil adivinhar o que acontecera.

— Não tiveram sorte? — indagou Cassy.

Pitt sacudiu a cabeça.

— Ele não chegou a recuperar a consciência — contou Sheila.

— Era a mesma gripe? — perguntou Cassy.

— Provavelmente; suas linfocinas estavam muito altas — disse Pitt.

— Que diabos são linfocinas? — quis saber Jesse. — Foi isso que o matou?

— As linfocinas são parte da defesa do corpo contra a invasão — respondeu Sheila. — São uma resposta, não a causa da doença. Mas me diga uma coisa: o Sr. Kinsella sofria de alguma doença crônica, como o diabetes, por exemplo?

— Ele não sofria de diabetes — afirmou Jesse. — Mas tinha um problema grave no sangue. Precisava fazer transfusões de quando em quando.

— Tenho uma pergunta — disse Cassy, de repente. — O senhor sabe se o sargento Kinsella alguma vez mencionou algo sobre um disco preto desse tamanho mais ou menos? — Cassy fez um círculo de cerca de 3,5cm de diâmetro com o polegar e o indicador.

— Cassy! — gemeu Pitt.

— Quieto! — disse Cassy a Pitt. — A essa altura, não temos muito a perder, mas sim a ganhar.

— Que história é essa de disco preto? — indagou Sheila. Pitt revirou os olhos.

— Lá vamos nós — disse ele, para ninguém em particular.

— Vocês se referem a um disco preto plano na base, com um domo no alto e protuberâncias pequeninas em redor da borda?

— Exatamente — confirmou Cassy.

— É, ele me mostrou vários deles pouco antes de começarem as convulsões.

Cassy lançou um olhar de triunfo a Pitt, cuja expressão, em questão de segundos, passara da exasperação a um intenso interesse.

— Ele falou alguma coisa sobre ter sido espetado por um desses discos? — perguntou Pitt.

— Falou sim, algumas vezes — afirmou Jesse. — Disse que era uma coisa meio estranha, pois ele não conseguiu encontrar nenhuma aresta ou ponta. E, sabem de uma coisa, agora que estou pensando nisso, lembro que vi o chefe de polícia, o capitão Hernandez, ser espetado por um deles também.

— É melhor alguém me explicar essa história de discos pretos — disse Sheila.

— Encontramos um há quatro dias — informou Cassy. — Bem, na verdade, foi Beau quem o encontrou em meio ao cascalho, num estacionamento.

— Eu estava com ele quando o encontrou — disse Pitt. — Não tínhamos idéia do que era aquilo. Pensei que pudesse ter caído debaixo do carro de Beau.

— Após alguns minutos, Beau disse que aquilo o tinha espetado — contou Cassy. — Então, algumas horas depois, ele caiu doente com essa gripe.

— Tínhamos esquecido completamente do disco, para ser sincero — continuou Pitt. — Mas, então, aqui na Emergência, eu estava fazendo a ficha de uma garotinha com gripe, que disse que uma pedra preta a picara.

— Mas foi só um episódio ocorrido na noite passada que nos fez realmente pensar no assunto — afirmou Cassy, passando a descrever o incidente no mercado. Chegou mesmo a mencionar o leve brilho azul que ela e Pitt pensaram ter visto.

Quando Cassy acabou, o silêncio tomou conta da sala. Sheila finalmente deixou sair o ar dos pulmões através dos lábios franzidos.

— Bem, isso tudo parece loucura e, como eu disse antes, em circunstâncias normais, pediria uma consulta psiquiátrica para vocês dois. Mas a essa altura, estou disposta a investigar qualquer coisa.

— Me digam uma coisa — pronunciou-se Jesse. — Beau reconhece que está agindo de modo diferente?

— Ele diz que não — respondeu Cassy. — Mas acho difícil acreditar. Está fazendo coisas que nunca fez antes.

— Concordo — disse Pitt. — Há uma semana ele era absolutamente contra se ter cães de grande porte numa cidade. De repente, arranja um.

— É, e sem discutir o assunto comigo — afirmou Cassy. — E nós moramos juntos. Mas por que o senhor perguntou?

— Seria um ponto importante se as pessoas contaminadas estivessem dissimulando propositadamente — observou Sheila. — Teremos de ser discretos. Mas vamos primeiro conseguir um desses discos pretos.

— Podemos voltar ao mercado — lembrou Pitt.

— Talvez eu consiga um deles no registro de pertences — afirmou Jesse.

— Bem, vamos tentar as duas opções — concluiu Sheila. Ela apanhou dois cartões de visita e escreveu o telefone de sua casa no verso de ambos. Em seguida, entregou um a Jesse e o outro a pitt e Cassy. — Quem conseguir um desses discos primeiro, ligue para mim. Mas, como eu disse, vamos ser discretos. Parece que esse é o tipo de coisa que poderia causar pânico se houver aí alguma verdade.

Pouco antes de se separarem, Pitt deu a Sheila e a Jesse o número do telefone do apartamento de seu primo. Disse que ele e Cassy estariam lá. Cassy lançou-lhe um olhar interrogativo, mas não o contradisse.

— Para que lado você acha que fica a barraca que vendia os discos? — perguntou Pitt. Eles haviam entrado na feira livre aproximadamente na mesma hora em que o fizeram na tarde anterior. Tratava-se de uma área grande, mais ou menos do mesmo tamanho de duas quadras de uma cidade, e, com todas as minúsculas barracas, parecia um labirinto.

— Lembro-me de onde compramos os legumes — disse Cassy. — Por que não vamos até lá primeiro e então refazemos o trajeto?

— Boa idéia — concordou Pitt.

Encontraram a barraca onde haviam comprado os tomates com relativa facilidade.

— O que fizemos depois dos tomates? — indagou Pitt.

— Compramos as frutas. Foi naquela direção. — Cassy apontou por sobre o ombro de Pitt.

Depois de encontrarem a barraca das frutas, ambos lembraram-se do trajeto até o mercado das pulgas. Alguns minutos mais tarde, encontravam-se diante da tenda que procuravam. Infelizmente, ela estava vazia.

— Com licença — Cassy dirigiu-se ao proprietário da barraca ao lado. — Saberia me informar onde se encontra o dono desta barraca vazia?

— Ele está doente — disse o homem. — Falei com ele hoje de manhã. Pegou a gripe, como a maioria de nós.

— Obrigada — disse Cassy. Em seguida, sussurrou para Pitt; — O que fazemos agora?

— Torçamos para que o tenente Kemper tenha mais sorte.

Jesse seguira diretamente do hospital para o departamento de polícia, mas hesitara antes de entrar. A notícia da morte de Kinsella sem dúvida alguma já chegara ao departamento, e as pessoas estariam abaladas. Aquela não parecia uma boa hora para bisbilhotar no cubículo de Kinsella, principalmente se o capitão ainda estivesse por lá. Depois de ouvir Cassy e Pitt, ele lembrara quão estranho vinha sendo o comportamento do capitão ultimamente.

Assim sendo, Jesse foi para casa. Morava a menos de dois quilômetros do departamento, numa casa pequena, mas que era grande o bastante para uma pessoa. Vivia sozinho desde que a mulher morrera de câncer de mama oito anos antes. Tinha dois filhos, mas ambos preferiram a agitação de Detroit.

Jesse preparou um jantar simples. Passadas algumas horas, ele começou a pensar na idéia de voltar ao departamento, mas sabia que essa atitude despertaria curiosidade, pois não era seu hábito fazer isso, a menos que algo fora do comum estivesse acontecendo. Enquanto tentava elaborar alguma explicação, perguntou-se se Cassy e Pitt já teriam conseguido um daqueles discos. Em caso positivo, não havia necessidade de ele fazer o esforço.

Vasculhando os pedacinhos de papel em seu bolso, localizou o número do telefone do garoto e fez a ligação. Foi Pitt quem atendeu.

— Fracassamos — disse Pitt. — O sujeito que tinha os discos está doente. Perguntamos em outras barracas e nos disseram que eles haviam inundado a feira de tal forma que não podiam mais vendê-los. Assim, ninguém mais os tinha.

— Droga! — lamentou-se Jesse.

— O senhor também não conseguiu? — perguntou Pitt.

— Ainda não tentei — admitiu Jesse. De repente, ocorreulhe uma idéia. — Ei, haveria alguma chance de vocês dois virem comigo até o departamento de polícia? Talvez pareça engraçado, mas se eu entrar lá sozinho, todos vão se perguntar o que estou fazendo. Se chegar agindo como se estivesse investigando alguma coisa, não haverá problema.

— Está tudo bem para mim — concordou Pitt. — Espere um minuto,vou perguntar a Cassy.

Jesse ficou brincando com o fio do telefone. Pitt voltou rapidamente.

— Ela está disposta a fazer qualquer coisa para ajudar — disse ele. — Onde vamos nos encontrar?

—  Vou até aí e apanho vocês — disse Jesse. — Mas só depois da meia-noite. Quero que o pessoal do segundo turno já tenha ido para casa. Vai ser mais fácil no turno da madrugada. Tem muito menos gente por lá. — Quanto mais Jesse pensava na idéia, melhor ela lhe parecia.

Era uma e quinze quando Jesse entrou no estacionamento do departamento de polícia, parou na vaga que lhe era reservada e desligou o motor.

— OK, meninos — disse ele. — Vamos fazer o seguinte: entramos pela porta da frente. Vocês terão de passar pelo detector de metais. Então seguiremos diretamente para minha mesa. Se alguém perguntar o que vocês estão fazendo, digam apenas que estão comigo. OK?

— Devo ter medo de entrar aí? — perguntou Cassy. Nunca pensou que ficaria preocupada em entrar num departamento de polícia.

— Não, nem um pouco — assegurou-lhe Jesse. Saltaram do carro e entraram no prédio. Enquanto Pitt e Cassy passavam pelo detector de metais, ouviram o policial uniformizado na recepção ao telefone:

— Certo, senhora. Iremos para aí assim que pudermos. Sabemos que os guaxinins podem perturbar. Infelizmente estamos com poucos homens hoje, com a gripe que anda por aí...

Alguns minutos mais tarde, estavam sentados à mesa de Jesse. A sala estava deserta.

— Está melhor do que pensei — disse Jesse. — Não há praticamente ninguém por aqui.

— A hora certa de roubar um banco — comentou Pitt.

— Isso não é engraçado — repreendeu-o Cassy.

— OK, vamos nos levantar e ir até o registro de pertences — disse Jesse. — Eis aqui a minha caneta. Se for preciso, fingiremos que a estamos registrando, como se pertencessem a vocês.

Pitt apanhou a caneta. Os três se levantaram.

O cubículo do registro de pertences estava trancado. Apenas a luz do corredor brilhava através da tela metálica, iluminando o interior.

— Muito bem, vocês esperam aqui — ordenou Jesse, abrindo a porta com sua chave. Uma rápida olhada pelo chão revelou-lhe que alguém recolhera os discos e os outros objetos que ele derrubara do balcão quando pulara para ajudar Alfred.

— Droga! — praguejou ele.

— Algum problema? — perguntou Pitt.

— Alguém fez uma arrumação aqui — disse Jesse. — Os discos devem ter sido guardados em envelopes, e aqui há uma pilha imensa deles.

— O que vai fazer?

— Abrir todos — respondeu Jesse. — Não tem um jeito mais rápido.

Jesse começou. Levou mais tempo do que esperara. Ele precisava torcer os fechos, abrir os envelopes e olhar o interior destes.

— Podemos ajudar? — ofereceu Pitt.

— Claro, por que não? — replicou Jesse. — Ficaremos aqui a noite inteira.

Os garotos entraram no cubículo e, seguindo a orientação de Jesse, começaram a abrir os envelopes.

— Eles têm de estar aqui, em algum lugar — disse Jesse, com irritação.

Os três trabalhavam em silêncio. Cerca de cinco minutos depois, Jesse inclinou-se para a frente e sussurrou:

— Agüentem aí!

Lentamente, ele ergueu-se, de modo a poder ver sobre o tampo do balcão. Pensara ter ouvido ruído de passos. O que viu fez seu coração falhar uma batida. Precisou piscar para ter certeza de que não se tratava de uma aparição. E não era mesmo. Era o capitão e vinha em sua direção. Jesse tornou a abaixar-se.

— Meu Deus — sussurrou ele. — O capitão está vindo. Escondam-se debaixo do balcão e não se mexam.

Assim que os garotos estavam em posição, Jesse ergueu-se. Como ainda havia tempo, saiu do cubículo do registro de pertences. Caminhando rapidamente, ele interceptou o capitão no corredor.

— O policial encarregado disse que você estava aqui, Kemper — afirmou o capitão. — Que diabos está fazendo? São quase duas da manhã.

Jesse ficou tentado a devolver a pergunta, visto que era muito mais estranho que o capitão estivesse ali do que ele. Mas Jesse refreou a língua. Em vez disso, respondeu:

— Só tratando de um problema com dois garotos.

— No registro de pertences? — indagou o capitão, olhando por sobre o ombro de Jesse.

— É, estou procurando uma prova — disse Jesse. Em seguida, para mudar de assunto, acrescentou: — Que tragédia o que aconteceu com Kinsella.

— Nem tanto — replicou o capitão. — Ele tinha aquela doença crônica no sangue. Ouça, Kemper, como está se sentindo?

— Eu? — questionou Jesse, atônito com a resposta do capitão a respeito de Kinsella.

— É claro que é você. — respondeu o capitão. — Com quem mais eu estou falando?

— Eu estou bem — afirmou Jesse. — Graças a Deus.

— Ora, que estranho — disse o capitão. — Ouça, dê uma passada na minha sala antes de ir embora. Tenho uma coisa para você.

— Certo, capitão — anuiu Jesse.

O capitão deu outra olhada por sobre o ombro de Jesse antes de voltar para sua sala. Jesse observou-o afastar-se, perplexo com o que estava se passando em sua mente.

Quando o capitão já havia desaparecido de vista, Jesse voltou apressadamente para dentro do cubículo do registro de pertences.

— Vamos encontrar um daqueles discos e dar o fora daqui — disse ele.

Cassy e Pitt saíram de seu esconderijo no espaço sob o balcão. Os três recomeçaram a abrir envelopes.

— Ah-ha! — disse Jesse, olhando o interior de um particularmente pesado. — Finalmente! — Ele levou a mão para tirar o objeto do envelope.

— Não toque nele! — gritou Cassy.

— Eu ia tomar cuidado — disse Jesse.

— Acontece muito rápido — argumentou Pitt.

— Muito bem, então não vou tocá-lo. Vamos deixá-lo no envelope. Deixe-me só assinar esse formulário de custódia e então a gente dá o fora daqui.

Alguns minutos mais tarde, estavam de volta à mesa de Jesse, na sala praticamente vazia. Jesse olhou para a sala do capitão. A luz estava acesa, mas o capitão não se encontrava à vista.

— Vamos dar uma olhada nisso — disse Jesse.

Ele abriu o fecho do envelope e deixou o disco escorregar para o mata-borrão.

— Parece inofensivo — comentou Jesse. Como fizera antes, usou uma caneta para movê-lo. — E também não há nenhuma abertura. Como poderia espetar alguém?

— Nas duas vezes em que presenciei um deles furando alguém, a pessoa havia envolvido o disco todo com os dedos ou a palma da mão — afirmou Pitt.

— Mas se não existe uma abertura, isso não pode acontecer — insistiu Jesse. — Talvez não sejam todos iguais. Talvez alguns espetem e outros não. — Ele apanhou os óculos de leitura, que detestava por motivos de vaidade, colocou-os e então inclinou-se sobre o objeto para ter uma visão mais de perto, ampliada. — Parece ônix polido, só que não tão brilhante. — com a ponta do dedo, tocou o topo da cúpula.

— Eu não faria isso — advertiu Pitt.

— O material é frio — disse Jesse, ignorando Pitt. — E também muito liso. — Cuidadosamente, ele deslizou a ponta do dedo, descendo do ápice do domo em direção à periferia, com a intenção de sentir as pequenas protuberâncias que se alinhavam na borda do objeto. O som de uma gaveta sendo fechada com força na mesa do oficial de serviço fez com que ele recolhesse a mão, assustado.

— Acho que estou um pouquinho tenso — explicou Jesse.

— E com razão — acrescentou Pitt.

Pronto para retirar a mão diante do menor pretexto, Jesse tocou uma das pequenas saliências. Nada aconteceu. Ainda tomando o mesmo cuidado, ele começou a correr a ponta do dedo em torno da periferia do disco. Já havia percorrido mais ou menos um quarto da circunferência, quando algo de extraordinário aconteceu. Uma fenda de cerca de um milímetro se formou na superfície sem emendas da borda do disco.

Jesse afastou a mão com um arranco, a tempo de ver uma agulha metálica sair pela fenda, estendendo-se a uma distância de vários milímetros. De sua ponta, brotou uma única gota de um fluido amarelado. No instante seguinte, a agulha tornou a retrair-se e a fenda desapareceu. Toda a seqüência durara apenas um segundo.

Três pares de olhos atônitos ergueram-se e se entreolharam.

— Vocês viram isso? — perguntou Jesse. — Ou eu estou ficando maluco?

— Eu vi — afirmou Cassy. — E temos uma prova. Tem um ponto molhado no mata-borrão.

Com nervosismo, Jesse curvou a cabeça para a frente e, com suas lentes de aumento, que era como ele chamava os óculos, examinou o ponto onde a fenda havia se formado.

— Não tem nada aqui, nem mesmo uma linha.

— Espere um segundo — disse Pitt. — Não chegue muito perto. Esse fluido deve ser infeccioso.

Sendo hipocondríaco, Jesse não precisava de outras advertências. Ele levantou-se da cadeira e afastou-se vários passos.

— O que devemos fazer?

— Precisamos de uma tesoura e um recipiente, de preferência de vidro — afirmou Pitt. — E um pouco de desinfetante à base de cloro.

— Que tal um pote de creme para café? — sugeriu Jesse.

— Não sei sobre o desinfetante, mas vou checar no armário do zelador. Tem uma tesoura na gaveta de cima.

— Um pote de creme para café serviria — disse Pitt. — E o que me diz de luvas de látex?

— Temos também — respondeu Jesse. — Eu já volto. Jesse conseguiu encontrar tudo de que Pitt precisava. com a tesoura, o jovem cuidadosamente cortou um círculo no mataborrão, incluindo o ponto molhado expelido pelo disco, e guardou-o no pote. A parte inferior do mata-borrão não parecia molhada, mas ainda assim ele desinfetou aquela área na mesa com o produto à base de cloro. As luvas e a tesoura foram colocadas num saco plástico.

— Acho que devíamos telefonar para a Dra. Miller — disse Pitt, depois de tudo pronto.

— Agora? — interrogou Jesse. —Já passa das duas da manhã.

— Ela vai querer saber disso já — argumentou Pitt. — Acho que vai querer começar imediatamente a fazer a cultura do que quer que haja nessa amostra.

— OK, você liga para ela — concordou Jesse. — Preciso ir ver o capitão. Quando eu voltar, vocês me dizem se os levo para o centro médico ou para casa.

Enquanto Jesse se dirigia para a sala do capitão, a sua mente era um emaranhado de pensamentos desconexos. Tantas coisas estranhas haviam acontecido num período de tempo tão curto.

— Principalmente aquela abertura aparecendo, como num passe de mágica, no disco preto — Que ele se sentia meio tonto. Também estava exausto, pois já se passara havia muito a sua hora de dormir. Nada parecia real. Até mesmo o fato de estar indo ver o capitão depois das duas da manhã.

A porta da sala do capitão estava aberta. Jesse parou na soleira. O capitão encontrava-se sentado à sua mesa, ocupado, escrevendo, como se estivessem no meio do dia. Jesse teve de admitir que o capitão parecia mais bem disposto do que jamais o vira, apesar da hora.

— Com licença, capitão — disse Jesse. — O senhor queria falar comigo?

— Entre — chamou o capitão, acenando para que Jesse se aproximasse da mesa. Ele sorria. — Obrigado por vir. Diga-me, como se sente agora?

— Bastante cansado, senhor — respondeu Jesse.

— Não está doente?

— Não, graças a Deus.

— Resolveu o problema com os dois garotos?

— Ainda estou trabalhando nele — afirmou Jesse.

— Bem, eu queria recompensá-lo por sua dedicação ao trabalho — disse o capitão. Então abriu a gaveta do meio de sua mesa, enfiou a mão ali e tirou um dos discos negros!

Os olhos de Jesse se arregalaram com o susto.

— Quero que você guarde este símbolo de um novo começo — prosseguiu o capitão. Ele tinha o disco na palma da mão e o estendeu para Jesse.

O tenente experimentou uma sensação de pânico.

— Obrigado, senhor, mas não posso aceitar.

— É claro que pode — insistiu o capitão. — Não parece grande coisa, mas irá transformar sua vida. Acredite em mim.

— Ah, eu acredito, senhor — replicou Jesse. — Eu simplesmente não mereço.

— Bobagem. Pegue, meu rapaz.

— Não, obrigado. Estou mesmo cansado. Preciso dormir um pouco.

— Estou ordenando que pegue — disse o capitão, um tom ríspido surgindo nitidamente em sua voz.

— Sim, senhor. — Jesse estendeu a mão trêmula. Em sua mente, ele via a reluzente agulha metálica. Ao mesmo tempo, lembrou-se de que para acionar o mecanismo, ele tocara a borda do disco. Também percebeu que o capitão não estava tocando a borda, mas que oferecia o disco sobre a palma da mão aberta.

— Pegue, meu amigo — instou o capitão.

Jesse abriu a mão, com a palma voltada para cima, e a colocou ao lado da do capitão. Este fitou-o nos olhos. Jesse devolveu o olhar e notou que as pupilas de seu superior estavam muito dilatadas.

Durante alguns momentos viram-se diante de um impasse.

Por fim, o capitão cuidadosamente inseriu o polegar sob o disco e o ergueu, apoiando o dedo indicador sobre o alto da cúpula. Era óbvio que ele estava evitando a borda. Em seguida, colocou-o sobre a palma de Jesse.

— Obrigado, chefe — disse Jesse, evitando olhar para aquela coisa amaldiçoada. Em seguida, bateu em rápida retirada.

— Você irá me agradecer — o capitão ainda gritou às suas costas.

Jesse disparou em direção à sua mesa, aterrorizado pelo medo de ser espetado a qualquer momento. Mas isso não aconteceu e ele conseguiu fazer o pequeno disco deslizar de sua mão sem qualquer incidente, indo bater no outro disco com um som como o de duas bolas de bilhar de marfim colidindo.

— Que diabos... — começou Pitt.

— Nem pergunte! — interrompeu-o Jesse. — Mas vou lhe dizer uma coisa: o capitão não está do nosso lado.

Erguendo o pote de creme para café à altura da luz, Sheila examinou por sob o rótulo o pedaço de mata-borrão contido ali dentro.

— Essa pode ser a oportunidade de que precisávamos — disse ela. — Mas me contem outra vez exatamente o que aconteceu.

Cassy, Pitt e Jesse começaram a falar todos ao mesmo tempo.

— Ei! — exclamou Sheila. — Um de cada vez.

Cassy e Pitt cederam a vez a Jesse, que recontou o episódio, enquanto os outros dois contribuíam com alguns detalhes. Quando Jesse começou a descrever a parte em que a fenda aparecera no disco, arregalou os olhos e puxou a mão bruscamente, imitando o gesto que havia feito então.

Sheila pousou o pote sobre sua mesa e olhou através das lentes de um microscópio dissecador binocular. Um dos discos pretos estava posicionado sobre a bandeja.

— Essa situação está se tornando cada vez mais absurda — observou ela. — Sou obrigada a lhes dizer que a superfície não apresenta qualquer ponto. Eu juraria que se trata de um pedaço sólido de matéria, qualquer que seja esta.

— Pode parecer isso, mas não é assim — afirmou Cassy.

— Esse objeto é definitivamente mecânico. Nós todos vimos a fenda.

— E a agulha — acrescentou Pitt.

— Quem fabricaria uma coisa assim? — perguntou Jesse.

— Quem poderia fazer isso? — ecoou Cassy.

Os quatro entreolharam-se. Durante alguns minutos, ninguém falou. A pergunta retórica de Cassy era inquietante.

— Bem, não poderemos responder a qualquer pergunta antes de descobrirmos o que se encontra no fluido que molhou o mata-borrão — disse Sheila. — O problema é que tenho de fazer isso por minha própria conta. Foi Richard, o chefe dos técnicos do laboratório do hospital, que tagarelou para o diretor sobre nosso visitante dos CCDs. Não posso confiar nas pessoas do laboratório.

— Precisamos conseguir a ajuda de outras pessoas — observou Cassy.

— É, como a de um virologista, por exemplo — concordou Pitt.

— Tendo em vista o que aconteceu com o homem dos CCDs, isso não vai ser fácil — afirmou Sheila. — É difícil saber quem já teve essa gripe e quem não a teve.

— Exceto quando se trata de pessoas que conhecemos bem — comentou Jesse. — Eu sabia que o capitão estava agindo de maneira estranha, só não sabia por quê.

— Mas não podemos usar o medo de não saber quem esteve doente como uma desculpa para ficarmos aqui parados, sem fazer nada — argumentou Cassy. — Precisamos advertir as pessoas que ainda não foram contaminadas. Conheço um casal que poderia ser de grande ajuda. Ela é virologista e ele, físico.

— Parece perfeito, desde que não tenham sido espetados — disse Sheila.

— Creio que posso descobrir — replicou Cassy. — O filho deles estuda numa das turmas em que estou fazendo estágio. Ele também suspeita de que alguma coisa de estranho está acontecendo porque os pais da namorada foram evidentemente contaminados.

— Esse pode ser um ponto preocupante — afirmou Sheila.

— Pelo que Jesse nos contou sobre o capitão, tenho a nítida e incômoda impressão de que as pessoas contaminadas têm uma visão evangelizadora de sua condição.

— Exato — concordou Jesse. — Ele não estava disposto a ser contestado. Estava decidido a me dar aquele disco negro, dissesse eu o que dissesse. Queria que eu ficasse doente, não há dúvida.

— Vou tomar cuidado — tranqüilizou-os Cassy — e, como você já disse, serei discreta.

— OK, vamos tentar — assentiu Sheila. — Enquanto isso, vou fazer alguns testes preliminares nesse fluido.

— O que vamos fazer com os discos? — indagou Jesse.

— Acho que a pergunta é: o que eles vão fazer conosco? — replicou Pitt, observando aquele que se encontrava posicionado sob o microscópio.

 

9:00

Fazia uma manhã gloriosa, com o céu de um azul cristalino e sem nuvens. À distância as montanhas púrpuras e serrilhadas pareciam cristais de ametista banhados numa luz dourada.

Diante do portão da propriedade, reunira-se uma multidão em expectativa. Havia pessoas de todas as idades e com as mais diversas ocupações, de mecânicos a cientistas espaciais, de donas-de-casa a diretores de empresas, de alunos da escola secundária a professores universitários. Todos mostravam-se ávidos, felizes e transpirando saúde. A atmosfera era festiva.

Beau saiu da casa acompanhado por King, desceu os degraus, caminhou quinze metros e então fez meia-volta. O que viu o agradou imensamente. Durante a noite fora confeccionada uma grande faixa, que ia de um lado ao outro da fachada do prédio, e dizia: “O Instituto para um Novo Começo... Seja bem vindo!”

Os olhos de Beau percorreram toda a área. Ele conseguira realizar uma quantidade extraordinária de coisas em apenas 24 horas. Estava feliz por não ter mais necessidade de dormir, exceto por curtos períodos. De outra forma não teria sido possível.

A sombra das árvores ou andando pelo gramado salpicado de sol, Beau via dúzias de cães de várias raças. A maioria era de animais grandes e nenhum deles usava coleira. Beau podia perceber que estavam bastante alertas, como sentinelas, e isso o deixava contente.

Com passos lépidos, retornou à varanda, juntando-se a Randy.

 — Então, é isso — disse Beau. — Estamos prontos para começar.

— Que dia importante para a Terra! — exclamou Randy.

— Faça entrar o primeiro grupo — decidiu Beau. — Vamos iniciá-los no salão de baile.

Randy apanhou o telefone celular, discou e pediu a um de seus funcionários que abrisse o portão. Alguns momentos depois, Randy e Beau puderam ouvir gritos de viva erguendo-se no ar fresco da manhã. De onde se encontravam, não dava para ver o portão da frente, mas certamente eles podiam ouvir as pessoas gritando enquanto entravam.

Com um zunido de excitação, a multidão seguiu como um enxame na direção da casa, formando espontaneamente um semicírculo diante da varanda.

Beau estendeu a mão para a frente, como um general romano, e instantaneamente a multidão calou-se por completo.

— Bem-vindos! — gritou Beau. — Este é o novo começo! Vocês todos são testemunhas de que partilhamos os mesmos pensamentos e visões. Todos sabemos o que precisamos fazer. Portanto, vamos fazê-lo!

Um viva e uma salva de palmas brotaram da multidão. Beau voltou-se para Randy, que estava radiante. Ele também aplaudia. Beau fez um sinal a Randy para que entrasse na casa e então o seguiu.

— Que momento eletrizante — comentou Randy, quando seguiam na direção do salão de baile decorado.

— É como se fôssemos um imenso organismo — afirmou Beau, assentindo com a cabeça, num gesto de compreensão.

Os dois homens entraram na ampla sala banhada de sol e ficaram parados a um lado. A multidão seguiu-os imediatamente, enchendo a sala. Então, respondendo a uma ordem invisível e muda, puseram-se a desmantelar o salão.

Cassy deixou escapar um silencioso suspiro de alívio ao se ver diante de Jonathan, quando a porta da casa dos Sellers se abriu. Esperando o pior, ela antecipara ter de enfrentar Nancy Sellers de imediato.

— Srta. Winthrope! — exclamou Jonathan, num misto de surpresa e prazer.

— Você me reconheceu fora da escola — observou Cassy. — Estou impressionada.

— É claro que a reconheci — retrucou Jonathan, sem pensar. Precisou esforçar-se para resistir ao ímpeto de descer os olhos abaixo do pescoço de Cassy. — Entre, por favor.

— Seus pais estão em casa? — indagou Cassy.

— Mamãe está.

Cassy estudou o rosto do rapaz. com os cabelos claros caindo sobre a testa e os olhos tímidos e inquietos, parecia ser o mesmo de sempre. Sua maneira de vestir-se também a tranqüilizou. Usava um suéter de malha muito grande e um calção bem largo que mal se segurava em sua cintura.

— Como está Candee? — perguntou Cassy.

— Não a vejo desde ontem.

— E os pais dela? — interrogou Cassy. Jonathan deixou escapar uma risadinha sardônica.

— Estão pirados. Minha mãe teve uma conversa com a de Candee, e ficou na mesma.

— E quanto à sua mãe? — Cassy tentou estudar os olhos de Jonathan, mas era o mesmo que tentar examinar uma bola durante uma partida de pingue-pongue.

— Minha mãe está bem. Por quê?

— Muitas pessoas estão agindo de forma estranha ultimamente. Sabe, como os pais de Candee e o Sr. Partridge.

— É, eu sei — disse Jonathan. — Mas minha mãe não.

— E seu pai?

— Ele também está bem.

— Ótimo. Agora eu gostaria de aceitar seu convite para entrar. Vim aqui conversar com sua mãe.

Jonathan fechou a porta depois de Cassy entrar e então gritou, com a capacidade máxima de seus pulmões, anunciando que tinham visita. O grito ecoou pela casa e Cassy deu um pulo. Apesar de tentar agir com calma, estava tão tensa quanto uma corda de violão.

— Você aceita um copo d’água ou algo assim? — ofereceu Jonathan.

Antes que Cassy pudesse responder, Nancy Sellers apareceu no alto da escada, junto à balaustrada no segundo andar. Estava vestida de modo casual, comjeans desbotados e uma blusa solta.

— Quem é, Jonathan? — perguntou Nancy. Ela podia ver Cassy, mas graças ao ângulo em que o sol entrava pela janela do hall, o rosto da jovem estava perdido entre as sombras.

Jonathan gritou quem era e fez sinal para que Cassy o seguisse até a cozinha. Mal Cassy havia se acomodado numa banqueta, Nancy apareceu.

— Mas que surpresa! — exclamou Nancy. — Aceita um café?

— Aceito, sim — replicou Cassy, observando a mulher que, enquanto se dirigia ao fogão para pegar o jarro de café, gesticulou para que Jonathan apanhasse a xícara. Em seu dedo indicador via-se um Band-Aid recente e Cassy sentiu o próprio pulso acelerar. Um ferimento de qualquer espécie nas mãos não era bem o que ela esperara ver.

— A que devemos sua visita? — indagou Nancy, enquanto servia meia xícara de café para si mesma.

Cassy tropeçou nas palavras.

— O que aconteceu com seu dedo?

Nancy lançou um olhar ao Band-Aid, como se ele tivesse acabado de aparecer ali.

— Foi só um cortezinho — respondeu ela.

— Com algum objeto de cozinha? — insistiu Cassy. Nancy examinou o rosto da moça.

— Isso tem alguma importância? — replicou ela.

— Bem... — gaguejou Cassy. — É, tem, sim. Tem muita importância.

— Mamãe, a Srta. Winthrope está preocupada com as pessoas que estão mudando de comportamento — interveio Jonathan, mais uma vez vindo em socorro de Cassy. — Você sabe, como a mãe de Candee. Eu já contei a ela que vocês conversaram e que você achou que a mulher estava fora de órbita.

— Jonathan! — repreendeu-o Nancy. — Eu e seu pai concordamos em que não iríamos comentar sobre os Taylor fora de casa. Pelo menos até...

— Não creio que possamos esperar — interrompeu Cassy. Aquela pequena explosão a encorajara a acreditar em que Nancy não fora contaminada. — As pessoas estão mudando rapidamente em toda a cidade; não são só os Taylor. Talvez o mesmo esteja acontecendo em outras cidades. Não sabemos. Esse fenômeno está se fazendo acompanhar de uma doença que se assemelha à gripe e que, até onde podemos verificar, está sendo disseminada por pequenos discos pretos que têm a capacidade de espetar as mãos das pessoas.

Nancy olhou Cassy fixamente.

— Você está falando de um disquinho preto com uma espécie de corcova no meio, com cerca de quatro centímetros de diâmetro?

— Exatamente — confirmou Cassy. — A senhora viu algum? Muitas pessoas têm um deles.

— A mãe de Candee tentou me dar um... — contou Nancy. — Foi por isso que você perguntou sobre o meu BandAid?

Cassy assentiu.

— Foi uma faca — explicou Nancy. — Uma rosca dura e uma faca.

— Peço desculpas por ter desconfiado da senhora — disse Cassy.

— Creio que isso é compreensível — tranqüilizou-a Nancy. — Mas por que você veio aqui?

— Para pedir sua ajuda. Temos um grupo, um grupo pequeno, que está tentando descobrir o que está acontecendo. Mas precisamos de ajuda. Temos um pouco do fluido liberado por um dos discos e, sendo a senhora uma virologista, saberia o que fazer com ele. Estamos receosos de usar o laboratório do hospital porque acreditamos que muitas pessoas por lá foram contaminadas.

— Vocês suspeitam de um vírus? — indagou Nancy. Cassy deu de ombros.

— Não sou médica, mas a doença se parece com uma gripe. Também não sabemos nada sobre os discos pretos. Foi aí que pensamos que seu marido poderia ajudar também. Não sabemos como aquelas coisas funcionam ou mesmo do que são feitos.

— Vou precisar conversar com meu marido — afirmou Nancy. — Como posso entrar em contato com você?

Cassy lhe deu o número do telefone do apartamento do primo de Pitt, onde ela passara a noite anterior. Também lhe deu o número direto da Dra. Sheila Miller.

— OK — disse Nancy. — Eu lhe darei uma resposta ainda hoje.

Cassy se levantou.

— Obrigada e, como já disse, precisamos de vocês. O problema está se espalhando como uma praga.

A rua estava escura, exceto pelos postes de iluminação pública dispostos em grandes intervalos. À distância, dois homens se aproximavam, caminhando, acompanhados por grandes pastores alemães. Tanto homens quanto cães agiam como se estivessem patrulhando a rua. Suas cabeças voltavam-se constantemente de um lado para o outro, como se procurassem alguma coisa, alertas a qualquer ruído.

Um sedã de cor escura surgiu e parou. A janela se abriu e o rosto pálido de uma mulher apareceu. Os dois homens fitaram a mulher, mas ninguém falou. Era como se estivessem conversando, sem a necessidade de palavras. Alguns minutos depois, o vidro do carro voltou a subir silenciosamente e o carro afastou-se.

Os dois homens recomeçaram a andar e, quando os olhos de um deles passou pela linha de visão de Jonathan, este pensou ter visto um brilho, como se aqueles olhos estivessem refletindo uma fonte de luz oculta.

Instintivamente, Jonathan afastou-se da janela e deixou a cortina voltar ao lugar. Não sabia se o homem na rua o vira ou não.

Após um momento, Jonathan voltou a abrir, com todo o cuidado, uma minúscula fenda no centro da cortina. Estando ele mesmo num ambiente escuro, não temia que a luz o denunciasse.

Jonathan pôs o olho na fresta. Lá embaixo, na rua, pôde ver que os dois homens e seus cães continuavam a andar, exatamente como antes. O garoto deixou escapar um suspiro de alívio. Eles não o haviam visto.

Soltando a cortina, Jonathan saiu do banheiro e voltou à sala de estar, juntando-se aos outros. Ele e os pais tinham vindo para o apartamento onde Cassy e seu amigo Pitt estavam se hospedando. Tratava-se de um apartamento grande, de três quartos, num condomínio arborizado e de edifícios baixos. Jonathan achou o lugar bacana. Ali havia vários aquários e plantas tropicais espetaculares.

Jonathan pensou em contar o que acabara de ver, mas estavam todos muito preocupados. Todos, com exceção de seu pai, que estava de pé, afastado do grupo, o cotovelo apoiado no consolo da lareira. Jonathan reconheceu sua expressão. Era aquele ar de condescendência que ele assumia todas as vezes que o filho lhe pedia ajuda em matemática.

Jonathan fora apresentado aos outros. Já vira o policial negro antes e ficara impressionado. No último outono, ele fora à escola participar de um programa de orientação vocacional. Jonathan nunca vira a Dra. Sheila Miller, mas manteve uma certa reserva em relação a ela. Apesar dos cabelos louros, a mulher o fazia lembrar da bruxa no vídeo da Branca de Neve a que os pais o tinham feito assistir quando era garoto. Nela nada havia de feminino, não como em Cassy. As unhas compridas em nada ajudavam, principalmente porque estavam pintadas com uma cor bem escura.

O amigo de Cassy, Pitt, parecia um cara legal, exceto pelo fato de Jonathan sentir uma pontada de ciúme por causa de Cassy. Não sabia se eram namorados, mas parecia que estavam morando juntos naquele apartamento. Jonathan desejou ter um físico como o de Pitt e talvez até mesmo cabelos escuros, se era disso que Cassy gostava.

Sheila pigarreou, limpando a garganta.

— Então, vamos resumir — disse ela. — Estamos lidando com um agente infeccioso que fez adoecerem as cobaias de imediato, mas os animais não produziram nenhum microorganismo perceptível; para ser mais específica, não produziram nenhum vírus. A doença não é transmitida pelo ar, caso contrário, estaríamos todos contaminados. Pelo menos eu com certeza estaria, pois estou praticamente morando na Emergência, que, nesses últimos dois dias, tem estado literalmente cheia de pessoas infectadas, que não param de tossir e espirrar.

— Você já inoculou culturas teciduais? — indagou Nancy.

— Não — respondeu Sheila. — Não creio que eu tenha experiência suficiente para esse tipo de trabalho.

— Então, acredita que a doença seja transmitida apenas por via parenteral — observou Nancy.

— Exatamente — concordou Sheila. — Por um desses discos pretos.

Ambos os discos encontravam-se dentro de um recipiente Tapperware sem tampa colocado sobre a mesinha de centro. Nancy apanhou um garfo e começou a empurrá-los de um lado para o outro, a fim de examiná-los. Em seguida, tentou virar um deles, mas, não podendo estabilizá-lo com o dedo, aquela parecia uma tarefa impossível. Por fim, ela desistiu.

— Não consigo imaginar como uma dessas coisas pode espetar alguém. São tão uniformes.

— Mas pode, com certeza — garantiu-lhe Cassy. — Nós vimos isso acontecer.

— Uma fenda se abre na borda — contou Jesse, apanhando o garfo e apontando o local. — Em seguida, surge uma agulha metálica.

— Mas eu não consigo ver onde possa haver uma fenda aí — insistiu Nancy.

Jesse deu de ombros.

— Nós também ficamos perplexos.

— Trata-se de uma doença única — informou Sheila, trazendo a discussão outra vez ao ponto central. — Os sintomas basicamente assemelham-se aos da gripe, mas o período de incubação é de apenas algumas horas após a contaminação. O curso da doença também é curto e autolimitado, de apenas algumas horas, exceto no caso de pessoas com doenças crônicas, como o diabetes. Infelizmente, para essas pessoas, ela é rapidamente letal.

— E também para as pessoas com doenças no sangue — acrescentou Jesse, lembrando-se de Alfred Kinsella.

— É verdade — concordou Sheila.

— E até aqui não conseguimos isolar nenhum vírus de gripe nas vítimas — afirmou Pitt.

— Correto também — disse Sheila. — E o aspecto mais excepcional e um dos mais perturbadores nessa doença é que, após a recuperação, a personalidade das vítimas se modifica. Elas chegam mesmo a afirmar que sentem um bem-estar generalizado, que não sentiam antes. E começam a falar sobre problemas ambientais. Não é isso, Cassy?

A jovem assentiu.

— Flagrei meu noivo saindo no meio da noite para conversar com estranhos. Quando perguntei sobre o que falavam, ele me respondeu que era sobre o meio ambiente. A princípio, pensei que estivesse brincando, mas não estava.

— Joy Taylor me disse que ela e o marido tinham reuniões para discutir o meio ambiente todas as noites — lembrou Nancy. — E em nossa conversa ela também se referiu à questão da destruição das florestas tropicais.

— Esperem um pouco! — disse Eugene. — Como cientista, devo dizer que tudo que estou ouvindo aqui são boatos e histórias. Vocês estão se adiantando em suas conclusões.

— Isso não é verdade — objetou Cassy. — Nós vimos o disco abrir-se e vimos a agulha. Vimos até mesmo pessoas sendo espetadas.

— Não é essa a questão — replicou Eugene. — Vocês não têm nenhuma prova científica de que essa espetada é que tenha causado a doença.

— Não temos muitas provas, mas as cobaias ficaram doentes — observou Sheila. — Isso é certo.

— É preciso estabelecer causalidade numa situação controlada — disse Eugene. — Esse é o método científico. De outra forma, não podem discutir o caso, exceto através de vagas generalidades. Vocês precisam de provas que possam ser reproduzidas.

— Temos esses discos pretos — afirmou Pitt. — Eles não são invenção da imaginação de ninguém.

Eugene afastou-se da lareira e debruçou-se para examinar os dois discos.

— Deixe-me ver se estou entendendo vocês: estão tentando dizer que esses pequenos objetos sólidos formaram uma fenda onde não existem linhas de junção ou mesmo evidência microscópica de uma abertura ou saliência.

— Sei que parece loucura — afirmou Jesse. — Eu tampouco teria acreditado se nós três não tivéssemos visto juntos. Foi como se abrisse por meio de um zíper e então tornasse a se fundir.

— Acaba de me ocorrer uma outra coisa. — disse Sheila. — Tivemos um estranho episódio no hospital. Um funcionário da limpeza morreu com um buraco circular na mão, para o qual não foi encontrada uma explicação. O quarto onde ele foi encontrado estava estranhamente deformado. Você lembra, Jesse. Esteve lá.

— É claro que me lembro. Houve uma certa especulação sobre radiação, mas não encontramos nenhum sinal desta.

— Foi esse o quarto em que meu noivo ficou internado — acrescentou Cassy.

— Se esse episódio estiver associado a essa gripe e aos discos negros, temos um problema maior do que pensávamos — afirmou Sheila.

Todos, exceto Eugene, que voltara a se recostar no consolo da lareira, fitavam os dois discos negros, céticos em relação ao que suas mentes lhes diziam. Finalmente, Cassy falou.

— Percebo que estamos todos pensando a mesma coisa, mas estamos com medo de expressar nossos pensamentos. Portanto, euvou dizê-lo: Talvez esses disquinhos não sejam daqui. Talvez não sejam deste planeta.

Após um suspiro inicial de impaciência por parte de Eugene, os comentários de Cassy foram recebidos pelo silêncio total. O som da respiração das pessoas ali presentes e o tique-taque de um relógio de parede eram os únicos ruídos no interior do apartamento. Lá fora, a buzina de um carro soou à distância.

— Pensando bem — disse Pitt, por fim —, na noite anterior ao dia em que Beau encontrou um desses discos, minha TV explodiu. De fato, muitos estudantes perderam TVs, rádios, computadores, todo tipo de aparelho eletrônico que estava ligado naquela hora.

— E que hora foi essa? — indagou Sheila.

— Dez e quinze — respondeu Pitt.

— Foi quando meu videocassete explodiu — observou Sheila.

— E o meu rádio também — informou Jonathan.

— Que rádio? — perguntou Nancy. Era a primeira vez que ela ouvia falar disso.

— Estou me referindo ao rádio do carro de Tim — corrigiu-se Jonathan.

— Você acha que todos esses episódios poderiam estar relacionados a esses discos pretos? — interrogou Pitt.

— É uma hipótese — afirmou Nancy. — Eugene, alguém encontrou uma explicação para aquela sobrecarga de ondas de rádio poderosas?

— Não, ninguém — admitiu Eugene. — Mas eu não usaria esse fato para fundamentar uma teoria tão crua.

— Eu não sei — confessou Nancy. — Eu diria que isso no mínimo levanta suspeitas.

— Uau! — exclamou Jonathan. — Isso significaria que estamos falando sobre um vírus extraterrestre. Que legal!

— Legal, nada! — replicou Nancy. — Seria aterrador.

— Ei, pessoal, não vamos perder o controle sobre nossa imaginação — advertiu Sheila. — Se começarmos a tirar conclusões precipitadas e falar sobre uma espécie de cepa de Andrômeda, vai ser muito mais difícil conseguir ajuda.

— É exatamente isso que eu estou tentando dizer — corroborou Eugene. — Vocês estão todos começando a falar como um grupo de fanáticos paranormais.

— Quer essa doença venha da Terra ou do espaço cósmico, ela está aqui — disse Jesse. — Não creio que devamos ficar aqui Discutindo a respeito. Acho melhor começarmos a descobrir o que é isso e o que podemos fazer a respeito. Também acho que não devemos perder muito tempo, pois, se ela estiver se espalhando tão rápido como acreditamos, já pode ser tarde demais.

— Tem toda a razão — disse Sheila.

— Vou isolar o vírus, se houver um na amostra — afirmou Nancy. — Posso usar meu próprio laboratório. Ninguém irá questionar o que estou fazendo. Assim que tivermos o vírus podemos apresentar nosso caso em Washington, ao ministro da Saúde.

— Isso se o ministro ainda não estiver infectado quando obtivermos as informações — observou Cassy.

— Esse é um pensamento derrotista — disse Nancy.

— Bem, não temos alternativa — declarou Sheila. — Eugene está certo quando diz que, se começarmos agora a alardear o caso por aí, sem nada mais do que hipóteses e conjeturas, ninguém irá nos dar crédito.

— Vou começar o trabalho de isolamento pela manhã — disse Nancy.

— Existe alguma chance de eu poder ajudar? — ofereceu-se Pitt. — Sou formando de química, mas também estudei microbiologia e trabalhei no laboratório do hospital.

— Com certeza — aceitou Nancy. — Percebi que algumas pessoas estão agindo de maneira estranha na Serotec. Não sei em quem confiar.

— Gostaria de me oferecer para descobrir o que são esses discos pretos — disse Jesse. — Mas não saberia por onde começar.

— Vou levá-los para o meu laboratório — anunciou Eugene. — Mesmo que seja só para provar a vocês alarmistas que eles não vêm de Andrômeda, vai valer o tempo perdido.

— Não toque nas bordas deles — preveniu Jesse.

— Não precisa se preocupar — tranqüilizou-o Eugene. — Temos o recurso de manipulá-los à distância, como se fossem radioativos.

— É uma pena não podermos falar diretamente com uma dessas pessoas infectadas — lamentou-se Jonathan. — Puxa, poderíamos simplesmente perguntar o que está acontecendo Talvez elas saibam.

— Isso seria perigoso — afirmou Sheila. — Há motivos para acreditarmos que estão se empenhando ativamente em recrutar pessoas. Querem que o restante de nós também seja infectado. Quem sabe até mesmo nos vejam como inimigos...

— Elas de fato estão fazendo um trabalho de recrutamento — confirmou Jesse. — Acredito que o chefe de polícia esteja ativamente procurando as pessoas no corpo da polícia que ainda não tenham contraído a doença.

— Pode ser perigoso, mas também pode esclarecer muita coisa — afirmou Cassy. Ela tinha os olhos fixos num ponto, sem vê-lo no entanto, enquanto sua mente se agitava.

— Cassy! — exclamou Pitt. — O que você está tramando? Não gosto dessa expressão em seu rosto.

 

6:30

— Os dois estão comigo — disse Nancy Sellers, que, ao lado de Sheila e Pitt, encontrava-se diante da mesa de segurança noturna da Serotec Pharmaceuticals. O guarda inspecionava a identidade que Nancy também já apresentara no portão, antes de entrar no estacionamento.

— Vocês têm alguma identidade com foto? — perguntou o segurança a Sheila e Pitt. Ambos apresentaram suas carteiras de motorista, o que satisfez o homem. O trio então marchou em direção ao elevador.

— A segurança ainda está tensa depois do suicídio — explicou Nancy.

A razão por que Nancy os levara até ali tão cedo era para evitarem os outros funcionários. E ela conseguiu o que queria. Até aquele momento, ninguém mais tinha chegado e o quarto andar estava inteiramente vazio. Aquele era o andar reservado à pesquisa biológica. Havia até mesmo um local destinado a uma pequena coleção de animais usados em experiências.

Nancy destrancou seu laboratório particular e, depois que todos entraram, tornou a trancar a porta atrás deles. Não queria interrupções ou perguntas.

— OK! — disse Nancy. — Vamos usar macacões de proteção e tudo será feito sob os procedimentos de segurança do nível três. Alguma dúvida?

Nem Sheila nem Pitt tinham perguntas.

Nancy levou-os a uma sala lateral, onde havia cabines para trocar de roupa. Ela lhes deu trajes do tamanho apropriado e deixou-os vestirem-se, enquanto ela também punha o seu.

— Agora vamos ver as amostras — disse Nancy, quando voltaram a se reunir na sala principal.

Sheila apresentou o pote de creme para café, contendo o fragmento de mata-borrão. Também trouxera amostras múltiplas de sangue dos pacientes que contraíram a gripe. As amostras tinham sido recolhidas em vários estágios da doença.

— Muito bem. — Nancy esfregava as mãos protegidas por luvas, em expectativa. — Primeiro vou lhes mostrar como inocular uma cultura tecidual.

— Onde foi que você conseguiu essa coisa? — perguntou Carl Maben ao seu chefe, Eugene Sellers. Carl era um candidato a Ph.D. que também trabalhava para o departamento de física.

Com as sobrancelhas erguidas, Eugene olhou para Jesse Kemper, a quem convidara para assistir à análise de um dos discos pretos. Jesse respondeu que fora encontrado com um indivíduo preso por comportamento obsceno.

Tanto Eugene quanto Carl demonstraram interesse.

— Eu não conheço os detalhes — admitiu Jesse. Eugene e Carl mostraram-se desapontados.

— Bem, o que sei é que o homem foi preso por estar fazendo amor no parque — contou Jesse.

— Meu Deus! É impressionante o risco que as pessoas correm — comentou Carl. — Andar à noite no parque já é perigoso, quanto mais fazer amor.

— Não foi à noite — replicou Jesse. — Era hora do almoço.

— Eles devem ter ficado constrangidos — observou Eugene.

— Muito pelo contrário — afirmou Jesse. — Ficaram irritados ao serem perturbados. Disseram que a polícia deveria estar mais preocupada com os crescentes níveis de dióxido de carbono na atmosfera e no conseqüente efeito estufa.

Tanto Eugene quanto Carl deram uma gargalhada.

Quando contou a história, Jesse lembrou-se da conversa na noite anterior sobre a preocupação das pessoas contaminadas com as questões ambientais. A possibilidade de que os amantes do meio-dia estivessem infectados nunca havia lhe ocorrido.

Redirecionando sua atenção à tarefa que tinha diante de si, Carl disse a Eugene:

— Não creio que isso vá funcionar.

Naquele momento, atrás de uma proteção de vidro escuro, eles alvejavam um dos discos negros com um laser de alta potência com o intuito de desprender algumas moléculas. Um cromatógrafo estava posicionado para uma análise do gás resultante. Infelizmente, o laser não estava conseguindo realizar o seu trabalho.

— Muito bem, desligue — determinou Eugene.

O brilhante feixe de luz extinguiu-se instantaneamente quando o aparelho foi desligado. Os dois cientistas olharam o pequeno disco.

— Trata-se de um material muito duro, com certeza — observou Carl. — Do que você acha que é composto?

— Não sei — admitiu Eugene. — Mas eu vou descobrir, ah, se vou. É melhor que quem o fez tenha registrado a patente, senão eu vou fazê-lo.

— O que devemos fazer agora? — indagou Carl.

— Vamos usar uma broca a diamante — decidiu Eugene. — Em seguida, vaporizaremos os fragmentos e deixaremos o cromatógrafo fazer o trabalho.

Pondo uma pastilha antiácida na boca, Cassy deixou o terminal do aeroporto e ficou aguardando sua vez na fila do táxi. Sentiase ansiosa desde o momento em que acordara naquela manhã e, durante a viagem, quanto mais se aproximava de Santa Fé, pior ela fora ficando. E ainda havia agravado o problema tomando café no avião. Agora havia um nó em seu estômago.

— Para onde vai, senhorita? — perguntou o motorista do táxi.

— Você sabe alguma coisa sobre esse Instituto para um Novo Começo? — indagou Cassy.

— Mas é claro — replicou o motorista. — Acabou de ser criado e, no entanto, é o destino de metade dos meus passageiros. É para lá que quer ir?

— Por favor. — Cassy recostou-se no banco do automóvel e, sem ver, ficou olhando a paisagem rolar pela janela. Pitt fora terminantemente contra a idéia dessa sua visita a Beau, mas, assim que ela tomou corpo em sua mente, Cassy não pôde desistir. Embora admitisse que podia ser um tanto perigoso, como previra Sheila, em seu coração não imaginava que Beau a prejudicasse de alguma forma.

— Tenho de deixá-la aqui no portão — informou o motorista, quando chegaram à entrada da propriedade onde ficava o instituto. — Eles não gostam de automóveis com seus canos de descarga lá perto da casa. Mas não é longe. Coisa de uns duzentos metros.

Cassy pagou a corrida e saltou do carro. Aquele era um lugar de uma beleza incorrupta, delimitado por uma cerca branca, à semelhança de um haras. Via-se ainda um portão na entrada, mas estava aberto.

Dois homens elegantemente vestidos, da idade aproximada de Cassy, estavam parados ao lado do portão. Tinham a aparência bronzeada e saudável. Ambos sorriam afavelmente, mas, à medida que Cassy se aproximava, seus sorrisos não mudavam. Era como se seus rostos houvessem sido congelados numa expressão de contentamento.

No entanto, mesmo os sorrisos parecendo forçados, os dois homens foram cordiais. Quando Cassy disse que queria ver Beau Stark, eles replicaram que compreendiam perfeitamente. E indicaram-lhe que caminhasse até a casa.

Levemente enervada por aquela estranha conversa, Cassy Seguiu pelo caminho sinuoso em meio às árvores. De ambos os lados, sob a sombra da vegetação, ocasionalmente avistava um cão de grande porte. Embora todos se voltassem para observá-la, nenhum deles a incomodou.

Quando as sombras dos pinheiros deram lugar aos amplos gramados que cercavam a mansão, Cassy ficou impressionada, a despeito de sua ansiedade. A única coisa que maculava o cenário espetacular era a imensa faixa presa à entrada da casa.

No momento em que Cassy começou a subir os degraus de entrada, surgiu uma mulher, que tinha também a idade aproximada de Cassy. Exibia o mesmo sorriso dos dois homens no portão. Do interior da casa, ouviam-se sons de construção.

— Vim aqui falar com Beau Stark — informou Cassy.

— É, eu sei — replicou a mulher. — Por favor, me acompanhe.

A mulher, seguida por Cassy, desceu os degraus e deu a volta em torno da casa enorme.

— É uma casa linda — comentou Cassy, puxando conversa.

— Não é? E pensar que isso é só o começo. Estamos todos muito entusiasmados.

Os fundos da casa eram dominados por um grande deque, que tinha até pérgulas envoltas em hera. Um pouco mais além, via-se uma piscina. Na borda desta, havia um guarda-sol protegendo uma mesa, à qual sentavam-se oito pessoas. Beau estava à cabeceira. A cerca de cinco metros dele, ela viu King deitado.

Enquanto se aproximava, Cassy observava Beau, vendo-se obrigada a admitir que ele tinha uma aparência maravilhosa. Na verdade, poucas vezes ela o vira tão bem. Os cabelos espessos estavam mais brilhantes do que o normal e a pele do rosto reluzia, como se ele tivesse acabado de sair de um refrescante mergulho. Vestia com esmero uma camisa branca esvoaçante. As outras pessoas vestiam terno e gravata, inclusive as duas mulheres.

Vários cavaletes estavam armados, apoiando grandes blocos de papel. As páginas expostas estavam cobertas de misteriosos diagramas esquemáticos e equações incompreensíveis. Sobre a mesa espalhavam-se papéis com conteúdos semelhantes. Uma meia dúzia de laptops estava aberta, zumbindo.

Cassy nunca se sentira tão insegura em sua vida. Sua ansiedade crescia ainda mais à medida que se aproximava de Beau. Não tinha a menor idéia do que iria lhe dizer. O fato de estar interrompendo uma reunião com pessoas que pareciam tão importantes tornava a situação ainda pior. Eram todos mais velhos do que Beau e pareciam profissionais liberais, como advogados ou médicos.

Antes, porém, que Cassy alcançasse a mesa, Beau voltou-se em sua direção, deu um sorriso largo ao reconhecê-la e pôs-se imediatamente de pé. Sem uma palavra às outras pessoas, ele correu para Cassy e segurou-lhe as mãos. Seus olhos azuis cintilavam. Por um segundo, Cassy sentiu-se desmaiar. Teve a sensação de que poderia afundar naquelas imensas pupilas negras.

— Estou tão feliz que você tenha vindo — disse Beau. — Estou ansioso para conversar com você.

As palavras de Beau tiraram Cassy de sua momentânea fraqueza.

— Por que não telefonou? — Por fim ela verbalizou a pergunta que não ousara fazer a si mesma até aquele momento.

— É tanta agitação por aqui — explicou Beau. — Tenho estado ocupado vinte e quatro horas por dia. Acredite.

— Então creio que tenho sorte por conseguir vê-lo — replicou Cassy, lançando um olhar ao grupo sentado à mesa, pacientemente à espera. E também a King, que se erguera, adotando a postura sentada. — Você agora se tornou um homem bastante importante.

— É, são muitas as responsabilidades — admitiu Beau, afastando-a alguns metros do grupo e em seguida apontando para a casa. Sua outra mão ainda segurando as dela.

— O que acha? — perguntou, orgulhoso.

— Estou um pouco confusa — respondeu Cassy. — Não sei bem o que pensar.

— O que você está vendo aqui é só o começo. Somente a ponta do iceberg. É tudo tão excitante!

— É só o começo de quê? — indagou Cassy. — O que você está fazendo aqui?

— Vamos endireitar todas as coisas — disse Beau. — Lembra-se de eu lhe dizer nesses últimos seis meses que eu teria um Papel importante no mundo se conseguisse um emprego com Randy Nite? Bem, está acontecendo de uma forma que eu nunca poderia ter previsto. Beau Stark, o garoto de Brookline, irá ajudar a conduzir o mundo a um novo começo.

Cassy fitou as profundezas dos olhos de Beau. Ela sabia que ele estava ali. Se ao menos conseguisse alcançá-lo atrás daquela fachada megalomaníaca. Baixando a voz e sem tirar os olhos dos dele, ela disse:

— Sei que não é você que está falando, Beau. Não é você que está fazendo isso. Alguma coisa... alguém está controlando você.

Beau atirou a cabeça para trás e riu com vontade.

— Ah, Cassy. Sempre cética! Acredite, ninguém está me controlando. Sou apenas Beau Stark. Ainda sou o mesmo cara que você ama e que te ama.

— Beau, eu te amo, é verdade — declarou Cassy, com uma súbita veemência. — E acho que você me ama. Por esse amor, então, volte para casa comigo. Vamos até o centro médico. Tem uma médica lá que quer examiná-lo, descobrir o que o fez mudar. Ela acha que tudo começou com aquela gripe que você teve. Por favor, lute contra isso, seja lá o que for!

Apesar de haver prometido a si mesma que conteria suas emoções, estas começaram a jorrar incontrolavelmente. As lágrimas apareceram, descendo em rios pelo seu rosto. Ela não queria chorar, mas não tinha força para evitar.

— Eu te amo — conseguiu repetir.

Beau estendeu a mão e enxugou as lágrimas nos cantos dos olhos de Cassy. Olhando-a de uma forma verdadeiramente amorosa, ele a puxou e envolveu-a em seus braços, pressionando seu rosto contra o dela.

A princípio Cassy hesitou. Mas, ao sentir Beau segurando-a, cedeu. Abraçou-o também e, fechando os olhos, apertou com força. Seu desejo era não o soltar, nunca mais.

— Eu também te amo — sussurrou Beau, os lábios roçando no ouvido dela. — E quero que você se junte a nós. Quero que se torne um de nós, pois não poderá nos deter. Ninguém poderá!

Cassy enrijeceu. Ouvir aquelas palavras ditas por Beau foi como sentir uma faca sendo enfiada em seu coração. Seus olhos abriram-se de repente. com o rosto ainda encostado ao dele, ela podia ver o vulto embaciado da orelha de Beau. Mas o que fez seu sangue gelar nas veias foi uma pequena mancha na pele atrás da orelha, de uma coloração azul-acinzentada. Instintivamente, sua mão ergueu-se e os dedos tocaram aquela área. A pele ali era áspera, de textura quase escamosa, e fria. Beau estava sofrendo um processo de mutação!

Sentindo uma onda de repulsa, Cassy tentou soltar-se de seu abraço, mas Beau continuava a segurá-la com firmeza. Ele era mais forte do que ela se lembrava.

— Logo, logo você se juntará a nós, Cassy — sussurrou Beau, parecendo alheio a seus esforços para escapar. — Por que não fazê-lo agora? Por favor!

Mudando de tática, Cassy desistiu de tentar empurrá-lo. Em vez disso, passou rapidamente sob seus braços, rolando para o chão. No instante seguinte, porém, já estava de pé. Seu amor e sua preocupação haviam se transformado em terror. Ela recuou vários passos e a única coisa que a impediu de sair em disparada foi o choque de ver lágrimas se formando nos olhos de Beau.

— Por favor! — pediu Beau. — Junte-se a nós, minha querida.

Cassy fugiu, apesar da inesperada demonstração de emoção da parte dele, e começou a correr em disparada, passando sob a pérgula mais próxima e seguindo para a extremidade da casa.

A mulher que recebera Cassy na entrada deu um passo à frente. Durante a conversa de Cassy e Beau, ela se mantivera discretamente afastada. Agora seus olhos encontraram-se com os de Beau e ela fez um sinal na direção da figura em fuga de Cassy.

Beau compreendeu o significado do gesto. Ela estava perguntando se devia mandar alguém atrás dela. Beau hesitou, lutando consigo mesmo. Por fim, abanou a cabeça negativamente e retornou aos homens e às mulheres que o aguardavam.

Tendo já encontrado a maior parte dos itens na lista de compras, Jonathan recompensou-se enchendo o carrinho com Coca-Cola e passeando então por um corredor onde se viam todos os tipos de batata frita. Ele escolheu alguns de seus favoritos e estava se aproximando do departamento de carne, quando seu carrinho Praticamente colidiu com o de Candee.

— Meu Deus, Candee! — exclamou Jonathan. — Onde você se meteu? Eu liguei umas vinte vezes.

— Jonathan — disse Candee alegremente. — Estou tão feliz em vê-lo. Senti sua falta.

— Sentiu? —Jonathan não pôde deixar de notar o quanto Candee estava sensacional, vestindo uma minissaia e uma blusinha justa. Todas as curvas de seu corpo firme e gracioso estavam ali, para serem vistas e apreciadas.

— Senti, sim — respondeu Candee. — Tenho pensado muito em você.

— Por que não está indo à escola? Eu procurei por você.

— Também procurei por você — afirmou Candee.

Jonathan conseguiu forçar os olhos a tomarem o sentido norte, indo parar no rosto de fada de Candee. Foi aí que percebeu o sorriso dela. Havia algo de anormal naquele sorriso, embora ele não conseguisse definir o quê.

— Eu queria lhe dizer que estava errada em relação aos meus pais — declarou Candee. — Totalmente errada.

Antes que Jonathan pudesse reagir a essa surpreendente mudança, os pais de Candee surgiram no fim do corredor e se detiveram atrás dela. O pai, Stan, pousou as mãos nos ombros da filha e sorriu, exultante.

— Ela é uma gatinha, não acha? — perguntou Stan, orgulhoso. — E, como um atrativo a mais, há genes bons e saudáveis nesses ovários.

Candee ergueu os olhos para o rosto do pai e lançou-lhe um olhar de adoração.

Jonathan desviou os olhos. Pensou que fosse vomitar. Aquelas pessoas deveriam estar no zoológico.

— Sentimos sua falta lá em casa — disse Joy, a mãe de Candee. — Por que não aparece por lá hoje à noite? Nós adultos iremos fazer uma reunião, mas isso não significa que vocês jovens não possam desfrutar bons momentos juntos.

— É, bem, parece ótimo — replicou Jonathan, começando a experimentar uma leve sensação de pânico, visto que Joy se aproximara, parando ao seu lado e encurralando-o contra as prateleiras. Candee e Stan bloqueavam o caminho à sua frente.

— Podemos contar com você? — insistiu Joy.

Os olhos de Jonathan passaram pelo rosto de Candee, que ainda exibia o mesmo sorriso. Jonathan, então, percebeu o que havia de anormal nele. Era falso. Aquele tipo de sorriso que as pessoas mostram quando se obrigam a sorrir. Não era um reflexo de suas emoções interiores.

— Tenho muito dever de casa para fazer hoje à noite — respondeu ele, começando a recuar com seu carrinho de compras.

Joy dirigiu um olhar ao carrinho.

— Você é com certeza um consumidor muito ocupado. Também vai haver uma reunião em sua casa? Quem sabe todos nós pudéssemos ir para lá...

— Não, não — disse Jonathan, nervoso. — Não vai ninguém lá em casa. Nada disso. Só estou comprando algumas coisinhas para o lanche. — Jonathan perguntou-se se eles, de alguma forma, não saberiam sobre seu pequeno grupo.

Outro olhar dirigido àqueles sorrisos falsos provocou em Jonathan um arrepio de medo e o fez dar o fora dali. Abruptamente, ele puxou o carrinho para trás, fez meia-volta, manobrando-o, gritou que precisava ir embora e seguiu apressado na direção dos caixas. Enquanto caminhava, podia sentir os olhos da família Taylor em suas costas.

— Esta é a rua — anunciou Pitt. Ele estava indicando a Nancy o caminho do apartamento de seu primo, onde todos haviam combinado se encontrar mais uma vez. Sheila estava no banco de trás da minivan, segurando um maço de papéis.

Já era noite e as luzes dos postes estavam acesas. À medida que se aproximavam do condomínio propriamente dito, Nancy reduzia a velocidade.

— Parece que muita gente saiu de casa hoje — comentou ela.

— Tem razão — concordou Pitt. — Parece mais meio-dia no centro da cidade do que a noite num subúrbio.

— Posso imaginar o porquê das pessoas acompanhadas por cachorros estarem na rua — afirmou Sheila. — Mas o que essas outras estão fazendo? Estão simplesmente andando à toa?

— Que coisa estranha — admitiu Pitt. — Não vejo ninguém conversando, mas estão todos sorrindo.

— Estão mesmo — disse Sheila.

— O que devo fazer? — indagou Nancy. Estavam quase chegando ao seu destino.

— Dê uma volta no quarteirão — sugeriu Sheila. — Vamos ver se eles nos notam.

Nancy aceitou a sugestão. Quando retornaram ao ponto de partida, nenhum dos pedestres pareceu olhar em sua direção.

— Vamos entrar — decidiu Sheila.

Nancy estacionou e todos saltaram rapidamente. Pitt deixou que as mulheres seguissem à frente. Quando chegou à porta de entrada, as mulheres já estavam subindo pela escada interna. Pitt tornou a olhar para a rua. Ao dirigir-se à porta, teve a nítida sensação de que estava sendo observado, mas ao correr a vista pela área verificou que ninguém estava olhando para ele.

Cassy abriu a porta em resposta à batida de Pitt. O rosto dele se iluminou. Estava aliviado em vê-la.

— Como foi a viagem? — perguntou ele.

— Não muito boa — admitiu Cassy.

— Esteve com Beau?

— Sim, estive, mas preferia não falar sobre isso agora.

— OK — disse Pitt, compreensivo, começando a se preocupar. Podia ver que Cassy estava muito perturbada. Ele a acompanhou até a sala de estar.

— Que bom que finalmente estão todos aqui — disse Eugene. A camisa de cambraia azul estava aberta no colarinho e o nó da gravata de tricô havia sido afrouxado. Seus olhos escuros corriam de um a outro entre os presentes. Ele estava elétrico: um grande contraste com a condescendência entediada da noite anterior.

Sentados em torno da mesinha de centro estavam Jesse, Nancy e Sheila. Sobre a mesa via-se o recipiente Tupperware com os dois discos negros, ao lado de uma variedade de batatas fritas da incursão de Jonathan ao mercado. Este estava junto à janela, espiando lá fora de vez em quando. Pitt e Cassy se sentaram.

— Perceberam que tem um monte de babacas andando à toa lá fora? — perguntou Jonathan.

— Jonathan, cuidado com a linguagem — repreendeu-o Nancy.

— Nós os vimos — afirmou Sheila —, mas eles nos ignoraram.

— Gostaria que me dessem sua atenção! — pediu Eugene. — Tive um dia bastante interessante, para dizer o mínimo. Eu e Carl tentamos tudo que havia à nossa disposição com esse disquinho. Ele é incrivelmente duro.

— Quem é Carl? — perguntou Sheila.

— Meu assistente Ph.D. — respondeu Eugene.

— Pensei que houvéssemos concordado em manter esse assunto entre nós — disse Sheila. — Pelo menos até sabermos com o que estamos lidando.

— Não há problema com Carl — tranqüilizou-a Eugene. — Mas você tem razão. Talvez eu devesse ter feito o trabalho sozinho. Tenho de admitir que a princípio estava cético em relação a tudo isso, mas agora não estou mais.

— O que foi que você descobriu? — perguntou Sheila.

— O disco não é feito de nenhum material natural — afirmou Eugene. — Trata-se de uma espécie de polímero. Na verdade, assemelha-se mais a uma cerâmica, mas não é uma cerâmica de fato, pois inclui um componente metálico.

— Tem até diamante nele — acrescentou Jesse. Eugene assentiu.

— Diamante, silício e um tipo de metal que ainda precisamos identificar.

— O que vocês estão querendo dizer? — indagou Cassy.

— Estamos dizendo que esse objeto é feito de uma substância que nossa presente capacidade tecnológica não teria possibilidade de duplicar.

— Então, em linguagem clara — interveio Jonathan: — É extraterrestre, é isso.

A realidade daquela confirmação deixou-os atônitos, embora fosse o que todos, exceto Eugene, esperassem.

— Bem, nós também fizemos progressos hoje — informou Sheila, lançando um olhar a Nancy.

— Localizamos experimentalmente um vírus — anunciou Nancy.

— Um vírus alienígena? — indagou Eugene, empalidecendo.

— Sim e não — respondeu Sheila.

— Ora, vamos! — queixou-se Eugene. — Parem com brincadeiras. O que vocês estão insinuando?

— Com base em minhas investigações iniciais — começou Nancy — , e devo enfatizar o termo “iniciais”, existe o envolvimento de um vírus, mas este não veio com esses disquinhos pretos. Pelo menos, não agora. O vírus está aqui há muito tempo: faz muito, muito tempo que ele existe em todos os organismos que testei hoje. Meu palpite é que existe em todos os organismos da Terra que têm um genoma grande o bastante para abrigá-lo.

— Então ele não veio nessas pequenas espaçonaves? — perguntou Jonathan, parecendo desapontado.

— Se não é um vírus, o que há naquele fluido infeccioso? — quis saber Eugene.

— Trata-se de uma proteína — respondeu Nancy. — Algo como um priônio. Você sabe, como o que causa o mal da vaca louca. Mas não exatamente o mesmo, pois essa proteína reage com o DNA virótico. Na verdade, foi por isso que encontrei o vírus com tanta facilidade. Usei a proteína como uma sonda.

— O que achamos é que a proteína desmascara o vírus — acrescentou Sheila.

— Então a síndrome que se assemelha a uma gripe é o corpo reagindo com essa proteína — concluiu Eugene.

— Esse é o meu palpite — concordou Nancy. — A proteína é antigênica e provoca uma espécie de insulto imunológico exagerado. É por isso que as linfocinas são produzidas com tanta abundância, e são elas as verdadeiras responsáveis pelos sintomas.

— Uma vez desmascarado, o que esse vírus faz? — perguntou Eugene.

— Essa é uma questão que vai nos dar algum trabalho — admitiu Nancy. — Mas temos a impressão de que, ao contrário de um vírus normal, que só assume o controle de uma única célula, esse vírus é capaz de apossar-se de um organismo inteiro, principalmente do cérebro. Assim sendo, chamá-lo simplesmente de vírus é subestimá-lo. Pitt deu uma boa sugestão. Ele o chamou de megavírus. — Pitt enrubesceu.

— O termo simplesmente me ocorreu — explicou ele.

— Esse megavírus existe por aqui bem antes de os humanos evoluírem — disse Sheila. — Nancy encontrou-o num segmento de DNA bem conservado.

— Um segmento ignorado pelos pesquisadores — acrescentou Sheila. — Trata-se de um daqueles segmentos não-codificados, ou pelo menos assim se pensava. E é grande. São centenas de milhares de pares de bases de extensão.

— Então esse megavírus estava só à espreita — observou Cassy.

— É o que pensamos — concordou Nancy. — Talvez alguma raça de vírus alienígenas, ou quem sabe uma raça alienígena capaz de se acondicionar em forma de vírus para fazer viagens espaciais, tenha visitado a Terra muitas eras atrás, quando a vida começava a se desenvolver por aqui. Plantaram-se no DNA, como sentinelas que esperassem para ver que tipo de vida poderia evoluir dali. Suponho que pudessem ser despertados intermitentemente com essas pequeninas espaçonaves. Tudo de que precisariam é a proteína ativadora.

— E agora finalmente alcançamos um ponto de nossa evolução em que nos tornamos aquilo que eles desejam habitar — disse Eugene. — Talvez aquela explosão de ondas de rádio que tivemos naquela noite fosse isso. Talvez esses discos possam comunicar-se com o lugar de onde vieram, seja lá onde for.

— Esperem um segundo — pediu Jonathan. — Vocês estão querendo dizer que esse vírus alienígena já está dentro de mim, como se estivesse hibernando?

— É o que achamos — respondeu Sheila —, supondo-se que nossas impressões iniciais estejam corretas. O potencial do vírus de manifestar-se está em nossos genomas, um pouco como um oncogene tem o poder de manifestar-se como um câncer. Nós já sabemos que pequeninas partículas de vírus comuns encontram-se alojadas em nosso DNA. Só que essa é uma partícula enorme.

Durante alguns segundos, a sala foi dominada por um silêncio de espanto. Pitt apanhou uma batata frita. Os sons de sua mastigação pareceram anormalmente altos. Ele olhou para os outros, quando se deu conta de que o fitavam.

— Desculpem — pediu ele.

— Tenho o pressentimento de que esses megavírus não vão se contentar simplesmente em assumir o controle — disse Cassy, de repente. — Receio que eles tenham o poder de provocar mutações nos organismos.

Todos os olhares se voltaram para ela.

— Como é que você sabe? — perguntou Sheila.

— Porque hoje fui ver meu noivo, Beau Stark — admitiu Cassy.

— Não creio que essa tenha sido uma decisão sábia — disse Sheila, irritada.

— Eu precisava — replicou Cassy. — Precisava falar com ele e fazê-lo voltar para ser examinado.

— Você falou com ele a nosso respeito? — questionou Sheila. Cassy abanou a cabeça. Lembrando da visita, teve de lutar contra as lágrimas.

Pitt ergueu-se de sua cadeira e sentou-se no braço da poltrona de Cassy, passando o braço em torno dos ombros dela.

— O que a fez pensar em mutação? — indagou Nancy. — Você está se referindo a mutação somática, ou seja, o corpo dele está mudando?

— Isso — disse Cassy. Ela estendeu a mão e segurou a de Pitt. — A pele atrás da orelha dele mudou. Não é mais pele humana. É uma coisa que eu nunca vi ou toquei antes. — Essa nova revelação provocou mais um período de silêncio. Agora a ameaça parecia ainda maior. Havia um monstro à espreita em todas as pessoas.

— Precisamos tentar fazer alguma coisa — disse Jesse. — E precisamos fazer isso já!

— Concordo — assentiu Sheila. — Não temos muitos dados, mas temos alguns.

— Temos a proteína — lembrou Nancy. — Mesmo que ainda não saibamos muito sobre ela.

— E temos os discos com a análise preliminar de sua composição —  acrescentou Eugene.

— O único problema é que não sabemos quem está contaminado e quem não está — afirmou Sheila.

— Teremos de correr esse risco — disse Cassy. Nancy concordou.

— Não temos outra escolha. Vamos reunir todos os nossos dados num relatório mais ou menos formal. Quero ter alguma coisa à mão. Um bom lugar para fazer isso é em meu escritório na Serotec. Lá não seremos importunados e teremos acesso a computadores, impressoras e copiadoras. O que vocês acham?

— Eu acho que o tempo está se esgotando — observou Jesse, levantando-se do sofá.

Eugene pôs o recipiente Tupperware contendo os dois discos negros numa mochila que também guardava os resultados impressos de vários testes que ele realizara. Passou-a pelo ombro e saiu do apartamento, seguindo os outros.

Todos se espremeram na minivan dos Sellers. Nancy foi dirigindo. Quando se afastavam do meio-fio, Jonathan olhou pela janela traseira. Alguns dos muitos pedestres por ali observavam-nos, mas a maioria os ignorava.

Uma hora depois, o grupo todo trabalhava energicamente. Dividiram as tarefas, segundo as habilidades de cada um. Cassy e Pitt digitavam nos terminais de computador, com a assistência técnica de Jonathan. Nancy e Eugene faziam cópias dos resultados de seus testes. Sheila fazia o confronto dos gráficos dos pacientes de centenas de casos de gripe. Jesse estava ao telefone.

— Creio que você deva ser o porta-voz — Nancy disse a Sheila. — Você é a médica.

— Não há dúvida quanto a isso — afirmou Eugene. — Você será muito mais convincente. Podemos apoiá-la fornecendo os detalhes quando necessários.

— É um bocado de responsabilidade — observou Sheila. Jesse desligou o telefone.

— Tem um vôo noturno para Atlanta que parte daqui a uma hora e dez minutos. Reservei três lugares, supondo que somente Sheila, Nancy e Eugene estejam indo.

   Nancy olhou para Jonathan.

— Talvez eu ou Eugene devêssemos ficar — disse ela.

— Mãe! — gemeu Jonathan. — Eu vou ficar bem.

— Acho que é importante que vocês dois venham — afirmou Sheila. — Foram vocês que realizaram os testes.

— Jonathan pode ficar conosco — ofereceu Cassy. O rosto de Jonathan se iluminou.

Vários carros pararam diante do edifício da Serotec. Os pedestres interromperam suas perambulações e dirigiram-se para aquele ponto, ajudando a abrir as portas. Do primeiro carro, saiu o capitão Hernandez. O motorista, que saiu pelo outro lado, era Vince Garbon. Do carro que vinha logo atrás saltaram policiais à paisana, bem como Candee e seus pais.

Os pedestres postaram-se diante do capitão e apontaram para as luzes nas janelas do quarto andar. Disseram ao capitão que todos os “não-modificados” estavam lá em cima. O capitão assentiu e então acenou para que os outros o seguissem. Juntos, entraram no edifício.

Cassy terminara de digitar sua parte e aguardava, ao lado da impressora, enquanto esta expelia as páginas. Jonathan se aproximara e estava de pé ao seu lado.

— Ainda não entendo por que Atlanta — disse ele. — Por que não procurar as autoridades sanitárias daqui?

— Porque não sabemos de que lado as autoridades locais estão — explicou Cassy. — O problema é aqui, nesta cidade, e não podemos correr o risco de revelar tudo que sabemos para alguém que pode ser um deles.

— Mas como sabemos que isso também não está acontecendo em Atlanta? — insistiu Jonathan.

— Não sabemos — admitiu Cassy. — Nessa altura do campeonato, estamos só torcendo.

— Além disso — interveio Pitt, ouvindo a conversa —, os CCDs são a melhor opção para cuidar desse tipo de problema. Trata-se de uma organização nacional. Se for preciso, eles podem determinar quarentena para esta cidade ou até mesmo para todo o estado. E talvez o mais importante de tudo é que eles podem divulgar a notícia. Toda esta história aconteceu tão rápido por aqui que a mídia não percebeu nada.

— Ou isso ou as pessoas que controlam a mídia estão todas infectadas — afirmou Cassy.

Ela reuniu seus papéis e juntou-os aos de Pitt. Quando grampeava as folhas, as luzes piscaram.

— Que diabos foi isso? — perguntou Jesse, que estava tenso, tanto quanto os outros.

Durante um momento, ninguém se mexeu. Em seguida as luzes se apagaram. A única iluminação vinha das telas dos computadores que tinham baterias de reserva.

— Não é preciso entrar em pânico — disse Nancy. — O edifício tem seus próprios geradores.

Jonathan foi até a janela. Virando a maçaneta, ele a abriu e pôs a cabeça para fora. Lá embaixo podia ver luzes vindo dos andares inferiores e passou essa perturbadora informação aos outros.

— Não estou gostando disso — comentou Jesse.

O silvo abafado porém agudo do elevador subindo atravessou a sala.

— Vamos dar o fora daqui! — gritou Jesse.

Freneticamente, o grupo juntou todos os seus papéis, enfiando-os numa valise de couro, antes de deixar a sala correndo. No corredor escuro, podiam ver pelo indicador do andar que o elevador estava quase lá.

Com Nancy apontando o caminho através de sinais silenciosos, eles correram por toda a extensão do corredor e abriram a porta com violência, irrompendo na escada. Começaram a descer, mas quase imediatamente ouviram uma porta se abrindo três andares abaixo, no térreo.

Jesse, que agora seguia na frente, tomou uma decisão rápida e mudou de direção, saindo no corredor do terceiro andar. Todos o acompanharam.

Em seguida, correram para a escada do lado oposto. Jesse esperou por Sheila, que era a última. Quando estava prestes a abrir a porta, percebeu pelo visor da porta que alguém vinha subindo a escada. Rapidamente ele se abaixou e gesticulou, de maneira frenética, para que os outros fizessem o mesmo. Todos ouviram os passos pesados de várias pessoas correndo degraus acima, rumando para o quarto andar.

No momento em que Jesse pensou ter ouvido a porta da escada fechar-se no andar acima deles, abriu aquela atrás da qual se escondiam e olhou para cima. Satisfeito pela escada estar agora vazia, fez sinal para que os outros o seguissem, descendo até o térreo.

Tornaram a se agrupar diante de uma porta com um aviso de que estava protegida por alarme e que era restrita apenas a casos de emergência.

— Está todo mundo aqui? — sussurrou Jesse.

— Estamos todos aqui — afirmou Eugene.

— Vamos entrar naquela van e dar o fora daqui — decidiu Jesse. — Eu dirijo. Deixe as chaves comigo.

Nancy ficou mais do que feliz em entregá-las a ele.

— OK, vamos! — ordenou Jesse. Abriu a porta intempestivamente, acionando o alarme. Os outros seguiam logo atrás dele, correndo meio abaixados. Dentro de poucos segundos estavam no interior do carro e Jesse havia ligado o motor. — Segurem-se — advertiu, acelerando bruscamente. Cantando os pneus, saíram do estacionamento em disparada. Jesse não se deu ao trabalho de parar no portão de segurança. A van atingiu a barra de madeira preta e branca, atirando-a para fora do caminho.

Jonathan virou-se e olhou pelo vidro traseiro. Erguendo os olhos para as janelas escuras do quarto andar, viu vários pares de olhos brilhando. Pareciam olhos de gatos refletindo a luz de um farol.

Jesse dirigia velozmente, mas, de modo deliberado, dentro do limite de velocidade. Passara por alguns carros da polícia e não queria atrair a atenção destes.

Num sinal de trânsito, todos começaram a se acalmar o suficiente para discutir quem poderia ter tentado encurralá-los no edifício da Serotec. Ninguém tinha a menor idéia. Tampouco sabiam quem poderia ter passado a informação de que se encontravam ali. Nancy aventou a hipótese de o segurança ser um “deles”.

No sinal seguinte, Pitt olhou por acaso para o carro ao lado do deles. Quando o motorista se voltou na sua direção, seu rosto imediatamente refletiu reconhecimento. Pitt viu-o apanhar o telefone celular.

— Isso parece loucura — disse ele. — Mas acho que esse sujeito aí do lado nos reconheceu.

Jesse respondeu ignorando o sinal vermelho. Seguiu ziguezagueando entre os carros, então dobrou na rua principal e desceu aos solavancos por um beco escondido.

— Não estamos indo na direção oposta à do aeroporto? — indagou Sheila.

— Não se preocupe — tranqüilizou-a Jesse. — Como se diz por aí, conheço esta cidade como a palma da minha mão.

Fizeram mais alguns desvios inesperados por ruas estreitas e desertas. Então, para surpresa de todos, aceleraram numa saída para a auto-estrada que ninguém no carro, além de Jesse, conhecia.

Seguiram o restante do caminho para o aeroporto em silêncio. Estava ficando claro para todos a extensão da conspiração e o fato de que eles não podiam baixar a guarda.

Jesse dirigiu-se ao setor de embarque do aeroporto e parou no terminal C. Todos saíram alvoroçadamente da van.

— Podemos nos cuidar daqui em diante — disse Sheila, agarrando a valise que continha o relatório organizado às pressas. — Por que vocês não voltam para casa, onde estarão seguros?

— Vamos ver vocês três partirem — afirmou Jesse. — Quero ter certeza de que não haverá mais problemas.

— E quanto ao carro? — perguntou Pitt. — Quer que eu espere aqui nele?

— Não — respondeu Jesse. — Vamos todos lá para dentro.

O interior do terminal àquela hora estava praticamente deserto. Uma equipe de limpeza polia o extenso piso de mosaico. O balcão da Delta era o único ocupado. O quadro de informações dizia que o vôo para Atlanta estava previsto para a hora certa.

— Vocês todos sigam para o portão — disse Jesse. — Eu compro as passagens. Tenham à mão suas identidades.

O grupo atravessou correndo o terminal e aproximou-se do setor de segurança do aeroporto. Havia alguns poucos passageiros esperando a sua vez de passar a bagagem de mão pelo detector de metais.

— Onde estão os discos pretos? — Cassy sussurrou para Pitt.

— Estão na mochila de Eugene — respondeu Pitt. Naquele momento, Eugene pôs a mochila na esteira rolante e ela desapareceu no interior da máquina, enquanto ele passava pelo detector de metais.

— E se fizerem disparar o alarme? — indagou Cassy.

— Estou mais preocupado com a possibilidade de que o pessoal da segurança possa ser “deles” e que reconheça a imagem nos raios X — retrucou Pitt.

Tanto Pitt quanto Cassy prenderam a respiração quando a guarda de segurança parou a máquina. Os olhos dela estavam grudados na imagem do aparelho. Pareceu ter transcorrido um minuto inteiro antes da mulher reiniciar a esteira. Cassy suspirou de alívio. Ela e Pitt também atravessaram o detector de metais e alcançaram os outros.

Todos evitavam fitar outros passageiros nos olhos, enquanto saíam do saguão. Era enervante não saber quem estava infectado. Como se lesse o pensamento de todos, Jonathan disse:

— Acho que se pode saber quem são eles pelo sorriso ou pelos olhos.

— Como assim? — perguntou Nancy.

— Ou o sorriso é falso ou os olhos têm um brilho fosforescente — explicou Jonathan. — Naturalmente, só se pode ver os olhos assim no escuro.

— Acho que você está certo, Jonathan — apoiou Cassy. Ela testemunhara ambos os casos.

Chegaram ao portão. A maioria dos passageiros do avião já havia embarcado. Postaram-se a um lado à espera de Jesse.

— Está vendo aquela mulher ali adiante? — perguntou Jonathan, enquanto apontava. — Olhe aquele sorriso estúpido. Aposto cinco pratas como ela é um deles.

— Jonathan! — sussurrou Nancy energicamente. — Não seja tão indiscreto assim.

Vince Garbon parou o carro da polícia sem identificação junto ao meio-fio, exatamente atrás da minivan dos Sellers.

— É óbvio que estão aqui — disse o capitão Hernandez, descendo do veículo. Um segundo carro parou atrás do primeiro. Candee, os pais e os outros oficiais à paisana saltaram.

Como limalhas de ferro sendo atraídas a um ímã, vários funcionários do aeroporto infectados reuniram-se imediatamente em torno do capitão e de seu grupo.

— Portão 5, terminal C — disse um deles ao capitão. — Vôo 91 para Atlanta.

— Vamos — ordenou o capitão Hernandez. Em seguida, passou pela porta automática, entrando no terminal, e acenou para que os outros o seguissem.

— E agora, onde está Jesse? — perguntou Sheila, percorrendo com os olhos todo o saguão até o terminal principal, à procura dele. — Não quero perder esse vôo.

— Eugene —sussurrou Nancy para o marido. —, com tudo isso que está acontecendo, estou tendo dúvidas em relação a deixar Jonathan aqui. Talvez um de nós dois devesse ficar.

— Eu tomo conta dele — disse Jesse, que se aproximara por trás do grupo a tempo de ouvir o comentário de Nancy. — Vocês fazem o seu trabalho em Atlanta. Ele ficará bem.

— Como foi que você chegou aqui? — indagou Sheila. Jesse apontou na direção de uma porta trancada, sem identificação, atrás deles.

— Estive no aeroporto tantas vezes investigando vários crimes que acabei conhecendo o lugar melhor do que o porão de minha própria casa.

Ele entregou as passagens a Nancy, Eugene e Sheila. Nancy deu um último abraço no filho. Jonathan permaneceu rígido, com os braços caídos ao longo do corpo.

— Você tenha cuidado, está me ouvindo? — disse Nancy, tentando em vão fitar os olhos de Jonathan.

— Mãe! — queixou-se ele.

— Vamos — convocou Sheila. — É a última chamada. Com Sheila à frente e Nancy seguindo por último, a fim de dar um último aceno para o filho, os três fizeram a checagem no portão, mostrando a identidade, e então desapareceram na ponte de embarque. Alguns minutos mais tarde, esta foi desacoplada e recolhida, e o avião então começou a taxiar noite adentro.

Com um suspiro de alívio, Jesse virou-se no ponto onde observava pela janela.

— Lá vão eles, graças a Deus. Mas agora nós...

Jesse não chegou a terminar a frase, pois viu o capitão Hernandez e Vince Garbon à frente de um grupo numeroso de pessoas. Eles andavam rapidamente pelo centro do saguão, seguindo direto para o portão 5.

Cassy viu a nuvem descer sobre o rosto de Jesse e começou a perguntar o que havia de errado. Mas Jesse não lhe deu chance. Bruscamente conduziu os três na direção da porta sem identificação.

— O que está acontecendo? — perguntou Pitt.

Jesse o ignorou e rapidamente digitou a combinação no teclado numérico ao lado da maçaneta. A porta se abriu.

— Entrem! — ordenou ele.

Cassy foi a primeira a passar pela porta, seguida por Jonathan e então Pitt. Jesse fechou a porta, depois de cruzá-la também.

— Venham! — sussurrou ele, a expressão severa, descendo velozmente um lance de degraus de metal e correndo ao longo de um corredor até chegar a uma porta que dava para o exterior. Penduradas numa série de ganchos perto da porta, viam-se capas de chuva amarelas com capuzes. Ele atirou uma para cada e disse-lhes que as vestissem, pondo inclusive os capuzes.

Todos obedeceram. Cassy perguntou quem ele vira.

— O chefe de polícia — respondeu ele. — E sei com certeza que é um deles.

Depois de digitar mais uma vez a combinação num outro teclado numérico, Jesse abriu a porta que dava para a pista do aeroporto. O grupo saiu, encontrando-se diretamente abaixo da ponte de embarque do portão 5.

— Estão vendo aquele carro de bagagem ali adiante? — perguntou Jesse, apontando. Tratava-se de um veículo semelhante a um trator, que puxava uma fileira de cinco vagões de bagagem. Estava estacionado a cerca de quinze metros dali.

— Vamos andar até lá de maneira bem casual. O problema é que das janelas lá de cima poderão nos ver. Assim que chegarmos ao carro, vocês todos subirão num dos vagões de bagagem e então, se Deus quiser, vamos voltar para o terminal A e não para o C.

— Mas nosso carro está no terminal C — disse Pitt.

— Vamos deixar o carro aí — afirmou Jesse.

— Vamos? — perguntou Jonathan. Estava chocado. Era o carro dos pais dele.

— Ah, vamos, sim — respondeu Jesse. — Andem! Chegaram ao carro de bagagem sem incidentes. Todos se sentiram tentados a levantar os olhos para as janelas, mas ninguém o fez.

Jesse deu a partida no motor, enquanto os outros subiam no vagão. Estavam todos gratos pela autoridade e decisão de Jesse. Respiraram aliviados quando o veículo fez meia-volta, serpenteando como uma cobra, e seguiu para o terminal A.

Passaram por alguns funcionários de companhias aéreas, mas ninguém contestou o desempenho de Jesse. Chegaram sem problemas ao setor de entrega de bagagem do terminal A, onde mais uma vez se beneficiaram com o conhecimento que Jesse possuía da planta e dos procedimentos do aeroporto. Poucos minutos depois estavam fora dali, no setor de chegada, à espera do ônibus.

— Vamos voltar para o centro da cidade de ônibus — informou Jesse. — Ali posso pegar meu carro.

— E quanto à van dos meus pais? — questionou Jonathan

— Cuido dela amanhã — afirmou Jesse.

O som de um jato imenso ribombou acima de suas cabeças, impossibilitando momentaneamente qualquer conversa.

— Deve ter sido eles — disse Jonathan, assim que pôde ser ouvido acima do barulho.

— Tomara que pelo menos encontrem pessoas receptivas nos CCDs — comentou Pitt.

— Têm de encontrar — disse Cassy. — Essa pode ser a nossa única chance.

Beau ocupava a suíte principal da mansão. Uma porta dupla levava a uma sacada que dava para a varanda e a piscina. Essa porta estava aberta e uma suave brisa noturna fazia farfalharem os papéis sobre a mesa. Randy Nite e alguns de seus funcionários mais graduados encontravam-se ali, repassando o trabalho realizado naquele dia.

— Estou muitíssimo satisfeito — disse Randy.

— Eu também — concordou Beau. — As coisas não podiam estar indo melhores. — Ele correu os dedos pelos cabelos e tocou a área onde a pele fora alterada, atrás de sua orelha direita. Coçou o local e experimentou uma sensação agradável.

O telefone tocou e um dos assistentes de Randy atendeu. Após uma rápida conversa, ele passou o fone a Beau.

— Capitão Hernandez — disse Beau, contente. — Que bom o senhor ligar.

Randy tentou ouvir o que o capitão estava dizendo, mas não conseguiu.

— Então estão a caminho dos CCDs, em Atlanta — afirmou Beau. — Fico feliz que tenha ligado para nos informar, mas lhe asseguro que não haverá problemas.

Beau desligou, mas não repôs o fone no gancho. Em vez disso, discou outro número, com o código de área 404. Quando atenderam a chamada, Beau falou:

— Dr. Clyde Horn, aqui é Beau Stark. Aquele grupo de pessoas de quem lhe falei hoje está a caminho de Atlanta, como prevíramos. Acredito que estejam nos CCDs amanhã, portanto cuide deles como combinamos.

Beau devolveu o fone ao gancho.

— Acredita que haverá algum problema? — indagou Randy. Beau sorriu.

— É claro que não. Não seja bobo.

— Tem certeza de que fez bem em deixar aquela tal Cassy Winthrope ir embora hoje? — perguntou Randy.

— Meu Deus, esta noite você está um poço de preocupações — replicou Beau. — Mas tenho certeza, sim. Ela é bastante especial para mim e decidi que não desejo forçá-la. Quero que abrace a causa voluntariamente.

— Não compreendo por que você se importa tanto — declarou Randy.

— Também não tenho muita certeza por que estou fazendo isso — admitiu Beau. — Mas chega dessa conversa. Vamos lá para fora! Está quase na hora.

Beau e Randy saíram para a sacada. Após uma olhada rápida para o céu noturno, Beau meteu a cabeça de volta no interior do quarto e pediu a um dos assistentes que descesse e desligasse as luzes subaquáticas da piscina.

Alguns minutos depois, as luzes da piscina se apagaram. O efeito foi dramático. O brilho das estrelas tornou-se muito mais intenso, principalmente o daqueles no centro galáctico da Via Láctea.

— Quanto tempo ainda falta? — indagou Randy.

— Dois segundos — disse Beau.

Mal as palavras haviam deixado seus lábios o céu iluminou-se com uma profusão de estrelas cadentes. Literalmente milhares delas caíam em grande quantidade, como uma gigantesca exibição de fogos de artifício.

— Lindo, não? — perguntou Beau.

— Maravilhoso — concordou Randy.

— Essa é a onda final — declarou Beau. — A onda final!

 

8:15

— Eu nunca vi nada assim — declarou Jesse. — Vocês sabem do que estou falando. Quanto tempo três jovens levam para se arrumar e sair para tomar café?

— É culpa de Cassy — defendeu-se Pitt. — Ela ficou um século no banheiro.

— Isso não é verdade — replicou Cassy, imediatamente ressentindo-se. — Não levei tanto tempo quanto o Jonathan. Além do mais, eu tinha de lavar o cabelo.

— Eu não demorei muito — disse Jonathan.

— É claro que demorou — afirmou Cassy.

— Está bem, já chega — gritou Jesse. Em seguida, num tom de voz mais moderado, acrescentou: — É que eu tinha esquecido como é conviver com a juventude.

Eles haviam passado a noite no apartamento do primo de segundo grau de Pitt, achando que aquele era o lugar mais seguro. Tudo funcionara bem, com Pitt e Jonathan dividindo um dos quartos. O único pequeno problema fora o banheiro único.

— Onde vamos comer? — perguntou Jesse.

— Em geral tomamos café no Costa’s — respondeu Cassy.

— Mas eu acho que a garçonete de lá está contaminada.

— Haverá pessoas contaminadas em todos os lugares a que formos — disse Jesse. — Vamos ao Costa’s mesmo. Não quero ir a um lugar onde possa encontrar algum colega meu da polícia.

Fazia uma bela manhã quando eles saíram à luz do sol. Jesse mandou-os esperar na entrada do edifício por alguns minutos, enquanto ia verificar se estava tudo certo com seu carro. Quando não viu qualquer evidência de que alguém houvesse mexido no carro, fez sinal para que se aproximassem. Os três entraram rapidamente no automóvel.

— Preciso parar para abastecer — informou Jesse, conduzindo o carro para a rua.

— Ainda tem muita gente andando por aí — observou Jonathan. — Igual a ontem à noite. E todos têm esse mesmo sorriso babaca e estranho.

— Não é legal usar essa linguagem vulgar — repreendeu Cassy.

— Nossa, parece minha mãe falando! — disse Jonathan. Pararam num posto de gasolina. Jesse desceu para bombear o combustível e Pitt saltou para lhe fazer companhia.

— Você percebeu o mesmo que eu? — indagou Jesse, quando o tanque estava quase cheio. O posto estava muito movimentado àquela hora da manhã.

— Está se referindo ao fato de que todos parecem estar gripados? — perguntou Pitt.

— Exatamente. — Quase todos que viam estavam tossindo, espirrando ou tinham a pele pálida.

A algumas quadras do restaurante, Jesse parou junto ao meio fio, diante de uma banca de jornais, e pediu a Pitt que comprasse o jornal. Pitt desceu e esperou sua vez. Como o posto de gasolina, a banca também estava cheia. Quando Pitt se aproximou das pilhas de jornais, percebeu que cada uma estava sendo segura por um disco preto!

Pitt perguntou ao proprietário sobre aqueles pesos de papel.

— São uma gracinha, não são? — replicou o homem.

— Onde o senhor os conseguiu? — indagou Pitt.

— Estavam espalhados por todo o meu quintal hoje de manhã — explicou o homem.

Pitt tornou a entrar no carro com o jornal e contou aos outros sobre os discos pretos.

— Que maravilha! — exclamou Jesse com sarcasmo. Em seguida, passou os olhos pelas manchetes: Onda de Gripe Amena Se Espalha. — Como se já não soubéssemos disso — acrescentou ele.

Cassy, no banco de trás, apanhou o jornal e leu a matéria, enquanto Jesse seguia para o Costa’s.

— Aqui diz que a doença é debilitante, mas breve... — contou Cassy. — Pelo menos para as pessoas saudáveis. Quanto a quem tem doenças crônicas, aconselha-se que procurem o médico ao primeiro sinal dos sintomas.

— Vai adiantar muita coisa fazer isso — ironizou Pitt. Assim que entraram no restaurante, acomodaram-se num reservado na parte da frente. Pitt e Cassy estavam atentos, à procura de Marjorie, mas não a viram. Quando um garoto cuja idade regulava com a de Jonathan aproximou-se para anotar os pedidos, Cassy perguntou sobre a garçonete.

— Ela foi para Santa Fé — informou o garoto. — Muitos de nossos funcionários foram para lá. É por isso que estou trabalhando. Sou Stephanos, filho do Costa.

Depois que Stephanos tornou a desaparecer na cozinha, Cassy contou aos outros sobre o que vira em Santa Fé.

— Estão todos trabalhando naquela espécie de castelo — acrescentou ela.

— O que estão fazendo lá? — perguntou Jesse. Cassy deu de ombros.

— Eu perguntei; era uma pergunta natural. Mas Beau só respondeu com lugares-comuns e generalidades, falando sobre um novo começo e sobre endireitar as coisas, sei lá que diabo ele quis dizer com isso.

— Pensei que não fosse legal usar linguagem vulgar — observou Jonathan.

— Tem razão — reconheceu Cassy. — Me desculpe.

Pitt consultou o relógio pela décima vez desde que haviam chegado ao restaurante.

— Agora não deve faltar muito para chegarem aos CCDs.

— Já devem estar esperando o lugar abrir — disse Cassy. — A essa altura, já estão em Atlanta há várias horas. Com a diferença de fuso horário talvez os CCDs demorem mais uma hora aproximadamente para abrir.

Uma família de quatro pessoas que ocupava o reservado ao lado começou a tossir e espirrar quase simultaneamente. Os sintomas da gripe progrediam com rapidez. Pitt olhou naquela direção e reconheceu a aparência pálida e febril, principalmente do pai.

— Gostaria de poder avisar a eles — disse ele.

— O que você lhes diria? — perguntou Cassy. — Que tem um monstro alienígena dentro deles que agora foi ativado e que amanhã eles já não serão mais os mesmos?

— Você tem razão — reconheceu Pitt. — Nesse estágio, já não há muito para ser dito. A prevenção é a chave.

— É por isso que estamos indo direto aos CCDs — disse Cassy. — Prevenção é algo de que entendem. Só precisamos manter os dedos cruzados para que eles levem essa ameaça a sério, antes que seja tarde demais.

O Dr. Wilton Marchand recostou-se em sua cadeira de espaldar alto e cruzou as mãos sobre o abdômen distendido. Ele nunca seguira qualquer das recomendações de sua organização referentes a dieta e exercícios. Parecia mais o bem-sucedido proprietário de uma cervejaria do século XIX do que o diretor dos Centros de Controle de Doenças.

O Dr. Marchand reunira apressadamente alguns dos seus chefes de departamentos para uma reunião de improviso. Presentes estavam: a Dra. Isabel Sanchez, chefe do setor de Gripe; o Dr. Delbert Black, chefe dos Patógenos Especiais; o Dr. Patrick Delbanco, chefe da Virologia; e o Dr. Hamar Eggans, chefe da Epidemiologia. O Dr. Marchand gostaria de ter incluído outros, mas estes se encontravam fora da cidade ou presos a outros compromissos.

— Obrigado — disse o Dr. Marchand a Sheila, que acabara uma veemente apresentação do problema. O Dr. Marchand olhou Para seus chefes de setores, que olhavam por sobre o ombro um outro, ocupados em ler a cópia única do relatório que Sheila entregara antes da apresentação.

   Sheila olhou para Eugene e Nancy, sentados imediatamente à sua direita. A sala estava em silêncio. Nancy fez um gesto afirmativo com a cabeça, dizendo a Sheila que achava que ela fizera um excelente trabalho. Eugene deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, em resposta ao silêncio. Sem palavras, ele perguntava como esse grupo de altos funcionários dos CCD podia estar recebendo aquela informação com tamanha serenidade.

— Com licença — disse Eugene um ou dois minutos depois, incapaz de suportar o silêncio prolongado. — Como físico, preciso enfatizar que esses discos pretos são feitos de um material que não poderia ser fabricado na Terra.

O Dr. Marchand apanhou o recipiente Tupperware em sua mesa e, com os olhos ocultos pelas pálpebras, fitou atentamente os dois objetos.

— E são definitivamente manufaturados — prosseguiu Eugene. — Não são naturais. Em outras palavras, só podem ser de uma cultura avançada... uma cultura alienígena! — Era a primeira vez que o trio usava o termo “alienígena”. Haviam sugerido exatamente isso, mas evitando ser tão explícitos.

O Dr. Marchand sorriu, indicando que entendia o que Eugene queria dizer. Em seguida, estendeu o recipiente Tupperware na direção do Dr. Black, que o apanhou e espiou seu conteúdo.

— É bastante pesado — comentou o Dr. Black antes de passar o recipiente para o Dr. Delbanco.

— E o senhor afirma que existem muitos outros objetos desses em sua cidade — disse o Dr. Marchand.

Sheila ergueu as mãos, exasperada, e pôs-se de pé. Não podia ficar nem mais um instante sentada.

— Pode haver milhares deles — disse ela. — Mas não é essa a questão. O que queremos ressaltar aqui é que estamos no começo de uma epidemia oriunda de um provírus em nossos genomas. Na verdade, ele está presente em cada genoma dos animais superiores que testamos, sugerindo que esteja ali talvez há bilhões de anos. E o mais assustador é que só pode ser de origem extraterrestre.

— Cada elemento, cada átomo e cada partícula de nossos corpos é “extraterrestre” — afirmou o Dr. Black, asperamente.

— Toda a nossa criação foi forjada a partir do fenômeno das supernovas.

— Pode ser — interveio Eugene. — Mas estamos falando de uma forma de vida. Não de meros átomos.

— Exatamente — ratificou Sheila. — Um organismo semelhante a um vírus que vive adormecido nos genomas das criaturas da Terra, inclusive nos dos seres humanos.

— Que vocês querem dar a entender que tenha sido transportado para a Terra nessas miniaturas de espaçonaves que vemos aqui neste recipiente — disse o Dr. Marchand, entediado.

Sheila esfregou o rosto a fim de manter o controle. Ela sabia que estava exausta e emocionalmente esgotada. Como Nancy e Eugene, não pregara o olho naquela noite.

— Sei que isso parece implausível — disse ela, falando deliberadamente devagar. — Mas está acontecendo. Esses disquinhos têm a capacidade de injetar um fluido nos organismos vivos. Tivemos sorte em obter uma gota desse fluido, a partir da qual isolamos uma proteína que, segundo acreditamos, funciona como um priônio.

— Um priônio só transporta uma das encefalopatias espongiformes — afirmou o Dr. Delbanco com um amplo sorriso. — Duvido que sua proteína seja um priônio.

— Eu disse “como um priônio”! — replicou Sheila, com veemência. — Não afirmei que se tratava de um priônio.

— A proteína reage com o segmento específico de DNA que anteriormente era considerado não-codificado — declarou Nancy, vendo que Sheila estava ficando irritada. — Talvez fosse melhor dizer que ela funciona mais como um fomentador.

— Talvez pudéssemos fazer uma pequena pausa — sugeriu Sheila. — Um pouco de café me faria bem.

— Naturalmente — concordou o Dr. Marchand. — Que descortesia de minha parte!

Beau coçou entusiasticamente a área atrás das orelhas de King, enquanto observava os gramados que se estendiam diante do instituto. Do balcão de ferro batido da biblioteca, ele e King Podiam ver uma longa extensão do caminho que levava do portão à casa, antes de ele desaparecer em meio às árvores. O trecho estava apinhado de novos convertidos cobrindo pacientemente o caminho até o castelo. Alguns acenaram para Beau e ele acenou de volta.

Deixando os olhos percorrerem o restante da propriedade, Beau viu que seus amigos caninos cumpriam zelosamente seu dever. Sentiu-se satisfeito. Não queria interrupções.

Voltando-se e entrando na casa, Beau desceu para o primeiro andar e entrou no salão de baile, lotado de pessoas que trabalhavam dura e energicamente. Agora que o lugar estava desmantelado quase que por completo, tinha a aparência muito diferente daquela do dia anterior.

As pessoas que trabalhavam no salão formavam um grupo extraordinariamente diversificado, com representantes de todas as classes sociais e faixas etárias. Não obstante, trabalhavam juntas como uma equipe de nado sincronizado. Da perspectiva de Beau, era uma visão a ser admirada — a própria imagem da eficiência. Ninguém precisava dar ordens. Como as células individuais de um organismo multicelular, cada pessoa tinha gravado na mente o esquema de todo o projeto.

Beau avistou Randy Nite trabalhando alegremente numa bancada montada de improviso no centro do salão. A equipe de Randy era particularmente discrepante, incluindo desde um homem de oitenta e poucos anos a uma menina com menos de dez. Todos trabalhavam em bancas de equipamentos eletrônicos sofisticados. Cada um deles usava na cabeça um apetrecho dispondo de luz e lente de aumento, que fazia lembrar o equipamento para uma cirurgia da retina.

Beau caminhou até ele.

— Ei, Beau! — exclamou Randy, contente, ao avistá-lo. — Que dia maravilhoso, não?

— Perfeito — respondeu Beau, com igual entusiasmo. — Lamento interromper, mas vou precisar de você esta tarde. Seus advogados estão vindo para cá com mais papéis para você assinar. Estou transferindo o restante de seus bens para o instituto.

— Não há problema — afirmou Randy, limpando um pouco de pó de gesso de sua testa. — As vezes acho que deveríamos tirar esse equipamento do meio de toda essa demolição.

— Essa provavelmente teria sido uma boa idéia — admitiu Beau. — Mas a fase de demolição agora está quase terminada.

— O outro problema é que esses instrumentos não têm a sofisticação de que vamos precisar.

— Simplesmente usaremos o que pudermos deles — afirmou Beau. — Sabíamos que haveria problemas com seu grau de precisão. Mas o que não temos no momento teremos de desenvolver por nossa própria conta.

— Então está bem — replicou Randy, embora não estivesse muito convencido.

— Ora, vamos, Randy— disse Beau. — Relaxe! Vai dar tudo certo.

— Bem, pelo menos estão fazendo um progresso fantástico com o lugar — observou Randy, seus olhos vagando pelo salão. — Está muito diferente agora, com toda a certeza. O corretor me disse que essa foi uma recriação do salão de baile de um famoso palácio francês.

— Ele servirá a um propósito muito mais nobre, quando o acabarmos — afirmou Beau, dando um tapinha amigável nas costas de Randy. — Não vou mais tomar seu tempo. Nos veremos mais tarde, quando os advogados chegarem.

Stephanos recolheu a louça suja diante de Cassy, Pitt, Jonathan e Jesse. Este pediu outra “rodada” de café. Stephanos dirigiu-se para trás do balcão, em busca da cafeteira.

— Vocês o ouviram tossir pouco antes de chegar à nossa mesa? — perguntou Cassy.

Pitt assentiu.

— Ele está contraindo a doença. Não há dúvida. Mas não estou surpreso com isso. A última vez em que estivemos aqui, Pensamos que seu pai estivesse infectado.

— Para o inferno com esse café! — exclamou Jesse. — Este lugar está começando a me dar arrepios. Vamos embora.

O grupo se levantou e Jesse atirou uma gorjeta sobre a mesa.

— Essa sou eu que pago — disse ele, apanhando a conta e seguindo na direção do caixa, ao lado da porta.

— O que você acha que Beau está fazendo nesse momento? — indagou Pitt, enquanto o grupo seguia atrás de Jesse.

— Não quero nem pensar nisso — disse Cassy.

— Eu simplesmente não consigo acreditar que meu melhor amigo é o líder de tudo isso — afirmou Pitt.

— Ele não é o líder! — exclamou Cassy, bruscamente. — Já não é o Beau. Está sendo controlado por esse vírus.

— Tem razão — apressou-se em dizer Pitt. Sabia que estava tocando na ferida de Cassy.

— Quando os CCDs estiverem cuidando do caso, você acha que eles podem encontrar uma cura, como uma vacina, por exemplo? — perguntou Cassy.

— As vacinas são usadas para prevenir as doenças — replicou Pitt. — Não para curá-las.

Cassy parou e, com olhos que refletiam uma ponta de desespero, levantou o rosto para Pitt.

— Você não acredita que eles possam encontrar uma cura?

— Bem, existem drogas antivirais — afirmou Pitt, tentando parecer otimista. — Quero dizer, é possível.

— Ah, Pitt, espero que sim — disse Cassy, beirando as lágrimas.

Pitt engoliu em seco. Havia um lado mau seu que festejava a saída de Beau de cena, devido a seus sentimentos por Cassy. Entretanto, ele podia ver o quanto ela estava sofrendo. Aproximando-se, tomou-a nos braços. Ela também o abraçou.

— Ei, garotos, dêem só uma olhada nisso — chamou Jesse, enquanto batia no ombro de Pitt, sem vê-lo. Os olhos de Jesse estavam grudados em um minúsculo aparelho de TV atrás da caixa registradora.

Pitt e Cassy se soltaram. Jonathan juntou-se a eles, ficando às suas costas. A TV estava ligada na CNN e um informe extraordinário estava entrando no ar.

— Acaba de chegar à CNN — começou o locutor — a notícia de que uma chuva de meteoros sem precedentes pôde ser vista ontem à noite na metade do mundo, do extremo oeste europeu até o Havaí. Os astrônomos acreditam que o fenômeno tenha sido mundial, mas que não pôde ser visto no restante do mundo devido à luz do sol. A causa é desconhecida, pois os especialistas foram apanhados totalmente de surpresa. Voltaremos com outras notícias sobre esse acontecimento assim que houver mais informações disponíveis.

— Será que isso tem alguma coisa a ver com vocês sabem o quê? — indagou Jonathan.

— Mais discos negros, talvez? — sugeriu Jesse. — Deve ser isso.

— Meu Deus! — exclamou Pitt. — Se for mesmo, então agora o mundo todo está envolvido.

— Ninguém poderá parar isso — disse Cassy, sacudindo a cabeça.

— Algum problema, meus amigos? — perguntou Costa, o proprietário. Jesse estivera na fila atrás de vários outros fregueses e agora era sua vez de pagar.

— Não — disse Pitt, rapidamente. — O café da manhã estava ótimo.

Jesse pagou a conta e o grupo se encaminhou para a saída.

— Vocês viram o sorriso dele? — perguntou Jonathan. — Viram como era falso? Ele é um dos contaminados. Aposto cinco pratas.

— Vai ter de apostar com outra pessoa — replicou Pitt. — Nós já sabíamos que ele era um deles.

Após um breve intervalo, durante o qual Sheila e Nancy aproveitaram para ir ao banheiro e lavar o rosto, o trio retornou à sala do Dr. Marchand. Sheila ainda estava exasperada, portanto foi Nancy quem falou.

— Entendemos que o que estamos dizendo é amplamente anedótico e que nosso relatório é falho em dados reais — declarou Nancy. — Mas o fato é que somos três profissionais com credenciais impecáveis e que vieram até aqui por estarem preocupados. Isso tudo está mesmo acontecendo.

— Certamente não estamos questionando seus motivos — afirmou o Dr. Marchand. — Apenas suas conclusões. Como já havíamos enviado um funcionário para uma investigação epidemiológica ao local, é compreensível que tenhamos dúvidas. Temos aqui o relatório dele. — O Dr. Marchand ergueu um memorando de uma única página. — Ele teve a impressão de que vocês estavam vivenciando uma onda de uma forma branda de gripe. Descreveu uma extensa conversa com o diretor de seu hospital, o Dr. Halprin.

— A visita dele ocorreu antes de nos darmos conta daquilo com que estávamos de fato lidando — explicou Sheila. — Além disso, o Dr. Halprin já havia sido vítima da doença. Tentamos deixar isso bem claro para o seu funcionário.

— Seu relatório é muito vago — disse o Dr. Eggans a Sheila, batendo-o sobre a borda da mesa do Dr. Marchand depois de lê-lo do início ao fim. — Há muitas suposições e muito pouca substância. No entanto...

Sheila precisou se segurar para não se levantar e deixar a sala, furiosa. Ela não conseguia entender como aqueles intelectuaizinhos passivos haviam chegado a sua atual posição dentro do sistema burocrático dos CCDs.

— No entanto — repetiu o Dr. Eggans, correndo a mão pensativamente pela barba cerrada —, ao mesmo tempo é muito convincente e então eu gostaria de fazer uma investigação in loco.

Sheila virou-se para Nancy. Não estava muito certa de ter ouvido corretamente. Nancy fez um rápido gesto com a mão, indicando que estava tudo bem.

— Vocês circularam esse relatório por outras agências governamentais? — indagou o Dr. Marchand, apanhando-o em sua mesa e folheando-o casualmente.

— Não! — respondeu Sheila, enfaticamente. — Todos nós concordamos em que os CCDs eram o melhor lugar para começar.

— Não o enviaram ao Departamento de Estado ou ao ministro da Saúde?

— A ninguém — afirmou Nancy.

— Vocês tentaram determinar a seqüência de aminoácidos da proteína? — indagou o Dr. Delbanco.

— Ainda não — disse Nancy. — Mas vai ser fácil fazer isso.

— Já determinaram se o vírus pode ser isolado nos pacientes após a recuperação destes? — perguntou o Dr. Delbanco.

— E quanto à natureza da reação entre a proteína e o DNA?— quis saber o esguio Dr. Sanchez.

Nancy sorriu e ergueu as mãos. Estava encantada com o súbito interesse.

— Devagar, por favor — pediu ela. — Só posso responder uma pergunta de cada vez.

As perguntas foram disparadas rápida e furiosamente. Nancy empenhou-se ao máximo em respondê-las e Eugene a ajudava quando podia. De início, Sheila estava tão satisfeita quanto Nancy, mas depois que se passaram dez minutos e as perguntas foram se tornando mais e mais hipotéticas, ela começou a perceber que alguma coisa estava errada.

Sheila respirou fundo. Talvez fosse apenas por estar muito cansada. Talvez aquelas perguntas fossem razoáveis, vindas de profissionais com uma formação tão voltada para a pesquisa. O problema era que ela esperara ação, não intelectualização. Naquele momento, eles interrogavam Nancy sobre como lhe ocorrera a idéia de usar a proteína como uma sonda do DNA.

Sheila deixou os olhos percorrerem a sala. As paredes eram decoradas com a costumeira profusão de diplomas, licenças e premiações acadêmicas. Havia fotografias do Dr. Marchand com o presidente da República e com outros políticos. De repente, os olhos de Sheila pararam numa porta entreaberta cerca de trinta centímetros. Do outro lado, ela viu o rosto do Dr. Clyde Horn. Reconheceu-o instantaneamente, em parte devido à calva lustrosa.

Quando os olhos de Sheila encontraram os do Dr. Horn, o rosto deste contorceu-se num amplo sorriso. Sheila piscou e, quando tornou a abrir os olhos, o Dr. Horn havia desaparecido. Sheila tornou a fechar os olhos. Estaria tendo alucinações devido à exaustão e à tensão? Não tinha muita certeza do que vira, mas o rosto do Dr. Horn lhe trouxe de volta a lembrança de vêlo saindo de sua sala acompanhado do Dr. Halprin. Tão claro como se a cena tivesse se passado há apenas uma hora, ela podia ouvir o Dr. Halprin dizendo: “Inclusive, tenho uma coisa que gostaria que levasse para Atlanta para mim. Algo que acredito vá interessar aos CCDs.”

Os olhos de Sheila se abriram. com súbita clarividência e absoluta certeza, ela soube a que o Dr. Halprin se referia então: a um disco negro. Sheila olhou para o pessoal dos CCDs presente na sala e de repente, com igual certeza, começou a compreender que estavam todos contaminados. Em vez de estarem interessados na epidemia a fim de contê-la, o que estavam fazendo era crivar Nancy e Eugene de perguntas com o intuito de saber como haviam descoberto o que sabiam.

Sheila se levantou. Agarrou o braço de Nancy e puxou-a com força.

— Venha, Nancy. É hora de descansarmos um pouco. Nancy soltou o braço. Estava surpresa com a interrupção.

— Finalmente estamos conseguindo algum progresso aqui — sussurrou ela, com veemência.

— Eugene, precisamos dormir algumas horas — afirmou Sheila. —Você deve compreender, ainda que Nancy não entenda.

— Algum problema, Dra. Miller? — perguntou o Dr. Marchand.

— Em absoluto — respondeu Sheila. — Só que percebi que estamos exaustos e que não deveríamos estar tomando o tempo de vocês até termos descansado um pouco. O que dissermos fará muito mais sentido depois que dormirmos por algumas horas. O Hotel Sheraton fica aqui perto. Vai ser melhor para todos.

Sheila deu um passo até a mesa de Marchand e estendeu a mão para o relatório que ela e os Sellers haviam trazido. O Dr. Marchand pôs a mão sobre ele.

— Se não se importa, gostaríamos de examiná-lo com mais atenção, enquanto vocês descansam.

— Está bem — disse Sheila, cordialmente. Então afastou-se e tornou a puxar o braço de Nancy.

— Sheila, eu acho... — começou Nancy, mas seus olhos encontraram os da médica. Ela pôde ver a intensidade e decisão da companheira e então também se levantou. Compreendeu que Sheila sabia alguma coisa que ela desconhecia.

— Por que não combinamos voltar depois do almoço? — sugeriu Sheila. — Digamos, entre uma e duas horas, está bem?

— Acho que está bom para nós — concordou o Dr. Marchand. Ele olhou para seus chefes de departamento e todos assentiram.

Eugene cruzou as pernas, não tendo percebido a comunicação muda entre sua mulher e Sheila.

— Acho que eu posso ficar aqui — disse ele.

— Você vem conosco — disse Nancy a Eugene, puxando-o e forçando-o a ficar de pé. Em seguida, sorriu para seus anfitriões, que corresponderam ao sorriso.

Sheila deixou a sala do Dr. Marchand na frente. Passaram pela área secretarial e atravessaram o corredor de um tom verde pálido da instituição.

Diante do elevador, Eugene começou a queixar-se, mas Nancy lhe disse que ficasse quieto.

— Pelo menos até chegarmos ao carro — sussurrou Sheila. Entraram no elevador e sorriram para os ocupantes. Todos sorriram de volta e comentaram o quanto o tempo estava bom. Quando chegaram ao carro alugado e entraram, Eugene estava um tanto irritado.

— O que há de errado com vocês? — perguntou ele, introduzindo a chave na ignição. — Levamos uma hora para despertar o interesse deles e então, puf!, precisamos ir descansar. Isso é loucura.

— Estão todos infectados — declarou Sheila. — Cada um deles.

— Tem certeza? — questionou Eugene. Estava estupefato.

— Absoluta — retrucou Sheila. — Não tenho a menor dúvida.

— Presumo que não estejamos indo para o Sheraton — disse Nancy.

— Decerto que não! — exclamou Sheila. — Vamos para o aeroporto. Estamos de volta à estaca zero.

Os repórteres haviam se reunido diante do portão do instituto. Embora não tivessem sido convidados, Beau havia previsto sua vinda. Só não sabia quando viriam. Quando os jovens que guardavam o portão lhe informaram que eles estavam lá, Beau disse aos porteiros que os segurassem por quinze minutos, para que ele tivesse tempo de chegar ao ponto em que a estradinha alcançava as árvores. Beau não queria repórteres no salão de baile, pelo menos por enquanto.

Quando Beau se viu diante do grupo, ficou levemente surpreso pelo número. Esperara de dez a quinze deles, mas em vez disso contavam cerca de cinqüenta. O grupo estava igualmente dividido entre repórteres de jornais, revistas e TV. Havia cerca de dez câmeras de TV. Todos empunhavam microfones.

— Então, aqui vocês vêem o Instituto para um Novo Começo — afirmou Beau, indicando a mansão com um gesto amplo da mão.

— Soubemos que você está fazendo muitas reformas na casa — comentou um jornalista.

— Eu não diria que são muitas — replicou Beau. — Mas, é verdade, estamos fazendo algumas mudanças para atender a nossas necessidades.

— Podemos ver o interior? — perguntou outro repórter.

— Hoje não — disse Beau. — Perturbaria muito o trabalho que está sendo realizado.

— Então viemos até aqui para nada — comentou um terceiro jornalista.

— Não creio que seja esse o caso — afirmou Beau. —Vocês certamente podem ver que o instituto é uma realidade e não uma mera invenção da imaginação.

— É verdade que todos os ativos da Cipher Software agora estão sendo controlados pelo Instituto para um Novo Começo?

—A maioria — respondeu Beau, vagamente. — Talvez vocês devessem fazer essa pergunta ao Sr. Randy Nite.

— Até que gostaríamos — respondeu um repórter. — Mas ele não pôde ser encontrado. Estou tentando o tempo todo marcar uma entrevista com ele.

— Sei que está mesmo ocupado — declarou Beau. — Ele está se dedicando entusiasticamente aos objetivos do instituto. Mas creio que posso convencê-lo a falar com vocês num futuro próximo.

— O que é esse “novo começo”? — indagou um jornalista particularmente cético.

— Exatamente isso — respondeu Beau. — Ele nasceu da necessidade de levar a sério a administração deste planeta. Os seres humanos vêm realizando um péssimo trabalho até aqui, como atestam a poluição, a destruição de ecossistemas, discórdias constantes e guerras. Essa situação necessita de uma mudança ou, se preferirem, de um novo começo, e o instituto será o agente dessa mudança.

O repórter cético sorriu ironicamente.

— Que hábil retórica! — zombou ele. — Suas palavras soam muito pomposas, embora até certo ponto verdadeiras, pelo menos a parte sobre a bagunça em que os homens transformaram o mundo. Entretanto, a idéia de um instituto executar isso numa mansão isolada é ridícula. Essa operação toda, com todas essas pessoas que com certeza sofreram uma lavagem cerebral, me parece mais um culto do que qualquer outra coisa.

Beau fitou o repórter cético e suas pupilas dilataram-se ao máximo. Ele caminhou na direção do homem, alheio às outras pessoas que lhe bloqueavam a passagem. A maioria saiu de seu caminho, mas alguns Beau empurrou. Ele não usou de força, mas sim, aplicando uma leve pressão, fez com que dessem um passo para o lado.

Beau alcançou o repórter que, desafiador, fitava-o com a mesma intensidade. Todo o grupo de jornalistas calou-se, observando o confronto. Beau resistiu à tentação de estender os braços, agarrar o sujeito e obrigá-lo a demonstrar o devido respeito. Em vez disso, decidiu que levaria aquele indivíduo insubordinado até o instituto e o infectaria.

Mas então ocorreu-lhe que seria mais fácil contaminá-los todos. Ele daria um disco negro a cada um, como presente de despedida.

— com licença, Beau! — chamou uma jovem atraente, que acabara de chegar ao local. Seu nome era Verônica Paterson. Ela viera correndo da mansão e estava sem fôlego. Vestia um sedutor traje de uma só peça, confeccionado em fibra sintética elástica, que parecia ter sido pintado em seu corpo flexível e bem feito. Os repórteres do sexo masculino, em especial, ficaram intrigados.

Ela puxou Beau para um lado, afastando-o do grupo, de modo que pudesse lhe falar, com privacidade, que um importante telefonema aguardava-o no instituto.

— Acha que pode cuidar desses repórteres? — perguntou-lhe Beau.

— com certeza — respondeu Verônica.

— Eles não podem entrar — avisou Beau.

— É claro que não — concordou Verônica.

— E devem sair daqui com um presentinho. Dê um disco negro a todos eles. Diga-lhes que se trata de nosso emblema.

Verônica sorriu.

— Gosto da idéia — disse ela.

— Desculpe, pessoal! — gritou Beau para o grupo de repórteres. — Preciso ir devido a um imprevisto, mas estou certo de que tornarei a ver todos vocês. A Srta. Paterson estará à disposição para outras perguntas que queiram fazer. Ela também distribuirá um pequeno brinde de despedida, que vocês levarão como souvenir de sua vinda ao instituto.

Teve início um burburinho de perguntas como resposta ao anúncio de Beau. Este simplesmente sorriu e afastou-se. Bateu palmas e King veio correndo para o seu lado. Enquanto Beau falava com os repórteres, o cão mantivera distância.

Um assovio agudo de Beau reuniu vários dos outros cães que se espalhavam pela propriedade. Beau estalou os dedos e apontou na direção dos jornalistas. Os animais recém-reunidos mais que depressa tomaram posições em torno dos repórteres, sentando-se em uma espera paciente.

Ao chegar à casa, Beau dirigiu-se de imediato à biblioteca. Ali, discou o número da linha direta para o Dr. Marchand e a ligação foi imediatamente respondida.

— Eles se foram — avisou o Dr. Marchand. — Mas foi uma atitude inesperada. Disseram-nos que estavam indo para o Sheraton, mas não foram.

— O senhor está com o relatório? — indagou Beau.

— Naturalmente.

— Destrua-o.

— O que quer que façamos a respeito deles? — perguntou o Dr. Marchand. — Devemos detê-los?

— com toda a certeza — respondeu Beau. — Não deveria fazer uma pergunta para a qual já conhece a resposta.

Marchand riu.

— Tem razão — disse ele. — É só essa estranha mania dos humanos de tentar agir com diplomacia.

O trânsito no meio da manhã em Atlanta não era ruim, se comparado ao da hora do rush, mas era muito mais intenso do que aquele a que Eugene estava habituado.

— Todos parecem tão agressivos aqui — queixou-se Eugene.

— Você está se saindo bem, querido — incentivou-o Nancy, embora não tivesse gostado do quanto Eugene se aproximara de um outro carro no cruzamento anterior.

Sheila estava atenta, olhando pela janela traseira.

— Alguém está nos seguindo? — indagou Eugene, olhando para Sheila pelo espelho retrovisor.

— Creio que não — respondeu ela. — Acho que acreditaram na história do descanso. Afinal, era um motivo razoável. Mas o que me preocupa é que agora eles sabem que nós sabemos! Talvez eu devesse dizer que “ele” sabe.

— Falando assim, parece uma entidade única — observou Eugene.

— Todas as pessoas contaminadas trabalham juntas de uma certa forma — afirmou Sheila. — É muito esquisito. É como se fossem vários vírus, trabalhando por um objetivo coletivo. Ou como um formigueiro, onde cada indivíduo parece saber o que os outros estão fazendo e o que ele deve fazer em conseqüência.

— Suas palavras sugerem que haja uma espécie de rede de comunicação entre as pessoas contaminadas — disse Eugene. — Talvez a forma alienígena seja uma combinação de vários organismos diferentes. Se fosse esse caso, estaríamos lidando com uma organização de uma dimensão diferente daquelas a que estamos acostumados. Ei, talvez seja necessário um número finito de organismos infectados para alcançar uma massa crítica.

— Como físico, você está ficando teórico demais para mim — afirmou Sheila. — E mantenha a atenção no trânsito! Chegamos perto demais desse carro vermelho ao nosso lado.

— Uma coisa, porém, é certa — retomou Nancy. — Qualquer que seja o nível de organização, precisamos lembrar que estamos lidando com uma forma de vida. Isso significa que a autopreservação estará no topo de suas prioridades.

— E a autopreservação depende de se reconhecer e destruir inimigos — observou Sheila. — Como nós!

— Eis uma idéia confortadora — ironizou Nancy, com um arrepio.

— Para onde devemos ir quando chegarmos ao aeroporto? — indagou Eugene.

— Estou aberta a sugestões — respondeu Sheila. — Ainda precisamos contactar alguém ou alguma organização que possa fazer alguma coisa.

Os olhos de Sheila, que passaram pelo rosto do motorista do carro vermelho seguindo ao lado deles e que agora acelerava, retornaram imediatamente a ele.

— Meu Deus! — exclamou ela. Nancy virou a cabeça rapidamente.

— O que aconteceu?

— O motorista do carro vermelho — gritou Sheila. — É o sujeito de barba: o epidemiologista dos CCDs. Qual o nome dele?

— Hamar Eggans — disse Nancy, virando-se para aquele lado a fim de olhar. — Tem razão. É ele. Acha que nos viu?

Naquele momento, o carro vermelho deu uma guinada, entrando logo frente de Eugene, que praguejou. Os pára-choques deixaram de se chocar por questão de milímetros.

— Tem um carro preto à nossa esquerda — gritou Nancy.

— Acho que é Delbanco.

— Ah, não! Estão à direita também — bradou Sheila. — O Dr. Black está no carro branco. Eles nos encurralaram.

— O que eu faço? — perguntou Eugene, em pânico. — Tem alguém atrás de nós?

— Tem outros carros — disse Sheila, virando-se no banco.

— Mas não reconheço ninguém.

No momento em que as palavras saíram dos lábios de Sheila, Eugene freou bruscamente. O pequeno carro alugado de quatro cilindros estremeceu e girou, ficando cruzado no meio da pista. Os pneus chiaram sobre o calçamento, em protesto, assim como aqueles dos carros que vinham atrás.

Eugene não chegou a parar completamente, mas ainda assim o carro que vinha logo atrás bateu no deles. Mas ele conseguiu o que pretendera. Os três carros dos CCDs haviam disparado na frente antes de pisarem no freio tardiamente, dando a Eugene a oportunidade de dobrar à esquerda, em meio ao trânsito. Nancy berrou ao ver os carros se aproximarem do seu lado do veículo.

Eugene pisou fundo no acelerador para evitar uma colisão e entrou em disparada num beco estreito, repleto de lixo espalhado e vários latões. A largura era suficiente apenas para o carro pequenino, de modo que este colidiu de frente com todo o lixo, as caixas de papelão e os latões, provocando uma rajada de destroços voadores.

Nancy e Sheila seguraram-se com força.

— Meu Deus, Eugene! — gritou Nancy quando atingiram um latão particularmente grande e este virou, indo quicar no teto do carro e estilhaçando o teto solar.

Eugene tentava controlar o volante para manter o carro seguindo em linha reta, apesar dos detritos e vasilhames. Ainda assim, este ricocheteava repetidamente nas paredes de cimento, com um agônico ruído áspero, semelhante ao de unhas raspando num quadro-negro gigante.

Mais para o fim do beco, o caminho estava livre e Eugene arriscou uma olhada pelo espelho retrovisor. Para seu horror, pôde ver a frente do carro vermelho entrando na passagem estreita.

— Eugene, cuidado! — gritou Nancy, apontando para a frente. Eugene desviou os olhos do retrovisor a tempo de ver uma grade correndo em sua direção. Concluindo que havia pouca escolha, ele gritou para que as mulheres se segurassem e pisou no acelerador até o fundo.

O diminuto automóvel ganhou velocidade. Tanto Eugene quanto Nancy foram violentamente atirados para a frente, seguros pelos cintos de segurança, enquanto Sheila batia de encontro ao encosto do banco dianteiro.

Apesar dos fragmentos de metal que arrastava, o pequeno carro continuou avançando, indo sair num campo e levantando nuvens de poeira. O carro rodou várias vezes, mas a cada uma delas Eugene conseguiu controlar o volante, impedindo que o automóvel capotasse.

O terreno baldio era um quadrado com cerca de cem metros de lado e nele não se viam árvores. Mais à frente, Eugene podia distinguir uma elevação coberta por uma vegetação agreste. Além da elevação, divisava-se uma parte movimentada da cidade. Acima do topo da colina, os tetos dos veículos presos no trânsito lento eram visíveis.

Com a boca seca e os braços doloridos, Eugene lançou outro olhar à sua retaguarda. O carro vermelho tentava manobrar através do buraco na grade da cerca e o branco vinha imediatamente atrás.

O plano concebido às pressas por Eugene era subir a colina e misturar-se ao trânsito, mas o terreno tinha outras idéias. O solo era muito macio e, quando as rodas dianteiras do pequeno automóvel alcançaram a base da elevação, atolaram. O carro rodopiou para a esquerda e seguiu aos trancos até parar em meio a uma nuvem de poeira. Os três ocupantes sofreram um violento solavanco.

Eugene foi o primeiro a se recuperar e estendeu a mão, tocando sua mulher. Ela reagiu como se acordasse de um pesadelo. Ele voltou-se para Sheila, que estava tonta, mas bem.

Eugene soltou o cinto de segurança e saltou com pernas trêmulas, olhando na direção da grade. O carro vermelho fora evidentemente retido na abertura estropiada: o som de seus pneus girando podiam ser ouvidos do outro lado do campo.

— Vamos! — gritou Eugene para as mulheres. — Temos uma chance. Vamos subir este morro e desaparecer na cidade.

As mulheres saíram pela porta do passageiro. Enquanto isso, Eugene olhou nervosamente para o carro vermelho a tempo de ver o homem de barba descer.

— Vamos, depressa! — Eugene apressou as mulheres. Esperando que o homem barbudo viesse correndo na direção deles, ficou surpreso ao vê-lo inclinar-se para apanhar alguma coisa no carro. Quando ergueu o objeto, Eugene achou que parecia o recipiente Tupperware que haviam trazido para Atlanta.

Confuso com aquele gesto, Eugene continuou a observar, enquanto Nancy e Sheila subiam a colina, uma ajudando a outra. Alguns segundos mais tarde, Eugene viu-se fitando um dos discos negros. Para sua maior perplexidade, o pequeno objeto pairava em pleno ar, bem diante de seu rosto.

— Venha, Eugene! — chamou Nancy, já quase no topo da elevação. — O que está esperando?

— É um disco negro — gritou Eugene de volta.

Eugene percebeu que o disco estava girando rapidamente. As pequenas protuberâncias que se alinhavam em torno da borda agora pareciam uma minúscula crista.

O disco negro aproximou-se ainda mais de Eugene, cuja pele começou a formigar.

— Eugene! — gritou Nancy, insistente.

Eugene recuou um passo sem tirar os olhos do disco diante dele, que agora estava ficando vermelho e começando a irradiar calor. Tirando o casaco e enrolando-o, Eugene atirou-o contra o disco, numa tentativa de derrubá-lo no chão. Mas isso não aconteceu. Em vez disso, o disco abriu um buraco no tecido do casaco com tanta rapidez que Eugene não sentiu qualquer tipo de resistência. Era como uma faca atravessando um pedaço de manteiga em temperatura ambiente.

— Eugene! — tornou a gritar Nancy. — Venha!

Como físico, Eugene sentiu-se fascinado, principalmente quando uma coroa começou a se formar em torno do disco e a cor deste foi se transformando do vermelho para o branco. A sensação de formigamento que Eugene sentia na pele aumentou.

A coroa expandiu-se com rapidez, tornando-se uma fulgurante bola de luz, tão brilhante que a imagem do disco nela contido já não era mais visível.

Agora Nancy podia ver o que estava prendendo a atenção do marido. Estava prestes a tornar a chamá-lo quando viu a brilhante bola de luz expandir-se de repente até engolir o marido.

O grito instantâneo de Eugene foi imediatamente sufocado e substituído por uma espécie de silvo. O ruído aumentou, tornando-se ensurdecedor, mas apenas por um instante; em seguida, foi interrompido de maneira tão súbita que Nancy e Sheila sentiram uma força concussiva, como uma explosão silenciosa.

Eugene se fora. O carro de aluguel transformara-se numa massa volumosa curiosamente retorcida, como se houvesse sido derretido e puxado na direção do ponto onde Eugene estivera.

Nancy começou a descer o morro, correndo naquela direção, mas Sheila a agarrou.

— Não! — berrou Sheila. — Não podemos. — Havia agora uma outra bola de luz formando-se perto dos destroços do carro.

— Eugene! — gritou Nancy, desesperada, as lágrimas brotando de seus olhos.

— Ele se foi — disse Sheila. — Precisamos sair daqui.

A segunda bola de luz nesse momento se expandia, envolvendo o carro.

Sheila segurou o braço de Nancy e puxou-a para o topo da colina, em direção ao movimento da cidade. À frente delas, o trânsito pesado e, o melhor de tudo, milhares de pedestres. Às suas costas, ouviram o estranho silvo novamente e sentiram outra concussão.

— O que foi aquilo? — perguntou Nancy em meio às lágrimas.

— Acho que pensaram que estávamos no carro — disse Sheila. - E, se tivesse de dar um palpite sobre o que aconteceu, diria que acabamos de testemunhar a criação de dois buracos negros em miniatura.

— Por que ainda não nos deram notícias? — perguntou Jonathan. À medida que o dia chegava ao fim, ele ia ficando progressivamente preocupado. Agora que a noite caíra, sua apreensão havia aumentado. — Em Atlanta, é mais tarde ainda.

Jonathan, Jesse, Cassy e Pitt estavam no carro de Jesse, percorrendo a rua de Jonathan. Já haviam passado várias vezes diante da casa dele. Jesse estava nervoso em relação àquela visita, mas cedera quando Jonathan insistiu em que precisava de mais roupas e de seu laptop. Queria também certificar-se de que os pais não haviam ligado e deixado alguma mensagem no computador.

— Provavelmente seus pais e a Dra. Miller estão muitíssimo ocupados — disse Cassy. Mas no fundo do coração não acreditava naquelas palavras. Ela também estava preocupada.

— O que você acha, Jesse? — indagou Pitt, quando alcançaram a casa de Jonathan pela terceira vez. —Acha que é seguro?

— Para mim, parece tudo limpo — afirmou Jesse. — Não vejo nada que sugira uma tocaia. Muito bem, vamos lá, mas sejamos rápidos.

Pararam na entrada da casa e apagaram os faróis. Por insistência de Jesse, esperaram mais alguns minutos para ver se havia alguma mudança nas casas da vizinhança ou se algum veículo estacionava na rua. Tudo parecia tranqüilo.

— OK — decidiu Jesse. — Vamos.

Entraram pela porta da frente e Jonathan desapareceu no segundo andar, dirigindo-se ao seu quarto. Jesse ligou a TV na cozinha e encontrou cerveja gelada na geladeira. Ofereceu uma a Cassy e a Pitt. Este aceitou. A TV estava ligada na CNN.

— Acabamos de receber a notícia — anunciou o repórter — de que há alguns minutos a Casa Branca cancelou a conferência de cúpula multinacional sobre terrorismo, afirmando que o presidente acaba de ser acometido pela gripe. O secretário de imprensa da Presidência, Arnold Lerstein, anunciou que a reunião provavelmente teria sido realizada, como planejado, mesmo sem a presença do presidente, se não fosse pelo fato de que, por coincidência, a maior parte dos outros líderes mundiais está aparentemente sofrendo do mesmo mal. O médico particular do presidente declarou que está convencido de que o chefe de Estado tem a mesma gripe “rápida” que vem assolando Washington nesses últimos dias e que deve retomar suas atividades normais pela manhã.

Pitt abanou a cabeça, em desalento.

— Estão dominando toda a nossa civilização, da mesma forma por que um vírus do sistema central se apossa de um hospedeiro. Está indo para o cérebro.

— Precisamos de uma vacina — disse Cassy.

— Precisamos para ontem — afirmou Jesse.

O telefone assustou a todos. Cassy e Pitt olharam para Jesse, questionando se deveriam atender. Antes que Jesse pudesse responder, Jonathan atendeu no andar de cima.

Jesse subiu correndo a escada, sendo seguido por Cassy e Pitt. Entrou bruscamente no quarto de Jonathan.

— Espere um instante — disse Jonathan no aparelho, vendo os outros. Informou então que era a Dra. Miller.

— Ponha no viva-voz — sugeriu Jesse. Jonathan pressionou o botão.

— Estamos todos aqui — anunciou Jesse. — Estamos com o viva-voz. Como vocês se saíram?

— Pessimamente — admitiu Sheila. — Eles nos enganaram. Passaram-se várias horas antes que eu percebesse que estavam todos infectados. A única coisa em que estavam interessados era em como descobrimos o que estava acontecendo.

— Meu Deus! — murmurou Jesse. — Foi difícil escapar? Eles tentaram detê-los?

— Inicialmente, não — contou Sheila. — Dissemos que íamos para um hotel dormir um pouco, mas eles devem ter nos seguido pois nos interceptaram a caminho do aeroporto.

— Houve problemas? — perguntou Jesse.

— Houve, sim. Lamento dizer que perdemos Eugene.

O grupo se entreolhou. Todos tinham uma interpretação diferente para o significado de “perdemos”. Jesse foi o único que teve certeza.

— Vocês procuraram por ele? — indagou Jonathan.

— Era como o quarto do hospital — declarou Sheila. — Não sei se entende o que quero dizer.

— Que quarto de hospital? — interrogou Jonathan, começando a entrar em pânico.

Cassy passou o braço pelo ombro de Jonathan.

— Onde é que vocês estão? — perguntou Jesse.

— No aeroporto de Atlanta — disse Sheila. — Nancy está péssima, como vocês podem imaginar, mas estamos agüentando. Decidimos voltar para casa, mas precisamos de que alguém telefone e compre as passagens daí. Estamos com receio de usar nossos cartões de crédito.

— Vou fazer isso agora mesmo — afirmou Jesse. — Veremos vocês assim que chegarem.

Jesse desligou e discou o número do setor de vendas da companhia aérea. Enquanto tomava as providências, Jonathan perguntou a Cassy diretamente se alguma coisa acontecera a seu pai.

Cassy assentiu.

— Receio que sim — disse ela. — Mas não sei o quê. Você terá de esperar até sua mãe voltar para saber mais.

Jesse desligou o telefone e olhou para Jonathan. Tentou pensar em alguma coisa gentil para dizer, mas, antes que pudesse fazê-lo, ouviu o ruído de pneus cantando na rua. Das janelas da frente da casa, vinha o flash intermitente de luzes coloridas.

Correndo até a janela, Jesse entreabriu a cortina. Na rua lá fora, atrás de seu carro, havia uma radiopatrulha com as luzes piscando. Nesse momento, os ocupantes uniformizados saltavam do carro, em companhia de Vince Garbon. Todos traziam pastores alemães na coleira, com guias curtas.

Outros veículos do departamento de polícia surgiram, alguns com distintivos, outros não, incluindo um camburão. Todos pararam diante da casa dos Sellers, seus ocupantes saltando imediatamente.

— O que foi? — perguntou Pitt.

— É a polícia — disse Jesse. — Deviam estar vigiando a casa. Estou vendo até meu antigo parceiro. Ou o que restou dele.

— Eles estão vindo para cá? — quis saber Cassy.

— Receio que sim — respondeu Jesse. — Apaguem todas as luzes.

O grupo começou a correr freneticamente pela casa, desligando as poucas luzes que haviam acendido. Acabaram na cozinha escura. Feixes de luz vindos de fora trespassavam as janelas, dando ao local uma aparência fantasmagórica.

— Devem saber que estamos aqui — disse Cassy.

— O que vamos fazer? — perguntou Pitt.

— Não creio que haja muito que possamos fazer — afirmou Jesse.

— Esta casa tem uma saída secreta — informou Jonathan. —. É pelo porão. Eu costumava usá-la para escapulidas noturnas.

— O que estamos esperando? — replicou Jesse. —Vamos lá!

Jonathan foi na frente, levando seu laptop. Seguiam lenta e silenciosamente, evitando os feixes de luz que entravam pela janela da cozinha. Assim que alcançaram os degraus que levavam ao porão e fecharam a porta, sentiram-se um pouquinho menos vulneráveis. Mas o caminho era difícil devido à absoluta escuridão. Não queriam acender luzes porque o porão tinha várias janelinhas.

Seguiam em fila indiana, todos segurando naquele que ia à sua frente para não se perderem. Jonathan conduziu-os até a parede nos fundos do porão. Ali, ele abriu uma porta maciça, cujas dobradiças rangeram. Uma rajada de ar frio correu na altura de seus pés.

— Se vocês estão se perguntando o que é isso — disse Jonathan—, trata-se de um abrigo antiaéreo, construído nos anos cinqüenta. Meus pais o utilizam como adega.

Todos entraram e Jonathan pediu ao último que fechasse a porta, que se encaixou no batente com um ruído sólido e surdo.

Assim que a porta se fechou, Jonathan acendeu uma lâmpada. Encontravam-se numa passagem de cimento, cujas paredes eram recobertas com prateleiras de madeira. Viam-se algumas caixas de vinho espalhadas casualmente.

— Por aqui — indicou Jonathan.

Encontraram uma outra porta. Além desta, descia-se um degrau que levava a um cômodo quadrado, de quase quatro metros de lado, com beliches e toda uma parede de armários. Havia também uma pia e um minúsculo banheiro.

Numa segunda câmara encontrava-se uma cozinha. Além desta, mais uma porta sólida, levando a um outro corredor que finalmente ia dar ao ar livre, num leito de rio seco, atrás da residência dos Sellers.

— Ora, vejam só! — comentou Jesse. — Igualzinho a uma saída secreta de um antigo castelo medieval. Genial.

 

9:45

— Nancy — chamou Sheila delicadamente. — Chegamos.

Os olhos de Nancy abriram-se de repente e ela despertou com um sobressalto.

— Que horas são? — perguntou ela, orientando-se em relação ao lugar e à pessoa.

Sheila lhe informou.

— Estou me sentindo péssima — declarou Nancy.

— Somos duas — replicou Sheila.

Elas haviam passado a noite andando de um lado para o outro no Aeroporto Internacional Hartsfield, de Atlanta, o tempo todo temendo serem reconhecidas. Embarcar no vôo nas primeiras horas da manhã havia sido um pequeno alívio. Nenhuma das duas dormia há quarenta horas. Assim que se viram no ar, mergulharam num sono profundo.

— O que vou dizer a meu filho? — perguntou Nancy, sem de fato esperar uma resposta. Todas as vezes em que pensava no desaparecimento súbito do marido, as lágrimas afloravam-lhe aos olhos.

As duas mulheres reuniram seus pertences e desembarcaram. Estavam paranóicas em relação a todos e certas de que as pessoas as observavam. Quando surgiram na extremidade da ponte de embarque que ligava o avião ao aeroporto, Nancy viu Jonathan e correu para ele. Ficaram abraçados em silêncio por vários minutos, enquanto Sheila cumprimentava Jesse, Pitt e Cassy.

— Muito bem, vamos embora — disse Jesse, tocando mãe e filho, que choravam silenciosamente.

Caminharam em grupo na direção do terminal. O tempo todo a cabeça de Jesse girava de um lado para o outro, enquanto ele avaliava constantemente as pessoas à sua volta. Sentiu-se satisfeito por ninguém estar prestando atenção especial a eles, principalmente os seguranças do aeroporto.

Quinze minutos mais tarde, encontravam-se na van particular de Jesse, seguindo para a cidade. Sheila e Nancy descreveram em detalhes a desastrosa viagem. com a voz trêmula, Nancy conseguiu explicar os últimos momentos de Eugene. A tragédia foi recebida com o silêncio.

— Precisamos resolver para onde ir — disse Jesse.

— Acho que nossa casa será o lugar mais confortável — opinou Nancy. — Não é refinada, mas é muito espaçosa.

— Não creio que essa seja uma boa idéia — objetou Jesse, contando a Nancy e Sheila, então, o que acontecera na noite anterior.

Nancy sentiu-se ultrajada.

— Sei que é egoísmo de minha parte ficar tão aborrecida por causa de uma casa, levando-se em consideração tudo que está acontecendo — disse ela. — Mas é o meu lar.

— Onde vocês ficaram na noite passada? — indagou Sheila.

— No apartamento do meu primo — respondeu Pitt. — O problema é que só tem três quartos e um banheiro.

— Nas atuais circunstâncias, o conforto é um luxo com o qual não podemos contar — afirmou Sheila.

— Hoje de manhã, no programa Today, um bando de altos funcionários governamentais da área da saúde disse a todos que a gripe que está por aí não é motivo de preocupação — contou Cassy.

— Provavelmente eram dos CCDs — disse Sheila. — Aqueles canalhas!

— O que mais me intriga é o fato da mídia não dizer uma única palavra sobre todos aqueles discos negros — observou Pitt.

— Por que a presença dos discos não foi questionada, especialmente após a aparição de tantos deles?

— Trata-se de uma curiosidade aparentemente inofensiva — declarou Jesse. — com certeza as pessoas estão falando sobre eles, mas não são considerados dignos de virarem notícia. Infelizmente, não há motivo para se fazer uma conexão entre os discos e a gripe, até que seja tarde demais.

— Vamos ter de descobrir uma forma de começar a prevenir as pessoas — afirmou Cassy. — Não podemos mais esperar.

— Cassy tem razão — concordou Pitt. — É hora de irmos a público, de todas as maneiras que pudermos: televisão, rádio, jornal, tudo. O público precisa saber.

— Que se dane o público! — disse Sheila. — É a comunidade médico-científica que precisamos sensibilizar. Logo, logo não haverá ninguém com a habilidade necessária para encontrar uma forma de parar essa coisa.

— Creio que os garotos têm razão — afirmou Jesse. — Tentamos os CCDs e falhamos. Precisamos encontrar pessoas da midia que não estejam contaminadas e simplesmente espalhar a notícia pelo mundo todo. O problema é que não conheço ninguém na imprensa, exceto alguns repórteres policiais vigaristas.

— Não, Sheila está certa... — começou Nancy. Jonathan desligou-se. Estava arrasado com o destino do pai.

Como adolescente, o conceito de morte lhe parecia totalmente irreal. Num aspecto amplo, ele não conseguia aceitar o que lhe fora dito.

A atenção de Jonathan passou da discussão no interior do carro para a paisagem da cidade. Havia uma grande quantidade de pessoas nas ruas. Desde o começo, parecia que estas estavam sempre cheias de gente perambulando, qualquer que fosse a hora do dia ou da noite. E todos exibindo aquele estúpido sorriso falso.

Jonathan percebeu uma outra coisa, à medida que atravessavam o centro da cidade. As pessoas ocupavam-se em interagir e ajudar, umas às outras. Fosse um passante auxiliando um trabalhador a descarregar suas ferramentas ou uma criança ajudando um idoso a carregar um pacote, todos trabalhavam juntos. Para Jonathan, a cidade parecia uma colméia.

Dentro do carro, a discussão atingira um crescendo e Sheila elevara a voz a fim de abafar a de Pitt.

— Silêncio! — gritou Jonathan.

Para surpresa dele próprio, sua explosão funcionou. Todos olharam para ele, inclusive Jesse, que dirigia.

— Essa discussão é uma estupidez — disse o garoto. — Precisamos trabalhar unidos. — Ele inclinou a cabeça, indicando o mundo fora do automóvel: — É o que eles certamente estão fazendo.

Censurados por um adolescente, todos aceitaram a sugestão e começaram a observar o quadro ao redor deles. Viram aquilo a que ele se referia e recobraram a compostura.

— É pavoroso — disse Cassy. — Parecem todos autômatos.

Jesse entrou na rua onde se localizava o apartamento do primo de Pitt. Começou a frear quando avistou dois carros que ele tinha certeza serem dois veículos da polícia sem identificação. com sua experiência, soube imediatamente que estavam tocaiando o lugar. Era o mesmo que terem emblemas nas laterais dos automóveis, proclamando o fato.

— O condomínio é aqui — disse Pitt, quando percebeu que Jesse estava prestes a passar da entrada.

— Não vamos parar — afirmou Jesse, apontando para a direita. — Vê aqueles dois Fords novos, modelo básico? Aqueles homens são policiais à paisana. Tenho certeza disso.

Cassy olhou para os homens.

— Não olhem! — advertiu Jesse. — Não queremos atrair a  atenção deles.

Jesse prosseguiu dirigindo.

— Podíamos ir para o meu apartamento — sugeriu Sheila. — Mas só tem um quarto e é num prédio com muitos moradores.

— Tenho um lugar melhor — informou Jesse. — Na verdade, é perfeito.

Viajando numa caravana constituída de dois dos Mercedes particulares de Randy Nite, Beau e um grupo de assistentes pessoais seguiram do instituto para o Observatório Donaldson, construído no topo da montanha Jackson. A vista do local era espetacular, principalmente num dia assim tão claro.

O observatório por si só era tão impressionante quanto sua localização. Tratava-se de uma imensa cúpula hemisférica, posicionada diretamente no topo do pináculo rochoso da montanha. A construção era pintada com um branco reluzente que cegava à luz brilhante do sol. A coberta móvel do domo estava fechada a fim de proteger o enorme telescópio refletor abrigado ali dentro.

Tão logo o primeiro carro parou, Beau saltou rapidamente acompanhado por Alexander Dalton, que fora advogado em sua vida anterior. Verônica Paterson desceu pelo lado do motorista. Ela ainda estava vestida com sua roupa sintética colante. Beau, no entanto, vestira uma camisa de mangas compridas, com uma estampa escura. Trazia a gola levantada e os punhos abotoados.

— Espero que o equipamento valha todo esse esforço — disse Beau.

— Pelo que sei, é o modelo mais avançado — afirmou Alexander, um homem alto, magro, com dedos particularmente longos e finos. No momento, funcionava como um dos assistentes mais chegados a Beau.

O segundo Mercedes parou e dele desceu uma equipe de técnicos, todos carregando suas ferramentas.

—Olá, Beau Stark — soou uma voz.

Todos voltaram-se a fim de ver um homem de cabelos brancos, já beirando os oitenta anos, parado no vão de uma porta aberta na base do observatório. Seu rosto era vincado e enrugado, como um pedaço de fruta seca, devido à intensidade do sol naquela altitude elevada.

Beau caminhou até o homem e apertou sua mão. Em seguida, apresentou Verônica e Alexander ao Dr. Carlton Hoffman, dizendo a seus assistentes que estavam diante do atual rei da astronomia americana.

— É muita gentileza sua — disse Carlton. — Podem entrar e começar.

Beau acenou para que toda a sua equipe entrasse no observatório. Eles obedeceram sem dizer palavra.

— Precisam de alguma coisa? — perguntou Carlton.

— Creio que trouxemos as ferramentas de que precisamos — afirmou Beau.

Os técnicos lançaram-se imediatamente ao trabalho, desmontando o gigantesco telescópio.

— Estou interessado particularmente na cápsula de observação do foco principal — gritou Beau a um dos homens que haviam subido para o conjunto intercambiável na extremidade.

Beau voltou-se para Carlton.

— Naturalmente o senhor sabe que é bem-vindo ao instituto a qualquer hora que queira nos visitar — disse ele.

— É muita gentileza de sua parte — replicou Carlton. — Irei, sim, principalmente quando estiverem prontos.

— Não vai demorar muito — declarou Beau.

— Parem! — gritou uma voz, ecoando no interior do observatório abobadado. O processo de desmontagem parou bruscamente. — O que está acontecendo aqui? Quem são vocês?

Todos os olhos se voltaram para a porta da câmara de compressão. Diante dela, via-se um homenzinho pequeno e franzino, que tossiu violentamente, mas continuou a fitar de modo ameaçador os homens que trabalhavam desmontando partes do telescópio.

— Fenton, estamos aqui — gritou Carlton para o homem.

— Está tudo bem. Tem alguém aqui que quero que você conheça.

O nome do recém-chegado era Fenton Tyler. Sua posição era a de astrônomo assistente e, como tal, era o herdeiro legitimo de Carlton Hoffman. Fenton lançou um olhar rápido na direção de Carlton, mas logo em seguida voltou a dirigir a atenção para os outros homens, temendo que desatarraxassem mais um único parafuso que fosse.

— Por favor, Fenton — insistiu Carlton. — Venha até aqui. Relutante, Fenton deslocou-se de lado, continuando a manter seu adorado telescópio em seu campo de visão. Quando se aproximou de Beau e dos outros, ficou claro para estes que o homem estava doente.

— Ele está com a gripe — sussurrou Carlton para Beau—. Não esperava que viesse trabalhar.

Beau assentiu, sabiamente.

— Compreendo — disse ele.

Fenton parou ao lado de seu chefe. Estava pálido e febril, e espirrou com violência. Carlton apresentou-o a Beau e explicou que este estava tomando partes do telescópio emprestadas.

— Emprestadas? — repetiu Fenton, totalmente confuso. — Não entendi.

Carlton pousou a mão no ombro de Fenton.

— É claro que não entendeu — disse ele. — Mas entenderá. Prometo a você, e mais rápido do que imagina.

— OK! — gritou Beau, batendo palmas ruidosamente. — De volta ao trabalho, pessoal. Vamos terminar isso.

Apesar dos comentários de Carlton, Fenton estava estupefato com a destruição a que estava assistindo, e expressou sua confusão. Carlton puxou-o de lado a fim de explicar.

— Fico feliz que o Dr. Hoffman esteja aqui — comentou Alexander.

Beau assentiu. Mas ele já não estava pensando na interrupção. Tinha o pensamento voltado para Cassy.

— Diga-me, Alexander. Conseguiu localizar aquela mulher que lhe pedi?

— Cassy Winthrope — disse Alexander, sabendo instantaneamente a quem Beau se referia. — Ela ainda não foi localizada. Está claro que ainda não é uma de nós.

— Humm — murmurou Beau, pensativo. — Eu nunca deveria tê-la deixado sair de minhas vistas quando daquela sua visita de surpresa. Não sei o que me deu. Suponho que tenha sido vestígio de uma característica romântica humana. É constrangedor. Encontre-a, a qualquer custo.

— Nós a encontraremos — afirmou Alexander. — Não tenha dúvida.

Os últimos quilômetros foram penosos, mas a van de Jesse conseguiu superar os sulcos da estrada de terra sem manutenção.

— A cabana fica depois da próxima curva — anunciou Jesse.

— Graças a Deus! — queixou-se Sheila.

Finalmente o veículo parou com um solavanco. Diante deles, via-se uma cabana feita com troncos de árvores, aninhada num bosque virgem de gigantescos pinheiros. A luz do sol penetrava em ângulos oblíquos, através das folhas, em feixes de luz surpreendentemente claros.

— Onde estamos? — perguntou Sheila. — Tombuctu?

— Dificilmente. — Jesse riu. — Aqui tem eletricidade, telefone, TV, água encanada e vaso sanitário.

— Falando assim, você faz com que pareça um hotel cinco estrelas — disse Sheila.

— Eu acho que é lindo — comentou Cassy.

— Venham — chamou Jesse. —vou lhes mostrar a cabana por dentro e o lago que fica ali atrás.

Eles saltaram do carro com os músculos enrijecidos, principalmente Sheila e Nancy. Todos apanharam os poucos pertences que haviam trazido. Jonathan carregava seu laptop.

O ar estava claro e puro e cheirava a folhas de pinheiro. A brisa fresca produzia um leve suspiro quando passava em meio às árvores perenes e altas. O canto dos pássaros vinha de toda parte.

— Como é que você comprou essa cabana? — perguntou Pitt, quando alcançavam a varanda na frente da casa. As colunas e balaustradas eram troncos de árvores. O piso era de tábuas rústicas de pinheiro.

— Compramos basicamente para pescar — explicou Jesse. — Annie era a pescadora, não eu. Depois que ela se foi, não consegui vendê-la. Não que eu venha aqui com freqüência, muito menos nestes últimos anos.

Jesse abriu com certa dificuldade a porta da frente e todos entraram. Ali dentro havia um leve cheiro de mofo. O ambiente era dominado por uma imensa lareira de pedra, que subia até o teto alto e inclinado. À direita, via-se uma cozinha aberta, com uma bomba manual sobre a pia de pedra-sabão. À esquerda, dois quartos. A porta do banheiro ficava do lado direito da lareira.

— Acho que é encantadora — disse Nancy.

— Bem, certamente é isolada — afirmou Sheila.

— Não creio que pudéssemos encontrar um lugar melhor — declarou Cassy.

— Vamos arejar a casa — disse Jesse.

Durante a meia hora seguinte, eles trataram de tornar a cabana o mais confortável possível. No caminho da cidade, haviam parado num supermercado e se abastecido de mantimentos. Os homens apanharam-nos no carro e as mulheres cuidaram de guardá-los.

Jesse insistiu em acender a lareira, embora o dia não estivesse frio.

— Vai ajudar a tirar a umidade da casa — explicou ele. — E, quando a noite chegar, vocês ficarão felizes com o fogo aceso. Aqui a temperatura cai à noite, mesmo nesta época do ano.

Por fim, todos desabaram sobre os sofás de riscado e as cadeiras de madeira que se agrupavam em torno da lareira. Pitt estava usando o computador de Jonathan.

— Acho que ficaremos seguros aqui — disse Jonathan, que abrira um pacote de batatas fritas e as mastigava ruidosamente.

— Por algum tempo — acrescentou Jesse. — Ninguém no departamento de polícia sabe desta casa, pelo que me consta. Mas não estamos aqui para passar férias. O que vamos fazer em relação ao que está acontecendo no mundo?

— Com que rapidez essa gripe pode se espalhar pelo mundo todo - indagou Cassy.

— Com que rapidez? — replicou Sheila. — Creio que já tivemos uma ampla demonstração.

— com um período de incubação de apenas algumas horas — disse Pitt —, associado ao fato de tratar-se de uma doença de ciclo curto e de as pessoas infectadas desejarem infectar os outros, pode se alastrar como um rastilho de pólvora. — Enquanto falava, não parava de digitar no laptop. — Eu poderia fazer um cálculo razoavelmente preciso se tivesse idéia de quantos desses discos pretos caíram na Terra. No entanto, mesmo com uma estimativa rudimentar e modesta, as coisas não parecem muito boas.

Pitt girou a tela do computador para que os outros pudessem ver. Ele fizera um gráfico circular com uma fatia em vermelho.

— Esta é a situação que temos apenas após alguns dias — disse ele.

— Estamos falando de milhões e milhões de pessoas — lembrou Jesse.

— Considerando-se tanto o fato de os infectados trabalharem muito bem juntos e sua atitude evangelizadora, não demorará muito para que sejam bilhões — completou Pitt.

— E quanto aos animais? — quis saber Jonathan. Pitt suspirou.

— Nunca pensei muito nisso — disse ele. — Mas, com certeza eles também estão envolvidos. Qualquer organismo que tenha o vírus em seu genoma.

— É — disse Cassy, pensativamente. — Beau deve ter contaminado aquele cachorro enorme. Desde o início achei o bicho muito estranho.

— Então esses alienígenas se apossam dos corpos dos outros — ponderou Jonathan.

— De forma semelhante àquela como um vírus normal se apossa das células individuais — explicou Nancy. — Lembre-se de que foi por isso que Pitt o chamou de megavírus.

Todos ficaram felizes em ouvir a voz de Nancy, que estivera calada por horas.

— Os vírus são parasitas — continuou ela. — Precisam de um organismo hospedeiro. Sozinhos, são incapazes de fazer qualquer coisa.

— com toda certeza precisam de hospedeiros — afirmou Sheila. — Principalmente essa cepa alienígena. Nenhum vírus microscópico poderia ter construído aquelas espaçonaves.

— É verdade! — concordou Cassy. — Em algum lugar do universo, esse vírus alienígena deve ter infectado outras espécies que possuíam o conhecimento, o tamanho e a capacidade de construir aqueles discos para eles.

— Eu não teria tanta certeza assim — declarou Nancy. — É possível que pudessem fazer isso sozinhos. Lembram-se que sugeri que os alienígenas poderiam ser capazes de se acondicionar, ou pelo menos parte de seu conhecimento, sob uma forma viral a fim de realizar uma viagem espacial intergaláctica? Nesse caso, sua forma normal poderia ser bem diferente de um vírus. Antes de desaparecer, Eugene estava levantando a hipótese de que talvez a consciência alienígena pudesse ser alcançada através de um número finito de seres humanos infectados, trabalhando em conjunto.

— Vocês todos estão quilômetros à minha frente — comentou Jesse.

— Bem, seja qual for o caso — disse Jonathan —, talvez esses alienígenas controlem milhões de formas de vida em toda a galáxia.

— E agora vêem os seres humanos como um lar confortável, no qual podem viver e crescer — observou Cassy. — Mas por que agora? O que há de tão especial nesse momento?

— Eu diria que a escolha foi aleatória — opinou Pitt. — Talvez venham fazendo uma verificação a cada poucos milhões de anos. Enviam um único agente de sondagem à Terra para ver até que ponto as formas de vida aqui evoluíram.

— Despertando o vírus adormecido — acrescentou Nancy.

— O vírus assume o controle daquele hospedeiro único — conjeturou Sheila —, que então observa a configuração do terreno, digamos assim, e envia um relatório para casa.

— Bem, se foi isso o que aconteceu — disse Jesse —, o relatório deve ter sido muitíssimo bom, pois agora estamos totalmente cercados por esses agentes.

Cassy assentiu.

— Faz sentido — concordou ela.—E Beau deve ter sido esse primeiro hospedeiro.

— É possível — afirmou Sheila. — Mas se esse quadro estiver correto, então poderia ter acontecido com qualquer um, em qualquer lugar.

— Revendo tudo o que aconteceu — disse Cassy, mais para Pitt do que para os outros —, Beau tem de ter sido o primeiro. E sabe de uma coisa? Se não fosse por Beau, estaríamos como todos os outros por aí, completamente alheios ao que está se passando.

— Ou já seríamos um deles — concluiu Jesse.

Esses pensamentos melancólicos calaram-nos. Durante alguns minutos, os únicos sons que se ouviam eram o crepitar do fogo e o gorjear dos pássaros vindo pelas janelas abertas.

— Ei! — exclamou Jonathan, quebrando o silêncio. — O que vamos fazer a respeito disso tudo? Ficar aqui sentados?

— Claro que não! — respondeu Pitt. — Vamos fazer alguma coisa. Vamos começar a contra-atacá-los.

— De acordo — disse Cassy. — É nossa responsabilidade. Afinal, é possível que nesse momento saibamos mais sobre essa calamidade do que qualquer outra pessoa, em todo o mundo.

— Precisamos de um anticorpo — decidiu Sheila. — Um anticorpo e talvez uma vacina, para o vírus ou para a proteína ativadora. Ou quem sabe uma das drogas antivirais. Nancy, o que você acha?

— Não custa nada tentar — disse ela. — Mas vamos precisar de equipamento e sorte.

— É claro que vamos precisar de equipamento — afirmou Sheila. — Podemos montar um laboratório bem aqui. Para isso, necessitamos de culturas teciduais, incubadoras, microscópios, centrífugas. Mas temos tudo disponível. Só precisamos trazer para cá.

— Façam uma lista — disse Jesse. — Provavelmente poderei conseguir a maioria dos itens.

— Tenho de ir até o meu laboratório — declarou Nancy.

— Eu também — ecoou Sheila. — Precisamos de algumas amostras sangüíneas das vítimas da gripe. E necessitaremos ter a amostra do fluido do disco.

— Vamos fazer um resumo daquele relatório que preparamos para os CCDs — disse Cassy — e divulgá-lo.

— É — concordou Pitt, percebendo a linha de raciocínio de Cassy. — Vamos enviá-lo pela Internet!

— Ei, grande idéia! — apoiou Jonathan.

— Vamos começar enviando-o a todos os principais laboratórios de virologia — decidiu Sheila.

— Exato — disse Nancy. — E para as indústrias farmacêuticas voltadas para a pesquisa. Não é possível que todas essas fontes já estejam contaminadas. Temos chance de conseguir alguém que nos ouça.

— Posso criar uma rede de “fantasmas” — sugeriu Jonathan. — Ou falsas conexões na Internet. Desde que eu os mude constantemente, ninguém nunca conseguirá nos rastrear.

Por um instante, todos ficaram se entreolhando. Estavam um pouco tontos e, ao mesmo tempo, aturdidos com a enormidade e a dificuldade do que estavam prestes a empreender. Cada um deles tinha sua própria avaliação das chances de sucesso, mas independente de qual fosse, todos concordavam que tinham de fazer alguma coisa. Àquela altura, não agir seria psicologicamente mais difícil.

O sol acabara de se pôr quando Nancy, Sheila e Jesse seguiram até a van e entraram. Cassy, Jonathan e Pitt, que se encontravam de pé na varanda, acenaram e lhes disseram que tomassem cuidado.

Após Sheila e Nancy passarem por um sono mais do que necessário, ficou decidido que fariam uma incursão à cidade, em busca de equipamento laboratorial. Também ficou decidido que os mais jovens ficariam em casa, a fim de reservar lugar no carro. A princípio, os três jovens opuseram-se, principalmente Jonathan, mas, depois de muita discussão, concordaram que aquela era a melhor decisão.

Assim que a van desapareceu de vista, Jonathan sumiu no interior da casa. Cassy e Pitt foram dar uma breve caminhada. Contornaram a cabana e desceram, por entre os pinheiros, até o lago. Chegaram a um pequeno cais e seguiram até sua extremidade. De pé ali, em silêncio, ficaram admirando a beleza natural do cenário. A noite caía rapidamente, pintando as colinas distantes com púrpuras profundos e azuis escuros e prateados.

— Aqui, em meio a essa esplêndida natureza, toda essa história parece um pesadelo — observou Pitt. — Como se não pudesse estar acontecendo.

— Entendo o que quer dizer — afirmou Cassy. — Ao mesmo tempo, sabendo que está de fato acontecendo e que todos os homens estão em perigo, sinto um vínculo que nunca antes havia percebido. Isto é, estamos todos ligados de alguma forma. Até agora, eu nunca tinha pensado nos seres humanos como uma grande família. E pensar no que temos feito uns aos outros... — Cassy estremeceu visivelmente diante desse pensamento.

Pitt aproximou-se e envolveu-a nos braços. Era um gesto para reconfortá-la e mantê-la aquecida. Como Jesse avisara, a temperatura caíra no momento em que o sol baixara.

— A ameaça de perder a própria identidade também faz com que olhemos a vida de uma forma diferente — afirmou Cassy.

— É difícil, para mim, esquecer Beau, mas, tenho de fazê-lo. Receio que o Beau que conheci não esteja mais entre nós. É como se tivesse morrido.

— Talvez consigamos desenvolver um anticorpo — murmurou Pitt, baixando os olhos para Cassy. Sentia um forte impulso de beijá-la, mas não ousou fazê-lo.

— Ah, é, certo — replicou Cassy, zombeteira. — E Papai Noel vem nos visitar amanhã.

— Vamos, Cassy! — exclamou Pitt, sacudindo-a ligeiramente. — Não entregue os pontos.

— Quem falou em entregar os pontos? Só estou tentando enfrentar a realidade da melhor maneira possível. Ainda amo o velho Beau e, provavelmente, sempre amarei. Mas, aos poucos, estou percebendo uma outra coisa.

— O que é? — perguntou Pitt, inocentemente.

— Estou me dando conta de que também sempre amei você — disse Cassy. — Não quero deixá-lo constrangido, mas quando nós saíamos de vez em quando, eu achava que você não me levava a sério, que, de propósito, mantinha as coisas num nível casual. Assim, não questionava meus próprios sentimentos. Mas, nesses últimos dias, tenho tido uma impressão diferente em relação aos seus sentimentos e me ocorre que talvez eu estivesse errada.

Um sorriso brotou das profundezas da alma de Pitt e aflorou, espalhando-se pelo seu rosto como o sol nascendo.

— Posso lhe assegurar — disse ele — que, se achou que eu não ligava para você, então estava absoluta, total e indiscutivelmente errada.

Pitt e Cassy entreolharam-se, em silêncio, na escuridão que crescia. Ambos experimentavam uma inesperada felicidade, a despeito da situação. Era um momento mágico, até ser quebrado por um grito agudo.

— Ei, vocês, venham até aqui, rápido! — berrava Jonathan. — Venham ver uma coisa!

Temendo o pior, Pitt e Cassy dispararam em direção à cabana. Nos poucos minutos em que estavam à margem do lago, a escuridão tornara-se consideravelmente maior sob os altivos pinheiros, e os dois iam tropeçando nas raízes. Ao entrarem correndo na cabana, encontraram Jonathan assistindo à TV, com uma perna casualmente pendurada no braço do sofá. O garoto comia batatas fritas de maneira mecânica.

— Ouçam — murmurou Jonathan, apontando a TV.

— ...todos concordam que o presidente está mais vibrante e dinâmico do que jamais esteve. Para citar um funcionário da Casa Branca: “Ele é um homem mudado.”

Nesse momento, a locutora teve um acesso de tosse. Em seguida, pediu desculpas e prosseguiu:

— Enquanto isso, essa curiosa gripe continua a varrer a capital do país. Os funcionários do alto escalão do governo, assim como a maioria dos principais membros de ambas as casas do Congresso, foram todos derrubados por essa enfermidade que se espalha rapidamente. É claro que todo o país lamenta a morte do senador Pierson Cranmore. Um conhecido diabético, ele era uma inspiração para outras pessoas afligidas por doenças crônicas.

Jonathan acionou o botão que anulava o som, no controle remoto.

— Parece que eles têm o controle da maior parte do governo — disse ele.

— Creio que já havíamos admitido esse fato — afirmou

Cassy. — E quanto ao resumo que fizemos hoje à tarde? Pensei que você fosse aprontá-lo para enviar pela Internet.

— E foi o que fiz — replicou Jonathan, pondo o dedo no laptop pousado sobre a mesinha de centro e empurrando-o de modo que Cassy pudesse ver a tela. A linha telefônica estava conectada à lateral do aparelho. — Está tudo pronto — acrescentou ele.

— Bem, então comece a enviar — disse Cassy.

Jonathan pressionou o botão apropriado e a primeira descrição e advertência ao mundo sobre o que estava acontecendo disparou pela vasta estrada eletrônica. A notícia agora estava na Internet.

 

10:30

Beau estava sentado diante de um grupo de monitores de TV que ele mandara instalar na biblioteca. As pesadas cortinas de veludo estavam fechadas diante das janelas em arco a fim de facilitar a visão das imagens nos monitores. Verônica encontrava-se de pé às suas costas, massageando-lhe os ombros.

Os dedos de Beau dançaram levemente sobre o painel de controle e então todos os monitores ganharam vida. Ele aumentou o volume do aparelho do alto, à esquerda. Era a NBC cobrindo uma entrevista coletiva com o secretário de imprensa da Presidência da República, Arnold Lerstein.

— Não há necessidade de pânico. É o que dizem tanto o presidente quanto a secretária da Saúde, a Dra. Alice Lyons. A gripe decerto atingiu proporções epidêmicas, mas trata-se de uma enfermidade breve, sem quaisquer conseqüências negativas. Na verdade, a maioria das pessoas atestam um maior vigor depois de recuperadas. Somente os portadores de doenças crônicas devem...

Beau transferiu o som para o monitor seguinte. O entrevistado era nitidamente britânico. Ia dizendo:

— ...nas Ilhas Britânicas. Se você ou algum ente querido começar a apresentar os sintomas, não entre em pânico. Repouso, chá e o controle da febre são as providências recomendadas.

Beau mudava de um monitor para o outro em rápida sucessão.

A mensagem era semelhante, fosse em russo, chinês, espanhol ou qualquer outra das quarenta e tantas línguas ali representadas.

— Tudo isso é reconfortante — comentou Beau. — A infestação está progredindo como planejado.

Verônica assentiu e prosseguiu com a massagem.

Beau mudou para o monitor da câmera no portão de entrada do instituto. Tratava-se de uma tomada de grande-angular que incluía um grupo de aproximadamente cinqüenta manifestantes fuzilando com perguntas o grupo de jovens guardas, que havia crescido em número. Alguns dos cães do instituto podiam ser vistos ao fundo.

— Minha mulher está aí — gritava um manifestante. — Eu exijo vê-la. Vocês não têm o direito de mantê-la aí.

Os sorrisos dos porteiros continuavam fixos.

— Meus dois filhos — gritou outra manifestante. — Também estão aí. Eu sei disso! Quero falar com eles. Quero ter certeza de que estão bem.

Ao mesmo tempo que esse grupo gritava e berrava, havia um fluxo constante de pessoas calmas e sorridentes passando pelo portão. Eram pessoas infectadas que haviam sido convocadas para trabalhar no instituto e, sem dizer palavra, eram reconhecidas pelos porteiros.

O fato de algumas pessoas terem a entrada permitida sem perguntas inflamava ainda mais aquelas que protestavam, que haviam sido ignoradas desde a sua chegada. Sem aviso, avançaram furiosamente, em massa, contra o portão.

Formou-se uma confusão, com muitos gritos e empurrões. Até mesmo alguns socos foram desferidos. Mas foram os cães que rapidamente determinaram o desfecho, ao virem correndo das proximidades e atacarem. Os rosnados ferozes e as mordidas nas pernas dos manifestantes logo corroeram a coragem coletivamente inspirada do grupo, que recuou.

Beau desligou os monitores. Então inclinou a cabeça em direção ao peito, de modo que Verônica tivesse acesso aos músculos na base de seu pescoço. Ele só tivera uma hora de sono, em vez das duas de que necessitava.

— Deveria estar satisfeito — disse ela. — Está tudo indo tão bem.

— Eu estou — respondeu Beau. Em seguida, mudou de assunto: — Alexander Dalton está no salão de baile? Você o viu quando foi lá embaixo?

— A resposta é sim para as duas perguntas — disse Verônica. — É como você deseja. Ele nunca transgrediria uma ordem sua.

— Então é melhor eu ir ao salão — decidiu Beau. Aprumou o pescoço e se levantou. Um rápido assovio trouxe King imediatamente aos seus pés. Juntos, desceram a escadaria central.

O nível de atividade no vasto salão aumentara. Havia um número de trabalhadores muito maior do que no dia anterior. As vigas de apoio do teto agora estavam completamente expostas, assim como os montantes das paredes. Os imensos candelabros e as maciças cornijas decorativas tinham desaparecido. As enormes janelas em arco estavam quase seladas por completo. No centro do salão, uma complicada estrutura eletrônica estava se erguendo, construída com todas as peças pirateadas do observatório, com vários aparelhos eletrônicos e com a ajuda do departamento de física da universidade próxima.

Observar toda aquela atividade coordenada visando a um propósito tão grandioso trouxe um sorriso bastante amplo aos lábios de Beau. Ele não pôde deixar de se lembrar que aquele salão um dia fora usado para algo tão frívolo quanto a dança.

Alexander viu Beau parado à entrada do salão de baile e imediatamente foi ter com ele.

— Está indo bem, não acha?

— Está uma maravilha — replicou Beau.

— Tenho outra boa notícia — anunciou Alexander. — Estamos realizando o fechamento imediato da maior parte das fábricas mais poluentes às margens dos Grandes Lagos. Daqui a uma semana deve estar tudo acabado.

— E quanto à Europa Oriental? — indagou Beau. — São eles que mais me preocupam.

— Mesma coisa — disse Alexander. — Principalmente na Romênia. Fecharão esta semana.

— Excelente.

Randy Nite viu Beau conversando com Alexander e dirigiu-se às pressas para lá.

— O que acha? — perguntou Randy, enquanto olhava, orgulhoso, a emergente estrutura central.

— Está indo bem — disse Beau. — Mas eu ficaria satisfeito com um pouco mais de rapidez.

— Preciso de mais ajuda então — retrucou Randy.

— O que precisar — ofereceu Beau. — Precisamos estar prontos para a Chegada.

Randy exibiu um sorriso de agradecimento antes de voltar correndo para o seu projeto. Beau virou-se para Alexander.

— E quanto a Cassy Winthrope? — perguntou ele. Em sua voz, percebia-se uma súbita irritação.

— Ainda não tivemos notícias dela — respondeu Alexander.

— Como pode ser? — replicou Beau.

— É um mistério. A polícia e a direção da universidade estão sendo exemplarmente cooperativos. Ela irá aparecer. Talvez até mesmo no portão, por sua própria vontade. Eu não me preocuparia com isso, se fosse você.

A mão direita de Beau estendeu-se violentamente, agarrando o braço de Alexander com uma poderosa pressão que de imediato cortou a circulação do sangue que corria para a mão de Alexander.

Surpreendido por esse gesto abertamente hostil, Alexander baixou os olhos para a mão que o segurava. Aquela não era uma mão humana. Os dedos eram longos e enroscavam-se em torno de seu braço como jibóias em miniatura.

— Esse meu pedido para encontrar a garota não é um capricho futil — disse Beau, fitando Alexander com olhos que eram quase que só pupila. — Quero essa garota agora.

Alexander ergueu os olhos para os de Beau. Ele sabia que o melhor era não lutar.

— Faremos dessa busca a prioridade máxima — afirmou Alexander.

Jesse havia cortado galhos de pinheiros na floresta próxima e, depois de estacionar a van ao lado da cabana, cobriu-a com os galhos. De fora, o lugar parecia completamente deserto, exceto pelas espirais de fumaça que subiam da chaminé de pedra.

Em nítido contraste com o plácido exterior, o interior da cabana fora transformado num movimentado posto de trabalho. Ocupando a área nobre naquele espaço estava o laboratório biológico improvisado.

Nancy era a responsável nessa arena, tendo Sheila trabalhando ao seu lado. Todos suspeitavam que Nancy estivesse redirecionando sua imensa dor pela morte de Eugene para a tarefa de encontrar uma forma de deter o vírus alienígena. Era uma mulher obcecada.

Pitt ocupava-se com um microcomputador. Estava tentando elaborar uma estimativa mais precisa com as informações veiculadas pela TV. A mídia finalmente percebera a história dos discos negros, mas não relacionava à epidemia de gripe. As histórias eram apresentadas mais como uma forma de estimular o interesse do público em sair e encontrá-los.

Jesse reconhecia que sua contribuição era mais na área da logística, principalmente nos aspectos práticos, como a comida e a manutenção do fogo na lareira. No momento, ele estava ocupado dando os toques finais a uma de suas especialidades: sopa com chili.

Cassy e Jonathan estavam sentados à mesa de jantar, diante do laptop. Para seu deleite, houvera uma distinta inversão nos papéis: agora era ele o professor. Também para seu deleite, Cassy estava trajando um de seus vestidos leves de algodão. Como era evidente que ela não estava de sutiã, Jonathan tinha grande dificuldade em se concentrar.

— Então, o que faço? — perguntou Cassy.

— O quê? — replicou Jonathan, como se acabasse de acordar.

— Estou chateando você? — indagou ela.

— Não — apressou-se em dizer Jonathan.

— Estou perguntando se devo mudar essas últimas três letras — disse Cassy. Ela tinha a atenção voltada para a tela de cristal líquido e estava alheia ao efeito que sua feminilidade causava em Jonathan. Acabara de dar um mergulho e seus mamilos projetavam-se sob o tecido, parecendo bolas de gude.

— Certo... ha, é — determinou Jonathan. — Ponto G O V Depois...

— Depois barra invertida, 6 O 6, R maiúsculo, g minúsculo, barra invertida — completou Cassy. — Então pressiono Enter.

Cassy ergueu os olhos para Jonathan e percebeu que ele estava ruborizado.

— Alguma coisa errada? — indagou ela.

— Não — disse ele.

— Bem, então é isso que devo fazer?

Jonathan assentiu e Cassy acionou a tecla Enter. Quase simultaneamente, a impressora foi ativada e começou a cuspir páginas impressas.

— Voilá — disse Jonathan. — Estamos em nossa caixa de correio sem que ninguém possa nos rastrear.

Cassy sorriu e cutucou Jonathan amistosamente.

— Você é um excelente professor.

Jonathan corou novamente e desviou os olhos. Ocupou-se recolhendo as folhas na impressora. Cassy ergueu-se e caminhou até Pitt.

— A sopa estará pronta em três minutos — anunciou Jesse, sem que ninguém respondesse. — Eu sei, eu sei — acrescentou ele. — Todos estão ocupados demais, mas vocês precisam comer.vou pôr na mesa para quem estiver interessado.

Cassy descansou as mãos nos ombros de Pitt e olhou para a tela de seu computador, onde se via um outro gráfico circular. Agora a parte vermelha era maior do que a azul.

— É nesse ponto que você acha que estamos agora? — indagou Cassy.

Pitt ergueu o braço e segurou uma das mãos de Cassy, apertando-a.

— Receio que sim — disse ele. — Se os dados que obtive na TV forem razoáveis ou mesmo que tenham sido subestimados, a projeção sugere que sessenta e oito por cento da população mundial já está infectada.

Jonathan deu um tapinha nas costas de Nancy.

— Desculpe interromper, mãe — disse ele. — Mas aqui estão as últimas notícias da rede.

— Aquele grupo de Winnipeg mandou alguma coisa sobre a seqüência de aminoácido da proteína? — perguntou Sheila.

— Mandou, sim — confirmou Jonathan, folheando as páginas e separando a de Winnipeg. Entregou-a a Sheila, que parou o que estava fazendo a fim de lê-la. — Também entrei em contato com um grupo novo em Trondhiem, na Noruega — contou Jonathan. — Estão trabalhando num laboratório escondido no subsolo do ginásio da universidade local.

— Enviou nossos dados originais para eles? — indagou Nancy.

— Enviei. E também os outros.

— Ei, eles fizeram progresso — observou Sheila. — Agora temos toda a seqüência de aminoácido da proteína. O que significa que podemos começar a fabricá-la por nossa conta.

— Eis aqui o que o pessoal da Noruega mandou — informou Jonathan. Fez menção de entregar a folha à mãe, mas Sheila adiantou-se e a apanhou, lendo-a rapidamente. Em seguida, amassou-a. — Já verificamos tudo isso — disse ela. — Que perda de tempo!

— Eles estão trabalhando em completo isolamento — disse Cassy, saindo em defesa do grupo norueguês, ao ouvir o comentário de Sheila.

— Alguma coisa da equipe da França? — perguntou Pitt.

— Bastante — informou Jonathan, separando o material francês do restante e entregando-o a Pitt. — Parece que a infestação por lá ainda está progredindo mais devagar do que em qualquer outro lugar.

— Deve ser por causa do vinho — disse Sheila com uma risada.

— Esse pode ser um ponto importante — afirmou Nancy. — Se continuar assim, e não se tratar de um fenômeno acidental na curva estatística, e se conseguirmos descobrir o porquê, pode ser um dado muito útil.

— Mas aqui temos as más notícias — declarou Jonathan, erguendo uma folha de papel. — Pessoas com diabetes, hemofilia, câncer e outras doenças estão morrendo em números recordes pelo mundo todo.

— É como se o vírus estivesse conscientemente limpando os recursos genéticos do mundo — observou Sheila.

Jesse levou a panela de sopa para a mesa e pediu a Pitt que tirasse o computador dali. Enquanto esperava para pousar a panela, perguntou a Jonathan com quantos centros de pesquisa espalhados pelo mundo todo tivera contato no dia anterior.

— Cento e seis — respondeu Jonathan.

— E quantos foram hoje? — quis saber Jesse.

— Noventa e três.

— Uau! — exclamou Jesse, deixando a panela sobre a mesa. Voltou então à cozinha para apanhar os pratos e talheres. — Uma redução bastante rápida.

— Bem, três deles talvez fossem legais — disse Jonathan —, mas estavam fazendo perguntas demais sobre quem somos e onde estamos, e então eu os eliminei.

— Como diz o ditado: “É melhor prevenir do que remediar” — lembrou Pitt.

— Ainda assim a diminuição foi rápida — observou Jesse.

— E quanto ao homem que se apresenta como Dr. M? — perguntou Sheila. — Mandou alguma coisa?

— Um monte de coisas — disse Jonathan.

— Quem é esse Dr. M? — interrogou Jesse.

— Foi o primeiro a responder à nossa carta na Internet — explicou Cassy. — Ele respondeu imediatamente. Acreditamos que esteja no Arizona, mas não temos a menor idéia de onde.

— Ele nos forneceu muitos dados importantes — afirmou Nancy.

— Tanto que me deixou um tanto desconfiado — disse Pitt.

— Vamos, pessoal — chamou Jesse. — A sopa vai esfriar.

— Eu desconfio de todo mundo — afirmou Sheila, indo até a mesa e ocupando o lugar habitual, na extremidade. — Mas se alguém apresentar informações úteis, eu aceito.

— Desde que esse contato não ponha em risco nossa localização — acrescentou Pitt.

— Obviamente isso é sine qua non — replicou Sheila, condescendente.

Em seguida, apanhou as folhas enviadas pelo Dr. M que Jonathan lhe estendia. Segurando-as diante de si, começou a ler, enquanto com a mão livre levava a sopa sofregamente à boca. Parecia uma estudante às vésperas de uma prova.

Os outros se sentaram à mesa de uma maneira mais civilizada, abrindo os guardanapos sobre o colo.

— Jesse, você se superou — disse Cassy depois da primeira colherada.

— Os elogios são bem-vindos — afirmou ele. Comeram em silêncio durante alguns minutos até que Nancy pigarreou.

— Não me agrada tocar nesse assunto — disse ela. — Mas estamos ficando sem os suprimentos laboratoriais básicos. Não vamos poder continuar trabalhando por muito tempo, a menos que façamos outra excursão à cidade. Sei que é perigoso, mas receio que tenhamos pouca opção.

— Sem problemas — retrucou Jesse. — Basta vocês fazerem uma lista. Eu dou um jeito. É importante que você e Sheila continuem trabalhando. Além disso, precisamos de mais comida.

— Eu também vou — disse Cassy.

— Sem mim você não vai — decidiu Pitt.

— Eu vou também — afirmou Jonathan.

— Você vai ficar aqui — disse Nancy a Jonathan.

— Puxa, mamãe! — queixou-se Jonathan. — Você não pode querer me proteger. Faço parte disso como todos os outros.

— Se você for, eu também vou — determinou Nancy. —Além disso, eu ou Sheila temos de ir. Só nós sabemos do que precisamos.

— Ah, meu Deus! — exclamou Sheila de repente.

— O que aconteceu? — perguntou Cassy.

— Esse tal Dr. M — disse Sheila. — Ontem ele nos perguntou o que tínhamos sobre a taxa de sedimentação para aquela seção do DNA que sabíamos conter o vírus.

— Enviamos nossa estimativa, não foi? — indagou Nancy.

— Enviei exatamente o que vocês me deram — afirmou Jonathan. — Inclusive a parte sobre nossa centrífuga não ter a capacidade de atingir tal número de rotações por minuto.

— Bem, ao que parece, ele tem acesso a uma que tem essa capacidade — disse Sheila.

— Deixe-me ver — pediu Nancy, apanhando a folha e lendo-a. — Meu Deus, estamos mais perto de isolar o vírus do que imaginávamos!

— Exato — confirmou Sheila. — O fato de isolar o vírus não é o mesmo que descobrir um anticorpo ou uma vacina, mas é um passo importante. Talvez seja o passo mais importante nessa direção.

— Que horas são? — perguntou Jesse.

— Dez e meia — respondeu Pitt, segurando o relógio bem perto do rosto para ver o mostrador. Estava escuro sob as árvores no morro que dava para o campus da universidade. Jesse, Pitt, Cassy, Nancy e Jonathan estavam sentados na van. Haviam chegado há meia hora, mas Jesse insistira em que aguardassem. Não queria que ninguém entrasse no centro médico antes da mudança de turno que ocorria às onze. Ele contava com a confusão geral daquela hora para facilitar a tarefa de apanhar o que precisavam e sair de lá.

— Vamos começar às quinze para as onze — decidiu Jesse. De seu posto de observação, eles podiam ver que o asfalto de várias vagas no estacionamento da universidade tinha sido cavado. Havia uma gambiarra sobre algumas das áreas escavadas e podiam-se ver pessoas infectadas ocupadas ali, plantando legumes e verduras.

— Definitivamente, eles são bem-organizados — observou Jesse. — Olhem como trabalham juntos, sem sequer conversar.

— Mas onde os carros vão estacionar? — perguntou Pitt. — Isso é levar o ambientalismo longe demais.

— Talvez não pretendam ter carros — sugeriu Cassy. — Afinal, os carros são grandes poluidores.

— Eles parecem mesmo estar limpando a cidade — afirmou Nancy. — Temos de lhes dar crédito por isso.

— Provavelmente estão limpando todo o planeta — disse Cassy. — É curioso, mas isso nos faz parecer maus. Acho que é preciso alguém de fora para que a gente dê valor a algumas coisas.

— Parem com isso — disse Jesse. — Vocês estão começando a falar como se estivessem do lado deles.

— Está quase na hora — informou Pitt. — Agora ouçam o que acho que devemos fazer: Eu e Jonathan vamos ao laboratório médico no hospital. Estou familiarizado com o lugar e Jonathan entende de computadores. Juntos, poderemos decidir o que precisamos e carregar.

— Acho que eu deveria ficar com Jonathan — disse Nancy.

— Mãe! — gemeu Jonathan. — Você precisa ir a uma farmácia e não precisa de mim lá. Já Pitt precisa.

— É verdade — concordou Pitt.

— Eu e Cassy iremos com Nancy — decidiu Jesse. — Vamos à farmácia do supermercado; assim, enquanto ela apanha os remédios de que precisa, nós nos abasteceremos com os mantimentos.

— Está bem — disse Pitt. — Nos encontramos aqui em trinta minutos.

— Melhor quarenta e cinco — corrigiu Jesse. — Nós vamos um pouco mais longe.

— OK — concordou Pitt. — Está na hora. Vamos lá! Todos desceram da van. Nancy abraçou Jonathan rapidamente. Pitt agarrou o braço de Cassy.

— Tome cuidado — pediu ele.

— Você também — disse Cassy.

— Lembre-se, pessoal — falou Jonathan: — Mantenham um grande sorriso de babaca no rosto. É o que todos eles fazem.

— Jonathan! — censurou Nancy.

Estavam prestes a se afastar quando Cassy agarrou o braço de Pitt. Quando este se virou, ela lhe deu um beijo nos lábios. Em seguida, correu atrás de Nancy e Jesse, enquanto Pitt alcançava Jonathan. Então todos desapareceram no meio da noite.

A fotografia fora tirada seis meses antes. Tratava-se de um instantâneo tendo como fundo uma campina com flores silvestres, formando um leito natural. Cassy estava deitada com os cabelos espessos espalhados em torno de sua cabeça, formando um halo escuro. Sorria, travessa, para a câmera.

Beau estendeu a mão enrugada e de consistência borrachenta. Os dedos longos e serpentiformes envolveram a foto emoldurada, ergueram-na e aproximaram-na mais de seus olhos, cujo brilho servia para iluminar o retrato a fim de que ele pudesse ver mais claramente os traços de Cassy. Ele estava sentado na biblioteca do andar superior com as luzes apagadas. Até mesmo a bancada de monitores estava desligada. A única fonte de luz era um raio de luar anêmico que entrava pelas janelas.

Beau tomou consciência de que alguém entrara na sala às suas costas.

— Posso acender a luz? — perguntou Alexander.

— Se quiser — disse Beau.

A claridade inundou a sala. Os olhos de Beau se estreitaram.

— Alguma coisa errada, Beau? — indagou Alexander antes de ver a foto nas mãos de Beau.

Não obteve resposta.

— Se me permite dizer — começou Alexander —, você não deveria ficar tão obcecado assim por um indivíduo. Isso não é característica nossa. Vai de encontro ao bem coletivo.

— Eu tentei resistir — admitiu Beau. — Mas não consigo. Beau bateu o porta-retrato sobre a mesa, com a fotografia voltada para baixo. O vidro se estilhaçou.

— À medida que meu DNA se duplica, supõe-se que ele vá suplantando o DNA humano; entretanto, as conexões em meu cérebro continuam a evocar essas emoções humanas.

— Senti um pouco disso a que você está se referindo — admitiu Alexander. — Mas minha antiga companheira tinha um defeito genético e ela não passou do estágio do despertar. Suponho que isso tenha facilitado as coisas.

— Esse sentimentalismo é uma fraqueza assustadora — reconheceu Beau. — Nossa raça nunca se deparou com uma espécie com tais elos interpessoais. Não há nenhum precedente pelo qual eu possa me orientar.

Os dedos serpentiformes de Beau introduziram-se sob a moldura quebrada do retrato. Um estilhaço de vidro cortou-o e seu dedo começou a liberar uma espuma verde.

— Você se machucou — disse Alexander.

— Não foi nada — protestou Beau, erguendo a moldura quebrada e contemplando a imagem. — Preciso saber onde ela está. Precisamos infectá-la. Uma vez que isso aconteça, estarei satisfeito.

— A mensagem foi espalhada — insistiu Alexander. — Assim que ela for localizada, seremos informados.

— Ela deve estar se escondendo — lamentou-se Beau. — Isso está me deixando maluco. Não consigo me concentrar.

— Quanto ao Pórtico... — começou Alexander, mas Beau interrompeu-o.

— Preciso que encontre Cassy Winthrope. Não venha me falar sobre o Pórtico antes disso!

— Meu Deus! Olhem para esse lugar! — exclamou Jesse.

Encontravam-se no estacionamento diante do Jefferson’s Supermarket. Viam-se ali alguns carros abandonados, com as portas abertas, como se os ocupantes houvessem fugido em disparada.

Várias das imensas folhas de vidro na fachada do supermercado estavam quebradas e os estilhaços de vidro espalhavam-se pela calçada. O interior estava iluminado apenas por lâmpadas de segurança noturna, mas era suficiente para verem que o mercado havia sido parcialmente saqueado.

— O que terá acontecido? — interrogou Cassy. Parecia uma cena de um país de terceiro mundo imerso numa guerra civil.

— Não faço idéia — comentou Nancy.

— Talvez as poucas pessoas não-infectadas tenham entrado em pânico — sugeriu Jesse. — Talvez a polícia, como a conhecemos, não exista mais.

— O que vamos fazer? — perguntou Cassy.

— O que viemos aqui fazer — respondeu Jesse. — Ora, isso facilita as coisas. Pensei que teria de arrombar o mercado.

O grupo avançou com cuidado e observou o interior da loja através de uma das janelas quebradas, que iam do teto ao chão. O lugar estava sinistramente quieto.

— Está uma bagunça, mas parece que a maior parte das mercadorias foi deixada — observou Nancy. — Parece que quem quer que tenha feito isso estava interessado principalmente nas caixas registradoras.

De onde estavam, podiam ver que as gavetas de todas as caixas registradoras estavam abertas.

— Gente estúpida! — exclamou Jesse. — Se a autoridade civil sucumbir, o papel-moeda não terá qualquer valor.

Jesse correu os olhos mais uma vez pelo estacionamento vazio. Não havia uma única alma à vista.

— Pergunto-me por que não tem ninguém por aqui — disse ele. — Todos parecem estar perambulando pelo restante da cidade. Mas lembremos que a cavalo dado não se olham os dentes. Mãos à obra.

Transpuseram a vidraça quebrada e seguiram pelo corredor central em direção à farmácia, que se localizava nos fundos do supermercado. O trajeto era difícil à meia-luz, pois o chão estava coberto de latas, garrafas e caixas de alimentos espalhadas, que haviam sido derrubadas das prateleiras.

O setor de farmácia era separado do restante do mercado por uma grade de arame que descia do teto até o chão. Quem pilhara a parte de alimentos do mercado estivera também na farmácia. Um buraco fora aberto na grade com um alicate que ainda estava caído ao chão.

Jesse segurou as bordas recortadas do buraco, abrindo-o, para que Nancy pudesse passar por ali. Ela fez um rápido reconhecimento atrás do balcão da farmácia.

— O que lhe parece? — indagou Jesse, do lado de fora da grade.

— Os narcóticos se foram — informou Nancy —, mas isso não é problema. As drogas antivirais estão aqui, assim como os antibióticos. Me dê cerca de dez minutos para eu apanhar o que preciso.

Jesse voltou-se para Cassy.

— Vamos nós dois recolher os mantimentos — disse ele. Cassy e Jesse voltaram para a frente do mercado e apanharam sacolas. Em seguida, começaram a percorrer os corredores. Cassy escolhia os itens, enquanto Jesse fazia as vezes de carregador.

Estavam no meio da seção de massas quando Jesse escorregou num líquido derramado de uma garrafa quebrada. O líquido tornara o piso de vinil tão escorregadio quanto gelo.

Cassy conseguiu agarrar seu braço a tempo de evitar que caísse. Mesmo depois que ele recuperou o equilíbrio, seus pés continuaram a deslizar, forçando-o a caminhar com as pernas abertas. Parecia uma cena de comédia.

Cassy abaixou-se e examinou a garrafa.

— Não é de se espantar — disse ela. — É azeite de oliva. Tenha cuidado!

— Cuidado é o meu nome — replicou Jesse. — Como você acha que sobrevivi durante trinta anos como tira? — Ele sorriu e abanou a cabeça. — É engraçado: Eu vinha esperando uma última grande aventura antes de me aposentar. Mas sou obrigado a lhe dizer uma coisa: esse episódio é muito mais do que eu poderia esperar.

— É muito mais do que qualquer um de nós poderia esperar — acrescentou Cassy.

Dobraram uma esquina e entraram no corredor dos cereais. Cassy precisou abrir caminho em meio a uma enorme pilha de caixas, que incluíam algumas enormes de papelão. De repente, ela prendeu a respiração, como se levasse um susto. Num instante Jesse estava ao seu lado.

— Qual é o problema? — perguntou ele.

Cassy apontou. No meio do que antes fora uma tosca cabana construída com as caixas, via-se o rosto querubínico de um garotinho que não tinha mais do que cinco anos. Sua pele estava suja e as roupas em desalinho.

— Santo Deus! — deixou escapar Jesse. — O que ele está fazendo aqui?

Instintivamente, Cassy abaixou-se para apanhar a criança no colo. Jesse agarrou-lhe o braço.

— Espere — disse. — Não sabemos nada sobre ele. Cassy fez menção de soltar o braço, mas Jesse continuou segurando-o com firmeza.

— É só um menino — disse Cassy. — Está apavorado.

— Mas nós não sabemos... — começou Jesse.

— Não podemos simplesmente deixá-lo aqui — replicou Cassy.

Com relutância, Jesse soltou o braço de Cassy, que se inclinou e ergueu a criança de sua casinha de caixas de cereais. O garoto instintivamente agarrou-se a Cassy, enterrando o rosto na curva de seu pescoço.

— Qual é o seu nome? — perguntou Cassy, enquanto delicadamente dava-lhe tapinhas nas costas. Estava surpresa com a força com que ele a apertava.

Cassy e Jesse entreolharam-se. Ambos tinham o mesmo pensamento: Que impacto esse evento inesperado teria em sua já desesperadora situação?

— Vamos — disse Cassy ao menino. — Tudo vai ficar bem. Você está em segurança, mas precisamos saber seu nome para podermos falar com você.

Lentamente, a criança inclinou-se para trás.

Cassy sorriu com ternura para o menino e estava prestes a lhe dizer mais algumas palavras de conforto quando percebeu que a criança sorria como se estivesse extasiada. E ainda mais assustadores eram seus olhos. As pupilas eram enormes e brilhavam como se iluminadas internamente.

Experimentando uma instintiva onda de repulsa, Cassy inclinou-se e pôs o menino no chão. Tentou mantê-lo seguro pelo braço, mas ele era inesperadamente forte e soltou-se de sua mão, fugindo em disparada em direção à frente do mercado.

— Ei! — gritou Jesse. — Volte aqui! — Ele começou a correr atrás do menino.

— Ele está contaminado! — avisou Cassy.

— Eu sei — disse Jesse. — É por isso que não quero que fuja. Correr pelo corredor à meia-luz não era tarefa fácil para Jesse. As solas de seus sapatos ainda tinham vestígios de azeite, tornando o avanço difícil. Ainda por cima, havia todas aquelas latas, garrafas e caixas de produtos espalhadas.

O garoto parecia não ter problema em transpor os obstáculos e chegou à frente da loja bem antes de Jesse. Postando-se diante de uma das janelas quebradas, ele ergueu a mão roliça e abriu os dedinhos. Um disco negro imediatamente levitou de sua palma e desapareceu no meio da noite.

Jesse alcançou o garoto, ofegante devido ao tanto que escorregara e deslizara. Também estava mancando levemente por causa de uma contusão no quadril. Levara um tombo perto de uma das caixas registradoras e colidira com uma lata de sopa de tomate.

— Muito bem, filho — disse Jesse, tentando recuperar o fôlego enquanto fazia o garoto dar meia-volta, ficando de frente para ele. — O que aconteceu? Por que está aqui?

Exibindo o mesmo sorriso exagerado, a criança ergueu os olhos para o rosto de Jesse, sem dizer uma só palavra.

— Ora, vamos, menino — insistiu Jesse. — Não estou pedindo muito.

Cassy apareceu atrás de Jesse e espiou por sobre seu ombro.

— O que foi que ele fez? — indagou ela.

— Nada, até onde eu sei — respondeu Jesse. — Apenas correu até aqui e parou. Mas eu gostaria que ele tirasse esse sorriso do rosto. Parece que está zombando de nós.

Cassy e Jesse viram as luzes dos faróis no mesmo momento. Um veículo entrara no estacionamento do supermercado e vinha em direção a eles.

— Ah, não! — exclamou Jesse. — Justamente o que não queríamos: companhia.

Logo ficou evidente que o veículo estava em alta velocidade. Tanto Cassy quanto Jesse, instintivamente, recuaram vários passos. O ruído de pneus cantando no asfalto anunciou a súbita parada do carro na frente do mercado. Os feixes dos faróis altos inundaram o interior do estabelecimento com uma luz ofuscante. Cassy e Jesse ergueram as mãos para proteger os olhos. A criança correu na direção da luz e desapareceu em seu clarão.

— Chame Nancy e saiam pelos fundos! — sussurrou Jesse, energicamente.

— E quanto a você? — perguntou Cassy.

— Vou distraí-los — disse ele. — Se eu não estiver de volta ao local do encontro daqui a quinze minutos, partam sem mim. Encontrarei outro veículo para voltar.

— Tem certeza? — questionou Cassy, não gostando da idéia de ir embora sem Jesse.

— É claro que tenho — respondeu ele, bruscamente. — Agora vá!

A visão de Cassy já havia se ajustado o suficiente para que ela pudesse perceber que figuras indistintas estavam descendo de ambos os lados do veículo. A intensidade dos faróis ainda impedia que se vissem detalhes.

Cassy virou-se e correu para os fundos do mercado. Na metade do corredor, ela voltou-se momentaneamente a tempo de ver Jesse passando pela janela quebrada, seguindo na direção da luz ofuscante.

Cassy correu o máximo que pôde e, propositadamente, colidiu com a grade que separava a farmácia do supermercado. Agarrando-a com ambas as mãos, sacudiu-a ruidosamente, chamando por Nancy. A cabeça desta emergiu detrás do balcão. De imediato Nancy viu a luz que vinha da frente do mercado.

— O que está acontecendo? — perguntou ela. Cassy estava sem fôlego.

— Problemas — respondeu. — Precisamos dar o fora daqui.

— OK — disse Nancy. — Já tenho tudo aqui. — Ela saiu detrás do balcão e tentou passar pelo buraco na grade. As pontas cortadas dos arames, porém, tinham outra idéia, e ela ficou presa.

— Aqui, tome isso — pediu Nancy, entregando a sacola de medicamentos a Cassy. Usando ambas as mãos, ela tentou soltar-se, mas viu que não seria fácil.

A luz que vinha da frente do mercado de repente aumentou dramaticamente. Ao mesmo tempo, fez-se ouvir um silvo, que também ganhou intensidade. Quando alcançou níveis ensurdecedores, cessou de maneira tão súbita que seu efeito concussivo derrubou alguns dos produtos que oscilavam nas prateleiras.

— Ah, não! — gemeu Nancy.

— O que foi? — perguntou Cassy.

— Foi esse o som que ouvimos quando Eugene foi consumido — explicou Nancy. — Onde está Jesse?

— Venha! — gritou Cassy. — Temos de sair daqui.

Ela pôs no chão a sacola que Nancy lhe dera e tentou puxar as pontas da grade de arame. Feixes de lanterna começaram a varrer o interior da loja.

— Vá! — berrou Nancy. — Apanhe a sacola e corra!

— Não sem você — replicou Cassy, lutando contra a resistente grade de arame.

— Está bem — disse Nancy. — Você segura deste lado e eu puxo do outro.

Trabalhando juntas conseguiram finalmente que Nancy se libertasse.

Nancy agarrou a sacola e começaram a correr ao longo dos fundos do mercado. Não tinham um destino específico. Estavam apenas contando que a loja tivesse uma saída pelos fundos. No entanto, tudo que encontraram foi um interminável frigorífico com comida congelada.

Chegando ao canto oposto, entraram no primeiro corredor e seguiram adiante. Pensaram que, correndo ao longo da periferia do estabelecimento, acabariam por encontrar uma porta. Mas não foram muito longe. À frente delas, um grupo espectral de pessoas dobrou a esquina. A maior parte delas carregava lanternas.

Um gemido de medo simultâneo escapou dos lábios de Cassy e Nancy. O que fazia com que o grupo fosse especialmente assustador eram seus olhos, que brilhavam à luz fraca do mercado como galáxias distantes no céu noturno.

Cassy e Nancy fizeram meia-volta ao mesmo tempo, apenas para se confrontarem com um segundo grupo que se aproximava por suas costas. Agarradas uma à outra, esperaram, enquanto os dois grupos se acercavam delas. Quando as pessoas estavam perto o bastante para que as duas mulheres lhes vissem as feições, ficou óbvio que estavam igualmente divididos entre homens e mulheres, velhos e jovens. O que tinham em comum eram os olhos reluzentes e os sorrisos plásticos.

Durante alguns momentos, nada aconteceu, exceto pelo fato de que as pessoas infectadas haviam cercado completamente as mulheres, encurralando-as. Cassy e Nancy tinham as costas encostadas, uma na outra, as mãos apertadas sobre a boca. Nancy deixara cair a sacola de remédios.

com pavor de ser tocada, Cassy gritou quando uma das pessoas infectadas de repente investiu contra ela, agarrando-lhe o pulso.

— Cassy Winthrope, suponho — disse o homem, dando uma risadinha. — É de fato um prazer. Alguém está sentindo muito a sua falta.

Pitt tamborilava os dedos sobre o volante da van de Jesse. Jonathan remexia-se, inquieto, no banco do passageiro. Ambos estavam ansiosos.

— Faz quanto tempo agora? — perguntou Jonathan.

— Estão vinte e cinco minutos atrasados — disse Pitt.

— O que vamos fazer?

— Não sei — respondeu Pitt. — Se alguém fosse ter problemas, pensei que seríamos nós.

— Desde que nos mantivemos sorrindo, ninguém pareceu dar importância ao que fazíamos — disse Jonathan.

— Fique aqui! — disse Pitt, de repente. — Preciso ir ver o que aconteceu naquele supermercado. Caso eu não esteja de volta em quinze minutos, vá para a cabana.

— Mas como você vai voltar? — gemeu Jonathan.

— Tem muitos carros abandonados por aí—respondeu Pitt. — Isso não vai ser problema.

— Mas...

— Faça o que eu disse — replicou Pitt, asperamente. Então saltou da van e desceu rapidamente o morro, emergindo de entre as árvores numa rua deserta. Pôs-se a caminhar na direção do supermercado. Calculou que tinha cerca de seis quadras antes de dobrar para percorrer a última delas.

À sua frente, um indivíduo saiu de um edifício e virou na direção de Pitt, que podia ver os olhos do outro brilhando. Reprimindo um impulso de fugir correndo, Pitt forçou o rosto a abrir-se num amplo sorriso, exatamente como ele e Jonathan haviam feito no centro médico. Tendo sorrido tanto, seus músculos faciais estavam doloridos.

Pitt descobriu que era enervante caminhar diretamente para a pessoa transformada. Tinha de se concentrar não só no sorriso, como também em manter os olhos fixos adiante. Ele e Jonathan haviam aprendido, pelo método mais difícil, que o contato visual era visto com suspeita.

O homem passou por ele sem nenhum incidente e Pitt deixou escapar um suspiro de alívio. Que maneira de se viver, ponderou ele com tristeza. Por quanto tempo conseguiriam sobreviver a esse jogo de gato e rato?

Pitt dobrou a esquina e aproximou-se do supermercado. A primeira coisa que viu foi um grupo de carros estacionados bem à frente do estabelecimento. O que o preocupou foi o fato de os faróis estarem acesos. À medida que foi se aproximando, pôde ouvir que os motores também estavam ligados.

Alcançando a extremidade do estacionamento, Pitt viu um grupo compacto de pessoas sair do mercado e começar a entrar nos carros. Logo chegou a ele o ruído de portas batendo.

Pitt correu e escondeu-se no vão escuro da porta de um edifício ao lado da entrada do estacionamento do supermercado. Quase imediatamente, os carros começaram a manobrar e a vir em sua direção. À medida que foram ganhando velocidade, formaram uma fila única. Pitt encolheu-se em seu esconderijo quando os faróis do carro da frente iluminou o caminho diante dele.

Instantes depois, o primeiro dos seis carros passou a menos de seis metros de Pitt, hesitando momentaneamente antes de entrar na rua e dando a Pitt uma visão fugidia dos rostos sorridentes de seus ocupantes infectados.

Os carros passavam um de cada vez. Quando o último carro parou brevemente, Pitt prendeu a respiração. Um arrepio do mais abjeto horror percorreu sua espinha. Sentada no banco traseiro, ia Cassy!

Incapaz de se conter e sem sopesar as conseqüências, Pitt deu um passo à frente, como se planejasse atirar-se para o carro e abrir a porta bruscamente. A fraca luz ambiente caiu sobre ele e, naquele momento, Cassy olhou em sua direção.

Durante a breve fração de um segundo, seus olhos se encontraram. Pitt impeliu-se a avançar, mas Cassy abanou a cabeça e o momento passou. O carro avançou com um solavanco e acelerou, desaparecendo na noite.

Pitt voltou cambaleando ao escuro vão da porta. Estava furioso consigo mesmo por não ter feito alguma coisa. Entretanto, no fundo ele sabia que teria sido inútil. Tudo que conseguiu ver quando fechou os olhos foi a imagem do rosto de Cassy emoldurado pela janela do carro.

 

5:15

O deslumbrante céu da noite no deserto, antes coalhado de estrelas, agora ia desbotando rapidamente, adquirindo matizes de azul e cor-de-rosa, à medida que a promessa de um novo dia clareava o Oriente. A aurora estava chegando.

Beau encontrava-se no terraço do quarto principal, desfrutando o ar noturno, desde que a boa notícia lhe fora comunicada. Agora esperava impacientemente que os últimos minutos se passassem. Ele sabia que o encontro era iminente desde que vira o carro subir o caminho e desaparecer de vista na frente da mansão.

Beau ouviu o ruído de passos no quarto e o estalido da fechadura das portas duplas se abrindo. Mas não se virou. Manteve os olhos fixos no ponto do horizonte em que o sol estava prestes a aparecer para um novo dia, um novo começo.

— Você tem companhia — informou Alexander, retirando-se em seguida e fechando a porta.

Beau observou os primeiros raios dourados do sol cintilarem. Sentiu no corpo uma curiosa comoção, que em certo sentido ele compreendia, mas em outro considerava misteriosa e ameaçadora.

— Olá, Cassy — disse Beau, quebrando o silêncio. Lentamente, ele se virou. Estava vestido num robe de veludo escuro.

Cassy ergueu as mãos para proteger os olhos dos raios de sol que desenhavam a silhueta do rosto de Beau. Ela não conseguia ver-lhe as feições.

— É você, Beau? — perguntou ela.

— É claro que sou eu — disse ele, dando um passo à frente.

De repente, Cassy pôde vê-lo claramente e sentiu-se sufocar. Ele sofrerá mais mutações. A pequena área de pele atrás da orelha que ela inadvertidamente vira em sua visita anterior havia se espalhado para a frente do pescoço, subindo pela linha do maxilar. Algumas ramificações daquele tecido já alcançavam as maçãs do rosto, formando uma orla serpiginosa. O couro cabeludo era uma colcha em que se entremeavam retalhos de trechos cobertos com um cabelo ralo e expansões de pele alienígena. Sua boca, embora ainda sorrisse, agora estava murcha; os lábios tinham afinado e os dentes haviam recuado e amarelecido. Os olhos eram buracos negros, sem íris, e piscavam continuamente, com a pálpebra inferior erguendo-se até a superior e não o oposto.

Cassy encolheu-se e recuou movida pelo absoluto horror.

— Não tenha medo — disse Beau, caminhando até ela e a abraçando.

Cassy enrijeceu. Os dedos de Beau pareciam cobras enroscando-se em torno de partes do seu corpo. E havia um indescritível odor bestial.

— Por favor, Cassy, não tenha medo — pediu ele. — Sou só eu, Beau.

Cassy não respondeu. Ela precisou lutar contra uma urgência quase irresistível de gritar.

Beau inclinou-se para trás, forçando-a a olhar novamente para seu rosto transmogrificado.

— Senti muito a sua falta — disse ele.

Com uma súbita e inesperada onda de energia, Cassy gritou e empurrou-o, libertando-se. A atitude apanhou Beau completamente de surpresa.

— Como pode dizer que sentiu a minha falta? — gritou Cassy. — Você não é mais Beau.

— Sou, sim — disse ele, numa voz reconfortante. — Sempre serei Beau. Mas também sou algo mais. Sou uma mistura de meu antigo eu humano e de uma espécie quase tão antiga quanto a própria galáxia.

Cassy olhou com cuidado para ele. Uma parte dela lhe dizia que fugisse, outra estava paralisada pelo horror daquilo tudo.

— Você também será parte da nova vida — afirmou Beau.

— Todos serão parte dela, pelo menos aqueles que não possuem alguma falha genética grave. Eu apenas tive a honra de ser o primeiro, mas esse foi um acontecimento aleatório. Poderia ter sido você ou qualquer outra pessoa.

— Então estou falando com Beau agora? — indagou Cassy. — Ou estou falando com a consciência do vírus através de Beau?

— A resposta, como eu já disse, é sim para as duas perguntas — disse Beau, pacientemente. — Entretanto, a consciência alienígena cresce com cada pessoa infectada. Essa consciência é um complexo de todos os seres humanos infectados, assim como o cérebro humano é um complexo de células individuais.

Beau estendeu o braço com cuidado para evitar assustar Cassy ainda mais. Fechando os dedos serpentiformes até formar uma espécie de punho, ele acariciou-lhe o rosto.

Cassy precisou reunir todas as suas forças contra a repulsa que sentiu ao permitir que aquela criatura a tocasse.

— Tenho de lhe confessar uma coisa — disse Beau. — A princípio, tentei não pensar em você. Inicialmente foi fácil, graças ao trabalho que precisava ser feito. Mas você continuava a insinuar-se em meus pensamentos e me fez compreender o poder enganador da emoção humana. Trata-se de uma fraqueza única na galáxia.

“O meu lado humano a ama, Cassy, e sinto-me excitado diante da perspectiva de poder lhe oferecer muitos mundos. Anseio para que você se torne um dos nossos.

— Eles não virão — disse Sheila. — Por mais dolorosa que seja essa realidade, receio que tenhamos de aceitá-la. — Ela se ergueu e esticou o corpo. Não haviam dormido nada.

Através das janelas da cabana, o sol do início da manhã podia ser visto banhando o topo das árvores na margem ocidental do lago. A superfície da água estava coberta por uma névoa que o sol nascente iria rapidamente dissipar.

— E, se é essa a realidade — acrescentou Sheila —, então precisamos nos mandar daqui antes que tenhamos visitantes indesejados.

Nem Pitt nem Jonathan responderam. Estavam sentados em sofás diferentes, um diante do outro, curvados para a frente com os queixos apoiados nas mãos e os cotovelos descansados sobre os joelhos. A expressão de ambos era um misto de exaustão, descrença e sofrimento.

— Bem, não temos tempo para levar tudo — ia dizendo Sheila. — Mas creio que deveríamos levar todos os dados e as culturas teciduais que esperamos estejam produzindo alguns virions.

— E quanto à minha mãe? — perguntou Jonathan. — E Cassy e Jesse? E se voltarem aqui procurando por nós?

— Já discutimos isso — replicou Sheila. — Não vamos tornar as coisas ainda mais difíceis do que são.

— Também não acho que devamos ir embora — disse Pitt. Apesar de já ter perdido as esperanças em relação a Cassy, ainda pensava que Nancy e Jesse poderiam aparecer.

— Ouçam, vocês dois — disse Sheila. — Duas horas atrás vocês concordaram em esperar até o amanhecer. Agora já está amanhecendo. Quanto mais tempo esperarmos, maiores as chances de sermos apanhados.

— Mas para onde iremos? — indagou Pitt.

— Receio que tenhamos de pensar nisso no caminho — respondeu Sheila. — Venham, vamos começar a arrumar as coisas.

Pitt forçou-se a levantar-se do sofá. Olhou para Sheila e sua expressão espelhava a imensa dor que sentia. Ela enterneceu-se, caminhou até o sofá e o abraçou.

Jonathan ergueu-se, com súbita decisão, e foi até seu laptop. Abrindo-o, começou a digitar apressadamente. Depois de enviar a mensagem, ficou olhando sem ver a tela. Dentro de poucos minutos, chegava uma resposta.

— Ei! — gritou ele para Sheila e Pitt. —Acabo de entrar em contato com o Dr. M. Ele mudou de idéia. Está disposto a nos encontrar. O que vocês acham?

— Sou naturalmente cética — admitiu Sheila. — A idéia de pôr nossas vidas nas mãos de alguém que só conhecemos como Dr. M me parece absurda. Mas, por outro lado, ele vem nos enviando dados muito interessantes.

— Bem, não temos muita escolha — observou Jonathan.

— Deixe-me ver sua última mensagem — pediu Pitt. Andou até onde Jonathan estava e leu por sobre o ombro dele. Ao chegar ao fim, ergueu os olhos para Sheila. — Acho que devemos correr o risco. Não consigo imaginar que esteja nos enganando. Diabos! Ele tem tanto medo de nós quanto nós dele.

— E é melhor do que sair por aí perambulando sem destino — acrescentou Jonathan. — Além disso, ele está conectado à Internet, o que significa que podemos deixar uma mensagem aqui e, se minha mãe ou os outros voltarem, poderão pelo menos entrar em contato conosco.

— Está bem, vocês venceram — disse Sheila, cedendo. — Suponho que isso seja um acordo. Iremos ao encontro desse Dr. M, o que quer dizer que daremos o fora daqui. Portanto, mãos à obra.

— Cassy, sei que é difícil para você — disse Beau. — Eu não me olho mais no espelho. Mas você precisa superar isso.

Cassy estava debruçada sobre a balaustrada, observando a vista alciônica da propriedade onde se localizava o instituto. O sol se levantara e o orvalho da manhã estava prestes a desaparecer. Lá fora, no caminho que levava à casa, havia um fluxo constante de pessoas infectadas seguindo em fila indiana, chegando de todas as partes do globo.

— Estamos construindo um meio ambiente impressionante aqui — disse Beau. — E ele está prestes a se espalhar pelo mundo todo. Trata-se de fato de um novo começo.

— Eu gostava do nosso mundo como era — afirmou Cassy.

— Você não pode estar sendo sincera — replicou Beau. — Não com todos os problemas que existiam. Os humanos levaram a Terra a uma rota de colisão com a autodestruição, principalmente nesta última metade de século. Existem incontáveis planetas na galáxia, mas poucos com a temperatura tão agradável, com tanta água e tão convidativos quanto este.

Cassy fechou os olhos. Estava exausta e precisava dormir; no entanto, algumas das coisas que Beau estava dizendo faziam de fato um pouco de sentido. Ela obrigou-se a tentar pensar.

— Quando foi que o vírus chegou à Terra pela primeira vez? — indagou ela.

— A primeira invasão? — perguntou Beau. — Há cerca de três bilhões de anos terrestres. Foi quando as condições na Terra haviam chegado a um ponto em que a vida estava evoluindo a um ritmo razoavelmente rápido. Uma nave exploradora liberou os virions nos oceanos primitivos e eles incorporaram-se ao DNA em evolução.

— E essa é a primeira vez que uma nave exploradora retorna aqui? — quis saber Cassy.

— Não, por Deus, não. A cada cem milhões de anos terrestres aproximadamente, uma sonda volta a fim de despertar o vírus e ver que tipo de vida evoluiu.

— E a consciência do vírus não permaneceu?

— O vírus propriamente dito ficou — disse Beau. — Mas você está certa: a consciência teve permissão para ir embora. Das outras vezes os organismos eram sempre inconvenientes.

— Qual foi a última vez? — perguntou Cassy.

— Há cerca de cem milhões de anos terrestres. Mas foi uma visita desastrosa. A Terra estava totalmente infestada com enormes criaturas reptilianas, que predavam umas às outras, canibalescamente.

— Você se refere aos dinossauros?

— É, acho que foi assim que vocês os rotularam. Qualquer que seja o nome, porém, aquela era uma situação totalmente inaceitável para a consciência. Assim, a infestação foi interrompida. No entanto, foram feitos ajustes genéticos para que os imensos répteis morressem, permitindo que outras espécies evoluíssem.

— Como os seres humanos — sugeriu Cassy.

— Exato — confirmou Beau. — Esses têm corpos maravilhosamente versáteis e cérebros de tamanho razoável. O lado negativo são as emoções.

Apesar de tudo, Cassy deixou escapar uma risada breve. A idéia de uma cultura alienígena, capaz de explorar a galáxia, tendo problemas com as emoções humanas era despropositada.

— É verdade — disse Beau. — A primazia das emoções se traduz em uma importância exagerada do indivíduo, o que é contrário ao bem coletivo. De minha perspectiva dual, é assombroso que os seres humanos tenham realizado tanto. Numa espécie em que cada indivíduo luta para maximizar suas condições, acima e além das necessidades básicas, a guerra e a discórdia são inevitáveis. A paz passa a ser a aberração.

— Quantas outras espécies na galáxia o vírus dominou? — perguntou Cassy.

— Milhares. Onde quer que encontremos um recipiente apropriado,

Cassy continuou a fitar a distância. Ela não queria olhar para Beau porque a aparência dele era tão perturbadora que bloqueava seu pensamento, e ela queria pensar. Não podia deixar de lhe ocorrer que quanto mais soubesse, melhores seriam suas chances de evitar ser infectada e permanecer sendo ela mesma. E estava aprendendo muito. Quanto mais tempo conversava com Beau, menos ouvia o lado humano e mais percebia o alienígena.

— De onde você vem? — perguntou Cassy, de súbito.

— Onde é nosso planeta de origem? — repetiu Beau, como se não houvesse ouvido a pergunta. Ele hesitou, tentando ordenar as informações coletivas a que tinha acesso. A resposta, porém, não estava disponível. — Creio que não sei. Não sei nem mesmo qual era nossa forma física original. Estranho! Essa pergunta nunca me ocorreu.

— Alguma vez passa pela consciência do vírus que de certa forma é errado tomar posse de um organismo que já possui uma consciência? — questionou Cassy.

— Não quando estamos oferecendo algo tão melhor — afirmou Beau.

— Como pode ter tanta certeza disso?

— É simples. Refiro-me à sua história. Olhe o que vocês fizeram uns aos outros e a este planeta durante o curto período em que reinaram aqui como criaturas dominantes.

Cassy assentiu. Mais uma vez, o que ela ouvia fazia um certo sentido.

— Venha comigo, Cassy — chamou Beau. — Tem uma coisa que eu quero mostrar a você. — Beau foi até a porta que levava ao quarto e a abriu.

Cassy obrigou-se a fazer meia-volta. Encheu-se de coragem para enfrentar a aparência de Beau, que lhe pareceu quase tão chocante quanto da primeira vez em que o vira. Ele segurava a porta para ela; então, com um gesto, falou:

— É no andar de baixo.

Desceram pela escada principal. Em contraste com a tranqüilidade lá de cima, o primeiro andar estava repleto de pessoas sorridentes e em plena atividade. Ninguém prestou atenção em Beau e Cassy. Ele a levou para o salão de baile, onde o nível de atividade era quase frenético. Era difícil entender como tantas pessoas podiam trabalhar juntas.

O chão, as paredes e o teto da enorme sala estavam cobertos por um labirinto de fios. No meio daquele espaço, via-se uma imensa estrutura que pareceu a Cassy pertencer a um modelo e tropósito do outro mundo. No centro deste, havia um cilindro de aço muito grande, que lembrava vagamente um aparelho de ultra-som gigantesco. Vigas de aço tinham sido dispostas em linhas oblíquas em várias direções. Essa superestrutura sustentava o que parecia a Cassy equipamento para armazenar e transnitir eletricidade de alta voltagem. Um centro de comando podia ser visto a um lado, contendo um número impressionante de monitores, mostradores e botões.

A princípio, Beau nada falou. Simplesmente deixou que Cassy se sentisse estupefata com a cena.

— Está quase finalizado — disse ele, por fim.

— O que é isso? — perguntou Cassy.

— É o que chamamos de Pórtico, uma conexão formal com outros mundos que infestamos.

— O que você quer dizer com conexão? Isso é uma espécie de aparelho de comunicação?

— Não — disse Beau. — Transporte, não comunicação. Cassy engoliu em seco. Sua garganta ressecara.

— Você se refere a outras espécies, de outros planetas que você, isto é, o vírus, infectou? Eles poderão vir aqui? À Terra?

— E nós poderemos ir até eles — completou Beau, triunfante. — A Terra estará daqui por diante conectada a esses outros mundos. Seu isolamento chegou ao fim. Agora ela passará a fazer parte da galáxia.

Cassy sentiu-se enfraquecer de repente. O horror da Terra sendo invadida por inúmeras criaturas alienígenas agora vinha somar-se ao medo que sentia por si mesma. Juntando-se isso ao turbilhão frenético daquela atividade pavorosa à sua volta, e à sua exaustão física, emocional e mental, Cassy sofreu uma síncope. O salão começou a girar e escurecer, e ela desfaleceu.

Quando voltou a si, Cassy não tinha idéia de quanto tempo estivera inconsciente. A primeira coisa de que teve consciência foi de uma ligeira náusea, que passou rapidamente após um arrepio. Em seguida, percebeu que sua mão direita havia sido fechada e que estava sendo segura com firmeza.

Os olhos de Cassy se abriram. Ela encontrava-se no chão do movimentado salão de baile, olhando uma parte daquela engenhoca futurista e improvisada, que, supostamente, era capaz de transportar criaturas alienígenas para a Terra.

— Você vai ficar bem — disse Beau.

Cassy estremeceu. Aquele era o clichê que sempre se dizia aos pacientes, independente do prognóstico. Cassy deixou seus olhos seguirem até Beau. Ele estava ajoelhado ao seu lado, mantendo sua mão fechada. Foi nesse momento que Cassy se deu conta de que havia alguma coisa na palma de sua mão, algo pesado e frio.

— Não! — gritou ela, tentando soltar a mão. Mas Beau a mantinha firme. — Por favor, Beau.

— Não tenha medo — disse ele, brandamente. — Você vai ficar bem.

— Beau, se você me ama, não faça isso — pediu Cassy.

— Cassy, acalme-se. Eu a amo de verdade.

— Se você tem algum controle sobre suas ações, solte a minha mão. Quero continuar a ser eu mesma.

— Você continuará — disse Beau, reconfortando-a. — E será muito mais. Eu tenho controle. Estou fazendo o que quero. Eu quero o poder que me foi dado, e quero você.

— Ahhh! — gritou ela.

Então Beau soltou-lhe a mão. Cassy ergueu-se, sentando no chão, e com uma exclamação de repugnância atirou longe o disco negro, que deslizou numa pequena área do chão antes de cair pesadamente em meio a um feixe de fios.

Cassy agarrou a mão ferida e observou a gota de sangue que ia aumentando lentamente na base de seu dedo indicador. Ela fora espetada e a realidade esmagadora do que isso significava fê-la tornar a tombar no chão. Uma única lágrima rolou de sob cada uma de suas pálpebras e deslizou pelo lado de seu rosto. Agora ela era um deles.

 

9:15

O posto de gasolina parecia cenário de um filme dos anos 30 ou a capa de uma revista do Saturday Evening Post. Havia duas bombas de gasolina magricelas, que pareciam arranha-céus em miniatura com topos arredondados em estilo art déco. No centro dos topos, ainda podia-se discernir a imagem de um Pégaso vermelho, apesar da tinta descascada.

A construção atrás das bombas era da mesma época e desafiava a crença que ainda pudesse estar de pé. Durante a última metade de século, a areia soprada pelo vento do deserto lavara da madeira que revestia o prédio qualquer vestígio de tinta. A única coisa ainda razoavelmente intacta era o velho telhado de madeira impermeabilizada. A porta, que fora de tela, ia e vinha com a brisa quente: um tributo permanente à longevidade de suas ferragens.

Pitt estacionou a van na margem da estrada, do lado oposto ao estabelecimento dilapidado, de forma que pudessem observá-lo.

— Que fim de mundo! — exclamou Sheila, enxugando o suor que escorria para os seus olhos. O sol do deserto estava apenas começando a dar evidências da força que teria ao meio-dia.

Encontravam-se numa estrada de pista dupla praticamente abandonada, que no passado fora a rota principal de travessia do deserto do Arizona. Mas a rodovia interestadual, trinta quilômetros mais ao sul, mudara essa condição. Os carros agora raramente se aventuravam pela pista de macadame sulcada, como mostravam os punhados de areia que a invadiam.

— Foi aqui que ele disse que nos encontraria — afirmou Jonathan. — E é exatamente como ele descreveu, porta de tela e tudo mais.

— Bem, onde está ele? — indagou Pitt, correndo os olhos pelo horizonte distante. Exceto por algumas elevações solitárias à distância, nada havia senão o deserto plano em todas as direções. O único movimento visível era o de moitas de amaranto.

— Talvez devêssemos sentar e esperar — sugeriu Jonathan, que estava tendo dificuldade em manter os olhos abertos devido ao sono.

— Não tem abrigo de nenhuma espécie aqui — disse Pitt. — Isso me deixa nervoso.

— Talvez devêssemos dar uma olhada dentro da loja desse posto em ruínas — sugeriu Sheila.

Pitt tornou a ligar a van, atravessou a estrada e estacionou entre as antigas bombas de gasolina e o prédio arruinado. Todos olharam aquela estrutura com inquietação. Havia algo de estranho ali, principalmente com a porta de tela se abrindo e fechando sem parar. Agora que estavam perto, podiam ouvir as velhas dobradiças rangendo. As pequenas janelas de vidraças, que surpreendentemente se apresentavam intactas, estavam muito sujas para lhes permitir ver o interior.

— Vamos dar uma olhada lá dentro — disse Sheila.

Hesitantes, saltaram do veículo e aproximaram-se com cuidado da varanda à entrada da construção. Havia duas antigas cadeiras de balanço de palhinha, cujos assentos há muito tinham apodrecido. Perto da porta, a forma enferrujada de uma velha máquina de Coca-Cola. A tampa de correr encontrava-se aberta, deixando ver que o interior estava repleto de todos os tipos de entulho.

Pitt abriu a porta de tela e experimentou a porta interna. Estava destrancada. Ele a abriu.

— Vocês vêm ou não vêm? — perguntou ele.

— Vamos atrás de você — respondeu Sheila.

Pitt entrou, seguido por Jonathan e Sheila. Pararam no vão da porta e olharam ao redor. com as janelas sujas, a iluminação era escassa. Havia uma mesa de metal à direita, com um calendário atrás dela. O ano era o de 1938. O chão estava repleto de lixo, areia, garrafas quebradas, jornais velhos, latas de óleo vazias e velhas peças de carro. As teias de aranha pendiam como feixes de barba-de-velho dos pedaços de vigas do teto. À esquerda via-se uma porta almofadada parcialmente aberta.

— Parece que faz muito tempo que ninguém põe os pés aqui — disse Pitt. —Acham que esse suposto encontro foi uma espécie de armadilha?

— Não creio — respondeu Jonathan. — Talvez ele esteja esperando por nós no deserto, observando-nos para ter certeza de que não há nada de errado conosco.

— De onde ele poderia estar nos vigiando? — indagou Pitt.

— Lá fora o terreno é tão plano quanto uma panqueca.

Ele caminhou até a porta entreaberta e a empurrou, abrindo-a por completo. As dobradiças protestaram ruidosamente. A segunda sala era ainda mais escura do que a primeira, com uma única janelinha. As paredes eram cobertas por prateleiras, sugerindo que o cômodo servira como depósito.

— Bem, não tenho certeza se vai fazer muita diferença se o encontrarmos ou não — disse Sheila, desanimada. — Eu tinha esperanças de que, como estava nos dando algumas informações interessantes, ele tivesse acesso a um laboratório ou coisa parecida. É desnecessário dizer que não poderemos fazer qualquer trabalho num lugar como este. Acho que é melhor irmos embora.

— Vamos esperar mais um pouco — pediu Jonathan. — Tenho certeza de que o cara é legal.

— Ele nos disse que estaria aqui quando chegássemos — Sheila lembrou a Jonathan. — Ou ele mentiu para nós ou...

— Ou o quê? — perguntou Pitt.

— Ou eles o apanharam — respondeu Sheila. — A essa altura, ele já pode ser um deles.

— Um pensamento muito otimista — comentou Pitt.

— Precisamos enfrentar a realidade — disse Sheila.

— Ei, esperem um pouco — pediu Pitt. — Ouviram isso?

— O quê? — perguntou Sheila. —A porta de tela?

— Não, uma outra coisa. Um barulho de alguma coisa raspando.

Jonathan levantou a mão e passou no alto da cabeça.

— Alguma coisa caiu em mim. Poeira ou algo parecido. — Ele olhou para cima. — Oh-oh, tem alguém lá em cima.

Todos ergueram os olhos. Somente nesse momento perceberam que o teto não tinha forro. Acima dos caibros estava mais escuro do que lá embaixo. Mas, agora que seus olhos haviam se ajustado à pouca iluminação, eles conseguiram distinguir uma figura no espaço que seria o sótão, de pé sobre as vigas.

Pitt abaixou-se e agarrou uma alavanca para remover pneus em meio ao entulho que cobria o chão.

— Largue isso — ordenou uma voz áspera. com uma velocidade surpreendente, a figura desceu do sótão, pendurando-se num só braço e saltando. Na outra mão, segurava uma impressionante Colt 45, e examinou os visitantes com o olhar firme. Era um homem de sessenta e poucos anos, com a pele avermelhada, cabelos crespos grisalhos e uma compleição magra e rija.

— Largue o ferro — repetiu o homem.

Pitt largou a alavanca, atirando-a ruidosamente no chão, e ergueu as mãos.

— Sou eu, Jumpin Jack Flash — apresentou-se Jonathan, excitado, batendo repetidamente no peito. — Foi o nome que usei na Internet. O senhor é o Dr. M?

— Talvez seja — respondeu o homem.

— Meu nome verdadeiro é Jonathan. Jonathan Sellers.

— Eu sou a Dra. Sheila Miller.

— E eu Pitt Henderson.

— O senhor estava nos inspecionando?—perguntou Jonathan. — É por isso que estava escondido no telhado?

— Talvez — replicou o homem. Em seguida, fez sinal para que os três convidados se dirigissem ao depósito.

Pitt estava hesitante.

— Somos amigos. De verdade. Somos pessoas normais.

— Vá! — ordenou o homem, estendendo a pistola na direção do rosto de Pitt.

Este nunca vira uma 45 antes, principalmente assim, olhando para o cano escuro e ameaçador.

— Estou indo — disse Pitt.

— Todos vocês — comandou o homem.

Com relutância, todos seguiram para o depósito escuro.

— Fiquem de frente para mim — disse o homem.

Receosos do que iria acontecer, todos fizeram o que ele mandou. com a garganta seca, eles observavam aquele homem rijo, que literalmente caíra sobre eles. O homem fitou-os de volta. Houve um momento de silêncio.

— Eu sei o que está fazendo — disse Pitt. — Está verificando nossos olhos. Está vendo se eles reluzem!

O homem por fim assentiu.

— Você está certo — disse ele. — E fico satisfeito em dizer que não reluzem em absoluto. Ótimo! — Ele guardou a 45 no coldre. — Meu nome é McCay. Dr. Harlan McCay. E presumo que iremos trabalhar juntos. Estou feliz em conhecer vocês, de verdade.

Com grande alívio, Pitt e Jonathan acompanharam o homem, saindo à luz do sol, onde trocaram apertos de mão entusiasmados. Sheila seguiu-os, mas parecia irritada devido à recepção inicial. Ela queixou-se que ele a deixara apavorada.

— Sinto muito — desculpou-se Harlan. — Não era minha intenção assustá-los, mas tomar cuidado é uma necessidade dos tempos. Mas isso agora ficou para trás.vou levá-los até onde vocês trabalharão. Receio que não tenhamos muito tempo, se quisermos conseguir algum resultado.

— O senhor tem um laboratório ou um lugar semelhante para trabalhar? — perguntou Sheila, seu humor desanuviando-se.

— Tenho — disse Harlan. — Tenho um pequeno laboratório. Mas precisamos prosseguir por um bom trecho. Fica a uns vinte minutos daqui. — Ele abriu a porta deslizante da van e entrou. Pitt acomodou-se ao volante, Sheila sentou-se no banco do passageiro dianteiro e Jonathan juntou-se a Harlan.

Pitt ligou o motor.

— Para onde vamos? — indagou ele.

— Em frente — disse Harlan. — Eu aviso quando for para virar.

— O senhor clinicava num consultório particular antes de toda essa confusão? — perguntou Sheila, quando a van entrava na estrada.

— Sim e não — respondeu Harlan. — A primeira parte de minha vida profissional eu passei na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, numa posição acadêmica. Tive formação em medicina interna, com subespecialidade em imunologia. Entretanto, cerca de cinco anos atrás, me dei conta de que estava cansado daquilo, e então vim para cá e comecei a exercer clínica médica numa cidadezinha chamada Paswell. É só um ponto minúsculo no mapa. Trabalhei muito com os índios nas reservas que têm ali perto.

— Imunologia! — exclamou Sheila. Estava impressionada. — Não é de admirar que estivesse nos enviando material tão interessante.

— Posso dizer o mesmo em relação a você — replicou Harlan. — Qual a sua formação?

— Infelizmente, medicina de emergência na maior parte — admitiu Sheila. — No entanto, cheguei a fazer residência em medicina interna.

— Emergência! — exclamou Harlan. — Então estou ainda mais impressionado com a sofisticação de seus dados. Pensei que estava me comunicando com um colega imunologista.

— Receio que os méritos não sejam meus — disse Sheila. —A mãe de Jonathan estava conosco então, e era virologista. Foi ela que fez a maior parte do trabalho.

— Creio que não devo perguntar onde ela está agora — disse Harlan.

— Não sabemos onde ela está—apressou-se a dizer Jonathan.

— Ela foi a uma farmácia na noite passada buscar alguns remédios e não voltou.

— Lamento — solidarizou-se Harlan.

— Ela irá entrar em contato comigo pela Internet — replicou Jonathan, sem querer perder as esperanças.

Seguiram por alguns minutos em silêncio. Ninguém queria contradizer o garoto.

— Estamos indo para Paswell agora? — perguntou Sheila. A idéia de irem para uma cidadezinha era-lhe muito atraente. Queria um banho e uma cama.

— Não, pelo amor de Deus! — respondeu Harlan. — Todo mundo está infectado por lá.

— Como o senhor conseguiu não ser infectado? — indagou Pitt.

— Pura sorte, a princípio — disse Harlan. — Por acaso eu estava com um amigo no momento em que ele foi espetado por um daqueles discos negros, então passei a fugir deles como se foge de uma praga. Então, quando comecei a ter uma vaga idéia do que estava acontecendo e de que não havia nada que eu pudesse fazer, me refugiei no deserto. E é onde estou, desde então.

— E como, daqui do deserto, o senhor podia estar nos pedindo e enviando todas aquelas informações? — perguntou Sheila.

— Eu já lhe disse: tenho um pequeno laboratório.

Sheila olhou pela janela da van, do lado onde estava sentada. A paisagem monótona do deserto estendia-se em direção às montanhas distantes. Não havia construções ali, muito menos um laboratório biológico. Ela começou a se perguntar o que haveria por baixo daquele emaranhado de cabelos grisalhos de Harlan.

— Na verdade, tenho uma notícia encorajadora — disse Harlan. — Assim que vocês me forneceram a seqüência do aminoácido da proteína ativadora, e eu pude produzi-la, desenvolvi um anticorpo monoclonal um tanto rudimentar.

A cabeça de Sheila virou-se bruscamente na direção de Harlan. Ela estudou aquele homem do deserto, o rosto vincado e curtido, os olhos azuis, a barba por fazer.

— Tem certeza? — indagou ela.

— É claro que tenho. Mas não se entusiasme demais, pois não se trata de algo tão específico quanto eu gostaria que fosse. Mas funciona. O mais importante é que provei que a proteína é antigênica o bastante para promover uma resposta imunogênica num camundongo. Só preciso selecionar um linfócito B melhor para produzir meu hibridoma.

Pitt arriscou um rápido olhar na direção de Sheila. Apesar de ter feito alguns cursos de biologia avançada, ele não tinha a menor idéia do que Harlan estava falando ou mesmo se aquilo fazia sentido. Entretanto, era óbvio que Sheila estava extraordinariamente impressionada.

— Para produzir um anticorpo monoclonal são necessários reagentes e outros materiais sofisticados, como uma fonte de células de mieloma — observou Sheila.

— Sem dúvida — concordou Harlan. — Vire à direita aqui, Pitt, pouco depois daquele cacto.

— Mas não tem estrada ali — objetou Pitt.

— Um mero tecnicismo — replicou Harlan. — Vire assim mesmo.

Cassy despertou de um rápido cochilo, levantou-se da cama e dirigiu-se à janela grande, de várias vidraças. Ela se encontrava num quarto de hóspedes no segundo andar da mansão, que dava para o lago. À esquerda, podia ver o trânsito de pedestres indo e vindo do portão, em fila única. Diretamente à sua frente, sua visão da propriedade- era limitada por uma árvore alta e frondosa. À direita, via-se a ponta do deque que circundava a piscina, assim como cerca de cem metros do gramado, antes de este juntar-se a uma floresta de pinheiros.

Ela consultou o relógio em seu pulso. Perguntou-se quando começaria a se sentir mal. Tentou lembrar o intervalo entre o momento em que Beau fora espetado e seus primeiros sintomas, mas não conseguiu. Tudo que ele lhe disse foi que se sentira mal na sala de aula. Ela não sabia em que aula.

Voltando à porta, tornou a girar a maçaneta. Ainda estava trancada com tanta segurança como quando fora posta ali. Dando meia-volta, ela se recostou na porta e olhou à sua volta. Tratava-se de um quarto generoso, de teto alto, mas, exceto pela cama, estava completamente vazio. E a própria cama consistia num colchão nu, sobre um estrado de molas.

O breve cochilo havia reanimado Cassy até certo ponto. Ela sentia uma espécie de depressão e raiva. Pensou em tornar a se deitar, mas não acreditava que pudesse dormir. Em vez disso, retornou à janela.

Percebendo que não havia fechadura, testou a janela, que, para sua surpresa, abriu-se com facilidade. Debruçando-se sobre o peitoril, ela olhou para o chão. Cerca de seis metros abaixo, havia um pavimento de lajes que interligava a varanda dos fundos à da frente e que era margeado por uma balaustrada de calcário. Seria uma queda muito dura se ela tentasse saltar, mas Cassy pensou sério naquela idéia. A morte talvez fosse preferível ao destino de tornar-se um deles. O problema era que uma queda de seis metros provavelmente apenas mutilaria, não mataria.

Cassy ergueu os olhos e examinou a árvore com mais atenção. Um galho robusto chamou-lhe a atenção em particular, projetando-se do tronco e arqueando-se diretamente para a janela e então desviando-se para a direita. Seu interesse estava voltado para uma curta extensão horizontal, cerca de dois metros de onde Cassy se encontrava.

A questão que ocorreu a Cassy era se poderia saltar da janela, agarrar o galho e segurar-se a ele. Ela não sabia. Nunca fizera nada assim em toda a sua vida e o simples fato de a idéia lhe ter ocorrido a surpreendia. No entanto, aquelas circunstâncias não eram normais, e ela não demorou a animar-se. Afinal, parecia-lhe possível, principalmente depois de todo o trabalho com pesos que vinha fazendo na academia nos últimos seis meses, com o incentivo de Beau.

Além disso, pensou Cassy, o que aconteceria se não conseguisse? Suas perspectivas presentes eram sombrias. Chocar-se contra a balaustrada não parecia muito pior e talvez fizesse mais do que machucá-la.

Subindo no parapeito, Cassy empurrou a folha da janela até sua altura máxima, criando uma abertura quadrada de cerca de um metro e meio de lado. Daquela posição, o chão parecia dramaticamente mais distante.

Ela fechou os olhos. Seu coração estava disparado e a respiração, acelerada. Sua coragem vacilou. Lembrou-se de certa vez em que fora ao circo ainda criança, quando vira os trapezistas, e pensara que nunca poderia fazer aquilo. Em seguida, porém, pensou em Eugene e Jesse, e naquilo em que Beau estava se transformando. Pensou no horror de perder a própria identidade.

com súbita decisão, Cassy abriu os olhos e saltou no ar.

Pareceu-lhe transcorrer uma eternidade antes que suas mãos fizessem contato com a árvore. Talvez recorrendo a instintos arbóreos que ela não sabia possuir, Cassy calculara a distância com perfeição. Suas mãos alcançaram o galho no lugar certo e ela o agarrou. Agora a questão era se poderia manter-se segura, enquanto suas pernas balançavam-se abaixo dela.

Houve alguns momentos de terror antes que a oscilação parasse. Ela conseguira! Mas ainda não havia acabado. Estava a seis metros do chão, embora agora estivesse suspensa sobre a grama e não sobre o calçamento.

Balançando as pernas para ajudar a impulsionar o corpo, Cassy deslizou pelo galho até alcançar um ponto em que pôde apoiar o pé direito num galho mais baixo. Dali foi relativamente fácil descer pela árvore e por fim saltar para a grama.

No momento em que seus pés tocaram o chão, Cassy estava de pé e já caminhando. Ela resistiu à tentação de sair correndo pelo extenso gramado, sabendo muito bem que isso apenas chamaria atenção para si. Em vez disso, obrigou-se a seguir sem pressa, depois de pular a balaustrada baixa. Então seguiu o caminho até a frente da casa.

Imitando o sorriso, o olhar perdido voltado para um plano médio e o caminhar relaxado dos infectados, Cassy misturou-se à multidão de pessoas infectadas que se dirigiam ao portão. Seu coração quase saltava pela boca e ela estava aterrorizada, mas o artifício funcionou. Ninguém prestou atenção nela. A parte mais difícil, porém, era forçar-se a não olhar à sua volta, principalmente para os cães.

— Como sabe para onde estamos indo? — perguntou Pitt. Haviam percorrido quilômetros de uma trilha que, em certos pontos, mal se distinguia do deserto propriamente dito.

— Estamos quase lá — disse Harlan.

— Ah, por favor! — exclamou Sheila, impaciente. — Estamos no meio do maldito deserto. Sem a estrada pavimentada, isso aqui se parece mais com o fim do mundo do que a área em torno do posto de gasolina abandonado. Isso é algum tipo de brincadeira?

— Não é nenhuma brincadeira — disse Harlan. — Tenha paciência! Estou oferecendo a todos vocês uma chance de ajudar a salvar a raça humana.

Sheila lançou um olhar a Pitt, mas a atenção deste estava totalmente concentrada na trilha. Sheila deixou escapar um sonoro suspiro. Justo quando ela começava a olhar Harlan com simpatia, estava ficando claro que ele os estava conduzindo a uma tentativa infrutífera. Não havia laboratório ali no deserto. A situação toda era absurda.

— OK — disse Harlan. — Pare ali, ao lado daquele cacto florido.

Pitt fez o que lhe era mandado. Pisou no freio e desligou o motor.

— Muito bem. Desçam todos — ordenou Harlan, abrindo a porta de correr e saltando para a areia. Jonathan seguiu-o imediatamente.

— Vamos — Harlan encorajou os outros.

Sheila e Pitt entreolharam-se, revirando os olhos. Estavam parados no meio do deserto. Exceto por algumas pedras grandes e arredondadas espalhadas aqui e ali, um punhado de cactos e algumas dunas movediças, nada havia em torno deles.

Harlan caminhara cerca de seis metros antes de se voltar. Surpreendeu-se por ninguém o estar seguindo. Jonathan saltara da van, mas, como os outros não haviam se movido, ele hesitou.

— Pelo amor de Deus! — queixou-se Harlan. — Do que vocês precisam? De um convite impresso?

Sheila suspirou e desceu do veículo. Pitt seguiu-lhe o exemplo. Em seguida, os três acompanharam Harlan, que parecia dirigir-se a lugar nenhum.

Sheila enxugou o suor da testa.

— Não sei o que pensar disso tudo — sussurrou ela. — Num minuto esse sujeito parece um enviado de Deus, no outro parece totalmente biruta. E, para completar, aqui está mais quente que o inferno.

Harlan parou e esperou que os outros o alcançassem. Apontou para o chão sob seus pés e disse:

— Bem-vindos ao Laboratório de Reação à Guerra Biológica Washburn-Kraft.

Antes que alguém pudesse responder àquele comentário absurdo, Harlan abaixou-se e agarrou uma argola camuflada. Então puxou-a para cima e uma porção circular do chão do deserto ergueu-se. Ali debaixo havia uma abertura arredondada, revestida com aço inoxidável. Apenas o topo de uma escada era visível.

Harlan fez um gesto abrangente com a mão.

— Toda essa área que vai daqui até alguns quilômetros de Paswell encontra-se repleta de instalações subterrâneas. Esse deveria ser um grande segredo, mas os índios nativos o conheciam.

— Trata-se de um laboratório operante? — interrogou Sheila. Aquilo era bom demais para ser verdade.

— Ele estava sendo mantido numa espécie de suspensão temporária das funções vitais — informou Harlan. — Foi construído no auge da guerra fria e então considerado supérfluo quando a ameaça de uma guerra bacteriológica contra os Estados Unidos diminuiu. Exceto por alguns poucos burocratas que mantinham o lugar abastecido, foi praticamente esquecido; pelo menos, é essa a minha avaliação da situação. Seja como for, depois que toda essa confusão começou, vim para cá e o pus em funcionamento a todo vapor. Portanto, respondendo à sua pergunta: sim, trata-se de um laboratório operante.

— E é essa a entrada? — perguntou Sheila, inclinando-se sobre a borda da abertura e olhando lá para baixo. Dali podiam-se ver luzes. A escada descia em linha reta por uns dez metros.

— Não, essa é uma saída de emergência, além de ser uma abertura para ventilação — disse Harlan. — A entrada principal fica perto de Paswell, mas eu tenho medo de usá-la e ser visto por algum de meus antigos pacientes.

— Podemos entrar? — indagou Sheila.

— Ei, é por isso que estamos aqui — respondeu Harlan. — Entretanto, antes de dar início ao tour, quero cobrir a van com uma lona para camuflagem.

Todos desceram a escada, alcançando um corredor branco e sofisticado, iluminado por fileiras de lâmpadas fluorescentes. De um compartimento fechado na base da escada, Harlan apanhou a lona que mencionara. Pitt voltou à superfície com ele para ajudá-lo.

— Legal, hein! — disse Jonathan a Sheila, enquanto esperavam. O corredor parecia estender-se infinitamente, em ambas as direções.

— Mais do que legal — replicou Sheila. — É uma dádiva de Deus. E, se pensarmos que foi construído para impedir um ataque bacteriológico dos russos e, em vez disso, está sendo usado com o mesmo propósito contra alienígenas, é verdadeiramente irônico.

Quando Harlan e Pitt tornaram a descer, Harlan levou-os ao que disse ser o sentido norte.

— Vai levar algum tempo para vocês se orientarem — disse ele. — Até lá, recomendo que fiquem todos juntos.

— Onde estão as pessoas que mantinham esse lugar conservado? — indagou Sheila.

— Elas vinham em turnos, como os sujeitos que costumavam guarnecer os silos subterrâneos de mísseis — respondeu Harlan. — Mas depois que foram infectados, acho que esqueceram do lugar ou então foram embora da cidade. Comentava-se em Paswell que, por algum motivo, muita gente estava indo para Santa Fé. Seja como for, eles não estão mais por aqui, e a essa altura não creio mais que voltem.

Chegaram a uma câmara de compressão. Harlan a abriu e fez com que todos entrassem. Ali dentro havia chuveiros e macacões azuis. Harlan fechou a porta e girou alguns dispositivos. Ouviu-se o ar entrando no compartimento.

— Isso era para se certificarem de que nenhum agente de uma guerra bacteriológica entrasse no laboratório, exceto em frascos apropriados — disse Harlan. — Obviamente essa não é a nossa preocupação no momento.

— De onde vem a energia? — perguntou Sheila.

— É nuclear. É mais ou menos como um submarino nuclear. O lugar é totalmente independente do que acontece na superfície.

Todos sentiram os ouvidos obstruírem-se à medida que crescia a pressão. Quando esta se igualou ao interior do laboratório, Harlan abriu a porta interna.

Sheila estava estupefata. Nunca vira um laboratório assim em toda a sua vida. Era constituído por uma série de três salas imensas, com incubadoras e freezers grandes o bastante para que se entrasse neles. E, para aumentar sua surpresa, havia o fato de que todo o equipamento era de última geração.

— Esses freezers são um pouquinho assustadores — disse Harlan, dando tapinhas numa das portas de aço inoxidável. — Eles contêm praticamente todos os tipos de agentes biológicos latentes conhecidos, tanto bacterianos quanto virais. — Em seguida, apontou para uma outra porta com grandes ferrolhos, como um enorme cofre. — Ali há uma biblioteca sobre agentes químicos. Um dos vilões de James Bond faria uma festa aí dentro.

— O que tem atrás daquelas portas? — perguntou Sheila, indicando portas de segurança fechadas a pressão, com visores redondos semelhantes a vigias.

— Essas levam aos quartos de confinamento e a uma pequena enfermaria — informou Harlan. — Creio que consideraram essas instalações necessárias para o caso de algum dos funcionários sucumbir ao que quer que estivessem tentando dominar.

— Olhem! — exclamou Jonathan, apontando na direção de uma série de discos negros posicionados embaixo de uma coifa de exaustão.

— Não toquem neles! — advertiu Harlan, ansioso.

— Não se preocupe — disse Jonathan. — Sabemos tudo sobre eles.

Todos se aproximaram e examinaram a coleção.

— Eles podem fazer mais do que infectar as pessoas — disse Sheila.

— Eu que o diga! — replicou Harlan. — Venham comigo.vou lhes mostrar uma coisa.

Harlan conduziu-os por um corredor curto para o qual davam várias salas de raios X, assim como um aparelho de ressonância magnética. Ele abriu a porta da primeira sala de raios X Ali dentro, o aparelho estava retorcido, como se houvesse sido derretido e puxado para o próprio centro.

— Meu Deus! — exclamou Sheila. — Parece exatamente o que ocorreu no quarto da enfermaria estudantil. O senhor sabe como isso aconteceu?

— Acho que sim — disse Harlan. — Tentei radiografar um daqueles discos pretos e ele não gostou. Isso pode parecer loucura, mas acho que ele criou um buraco negro em miniatura. Meu palpite é que essa é a forma como eles chegam e se vão daqui.

— Legal! — exclamou Jonathan. — E como é que fazem isso?

— Quisera eu saber — disse Harlan. — Masvou lhes contar a explicação que dei para mim mesmo: De alguma maneira, eles têm a capacidade de gerar energia interna suficiente para criar um imenso campo gravitacional instantâneo, de modo a implodirem subatomicamente.

— E para onde vão? — perguntou Jonathan.

— Bem, essa é uma pergunta difícil — disse Harlan. — Talvez devamos recorrer à teoria do buraco de minhoca do cosmos. Nesse caso, estariam num outro universo paralelo.

— Uau! — tornou a exclamar Jonathan.

— Isso é um pouco demais para mim — disse Pitt.

— Para mim também — concordou Sheila. — Vamos voltar ao laboratório. — Quando retornavam, ela perguntou: — E aqui embaixo tem camundongos e células de mieloma disponíveis para a produção de anticorpo monoclonal?

— Temos mais do que camundongos — disse Harlan. — Temos ratos, cobaias, coelhos e até mesmo alguns macacos. Na verdade, metade do meu tempo é gasto alimentando esses camaradas.

— E quanto a acomodações? — indagou Sheila. Cansada e suja como estava, não podia deixar de pensar no prazer de um banho de chuveiro e um cochilo.

— Por aqui — disse Harlan, conduzindo-os ao corredor principal, onde atravessaram uma porta dupla. Primeiro chegaram a uma sala de estar gigantesca, com uma imensa TV e toda uma parede repleta de livros. Ao lado dessa sala, uma área de refeições, adjacente a uma moderna cozinha. Além da sala de jantar e levando a um corredor central, havia vários quartos, todos com seu próprio banheiro.

— Ei, está perfeito — disse Jonathan, vendo que cada quarto possuía seu próprio terminal de computador.

— Isso é bom — concordou Pitt, olhando para a cama. — É muito bom.

Assim que Cassy se viu fora do instituto, conseguiu encontrar um carro com facilidade. Havia centenas deles simplesmente abandonados, como se muitas das pessoas infectadas não estivessem mais interessadas neles. Aquela gente parecia ter preferência por caminhar.

Logo que encontrou um telefone, ela tentou ligar para a cabana. Depois de deixar o telefone tocar vinte vezes, desistiu. Era evidente que não havia ninguém lá, o que só podia significar uma coisa: que tinham sido descobertos. Aquela constatação foi muito dolorosa para Cassy e, por mais de uma hora, ela ficou sentada no carro do qual se apoderara sentindo-se deprimida ao ponto da paralisia. Seu desejo de falar pelo menos uma vez mais com Pitt e com os outros fora frustrado.

O que por fim arrancou Cassy das profundezas de seu torpor foi uma súbita sensação de formigamento em seu nariz, seguida por uma série de espirros violentos. Instantaneamente ela soube o que estava acontecendo: os sintomas da gripe alienígena estavam começando.

Cassy voltou ao telefone e, apesar de saber que era em vão, tentou ligar novamente para a cabana. Como previra, continuou sem obter resposta. Porém, enquanto o telefone tocava, ela pensou que havia pelo menos uma pequena possibilidade de que, mesmo que a cabana tivesse sido descoberta, um ou mais deles houvesse escapado. Foi então que pensou naquilo que Jonathan tivera tanta paciência em lhe ensinar: como entrar na Internet.

Quando Cassy voltou ao carro, a irritação que sentia no nariz já se espalhara para a garganta, e ela começou a tossir. A princípio era só uma espécie de pigarro, mas logo progrediu, transformando-se em tosse.

Cassy seguiu para a cidade. Ainda havia algum trânsito de automóveis, mas o tráfego era leve. Em contraste, viam-se milhares de pessoas perambulando pelas ruas e outras atarefadas com todas as necessidades da vida. Muitos faziam trabalhos de jardinagem. Todos sorriam e havia pouca conversa.

Cassy estacionou o carro e saltou para a calçada. Embora muitos estabelecimentos comerciais ainda estivessem funcionando, outros estavam desertos, como se os funcionários houvessem se levantado num momento arbitrário e atravessado a porta. Nada tinha sido trancado.

Um dos estabelecimentos vazios era uma tinturaria. Cassy entrou, mas não achou o que estava procurando. Porém, encontrou, na porta ao lado, uma firma de fotocópias. O que ela queria era um computador conectado a um Modem.

Cassy sentou-se e ativou a tela. Ao deixar a loja, os funcionários não haviam nem mesmo desligado o equipamento. Lembrando-se do nome que Jonathan usara em suas conexões na Internet, Jumpin Jack Flash, Cassy começou a digitar.

— Isso é tudo que você tem? — perguntou Sheila a Harlan, enquanto segurava um pequeno frasco contendo um líquido claro.

— Por enquanto, é só — confirmou Harlan. — Mas tenho um grupo de camundongos com hibridomas implantados em suas cavidades-eritoneais, assim como um monte de culturas de células cozinhando na incubadora. Certamente podemos extrair mais desse anticorpo monoclonal. Mas a sua ação ainda é fraca. Eu preferiria tentar encontrar uma célula produtora de anticorpos mais ávida.

Sheila, Pitt e Jonathan haviam tomado banho e descansado um pouco, mas estavam muito elétricos para conseguir dormir. Sheila estava especialmente ansiosa para começar a trabalhar e instara Harlan a mostrar-lhe tudo o que fizera.

Jonathan e Pitt seguiram-nos de perto. Pitt estava tendo dificuldades em acompanhar as explicações de Harlan, enquanto Jonathan nem mesmo tentava. Como não havia estudado biologia a fundo, aquilo tudo lhe soava como grego. Então Jonathan ignorou a todos, sentou-se diante de um dos muitos terminais disponíveis e começou a digitar.

—vou mostrar a vocês dois o processo usado para selecionar linfócitos B do baço emulsificado de camundongos — ia dizendo Harlan. — E, por sua vez, vocês podem me mostrar os virions que, junto com a mãe de Jonathan, conseguiram isolar.

— Não temos muita certeza de que os virions se encontrem na cultura tecidual — informou Sheila. — Só suspeitamos que estejam. Estávamos prestes a isolá-los.

— Bem, podemos verificar isso facilmente — replicou Harlan.

— Ah, meu Deus! — gritou Jonathan, de repente. Assustados com o grito, todos olharam na direção de Jonathan, cujos olhos estavam grudados no monitor.

— O que aconteceu? — perguntou Pitt, nervoso.

— É uma mensagem de Cassy! — gritou Jonathan.

Pitt praticamente saltou por sobre uma bancada do labora tório, parando ao lado de Jonathan. Então fitou o monitor com olhos arregalados.

— Ela está digitando uma mensagem neste instante — informou Jonathan. — Ou seja, ela também está diante do computador neste exato momento.

— Isso é fantástico — Pitt conseguiu dizer.

— Que garota legal — comentou Jonathan. — Está fazendo exatamente o que ensinei a ela.

— O que ela está dizendo? — perguntou Sheila. — Está dizendo onde está?

— Ah, não! — gemeu Jonathan. — Ela disse que foi contaminada.

— Droga! — afligiu-se Pitt, rilhando os dentes.

— Diz que já está experimentando os primeiros sintomas da gripe — continuou Jonathan. — Ela quer nos desejar boa sorte.

— Entre em contato com ela! — gritou Pitt. — Agora, ao vivo, antes que ela finalize.

— Pitt, isso é inútil — disse Sheila. — Só vai tornar as coisas mais difíceis. Ela está infectada!

— Ela pode estar infectada, mas está claro que ainda é Cassy — retrucou Pitt. — De outra forma, não estaria nos desejando boa sorte. — Ele fez com que Jonathan chegasse para um lado e começou a digitar, furiosamente.

Jonathan ergueu os olhos para Sheila, que balançou a cabeça. Embora soubesse que aquilo estava errado, não tinha coragem de impedi-lo.

Para Cassy, a imagem no monitor era um borrão intermitente. À medida que começara a digitar, as lágrimas haviam aflorado. Fechando os olhos por um instante e enxugando-os com as costas da mão, ela tentou controlar-se. Queria deixar uma última mensagem para Pitt. Queria lhe dizer que o amava.

Abrindo os olhos e levando as mãos outra vez ao teclado, Cassy estava prestes a digitar a última frase quando uma mensagem simultânea surgiu na tela. Ela fitou, atônita, as letras que diziam: “Cassy, sou eu, Pitt. Onde você está?”

Foram os segundos mais longos da vida de Pitt. Ele olhava fixamente para o monitor, rezando para que ela respondesse. Então, como se atendendo às suas preces, os caracteres negros começaram a saltar do fundo luminoso.

— É isso aí! — gritou Pitt, enquanto desferia no ar um golpe com a mão fechada. — Eu a peguei. Ela sabe que estou aqui.

— Que ela está dizendo? — Sheila aventurou-se a perguntar. Teve medo de fazer aquela pergunta porque tinha certeza de que esse contato iria resultar em sofrimento e problemas.

— Está dizendo que não está muito longe daqui — informou Pitt. —vou lhe dizer que venha ao meu encontro.

— Pitt, não! — gritou Sheila. — Mesmo que ela ainda não seja um deles agora, logo, logo vai ser. Você não pode se arriscar. E com certeza não pode expor este laboratório.

Pitt olhou para Sheila. Sua dor emocional era palpável. Sua respiração saía em curtos arquejos.

— Não posso abandoná-la—disse ele. — Simplesmente, não posso.

— Mas precisa — insistiu Sheila. — Você viu o que aconteceu a Beau.

Os dedos de Pitt pairavam acima do teclado. Ele nunca experimentara uma indecisão tão angustiante.

— Esperem — disse Harlan, subitamente. — Pergunte a ela quanto tempo se passou desde que foi infectada.

— Que diferença isso faz? — perguntou Sheila, irritada com a interferência de Harlan num momento como aquele.

— Pergunte a ela — insistiu Harlan, aproximando-se e parando atrás de Pitt.

Pitt digitou a pergunta. A resposta veio instantaneamente: cerca de quatro horas. Harlan consultou o relógio em seu pulso e mordeu a parte interna da bochecha, enquanto pensava.

— O que está passando por sua cabeça? — perguntou Sheila, fitando Harlan nos olhos.

— Tenho uma pequena confissão a fazer — anunciou ele.

— Eu não contei toda a verdade sobre aqueles discos negros. Um deles me espetou, quando eu recolhia o último lote.

— Então você é um deles! — exclamou Sheila, horrorizada.

— Não, pelo menos não creio que seja — afirmou Harlan.

— Combinei meu fraco anticorpo monoclonal à proteína ativadora, e desde então venho tomando injeções dessa droga. Comecei a fungar, mas não cheguei a desenvolver a gripe.

— Isso é fantástico! — exclamou Pitt. — Deixe-me contar a Cassy.

— Espere! — ordenou Sheila. — Quanto tempo depois de ser espetado você auto-aplicou o anticorpo?

— Essa é minha única preocupação — disse Harlan. — Houve um intervalo de três horas. Eu me encontrava em Paswell quando aconteceu. Levei três horas para chegar até aqui.

— Com Cassy já se passaram quatro horas — lembrou Sheila. — O que você acha?

— Acho que vale a pena tentar — afirmou Harlan. — Podemos colocá-la num dos quartos de confinamento e ver o que acontece. Se não funcionar, não tem como ela sair de lá. Aqueles quartos são como masmorras.

Pitt não precisava de nenhum outro incentivo. Sem mais palavras, começou a contar a Cassy que dispunham de um anticorpo para a proteína e a lhe dar as indicações de como chegar ao posto de gasolina abandonado.

— Por que você não nos contou que fora espetado? — interrogou Sheila. Ela não sabia se devia sentir-se zangada ou encorajada por essa nova informação.

— Para ser franco — disse Harlan —, temi que vocês não acreditassem que eu estivesse bem. Mas eu ia lhes contar, mais cedo ou mais tarde. Na verdade, o fato de que a droga aparentemente funcionou me faz sentir um tanto otimista.

— Bem, eu diria o mesmo! — exclamou Sheila. — É a primeira informação positiva até aqui.

Pitt finalizou sua comunicação com Cassy e foi até Sheila e Harlan.

— Espero que tenha sido o mais discreto possível com a indicação de como chegar aqui — disse Harlan. — com certeza não queremos um mundo de pessoas infectadas lá no posto à sua espera, quando você chegar.

— Tentei ser — disse Pitt. — Mas ao mesmo tempo quis me certificar de que Cassy encontraria o lugar. É tão ermo por lá.

— Na verdade, o risco provavelmente é muito pequeno — tranqüilizou-o Harlan. — Minha opinião é de que as pessoas infectadas não estão usando a Rede. Aparentemente, não precisam delapois parecem saber o que os outros estão pensando.

— O senhor não vem comigo? — Pitt indagou a Harlan.

— Acho que é melhor não — disse Harlan. — Só resta uma dose incompleta de meu anticorpo.vou ter de me ocupar em sua produção para que haja uma quantidade maior disponível quando sua amiga chegar aqui. Isso significa que precisará encontrar o caminho sozinho. Acha que consegue?

— Parece que não tenho muita escolha — replicou Pitt. Harlan entregou-lhe o frasco do anticorpo que lhe restava, junto com uma seringa.

— Espero que saiba como aplicar uma injeção — observou ele.

Pitt comentou que acreditava que pudesse fazê-lo pois trabalhara no hospital durante três anos.

— É melhor aplicar por via intravenosa — sugeriu Harlan. — Mas esteja preparado para uma ressuscitação boca a boca se ela apresentar uma reação anafilática.

Pitt visivelmente engoliu em seco, mas assentiu.

— E é bom também você levar isso — disse Harlan, desafivelando o coldre em que se encontrava a Colt 45. — Aconselho-o a usá-la, se precisar. Lembre-se: as pessoas infectadas são muito incisivas quando se trata de infectá-lo, se perceberem que você ainda não foi contaminado.

— E quanto a mim? — indagou Jonathan. —vou com Pitt. Ele pode ter problemas em encontrar o caminho de volta, e quatro olhos são melhores do que dois.

— Acho que é melhor você ficar — opinou Sheila. — Temos tarefas de sobra para você. — Ela enrolou as mangas. — E vamos estar muito ocupados.

Uma vez que Cassy fora localizada, trazida para o instituto e subseqüentemente infectada, o progresso no Pórtico acelerou-se. Embora os milhares de trabalhadores não precisassem de que lhes fosse dito individualmente o que fazer, no fim suas instruções vinham mesmo era de Beau. Por conseqüência, era preciso que este passasse uma boa parte de seu tempo nas proximidades da construção e que sua mente estivesse isenta de pensamentos irrelevantes. com Cassy no andar de cima, prestes a se tornar um dos infectados, Beau desempenhava suas responsabilidades com facilidade.

O avanço chegara mesmo a um ponto em que era possível energizar brevemente uma parte das placas elétricas. O teste fora um sucesso, embora indicasse que algumas partes do sistema precisassem de uma maior blindagem. Após comunicar essas instruções, Beau fez uma pausa.

Subiu a escada principal à maneira normal dos bípedes, embora tivesse consciência do fato de que provavelmente seria mais fácil para ele agora subir pulando, galgando seis ou oito degraus de uma só vez. Houvera um considerável aumento de seus quadríceps.

-Alcançando o corredor do andar superior, ele pressentiu que havia alguma coisa errada. Não percebera antes, no andar de baixo, porque o nível de comunicação não-falada em redor do Pórtico era muito intenso. A essa altura, ele já deveria estar recebendo estímulos enviados pela consciência coletiva desenvolvendo-se em Cassy. Como não houvesse absolutamente nada, ele temeu que ela tivesse morrido.

Beau apressou o passo. Seu medo era de que talvez Cassy abrigasse algum gene desastroso ainda por se manifestar. Naquele caso, o vírus teria então se autodestruído. Com uma sensação de pânico que ele não compreendia, Beau lutou para abrir a porta trancada. Preparando-se para depararse com o corpo inerte caído sobre o colchão, ficou ainda mais surpreso ao encontrar o quarto vazio.

Beau olhou pela janela aberta. Dirigiu-se até ela e olhou para o chão lá fora. Viu a calçada e a balaustrada. Em seguida, seus olhos subiram pela árvore e alcançaram o galho. De repente, ele soube. Ela havia fugido.

Deixando escapar um grito que ecoou pela enorme mansão, ele saiu do quarto correndo e disparou escadas abaixo. Estava dominado pela raiva e esta não era saudável para o bem coletivo. A consciência coletiva raras vezes havia experimentado a raiva e não sabia como enfrentá-la.

Beau entrou no salão de baile e instantaneamente a azáfama cessou. Todos os olhos se voltaram para ele, sentindo a mesma raiva, mas sem ter idéia do porquê. As narinas de Beau tremiam, enquanto seus us olhos procuravam Alexander. Por fim, avistou-o na bancada dos controles de comando.

Com arrogância Beau dirigiu-se até seu tenente e agarrou-lhe o braço com seus dedos serpentiformes.

— Ela se foi! Quero que a encontrem! Agora!

 

12:45

Pitt chutou alguns seixos no caminho que levava da estrada ao velho posto de gasolina. Abaixou-se e recolheu outros, atirandoos distraidamente contra as antigas bombas. As pedras retiniram contra o metal enferrujado.

Protegendo os olhos contra o sol, que a essa altura estava significativamente mais opressivo em calor e intensidade do que duas horas antes, Pitt esquadrinhou a estrada de pista dupla até o ponto em que ela desaparecia no horizonte. Estava começando a se preocupar. Pensou que ela já estaria lá quando ele chegasse.

No momento em que ia se abrigar na sombra da varanda, seus olhos perceberam o clarão do sol refletindo num pára-brisa. Um veículo estava se aproximando.

Inconscientemente, a mão de Pitt envolveu a coronha da Colt. Havia sempre a possibilidade de não ser Cassy.

À medida que o veículo foi chegando mais perto, Pitt pôde perceber que se tratava de uma perua de último tipo, com pneus grandes e um compartimento de bagagem no teto. O carro vinha em grande velocidade.

Por um momento, Pitt considerou a idéia de se esconder no interior do prédio, assim como Harlan fizera, mas logo desistiu da idéia. Afinal, a van de Jesse estava parada ali em frente, bem à vista.

O veículo entrou no posto, parando. Pitt só teve certeza de que era Cassy quando ela abriu a porta e o chamou, gritando. Os vidros do carro eram escuros.

Pitt alcançou o veículo a tempo de ajudar Cassy a descer. Ela tossia e seus olhos estavam avermelhados.

— Talvez você não devesse chegar muito perto — disse Cassy, numa voz profundamente anasalada. — Não temos certeza se isso pode passar de uma pessoa para outra, como uma infecção.

Ignorando seu comentário, Pitt envolveu-a num caloroso abraço. O único motivo por que a soltou logo foi sua preocupação em administrar-lhe o anticorpo.

— Eu trouxe um pouco do medicamento que mencionei pela Internet — disse Pitt. — Obviamente, acreditamos que é melhor injetá-lo em seu sistema o mais rápido possível, e isso significa que devemos fazê-lo por via intravenosa.

— Onde vamos fazer isso? — indagou Cassy.

— Na van.

Deram a volta pelo veículo, até a porta de correr.

— Como está se sentindo? — perguntou Pitt.

— Péssima — admitiu Cassy. — Não consegui ficar confortável naquele 4x4; o percurso é muito duro. Todos os meus músculos estão doendo. E também estou com febre. Há meia hora, eu estava tremendo, se é que você pode acreditar nisso neste calor.

Pitt abriu a porta da van e fez com que Cassy se deitasse no banco do veículo. Preparou a seringa, mas então, após fazer o torniquete, confessou sua inexperiência em venopunção.

— Não quero saber — disse Cassy, virando o rosto para o outro lado. — Simplesmente faça o que tem de fazer. Afinal, você vai ser médico um dia.

Pitt assistira à administração intravenosa de medicamentos milhares de vezes, mas nunca tentara fazê-lo. A idéia de furar a pele de outra pessoa já era assustadora, quanto mais a de uma pessoa que ele amava. Mas as conseqüências de não fazê-lo sobrepujaram qualquer incerteza que sentia. No final, tudo correu bem e Cassy lhe disse isso.

— Você só está sendo boazinha — disse Pitt.

— Não, é sério. Eu quase não senti. — Mal acabou de elogiálo, Cassy teve um explosivo acesso de tosse que a deixou ofegante.

Pitt ficou momentaneamente apavorado com a possibilidade de que ela estivesse tendo uma reação à injeção, como Harlan advertira. Embora Pitt houvesse recebido treinamento em ressuscitação cardiopulmonar, na verdade também nunca pusera esses conhecimentos em prática. Ansioso, ele segurou-lhe a mão, em busca do pulso. Felizmente, este permanecia firme e regular.

— Me desculpe — Cassy conseguiu dizer, quando recuperou o fôlego.

— Você está bem? — perguntou Pitt. Cassy assentiu.

— Graças a Deus! — exclamou Pitt, engolindo para aliviar a garganta seca. — Você fica aqui no banco de trás. Temos um trajeto de uns vinte minutos pela frente.

— Para onde estamos indo? — indagou Cassy.

— Para um lugar que é como uma resposta a uma prece — respondeu Pitt. — Trata-se de um laboratório subterrâneo construído para enfrentar uma guerra química ou biológica. É perfeito para o que temos de fazer. Ou seja, se não conseguirmos fazer lá, então não conseguiremos em lugar nenhum. De tão bom que é. Além disso, tem uma enfermaria, onde podemos cuidar de você.

Pitt estava subindo para se acomodar ao volante, quando Cassy segurou-lhe o braço.

— E se esse anticorpo não funcionar? — perguntou ela. — Você me avisou que era fraco e muito rudimentar. O que farão comigo se eu me tornar um deles? Não quero pôr em risco o que vocês todos estão fazendo.

— Não se preocupe — tranqüilizou-a Pitt. — Tem um médico chamado Harlan McCay que também foi espetado e ainda está bem, após receber o anticorpo. Mas se o pior acontecer, existe por lá o que ele chama de quartos de confinamento. Mas tudo vai ficar bem. — Pitt deu um tapinha em seu ombro.

— Esqueça os clichês, Pitt — disse Cassy. — com tudo que está acontecendo, nem tudo vai ficar bem.

Pitt encolheu os ombros. Sabia que ela tinha razão. Ele acomodou-se ao volante, deu a partida no veículo e entrou na estrada. Cassy permaneceu deitada no banco traseiro.

— Espero que tenha aspirina nesse lugar para onde estamos indo — disse ela. Sentia-se mal como não se lembrava de jamais ter estado em toda sua vida.

— Tenho certeza que sim — afirmou Pitt. — Se a enfermaria for como o restante do lugar, então tem de tudo.

Seguiram em silêncio por alguns quilômetros. Pitt tinha a atenção concentrada na estrada, com medo de perder o local onde deveria tomar a trilha. Quando ia para o posto, ele erguera um pequeno monte de pedras para marcar o local, mas agora temia que aquele recurso não fosse suficiente. As pedras eram pequenas e tudo tinha a mesma coloração.

— Não posso deixar de pensar que minha vinda para cá tenha sido uma má idéia — disse Cassy, após outro acesso de tosse.

— Não fale assim! — pediu Pitt. — Não quero ouvir você falar isso.

— Faz mais de seis horas agora. Talvez muito mais. Eu não tinha muita certeza da hora quando fui espetada. Tanta coisa aconteceu.

— O que houve com Nancy e Jesse? — perguntou Pitt. Era uma pergunta que ele evitara até ali, mas nesse momento queria mudar de assunto.

— Nancy foi contaminada — disse Cassy. — Eles a espetaram na minha presença. Só mais tarde fui entender por que não fizeram o mesmo comigo. com Jesse a história foi outra. Acredito que tenha acontecido com ele o mesmo que com Eugene. Mas não tenho certeza. Eu não vi. Só ouvi. E houve também um clarão de luz. Nancy disse que foi o mesmo que ocorreu antes.

— Harlan acredita que aqueles disquinhos sejam capazes de criar buracos negros em miniatura — contou Pitt.

Cassy estremeceu. A idéia de desaparecer por um buraco negro parecia-lhe o epítome da destruição. Até mesmo os átomos do indivíduo deixariam de existir no universo.

— Vi Beau outra vez — disse Cassy.

Pitt virou-se para olhar Cassy antes de voltar a atenção para a estrada. Era a última coisa que esperara ouvi-la dizer.

— Como ele estava? — indagou ele.

— Horrendo. E as transformações que sofreu são visíveis. Ele está num processo progressivo de mutação. A última vez que o vi era apenas um pedacinho de pele atrás da orelha. Agora é a maior parte do seu corpo. É estranho, pois as outras pessoas infectadas não pareciam estar mudando. Não sei se isso ainda vai acontecer ou se tem algo a ver com Beau ter sido o primeiro. Ele é definitivamente o líder. Todos fazem o que ele quer.

— Beau teve algo a ver com o fato de você ser contaminada? — perguntou Pitt.

— Receio que sim — disse Cassy. — Ele cuidou de fazer isso pessoalmente.

Pitt balançou a cabeça de modo imperceptível. Não podia acreditar que seu melhor amigo pudesse fazer uma coisa assim, mas então lembrou-se de que na verdade aquele não era mais seu melhor amigo. Era um alienígena.

— O mais horrível para mim foi que ainda havia uma parte do antigo Beau nele — contou Cassy. — Ele chegou a me dizer que sentia a minha falta e que me amava. Pode acreditar?

— Não — respondeu Pitt simplesmente, enquanto por dentro enfurecia-se por Beau, mesmo como um alienígena, ainda estar tentando tirar Cassy dele.

Beau estava de pé a um canto, em meio às sombras atrás da unidade de controle do Pórtico. Seus olhos cintilavam intensamente. Era difícil para ele concentrar-se nos problemas presentes, mas precisava fazê-lo. O tempo estava se esgotando.

— Talvez devêssemos tentar carregar algumas das placas elétricas novamente — gritou Randy para Beau, sentado diante dos controles. Uma pequena falha surgira e, até aquele momento, Beau ainda não apresentara uma solução.

Arrancado de um devaneio com Cassy, Beau tentou pensar. O problema, desde o início, fora criar energia suficiente para transformar em antigravidade a potente e instantânea gravidade de um grupo de discos negros trabalhando em conjunto e, ao mesmo tempo, manter o Pórtico intacto. A reação teria de durar apenas um nanossegundo, enquanto sugava matéria de um universo paralelo, trazendo-a para este. De repente, a resposta ocorreu a Beau: precisavam de uma blindagem maior.

— Muito bem — disse Randy, satisfeito em obter alguma orientação. Em seguida alertou os milhares de trabalhadores que, de imediato, voltaram em enxame para a superestrutura sobre a gigantesca construção.

— Acha que isso vai funcionar? — perguntou Randy a Beau. Beau comunicou que acreditava que sim. Aconselhou-o a prover de energia todas as placas elétricas por um instante, assim que o aumento da blindagem estivesse completo.

— O que me preocupa é que você me disse que devemos esperar os primeiros visitantes para esta noite — afirmou Randy. — Seria uma calamidade se não estivéssemos prontos. Esses indivíduos estariam perdidos no vazio como meras partículas primárias.

Beau resmungou. Estava mais interessado no fato de que Alexander entrara no salão. Beau observou-o aproximar-se. Não lhe agradavam as vibrações que estava captando. Dava para ver que eles não a haviam encontrado.

— Seguimos o rastro dela — relatou Alexander, propositadamente permanecendo fora do alcance de Beau. — Isso nos levou ao ponto onde ela se apoderou de um veículo. Agora o estamos procurando.

— Vocês irão encontrá-la! — rosnou Beau.

— Nós iremos encontrá-la — repetiu Alexander, num tom de voz tranqüilizador. — A essa altura, sua consciência deve estar se expandindo e isso irá nos ajudar bastante.

— Apenas encontrem-na — disse Beau.

— Sabe, não tenho uma explicação — declarou Sheila.

Ela e Harlan encontravam-se sentados no laboratório, em bancos com rodinhas, que lhes permitiam ir rapidamente de bancada em bancada.

Harlan tinha o queixo apoiado na mão e mordia a parte interna da bochecha, um hábito seu indicando que estava imerso em pensamentos.

— Será que fizemos alguma coisa estúpida? — perguntou Sheila.

Harlan balançou a cabeça negativamente.

— Repassamos nosso protocolo diversas vezes. Não foi um problema técnico. Tem de ser uma descoberta verdadeira.

— Vamos examinar mais uma vez — disse Sheila. — Eu e Nancy tomamos uma cultura tecidual de células nasofaríngeas humanas e acrescentamos a proteína ativadora.

— Qual foi o veículo usado para a proteína? — indagou Harlan.

— O meio de cultura tecidual normal — informou Sheila.

— A proteína é plenamente solúvel num meio aquoso.

— Muito bem, e depois?

— Simplesmente deixamos a cultura incubar — respondeu Sheila. — Pudemos ver que o vírus fora ativado pela rápida síntese do DNA além do que era preciso para a replicação celular.

— Como vocês testaram isso?

— Usamos adenovírus inativados para carregar sondas de DNA marcadas com fluoresceína para as células.

— E depois? — perguntou Harlan.

— Foi aí que paramos — disse Sheila. — Pusemos as culturas de lado, para incubar por mais tempo, na esperança de obter o vírus.

— Bem, e de fato conseguiram.

— É, mas olhe para essa imagem. Sob o microscópio eletrônico de varredura, o vírus parece ter passado por um moedor de carne em miniatura. Esse vírus é não-infeccioso. Alguma coisa o matou, mas nada havia na cultura que pudesse fazer isso. Não faz sentido.

— Não faz sentido, mas meu instinto me diz que isso está tentando nos informar alguma coisa — observou Harlan. — Só somos muito estúpidos para ver.

— Talvez devêssemos tentar outra vez — sugeriu Sheila.

— Talvez a cultura tenha aquecido demais no carro, durante a viagem.

— Você a embalou muito bem — objetou Harlan. — Não creio que seja essa a resposta. Mas, está bem, vamos repetir o procedimento. Além disso, tenho alguns camundongos que venho infectando. Suponho que possamos tentar isolar o vírus a partir deles.

— Grande idéia! — entusiasmou-se Sheila. — Talvez esse processo seja mais fácil.

— Não conte com isso — disse Harlan. — Os camundongos infectados são surpreendentemente fortes e inteligentes. Sou obrigado a mantê-los separados e trancados a sete chaves.

— Santo Deus! — espantou-se Sheila. — Está sugerindo que os camundongos também estão se tornando alienígenas?

— Receio que sim. De um modo ou de outro. Meu palpite é que, se houvesse camundongos infectados em quantidade suficiente num só lugar, eles poderiam coletivamente agir como um indivíduo único e inteligente.

— Talvez fosse melhor nos limitarmos às culturas teciduais por ora — disse Sheila. — Seja como for, temos de isolar vírus vivos e infecciosos. Esse tem de ser o próximo passo, se quisermos fazer algo em relação a essa infestação.

O silvo da câmara de compressão sendo pressurizada soou.

— Deve ser Pitt — gritou Jonathan, correndo para a porta e olhando pela janelinha. — É Pitt, e Cassy está com ele! — anunciou ele, aos gritos, para os outros dois.

Harlan apanhou um frasco de anticorpo monoclonal recém-extraído.

— Acho melhor eu assumir meu papel de médico por algum tempo — disse ele.

Sheila adiantou-se e fez sinal para que ele lhe entregasse o frasco.

— Medicina de emergência é a minha especialidade — disse ela. — Precisamos de você como imunologista.

Harlan entregou-lhe o frasco.

— com prazer. Sempre fui melhor pesquisador do que clínico. A câmara de compressão se abriu. Jonathan ajudou Cassy a transpor a porta. Ela estava pálida e febril. A excitação de Jonathan refreou-se. Ela estava mais doente do que ele imaginara. Ainda assim, ele não pôde se conter e perguntou onde estava sua mãe.

Cassy pôs a mão em seu ombro.

— Eu lamento — disse ela. — Fomos separadas logo depois de sermos apanhadas no supermercado. Não sei onde ela está.

— Ela foi espetada? — quis saber Jonathan.

— Receio que sim.

— Vamos! — chamou Sheila. — Temos trabalho a fazer. — Ela pôs o braço de Cassy sobre o próprio ombro. — Vamos levála para a enfermaria.

Amparada de um lado por Sheila e do outro por Pitt, Cassy foi conduzida através do laboratório até a enfermaria. No caminho, foi apresentada a Harlan, que manteve a porta aberta para passarem.

— Acho que seria melhor se ela ocupasse um dos quartos de confinamento — sugeriu Harlan, tomando a frente do grupo e levando-os até lá.

O lugar parecia um quarto comum de hospital, exceto pela entrada, que tinha uma câmara de compressão, de forma que o ambiente pudesse ser mantido a uma pressão inferior à do restante do complexo. A porta interna também podia ser trancada e o vidro do visor que havia nesta tinha 2,5cm de espessura.

Todos se apertaram no quarto. com a ajuda de Sheila e de Pitt, Cassy estendeu-se na cama e deixou escapar um suspiro de alívio.

Sheila foi direto ao trabalho. com a habilidade adquirida através de muita prática, ela começou o procedimento intravenoso e então administrou uma dose considerável do anticorpo monoclonal, injetando-o na entrada do conduto intravenoso.

— Você teve alguma reação adversa com a primeira injeção? — perguntou Sheila, momentaneamente acelerando o processo intravenoso a fim de carregar o restante do anticorpo para o sistema de Cassy.

Esta abanou a cabeça.

— Não houve problemas — disse Pitt. — Exceto por um acesso de tosse, que me assustou. Mas não creio que estivesse relacionado ao medicamento.

Sheila ligou Cassy a um monitor cardíaco. Os batimentos estavam normais e o ritmo, regular.

— Sentiu alguma diferença desde a primeira injeção? — indagou Harlan.

— Não que eu tenha percebido — respondeu Cassy.

— Não é de se espantar — observou Sheila. — Esses sintomas são principalmente de suas próprias linfocinas, as quais nós sabemos se elevam muito nos primeiros estágios.

— Quero agradecer a todos vocês por me deixarem vir para cá — disse Cassy. — Sei que estão se arriscando.

— Estamos felizes por tê-la conosco — afirmou Harlan, dando-lhe um aperto no joelho. — Quem sabe, como eu, você possa ser um valioso objeto experimental.

— Tomara — replicou Cassy.

— Está com fome? — perguntou Sheila.

— Nem um pouco. Mas certamente eu aceitaria uma aspirina.

Sheila olhou para Pitt.

— Acho que vou deixar isso a cargo do Dr. Henderson — disse ela, com um sorriso irônico. — Enquanto isso, o restante de nós precisa voltar ao trabalho.

Harlan foi o primeiro a sair. Sheila parou, com uma perna na câmara de compressão. Olhando para trás, ela acenou para Jonathan.

— Venha. Vamos deixar a paciente com seu médico. Jonathan seguiu-a, relutante.

— Você tinha razão — comentou Cassy. — Este lugar é inacreditável.

— É exatamente do que a doutora precisava — disse Pit — Deixe e ir buscar a aspirina.

Pitt levou alguns minutos para encontrar a farmácia e mais alguns para localizar a aspirina. Quando voltou ao quarto de confinamento, viu que Cassy estava dormindo.

— Não quero perturbá-la — disse ele.

— Você não está me perturbando — replicou Cassy, tomando a aspirina e então voltando a deitar-se. Ela bateu a mão sobre o colchão ao seu lado. — Sente-se um minuto — pediu ela. — Preciso lhe contar o que eu soube através de Beau. Esse pesadelo está prestes a se tornar ainda pior.

A tranqüilidade do deserto foi subitamente quebrada pela repetitiva concussão das pás do rotor e do estrondo da turbina militar a jato Huey, à medida que o helicóptero sobrevoava baixo a paisagem árida. Na cabine, Vince Garbon segurava um binóculo diante dos olhos. Ele disse ao piloto que seguisse uma faixa de macadame negro que cortava a areia de um horizonte ao outro. No banco de trás, iam dois ex-policiais da antiga unidade de Vince.

— A última notícia que tivemos é que o veículo tomou essa estrada — gritou Vince para o piloto acima do barulho do motor.

O piloto assentiu.

— Estou vendo alguma coisa lá na frente — anunciou Vince. — Parece um velho posto de gasolina, mas tem um veículo parado ali que se encaixa na descrição.

O piloto desacelerou o avanço do helicóptero. Vince segurava o binóculo o mais firme que podia.

— E. Acho que é ele mesmo. Vamos descer e dar uma olhada. O helicóptero baixou, erguendo um horrendo redemoinho de areia e pó ao fazê-lo. Quando os esquis encontravam-se firmes sobre o solo, o piloto desligou o motor. Os pesados rotores foram girando com menos velocidade até parar. Vince saltou da cabine.

A primeira coisa que ele verificou foi o automóvel. Abriu a porta e pôde imediatamente perceber que Cassy estivera ali. Verificou o porta-malas. Estava vazio.

Gesticulando na direção do prédio, os dois ex-policiais entraram. Vince permaneceu do lado de fora e percorreu com o olhar o horizonte. Estava tão quente que podia ver ondas de calor tremeluzindo no ar.

Os policiais saíram rapidamente e balançaram as cabeças, num gesto negativo. Ela não estava ali.

Vince fez sinal para que voltassem ao helicóptero. Estava perto. Podia senti-lo. Afinal, até onde ela podia seguir a pé naquele calor?

Pitt entrou no laboratório. Todos estavam trabalhando com tanta intensidade que nem mesmo ergueram a cabeça.

— Finalmente ela dormiu — informou ele.

— Você trancou a porta externa? — perguntou Harlan.

— Não — disse Pitt. — Acha que eu deveria?

— com certeza — respondeu Sheila. — Não queremos ter nenhuma surpresa.

— Eu volto já — disse Pitt, retornando à câmara de compressão. Ele olhou para Cassy, que ainda dormia tranqüilamente. A tosse havia diminuído de maneira significativa. Pitt trancou a porta.

Voltando ao laboratório, ele se sentou. Mais uma vez, ninguém pareceu perceber sua presença. Sheila estava absorta, inoculando culturas teciduais com a proteína ativadora. Harlan extraía mais anticorpo. Jonathan estava diante de um terminal de computador, usando fones de ouvidos e manipulando um joystick.

Pitt perguntou a Jonathan o que ele estava fazendo e o garoto tirou os fones do ouvido.

— É muito legal isso aqui — disse ele. — Harlan me mostrou como me conectar com todos os equipamentos de monitorização na superfície. Existem câmeras ocultas em cactos falsos, que podem ser direcionadas com este joystick. Há também aparelhos de escuta e sensores de movimento. Quer ver?

Pitt declinou da oferta. Em vez disso, contou a eles que Cassy lhe descrevera algumas coisas apavorantes e perturbadoras sobre os alienígenas.

— Como o quê, por exemplo? — perguntou Sheila, continuando a trabalhar.

— A coisa mais grave — disse Pitt — é que eles estão fazendo com que as pessoas infectadas construam uma imensa máquina futurista chamada Pórtico.

— E o que esse Pórtico supostamente irá fazer? — indagou Sheila, enquanto girava com delicadeza um frasco contendo uma cultura.

— É algum tipo de transportador — respondeu Pitt. — Disseram-lhe que essa máquina irá trazer para a Terra todos os tipos de criaturas alienígenas de planetas distantes.

— Meu Deus! — exclamou Sheila, pondo de lado o frasco.

— Não temos como enfrentar mais nenhum adversário. Talvez fosse melhor desistirmos.

— Quando é que esse Pórtico irá entrar em operação? — quis saber Harlan.

— Fiz a mesma pergunta — disse Pitt. — Cassy não sabe, mas ela tem a impressão de que será em breve. Beau lhe disse que estava quase finalizado. Cassy contou que havia milhares de pessoas trabalhando nele.

Sheila suspirou ruidosamente, exasperada.

— Que outras notícias encantadoras ela lhe deu?

— Alguns fatos interessantes — contou Pitt. — Por exemplo, o vírus alienígena chegou à Terra pela primeira vez há três bilhões de anos. Foi aí que introduziu seu DNA nas vidas que então se desenvolviam.

Os olhos de Sheila se estreitaram.

— Há três bilhões de anos? — interrogou ela. Pitt assentiu.

— Foi o que Beau lhe disse. Ele também contou que os alienígenas enviavam a proteína ativadora a cada cem milhões de anos terrestres ou coisa parecida, a fim de “despertar” o vírus e ver que tipo de vida evoluiu aqui e se valia a pena habitá-lo. O que ele queria dizer com anos terrestres ela não perguntou.

— Talvez isso esteja relacionado à capacidade deles de irem de um universo a outro — conjeturou Harlan. —Aqui no nosso, estamos presos na imobilidade do espaço-tempo. Porém, do ponto de vista de outro universo, o que é um bilhão de anos aqui pode ser apenas dez anos lá. Tudo é relativo.

A explicação de Harlan provocou um momento de silêncio. Pitt deu de ombros.

— Bem, não posso dizer que isso faça sentido para mim — disse ele.

— É como uma quinta dimensão — afirmou Harlan.

— Que seja — replicou Pitt. — Voltando, porém, ao que Cassy me disse, ao que parece esse vírus alienígena é responsável pelas extinções em massa ocorridas na Terra. Todas as vezes que voltavam aqui, as criaturas que haviam infestado não eram apropriadas, então eles iam embora.

326

— E todas as criaturas que eles haviam infectado morriam? — perguntou Sheila.

— Foi o que eu entendi. O vírus deve ter produzido alguma mudança letal no DNA, causando o desaparecimento de espécies inteiras, o que criou uma oportunidade para que novas criaturas evoluíssem. Ela me contou que Beau se referiu especificamente ao ocorrido com os dinossauros.

— Ora vejam só! — disse Harlan. — Adeus à teoria dos asteróides ou dos cometas.

— E como essas criaturas morriam? — indagou Sheila. — Quero dizer, qual era a causa específica de sua morte?

— Não creio que ela tenha essa resposta — declarou Pitt. — Pelo menos, não me disse. Mas posso lhe perguntar mais tarde.

— Isso pode ser importante — afirmou Sheila, olhando um ponto fixo, sem ver. Sua mente estava em alvoroço. — Então, supostamente, o vírus veio para a Terra há três bilhões de anos...

— Foi o que ela disse.

— O que você está pensando? — indagou Harlan.

— Existe alguma bactéria anaeróbia disponível no laboratório? — perguntou Sheila.

— Tem, claro — disse Harlan.

— Vamos pegar algumas e infectá-las com a proteína ativadora — sugeriu Sheila, com crescente excitação.

— OK—concordou Harlan, afável, pondo-se de pé. — Mas o que você tem em mente? Por que quer bactérias que proliferam sem oxigênio?

— Satisfaça a minha vontade — pediu Sheila. — Vá buscá-las enquanto eu preparo um pouco mais da proteína ativadora.

Beau abriu bruscamente as portas duplas que levavam da sala de estar ao deque que circundava a piscina. Ele saiu e atravessou o deque. Alexander seguia-o, correndo.

— Beau, por favor! — pediu Alexander. — Não vá! Precisamos de você aqui.

— Encontraram o carro dela — disse Beau. — Ela está perdida no deserto. Só eu posso encontrá-la. A essa altura ela já deve estar bem adiantada no processo de se tornar uma de nós.

Beau desceu os poucos degraus que levavam do deque ao gramado e dirigiu-se ao helicóptero que esperava. Alexander continuava a segui-lo.

— Certamente essa mulher não pode ser assim tão importante — disse ele. — Você pode ter qualquer mulher que quiser. Esse não é o momento de deixar o Pórtico. Nem mesmo testamos as placas na potência máxima. E se não estivermos prontos?

Beau girou sobre os calcanhares. Seus lábios estreitos estavam repuxados devido à fúria.

— Essa mulher está me enlouquecendo. Preciso encontra-la. Eu voltarei. Até lá, prossigam sem mim.

— Por que não esperar até amanhã? — insistiu Alexander.

— A Chegada já terá acontecido e então você pode ir procurá-la. Haverá tempo mais do que suficiente.

— Se ela estiver perdida no deserto, estará morta amanhã — contestou Beau. — Está decidido.

Beau virou-se para o helicóptero e rapidamente cobriu a distância que o separava do aparelho. Nos últimos metros, precisou abaixar-se sob as pás que giravam. Subiu para o assento da frente, ao lado do piloto, cumprimentou Vince no banco de trás com um gesto de cabeça e então fez sinal para que o piloto levantasse vôo.

— Faz quanto tempo? — perguntou Sheila.

— Cerca de uma hora — respondeu Harlan.

— Deve ser tempo suficiente — disse Sheila, impaciente. — Uma das primeiras coisas que descobrimos foi a rapidez com que a proteína ativadora funciona, uma vez que tenha sido absorvida por uma célula. Agora vamos submeter a cultura a uma leve dose de raios X moderados.

Harlan olhou Sheila de soslaio.

— Estou começando a ter uma idéia do que está se passando nesse seu cérebro — disse ele. — Você está tratando esse vírus como um provírus, que é o que ele é. E agora quer mudá-lo da forma latente para a lítica. Mas por que a bactéria anaeróbia? Por que sem oxigênio?

— Vamos ver o que acontece antes de eu explicar — decidiu Sheila. — Mantenha os dedos cruzados. Isso pode ser o que estamos procurando. Um calcanhar-de-aquiles alienígena.

Aplicaram uma dose de raios X na cultura bacteriana infectada sem perturbar sua atmosfera de dióxido de carbono. Quando preparavam lâminas para exame no microscópio eletrônico de varredura, Sheila percebeu que suas mãos tremiam de excitação. Ela torcia de todo coração para que estivessem à beira da descoberta.

Com uma de suas poderosas pernas, Beau chutou a porta do posto de gasolina abandonado. O golpe arrancou-a das dobradiças, fazendo-a espatifar-se contra a parede oposta do cômodo. Adentrando o sombrio interior, os olhos de Beau cintilaram intensamente. A viagem de helicóptero pouco fizera para aplacar sua fúria.

Ele ficou ali de pé na semi-escuridão por vários segundos, então virou-se e caminhou de volta à brilhante luz do sol.

— Ela nunca esteve ali — afirmou Beau.

— Não pensei que estivesse — disse Vince, agachado na areia do outro lado das velhas bombas de gasolina. — Tem outras marcas frescas de pneus aqui. — Ele se levantou e olhou na direção do leste. — Devia haver um segundo veículo. Talvez tenham-na apanhado.

— O que você está sugerindo? — perguntou Beau.

— Evidentemente, ela não apareceu em nenhuma cidade — afirmou Vince. — Caso contrário, teríamos sabido. Isso significa que está aqui no deserto. Sabemos que há grupos isolados de “fugitivos” escondendo-se nessa área e que até aqui evitaram a infecção. Talvez ela tenha se juntado a um deles.

— Mas ela está infectada — disse Beau.

— Eu sei. Essa parte é um mistério. Seja como for, acho que devíamos seguir ao longo desta estrada, no sentido leste, e ver se avistamos algum rastro saindo para o deserto. Deve haver algum tipo de acampamento.

— Muito bem — concordou Beau. — É o que vamos fazer. O tempo está se esgotando.

Eles voltaram para o helicóptero e levantaram vôo. O piloto recebeu ordens de voar alto o bastante para não erguer muita areia e pó e, ao mesmo tempo, baixo o suficiente para que vissem quaisquer trilhas afastando-se da estrada.

— Meu Deus, aí está ele — disse Harlan. Eles haviam focalizado um virion aumentado em sessenta mil vezes. Tratava-se de um vírus grande e filamentoso, parecendo um representante da família Filoviridae, com minúsculas projeções semelhantes a cílios.

— É espantoso pensar que estamos olhando para uma forma de vida alienígena altamente inteligente — comentou Sheila.

— Nós sempre pensamos em vírus e bactérias como sendo primitivos.

— Não creio que este seja o alienígena propriamente dito — afirmou Pitt. — Cassy mencionou que a forma viral era o que permitia ao alienígena resistir à viagem espacial e infestar outras formas de vida na galáxia. Ao que parece, Beau não sabia qual era a aparência da forma alienígena original.

— É possível que seja esse o propósito do Pórtico — disse Jonathan. — Talvez o vírus tenha gostado tanto daqui que os próprios alienígenas estejam vindo.

— Pode ser — concordou Pitt.

— Muito bem — disse Harlan a Sheila. — Então seu truquezinho com a bactéria anaeróbia funcionou. Nós vimos o vírus. Mas qual era seu motivo misterioso?

— O motivo estava no fato de o vírus ter vindo para a Terra há três bilhões de anos — respondeu Sheila. — Naquele tempo, a Terra era um lugar muito diferente. Havia muito pouco oxigênio na atmosfera primitiva. Desde então, as coisas mudaram. O vírus ainda está perfeito quando se encontra na forma latente ou até mesmo quando é ativado e transforma a célula. Mas, se for induzido a formar virions, ele é destruído pelo oxigênio.

— Muito interessante — disse Harlan, baixando os olhos para a cultura cuja tampa havia sido retirada, expondo-a assim ao ar do laboratório. — Se for esse o caso, então veremos vírus danificados e não-infecciosos se fizermos outra lâmina.

— É exatamente o que espero — afirmou Sheila.

Sem perder tempo, Sheila e Harlan lançaram-se ao trabalho, preparando uma segunda amostra. Pitt ajudava-os como podia. Jonathan voltou a brincar com o sistema de segurança computadorizado.

Quando Harlan focalizou a nova lâmina, ficou logo evidente que Sheila estava certa. Era como se os vírus tivessem sido parcialmente comidos.

Sheila e Harlan ergueram-se com um salto e, entusiasticamente, bateram as mãos espalmadas e se abraçaram. Estavam extasiados.

— Que idéia brilhante! — exclamou Harlan. — Você merece os parabéns. E um prazer ver a ciência em ação.

— Se estivéssemos praticando ciência de verdade — disse Sheila —, teríamos de provar exaustivamente essa hipótese. Por ora, vamos aceitá-la pelo que parece ser.

— Ah, de acordo — assentiu Harlan. — Mas faz sentido. É impressionante o quanto o oxigênio pode ser tóxico e como poucas pessoas leigas sabem disso.

— Acho que não estou entendendo — interveio Pitt. — De que modo isso irá nos ajudar?

Os sorrisos desapareceram do rosto de Sheila e Harlan, que se entreolharam por um instante, retomando então seus lugares. Ambos estavam perdidos em seus pensamentos.

— Não tenho muita certeza de que forma essa descoberta irá nos ajudar — disse Sheila, por fim. — Mas ela precisa ajudar. Esse tem de ser o calcanhar-de-aquiles alienígena.

— Deve ter sido essa a forma por que eles mataram os dinossauros — ponderou Harlan. — Assim que decidiram pôr fim à infestação, os vírus passaram todos do estado latente ao de virions. E então, bam! Entraram em contato com o oxigênio e tudo se acabou.

— Isso não soa muito como uma teoria científica — observou Sheila com um sorriso.

Harlan deu uma risada.

— Concordo — disse ele. — Mas serve para nos dar uma pista. Temos de induzir os vírus nas pessoas infectadas a deixarem a forma latente e saírem da célula.

— Como se ativa um vírus latente? — perguntou Pitt. Harlan deu de ombros.

— De várias formas — disse ele. — Numa cultura tecidual em geral isso é feito com radiação eletromagnética: luz ultravioleta ou raios X moderados, por exemplo, como os que usamos com a cultura de bactérias anaeróbias.

— Existem algumas substâncias químicas que podem produzir o mesmo efeito — informou Sheila.

— É verdade — concordou Harlan.—Alguns antimetabólitos e outros venenos celulares. Mas isso não nos ajuda. Tampouco os raios X. Afinal não podemos, de uma hora pára outra, radiografar todo o planeta.

— Existem outros vírus comuns que vivem em forma latente como esse vírus alienígena? — perguntou Pitt.

— Muitos — disse Sheila.

— Sem dúvida — afirmou Harlan. — Como o vírus da AIDS.

— Ou todo o grupo viral do herpes — lembrou Sheila. — Podem ficar escondidos a vida toda ou então causar problemas intermitentes.

— Como o herpes labial, por exemplo? — indagou Pitt.

— Isso mesmo — disse Sheila. — Esse é o herpes simples. Permanece latente em certos neurônios.

— Então uma manifestação de herpes labial significa que um vírus em forma latente foi induzido a formar partículas de vírus? — perguntou Pitt.

— Exato — afirmou Sheila com uma pontada de exasperação.

— Eu mesmo tenho herpes labial todas as vezes que tenho um resfriado — contou Pitt.

— Pois bem, Pitt — disse Sheila. — Talvez fosse bom se você nos deixasse a sós para pensarmos. Esse não é o momento apropriado para uma aula.

— Espere um pouco — interveio Harlan. — Pitt acaba de me dar uma idéia.

— Eu? — perguntou Pitt, inocentemente.

— Sabe qual é o melhor agente de indução viral? — indagou Harlan, retoricamente. — Uma outra infecção viral.

— E em que isso pode nos ajudar? — quis saber Sheila. Harlan apontou para a porta do imenso freezer do outro lado do laboratório.

— Temos ali todos os tipos de vírus. Estou começando a pensar que deveríamos responder ao fogo com fogo!

— Está querendo dizer dar início a algum tipo de epidemia? — perguntou Sheila.

— É exatamente no que estou pensando — afirmou Harlan. — Alguma coisa extraordinariamente infecciosa.

— Mas aquele freezer está cheio de vírus destinados a serem usados como agentes em guerras biológicas. Seria como sair do espeto e cair na brasa.

— Ora, aquele freezer tem de tudo: desde vírus que causam simples incômodos até os mais mortais — retrucou Harlan. — Só temos de escolher um que seja adequado.

— Bem... — ponderou Sheila. — É verdade que nossa primeira cultura tecidual tenha sido induzida provavelmente pelo veículo adenoviral que usamos para a análise do DNA.

— Venham! — chamou Harlan. —Vou lhes mostrar o inventário.

Sheila se levantou. Tinha muitas dúvidas sobre esse procedimento de responder ao fogo com fogo, mas não estava disposta a rejeitar a idéia de imediato.

Próximo do freezer, havia uma mesa com uma estante acima dela. Nesta, viam-se três enormes fichários de capa preta. Harlan entregou um a Sheila, outro a Pitt e ele mesmo abriu o terceiro.

— É como uma carta de vinhos num restaurante fino — gracejou Harlan. — Lembrem-se de que precisamos de algo infeccioso.

— O que quer dizer com “infeccioso”? — indagou Pitt.

— Capaz de ser transmitido de uma pessoa para outra — respondeu Harlan. — E precisamos que a transmissão se dê pelo ar, e não como a AIDS ou a hepatite. Queremos uma epidemia mundial.

— Meu Deus! — exclamou Pitt, examinando o índice de seu volume. — Nunca pensei que existissem tantos vírus assim. Aqui está o filovírus. Uau! E aqui o Ebola.

— Malignos demais — objetou Harlan. — Queremos uma doença que não mate por si mesma, de modo que um indivíduo infectado possa espalhá-la para o maior número de pessoas possível. As doenças rapidamente fatais, acredite ou não, costumam ser autolimitadas.

— Eis aqui a família Arenaviridae — informou Sheila.

— Também são muito malignos — rejeitou Harlan.

— Que tal a Orthomyxoviridaet — sugeriu Pitt. —A gripe com certeza é infecciosa. E já houve algumas epidemias mundiais.

— É uma possibilidade — admitiu Harlan. — Mas a gripe tem um período de incubação longo e alguns tipos podem ser fatais. Eu preferiria encontrar algo cujo processo infeccioso fosse rápido e um pouco mais benigno. Vamos lá... Era isso que eu estava procurando.

Harlan pousou ruidosamente o fichário que estivera segurando sobre a mesa. Estava aberto na página 99. Sheila e Pitt debruçaram-se para examiná-la.

— Picornaviridae — leu Pitt, lutando com a pronúncia da palavra. — O que causam?

— É nesse gênero que estou interessado — disse Harlan, apontando para um dos subgrupos.

— Rinovírus — leu Pitt em voz alta.

— Exatamente — confirmou Harlan. — A gripe comum. Não seria irônico se a gripe comum viesse a salvar a humanidade?

— Mas nem todo mundo pega a gripe quando uma onda se espalha — lembrou Pitt.

— É verdade — concordou Harlan. — Todos têm níveis diferentes de imunidade às centenas de diferentes cepas que existem. Mas vamos ver o que nossos microbiologistas contratados pelo Pentágono encontraram.

Harlan virou as páginas até encontrar a seção sobre os rinovírus, que consistia em 37 páginas. A primeira delas apresentava um índice de sorotipos e um pequeno resumo.

Todos leram o resumo em silêncio. O texto sugeria que os rinovírus possuíam utilidade limitada como agentes de uma guerra biológica. A razão apresentada era que, embora as infecções das vias respiratórias superiores afetassem o desempenho de um exército moderno, a perturbação não chegaria a ser de um grau significativo e certamente não tão grande quanto a de um enterovírus que provocasse diarréia.

— Parece que não estavam muito entusiasmados com os rinovírus — observou Pitt.

— É verdade — concordou Harlan. — Mas nós não estamos tentando incapacitar um exército. Só queremos que o vírus se instale e provoque problemas metabólicos a fim de trazer o vírus alienígena para fora.

— Eis aqui algo que parece interessante — disse Sheila, apontando para uma subseção no índice, onde se lia rinovírus artificiais.

— É disso que precisamos — afirmou Harlan com entusiasmo, folheando o fichário com pressa até chegar à seção indicada, onde fez uma rápida leitura.

Pitt tentou fazer o mesmo, mas não faria qualquer diferença se o texto estivesse escrito em sânscrito. Aquele era um jargão altamente técnico.

— Perfeito! Absolutamente perfeito! — exclamou Harlan, olhando para Sheila. — Foi feito sob encomenda, tanto literal quanto figuradamente. Eles criaram um rinovírus que nunca viu a luz do dia» o que significa que ninguém está imune a ele. Trata-se de um sorotipo a que ninguém nunca foi exposto, portanto todos o contrairão. É... feito sob medida!

— A mim, me parece que estamos dando um grande passo no escuro — comentou Sheila. —Você não acha que deveríamos de alguma forma testar essa hipótese?

— Mas é claro — respondeu Harlan, com grande excitação. Ele estendeu a mão e a pousou sobre a maçaneta da porta do freezer.—Vou apanhar uma amostra do vírus para fazermos uma cultura. Então testaremos naqueles camundongos que contaminei. Nossa, estou feliz por ter feito isso. — Harlan abriu o freezer e desapareceu em seu interior.

Pitt olhou para Sheila.

— Acha que vai funcionar? — perguntou ele. Sheila deu de ombros.

— Ele parece bastante otimista — respondeu ela.

— Se funcionar, não irá matar a pessoa? — indagou Pitt. Ele estava pensando em Cassy e também em Beau.

— Não há como confirmar isso — disse Sheila. — Pelo que sabemos, a essa altura estamos tateando na escuridão.

— Esperem! — pediu Vince, apertando o binóculo de encontro aos olhos. — Acho que estou vendo algumas marcas seguindo para o sul.

— Onde? — perguntou Beau. Vince apontou.

Beau assentiu.

— Vamos pousar — disse ele ao piloto.

O piloto pousou o helicóptero na pista de macadame. Ainda assim, uma tremenda quantidade de areia e pó ergueu-se em remoinhos no ar.

— Espero que essa areia toda não cubra as marcas — disse Vince.

— Estamos a uma distância suficiente — afirmou o piloto. Ele desligou o motor e os rotores pararam. Vince e o policial sentado ao seu lado, Robert Sherman, imediatamente saltaram e subiram a estrada, correndo até onde as marcas começavam. Beau e o piloto desceram da cabine também, mas ficaram perto do helicóptero.

Beau respirava pesadamente pela boca, com a língua pendendo para fora, como um cão ofegante. A pele alienígena não dispunha de glândulas sudoríparas e ele estava começando a sentir muito calor. Ele olhou à sua volta, procurando uma sombra, mas não se via qualquer refúgio contra o sol inclemente.

— Quero voltar para o helicóptero — afirmou Beau.

— Está muito quente lá dentro — objetou o piloto.

— Quero que você ligue o motor — insistiu Beau.

— Mas isso vai dificultar o retorno dos outros — disse o piloto.

— O motor vai ficar ligado! — rosnou Beau.

O piloto assentiu e fez o que lhe era ordenado. O ar-condicionado foi ativado e logo baixou a temperatura.

Lá fora, as pás girando lentamente levantaram uma tempestade de areia em miniatura. Eles mal podiam ver os dois homens a cem metros à frente, abaixados, examinando o solo.

O rádio foi ativado e o piloto ajustou os fones de ouvido. Beau olhou para o horizonte monótono, ao sul. Além da raiva, ele experimentava uma ansiedade progressiva. Odiava aquelas emoções humanas.

— É uma mensagem do instituto — o piloto disse a Beau. — Houve um problema. Eles não estão conseguindo a potência máxima nas placas elétricas. O sistema desativa os disjuntores.

Os longos dedos serpentiformes de Beau entrelaçaram-se, formando punhos semelhantes a nós apertados. Seu pulso acelerou. A cabeça começou a latejar.

— O que digo a eles? — indagou o piloto.

— Diga-lhes que voltarei logo — respondeu Beau.

Depois de desligar, o piloto tirou os fones do ouvido. Ele experimentava indícios do estado mental de Beau através da consciência coletiva e remexeu-se incomodado no assento. Sentiu-se aliviado ao ver os outros retornando.

Vince e Robert tiveram de cobrir o rosto, ao abaixarem-se sob as pás que giravam, protegendo-se da areia que parecia aferroa-los, antes de entrar no helicóptero. Eles não tentaram falar até que a porta estivesse fechada.

— São as mesmas marcas que estavam no velho posto de gasolina — informou Vince. — E estão indo para o sul. O que você quer fazer?

— Vamos segui-las! — decidiu Beau.

Com grande dificuldade, Harlan, Sheila, Pitt e Jonathan conseguiram transferir seis dos camundongos infectados para um compartimento de segurança biológica nível in.

— Que bom que não são ratos — comentou Pitt. — Se fossem maiores do que camundongos, não creio que tivéssemos conseguido controlá-los.

Sheila estava pondo desinfetante e ataduras em várias das mordidas que Harlan levara.

— Eu sabia que eles iriam dar trabalho — disse ele.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Jonathan, curioso em relação ao experimento.

— Vamos contaminar os camundongos com o vírus, que está na cultura naquele frasco ali dentro do compartimento — esclareceu Harlan.

— Onde é a saída de ventilação dessa cabine? — indagou Sheila. — Não queremos que o vírus escape, caso não funcione.

— O escapamento é tratado por radiação — afirmou Harlan. — Não há com que se preocupar.

Harlan enfiou as mãos cobertas de ataduras nas grossas luvas de borracha que penetravam pela parte da frente do gabinete. Ele apanhou o frasco contendo a cultura tecidual, tirou a rolha e despejou o meio de cultura num pratinho.

— Pronto. Isso irá vaporizar rapidamente e então nossos amiguinhos peludos irão inspirar o vírus artificial.

— O que são esses pontos pretos nas costas dos camundongos? — quis saber Jonathan.

— O número de pontos representa há quantos dias o camundongo foi infectado — explicou Harlan. — Eu os estava infectando em seqüência, de modo que pudesse acompanhar o processo de infestação fisiologicamente. Agora fico feliz por ter feito assim. Pode haver uma reação diferente, dependendo do quanto o vírus ativado tenha se expressado.

Durante alguns minutos os quatro ficaram parados diante do compartimento, observando os camundongos correndo pela gaiola.

— Não está acontecendo nada — queixou-se Jonathan.

— Nada no nível do organismo todo — disse Harlan. — Mas minha intuição me diz que muita coisa está acontecendo no nível molecular/celular.

Alguns minutos depois, Jonathan bocejou.

— Puxa — disse ele. — É como ficar vendo a tinta secar.vou voltar ao computador.

Alguns minutos mais tarde, Pitt quebrou o silêncio.

— O que é interessante é como eles parecem estar trabalhando em conjunto. Olhem como estão formando uma pirâmide para explorar a parede de vidro.

Sheila resmungou. Ela percebera o fenômeno, mas não estava interessada. O que queria ver era alguma reação física por parte dos camundongos. Como o nível de atividade dos animaizinhos não havia se alterado, ela começava a sentir-se cada vez mais nervosa. Se esse experimento não desse certo, estariam de volta à estaca zero.

Como se estivesse lendo os pensamentos de Sheila, Harlan observou:

— Não creio que vamos esperar por muito tempo. Meu palpite é que só vai ser preciso o estímulo de uma única célula para dar início a uma cascata. Minha única preocupação é com o fato de não termos testado a viabilidade do vírus. Talvez devêssemos fazer isso agora.

Harlan virou-se para fazer o que sugerira, quando Sheila agarrou-lhe o braço.

— Espere! — gritou ela. — Olhe aquele camundongo com os três pontos.

Harlan acompanhou o dedo com o qual Sheila apontava. Pitt postou-se atrás deles, olhando por sobre o ombro de Harlan. O camundongo em questão parara de repente seu rápido e incessante vaivém pela gaiola, sentara-se sobre as ancas e repetidamente esfregava os olhos com as patas dianteiras. Em seguida, sacudiu-se algumas vezes.

Os três observadores trocaram olhares.

— Será que ele está espirrando? — perguntou Sheila.

— Quisera eu saber — replicou Harlan. Então o camundongo cambaleou e desabou.

— Está morto? — indagou Pitt.

— Não — disse Sheila. —Ainda se pode ver claramente que está respirando, mas ele não parece muito bem. Olhe aquela espuma saindo dos olhos.

— E da boca — completou Harlan. — E tem outro camundongo começando a apresentar os sintomas. Acho que está funcionando!

— Estão todos apresentando os sintomas — observou Pitt. — Olhe aquele ali com o maior número de pontos. Parece que está tendo um ataque.

Ouvindo o alvoroço, Jonathan voltou e conseguiu espremer a cabeça entre os outros, vendo de relance os camundongos aflitos.

— Argh! — exclamou ele. — A espuma é esverdeada. Harlan tornou a introduzir as mãos nas luvas e segurou o primeiro camundongo. Ao contrário de seu comportamento beligerante anterior, o animalzinho dessa vez não apresentou resistência. Ficou tranqüilamente deitado na palma da mão de Harlan, com a respiração rasa. O cientista deixou o animal de lado e estendeu a mão para aquele que havia tido o ataque.

— Este está morto — declarou Harlan. — Como era ele que estava infectado há mais tempo, acho que isso quer nos dizer alguma coisa.

— Provavelmente está nos dizendo como os dinossauros morreram — afirmou Sheila. — com certeza foi um processo rápido.

Harlan largou o camundongo morto e retirou as mãos, esfregando-as com entusiasmo.

— Bem, a primeira parte desse experimento correu muito bem, eu diria. Agora que os testes com os animais acabaram, acho que é hora de começar a testar os humanos.

— Você quer dizer liberar o vírus? — perguntou Sheila — Abrir a porta e deixá-lo sair?

— Não, ainda não estamos prontos para o trabalho clínico de campo — afirmou Harlan com um brilho nos olhos. — Eu estava pensando que o próximo estágio pode ser ainda no âmbito doméstico. Estava pensando em ser eu o objeto da experiência.

— Ora, espere... — protestou Sheila. Harlan ergueu a mão.

— Existe um longo histórico de cientistas famosos que usaram a si mesmos como as proverbiais cobaias — disse ele. — Essa é uma oportunidade perfeita para seguir o exemplo deles. Eu fui infectado e, embora já tenham se passado alguns dias, mantive a infestação a um nível mínimo com o anticorpo monoclonal.

Agora é hora de eu me livrar completamente do vírus. Portanto, em vez de me ver como um cordeiro oferecido em sacrifício, vejo-me como um beneficiário de nossa inteligência coletiva.

— Como você propõe que se faça isso? — perguntou Sheila. Uma coisa era realizar experiências com camundongos, outra bem diferente era com um ser humano.

— Ora—disse Harlan, agarrando uma das culturas teciduais inoculadas com o rinovírus artificial e seguindo para a enfermaria. — Faremos da mesma forma como com os camundongos. A diferença é que vocês me trancarão num dos quartos de confinamento.

— Talvez devêssemos primeiro experimentar com outro animal — insistiu Sheila.

— Bobagem — disse Harlan — Não podemos nos dar ao luxo de dispor de todo esse tempo. Lembre-se do tal Pórtico.

Todos seguiram Harlan, que obviamente estava decidido a utilizar a si mesmo como objeto da experiência. Sheila tentou dissuadi-lo da idéia durante todo o caminho até o quarto de confinamento, mas Harlan não estava disposto a ser impedido.

— Apenas me prometam que trancarão a porta — pediu Harlan. — Se alguma coisa estranha acontecer, não quero expor todos vocês ao risco.

— E se precisar de cuidados médicos? — perguntou Sheila. — Como, por exemplo, que Deus nos livre, de uma ressuscitação cardiopulmonar?

— É um risco que eu tenho de correr — disse Harlan, de maneira fatalista. — Agora saiam para que eu possa pegar minha gripe em paz.

Sheila hesitou durante um momento, tentando pensar numa outra forma de convencer Harlan a não fazer o que ela considerava uma loucura prematura. Por fim, ela transpôs a porta da câmara de compressão e trancou-a. Olhou pelo vidro, quando Harlan lhe fazia um sinal com o polegar, indicando que estava tudo certo.

Admirando a coragem de Harlan, Sheila repetiu o gesto.

— O que ele está fazendo? — perguntou Pitt do corredor. A câmara de compressão era suficiente para uma só pessoa.

— Está tirando a rolha do frasco com a cultura — contou Sheila.

—vou voltar para o computador — disse Jonathan. A tensão fazia-o sentir-se incomodado.

Pitt entrou na câmara de compressão vizinha e olhou para Cassy através do visor. Ela ainda dormia tranqüilamente. Pitt voltou à câmara ocupada por Sheila.

— Aconteceu alguma coisa?

— Ainda não — respondeu Sheila. — Ele só está deitado lá fazendo caretas para mim. Está agindo como se tivesse doze anos.

Pitt perguntou-se como se comportaria se a situação fosse inversa e se fosse ele, Pitt, quem estivesse no quarto de confinamento. Pensou que estaria apavorado, incapaz de ficar fazendo piadas como Harlan.

— Espere um segundo! — pediu Vince, excitadamente. — Faça a volta para que eu possa ver o ponto que acabamos de sobrevoar.

O piloto inclinou o helicóptero para a esquerda, descrevendo um amplo círculo.

Vince apertava o binóculo sobre os olhos. O terreno abaixo parecia tão monótono quanto durante toda a última hora. Fora extraordinariamente difícil seguir as marcas de pneus do alto, e eles haviam tomado o caminho errado por diversas vezes.

— Tem alguma coisa lá embaixo — anunciou Vince.

— O que é? — grunhiu Beau. Seu humor tornara-se ainda mais sombrio. O que ele pensara ser uma simples questão de resgatar Cassy no deserto estava se tornando um fiasco.

— Não sei lhe dizer — afirmou Vince. — Mas vale a pena dar uma olhada. Eu sugeriria que descêssemos.

— Pouse! — ordenou Beau, rispidamente.

O helicóptero pousou em meio à tempestade de areia provocada por ele mesmo. Ali, sem a pista de macadame, era pior do que antes. Quando o ar clareou, todos viram o que atraíra a atenção de Vince. Tratava-se de uma van camuflada por uma lona, que fora parcialmente removida pelo vento gerado pelas pás do rotor.

— Finalmente algo de positivo — disse Beau, saltando do helicóptero. Ele dirigiu-se à van, agarrou a lona e a arrancou com um puxão. Então abriu a porta dianteira do veículo, do lado do passageiro.

— Ela esteve aqui — disse ele. Olhou na traseira do veículo e então virou-se para perscrutar a área.

— Beau, acabo de receber outra comunicação do instituto — gritou o piloto, que havia permanecido junto ao helicóptero.

— Eles querem informá-lo de que receberam uma mensagem de que a Chegada é esperada para daqui a cinco horas terrestres. E querem lembrá-lo de que o Pórtico ainda não está pronto. O que eu digo a eles?

Beau agarrou a cabeça com os dedos longos e pressionou as têmporas numa tentativa de aliviar a tensão. Então expirou o ar lentamente. Ignorando o piloto, gritou para Vince que Cassy estava por perto.

— Posso senti-lo — acrescentou Beau. — Mas o sinal está estranhamente fraco.

Vince e Robert haviam se afastado da van em círculos cada vez mais amplos. De repente, Vince parou e se abaixou. Erguendo-se, gritou para que Beau fosse até lá.

Beau juntou-se aos dois homens.

Vince apontou para o chão.

— É um alçapão camuflado — disse ele. — Está trancado por dentro.

Os dedos de Beau colearam sob as bordas do alçapão. Progressivamente, ele foi fazendo força para cima até que a tampa saltou no ar. Vince e Beau inclinaram-se sobre a abertura e olharam para o corredor iluminado lá embaixo. Seus olhos se encontraram.

— Ela está aí embaixo — disse Beau.

— Eu sei — replicou Vince.

— Caramba! — gritou Jonathan, os olhos quase saltando das órbitas. Em seguida, chamou com a força máxima de seus pulmões: — Pitt, Sheila, alguém venha até aqui!

Pitt deixou de lado a seringa de anticorpo que estava preparando para Cassy e saiu correndo da enfermaria, entrando no corredor que levava ao laboratório onde Jonathan se encontrava. Pitt não tinha a menor idéia do que acontecera, mas havia desespero na voz de Jonathan. Ele percebeu que Sheila corria atrás dele.

Encontraram Jonathan sentado diante do computador. Seus olhos estavam colados ao monitor e o rosto tinha a palidez de uma bola de sinuca de marfim.

— O que foi que aconteceu? — perguntou Pitt, parando ao lado de Jonathan.

Este estava momentaneamente mudo. Tudo que conseguiu fazer foi gesticular na direção da tela do computador. Pitt olhou para ali e, num reflexo, cobriu com a mão a boca aberta.

— O que foi? — perguntou Sheila, ansiosa, alcançando Pitt.

— É um monstro! — Jonathan conseguiu dizer. Sheila prendeu a respiração ao ver o que estava na tela.

— É Beau! — exclamou Pitt, horrorizado. — Cassy disse que ele estava sofrendo um processo de mutação, mas eu não tinha idéia...

— Onde ele está? — perguntou Sheila, forçando-se a ser prática, apesar da aparência grotesca de Beau.

— Foi um alarme que me chamou a atenção — contou Jonathan. — Em seguida o computador automaticamente ativou a minicâmera apropriada.

— Quero saber onde ele está — repetiu Sheila freneticamente.

Jonathan manipulou, atrapalhado, o teclado e conseguiu fazer surgir na tela um diagrama esquemático das instalações. Uma seta vermelha piscava numa das saídas de ventilação de emergência.

— Acho que é aquela por onde entramos — disse Pitt.

— Acho que você tem razão — concordou Sheila. — O que significa o alarme, Jonathan?

— Diz aqui: “tampa do alçapão aberta” — informou Jonathan.

— Acho que isso quer dizer que eles abriram a porta.

— Santo Deus! — exclamou Sheila. — Eles vão entrar aqui.

— O que devemos fazer? — perguntou Pitt.

Sheila passou a mão, nervosa, pelos cabelos louros soltos; seus olhos verdes percorreram a sala, desnorteados. Ela se sentia como um animal encurralado.

— Pitt, vá ver se consegue trancar a porta da câmara de compressão — disse ela, atabalhoadamente. — Isso talvez os retarde por algum tempo.

Pitt saiu da sala em disparada.

— Onde está a pistola de Harlan? — indagou Jonathan.

— Eu não sei — respondeu Sheila. — Vá procurá-la. Sheila tomou a direção da enfermaria.

— Aonde você vai? — gritou Jonathan para Sheila.

— Tenho de tirar Harlan e Cassy daqueles quartos de confinamento.

— O que você quer que eu faça, Beau? — perguntou Vince, quebrando o que parecera um longo silêncio.

— O que você acha que é isso? — indagou Beau, apontando para o interior brilhante e branco, da mais moderna tecnologia, que se via pelo alçapão.

— Não tenho a menor idéia — declarou Vince.

Beau lançou um olhar ao helicóptero. O piloto esperava, obedientemente. Beau tornou a olhar para o alçapão. Sua mente estava um turbilhão e suas emoções, desordenadas.

— Quero que você e seu colega desçam por esse estranho buraco e encontrem Cassy — disse Beau. Ele falava lenta e deliberadamente, como se estivesse fazendo um grande esforço para conter um acesso de fúria. — Quando a encontrarem, quero que a levem para mim. Preciso voltar para o instituto, masvou mandar o helicóptero de volta para apanhar vocês.

— Como quiser — disse Vince, com cuidado. Estava com medo de dizer a coisa errada. A fragilidade das emoções de Beau era óbvia.

Beau levou a mão ao bolso e tirou um disco negro, entregando-o a Vince.

— Use-o como achar necessário — disse ele. — Mas não machuquem Cassy! — Em seguida, fez meia-volta e dirigiu-se ao aparelho que o aguardava.

 

19:10

Desajeitadamente, Sheila destrancou a fechadura da porta do quarto de confinamento onde Harlan se encontrava. No momento em que a abriu, Harlan já se encontrava de pé ao seu lado. Estava surpreso e irritado.

— Que diabos você está fazendo? — perguntou ele. —Acaba de contaminar a si mesma e toda a instalação.

— Não podia ser evitado — afirmou Sheila com veemência. — Eles estão aqui!

— Quem está aqui? — indagou Harlan, sua expressão rapidamente mudando para a preocupação.

— Beau e pelo menos uma outra pessoa infectada — despejou Sheila. — Eles abriram o alçapão que usamos para entrar. Devem ter seguido Cassy. Estarão aqui a qualquer minuto.

— Maldição! — exclamou Harlan, parando por um segundo para pensar e então passando pela câmara de compressão.

Imediatamente encontraram Cassy e Pitt, quando os dois saíam do quarto de confinamento ao lado. Embora Cassy parecesse sonolenta e confusa, sua cor havia melhorado.

— Onde está Jonathan? — perguntou Harlan.

— No laboratório — respondeu Pitt. — Ele estava procurando sua Colt.

Com Harlan seguindo à frente, o grupo deixou correndo a enfermaria, passando ao laboratório propriamente dito, no qual foram de sala em sala. Encontraram Jonathan no último cômodo, agachado junto à porta que dava para o corredor, segurando a pistola com ambas as mãos.

— Vamos dar o fora daqui — gritou Harlan para Jonathan. Em seguida, o médico entrou na incubadora e saiu segundos depois carregando um punhado de frascos de cultura contendo o rinovírus.

Um ruído alto, parecendo uma explosão, fez-se ouvir vindo do corredor. Os olhos de todos se voltaram para o vão da porta aberta. Uma chuva de faíscas surgiu ali, como se alguém estivesse fazendo um trabalho de solda no local. Ao mesmo tempo, a pressão na sala caiu precipitadamente, obstruindo os ouvidos de todos.

— O que aconteceu? — interrogou Sheila.

— Eles estão atravessando a porta da câmara de compressão — gritou Harlan. —Vamos! Depressa! — Fez sinal para que todos recuassem na direção da enfermaria. No entanto, antes que alguém pudesse se mover, um disco preto dobrou no corredor e entrou no laboratório. O objeto reluzia com uma luz vermelha e estava circundado por um halo nebuloso.

— É um disco! — gritou Sheila. — Fiquem longe dele.

— Isso mesmo! — berrou Harlan. — Quando em ação, ele é radioativo. Está expelindo partículas alfa.

O disco sobrevoava Jonathan, que se abaixou e voltou correndo na direção dos outros. Harlan conduziu o grupo pela porta, passando para o laboratório ao lado. Ao entrar por último na sala, ele bateu a pesada porta corta-fogo de cinco centímetros de espessura.

— Depressa! — ordenou.

O grupo já havia atravessado metade do segundo laboratório quando o mesmo ruído explosivo que tinham ouvido antes reverberou pela sala, seguido por outra chuva de centelhas. Harlan virou-se a tempo de ver o disco passando sem esforço através da porta.

Todos alcançaram o terceiro laboratório e dispararam na direção das portas duplas que levavam à enfermaria. Harlan deu-se ao trabalho de bater a segunda porta corta-fogo antes de seguir os outros. Às suas costas, ele tornou a ouvir o barulho de explosão. Algumas centelhas atingiram sua nuca quando ele corria para a enfermaria. As portas fecharam, balançando-se, atrás dele.

— Para onde? — perguntou Sheila.

— A sala de raios X— gritou Harlan, apontando com a mão que carregava um dos frascos de cultura. — A que ainda está em bom estado.

Jonathan foi o primeiro a chegar. Ele abriu a porta blindada e segurou-a para os outros. Todos se aglomeraram ali dentro.

— Isso é um beco sem saída! — gritou Sheila. — Por que nos trouxe para cá?

— Fiquem atrás da chapa de proteção — ordenou Harlan, entregando rapidamente a Sheila e Pitt os frascos de cultura tecidual. Em seguida, ativou a máquina que posicionava a coluna de raios X. Apontou a luz de posicionamento diretamente para a porta que dava para o corredor, antes de voltar correndo e espremer-se atrás da chapa com os outros.

As mãos de Harlan moveram-se com rapidez sobre alavancas e botões no painel de controle da máquina de raios X no momento em que as centelhas e o ruído explosivo começavam a se fazer ouvir na entrada da sala. Graças à proteção de chumbo, o disco precisou de alguns segundos a mais para atravessar a porta da sala de raios X do que levara com as portas corta-fogo. Quando alcançou o interior da sala, sua cor vermelha havia empalidecido levemente.

Harlan armou o botão que enviou a alta voltagem embutida na máquina à fonte de raios X Ouviu-se um zumbido eletrônico e a luz no teto da sala enfraqueceu.

— Esses são os raios X mais fortes que esta máquina é capaz de produzir — explicou ele.

Bombardeado com os raios X, o disco instantaneamente passou do vermelho pálido para um branco luminoso. O halo pálido intensificou-se, expandiu e logo engoliu o disco. O som de uma enorme fornalha inflamando-se foi de imediato interrompido por um ruído surdo. No mesmo instante, a maior parte do aparelho de raios X, a mesa, uma bandeja de instrumentos, parte da porta e os acessórios de iluminação foram todos deformados, como se tivessem sido sugados na direção do ponto onde o disco se encontrava. Até mesmo as pessoas sofreram essa súbita força de implosão e imediatamente abraçaram-se e agarraram-se no que puderam.

Uma nuvem de fumaça acre pairava na sala.

Todos sentiram-se momentaneamente tontos.

— Todo mundo está bem? — perguntou Harlan.

— Meu relógio explodiu — informou Sheila.

— O mesmo aconteceu com o relógio de parede — replicou Harlan, apontando-o. O vidro havia se estilhaçado e os ponteiros foram arrancados. — Isso foi o fenômeno de um buraco negro em miniatura.

Um barulho lá fora, no laboratório, assustou a todos, trazendo-os de volta à realidade.

— Obviamente eles conseguiram passar pela câmara de compressão — disse Harlan. — Vamos embora! — Ele apanhou a arma das mãos de Jonathan e entregou-lhe um frasco de cultura. Cassy e Pitt recolheram o restante dos frascos. Harlan saiu detrás da chapa de proteção deformada, levando todos na direção da porta.

— Não toquem em nada — advertiu ele. — Pode haver ainda alguma radiação.

Foram necessários os três homens para conseguir abrir a porta retorcida. Harlan espiou lá fora. Podia ver o corredor até as portas duplas que levavam ao laboratório. Havia um pequeno buraco chamuscado na folha direita da porta. Ele olhou para o outro lado. O caminho estava livre.

— Para a esquerda — comandou ele. — Sigam até a porta no final e atravessem para a sala de estar. Entenderam?

Todos assentiram.

— Vão! — disse Harlan, mantendo os olhos nas portas duplas até que a última pessoa houvesse desaparecido do corredor. Estava prestes a segui-los quando uma das folhas da porta dupla se abriu na direção oposta.

Harlan disparou um tiro. O barulho foi ensurdecedor no corredor.

O projétil atingiu a porta fechada e estilhaçou a janela tipo vigia. O lado que estivera aberto fechou-se rapidamente.

Harlan disparou pelo corredor e percorreu sua extensão com pernas que de repente haviam se tornado moles. Chegou cambaleando à sala de estar.

— Harlan? — disse Sheila. —Você foi ferido? — Todos tinham ouvido a arma ser disparada.

Harlan abanou a cabeça. Uma pequena quantidade de espuma borbulhava em sua boca e vertia de seus olhos.

— Acho que é o rinovírus expulsando o vírus alienígena — conseguiu dizer, apoiando-se contra a parede. — Está acontecendo. Infelizmente, numa hora um tanto imprópria.

Pitt correu até Harlan e passou o braço deste sobre seu próprio ombro. Em seguida, apanhou a arma da mão trêmula de Harlan.

— Me dê a arma — disse Sheila. Pitt passou-a para ela. — Como vamos sair daqui? — perguntou Sheila a Harlan.

O som de vidro sendo quebrado chegou até eles vindo do laboratório.

— Vamos usar a entrada principal — decidiu Harlan. — Meu Range Rover deve estar lá. Eu não saía por ali com medo de ser descoberto. Agora isso não faz a menor diferença.

— Muito bem — disse Sheila. — Como chegamos até lá?

— Saímos no corredor principal e viramos à direita — indicou Harlan. — Então passamos pelas salas de depósito, depois das quais há outra câmara de compressão. Em seguida, vem um corredor comprido, onde há alguns carrinhos elétricos. A saída dá no interior de uma construção que parece uma casa de fazenda.

Sheila abriu ligeiramente a porta para o corredor e começou a pôr a cabeça para fora a fim de olhar na direção das salas do laboratório. Ela sentiu a bala antes de ouvir uma arma distante ser disparada. O projétil passara tão perto dela que chegou a chamuscar parte de seu cabelo antes de enterrar-se na porta.

Mais do que depressa ela recuou para a sala de estar.

— Eles sabem onde estamos — disse Sheila, enxugando a testa com a mão e examinando esta. Não teria se surpreendido se houvesse sangue ali. — Existe outra forma de chegar à saída? com certeza não vamos poder usar o corredor.

— Teremos de usá-lo — afirmou Harlan.

— Ah, grande! — murmurou Sheila. Ela olhou para a arma em sua mão, perguntando-se quem ela achava que estava enganando. Nunca em sua vida disparara uma arma, nem para praticar, quanto mais numa batalha de verdade.

— Podemos usar o sistema contra incêndio — sugeriu Harlan, apontando na direção do painel de segurança na parede da sala de estar. — Se puxar aquela alavanca, o laboratório e todas as instalações vão se encher de um vapor que inibe o fogo. Os intrusos não vão conseguir respirar muito bem.

— Ah, muito inteligente — disse Sheila com sarcasmo. — E, nós, é claro, vamos sair daqui simplesmente prendendo a respiração.

— Não, não — replicou Harlan. — No armário debaixo do painel tem respiradores suficientes para pelo menos meia hora.

Sheila foi até o armário e o abriu. O interior estava repleto de equipamentos semelhantes a máscaras contra gases. Ela apanhou cinco e distribuiu-os entre eles. As instruções no longo tubo do respirador eram para que se quebrasse o lacre, agitasse e então o ajustasse ao rosto.

— Está todo mundo de acordo? — indagou Sheila.

— Bem, não temos muita escolha — retrucou Pitt. Todos ativaram suas unidades e então prenderam as tiras atrás da cabeça. Quando todos fizeram um sinal de positivo, Sheila puxou a alavanca que acionava o sistema contra incêndio. Imediatamente ouviu-se um clangor, seguido por uma voz mecânica que repetia “Fogo nas instalações” vezes e vezes seguidas. Um minuto depois, o sistema de sprinklers foi ativado, expelindo ondas de um fluido que rapidamente se vaporizava. A sala encheu-se de uma névoa semelhante a fumaça.

— Temos de nos manter juntos — gritou Sheila. Era difícil falar com a máscara contra gases, e a cada instante se tornava também cada vez mais difícil enxergar. Sheila abriu a porta do corredor e ficou satisfeita em ver que o local estava tão enevoado quanto a sala de estar. Ela se inclinou para fora, olhando na direção dos laboratórios, mas não conseguia ver mais do que um metro ou um metro e meio à sua frente.

Então saiu para o corredor. Dessa vez não houve disparos.

— Vamos — disse ela para os outros. — Pitt, você e Harlan vão na frente para que saibamos aonde estamos indo. Cassy e Jonathan, vocês carregam os frascos.

Num grupo compacto, eles percorreram o corredor, que, em meio à névoa, parecia interminável. Finalmente chegaram à câmara de compressão e entraram. Sheila fechou a porta atrás de si. e Pitt abriu a do outro lado.

Depois da câmara, o ar foi progressivamente clareando, mais ainda depois que embarcaram num dos carrinhos elétricos. Quando alcançaram a escada de saída, já podiam remover as máscaras.

Eram seis lances de escada até a superfície. Por fim saíram por uma porta tipo alçapão, do tamanho de um tapete pequeno, na sala de estar de uma casa de fazenda. com o alçapão fechado, ninguém suspeitaria o que ele escondia.

— Meu carro deve estar no celeiro — disse Harlan, tirando o braço do ombro de Pitt. — Obrigado, Pitt — agradeceu ele. — Não creio que tivesse conseguido sem você, mas já me sinto um pouco melhor. — Então assoou o nariz sonoramente.

— Vamos rápido — instou Sheila. —Aquela gente que estava atrás de nós pode ter encontrado os respiradores também.

O grupo deixou a casa pela porta da frente e caminhou para os fundos, em direção ao celeiro. O sol havia se posto e o calor do deserto ia rapidamente se dissipando. Havia uma mancha vermelho-sangue ao longo do horizonte, a oeste, mas o restante do céu era uma tigela emborcada de um tom azul-anil. Algumas estrelas piscavam sobre suas cabeças.

Como Harlan esperara, seu Range Rover ainda estava estacionado em segurança no interior do celeiro. Ele pôs todos os frascos de cultura tecidual no compartimento de bagagem traseiro antes de acomodar-se ao volante. Em seguida, apanhou a Colt com Sheila e guardou-a no compartimento da porta.

— Tem certeza de que está bem para dirigir? — indagou Sheila, estupefata diante de sua recuperação.

— Sem problemas — garantiu Harlan. — Sinto-me completamente diferente do que sentia há apenas quinze minutos. Os únicos sintomas que tenho agora são os de uma gripe comum. Eu diria que nossa experiência humana foi um sucesso absoluto!

Sheila sentou-se no banco do passageiro da frente. Cassy, Pitt e Jonathan acomodaram-se no assento traseiro. Pitt abraçou Cassy, que se aconchegou junto a ele.

Harlan ligou o carro e deu ré, saindo do celeiro. Em seguida, fez uma manobra em U e seguiu para a estrada.

— Essa infestação alienígena certamente reduziu o trânsito — observou ele. — Olhem para isso. Nem um carro à vista e estamos a apenas quinze minutos de Paswell.

Harlan dobrou à direita e acelerou.

— Para onde estamos indo? — perguntou Sheila.

— Não creio que tenhamos muitas opções — respondeu Harlan. — Meu palpite é que o rinovírus irá cuidar da infestação. O problema agora se resume no tal Pórtico. Temos de tentar fazer alguma coisa a respeito.

Cassy empertigou-se.

— O Pórtico! — exclamou ela. — Então Pitt contou a vocês.

— com certeza — afirmou Harlan. — Ele disse que você acreditava que a tal coisa já estivesse quase pronta. Tem alguma idéia de quando eles devem usá-la?

— Não me disseram especificamente — respondeu Cassy.

— Mas tenho o pressentimento de que será usado assim que estiver pronto.

— Então aí temos a resposta — disse Harlan. — Só temos de torcer para que cheguemos lá a tempo e descobrir uma forma de estragar os planos deles.

— O que é esse rinovírus de que vocês estavam falando? — indagou Cassy.

— Notícias muito boas — disse Harlan, olhando para Cassy pelo espelho retrovisor. — Principalmente para você e para mim.

Cassy então ouviu toda a seqüência de eventos que levou à descoberta de uma forma de livrar a raça humana do flagelo do vírus alienígena. Tanto Harlan quanto Sheila louvaram-na pelas informações que ela dera a Pitt.

— O mais importante foi o fato de o vírus alienígena ter chegado aqui há três bilhões de anos — afirmou Sheila. — Se não soubéssemos disso, não nos teria ocorrido que ele pudesse ser sensível ao oxigênio.

— Talvez então eu devesse respirar um pouco desse rinovírus agora — sugeriu Cassy.

— Não há necessidade — assegurou Harlan. — O simples fato de estar aqui neste carro significa que todos vocês estão sendo devidamente infectados. Calculo que só sejam necessários uns poucos virions, pois ninguém tem imunidade contra ele.

Cassy recostou-se no banco e aconchegou-se a Pitt.

— Há apenas algumas horas eu pensei que estivesse tudo perdido. É um choque voltar a ter esperanças.

Pitt abraçou-a com mais força.

— Tivemos uma sorte incrível!

Chegaram aos arredores de Santa Fé poucos minutos depois das onze da noite. Haviam seguido direto para lá, parando uma única vez num posto de gasolina abandonado para encher o tanque. Aproveitaram para abastecer-se de doces e amendoins em uma máquina automática. Havia moedas à vontade na caixa registradora.

Cassy permanecera no carro. Àquela altura, encontrava-se em plena fase de fraqueza, mal-estar e eliminação de espuma pela boca e pelos olhos por que Harlan passara quando deixavam o laboratório subterrâneo. Harlan estava extasiado, vendo o sofrimento temporário de Cassy como mais uma evidência da eficácia da “rinocura”, como ele denominou o processo.

Contornando o centro de Santa Fé, eles seguiram as indicações de Cassy e rumaram direto para o Instituto para um Novo Começo. A essa hora da noite, o portão externo encontrava-se profusamente iluminado por holofotes. Os manifestantes do dia haviam desaparecido, mas havia um número significativo de pessoas infectadas deixando a propriedade.

Harlan passou para o acostamento da rua e parou. Então, debruçou-se para a frente e inspecionou a cena.

— Onde fica a mansão? — perguntou ele.

Durante o trajeto, Cassy explicara a todos tudo o que pudera recordar sobre a disposição do instituto, principalmente o fato de que o Pórtico estava sendo erguido no salão de baile, no primeiro andar, à direita da entrada principal.

— A casa fica atrás daquela série de árvores — informou Cassy. — Não dá para vê-la daqui.

— Para que lado ficam as janelas do salão? — indagou Harlan.

— Acredito que para os fundos da casa — respondeu Cassy.

— Mas não tenho certeza, pois foram vedadas com tábuas.

— Então esqueçamos a idéia de entrar pelas janelas — replicou Harlan.

— Considerando-se o propósito do Pórtico — disse Pitt —, deve ser necessária muita energia para seu funcionamento, e só pode ser energia elétrica. Talvez pudéssemos desligá-lo.

— Uma sugestão muitíssimo engraçada — gracejou Harlan

— Mas não consigo imaginar que para transportar alienígenas através do tempo e do espaço eles estejam contando com a mesma energia que usamos em nossas torradeiras. Tendo visto o que um único e relativamente minúsculo disco negro pode fazer, pense no que um monte deles poderia realizar se estivessem trabalhando em conjunto.

— Foi só uma idéia — replicou Pitt, sentindo-se estúpido e decidido a guardar seus pensamentos para si mesmo.

— A que distância a casa fica do portão? — indagou Sheila.

— Uma distância considerável — disse Cassy. — Uns duzentos metros ou mais. O caminho passa primeiro entre as árvores e em seguida atravessa uma extensão de gramado aberto.

— Bem, creio que este seja o nosso primeiro problema — conjeturou Sheila. — Precisamos chegar até a casa, se quisermos fazer alguma coisa.

— Um bom argumento — disse Harlan.

— Que tal pular a cerca nos fundos? — sugeriu Jonathan. — Este portão está iluminado, mas eu não vejo luzes em outro lugar.

— Há cães enormes patrulhando a propriedade — contou Cassy. — Eles estão infectados, exatamente como as pessoas, e trabalham em conjunto. Receio que ir até a casa atravessando o gramado seja perigoso.

De repente, o céu noturno acima das árvores se iluminou com faixas ondulantes de energia, dando a impressão de um fenômeno semelhante à aurora boreal. As faixas formaram uma esfera e começaram a se expandir e contrair, fazendo lembrar um organismo respirando. Porém, cada expansão sucessiva era maior do que a anterior, de modo que o fenômeno se ampliava a cada segundo.

— Oh-oh. Tenho a impressão de que já estamos atrasados — disse Sheila. — A coisa está começando.

— Muito bem, saiam todos do carro! — ordenou Harlan.

— O que você pretende? — perguntou Sheila.

— Quero que todos saiam — insistiu Harlan. —vou tomar uma atitude impulsiva.vou dirigir até lá e entrar no salão de baile com este carro. Não posso deixar que prossigam.

— Bem, você não vai fazer isso sozinho — afirmou Sheila.

— Como quiser — replicou Harlan. — Não tenho tempo para discutir. Mas vocês três, fora!

— Não temos mesmo para onde ir — disse Cassy, olhando para Pitt e depois para Jonathan. Os dois fizeram um gesto afirmativo com a cabeça, indicando que ela falava pelos três. — Creio que estamos nisso juntos.

— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Harlan, enquanto punha o Range Rover na tração 4x4 normal. — Exatamente o que a raça humana precisava: um carro cheio de mártires! — Acelerou então o motor e disse a todos que apertassem bem os cintos de segurança, ao mesmo tempo em que puxava o seu o máximo possível. Em seguida, ligou o aparelho de CD do carro e selecionou sua música favorita: Sagração da Primavera, de Stravinsky. Adiantou a música até a parte de que mais gostava: era onde os timbales ressoavam com o volume quase na potência máxima, ele entrou na rua.

— O que vai dizer aos homens no portão? — gritou Sheila.

— Que comam a poeira do meu carro! — gritou Harlan de volta.

Atravessando o caminho, havia uma cancela de madeira branca e preta, com contrapesos. O trânsito de pedestres a contornava. Harlan a atingiu a cerca de setenta quilômetros por hora e o pára-choque do Range Rover a reduziu a pedaços. Os guardas sorridentes saltaram para ambos os lados, saindo do caminho.

Sheila girou o corpo no banco e olhou para trás. Os guardas haviam se recuperado e corriam atrás deles. Também em perseguição ao carro, uma matilha de cães latia ferozmente. Tanto vigias quanto cães, porém, sumiram de vista quando Harlan fez uma curva em S em meio a algumas coníferas virgens.

O Range Rover, em alta velocidade, deixou as árvores para trás. A enorme mansão avultou-se à frente deles, surgindo do meio da noite. Toda a construção brilhava, em especial as janelas. As faixas ondulantes de luz que se expandiam ritmicamente no céu pareciam estar sendo emitidas do teto, como chamas gigantescas.

— Não vai diminuir a velocidade um pouco? — berrou Sheila. O motor gemia como uma turbina a jato e os timbales martelavam. Era como se a orquestra inteira estivesse dentro do carro. Sheila ergueu o braço e agarrou a alça sobre a porta do passageiro, a fim de equilibrar-se.

Harlan não respondeu. Sua expressão era de intensa concentração. Até aquele momento, ele dirigia o veículo dentro dos limites da estradinha. Agora que tinha a casa à vista, guiou diretamente para lá, atravessando o gramado, a fim de evitar os pedestres. As pessoas deixavam a mansão em fila única, num fluxo contínuo, a caminho do portão.

A cerca de trinta metros da ampla e majestosa escadaria que levava à varanda diante da casa, Harlan reduziu a tração, a despeito do fato de que as rotações do motor já estavam próximas à marca vermelha no mostrador. O carro respondeu diminuindo consideravelmente a velocidade. Ao mesmo tempo, uma potência significativa foi dirigida às rodas traseiras.

— Caramba! — gritou Jonathan, enquanto a distância até os degraus ia diminuindo. As pessoas podiam ser vistas saltando cegamente sobre os corrimãos de calcário, a fim de escaparem de três toneladas de ferro arremessando-se velozmente sobre elas.

O Range Rover atingiu o primeiro degrau e sua frente empinou-se, lançando o veículo ao ar. Os pneus tornaram a fazer contato com o solo nos fundos da varanda, a três metros da porta dupla da entrada. Luzes laterais multifacetadas margeavam a porta da frente, de ambos os lados, assim como no alto.

Todos, exceto Harlan, fecharam os olhos, apertando-os, quando ocorreu a colisão com a casa. O som abafado de vidros estilhaçando-se pôde ser ouvido acima da música clássica, mas, surpreendentemente, foi pequeno o efeito sobre o impulso de avanço do carro. Harlan pisou no freio e jogou o volante para a direita, disposto a evitar a majestosa escadaria diretamente à sua frente.

O carro derrapou no piso de mármore xadrez preto e branco, roçou num imenso candelabro de cristal e então colidiu com um aparador de mármore e uma parede interna revestida de gesso. Ouviu-se um ruído de desabamento e todos foram atirados de encontro a seus cintos de segurança. O airbag do lado do passageiro foi acionado, pressionando uma Sheila assustada contra o assento.

Harlan lutava para controlar o volante, enquanto o carro passava aos solavancos sobre a mesa e a viga de 5x10 destroçadas. A colisão final foi contra uma estrutura de metal e madeira coberta com cabos elétricos, o avanço do carro sendo interrompido por uma viga de aço que quebrou o pára-brisa, estilhaçando-o em mil pedacinhos de vidro temperado.

Fora do carro ouviram-se explosões acompanhadas por centelhas, assim como um estranho zumbido mecânico que foi mais sentido do que ouvido acima da estrondosa música clássica, que continuava a tocar.

— Estão todos bem? — perguntou Harlan, erguendo os dedos do volante. Estivera segurando-o com tanta força que cortara a circulação. Tanto suas mãos quanto os antebraços estavam enrijecidos. Ele diminuiu o volume do aparelho de CD.

Sheila lutava contra o airbag que murchava e que lhe queimara com o impacto o rosto e os braços.

Todos afirmaram haver suportado surpreendentemente bem a batida.

Harlan olhou através do pára-brisa quebrado, mas tudo que pôde ver foram fios e destroços retorcidos.

— Você acha que isso aqui é o salão de baile, Cassy? — indagou ele.

— Creio que sim — respondeu Cassy.

— Então, missão realizada — disse Harlan. — com toda essa fiação, certamente batemos em algum tipo de equipamento de alta tecnologia. A julgar por todas essas centelhas, acho que conseguimos alguma coisa.

Como o motor do Range Rover ainda estivesse funcionando, Harlan deu marcha à ré e pisou no acelerador. com uma boa dose de rangidos, o carro recuou ao longo de seu caminho de destruição. Depois de cerca de três metros, o veículo já havia se afastado da superestrutura do Pórtico. Todos puderam ver, lá em cima, uma plataforma que parecia feita de Plexiglas. Degraus ovais do mesmo material levavam até ela. De pé sobre a plataforma via-se uma hedionda criatura alienígena iluminada pelas incessantes faíscas elétricas. Seus olhos negros como carvão fitavam os ocupantes do carro com incredulidade.

De repente, a criatura jogou a cabeça para trás e emitiu um grito aflito de agonia. Lentamente, ela desabou sobre a plataforma e segurou a cabeça com as mãos, no auge da aflição.

— Meu Deus! É Beau! — exclamou Cassy no banco traseiro.

— Receio que sim — concordou Pitt. — Só que a mutação agora está completa.

— Deixe-me sair! — disse Cassy, soltando o cinto de segurança.

— Não — objetou Pitt.

— Tem muitos fios soltos por aí — argumentou Harlan. — É perigoso demais, principalmente com todas essas faíscas. A voltagem deve ser astronômica.

— Não me importo — replicou Cassy, debruçando-se sobre Pitt e abrindo a porta.

— Não posso deixar você ir — afirmou Pitt.

— Me solte — falou Cassy, rispidamente. — Preciso sair. com relutância, Pitt deixou que Cassy saltasse do carro.

Cautelosamente, ela evitou os fios e então, devagar, subiu os degraus até a plataforma. À medida que se aproximava, podia ouvir os gemidos de Beau acima do zumbido mecânico e das explosões dos fios. Ela o chamou e ele lentamente levantou os olhos.

— Cassy? — espantou-se Beau. — Por que não pressenti a sua chegada?

— Porque eu fui libertada do vírus — disse ela. — Existe esperança! Esperança de recuperarmos nossas antigas vidas.

Beau abanou a cabeça.

— Não para mim. Não posso voltar e, no entanto, também não posso prosseguir. Eu traí a confiança que depositaram em mim. Essas emoções humanas são um terrível estorvo. São completamente inadequadas. Ao querer você, eu renunciei ao bem coletivo.

Um súbito aumento na intensidade das centelhas elétricas precedeu uma vibração, leve a princípio, mas que rapidamente foi ganhando força.

— Você precisa fugir, Cassy — disse Beau. — A rede elétrica foi interrompida. Não haverá nenhuma força para neutralizar a antigravidade. Vai haver uma dispersão.

— Venha comigo, Beau — pediu Cassy. — Temos uma maneira de livrá-lo do vírus.

— Eu sou o vírus — afirmou Beau.

A vibração chegara a um ponto em que Cassy estava tendo dificuldades em manter o equilíbrio sobre os degraus translúcidos.

— Vá, Cassy! — gritou Beau, passionalmente.

Com um toque final do dedo estendido de Beau, Cassy alcançou com esforço o piso do salão de baile. O lugar agora estava sendo sacudido, como se atingido por um terremoto.

Ela conseguiu chegar até o carro. Pitt segurava a porta aberta para que entrasse.

— Beau disse que precisamos fugir — gritou Cassy. — Vai haver uma dispersão.

Sem precisar de mais encorajamento, Harlan deu marcha à ré e pisou fundo no acelerador. Os solavancos e abalos eram mais intensos do que quando o veículo entrara na casa, mas logo estavam de volta ao hall de entrada. Com grande habilidade, Harlan manobrou o carro de modo a ficar de frente para a porta estraçalhada. O candelabro no teto balançava-se tanto que estilhaços de cristal voavam em várias direções. Sentada no banco da frente e sem o escudo do pára-brisa, Sheila teve de proteger o rosto com as mãos.

— Segurem-se todos — avisou Harlan. com as rodas derrapando sobre o mármore polido, ele arremeteu o Range Rover pela porta da frente, atravessou a varanda e desceu os degraus. O solavanco que sofreram ao bater no chão, na base da escada, foi tão intenso quanto o impacto que experimentaram ao colidir com a parede no salão de baile.

Harlan atravessou o gramado em linha reta, na direção da divisão entre as árvores que marcava o ponto onde a estradinha emergia.

— Precisa dirigir nessa velocidade toda? — queixou-se Sheila.

— Cassy disse que vai haver uma dispersão — disse Harlan. — Calculei que quanto mais longe estivermos, melhor.

— Que diabos é uma dispersão? — perguntou Sheila.

— Não tenho a menor idéia — admitiu Harlan. — Mas parece algo muito ruim.

Naquele momento houve uma tremenda explosão atrás deles, mas sem o ruído ou a onda de choque usuais. Cassy virou-se para trás a tempo de ver a casa literalmente voar em pedaços pelos ares. Também não havia nenhum clarão de luz para indicar o ponto de conflagração.

Ao mesmo tempo todos no Range Rover tiveram consciência de que estavam no ar. Sem nenhuma tração, o motor acelerou até Harlan tirar o pé do acelerador.

O vôo durou apenas cinco segundos e o retorno à terra se fez acompanhar por uma súbita guinada, pois a velocidade das rodas havia se reduzido, mas o movimento de avanço do carro não.

Estupefato diante daquele estranho fenômeno, Harlan freou, fazendo o carro parar. Ele estava aborrecido por ter perdido totalmente o controle do veículo, mesmo que por apenas alguns segundos.

— Nós voamos por um momento — declarou Sheila. — Como isso aconteceu?

— Não sei — respondeu Harlan, olhando os instrumentos e mostradores, como se estes pudessem oferecer alguma resposta.

— Vejam o que aconteceu com a casa! — exclamou Cassy. — Ela desapareceu!

Todos se voltaram para olhar. Fora do carro, os pedestres estavam fazendo o mesmo. Não havia fumaça ou escombros. A casa simplesmente desaparecera.

— Bem, agora sabemos o que é uma dispersão — afirmou Harlan. — Deve ser o oposto de um buraco negro. Creio que quando uma coisa é dispersa, ela se reduz a suas partículas primárias, e estas simplesmente se espalham.

Cassy sentiu a emoção brotar em seu íntimo, experimentando uma súbita e intensa sensação de perda, e algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto.

Do canto do olho, Pitt viu as lágrimas de Cassy e compreendeu imediatamente, abraçando-a.

— Eu também sentirei a falta dele — disse ele. Cassy assentiu.

— Acho que sempre irei amá-lo — afirmou ela, enxugando uma lágrima com o nó de um dedo. Mas, então, rapidamente acrescentou: — Mas isso não significa que eu não ame você.

Com uma sofreguidão que deixou Pitt sem fôlego, Cassy o apertou num abraço forte. Timidamente a princípio e depois com igual ardor, Pitt correspondeu ao abraço.

Harlan saltou do carro e dirigiu-se à traseira, apanhando os frascos.

— Venha, pessoal — chamou ele. — Temos um trabalho de infecção a fazer.

— Puxa vida! — gritou Jonathan. — Vejam! A minha mãe. Todos olharam na direção em que Jonathan apontava.

— É, acho que tem razão — disse Sheila.

Jonathan desceu do carro com a intenção de correr pelo gramado para alcançá-la. Harlan agarrou-lhe o braço e meteu um dos frascos em sua mão.

— Dê-lhe um pouco disso, filho — disse ele. — Quanto mais cedo, melhor.

 

                                                                                            Robin Cook

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades