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Series & Trilogias Literarias
A IRMÃ DE ANA BOLENA / Parte III
Primavera de 1533
Alguns meses depois, estava feito. Ana, sem nunca largar seu ventre inchado, foi publicamente declarada a esposa oficial do rei por nada menos do que o arcebispo Cranmer, que fez o inquérito mais breve possível sobre o casamento da rainha Catarina com Henrique, e descobriu que sempre tinha sido nulo. A rainha nem sequer compareceu à corte que difamou seu nome e a desonrou. Ela se aferrava a seu apelo a Roma, ignorando a decisão inglesa. Por um momento, tolamente, procurei-a com os olhos quando foi feita a proclamação, achando que poderia estar lá, desafiadora em seu vestido vermelho, como havia sido antes. Mas estava longe, escrevendo ao Papa, a seu sobrinho, a seus aliados, pedindo que insistissem para que seu caso fosse tratado com justiça, perante juízes honrados em Roma.
Mas Henrique tinha passado uma lei, mais uma lei, que dizia que as disputas inglesas só poderiam ser julgadas em tribunais ingleses. De súbito, nenhum apelo a Roma seria legítimo. Lembrei-me de ter dito a Henrique que os ingleses gostariam de ver a justiça feita em uma corte inglesa, sem nem mesmo sonhar que a justiça inglesa significaria um capricho seu, assim como a Igreja passara a significar seu tesouro, assim como o Conselho Privado passara a significar seus favoritos e de Ana.
Ninguém na Páscoa mencionou a rainha Catarina. Era como se ela nunca tivesse existido. Ninguém reparou quando os pedreiros se puseram a trabalhar, removendo as romãs da Espanha, que haviam estado ali por tanto tempo que a pedra havia se desgastado como uma montanha. Ninguém perguntou que título Catarina receberia agora que havia uma nova rainha na Inglaterra. Ninguém falava nela, era como se tivesse sofrido uma morte tão vergonhosa que todos estivéssemos tentando esquecê-la.
Ana quase cambaleou sob o peso da vestimenta cerimonial e dos diamantes e joias em seu cabelo, na cauda do manto, na bainha de seu vestido e em volta de seu pescoço e braços. A corte estava absolutamente a seu serviço, e claramente sem o menor entusiasmo. George me disse que o rei planejava coroá-la no Pentecostes, que nesse ano cairia em junho.
— Em Londres? — perguntei.
— Vai ser uma atuação que suplantará a coroação de Catarina — disse ele. — Tem de ser.
William Stafford não retornou à corte. Fiquei atenta ao tom de minha voz e perguntei a meu tio, com muito cuidado, quando assistíamos ao rei jogar boliche, se ele havia promovido William Stafford a seu mestre de cavalos porque eu queria muito um cavalo novo para a temporada.
— Oh, não — replicou, percebendo a mentira assim que saiu de minha boca. — Foi embora. Tivemos uma conversa depois de Calais. Não voltará a vê-lo.
Mantive minha cara impassível, não ofeguei nem recuei. Era tão cortesã quanto ele, cortesão, e era capaz de receber um golpe sem cair do cavalo.
— Foi para a sua fazenda? — perguntei, como se me fosse indiferente.
— Isso; ou foi lutar nas cruzadas — respondeu meu tio. — Bons ventos o levem!
Voltei minha atenção ao jogo e quando Henrique fez uma boa jogada, bati palmas e disse:
— Hurra! — ofereceram-me uma aposta, mas me recusei a apostar contra o rei e percebi um breve sorriso dele por essa lisonja. Esperei o jogo terminar e quando ficou claro que Henrique não me chamaria para caminhar com ele, escapei do grupo que o cercava e fui para o meu quarto.
O fogo na lareira estava apagado. O quarto dava para o oeste e estava sombrio. Recostei-me na cama, puxando as cobertas sobre meus pés e pondo um cobertor em volta dos ombros, como uma mulher pobre no campo. Eu estava gelada. Apertei bem o cobertor ao redor do meu corpo, mas não me aqueceu. Recordei-me dos dias na praia, em Calais, o cheiro do mar e a areia em minhas costas e minha roupa de baixo, enquanto William me tocava e me beijava. Nessas noites, na França, eu sonhava com ele, e despertava toda manhã fraca, ansiando por ele, o travesseiro com areia do meu cabelo. Ainda agora, minha boca ansiava por seus beijos.
Tinha mantido minha promessa a George. Tinha dito que, antes de mais nada, eu era uma Bolena e uma Howard. Mas agora, no quarto sombroso, olhando para as ardósias cinzentas da cidade e, acima, as nuvens escuras sobre o telhado do Palácio de Westminster, percebi, de súbito, que George estava enganado, que a minha família estava enganada, e que eu tinha me enganado — durante toda a minha vida. Eu não era uma Howard antes de mais nada. Antes de mais nada, eu era uma mulher capaz de uma paixão, que tinha uma grande necessidade e um grande desejo de amor. Eu não queria a recompensa pela qual Ana tinha cedido sua juventude. Eu não queria o glamour árido da vida de George. Eu queria o calor e o suor, e a paixão de um homem que eu pudesse amar e em que eu pudesse confiar. E queria me entregar a ele: não para tirar vantagem, mas por desejo.
Sem saber o que estava fazendo, levantei-me da cama e chutei as cobertas.
— William — eu disse ao quarto vazio. — William.
Desci ao pátio das cavalariças e mandei que meu cavalo fosse atrelado para eu ir a Hever ver meus filhos. Certamente meu tio tinha um par de olhos e ouvidos escutando e observando, mas eu esperava já ter partido quando uma mensagem o alcançasse. A corte tinha saído da pista de boliche e ido almoçar e achei que, se tivesse sorte, conseguiria estar longe antes de um espião poder ter liberdade para relatar a meu tio que sua sobrinha tinha partido para a sua casa sem escolta.
Escureceu em duas horas, aquele escuro frio de primavera, que chega bem cinza e logo se torna tão negro quanto o do inverno. Mal tinha saído da cidade, cheguei a uma pequena aldeia chamada Canning, onde vi os muros altos e a porta do zelador de um mosteiro. Bati à porta, e ao verem a qualidade de meu cavalo, me introduziram, conduzindo-me a uma pequena cela de paredes caiadas, e me ofereceram um pedaço de carne, uma fatia de pão, um pedaço de queijo e um copo de ale.
De manhã, me ofereceram exatamente o mesmo e assisti à missa com a barriga roncando, pensando que as explosões de Henrique contra a corrupção e riqueza da Igreja poderiam oferecer subsídios a pequenas comunidades como essa.
Tive de perguntar qual o caminho para Rochford. A casa e a propriedade tinham sido dos Howard por anos, mas raramente as visitávamos. Eu tinha estado lá somente uma vez, e ido pelo rio. Não fazia ideia da estrada. Mas um garoto na estrebaria disse que sabia o caminho para Tilbury, e o monge que servia de mestre de duas mulas e dos cavalos de tração para o arado disse que poderia me acompanhar em seu velho cavalo e me mostrar a direção.
Era um garoto bonito, chamado Jimmy, que montava o cavalo em pelo, seus calcanhares descalços batendo no flanco empoeirado do animal velho, cantando com toda a força de sua voz. Formávamos um casal esquisito, a cavalo, seguindo a margem do rio: o moleque e a dama. Foi uma cavalgada difícil, a trilha era empoeirada, com seixos em algumas partes, e lama em outras. Onde cruzava riachos que corriam para o Tâmisa, havia vaus e, às vezes, charcos traiçoeiros, em que minha égua se retraía e se agitava com a areia movediça sob seus cascos, e foi a firmeza do pangaré de Jimmy que a fez prosseguir. Jantamos em uma fazenda em uma aldeia de nome Rainham. A dona da casa me serviu um ovo cozido e um pouco de pão preto, que era tudo o que podiam oferecer. Jimmy comeu pão puro e pareceu satisfeito. Havia duas maçãs murchas para a nossa sobremesa e quase ri ao pensar no jantar que estava perdendo no palácio de Westminster, com a meia dúzia de pratos de acompanhamento e as dezenas de carnes servidas em travessas douradas.
Eu não estava nervosa. Pela primeira vez, sentia que tinha minha vida em minhas próprias mãos e que poderia comandar o meu destino. Pela primeira vez, obedecia não ao meu tio ou ao meu pai ou ao rei, mas aos meus próprios anseios. E sabia que o meu desejo me levava, inexoravelmente, ao homem que eu amava.
Eu não desconfiava dele. Não achei, nem por um instante, que pudesse ter-me esquecido, ou que mantivesse uma relação com uma prostituta da aldeia, ou que tivesse se casado com uma herdeira escolhida para ele. Não, sentei-me na parte de trás de uma carroça sem rodas e observei Jimmy cuspir as sementes da maçã e, pela primeira vez, experimentei a sensação da confiança.
Depois do jantar, cavalgamos por mais duas horas e chegamos à pequena cidade de Grays, quando começou a escurecer. Tilbury ficava mais além, me garantiu Jimmy, mas se eu quisesse ir a Rochford, para além de Southend, ele achava que eu poderia cortar caminho seguindo diretamente para o leste.
Grays ostentava sua pequena cervejaria, nenhuma casa de fazenda, somente um bom solar retirado da estrada. Brinquei com a ideia de seguir direto para o solar e reivindicar meu direito, de viajante surpreendido pela noite, à sua hospitalidade. Mas receei a influência de meu tio, que se estendia por todo o reino. E começava a me sentir constrangida com a poeira em meu cabelo, a sujeira em meu rosto e roupas. Jimmy estava tão sujo quanto um moleque de rua, e nenhuma casa, qualquer que fosse, o colocaria em outro lugar que não a estrebaria.
— Vamos para a taberna — decidi.
O lugar era melhor do que tinha parecido. Lucrava com o movimento de ida e volta de Tilbury, onde os viajantes vindos da capital preferiam embarcar a esperar a maré certa ou as barcaças que conduziriam seus navios até Londres. Ofereceram-me uma cama com cortinado em um quarto dividido, e a Jimmy, um colchão de palha na cozinha. Cozinharam uma galinha e a serviram com pão integral e um copo de vinho. Consegui até mesmo me lavar em uma bacia de água fria, de modo que meu rosto ficasse limpo, embora o cabelo estivesse imundo. Dormi sem tirar a roupa, e coloquei minhas botas de montaria sob o travesseiro com medo de que fossem roubadas. De manhã, tive a sensação desconfortável de que cheirava mal, e de uma fileira de mordidas de pulgas em minha barriga, debaixo do corpete, que coçava cada vez mais furiosamente durante o dia.
Tive de liberar Jimmy de manhã. Tinha prometido apenas me mostrar o caminho para Tilbury, e a viagem de volta era longa para um garoto sozinho. Ele não estava nem um pouco atemorizado com isso. Pulou do cepo para o lombo arqueado de seu pangaré e aceitou a moeda que lhe dei, um naco de pão e queijo para que comesse na estrada. Cavalgamos juntos até nossos caminhos divergirem, e ele me apontou a trilha para Southend, depois seguiu para o oeste, de volta na direção de Londres.
Atravessei sozinha uma região vazia. Vazia, plana e desolada. Achei que lavrar aquela terra seria muito diferente de estar envolvida pelo descampado fértil de Kent. Cavalguei rápido e atenta à minha volta, receosa de que a estrada desolada que atravessava os charcos estivesse cheia de ladrões. Na verdade, o ermo da região rural foi meu amigo. Não havia ladrões de estrada porque não havia a quem roubar. Do amanhecer até o meio-dia, só vi espantalhos em um pequeno pedaço de terra recentemente semeado e, ao longe, um lavrador remexendo a lama à beira de um brejo, uma plumagem de gaivotas erguendo como fumaça atrás dele.
A cavalgada era lenta quando passava por charcos e o caminho se tornava ensopado e lamacento. O vento soprava do rio trazendo o cheiro de salmoura. Atravessei dois povoados que não eram mais que barro moldado em casas, as paredes de barro, os telhados de barro. Duas crianças olharam surpresas e correram atrás de mim, gritando excitadas, e também elas tinham a cor de barro. A tarde caía quando cheguei a Southend, e procurei um lugar onde passar a noite.
Havia poucas casas e uma igrejinha, com a casa do padre ao lado. Bati na porta e a governanta me atendeu com uma carranca desencorajadora. Disse-lhe que estava de passagem e pedi sua hospitalidade. Conduziu-me, com toda a má vontade, a um pequeno quarto ao lado da cozinha. Se eu fosse uma Bolena ou uma Howard a amaldiçoaria por sua grosseria, mas eu era uma mulher pobre, sem nada no mundo a não ser um punhado de moedas e uma determinação inabalável.
— Obrigada — eu disse, como se fosse um alojamento adequado. — Haveria um pouco de água com que me lavar? E algo para comer?
O ruído das moedas em minha bolsa mudaram sua recusa para o assentimento, e ela foi buscar água e uma tigela de caldo de carne que tinha a aparência e o gosto de algo que estivesse ali já há alguns dias. Mas eu estava faminta demais para me importar com isso, e cansada demais para discutir. Comi tudo e limpei o prato com um pedaço de pão. Então, caí no pequeno catre e dormi até amanhecer.
Ela estava acordada na cozinha, varrendo o chão e atiçando o fogo para preparar o desjejum de seu patrão. Pedi um pano seco e fui ao quintal lavar o rosto e as mãos. Também lavei meus pés, repreendida o tempo todo pela galinhada. A minha vontade era tirar a roupa toda e me lavar direito, depois vestir roupas limpas, o mesmo que também querer uma liteira e carregadores para me transportar o resto do caminho. Se ele me amasse, não se importaria com um pouco de sujeira. Se não me amasse, a sujeira nada significaria para mim, em comparação com essa catástrofe.
A governanta ficou curiosa, durante o desjejum, querendo saber por que eu viajava sozinha. Tinha visto o cavalo e meu vestido, e sabia o quanto valiam. Eu não disse nada, pus uma fatia de pão no bolso do meu vestido e saí para selar minha égua. Quando montei e estava pronta para partir, a chamei.
— Pode me dizer o caminho para Rochford?
— Do portão, pegue a esquerda — replicou ela. — Basta seguir sempre para o leste. Deverá chegar em aproximadamente uma hora. Quem está procurando? A família Bolena está sempre na corte.
Resmunguei qualquer resposta. Não queria que soubesse que eu, uma Bolena, tinha percorrido uma distância tão longa por um homem que nem mesmo tinha me convidado. À medida que me aproximava da casa dele, ficava cada vez mais receosa, e não precisava de testemunha para a minha audácia. Firmei-me no cavalo e parti, virando à esquerda como ela tinha me dito, e depois seguindo reto para o sol nascente.
Rochford era um povoado de meia dúzia de casas ao redor de uma taverna em uma encruzilhada. A casa de minha família ficava atrás de muros altos de tijolos com um parque de bom tamanho ao redor. Não dava para vê-la da estrada. Não receei que um dos criados me visse, pois mesmo que vissem, não me reconheceriam.
Um rapaz, de cerca de 20 anos, espreguiçava-se, recostado na parede de um chalé, olhando para a viela vazia. Era tudo plano e ventava. Fazia muito frio. Se isso fosse um teste de cavaleiro andante, não poderia ser mais desencorajante. Ergui o queixo e chamei-o:
— A fazenda de William Stafford?
Ele tirou a palha da boca e veio na direção do meu cavalo.
Virei um pouco a égua, de modo que não pudesse pôr as mãos nas rédeas. Ele recuou, quando as ancas poderosas giraram.
— William Stafford? — perguntou espantado.
Tirei uma moeda da bolsa e a segurei com minha mão enluvada, entre o indicador e o polegar.
— Sim — repliquei.
— O novo cavalheiro? — perguntou. — De Londres? Fazenda Appletree — disse ele, apontando estrada acima. — Vire à direita, na direção do rio. A casa de sapé com pátio de cavalariças. Macieira na margem da estrada.
Lancei-lhe a moeda, que pegou com uma mão.
— Também vem de Londres? — perguntou curioso.
— Não — respondi. — De Kent.
Então, dei a volta e subi a estrada procurando o rio, uma macieira, e uma casa de sapé com um pátio de cavalariça.
O terreno desviou-se da estrada em direção ao rio. À sua margem, havia canteiros de bambus e um bando de patos gritou alarmado e uma garça bateu asas, suas pernas compridas e peito arqueado, pousando um pouco abaixo. Os campos eram resguardados por cercas vivas. À beira da água, as campinas desiguais estavam amarelas, provavelmente estragadas com o sal, pensei. Mais perto da estrada, estavam opacas e verdes com o cansaço do inverno. Mas na primavera, pensei, William poderia ter um belo gramado.
No extremo da estrada, a terra era mais alta e estava arada. Água reluzia em cada rego, a terra estaria sempre úmida. Para o norte, dava para ver campos semeados de macieiras. Havia uma velha e solitária macieira inclinada sobre a estrada, e os galhos estavam cortados. O tronco era cinza prateado, os ramos grossos por causa da idade. Uma moita de visco na bifurcação pendia de um galho e, com um impulso, dirigi meu cavalo para lá e arranquei um ramo, de modo que segurava a planta pagã quando desci a pequena trilha até sua casa.
Era uma casa pequena, como uma criança desenharia. Uma casa comprida e baixa, quatro janelas ao longo do andar de cima, mais duas e a entrada no centro do andar térreo. A porta de entrada era como a de uma estrebaria. Imaginei que em um passado não muito remoto, a família do fazendeiro e os animais dormissem todos juntos. Ao lado da casa, havia um bom pátio, pavimentado de pedras redondas e limpo, e um campo com meia dúzia de vacas do lado. Um cavalo balançou a cabeça sobre o portão e o reconheci como o cavalo de William Stafford que galopara ao meu lado nas praias arenosas de Calais. O animal relinchou ao nos ver, e a minha égua respondeu, como se também ela se lembrasse daqueles dias ensolarados de fim de outono.
Com o barulho, a porta da frente se abriu e uma figura surgiu do interior escuro e ficou, com as mãos nos quadris, me observando descer a estrada. Não se moveu nem falou quando cheguei ao portão do jardim. Desmontei sem ajuda, abri o portão sem ouvir uma palavra de cortesia de sua parte. Prendi as rédeas ao lado do portão e, ainda com o visco na mão, fui até ele.
Depois de uma viagem tão longa, me vi sem nada o que dizer. Meu senso de propósito e determinação dissipou-se no instante em que o vi.
— William — foi tudo o que consegui falar, e segurei o pequeno ramo de visco com os botões brancos como se fosse um tributo.
— O quê? — perguntou desamparado, sem se mover na minha direção.
Tirei o capuz, soltando o cabelo. De repente, fiquei consciente de que ele sempre me vira lavada e perfumada. E ali estava eu, com o mesmo vestido há três dias, mordida de pulgas, com piolhos, suja e cheirando a cavalo e suor, e impotente e irremediavelmente inarticulada.
— O quê? — repetiu.
— Vim para me casar com você, se ainda me quiser — não havia como suavizar o atrevimento das minhas palavras.
Sua expressão não denotou nada. Olhou para a estrada atrás de mim.
— Quem a trouxe?
Sacudi a cabeça.
— Vim sozinha.
— O que aconteceu de errado na corte?
— Nada — repliquei.— Nunca esteve melhor. Casaram-se e ela está grávida. Os Howard nunca fizeram prospectos mais promissores. Serei tia do rei da Inglaterra.
William deu uma risada ao ouvir isso, e olhei para minhas botas imundas, a poeira em minhas roupas, e também ri. Quando voltei a olhar para ele, seus olhos estavam ternos.
— Não tenho nada — avisou-me. — Sou um joão-ninguém, como você dizia com razão.
— Eu só tenho cem libras anuais — eu disse. — E as perderei quando souberem aonde vim. E sou ninguém sem você.
Fez um gesto rápido com a mão como se fosse me atrair para si, mas se reprimiu.
— Não quero ser a causa de sua ruína — disse ele. — Não quero que empobreça por me amar.
Estremeci com a sua proximidade, com o meu desejo.
— Não importa — respondi com urgência. — Juro que isso não tem mais a menor importância para mim.
Abriu os braços, avancei e praticamente caí para a frente. Ele me abraçou forte, a boca na minha, seus beijos por todo o meu rosto sujo, minhas pálpebras, bochechas e lábios e, finalmente, em minha boca aberta. Levantou-me e me carregou para dentro e para cima, para o seu quarto, para os lençóis limpos de sua cama de penas de pato, e para o prazer.
Mais tarde, riu das mordidas de pulgas, buscou uma tina de madeira grande que encheu de água e colocou diante do fogo na cozinha, e catou os piolhos de meu cabelo enquanto eu jogava a cabeça para trás e a molhava na água cheirosa. Ele pôs minhas roupas de lado para serem lavadas e insistiu para que eu vestisse uma camisa e uma calça suas, que amarrei em volta da cintura, e arregacei as pernas como um marinheiro. Ele soltou minha égua no prado, onde ela rolou com prazer por se ver livre da sela, e trotou largo com o cavalo de William, pinoteando como uma potranca. Depois, ele me preparou uma tigela grande de mingau com mel, uma fatia de pão integral com manteiga, e um pedaço de queijo Essex. Riu da minha viagem com Jimmy e me repreendeu por ter partido sem escolta. Depois, me levou de volta para a cama e fizemos amor durante a tarde toda, até o céu escurecer e ficarmos famintos de novo.
Jantamos à luz de velas na cozinha. Em minha honra, William matou uma galinha e a assou no espeto. Fui equipada com um par de luvas rústicas e encarregada de girar o espeto, enquanto ele fatiava o pão e servia ale, e buscava, na despensa resfriada, a manteiga e o queijo.
Depois de comermos, arrastamos nossos bancos para perto do fogo e brindamos a nós dois. Então, ficamos em silêncio.
— Mal posso acreditar — eu disse depois de algum tempo. — Eu só pensava em chegar até você. Não pensei em sua casa. Não pensei no que faríamos a seguir.
— E no que pensa agora?
— Continuo sem saber no que pensar — admiti. — Acho que vou me acostumar. Serei a mulher de um fazendeiro.
Inclinou-se à frente e lançou um torrão de turfa no fogo, que se inflamou como os outros.
— E a sua família? — perguntou.
Encolhi os ombros.
— Deixou um bilhete?
Sacudi a cabeça.
— Nada.
Ele riu.
— Meu amor, no que estava pensando?
— Estava pensando em você — respondi simplesmente. — De repente, me dei conta de como o amava. Só consegui pensar em encontrá-lo.
Estendeu a mão e afagou meu cabelo.
— Você é uma boa menina — disse ele, de maneira aprovadora.
— Boa menina? — perguntei rindo.
— Sim — replicou impassível. — Muito boa.
Inclinei-me para trás, para a sua carícia, e sua mão foi de meu cabelo para a minha nuca. Pegou-a com firmeza e me sacudiu delicadamente, como uma gata faria com seu filhote. Fechei os olhos e me fundi em seu toque.
— Não pode ficar aqui — disse ele baixinho.
Surpresa, abri os olhos.
— Não?
— Não — ergueu a mão para me antecipar. — Não porque não a ame. Mas porque a amo. E temos de nos casar. Mas temos de tirar o que pudermos disso.
— Refere-se a dinheiro? — perguntei, um pouco decepcionada.
Sacudiu a cabeça.
— Refiro-me a seus filhos. Se ficar comigo sem avisar ninguém, sem o apoio de ninguém, não terá seus filhos. Não voltará a vê-los.
Estreitei os lábios de dor.
— De qualquer maneira, Ana pode tirá-los de mim a qualquer momento.
— Ou devolvê-los — lembrou-me ele. — Disse que ela está grávida?
— Sim. Mas...
— Se ela tiver um menino, não precisará do seu. Temos de estar preparados para pegá-lo, quando ela o soltar.
— Acha que o terei de volta?
— Não sei. Mas terá de estar na corte para lutar por ele — senti, pelo tecido da camisa, suas mãos quentes em meus ombros.
— Voltarei com você — disse ele. — Posso deixar alguém administrando a fazenda por uma ou duas estações. O rei me dará um posto. E poderemos ficar juntos até saber para que lado o vento está soprando. Faremos tudo para conseguir as crianças, e então não teremos mais nenhum impedimento e voltaremos para cá — hesitou por um momento e percebi uma tristeza em seu rosto. Parecia apreensivo. — Aqui é bom o bastante para eles? — perguntou timidamente. — Estão acostumados com Hever, e há a casa suntuosa de sua família só mais um pouco acima. Nasceram e foram criados na pequena nobreza. Aqui é apenas uma casa pequena.
— Estarão conosco — repliquei simplesmente. — E os amaremos. Terão uma nova família, um tipo de família que nenhum nobre jamais teve. Um pai e uma mãe que se casaram por amor, que escolheram um ao outro independentemente da riqueza e posição. Isso só poderá ser melhor para eles, nunca pior.
— E você? Aqui não é Kent.
— Tampouco é o Palácio de Westminster — eu disse. — Tomei a decisão quando percebi que nada compensaria eu não estar com você. Quando percebi que precisava de você. Qualquer que seja o preço, quero ficar com você.
Suas mãos apertaram mais forte meus ombros. Puxou-me para o seu colo.
— Repita — sussurrou. — Acho que estou sonhando.
— Preciso de você — sussurrei, meus olhos buscando sua face concentrada. — Independentemente do que acontecer, quero estar com você.
— Casa-se comigo? — perguntou.
Fechei os olhos e pus a testa em seu pescoço quente.
— Oh, sim — repliquei. — Oh, sim.
Nós nos casamos assim que minhas roupas estavam lavadas e secas, já que me recusei a ir à igreja usando sua calça. O padre o conhecia, e abriu a igreja para nós no dia seguinte mesmo e realizou o serviço com uma pressa distraída. Não me importei. Tinha casado antes na capela real no Palácio de Greenwich, com a presença do rei, e o casamento tinha sido uma fachada para uma aventura amorosa dali a alguns anos, e havia terminado com morte. Esse casamento de agora, tão simples e fácil, me levaria a um futuro completamente diferente: uma casa minha com o homem que eu amava.
Voltamos para a fazenda de mãos dadas e tivemos um banquete com pão recém-assado e presunto que William tinha defumado em sua lareira.
— Vou ter de aprender a fazer tudo isso — falei, apreensiva, olhando para as vigas no teto, de onde pendiam os três pernis restantes do porco de William.
— É muito fácil — disse ele rindo. — E teremos uma menina para ajudá-la. Vamos precisar de umas duas mulheres trabalhando aqui, quando os bebês chegarem.
— Bebês? — perguntei, pensando em Catarina e Henrique.
Ele sorriu.
— Nossos filhos — replicou. — Quero a casa cheia de pequenos Stafford. E você?
Partimos de volta a Westminster no dia seguinte. Eu já tinha mandado um bilhete a George, implorando que dissesse a Ana e a meu tio que tinha me sentido mal. Que temera ter sido o suor e que por isso tinha deixado a corte sem avisá-los e ido para Hever até me restabelecer. Uma mentira tardia e improvável de convencer a quem quer que refletisse um pouco, mas eu estava apostando no fato de que com Ana casada com o rei e grávida de seu filho, ninguém estaria pensando ou se importando muito com o que eu fizesse.
Retornamos a Londres de barco, com os dois cavalos. Relutei em voltar. Tinha partido com a intenção de viver no campo com William, e não de mudar seus planos e tirá-lo de sua fazenda. Mas ele estava decidido.
— Você nunca ficará bem sem seus filhos — predisse ele. — E não quero que a sua infelicidade pese na minha consciência.
— Portanto não é nenhum ato de generosidade — eu disse impetuosamente.
— A última coisa que quero é uma mulher infeliz — disse ele, animadamente. — Já fui de Hever a Londres com você, se lembra? E sei que mulherzinha triste você pode ser.
A maré subia e o vento soprava na direção do litoral, e a viagem foi agradável. Desembarcamos em Westminster, e subi os degraus do cais enquanto William ia ao píer desembarcar os cavalos. Prometi encontrá-lo no salão em uma hora, quando já teria descoberto se a poeira estava assentada.
Fui direto para os aposentos de George. Estranhamente, sua porta estava trancada, de modo que bati, a batida Bolena, e esperei a resposta. Escutei uma certa agitação e, então, a porta foi aberta.
— Ah, é você — disse George.
Sir Francis Weston estava com ele, ajeitando o gibão, quando entrei.
— Oh — eu disse, recuando.
— Francis sofreu uma queda de seu cavalo — disse George. — Já pode andar, Francis?
— Sim, mas vou descansar um pouco — disse ele. Fez uma reverência profunda e nenhum comentário sobre o estado de meu vestido e manto, que ostentavam todos os sinais de terem sido lavados em casa.
Assim que a porta tornou a se fechar, me virei para George.
— George, sinto muito, mas eu tinha de ir. Conseguiu mentir por mim?
— William Stafford? — perguntou.
Assenti com a cabeça.
— Foi o que pensei — disse ele. — Deus, que tolos somos nós dois.
— Nós dois? — perguntei com cautela.
— Cada um à sua maneira — replicou. — Procurou-o e o teve, foi isso?
— Sim — respondi sem rodeios. Não me atrevi a confiar nem mesmo em George com a notícia explosiva de que tínhamos nos casado. — E ele retornou à corte comigo. Vai lhe conseguir um posto com o rei? Ele não pode voltar a servir ao nosso tio.
— Posso lhe conseguir alguma coisa — disse George, ambiguamente. — A linhagem Howard é muito influente no momento. Mas por que o quer na corte? Serão fatalmente descobertos.
— George, por favor — eu disse. — Não pedi nada. Todos obtiveram postos, terra ou dinheiro com a ascensão de Ana, e eu não pedi nada além de meus filhos, e ela tirou meu filho de mim. Esta é a primeira coisa que peço.
— Será vista — advertiu-me — e cairá em desgraça.
— Todos temos segredos — eu disse. — Até mesmo Ana. Protegi os segredos de Ana, protegi os seus, quero que faça o mesmo por mim.
— Está bem — disse ele a contragosto. — Mas terá de ser discreta. Nada de cavalgarem sozinhos. E, pelo amor de Deus, não vá emprenhar. E se tio Howard encontrar um marido para você, terá de se casar, com ou sem amor.
— Trato disso quando acontecer — repliquei. — Vai lhe conseguir algo?
— Ele pode ser o porteiro pessoal do rei. Mas que fique claro que foi o meu favor que conseguiu isso para ele, e que mantenha olhos e ouvidos alertas em meu interesse. Agora, ele é um homem meu.
— Não, não é — repliquei, com um sorriso malicioso. — Ele é meu.
— Deus meu, que rameira — riu meu irmão e me abraçou.
— E estou segura? Acreditaram que fui a Hever?
— Sim — disse ele. — Por um dia, ninguém notou que tinha partido. Perguntaram-me se a tinha levado a Hever sem permissão e confirmar me pareceu a coisa mais segura a fazer, até eu saber o que diabos você andava fazendo. Eu disse que você receava que as crianças estivessem doentes. Quando recebi seu bilhete, a mentira já tinha sido dita, de modo que a mantive. Todos acham que foi às pressas para Hever e que a acompanhei. É uma boa mentira e convincente.
— Obrigada — eu disse. — É melhor eu ir trocar de roupa antes que me vejam assim.
— É melhor jogar fora este vestido. Você é travessa e maluca, sabe, Mariana? Nunca pensei que tivesse esse lado. Sempre foi Ana que insistiu em fazer seu próprio caminho. Achei que você sempre faria o que lhe mandassem fazer.
— Não desta vez — repliquei. Mandei-lhe um beijo e o deixei.
Fui ao encontro de William como prometido. Foi esquisito falarmos a um braço de distância, como se fôssemos estranhos, quando tudo o que eu queria era seu braço em volta de mim e seus beijos em meu cabelo.
— George já tinha mentido por mim, portanto estou segura. E ele disse que pode lhe conseguir o posto de porteiro pessoal do rei.
— Como subi! — disse William, com sarcasmo. — Sabia que o casamento com você me beneficiaria. De fazendeiro a servidor pessoal em um dia.
— E o cadafalso no dia seguinte, se não segurar a sua língua — o adverti.
Riu, pegou minha mão e a beijou.
— Vou sair e procurar um lugar fora dos muros para passarmos as noites juntos, já que ficaremos separados durante o dia.
— Sim — eu disse. — Quero isso.
Sorriu.
— Você é minha mulher — disse delicadamente. — Não vou deixar que se vá.
Encontrei Ana nos aposentos da rainha, começando a trabalhar, com suas damas de honra, uma imensa toalha de altar. A visão lembrou tanto a rainha Catarina, que, por um momento, pisquei os olhos, e então vi as diferenças cruciais. As damas de Ana eram todas membros da família Howard ou as favoritas escolhidas por nós. A mais bonita era, sem dúvida, a nossa prima Madge Shelton, a nova garota Howard na corte, a mais rica e mais influente era Jane Parker, a mulher de George. A atmosfera da sala era outra: com frequência, havia uma de nós lendo para a rainha Catarina um trecho da Bíblia ou de um livro de sermões. Ana tinha música: quatro músicos tocavam quando entrei, e uma das damas ergueu a cabeça e cantou enquanto trabalhava.
E havia cavalheiros presentes. A rainha Catarina, criada na reclusão estrita da corte espanhola, era sempre formal — mesmo após anos na Inglaterra. Os cavalheiros a visitavam com o rei, sendo sempre bem recebidos e entretidos, mas, em geral, cortesãos não se demoravam nos aposentos da rainha. Os flertes aconteciam na liberdade não vigiada dos jardins ou durante as caçadas.
A condição de Ana a deixou muito mais feliz. Havia meia dúzia de homens na sala. Sir William Brereton estava lá, ajudando Madge a selecionar as cores dos fios de seda, Sir Thomas Wyatt estava no vão da janela, escutando música, Sir Francis Weston estava inclinado sobre Ana elogiando seu bordado, e num canto Jane Parker cochichava com James Wyville.
Ana não ergueu os olhos quando entrei, com um vestido verde limpo.
— Oh, está de volta — disse com indiferença. — As crianças ficaram boas?
— Sim — respondi. — Foi só um resfriado.
— Deve estar adorável em Hever — comentou Sir Thomas Wyatt. — Os narcisos estão em flor à margem do rio?
— Sim — menti. — Em botão — me corrigi.
— Mas a flor mais bela de Hever está aqui — disse Sir Thomas, olhando para Ana.
Ela relanceou os olhos para cima do bordado.
— E também em botão — disse de maneira provocadora, e as damas riram com ela.
Olhei de Sir Thomas para Ana. Não achei que faria alusão à sua gravidez, sobretudo diante de homens.
— Quem me dera ser a abelhinha que brinca nas pétalas — disse ele, prosseguindo o gracejo lascivo.
— Iria se deparar com a flor bem fechada — disse Ana.
Os olhos brilhantes de Jane Parker iam de um a outro, como se estivesse assistindo a uma partida de tênis. O jogo todo, de repente, me pareceu uma perda de tempo, que eu poderia estar passando com William, mais uma mascarada no eterno faz de conta da corte. Eu estava ávida por amor de verdade.
— Quando vamos nos mudar? — perguntei interrompendo o flerte. — Quando viajamos?
— Na semana que vem — disse Ana, com indiferença, cortando a linha. — Vamos para Greenwich, acho. Por quê?
— Estou cansada de Londres.
— Que inquietação — queixou-se Ana. — Nem bem chegou de Hever já pensa em voltar. Precisa de um homem para aquietá-la. Está viúva há tempo demais, minha irmã.
Imediatamente, deixei-me estar no vão da janela, ao lado de Sir Thomas.
— Na verdade, não — repliquei. — Veja, estou tão quieta quanto um gato adormecido.
Ana riu.
— Até parece que tem aversão a homens.
As damas riram com a observação maliciosa.
— Apenas não tenho propensão.
— Nunca teve a reputação de não ser propensa — disse Ana maldosamente.
Devolvi-lhe o sorriso.
— Nunca teve a reputação de ser propensa. E agora, veja, nós duas estamos felizes.
Conteve a raiva com a réplica, e percebi que tentava achar uma resposta à altura, e rejeitou metade delas ou por serem indecentes demais ou próximas demais da verdade de sua própria posição de amante real, não muito melhor do que tinha sido a minha.
— Louvado seja Deus por isso — disse ela piamente e baixou a cabeça para o seu trabalho.
— Amém — respondi, tão doce quanto ela.
Os dias foram longos para mim, em Westminster e na corte de Ana. De dia, só via William casualmente. Em seu novo posto, tinha de estar sempre à disposição do rei. Henrique simpatizou com ele, e o consultava sobre cavalos e montavam juntos com frequência. Eu achava uma ironia o meu William, um homem completamente avesso à vida na corte, ser tão favorecido. Mas Henrique gostava do discurso franco contanto que concordasse com ele.
Só à noite, William e eu podíamos ficar a sós. Ele tinha alugado cômodos em frente ao palácio de Westminster, um desvão nas vigas de um velho edifício. Deitados, depois de fazer amor, eu ouvia os pássaros sonolentos se acomodando em seus ninhos no telhado de colmo. Tínhamos um pequeno catre, uma mesa e dois bancos, uma lareira onde aquecíamos o jantar vindo do palácio, e só. Não queríamos mais nada.
Eu acordava ao amanhecer todos os dias, com o seu toque, a delícia de seu calor e o cheiro inebriante de sua pele. Eu nunca tinha me deitado com um homem que me amasse completamente, por mim mesma, e era uma experiência vertiginosa. Eu nunca tinha me deitado com um homem de quem eu adorava o toque, sem precisar esconder minha adoração, ou exagerá-la, ou ajustá-la, nada disso. Simplesmente o amava como se fosse o meu primeiro e único amante, e ele me amava com a mesma simplicidade de apetite e desejo, que me fazia pensar o que havia feito todos esses anos vivendo a moeda falsa da vaidade e da luxúria. Eu não sabia, durante todo esse tempo, que existia essa outra moeda, de ouro puro.
A coroação de Ana foi ofuscada por uma discussão violenta com o nosso tio. Eu estava no quarto quando ele se enfureceu com ela, praguejando, dizendo que ela tinha se tornado tão grande em sua própria mente que se esquecera de quem a colocara ali. Ana, exasperadamente presunçosa, pôs a mão em sua barriga inchada e respondeu que o seu corpo estava grande e que sabia muito bem quem a pusera assim.
— Por Deus, Ana, vai se lembrar de sua família — jurou ele.
— Como poderia esquecê-la? Ficam à minha volta como vespas ao redor de um pote de mel. A cada passo que dou, tropeço em um de vocês me pedindo mais um favor.
— Eu não peço — disse ele bruscamente. — Tenho direitos.
Ao ouvir isso, ela virou a cabeça.
— Não sobre mim! Está falando com a sua rainha!
— Estou falando com a minha sobrinha que, se não fosse eu, teria sido banida da corte por ter se deitado com Henry Percy — falou ele, com desprezo.
Ela se levantou de um pulo, como se fosse se lançar sobre ele.
— Ana! — gritei. — Sente-se! Fique quieta! — olhei para o meu tio. — Ela não deve ser perturbada nem irritada! O bebê!
Ele lançou-lhe um olhar mortífero e, então, se controlou.
— É claro — disse ele, com uma polidez afetada. — Sente-se, Ana. Acalme-se.
Ela voltou a se afundar na cadeira.
— Nunca mais mencione isso — sussurrou para ele. — Juro que, tio ou não, se levantar essa antiga calúnia contra mim, eu o expulsarei da corte.
— Sou conde marechal — disse ele, com os dentes cerrados. — Já era um dos homens mais importantes da Inglaterra quando você ainda era de colo.
— E antes, seu pai foi um traidor na Torre — replicou ela em triunfo. — Não se esqueça, como não me esqueço, de que somos Howard juntos. Se não está do meu lado, não estou do seu. Basta uma palavra minha para que veja o interior da Torre de novo.
— Pois então, a diga — replicou ele com escárnio, e saiu sem fazer uma mesura. Ela olhou fixo ele sair.
— Odeio-o — disse calmamente. — Ainda vou vê-lo arruinado, um ninguém.
— Não pense assim — falei rapidamente. — Você precisa dele.
— Não preciso de ninguém — respondeu direto. — O rei é totalmente meu. Tenho o seu coração, tenho o seu desejo, e carrego seu filho. Não preciso de ninguém.
A briga com tio Howard ainda não tinha sido reparada quando ele chegou para escoltá-la para a sua coroação em Londres. Seria, como George tinha predito, a coroação mais suntuosa já vista. Ana tinha ordenado que queimassem a crista de romãs na barcaça da rainha Catarina, como se Catarina tivesse sido a usurpadora, e não rainha por direito. No lugar, foi colocado o brasão de Ana, e suas iniciais entrelaçadas com as de Henrique. O povo zombou até mesmo disso — diziam que liam HA! HA!, e que o feitiço viraria contra a pobre Inglaterra. O novo lema de Ana estava em toda parte: “a mais feliz”. Até mesmo George tinha rido com desdém ao escutá-lo.
— Ana, feliz? — disse ele. — Só quando for a rainha do Paraíso e tiver expulsado a própria Virgem Maria.
Fomos em barcaças à Torre de Londres, adejando bandeiras douradas, brancas e prateadas, e o rei estava nos esperando na grande comporta. Firmaram a nossa barcaça quando Ana desembarcou, e a observei, quase como se fosse uma estranha. Levantou-se do trono e desceu a prancha como se fosse rainha de nascença. Estava maravilhosa em seu vestido dourado e prateado, com um manto de pele em volta dos ombros. Não parecia minha irmã, não parecia uma mulher mortal. Andava como se fosse a maior rainha que já existira.
Passamos duas noites na Torre e, na primeira, houve um grande jantar e entretenimento no qual Henrique distribuiu títulos para celebrar o dia. Fez 18 cavaleiros de Bath e distribuiu uma dúzia de dignidades de cavaleiro, três delas a seus porteiros pessoais favoritos, inclusive meu marido. William me procurou depois que o rei lhe bateu no ombro com a sua espada e lhe deu o beijo de fidelidade. Conduziu-me para uma dança onde nos misturamos com a corte e torcemos para que ninguém notasse a irmã da rainha dançando com um porteiro.
— Então, minha Lady Stafford — disse ele, baixinho. — O que acha?
— Ambicioso — repliquei. — Será tão importante quanto um Howard, sei que sim.
— Na verdade, fiquei feliz — disse ele, voltando ao sussurro confidencial enquanto observávamos o par dançando no meio do círculo. — Não queria que perdesse posição por se casar comigo.
— Eu me casaria com você mesmo que fosse um camponês — repliquei com firmeza.
Ele conteve um risinho.
— Meu amor, vi como ficou irritada com as mordidas de pulgas. Não creio que se casasse comigo se eu fosse um camponês, não mesmo.
Virei-me para rir para ele e me deparei com o olhar furioso de George, que fazia par com Madge Shelton. Na mesma hora me recompus.
— George está nos observando.
William balançou a cabeça.
— Faria melhor se tomasse conta de si mesmo.
— Oh, por quê?
Era a nossa vez de dançar. William levou-me ao centro do círculo e dançamos, três passos para um lado, três para o outro. Era uma dança de fazer a corte, difícil de realizar sem nos aproximarmos e nos encararmos. Fiz força para não demonstrar o encanto que sentia por ele. William foi menos discreto do que eu. Toda vez que o olhava furtivamente, seus olhos estavam fixos em mim como se fossem me comer. Senti-me aliviada quando passamos para a borda do círculo, depois sob um arco de armas, e a dança se tornou geral de novo.
— O que ia dizer de George?
— Má companhia — replicou simplesmente.
Ri alto.
— Ele é um Howard e amigo do rei — eu disse. — É de esperar que esteja em má companhia.
Tentou mudar de assunto.
— Oh, não é nada, acho.
Os músicos tocaram o acorde final. Levei William para um lado do salão.
— O que quer realmente dizer?
— Sir Francis Weston está sempre com ele — disse William, forçado a responder. — E ele tem má reputação.
Imediatamente, assumi a defensiva.
— Não passam de extravagâncias de um jovem.
— Mais que isso — disse William.
— Mais o quê?
William olhou em volta, como se quisesse escapar dessa inquisição.
— Ouvi dizerem que são amantes.
Arfei ligeiramente.
— Você sabia?
Assenti com um movimento da cabeça.
— Meu Deus, Maria — William deu um passo para longe de mim, depois voltou para o meu lado. — E não me contou? Seu próprio irmão em pecado e não me contou?
— É claro que não — exclamei. — Eu não o exporia à vergonha. Ele é meu irmão. E pode mudar.
— Deve-lhe lealdade mais do que a mim?
— Tanto quanto a você — repliquei sem demora. — William, trata-se do meu irmão. Somos os três Bolena, precisamos uns dos outros. Nós três sabemos dezenas de coisas, dezenas de coisas que são os segredos mais graves. Eu não sou completamente Lady Stafford.
— Seu irmão é um sodomita! — exclamou em um sussurro.
— E continua a ser meu irmão! — agarrei seu braço, sem me importar com que vissem, e levei-o para um recanto da sala. — Ele é sodomita e minha irmã é uma prostituta, talvez envenene pessoas, e eu sou uma prostituta. Meu tio sempre foi o mais falso dos amigos, meu pai é um oportunista, minha mãe... só Deus sabe. Dizem que teve o rei antes de nós duas! Tudo isso você sabia ou deduziu. Responda-me: sou boa o bastante para você? Pois eu sabia que você não era ninguém e fui procurá-lo assim mesmo. Se quiser ser alguém nesta corte, terá sangue ou merda nas mãos. Entendi isso por meio de uma aprendizagem dura, desde que era pequena. Você pode aprender agora, se tiver estômago para isso.
William arfou diante de minha veemência e deu um passo para trás para me olhar.
— Não quis afligi-la.
— Ele é meu irmão. Ela é minha irmã. Aconteça o que acontecer, são meu sangue.
— Podem ser dois inimigos nossos — advertiu.
— Mesmo que se tornem meus inimigos mortais, continuarão a ser meu irmão e minha irmã — eu disse.
Ele fez uma pausa.
— Da família e inimigos ao mesmo tempo?
— Talvez — repliquei. — Vai depender de como esse jogo arriscado se desenvolve.
William assentiu com a cabeça.
— Então, o que dizem dele?
— Graças a Deus nem todos sabem, mas falam de uma corte secreta dentro da corte, cercam a sua irmã, são seus amigos mais íntimos, e, ao mesmo tempo, amantes uns dos outros. Sir Francis é um, Sir William Brereton, outro. Grandes jogadores, grandes cavaleiros, homens que fariam qualquer coisa por um desafio, qualquer coisa que lhes dê prazer ou os excite. E George é outro deles. Estão sempre ao redor da rainha, encontram-se e flertam em seu aposento. Portanto, Ana também está envolvida.
Olhei para o meu irmão no outro lado da sala. Estava debruçado sobre o espaldar do trono de Ana, sussurrando algo em seu ouvido. Eu a vi inclinar a cabeça a seu sussurro íntimo e dar um risinho.
— Esta vida corromperia um santo, imagina um rapaz.
— Ele queria ser soldado — falei com tristeza. — Um grande soldado das cruzadas, um cavaleiro com o escudo branco combatendo os infiéis.
William sacudiu a cabeça.
— Faremos o possível para salvar o pequeno Henrique disso — falou.
— Meu filho?
Assentiu com a cabeça.
— Nosso filho. Tentaremos lhe dar uma vida com um propósito, e não ociosidade e busca do prazer. E é melhor você avisar seu irmão e sua irmã que seu círculo de amigos é alvo de comentários, e ele, dos piores.
Ana entrou em Londres no dia seguinte, ajudei-a a vestir o vestido branco, com o casaco branco por cima e um manto sem mangas de pele de arminho. Deixou o cabelo solto sobre os ombros, coberto por um véu dourado e uma tiara de ouro. Entrou em Londres em uma liteira puxada por dois pôneis brancos com os Barões dos Cinco Portos segurando um dossel de pano dourado sobre sua cabeça, e a corte toda, com suas roupas mais belas, seguindo atrás, a pé. Havia arcos do triunfo, havia fontes jorrando vinho, havia poemas de lealdade a cada escala, mas a procissão percorreu uma cidade em um silêncio tenebroso.
Madge Shelton estava ao meu lado, seguindo a pé a liteira de Ana, em um silêncio que se tornava mais e mais agourento à medida que descíamos as ruas estreitas em direção à catedral.
— Meu Deus, isto é apavorante — murmurou ela.
Londres estava emburrada, milhares de pessoas estavam nas ruas, mas não agitavam bandeiras, não gritavam graças nem o nome de Ana. Eles a olhavam com uma curiosidade terrivelmente ávida, como se vissem a mulher que havia provocado uma mudança tão radical na Inglaterra, no rei, e que, por fim, conseguira vestir o manto da realeza.
A sua entrada na cidade foi desolada, e a sua coroação, no segundo dia de celebração silenciosa, não foi melhor. Dessa vez, ela usou veludo carmesim, guarnecido da pele mais branca e macia de arminho, com um manto púrpura e uma expressão sombria.
— Está feliz, agora, Ana? — perguntei ao ajeitar a cauda de seu vestido.
Seu sorriso pareceu mais uma careta.
— Muito feliz — replicou asperamente, proferindo seu lema. — Muito feliz. Não poderia deixar de estar, poderia? Tenho tudo o que sempre quis, e ninguém mais a não ser eu mesma acreditava que eu conseguiria. Sou rainha, sou a mulher do rei da Inglaterra. Derrubei Catarina e assumi o seu lugar. Só posso ser a mulher mais feliz do mundo.
— E ele a ama — falei, pensando em como a minha vida tinha se transformado ao ser amada por um homem bom.
Ana encolheu os ombros.
— Oh, sim — replicou com indiferença. Pôs a mão na barriga. — Se pelo menos eu pudesse saber se é um menino. Se fosse coroada já com um príncipe em seu quarto.
Bati carinhosamente em seu ombro, pouco à vontade com a intimidade. Desde que havíamos deixado de partilhar a cama, raramente nos tocávamos. Como agora ela tinha uma criadagem só para si, eu não mais penteava seu cabelo nem atava seu vestido. Ela continuava íntima de George, mas se afastara de mim, e o fato de ter roubado meu filho deixara um ressentimento tácito entre nós. Estranhei ela me confiar uma fraqueza. O verniz da realeza se espalhara sobre ela como o esmalte sobre uma estatueta de cerâmica.
— Não terá de esperar muito tempo — falei, gentilmente.
— Três meses.
Bateram à porta, e Jane Parker entrou, o rosto corado de excitação.
— Estão esperando! — disse sem fôlego. — Está na hora. Está pronta?
— Como? — disse Ana, gelidamente. Imediatamente, minha irmã desapareceu sob a máscara de rainha. Jane fez uma reverência profunda.
— Majestade! Perdoe-me! Eu deveria ter dito que estão esperando Sua Majestade.
— Estou pronta — disse Ana, e se levantou. O resto da corte entrou e as damas de honra ajeitaram a cauda comprida de seu manto, o adorno em sua cabeça, e seu cabelo preto comprido sobre seus ombros.
Em seguida, a minha irmã, a garota Bolena, saiu para ser coroada rainha da Inglaterra.
Passei a noite da coroação de Ana com William, em meu quarto na Torre. Deveria ter dividido a cama com Madge Shelton, mas ela me cochichou que passaria a noite toda fora, portanto, enquanto o banquete da corte prosseguia, William e eu escapulimos para o quarto, trancamos a porta, colocamos mais lenha no fogo, nos despimos devagar, sensualmente, e fizemos amor.
Despertávamos, fazíamos amor, cochilávamos de novo, em um ciclo sonolento de excitação e satisfação, e por volta das 5 da manhã, quando começava a clarear, estávamos os dois deliciosamente exaustos e esfomeados.
— Venha — disse ele. — Vamos sair e comer alguma coisa.
Vestimo-nos, coloquei um manto com capuz, para esconder meu rosto, e escapulimos da Torre adormecida para as ruas de Londres. Metade dos homens da cidade parecia embriagada nas sarjetas com o vinho gratuito que tinha jorrado das fontes para celebrar o triunfo de Ana. Tropeçamos em corpos vacilantes durante todo o trajeto, colina acima, até Minories.
Caminhamos de mãos dadas, sem nos importarmos com que nos vissem nessa cidade embriagada. William me levou a uma padaria e deu um passo atrás para ver se saía fumaça da chaminé curva.
— Sinto o cheiro de pão — eu disse, farejando o ar e rindo da minha fome.
— Vou bater — disse William batendo na porta lateral.
Um grito abafado respondeu e a porta foi aberta bruscamente por um homem com a cara vermelha suja de farinha.
— Posso comprar um pedaço de pão? — perguntou William. — E comer um desjejum?
O homem piscou com a luz da rua.
— Se tiver dinheiro — replicou emburrado. — Pois sabe Deus que gastei todo o meu.
William me conduziu para dentro da padaria. Ali, estava quente e o cheiro era gostoso. Estava tudo coberto por uma poeira fina de farinha de trigo, até mesmo a mesa e os bancos. William limpou um banco com o seu manto sem mangas e me sentou nele.
— Traga-nos um pouco de pão — disse ele. — E duas canecas de ale. Algumas frutas, se tiver, para a senhora. Dois ovos cozidos, e quem sabe?, um pouco de presunto. Queijo? Qualquer coisa gostosa.
— É a primeira fornada do dia — resmungou o homem. — Nem sequer tomei meu café da manhã. Não fiquei fatiando presunto para nobres.
O tilintar e o brilho de uma moeda de prata mudaram tudo.
— Tenho um presunto excelente na despensa e queijo que acabou de chegar do campo, feito pelo meu próprio primo — disse o padeiro de maneira persuasiva. — E minha mulher vai lhes servir ale. Ela é uma boa cervejeira, não tem melhor em toda Londres.
— Obrigado — disse William, educadamente, sentando-se ao meu lado, e piscando o olho. À vontade, pôs a mão em volta da minha cintura.
— Recém-casados? — perguntou o homem, retirando do forno, com a pá, pedaços de pão e vendo os olhos de William fixos em mim.
— Sim — respondi.
— Que dure muito tempo — disse ele, em dúvida, e virou o pão no balcão de madeira.
— Amém — replicou William, e puxou-me, me beijou nos lábios, e sussurrou em meu ouvido: — Vou amá-la assim para sempre.
William levou-me até o portão da Torre antes de descer ao rio e contratar um barqueiro para atravessar a comporta. Madge Shelton estava no quarto quando cheguei, mas absorta demais escovando o cabelo e mudando a roupa para se perguntar aonde eu andara de manhã tão cedo. Metade da corte parecia estar despertando na cama errada. O triunfo de Ana, a amante que se tornara esposa, era uma inspiração para todas as garotas livres dos país.
Lavei meu rosto e minhas mãos e troquei rapidamente de roupa para acompanhar, com as outras damas de honra, Ana às primeiras orações da manhã. Ana, em seu primeiro dia de rainha, usava um belo vestido escuro, um capelo adornado de joias e um longo colar de pérolas em duas voltas ao redor de seu pescoço. Continuava a usar o cordão com o “B” de Bolena, e segurava um missal revestido com folha de ouro. Ao me ver, fez um sinal com a cabeça, e eu me curvei em uma reverência profunda e a segui, como se me sentisse honrada com isso.
Depois da missa e do desjejum com o rei, Ana começou a reorganizar o pessoal da casa. Grande parte das criadas da rainha Catarina tinham transferido a sua lealdade sem muitos inconvenientes, pois como nós todas, preferiram se ligar a uma estrela que subia à rainha perdida. Minha atenção foi chamada pelo nome Seymour.
— Tem uma garota Seymour como sua dama? — perguntei surpresa.
— Qual? — perguntou George, sem dar muita atenção, pegando a lista. — Aquela Agnes é tida como uma tremenda puta.
— Jane — disse Ana. — Mas terei tia Elizabeth e a prima Mary. Acho que temos Howard suficientes para suplantarmos a influência de uma Seymour.
— Quem pediu para colocá-la? — perguntou George.
— Todos estão pedindo favores — replicou Ana com enfado. — Todos. O tempo todo. Achei que uma ou duas mulheres de outras famílias acalmaria as coisas. Os Howard não podem ter tudo.
George riu.
— Oh, por que não?
Ana empurrou sua cadeira para trás da mesa, pôs a mão sobre a barriga e deu um suspiro. George ficou alerta.
— Cansada? — perguntou ele.
— Um pouco resfriada — ela olhou para mim. — Não tem importância, tem? Umas pontadinhas de dor? Não significam nada?
— Senti muitas dores com Catarina, mas a gestação foi até o fim e o parto foi fácil.
— Não quer dizer que vá ser uma menina, quer? — perguntou George, aflito.
Olhei para os dois, os narizes e rostos compridos dos Bolena, os olhos ávidos. Eram as mesmas feições que me encaravam no espelho durante a minha vida inteira, exceto que, agora, eu tinha perdido a expressão ansiosa.
— Fique tranquilo — repliquei pacientemente. — Não há nenhum motivo para que não dê à luz um belo menino. E se preocupar é a pior coisa que ela poderia fazer.
— Seria o mesmo que me dizer para não respirar — interrompeu Ana. — É como carregar no ventre o futuro da Inglaterra. E a rainha abortou várias vezes.
— Porque ela não era a esposa apropriada — disse George, para confortá-la. — O casamento deles nunca foi válido. É claro que Deus vai lhe dar um menino.
Em silêncio, ela estendeu a mão sobre a mesa. George apertou-a firme. Olhei para os dois, para o absoluto desespero de sua ambição, ainda os tiranizando como quando eram crianças, filhos de um pequeno senhor em ascensão. Olhei para os dois e percebi meu alívio por ter escapado disso.
Esperei um pouco e, então, disse:
— George, ouvi comentários comprometedores a seu respeito.
Ele ergueu os olhos com seu sorriso alegre, malicioso.
— Com certeza!
— Falo sério — insisti.
— De quem você ouviu? — rebateu.
— Rumores da corte — repliquei. — Dizem que Sir Francis Weston faz parte de um círculo desregrado, e que você está entre eles.
Relanceou os olhos rapidamente para Ana, como se para captar até onde ela sabia.
Ela me olhou de modo inquisidor. Claramente ignorava o que diziam.
— Sir Francis é um amigo leal.
— Falou a rainha — George tentou fazer uma piada.
— Porque ela não sabe metade da história, e você sabe — falei bruscamente.
Ana ficou alerta.
— Tenho de ser absolutamente perfeita — disse ela. — Não posso dar a menor chance de comentarem com o rei algo contra mim.
George deu um tapinha em sua mão.
— Não é nada — confortou-a de novo. — Não se aflija. Umas duas noites de bandalha e bebida demais. Algumas mulheres de má reputação e jogo alto. Nunca faria nada que a desonrasse, Ana, juro.
— É mais do que isso — respondi sem rodeios. — Dizem que Sir Francis é amante de George.
Os olhos de Ana se escancararam e procuraram George no mesmo instante.
— George, não?
— É claro que não — pegou sua mão de modo a tranquilizá-la.
Ana mirou-me com uma expressão fria.
— Não me venha com suas histórias maldosas, Maria — disse ela. — Você é tão ruim quanto Jane Parker.
— É melhor que tome cuidado — adverti George. — Qualquer lama jogada em você respingará em nós.
— Não há lama nenhuma — replicou ele, sem tirar os olhos da cara de Ana. — Absolutamente nenhuma.
— É melhor ter certeza — disse ela.
— Absolutamente nenhuma — repetiu ele.
Saímos para que ela descansasse e fomos ao encontro da corte, que jogava malha com o rei.
— Quem falou de mim? — perguntou George.
— William — respondi francamente. — Não espalhava boatos. Ele sabia que eu me preocuparia com você.
Riu negligentemente, mas percebi a tensão em sua voz.
— Amo Francis — confessou. — Não conheço homem melhor no mundo. Nunca existiu nenhum homem mais corajoso, mais doce, melhor do que ele, e não consigo deixar de desejá-lo.
— Você o ama como uma mulher? — perguntei, sem graça.
— Como um homem — corrigiu-me rapidamente. — Algo muito mais apaixonado.
— George, isso é um pecado terrível, vai fazer você sofrer. É um comportamento que traz desgraça. Se o nosso tio souber...
— Se qualquer pessoa souber, será a minha ruína total.
— Não pode parar de vê-lo?
Virou-se para mim com um sorriso malicioso.
— Pode parar de ver William Stafford?
— Não é a mesma coisa! — protestei. — O que você está descrevendo não é a mesma coisa! Não tem nada a ver. William me ama honrosa e genuinamente. E eu o amo. Mas isso...
— Você não está sem pecado. Simplesmente tem sorte — replicou cruamente. — Tem sorte de amar alguém que está livre para retribuir o seu amor. Mas eu não. Simplesmente o desejo, o desejo, o desejo. E espero o momento em que isso se extinga.
— Vai se extinguir? — perguntei.
— Fatalmente — replicou com amargura. — Tudo o que sempre conquistei até agora transformou-se em cinzas depois de pouco tempo. Por que agora seria diferente?
— George — eu disse, e estendi a mão para ele. — Oh, meu irmão...
Olhou para mim com aqueles olhos ávidos e duros dos Bolena.
— O quê?
— Isso vai ser a sua perdição — sussurrei.
— Oh, provavelmente — replicou negligentemente. — Mas Ana me salvará. Ana e o meu sobrinho rei.
Verão de 1533
Ana não me liberou para ir a Hever no verão, já que esperava o bebê para agosto. A corte não viajaria, passando pelas mansões senhoriais da Inglaterra, nada aconteceria como deveria. Fiquei com tanta raiva e tão decepcionada que mal suportava ficar no mesmo cômodo que ela. Mas tinha de ficar, diariamente, e ouvir a sua especulação sem fim sobre que tipo de rei o seu filho seria. Todo mundo tinha de servi-la. Todo mundo tinha de se submeter a ela. Nada tinha mais importância do que Ana e sua barriga. Era o foco de tudo e não planejava nada. Nessa confusão, a corte não podia decidir nada, ir a lugar nenhum. Henrique não conseguia se separar dela, nem mesmo para caçar.
No começo de julho, George e meu tio foram enviados à França como emissários, para comunicar ao rei desse país que o herdeiro do trono da Inglaterra estava para nascer, e pedir-lhe o apoio para o caso de o imperador espanhol agir contra a Inglaterra em reação a esse insulto à sua tia. Iria ver o Papa, quando o impasse que paralisava a Inglaterra fosse rompido. Procurei Ana para lhe pedir, mais uma vez, que me poupasse, assim que fosse confinada.
— Quero ir a Hever — falei calmamente. — Preciso ver meus filhos.
Ela sacudiu a cabeça. Estava deitada em um sofá que haviam colocado para ela no vão da janela. Todas as janelas permaneciam abertas para captar a brisa que soprava do rio, mas ela não parava de suar. Seu vestido estava atado apertado e seus seios, comprimidos pelo corpete, estavam intumescidos e incomodavam. Suas costas doíam, embora apoiadas sobre almofadas bordadas com pérolas pequeninas.
— Não — replicou concisamente.
Percebeu que eu estava para argumentar.
— Oh, pare com isso — disse ela, com irritação. — Posso lhe dar uma ordem de fazer o que eu não deveria pedir nem mesmo a uma irmã. Deve querer ficar comigo. Visitei-a quando estava confinada.
— Roubou o meu amante enquanto eu dava à luz um filho dele! — falei sem rodeios.
— Assim me mandaram fazer. E você faria o mesmo se nossos papéis tivessem sido trocados. Preciso de você, Maria. Não se afaste quando é necessária.
— Para que precisaria de mim? — perguntei.
Perdeu a cor, ficando branca como cera.
— E se eu morrer? — sussurrou. — E se ficar preso e eu morrer disso?
— Oh, Ana...
— Não me mime — disse ela irritada. — Não quero a sua simpatia. Só quero que fique aqui e me proteja.
Hesitei.
— O que quer dizer?
— Se podem tirar o bebê me matando, minha vida não vale nada — replicou cruamente. — Vão preferir ter um príncipe de Gales vivo a uma rainha viva. Podem conseguir outra rainha. Mas príncipes são raros nesse mercado.
— Não serei capaz de impedi-los — falei, sem força.
Sob suas pálpebras, seus olhos brilharam.
— Sei que não dá para confiar em você, mas pelo menos poderia contar a George, e ele convenceria o rei a mandar que me salvassem.
A sua visão fria do mundo me deteve por um instante. Mas então, pensei em meus filhos.
— Depois de seu bebê nascer, e você estar bem, irei para Hever — determinei.
— Depois de o bebê nascer, pode ir para o inferno, se quiser — disse ela sem se alterar.
Portanto nada mais havia a fazer a não ser esperar. Porém naqueles dias quentes, quando parecia que nada estava acontecendo, chegou, de Roma, uma notícia espantosa. O Papa finalmente decretara contra Henrique. E o mais surpreendente: Henrique seria excomungado!
— O quê? — perguntou Ana.
Lady Rochford, a esposa de George, Jane Parker, recentemente nobilitada, tinha trazido as novas. Como um abutre sobre o cadáver, ela era sempre a primeira.
— Excomungado — até mesmo ela pareceu atônita. — Todos os ingleses leais ao Papa devem desobedecer ao rei — disse ela. — A Espanha pode invadir. Seria uma guerra santa.
Ana ficou mais branca do que as pérolas em seu pescoço.
— Saia — eu disse, de repente. — Como ousa vir até aqui e afligir a rainha?
— Alguns dirão que ela não é rainha. — Jane dirigiu-se à porta. — Será que o rei não a abandonará agora?
— Saia! — ordenei furiosa e corri para Ana. Ela estava com a mão sobre a barriga como se tentasse proteger o bebê das notícias desastrosas. Belisquei suas bochechas e vi suas pálpebras baterem.
— Ele vai ficar do meu lado — sussurrou. — O próprio Cranmer nos casou. Ele me coroou. Não podem dizer que tudo isso não vale nada.
— Não — repliquei, tão firmemente quanto consegui, achando que sim, que talvez pudessem invalidar tudo, pois quem poderia contestar o Papa, quando ele tinha as chaves do paraíso nas mãos? O rei deveria ceder. E a primeira coisa de que teria de abrir mão seria de Ana.
— Oh, Deus, queria que George estivesse aqui — disse Ana com um gemido de desespero. — Queria que tivesse voltado.
Dois dias depois, George chegou da França com uma breve carta, tomada de pânico, de nosso tio, querendo saber o que seria feito a seguir nas negociações para resolver uma crise que se tornara, repentinamente, um desastre. O rei enviou George de volta à França com ordens para o meu tio interromper as conversações e retornar. Todos esperaríamos e veríamos o que aconteceria.
Os dias foram se tornando cada vez mais quentes, esboçaram planos para a defesa da Inglaterra contra a invasão espanhola, os padres pregavam calma nos púlpitos, mas se perguntavam que lado tomariam. Várias igrejas simplesmente fecharam suas portas e ninguém podia orar ou se confessar, sepultar seus mortos ou batizar seus bebês. Tio Howard insistiu com Henrique que o enviasse de volta à França e implorasse a Francis que persuadisse o Papa a suspender a excomunhão. Nunca o tinha visto tão aterrorizado. Mas George, o mais sereno de todos nós, voltou toda a sua atenção para Ana.
Era como se pensasse que a alma imortal do rei e o futuro da Inglaterra fossem grandes demais para ele. A única posição em que podia ser realmente eficaz era guardando o desenvolvimento do bebê no ventre de Ana.
— É a nossa garantia — me disse ele, baixinho. — Nada garante mais a nossa segurança do que um menino.
Ele passava a manhã com Ana, sentado em seu sofá no vão da janela. Quando Henrique chegava, George saía, mas assim que o rei ia embora, Ana se recostava no travesseiro e procurava por nosso irmão. Ela nunca demonstrava a Henrique a tensão em que vivia. Permanecia para ele a mulher fascinante que sempre tinha sido. Mostrava seu gênio quando ele a contrariava. Mas nunca lhe demonstrava medo. Nunca mostrou seu medo a ninguém, exceto a mim e a George. Henrique recebia sua meiguice e encanto, seu coquetismo. Mesmo com oito meses de gravidez, Ana era capaz de olhar de lado de uma maneira que fazia qualquer homem ficar sem fôlego. Eu a observava falar com Henrique e percebia que cada gesto, que cada pedacinho seu estava empenhado em encantá-lo.
Não é de admirar que quando ele deixava a sala para caçar, ela voltasse a se recostar nos travesseiros e me chamasse para tirar seu capelo e acariciar sua testa.
— Estou com tanto calor.
Henrique não ia caçar sozinho, é claro. Ana podia ser fascinante, mas, com oito meses de gravidez e proibida de se deitar com ele, nem mesmo ela poderia segurá-lo. Henrique estava flertando abertamente com Lady Margaret Steyne e não demorou para Ana ficar sabendo.
Uma tarde, ao visitá-la, foi recebido com sarcasmo.
— Não sei como se atreve a olhar para mim — saudou-o com a voz baixa e ríspida quando ele se sentou ao seu lado. Henrique olhou em volta, e os cavalheiros da corte se afastaram um pouco imediatamente, e fingiram surdez, enquanto as damas viraram o rosto para dar ao casal real a ilusão de privacidade.
— Senhora?
— Soube que dormiu com uma puta — disse Ana.
Henrique olhou em volta e viu Lady Margaret. Um olhar de relance para William Brereton fez com que o cortesão mais experiente oferecesse o braço a Lady Margaret. Levou-a rapidamente para fora, para um passeio à margem do rio. Ana observou-os sair com um olhar que assustaria um homem inferior.
— Senhora? — perguntou Henrique.
— Não vou permitir — advertiu-o. — Não vou tolerar isso. Ela tem de deixar a corte.
Henrique sacudiu a cabeça e se pôs de pé.
— Esquece-se de com quem está falando — disse ele. — E mau gênio não convém ao seu estado. Tenha um bom-dia, senhora.
— Esquece-se de com quem está falando! — retorquiu Ana. — Sou sua mulher e rainha e não serei negligenciada e insultada em minha própria corte! Essa mulher tem de partir.
— Ninguém me dá ordens!
— Ninguém me insulta!
— Como foi insultada? Ela nunca lhe prestou outra coisa senão atenção e cordialidade, e eu continuo sendo seu marido obediente. O que há com a senhora?
— Não a quero na corte! Não serei tratada dessa maneira!
— Senhora — replicou Henrique, com a voz gélida. — Uma mulher melhor do que a senhora foi tratada de maneira muito pior e nunca se queixou. Como bem sabe.
Por um instante, dominada por seu gênio, não percebeu a referência. E quando se deu conta, ficou em pé de um pulo.
— E a menciona a mim! — gritou. — Atreve-se a me comparar com essa mulher que nunca foi sua esposa?
— Era uma princesa de sangue azul — gritou ele de volta. — E nunca, mas nunca me repreendeu. Ela sabia que o dever de uma esposa é zelar pelo conforto de seu marido.
Ana chapou a mão na curva de sua barriga.
— Deu-lhe um filho homem? — perguntou ela.
Houve um silêncio.
— Não — respondeu Henrique, com pesar.
— Então, princesa ou não, não tinha nenhuma utilidade. E não era sua esposa.
Ele assentiu com a cabeça. Henrique, e, na verdade, todos nós, às vezes, tínhamos dificuldades em recordar o fato controvertido.
— Não deve se afligir — disse ele.
— Então não me dê motivos para me afligir — respondeu ela habilmente.
Com relutância, me aproximei.
— Ana, precisa se sentar — disse o mais calmamente possível.
Henrique virou-se para mim com alívio.
— Sim, Lady Carey, faça com que se acalme. Estou indo — fez um ligeira mesura a Ana e saiu abruptamente. Metade dos cavalheiros o acompanhou, a outra metade, pega de surpresa, permaneceu. Ana olhou para mim.
— Por que interrompeu?
— Não pode pôr o bebê em risco.
— Oh! O bebê! Todo mundo só pensa no bebê!
George se aproximou de mim e pegou a sua mão.
— Evidentemente. Nosso futuro depende dele. Inclusive o seu, Ana. Agora, fique quieta, Maria tem razão.
— Tínhamos de ter brigado até o fim — disse ela, ressentida. — Eu não deveria ter deixado que se fosse antes de me prometer que a expulsaria da corte. Não devia ter-nos interrompido.
— Não pode brigar até o fim — alertou George. — Não pode acabar na cama dele até ter dado à luz e ter ido à igreja. Tem de esperar, Ana. E sabe que ele terá alguém enquanto espera.
— Mas se ela o segurar? — lamuriou-se Ana, seus olhos passando por mim, ciente de que o tirara de mim enquanto eu dava à luz.
— Ela não pode — replicou George simplesmente. — Você é a sua esposa. Não pode se divorciar de você, pode? Ele vai simplesmente se livrar da outra. E se tiver um menino, não terá nenhum motivo para isso. Seu trunfo é a sua barriga, Ana. Não o descarte até o momento certo.
Ela recostou-se na cadeira.
— Chame os músicos — disse ela. — Podem dançar.
George estalou os dedos e um pajem logo se aproximou.
Ana virou-se para mim.
— E diga a Lady Margaret Steyne que não quero ver nem a sua sombra — disse ela.
A corte escolheu o rio naquele verão. Não havíamos estado perto do Tâmisa meses antes, no verão, e o mestre de folias concebeu batalhas e mascaradas aquáticas, entretenimentos na água para Henrique e sua nova rainha. Uma noite, apresentaram uma batalha de fogo ao crepúsculo e Ana assistiu de uma tenda armada na margem. Os homens da rainha venceram e, então, houve dança em um pequeno palco construído no rio. Dancei com meia dúzia de homens e, então, olhei em volta, procurando meu marido.
Ele estava me observando, estava sempre alerta ao momento em que poderíamos escapulir. Uma inclinação discreta de sua cabeça, um sorriso secreto, e desaparecíamos nas sombras para um beijo, um toque oculto, e, às vezes, quando estava escuro e quando não conseguíamos resistir um ao outro, nos entregaríamos ao prazer, ocultos no escuro à margem do rio, com o som da música distante para disfarçar meu gemido.
Eu era uma amante clandestina e isso me deixava atenta a George. Também ele participava da primeira meia dúzia de danças e estabelecia a sua presença no centro da festa. Depois, também ele ia recuando, saindo aos pouquinhos do círculo de luz para a obscuridade do jardim. Então, eu percebia também a falta de Sir Francis, e sabia que ele teria levado meu irmão para algum lugar, talvez para seu quarto, talvez para a agitação de Londres, para programas extravagantes, talvez jogar ou montar sob o luar, ou, quem sabe, um abraço impetuoso. George podia reaparecer em cinco minutos ou desaparecer por toda a noite. Ana, que achava que ele estava na farra, como sempre, acusava-o de flertar com as criadas e George ria e negava, como sempre fazia. Só eu sabia que um desejo mais poderoso e mais perigoso tinha meu irmão sob seu domínio.
Em agosto, Ana comunicou que se retiraria ao seu confinamento, e quando, de manhã, Henrique foi visitá-la, depois da missa, encontrou seus aposentos num caos, com móveis sendo levados e outros trazidos, e todas as damas bastante ocupadas.
Ana estava em uma cadeira, em meio a toda aquela confusão, dando as ordens. Quando Henrique entrou, ela inclinou a cabeça, mas não se levantou para lhe fazer uma mesura. Ele não se importou, ficava apalermado diante de sua rainha grávida, deixou-se cair de joelhos como um menino, na frente dela, pôs a mão sobre sua barriga e olhou para sua face.
— Precisamos de uma roupa de batismo para o nosso filho — disse ela sem preâmbulos. — Ela teve?
“Ela” significava somente uma coisa no vocabulário real. “Ela” era sempre a rainha que tinha desaparecido, a rainha que ninguém nunca mencionava, a rainha que todos tentavam esquecer, sentada naquela cadeira, preparando-se para o seu próprio confinamento naquele cômodo, e sempre recebendo Henrique com seu sorriso terno e deferente.
— Era sua — replicou ele. — Trazida da Espanha.
— Mary foi batizada com ela? — perguntou Ana, sabendo a resposta.
Henrique franziu o cenho, fazendo esforço para se lembrar.
— Oh, sim. Um vestido branco longo, ricamente bordado. Mas pertencia a Catarina.
— Ela ainda o tem?
— Podemos encomendar um novo — disse Henrique de modo apaziguador. — Você mesma poderia desenhá-lo, e as freiras o confeccionariam.
Ana jogou a cabeça indicando que não.
— O meu bebê usará o traje real — disse ela. — Quero que seja batizado com a roupa que todos os príncipes usaram.
— Não temos um traje real... — replicou ele com hesitação.
— Garanto que sim! — interrompeu bruscamente. — Porque ela o tem.
Henrique sabia quando era derrotado. Curvou a cabeça e beijou a sua mão, agarrada ao braço da cadeira.
— Não se aflija — falou ele. — Não quando está tão perto da sua hora. Mandarei buscarem. Juro. O nosso pequeno Eduardo Henrique terá tudo o que você quiser.
Ela assentiu com a cabeça e conseguiu ostentar seu sorriso gracioso, tocou a nuca dele com a ponta dos dedos, quando ele fez a reverência.
A parteira entrou e fez uma reverência.
— O quarto está pronto — disse ela.
Ana virou-se para Henrique.
— Virá me visitar todos os dias — disse ela. Soou mais como uma ordem do que um pedido.
— Duas vezes por dia — prometeu ele. — O tempo passará rápido, meu coração, e tem de descansar para a chegada do nosso filho.
Beijou sua mão de novo e a deixou. Aproximei-me e nós duas fomos olhar seu quarto. A grande cama já estava lá, e as paredes estavam cobertas de tapeçarias para excluir qualquer tipo de ruído, luz do sol ou ar fresco. Haviam posto, no chão, junco com alecrim para perfumar e lavanda. Haviam tirado todo o resto da mobília, exceto uma cadeira e uma mesa para a parteira. Ana deveria ficar na cama por um mês inteiro. Tinham acendido a lareira, embora fosse verão e o quarto estivesse abafado. Tinham acendido velas, para que ela pudesse ler ou costurar, e haviam colocado o berço aos pés da cama.
Ana encolheu-se na soleira da porta do quarto escuro e abafado.
— Não posso entrar, é como uma prisão.
— É só por um mês — eu disse. — Talvez menos.
— Vou sufocar.
— Vai ficar bem. Eu tive de fazer isso.
— Mas eu sou a rainha.
— Mais uma razão.
A parteira apareceu por trás de mim e disse:
— Está a seu gosto, Majestade?
O rosto de Ana estava lívido.
— Parece uma prisão.
A parteira riu e a introduziu no quarto.
— Todas dizem isso. Mas ficará feliz com o resto.
— Diga a George que quero vê-lo mais tarde — disse Ana por cima do ombro. — E que traga alguém para me entreter. Não vou ficar aqui sozinha. É o mesmo que estar presa na Torre.
— Jantaremos com você — prometi. — Se descansar agora.
Com Ana retirada da corte, o rei retornou ao seu padrão, caçando toda manhã das 6 às 10 horas, chegando para o almoço. À tarde, visitava Ana, ao anoitecer, a corte o entretinha.
— Ele dançou com quem? — perguntou Ana, astuta como sempre, apesar de deitada, com calor, cansada e pesada no quarto obscurecido.
— Com ninguém em particular — respondi. Madge Shelton tinha atraído seu olhar e a garota Seymour, Jane. Lady Margaret Steyne se exibia com meia dúzia de vestidos novos. Mas nada disso teria importância se Ana tivesse um menino.
— E quem caça com ele?
— Só seus cavalheiros — menti. Sir John Seymour tinha comprado para a sua filha um belo cavalo de caça cinza. Ela usava um vestido azul-escuro para montar e ficava muito bem na sela.
Ana olhou-me desconfiada.
— Você não tem corrido atrás dele, tem? — perguntou maliciosamente.
Sacudi a cabeça.
— Não tenho o menor desejo de mudar minha posição — repliquei honestamente. Tomei o cuidado de não pensar em William. Se me permitisse pensar em seus ombros ou na maneira como se espreguiçava nu na luz da manhã, sabia que meu desejo transpareceria em meu rosto. Qualquer um o perceberia. Eu era definitivamente a sua fêmea.
— E vigia o rei para mim? — insistiu ela. — Você realmente o vigia, Maria?
— Ele está esperando o nascimento de seu filho, assim como o resto da corte — repliquei. — Se tiver um menino, nada a afetará. Sabe disso.
Ela assentiu com a cabeça e fechou os olhos, recostando-se nos travesseiros.
— Deus, como queria que isso já estivesse terminado — disse ela irritada.
— Amém — eu disse.
Sem o olhar zeloso de minha irmã sobre mim, estava livre para ficar com William. Madge Shelton desaparecia frequentemente de meu quarto e acabamos desenvolvendo um acordo informal de sempre bater na porta, e nunca entrar se estivesse trancada por dentro. Madge não passava de uma menina, mas havia amadurecido rapidamente na corte. Ela sabia que suas chances de um bom casamento dependiam do cuidado em equilibrar o despertar do desejo de um homem sem deixar cair nenhuma mácula sobre sua reputação. E a corte de agora era muito mais dissoluta do que a de quando eu chegara ainda menina.
Os artifícios de George também funcionavam. Sem a rainha na corte, ele e Sir Francis, com William Brereton e Henry Norris, ficavam sem ter o que fazer. Caçavam com Henrique de manhã e, às vezes, eram convocados à tarde, mas, geralmente, ficavam ociosos. Flertavam com as damas da rainha, escapavam rio acima, para Londres, e desapareciam por noites, sem explicação. Uma vez, peguei-o de manhã cedo. Eu contemplava o sol no rio quando um barco a remo atracou na plataforma de desembarque do palácio e George pagou o barqueiro, subindo, em seguida, silenciosamente, a senda para o jardim.
— George — eu disse, surgindo de meu lugar entre as rosas.
Ele levou um susto.
— Maria! — imediatamente, pensou em Ana. — Ela está bem?
— Está. Por onde andou?
Encolheu os ombros.
— Fomos nos divertir um pouco — disse ele. — Alguns amigos de Henry Norris. Fomos dançar, jantar e jogar um pouco.
— Sir Francis estava lá?
Assentiu com a cabeça.
— George...
— Não me censure! — interrompeu. — Ninguém mais sabe. Nós mantemos segredo.
— Se o rei descobrir, será banido — eu disse sem rodeios.
— Ele não vai descobrir — replicou. — Sei que ouviu falarem sobre isso, mas foi apenas um cavalariço mexeriqueiro. Foi silenciado. Dispensado. Acabou.
Peguei sua mão e encarei seus olhos Bolena escuros.
— George, temo por você.
Ele riu, o riso frágil, de cortesão.
— Não — replicou. — Não tenho nada a temer. Nada a temer, nada a procurar e nenhum lugar para onde ir.
Ana não conseguiu a roupinha real de batizado. Escreveram à rainha com propostas para a sua separação do rei. Trataram-na como princesa Dowager, isto é, título conferido por casamento, e ela rasgou o pergaminho com uma penada furiosa quando se deparou com o título. Ameaçaram-na de nunca mais rever a princesa Mary, sua filha. Transferiram-na para o mais desolado dos palácios: Buckden, em Lincolnshire. Ainda assim, ela não se retratou. Continuou sem admitir a possibilidade de não ter sido a esposa legítima do rei. Nesse impasse, a roupa do batizado parecia importar muito pouco e depois que se recusou a se desfazer dela, dizendo que era um bem seu, trazido da Espanha, Henrique não insistiu.
Pensei nela em uma casa fria na borda de Fens. Pensei nela, separada de sua filha, como eu estava de meu filho, por ambição da mesma mulher. Pensei em sua determinação inabalável de agir certo aos olhos de Deus. E senti saudades. Tinha sido como uma mãe para mim quando fui para a corte e eu a tinha traído como uma filha trairia uma mãe, e nem assim deixara de amá-la.
Outono de 1533
As dores de Ana começaram na madrugada e a parteira me chamou imediatamente. Tive praticamente de lutar para conseguir passar por cortesãos, advogados, escrivães e oficiais da corte na sala de audiências, do lado de fora de seu quarto. Mais perto da porta, estavam as damas de honra reunidas para assistir à rainha em seu confinamento, na verdade, sem fazer nada, a não ser assustarem umas as outras com histórias aterrorizantes de partos difíceis. A princesa Mary estava entre elas, sua face pálida contorcida na carranca habitual de determinação. Achei Ana cruel ao tornar a filha de Catarina uma testemunha do parto da criança que a deserdaria. Lancei-lhe um breve sorriso e ela respondeu com aquela mesura estranha e fria que se tornara sua marca registrada. Ela não podia confiar em ninguém, ela nunca mais confiaria em ninguém.
Dentro do quarto, parecia uma cena do inferno. Haviam provido os balaústres de cama de cordas e Ana agarrava-se a elas como uma mulher se afogando. Os lençóis já estavam manchados de seu sangue, e as parteiras preparavam a infusão de aveia, ovos e cerveja no fogo que era atiçado com lenha. Ana estava nua da cintura para baixo. Suava e gritava de medo. Mais duas damas de honra diziam suas orações em uma ladainha ansiosa e irritante e, volta e meia, Ana emitia um grito estridente de mais dor.
— Ela tem de descansar — disse-me uma das parteiras. — Ela o está retendo.
Aproximei-me da cama e esperei.
— Ana, descanse — eu disse. — Isso vai prosseguir por horas.
— É você, não é? — disse ela, jogando o cabelo para trás. — Achei que estava acordada.
— Vim assim que me chamaram. Quer que eu faça tudo por você?
— Quero que faça isto por mim — replicou, sempre sagaz.
Ri.
— Eu não!
Estendeu a mão para mim e quando a segurei, a apertou.
— Por Deus, me ajude, estou em pânico — sussurrou ela.
— Deus a ajudará — repliquei. — Está tendo um príncipe cristão, não está? Está dando à luz um menino que será o chefe da Igreja da Inglaterra, não está?
— Não me deixe — disse ela. — Vou vomitar de medo.
— Oh, vai vomitar — repliquei animadamente. — Ainda vai piorar muito antes de ficar melhor.
Ana ficou em trabalho de parto durante o dia todo e, então, as contrações se aceleraram e ficou claro para nós todas que o bebê estava chegando. Ela parou de lutar e ficou aérea, seu corpo fazendo o trabalho por ela. Levantei-a e a parteira estendeu o pano para o bebê. Então, deu um grito de alegria quando a cabeça surgiu do corpo exaurido de Ana, e com um coleio e pressa, o bebê nasceu.
— Deus seja louvado — disse a mulher.
Ela baixou a cabeça, sugou a boca do neném e ouvimos um gritinho abafado. Ana e eu quisemos vê-lo.
— É o príncipe? — perguntou Ana, ofegando, a voz gutural de tanto gritar. — Vai ser o príncipe Eduardo Henrique.
— Uma menina — disse a parteira, com alegria.
Senti todo o peso de Ana quando se deixou cair, decepcionada, e sussurrei sem querer: — Oh, Deus, não.
— Uma menina — repetiu a parteira. — Uma menina forte e sadia — repetiu como se para que nos resignássemos.
Por um instante, achei que Ana tinha desmaiado. Estava lívida como morta. Deitei-a sobre os travesseiros e afastei seu cabelo do rosto suado.
— Uma menina.
— Um bebê vivo é o mais importante — eu disse, tentando aplacar o meu próprio desespero.
A parteira envolveu o bebê com um pano e o afagou. Ana e eu viramos a cabeça para o grito queixoso, penetrante.
— Uma menina — disse Ana em choque. — Uma menina. Do que nos adianta uma menina?
George disse a mesma coisa quando lhe contei. Tio Howard, quando lhe dei a notícia, praguejou alto e me chamou de uma vadia inútil e minha irmã de uma puta estúpida. A sorte da família tinha dependido desse pequeno acidente de parto. Se Ana tivesse dado à luz um menino, teríamos nos tornado a família mais poderosa da Inglaterra com uma participação eterna no trono. Mas tinha sido uma menina.
Henrique, sempre rei, sempre imprevisível, não se queixou. Pegou o bebê no colo e elogiou seus olhos azuis e seu corpinho vigoroso. Admirou os pequenos detalhes de suas mãos, as dobrinhas de suas articulações, a perfeição de suas unhas minúsculas. Disse a Ana que, na próxima vez, teriam um menino, que estava feliz por ter mais uma princesinha perfeita em sua casa. Ordenou que as cartas com a comunicação do nascimento de um príncipe fossem corrigidas para uma princesa, para comunicar ao rei da França e ao Imperador da Espanha que o rei da Inglaterra tinha mais uma filha. Fincou pé e tentou não pensar no que diriam nas cortes da Europa. Ririam da Inglaterra por ter passado por tal revolução na ordem para o rei ter uma menina de uma plebeia. Mas nessa noite eu o admirei, quando pegou minha irmã nos braços, beijou seu cabelo e a chamou de coração. Eu o entendi: era orgulhoso demais para deixar alguém perceber que estava decepcionado. Eu o achava um homem de uma grande vaidade, de caprichos perigosos, e apesar de tudo isso — ou justamente por isso — um grande rei.
Fui para o meu quarto depois de trinta e seis horas sem dormir, e com a raiva e desespero de meu pai, meu tio e meu irmão ressoando em meus ouvidos. Lá, encontrei William com um bolo de carne na mesa ao lado da lareira e uma jarra de ale. Recebeu-me dizendo:
— Achei que estaria cansada e faminta.
Caí em seus braços e mergulhei o rosto no cheiro reconfortante de sua roupa.
— Oh, William!
— Problemas?
— Todos estão com tanta raiva, e Ana está em desespero, e ninguém olhou para o bebê, a não ser o rei, que a segurou por não mais que alguns instantes. Tudo isso parece tão aterrador. Oh, Deus, por que não foi um menino?
Ele afagou minhas costas.
— Calma, meu amor. Vão todos se recuperar. E farão outro filho. Quem sabe da próxima vez não será um menino?
— Mais um ano — eu disse. — Mais um ano antes de Ana se livrar do medo e eu, dela.
Levou-me para a mesa e me sentou, e pôs a colher em minha mão.
— Coma — disse ele. — Tudo vai parecer melhor depois de ter comido e dormido.
— Onde está Madge? — perguntei receosa, olhando para a porta.
— Agitando-se no salão como uma beberrona — replicou. — A corte preparou um banquete para receber o príncipe e vai comê-lo independentemente do que aconteceu. Madge só vai voltar horas mais tarde, se é que vai voltar.
Balancei a cabeça e comi como tinha mandado. Quando acabei, ele me levou para a cama e beijou minha orelha, meu pescoço, minhas pálpebras, delicada e ternamente, até eu me esquecer de tudo sobre Ana e a menina não desejada, e me entregar a seus braços. Adormeci assim, vestida, sobre as cobertas da cama, dividida entre o sono e o desejo. Adormeci e sonhei com ele fazendo amor comigo, embora ele passasse a noite toda me abraçando e acariciando meu rosto.
Assim que Ana se recuperou do parto, ficou ocupada com as providências para o cuidado da pequena princesa Elizabeth, no Palácio de Hatfield, onde acomodações reais para a criança seriam estabelecidas sob a responsabilidade de nossa tia, Lady Anne Shelton, a mãe discreta de Madge. A princesa Mary, que tinha sido vista escondendo o riso com as mãos diante do desapontamento de Ana, também iria para longe de seu pai, de sua posição na corte.
— Ela pode servir a Elizabeth — disse Ana com indiferença. — Pode ser sua dama de honra.
— Ana — eu disse. — Ela é princesa legítima, não pode servir à sua filha. Não é certo.
Ana olhou para mim.
— Boba — replicou simplesmente. — Tudo faz parte da mesma coisa. Ela tem de ser vista indo aonde eu mandar, tem de servir à minha filha, assim sei que sou rainha realmente e Catarina foi esquecida.
— Não consegue descansar? — perguntei. — Precisa estar sempre conspirando?
Lançou-me um sorriso amargo.
— Acha que Cromwell descansa? Acha que os Seymour descansam? Acha que o embaixador espanhol e sua rede de espiões e essa mulher maldita, que todos eles descansam, pensando: “Bem, ela se casou com ele e deu à luz uma menina inútil, de modo que embora tenhamos tudo por que lutar, vamos descansar”? Acha?
— Não — repliquei contrafeita.
Ela olhou-me por um momento.
— Olhando-a não dá para entender como pode parecer tão roliça e satisfeita consigo mesma quando, ao que tudo indica, deveria estar lutando para sobreviver com uma pequena pensão, e definhando.
Não consegui reprimir uma risada diante de sua visão sombria a meu respeito.
— Eu me arranjo — respondi simplesmente. — Mas gostaria de ver meus filhos em Hever, agora, se me permitir.
— Oh, vá — disse ela, farta do pedido. — Mas esteja de volta a Greenwich a tempo do Natal.
Dirigi-me rapidamente à porta, antes que ela mudasse de ideia.
— E diga a Henrique que ele terá de ir para um tutor, ele tem de ser educado apropriadamente — disse ela. — Irá no fim deste ano.
Parei, minha mão na porta.
— O meu filho? — sussurrei.
— Meu filho — corrigiu-me. — Não pode passar a infância brincando, sabe disso.
— Achei...
— Providenciei para que estude com o filho de Sir Francis Weston e o de William Brereton. Eles estão indo bem, pelo que eu soube. Está na hora de ficar com meninos de sua idade.
— Não o quero com eles — falei instantaneamente. — Não os filhos desses dois.
Ela ergueu a sobrancelha.
— São cavalheiros da minha corte — lembrou-me. — Seus filhos também serão cortesãos, e talvez, um dia, sejam cortesãos de Henrique. Ele deve ficar com eles. Já decidi.
Tive vontade de gritar com ela, mas me contive e mantive a voz baixa e suave.
— Ana, ele ainda é muito pequeno. É feliz com sua irmã, em Hever. Se quer que se eduque, ficarei lá. Eu o educarei...
— Você! — riu ela. — Seria o mesmo que pedir aos patos no fosso para lhe ensinarem a grasnir. Não, Maria. Já decidi. E o rei concorda comigo.
— Ana...
Recostou-se e me olhou com os olhos apertados.
— Não quer vê-lo neste ano? Prefere que o mande para o tutor imediatamente?
— Não!
— Então, vá, irmã. Pois já decidi e você me cansa.
William me observava de lá para cá no nosso quarto exíguo alugado.
— Vou matá-la — jurei.
Ele estava de costas para a porta, verificava se a janela estava bem fechada para evitar a água que pingava do beiral.
— Eu a mato! Colocar meu filho, meu filho precioso, com os filhos daqueles sodomitas! Prepará-lo para uma vida na corte! Ordenar que a princesa Mary sirva a Elizabeth e mandar meu filho para o exílio ao mesmo tempo! Ela está louca! Enlouqueceu de ambição. E o meu menino... o meu filho...
Minha garganta apertou e reteve as palavras. Meus joelhos cederam, pus o rosto sobre as cobertas da cama e solucei.
William não se moveu de seu lugar à janela, deixou que eu chorasse. Esperou até eu levantar a cabeça e enxugar as bochechas com os dedos. Só então, avançou e se ajoelhou perto de mim, de modo que engatinhei, abatida por minha aflição, para os seus braços. Abraçou-me e me ninou como se eu fosse um bebê.
— Vamos tê-lo de volta — sussurrou em meu cabelo. — Passaremos um tempo maravilhoso com ele, o tiraremos de seus tutores, e o traremos de volta. Prometo. Nós ainda vamos buscá-lo, meu coração.
Inverno de 1533
Como forma de agradar o rei no Ano-Novo, Ana encomendou o presente mais extravagante. Os ourives o levaram ao salão, Ana à frente, de modo que pudesse abrir as portas e ver nossas caras. Foi uma visão surpreendente: uma fonte de ouro com diamantes e rubis incrustados. Aos pés da fonte, estavam três mulheres nuas, também forjadas em ouro, e de suas tetas esguichava mais água.
— Meu Deus — disse George, realmente admirado. — Quanto custou?
— Nem me fale — replicou Ana. — É grandiosa, não?
— Grandiosa — repeti, e não acrescentei: “Mas vergonhosamente feia”, se bem que percebi, pela expressão perplexa de George, que ele achava o mesmo.
— Achei que a ondulação da água seria calmante. Henrique pode colocá-la em sua sala de audiências — disse Ana. Aproximou-se da construção e a tocou. — Foi muito bem forjada.
— Mulheres férteis jorrando água — eu disse, olhando para as três estátuas fulgurantes.
Ana sorriu para mim.
— Um augúrio — disse ela. — Um lembrete. Um desejo.
— Queira Deus, uma predição — disse George, sinistramente. — Nenhum sinal ainda?
— Ainda não — replicou ela. — Mas acontecerá logo.
— Amém — dissemos George e eu juntos, devotos como luteranos. — Amém.
Nossas preces foram atendidas. As regras de Ana não aconteceram em janeiro nem em fevereiro. Quando os brotos de aspargos se manifestaram na primavera, a rainha passou a comê-los em todas as refeições, pois diziam que faziam um menino. As pessoas começaram a ter dúvidas. Ninguém tinha certeza. Ana estava sempre com um meio sorriso na face e deleitada por ser o centro das atenções de novo.
Primavera de 1534
Os planos da corte para uma viagem de veraneio foram adiados mais uma vez enquanto Ana, no centro do remoinho de comentários, mostrava-se satisfeita, sentada serenamente com a mão sobre a barriga, sem se importar com as dúvidas. O palácio era só comentários. George, minha mãe e eu éramos importunados com notícias dos cortesãos que queriam saber se ela estava realmente grávida e quando teria de ficar de cama. Ninguém gostava de ficar perto das ruas de Londres tomadas pela praga no tempo quente. Mas a ideia do confinamento da rainha e as oportunidades de promoção que um rei solitário poderia oferecer eram um atrativo poderoso.
Passaríamos o verão em Hampton Court, até onde todos sabiam, e a viagem proposta à França para consolidar o tratado com Francis foi adiada.
Nosso tio convocou uma reunião de família em maio, mas não chamou Ana, que agora não recebia mais ordens suas. Entretanto, motivada pela curiosidade, ela planejou sua chegada a seus aposentos no instante em que estávamos todos sentados. Hesitou à entrada, perfeitamente imóvel, e nosso tio levantou-se de seu lugar à cabeceira da mesa para lhe buscar uma cadeira. Mas assim que deixou seu lugar vago, ela caminhou imponente e vagarosamente para a cabeceira e sentou-se sem uma palavra de agradecimento. Reprimi um risinho, um som muito baixinho, e Ana deu-me um sorriso rápido. Não havia nada que lhe desse mais prazer do que exercer seu poder, comprado a um preço tão alto.
— Pedi que a família se reunisse para descobrir quais são seus planos, Majestade — disse meu tio suavemente. — Vai-me ser útil saber se a senhora está realmente grávida e quando espera ser confinada.
Ana ergueu a sobrancelha como se a pergunta fosse uma impertinência.
— Pergunta isso a mim?
— Ia perguntar à sua irmã ou à sua mãe, mas já que está aqui, posso lhe perguntar diretamente — replicou ele. Não se sentia nem um pouco intimidado por Ana. Tinha servido a monarcas muito mais assustadores: o pai de Henrique e o próprio Henrique. Havia enfrentado assaltos da cavalaria. Nem mesmo Ana, com toda a sua realeza, o assustaria.
— Em setembro — respondeu ela, brevemente.
— Se for outra menina, dessa vez ele demonstrará seu desapontamento — disse meu tio. — Já teve problemas suficientes tornando Elizabeth sua herdeira, e não Mary. A Torre está cheia de homens que se recusaram a renegar Mary. E Thomas More e Fisher certamente se juntarão a eles. Se tiver um menino, ninguém negará seus direitos.
— Será um menino — disse Ana determinada.
Meu tio sorriu para ela.
— É o que todos esperamos. O rei tomará uma mulher quando você estiver nos últimos meses — apesar de Ana erguer a cabeça para falar, ele não permitiu que o interrompesse. — Ele sempre faz isso, Ana. Tem de ficar mais calma em relação a esse tipo de coisa, não se irritar com ele.
— Não vou tolerar isso — disse ela simplesmente.
— Terá de tolerar — disse ele, tão obstinado quanto ela.
— Ele nunca desviou os olhos de mim durante todos os anos de nosso namoro — disse ela. — Nem uma só vez.
George ergueu a sobrancelha para mim. Não falei nada. Evidentemente, eu não contava.
Meu tio deu uma risada breve e viu meu pai sorrir.
— Namoro é outra coisa. De qualquer maneira, escolhi a garota para distraí-lo — disse meu tio. — Uma garota Howard.
Senti o suor brotar em mim. Sabia que tinha ficado lívida quando George, de repente, sussurrou, de lado:
— Fique ereta!
— Quem? — perguntou Ana bruscamente.
— Madge Shelton — replicou ele.
— Oh, Madge — eu disse, meu coração aliviado e a cor retornando à minha face. — Essa garota Howard.
— Ela o manterá ocupado e sabe o seu lugar — disse meu pai, de modo algum como se estivesse entregando outra sobrinha ao adultério e pecado.
— E a sua influência não se reduz — falou Ana com rispidez.
Meu tio sorriu.
— É verdade, sem dúvida. Mas quem você preferiria? Uma garota Seymour? Já que é uma certeza, não é melhor para nós que seja uma garota que nos obedecerá?
— Depende do que mandar que ela faça — replicou Ana, sem rodeios.
— Distraí-lo enquanto você estiver confinada — disse meu tio com a voz macia. — Nada mais.
— Eu não a quero com pretensões de ser a sua amante, não a quero nos melhores aposentos, usando joias, vestidos novos, se exibindo à minha volta — avisou Ana.
— Sim, você mais do que qualquer outra mulher, sabe como isso pode ser doloroso para uma boa esposa — concordou meu tio.
Os olhos escuros de Ana o dardejaram. Ele sorriu.
— Ela distrairá o rei durante o seu confinamento, e quando voltar à corte, ela desaparecerá — prometeu ele. — Eu providenciarei para que faça um bom casamento e Henrique a esquecerá tão facilmente quanto a teve.
Ana tamborilava os dedos sobre a mesa. Todos percebíamos que estava lutando para se controlar.
— Gostaria de confiar no senhor, tio.
— Gostaria que confiasse — sorriu diante da relutância dela. Virou-se para mim e senti o tremor de medo de sempre quando me dava atenção.
— Madge Shelton dorme com você, não?
— Sim, tio — repliquei.
— Diga-lhe como se comportar, o que deve fazer — virou-se para George. — E você mantenha a atenção do rei em Ana e em Madge.
— Sim, senhor — disse George à vontade, como se nunca tivesse desejado outra carreira senão a de proxeneta do harém real.
— Ótimo — disse meu tio, pondo-se de pé para indicar que a reunião tinha chegado ao fim. — Oh, e mais uma coisa... — todos esperamos obedientemente, exceto Ana, que olhava pela janela os jardins ao sol e a corte jogando boliche, com o rei no centro das atenções, como sempre.
— Maria — observou meu tio.
Retraí-me com a menção de meu nome.
— Acho que deveríamos casá-la, não acham?
— Gostaria de vê-la comprometida antes de sua irmã dar à luz — observou meu pai. — Seria uma garantia para o caso de Ana fracassar.
Não olharam para Ana, que talvez estivesse grávida de uma menina, o que diminuiria o nosso poder de barganha no mercado do casamento. Não olharam para mim, que seria negociada como a vaca de um fazendeiro. Olharam uns para os outros, comerciantes com um negócio a fazer.
— Muito bem — disse o nosso tio. — Falarei com o secretário Cromwell, está na hora de ela se casar.
Deixei Ana e George e me dirigi aos aposentos do rei. William não estava na sala de audiências e não me atrevi a procurá-lo na câmara privada. Um rapaz passou, segurando um alaúde, era o músico de Sir Francis Weston, Mark Smeaton.
— Viu Sir William Stafford? — perguntei.
Fez uma bela mesura para mim.
— Sim, Lady Carey — respondeu. — Ainda está jogando boliche.
Balancei a cabeça e segui para o salão. Assim que fiquei fora de sua vista, dirigi-me a uma das pequenas portas que levavam ao amplo terraço e desci a escada de pedra até o jardim. William estava pegando as bolas, o jogo tinha terminado. Virou-se e sorriu para mim. Os outros jogadores me saudaram e me desafiaram a jogar.
— Pois bem — eu disse. — Qual é a aposta?
— Um xelim por jogada — disse William. — Caiu no meio de jogadores temerários, Lady Carey.
Procurei na bolsa e dei um xelim. Então, peguei uma bola e a lancei cuidadosamente ao longo da relva. Não passou nem perto. Recuei para dar lugar a outro jogador e dei com William em meu cotovelo.
— Tudo bem? — perguntou baixinho.
— Sim — repliquei. — Mas tenho de ficar a sós com você assim que pudermos.
— Também acho — disse ele reprimindo o riso. — Mas não sabia que você era tão impudente.
— Não é para isso! — repliquei com indignação e tive de parar e olhar em volta para ver se alguém tinha me notado rir e enrubescer. Ansiava por tocá-lo, mal conseguia ficar ao seu lado e não lhe estender meus braços. Prudentemente, afastei-me um pouco como se para observar melhor o jogo.
Fui logo derrotada, e William perdeu deliberadamente logo depois. Deixamos nosso xelim na pista para o vencedor eventual e descemos, como se para tomar um pouco de ar, a trilha de cascalhos até o rio. Com as janelas do castelo dando para o jardim, não me atrevi a tocar nele, nem que pegasse meu braço. Caminhamos um ao lado do outro, como cortesãos que não se conhecem. Somente quando pisei na plataforma de desembarque, deixei que tocasse em meu cotovelo, como se para me equilibrar, e então ele me segurou firme. Esse simples contato de sua mão em meu braço aqueceu todo o meu corpo.
— O que foi? — perguntou.
— É o meu tio. Está planejando o meu casamento.
Sua expressão se fechou imediatamente.
— Para breve? Ele tem um marido em mente?
— Não. Estão considerando as possibilidades.
— Então, temos de nos preparar para quando encontrarem alguém. E quando isso acontecer, teremos de simplesmente confessar, e enfrentar o fato.
— Sim — fiz uma pausa, relanceei os olhos para o seu perfil e de novo para o rio. — Ele me atemoriza — eu disse. — Quando falou que queria me ver casada, naquele momento, achei que deveria obedecer-lhe. Sempre lhe obedeci, sabe? Todo mundo lhe obedece. Até mesmo Ana.
— Não fique assim, meu amor, ou a pegarei em meus braços na frente de todo o palácio. Juro que você é minha e não deixarei que ninguém a tire de mim. Você é minha. Eu sou seu. Ninguém pode negar isso.
— Tiraram Henry Percy de Ana — eu disse. — E ela estava tão casada quanto nós.
— Ele era um garoto — disse William. — Nenhum homem vai se intrometer entre mim e você — interrompeu-se por um instante. — Mas talvez tenhamos de pagar por isso. Ana aceitaria? Se tivermos o seu apoio, estaremos salvos.
— Ela não vai gostar — eu disse, conhecendo bem o extremo egoísmo de minha irmã. — Mas isso não vai prejudicá-la.
— Então, vamos esperar até sermos encurralados, e, depois, confessaremos — disse ele. — Nesse meio-tempo, seremos tão encantadores como pudermos.
Ri.
— Com o rei? — achando que se referia a demonstrar habilidades de cortesãos.
— Um com o outro — replicou. — O que mais me importa no mundo?
— Eu — respondi, com alegria. — E você a mim.
Passamos a noite nos braços um do outro num quarto em um pequeno hotel. Quando acordei e me virei, ele já estava vindo na minha direção. Adormecemos abraçados, como se não suportássemos nos separar, como se nem mesmo no sono suportássemos não estar um com o outro. Quando despertei pela manhã, ele continuava em cima de mim, dentro de mim, e quando me movi sob ele, senti-o agitar-se com desejo por mim, mais uma vez. Fechei os olhos e me deixei levar, enquanto ele me amava até o sol atravessar as persianas e o barulho no pátio lá embaixo nos alertar que estava na hora de retornarmos ao palácio.
Subiu o rio comigo em um pequeno barco a remo, e deixou-me na plataforma de desembarque. Desembarcou mais adiante, e chegou meia hora depois de mim. Achei que conseguiria entrar pela porta do jardim e subir furtivamente ao meu quarto a tempo de aparecer na missa da manhã, mas quando cheguei à minha porta, George surgiu de repente e disse:
— Graças a Deus está de volta, mais uma ou duas horas e todos saberiam.
— O que houve? — perguntei rapidamente.
Sua expressão era soturna.
— Ana foi levada para a cama.
— Vou vê-la — eu disse e desci rapidamente o corredor. Bati à porta do quarto de Ana e pus minha cabeça para dentro. Ela estava só no quarto imponente, lívida e lânguida em sua cama.
— Oh, é você — disse ela, nada satisfeita. — Bem que podia entrar.
Entrei e George fechou a porta atrás de nós.
— Qual foi o problema? — perguntei.
— Estou sangrando — respondeu simplesmente. — E senti dores de contrações, como as dores do parto. Acho que o estou perdendo.
O terror de suas palavras foi excessivo para eu assimilar. Eu estava extremamente ciente de meu cabelo desgrenhado e do cheiro de William em cada polegada de minha pele. O contraste entre a noite passada amando e esse amanhecer desastroso foi demais para mim. Virei-me para George.
— Devíamos chamar uma parteira — eu disse.
— Não! — sibilou Ana como uma serpente. — Não entende? Chamá-la com toda essa gente em volta é o mesmo que contar ao mundo inteiro. Neste momento, ninguém tem certeza se eu estou realmente esperando um bebê. São só boatos. Não posso correr o risco de saberem que o perdi.
— Isto está errado — eu disse sem rodeios a George. — Estamos falando de um bebê. Não podemos deixar um bebê morrer por medo de escândalo. Vamos transferi-la para um quarto nos fundos, um pequeno quarto, nada sofisticado. Cobrir seu rosto e fechar as cortinas. Trarei uma parteira e direi que é uma camareira da corte. Ninguém importante.
George hesitou.
— Se for uma menina, não vale o risco — disse ele. — Se for outra menina, é melhor morta.
— Pelo amor de Deus, George! É um bebê. É uma alma. É nosso sangue. É claro que devemos salvá-la se pudermos.
Sua expressão era severa, e por um momento não pareceu em nada com o meu irmão querido, mas sim com um dos homens de feições férreas da corte, que assinariam a sentença de morte de qualquer um, contanto que ficassem seguros.
— George! — gritei. — Se for mais uma garota Bolena, ela tem o direito de viver tanto quanto Ana ou eu.
— Está bem — disse ele, com relutância. — Vou transferir Ana. Você consegue a parteira e se assegura de que seja discreta. Quem vai mandar buscá-la?
— William — repliquei.
— Oh, Deus! William! — disse ele, irritado. — Ele tem de saber tudo sobre nós? Ele conhece uma parteira? Onde vai achar uma?
— Irá a uma casa de banhos — repliquei rudemente. — Ali, devem precisar de parteiras rapidamente. E ficará com a boca fechada por amor a mim.
George assentiu com a cabeça e foi até a cama. Eu o ouvi cochichar uma explicação a Ana com a voz grave e terna, e ela murmurar sua resposta, e corri para a porta dos fundos do palácio, por onde eu esperava que William passasse a qualquer momento.
Peguei-o no limiar e o mandei buscar uma parteira. Retornou em uma hora com uma mulher surpreendentemente jovem, segurando uma pequena bolsa com garrafas e ervas.
Levei-a ao pequeno quarto onde os pajens de George dormiam, ela olhou em volta do quarto obscurecido e se retraiu. Em algum momento absurdo de imaginação, George e Ana tinham rebuscado a caixa de fantasias do palácio procurando uma máscara para esconder sua cara conhecida. Em vez de um simples disfarce, tinham encontrado uma máscara dourada com a cara de um pássaro que ela usara na França para dançar com o rei. Ana, ofegando de dor, metade iluminada pela luz de velas, estava deitada em uma cama estreita, sua barriga imensa retorcendo-se sob o lençol, e em cima, uma máscara dourada cintilando com a cara de um falcão, um bico grande e dourado e sobrancelhas tremeluzentes. Parecia uma cena de um quadro alegórico aterrador, com a cara de Ana como uma descrição da ambição e vaidade, seus olhos escuros faiscando através das fendas na face dourada orgulhosa na cabeceira da cama, enquanto embaixo suas coxas alvas e vulneráveis estavam separadas sobre uma mixórdia de sangue nos lençóis.
A parteira examinou-a, tomando o cuidado de quase não tocá-la. Endireitou o corpo e fez uma série de perguntas a respeito da dor, o ritmo e intensidade das contrações, a sua duração. Então, disse que podia fazer uma poção de leite quente, cerveja e vinho, e adormecer Ana, o que talvez salvasse a criança. Seu corpo repousaria e, quem sabe, a criança também. Não pareceu esperançosa. O bico inexpressivo da máscara dourada foi da mulher para George, sem falar nada.
A parteira preparou a poção sobre o fogo e Ana a bebeu em uma caneca de peltre. George segurou-a até ela se recostar em seus ombros, a máscara brilhante medonha parecendo selvagemente triunfante, mesmo quando a parteira a cobriu delicadamente. A mulher dirigiu-se à porta, George deitou Ana e saiu conosco.
— Não podemos perdê-la, não suportaremos perdê-la — disse George, e, por um momento, senti paixão em sua voz.
— Então, reze por ela — respondeu a mulher brevemente. — Ela está nas mãos de Deus.
George replicou algo que não deu para eu escutar e voltou para o quarto. Conduzi a mulher para fora e William acompanhou-a pelo corredor comprido e escuro até os portões do palácio. Retornei ao quarto, e George e eu nos sentamos cada um de um lado da cama de Ana, enquanto ela resmungava em seu sono.
Tivemos de transportá-la de volta ao seu próprio quarto e dizer que não estava passando bem. George jogou cartas em sua sala de audiências como se não se preocupasse nem um pouco e as damas flertaram e jogaram como se nada tivesse acontecido. Fiquei com Ana, em seu quarto, e enviei uma mensagem ao rei em seu nome, dizendo que ela estava cansada e que o veria antes do jantar. Minha mãe, alertada pela despreocupação ostentosa de George e meu desaparecimento, procurou Ana. Ao vê-la dormindo drogada e o sangue nos lençóis, ficou lívida ao redor da boca.
— Fizemos tudo o que podíamos — falei ansiosa.
— Alguém mais sabe? — perguntou.
— Ninguém. Nem mesmo o rei.
Balançou a cabeça.
— Que fique assim.
O dia passava. Ana começou a suar e eu a ter dúvidas em relação à poção da parteira. Coloquei minha mão em sua testa e senti o calor queimá-la. Olhei para a minha mãe.
— Ela está quente demais — eu disse. Minha mãe encolheu os ombros.
Virei-me de novo para Ana. Ela girava a cabeça sobre o travesseiro. Então, de súbito, ergueu-se, curvou-se e emitiu um gemido pungente. Minha mãe puxou as cobertas e vimos o fluxo repentino de sangue e um volume. Ana voltou a cair sobre os travesseiros e gritou, um grito doído, de dar pena. Suas pestanas bateram e, então, ficou quieta.
Toquei novamente na sua testa e pus o ouvido sobre seu peito. Seu coração estava batendo regularmente e com força, mas seus olhos estavam fechados. Minha mãe, a cara como de pedra, juntava os lençóis manchados, envolvendo a sujeira com eles. Virou-se para o fogo, um fogo baixo de verão.
— Atice o fogo — disse ela.
Hesitei relanceando os olhos para Ana.
— Ela está muito quente.
— Isto é mais importante — disse ela. — Isto tem de desaparecer antes que alguém chegue a imaginar o que houve.
Girei, com o atiçador, a brasa quente. Minha mãe ajoelhou-se diante do fogo, rasgou o lençol em tiras e as pôs nas chamas. Queimaram com um chiado. Pacientemente, rasgou outro, depois outro, até chegar ao centro da trouxa, à coisa terrível e escura que tinha sido o bebê de Ana.
— Atice o fogo — disse ela simplesmente.
Olhei para ela em choque.
— Não deveríamos enterrá-lo...?
— Atice o fogo — falou rispidamente. — Quanto tempo acha que cada um de nós duraria se todos soubessem que ela não pode segurar uma gestação?
Olhei seu rosto e avaliei o poder de sua vontade. Então, empilhei os pequenos cones de abetos perfumados no fogo, e quando se inflamaram, pusemos a trouxa culpada nas chamas e nos acocoramos, como duas velhas bruxas, e observamos tudo o que restara do bebê de Ana subir pela chaminé como uma maldição medonha.
Quando o lençol foi queimado e o volume também desapareceu, minha mãe lançou mais alguns abetos e ervas no fogo, para purificar o cheiro do quarto, e somente então virou-se para a sua filha.
Ana estava desperta, apoiada em um cotovelo para nos observar, os olhos vidrados.
— Ana? — disse minha mãe.
Com esforço, minha irmã dirigiu o olhar para ela.
— Seu bebê está morto — disse minha mãe cruamente. — Morto e desaparecido. Você precisa dormir e se recuperar. Espero que se levante em um dia. Está me ouvindo? Se alguém perguntar sobre o bebê, vai responder que se enganou, que não havia nenhum bebê. Nunca houve nenhum bebê e você nunca anunciou um bebê. Mas que, certamente, haverá um em breve.
Ana lançou um olhar vago para ela. Por um instante, fui tomada por um medo horrível de que a poção, a dor e o calor a tivessem enlouquecido, e que ela passaria a olhar eternamente sem ver, a ouvir sem entender.
— Ao rei também — disse minha mãe, a voz fria. — Diga-lhe simplesmente que cometeu um erro, que não estava grávida. Um erro é inocente, mas um aborto é prova de pecado.
A expressão de Ana não se alterou. Nem mesmo protestou inocência. Achei que estava surda.
— Ana? — eu disse, delicadamente.
Virou-se para mim, e ao ver meu olhar em choque e a fuligem em meu rosto, sua expressão se alterou. Percebeu que algo muito terrível tinha acontecido.
— Por que está tão desgrenhada? — perguntou friamente. — Aconteceu alguma coisa com você?
— Vou contar a seu tio — disse minha mãe. Deteve-se na soleira da porta e se virou para mim. — O que ela fez para que isso acontecesse? — perguntou friamente, como se perguntasse sobre uma porcelana quebrada. — Ela deve ter feito alguma coisa para perder o bebê dessa maneira. Sabe o que foi?
Pensei nos dias e noites seduzindo o rei e entristecendo sua esposa, no envenenamento dos três homens e na destruição do cardeal Wolsey.
— Nada de extraordinário.
Minha mãe balançou a cabeça e saiu sem tocar em sua filha, sem mais uma palavra a qualquer uma de nós. O olhar vazio de Ana voltou-se para mim, seu rosto tão apático quanto o da máscara de falcão dourada. Ajoelhei-me à sua cabeceira e estendi meus braços. Sua expressão não se alterou, mas inclinou-se lentamente para mim e descansou sua cabeça pesada em meu ombro.
Precisamos dessa noite toda e do dia seguinte para conseguirmos pôr Ana de pé novamente. O rei se manteve afastado, já que dissemos que ela estava resfriada. Mas não meu tio, que apareceu à porta de seu quarto como se ela ainda não passasse de uma garota Bolena. Vi os olhos dela se obscurecerem de raiva com o seu desrespeito.
— Sua mãe me contou — disse ele sem rodeios. — Como isso pôde acontecer?
Ana virou a cabeça.
— Como posso saber?
— Não consultou alguma parteira para conceber? Experimentou alguma poção, ervas, alguma coisa? Invocou espíritos ou fez sortilégios?
Ana sacudiu a cabeça.
— Eu não toco nessas coisas — disse ela. — Pode perguntar a quem quiser. Pergunte a meu confessor, pergunte a Thomas Cranmer. Cuido tanto da minha alma quanto o senhor.
— Eu cuido mais do meu pescoço — replicou ele implacável. — Você jura? Pois talvez eu tenha de jurar por você, um dia.
— Eu juro — replicou Ana com uma carranca.
— Levante-se o mais rápido possível e conceba outro, e é melhor que seja um menino.
O olhar que ela lhe lançou foi tão carregado de ódio que até mesmo ele se retraiu.
— Obrigada pelo conselho — falou ela, com rispidez. — É algo que já tinha me ocorrido. Tenho de conceber o mais rapidamente possível, a gestação tem de se completar, e tem de ser um menino. Obrigada, tio. Sim, eu sei disso.
Virou o rosto para o outro lado. Ele esperou por um momento, depois deu aquele seu sorriso sinistro para mim, e saiu. Fechei a porta, e Ana e eu ficamos a sós.
Seus olhos, quando se voltaram para mim, estavam cheios de medo.
— E se o rei não conseguir ter um filho legítimo? — sussurrou. — Nunca o teve com ela. Vou levar a culpa toda e depois, o que será de mim?
Verão de 1534
Nos primeiros dias de julho, passei a sentir enjoo de manhã e meus seios ficaram sensíveis. William, certa tarde, beijando minha barriga em um quarto com a cortina fechada, acariciou-me e disse calmamente:
— O que acha, meu amor?
— Do quê?
— Desta barriguinha redonda.
Virei o rosto para que não me visse sorrir.
— Eu não tinha notado.
— Pois eu sim — disse ele bruscamente. — Agora me conte. Há quanto tempo sabe?
— Dois meses — confessei. — E tenho andado dividida entre a alegria e o medo, pois será a nossa ruína.
Seu braço dobrou-se ao redor de mim.
— Nunca — replicou. — É o nosso primeiro filho Stafford e motivo da maior alegria. Eu não poderia estar mais satisfeito. Um filho para conduzir a vaca ou uma filha para ordenhá-la, você é uma garota inteligente.
— Quer um menino? — perguntei com curiosidade, pensando na preocupação constante dos Bolena.
— Se tiver um — respondeu calmamente. — Quero o que você tiver aí, meu amor.
Fui liberada para ir a Hever ver meus filhos durante julho e agosto, enquanto Ana e o rei estavam fora. Foi o melhor verão que William e eu passamos juntos com as crianças, mas quando chegou a hora de retornarmos à corte, minha barriga estava tão alta e eu me mostrava tão orgulhosa, que sabia que teria de contar a Ana e esperar que me protegesse da ira de meu tio, como ajudara a protegê-la do rei ao abortar.
Tive sorte ao chegar a Greenwich. O rei estava fora, caçando, e a maior parte da corte estava com ele. Ana estava no jardim, sentada em um banco de relva, um toldo sobre sua cabeça e um grupo de músicos tocando. Alguém lia poesia de amor. Parei por um instante e os olhei mais uma vez. Estavam todos mais velhos. Não era mais uma corte de rapazes. Estavam todos mais maduros do que no tempo da rainha Catarina. Havia um quê de extravagância e glamour, havia muitas palavras bonitas sendo proferidas e um certo ardor no grupo que não era devido ao sol do fim do verão e ao vinho. Tornara-se uma corte mundana, uma corte mais velha, eu quase diria corrupta. Senti como se qualquer coisa pudesse acontecer.
— Ora, aí está minha irmã — falou Ana, protegendo os olhos com a mão. — Bem-vinda, Maria. Fartou-se do campo?
Mantive meu manto de montaria solto à minha volta.
— Sim — repliquei. — Vim em busca do sol de sua corte.
Ana deu um risinho.
— Muito bem dito — falou. — Eu a treinei como uma verdadeira cortesã. Como vai o meu filho, Henrique?
Trinquei os dentes ao ouvir isso, como ela sabia que eu faria.
— Manda seu amor e respeito. Trouxe uma carta que ele lhe escreveu em latim. É um menino inteligente, seu mestre está satisfeito, e aprendeu a montar muito bem neste verão.
— Ótimo — disse Ana. Claramente, não valia a pena me atormentar pois virou-se para William Brereton. — Se não pode fazer coisa melhor do que rimar “amor” com “ardor”, terei de dar o prêmio a Sir Thomas.
— Andor? — sugeriu ele.
Ana riu.
— O quê? Minha querida rainha, meu único amor, anseio por colocá-la sobre um andor?
— Amor é impossível — observou Sir Thomas. — Na poesia como na vida, nada combina com ele.
— Casamento — propôs Ana.
— Claramente, amor não vai com casamento. O casamento é algo completamente diferente. Para começar, são três batidas em oposição a uma. Segundo, não tem música.
— Meu casamento tem música — disse Ana.
Sir Thomas baixou a cabeça.
— Tudo o que a senhora faz tem música — destacou. — Mas a palavra continua a não rimar com nada útil.
— O prêmio é seu, Sir Thomas — disse Ana. — Não precisa me lisonjear tanto quanto fazer poesia.
— Não é lisonja dizer a verdade — replicou ele, ajoelhando-se diante dela. Ana deu-lhe uma corrente de ouro de seu cinto, que ele beijou e pôs no bolso de seu gibão.
— Agora — disse Ana —, vou trocar de roupa antes de o rei chegar da caça querendo seu almoço — levantou-se e olhou em volta, para suas damas. — Onde está Madge Shelton?
O silêncio como resposta disse tudo.
— Onde ela está?
— Caçando com o rei, Majestade — falou uma das damas.
Ana ergueu uma sobrancelha e relanceou os olhos para mim, o único membro de sua corte que sabia que Madge havia sido designada para amante do rei enquanto estivesse confinada. Mas parecia que Madge fazia progressos por conta própria.
— Onde está George? — perguntei.
Ela balançou a cabeça, foi uma pergunta-chave.
— Com o rei — respondeu. Sabíamos que podíamos confiar em George para proteger os interesses de Ana.
Ana fez um movimento com a cabeça e seguiu para o palácio. A leveza da tarde tinha se esvaecido com a primeira menção do rei com outra mulher. Os ombros de Ana estavam firmes, sua face, sombria. Andei ao seu lado enquanto subia a seus aposentos. Como eu esperava, fez um gesto para que as damas esperassem na sala de audiências, e só nós duas entramos em sua câmara privada. Assim que a porta se fechou, eu disse:
— Ana, tenho algo a lhe contar. Preciso de sua ajuda.
— O que foi agora? — perguntou. Sentou-se diante de um espelho dourado e tirou o capelo. Seu cabelo escuro, belo e sedoso como sempre, caiu sobre seus ombros. — Escove meu cabelo — disse ela.
Peguei uma escova e passei-a pelas madeixas pretas, esperando acalmá-la.
— Casei-me — eu disse simplesmente. — E espero um bebê dele.
Ficou tão quieta que, por um momento, achei que não tinha me escutado, e, nesse instante, rezei para que realmente não tivesse. Então, virou-se e sua expressão era de fúria.
— Você fez o quê? — falou de maneira ríspida.
— Casei-me — respondi.
— Sem a minha permissão?
— Sim, Ana. Lamento.
Ergueu a cabeça, seus olhos encararam os meus no espelho.
— Com quem?
— Sir William Stafford.
— William Stafford? O porteiro pessoal do rei?
— Sim — repliquei. — Ele tem uma pequena fazenda perto de Rochford.
— Ele não é nada — disse ela. Senti seu gênio crescer em sua voz.
— O rei armou-o cavaleiro — eu disse. — Ele é Sir William.
— Sir William Nada! — repetiu. — Está grávida?
Sabia que era isso o que ela mais odiaria.
— Sim — repliquei com humildade.
Ficou em pé de um pulo e abriu meu manto de modo que pudesse ver o quanto meu corpete estava afrouxado.
— Sua puta! — xingou-me. Jogou a mão para trás, paralisei-me, pronta para receber o tapa, e quando aconteceu, meu pescoço foi jogado para trás com a força. Caí na cama e ela em cima de mim, como um lutador.
— Há quanto tempo? Quando este seu próximo bastardo vai nascer?
— Em março — repliquei. — E não é um bastardo.
— Acha que pode fazer pouco de mim vindo à minha corte com uma barriga como a de uma égua gorda reprodutora? Qual é a sua intenção? Pretende dizer ao mundo que você é a garota Bolena fértil e eu sou a estéril?
— Ana...
Nada a deteria.
— Mostrar ao mundo que está de barriga de novo! A sua presença aqui já é um insulto para mim! Um insulto à nossa família.
— Casei-me com ele — eu disse e ouvi minha voz tremer um pouco diante de sua ira. — Casei-me por amor, Ana. Por favor, por favor não fique assim. Eu o amo. Posso ir embora da corte, mas por favor, deixe-me ver...
Nem mesmo me deixou terminar.
— Sim, partirá da corte! — gritou. — Por mim, pode ir para o inferno. Vai partir da corte e nunca mais voltará.
— Meus filhos — terminei sem fôlego.
— Pode dizer adeus a eles. Não vou permitir que o meu sobrinho seja criado por uma mulher que não tem orgulho de sua família e não conhece o mundo. Uma tola que é levada pela vida por sua lascívia. Por que William Stafford? Por que não um garoto da estrebaria? Por que não o moleiro de Hever? Se tudo o que quer é uma boa trepada por que parar em um único homem do rei? Um soldado serviria.
— Ana, estou avisando — a raiva foi crescendo em minha voz, apesar de minha bochecha ainda latejar com o calor de seu tapa. — Não vou tolerar isso. Casei-me com um homem bom por amor, não fiz nada diferente da princesa Maria Tudor ao se casar com o duque de Suffolk. Casei-me uma vez para obedecer à minha família, fiz o que mandaram quando o rei se interessou por mim, e agora quero agradar a mim mesma. Ana... só você pode me defender de nosso tio e de nosso pai.
— George sabe? — perguntou.
— Não. Já disse que não. Só procurei você. Só você pode me ajudar.
— Nunca — jurou ela. — Casou-se com um homem pobre por amor, pode comer amor, pode beber amor. Pode viver disso. Vá para a sua pequena fazenda em Rochford e apodreça lá, e quando nosso pai, George ou eu formos a Rochford, se assegure de não ser vista. Está banida da corte, Maria. Arruinou a si mesma e vou encerrar o assunto. Você desapareceu. Não tenho irmã.
— Ana! — gritei, completamente pasma.
Mostrou-me uma cara furiosa.
— Devo chamar os guardas e mandar que a ponham para fora do palácio? — perguntou. — Juro que farei isso.
Caí de joelhos.
— Meu filho — foi tudo o que consegui dizer.
— Meu filho — disse ela, vingativamente. — Direi a ele que sua mãe está morta e que terá de me chamar de mãe. Você perdeu tudo por amor, Maria. Espero que isso lhe traga alegrias.
Não havia nada que eu pudesse dizer. Levantei-me, desajeitadamente, minha barriga pesada dificultando o movimento. Observou-me como se quisesse me derrubar, e não me ajudar a levantar. Dirigi-me à porta e hesitei com a mão na maçaneta, para o caso de ela mudar de ideia.
— Meu filho...
— Vá — disse ela. — Você morreu para mim. E não se aproxime do rei ou eu lhe direi a prostituta que você foi.
Saí e fui para o meu quarto.
Madge Shelton estava trocando de roupa diante do espelho. Virou-se quando entrei, um sorriso vivo em sua face. Percebeu minha expressão soturna e seus olhos se escancararam. Esse único olhar disse tudo sobre a diferença de nossa idade, de nossa posição, de nosso lugar na família Howard. Ela era uma jovem com tudo a vender e eu era uma mulher casada duas vezes, com três filhos aos 27 anos, renegada por minha família e nada nem ninguém a recorrer a não ser um homem em uma pequena fazenda. Era uma mulher que tinha tido a sua chance e não soubera usá-la.
— Está doente? — perguntou.
— Arruinada — repliquei simplesmente.
— Oh — disse ela com a cara apatetada que a juventude fútil assume. — Lamento.
Consegui dar uma risada sinistra.
— Está tudo bem — eu disse melancolicamente. — Eu mesma provoquei isso.
Joguei meu manto na cama e ela viu meu corpete alargado. Arfou horrorizada.
— Sim — eu disse. — Espero um bebê e sou casada, se quer saber.
— A rainha? — perguntou em um sussurro, sabendo, como todos sabíamos, que a única coisa que essa rainha detestava era mulheres férteis.
— Nada satisfeita — eu disse.
— Seu marido?
— William Stafford.
Um brilho em seus olhos escuros me mostrou que ela tinha notado mais do que tinha dito.
— Estou tão feliz por você — disse ela. — É um homem bonito e bom. Achei que você gostava dele. Então, todas essas noites...?
— Sim — respondi sem rodeios.
— E agora?
— Teremos de fazer o nosso caminho no mundo — repliquei. — Iremos para Rochford. Ele tem uma pequena fazenda lá. Podemos viver bem.
— Em uma pequena fazenda? — perguntou Madge, incrédula.
— Sim — respondi com uma energia repentina. — Por que não? Existem outros lugares onde se morar que não palácios e castelos. Existem outras músicas para serem dançadas que não a música da corte. Nem sempre temos de servir a um rei ou a uma rainha. Passei toda a minha vida na corte, perdi minha meninice e juventude na corte. Lamento ser pobre, mas seria odioso perder a vida aqui.
— E seus filhos? — perguntou ela.
A pergunta me tirou o ar, como um murro na minha barriga. Meus joelhos se curvaram e caí no chão, me segurando com força, como se o meu coração fosse rebentar.
— Oh, meus filhos — eu disse em um sussurro.
— A rainha ficou com eles? — perguntou ela.
— Sim — respondi. — Sim. Ela ficou com meu filho — poderia ter dito mais, palavras amargas. Poderia ter dito que ela ficava com meu filho porque não era capaz de ter o seu próprio. Que ela tinha tirado de mim tudo o que ela podia, que ela sempre tirara tudo de mim. Que éramos irmãs e rivais mortais e nada nunca nos impediria de uma ficar de olho no prato da outra temendo que a outra recebesse a porção maior. Ana queria me punir por me recusar a dançar na sua sombra. E ela sabia que tinha escolhido o único confisco no mundo que eu não poderia pagar.
— Pelo menos, escaparei dela — eu disse. — E da ambição dessa família.
Madge olhou para mim com os olhos esbugalhados, tão mundana quanto uma corça nova.
— Mas escapará para o quê?
Ana foi rápida em anunciar a minha partida. Meu pai e minha mãe nem mesmo me veriam antes de eu deixar a corte. Somente George desceu ao pátio das cavalariças para ver os baús serem carregados na carroça e William me ajudar a montar e, depois, montar seu cavalo.
— Escreva — disse George. Estava com uma carranca de preocupação. — Está bem para viajar toda essa distância?
— Sim — repliquei.
— Cuidarei dela — garantiu-lhe William.
— Não fez um trabalho tão maravilhoso até agora — disse George, de maneira desagradável. — Ela está arruinada, foi privada de sua pensão e banida da corte.
Percebi as mãos de William se apertarem nas rédeas e seu cavalo andar de lado.
— Não fui eu — disse William sem alterar a voz. — Foi o rancor e a ambição da rainha e da família Bolena. Em qualquer outra família no mundo, Maria teria permissão para se casar com o cavalheiro que escolhesse.
— Parem — eu disse antes de George replicar.
George respirou fundo e baixou a cabeça.
— Ela não foi bem-tratada — concordou. Olhou para William, sentado ereto sobre o cavalo, e deu seu sorriso pesaroso, encantador, seu sorriso Bolena. — Nossa mente estava em outros objetivos que não a sua felicidade.
— Eu sei — disse William. — A minha não.
George pareceu tristonho.
— Gostaria que me dissesse o segredo do verdadeiro amor — disse ele. — Aqui estão vocês dois partindo para o fim do mundo e, ainda assim, parece que acabaram de receber um condado.
Estendi minha mão a William e ele a apertou com força.
— Simplesmente encontrei o homem que eu amo. Não haveria outro que me amasse mais nem que fosse mais honesto.
— Então, vão! — disse George. Tirou a boina quando a carroça pôs-se em movimento. — Sejam felizes juntos. Vou fazer tudo o que puder para conseguir seu lugar e sua pensão de volta.
— Apenas meus filhos — eu disse. — Isso é tudo o que quero.
— Vou falar com o rei assim que puder, e escreva. Talvez a Cromwell, e falarei com Ana. Não é para sempre. Vai voltar, não vai? Vai voltar?
Seu tom de voz foi estranho. Não como se estivesse me prometendo meu retorno ao centro do reino, mas como se temesse ficar sem mim. Não parecia um dos homens mais importantes da grande corte, mas um menino abandonado em um lugar perigoso.
— Cuide-se! — eu disse, tremendo de repente. — Afaste-se de más companhias e cuide de Ana!
Eu não tinha me enganado. A expressão em seu rosto era de medo.
— Vou tentar! — sua voz soou com uma segurança oca. — Vou tentar!
A carroça atravessou a arcada e William e eu prosseguimos a cavalgada lado a lado. Olhei para trás e George pareceu muito jovem e distante. Acenou para mim e gritou alguma coisa, mas o rangido das rodas sobre o calçamento de pedras e o ruído dos cascos dos cavalos não deixaram que eu escutasse.
Pegamos a estrada e William fez seu cavalo alongar o passo de modo que ultrapassássemos a carroça e ficássemos fora da poeira que levantava. Minha égua poderia ter trotado, mas a mantive a passo. Esfreguei o rosto com as costas da minha luva e William olhou de lado, para mim.
— Sem arrependimento? — perguntou.
— Apenas temo por ele — eu disse.
Ele concordou com a cabeça. Sabia demais sobre a vida de George na corte para me tranquilizar. O caso de George com Sir Francis, seu círculo de amigos indiscretos, a bebedeira, o jogo, a libertinagem aos poucos deixavam de ser segredo. Cada vez mais homens na corte assumiam seus prazeres de maneira cada vez mais desvairada, inclusive George.
— E por ela — eu disse, pensando na minha irmã que tinha me banido como uma mendiga e ficado, assim, com um único amigo.
William inclinou-se à frente, e pôs sua mão sobre a minha.
— Vamos — disse ele, e viramos a cabeça de nossos cavalos para o rio, e descemos ao encontro do barco que aguardava.
Desembarcamos em Leigh, de manhã bem cedo. Os cavalos estavam frios e irritados depois de uma longa viagem pelo rio e seguimos a pista na direção norte, de Rochford. William me conduziu pela pequena trilha que levava, através dos campos, à sua fazenda. A névoa da manhãzinha girava úmida e fria sobre os campos, e era a pior época para se ir à região rural. Seria um longo, gélido e alagado inverno na pequena casa, distante de tudo. A umidade de minhas saias só secaria dali a seis meses. William virou-se para trás e olhou para mim. Sorriu.
— Aprume o corpo, meu coração, e olhe em volta. O sol está saindo e ficaremos bem.
Consegui sorrir e endireitei o corpo, instigando minha égua a avançar. À minha frente, pude ver o telhado de colmo de sua casa e, depois, ao subirmos a colina, os belos 50 acres lá embaixo, com o rio rodeando até as terras baixas e o pátio da cavalariça, e o celeiro, tudo tão nítido e ordenado como me lembrava do lugar.
Descemos a alameda e William desmontou para abrir o portão. Um menino surgiu de repente e olhou desconfiado para nós dois.
— Não podem entrar — disse ele com determinação. — Pertence a Sir William Stafford. Homem importante na corte.
— Obrigado — disse William. — Sou Sir William Stafford e pode dizer à sua mãe que você é um bom guardião. Diga-lhe que voltei para casa e trouxe minha mulher, e que precisamos de pão, leite, bacon e queijo.
— É Sir William Stafford, de verdade? — insistiu o menino.
— Sim.
— Então ela, provavelmente, vai preparar uma galinha também — disse ele, e correu ao pequeno chalé a meia milha de distância na alameda.
Conduzi Jesmond pelo portão e parei no pátio. William ajudou-me a desmontar e amarrou os cavalos no poste para me introduzir na casa. A porta da cozinha estava aberta, e entramos juntos.
— Sente-se — disse William, colocando-me em uma cadeira ao lado da lareira. — Vou mandar acenderem agora mesmo.
— De jeito nenhum — eu disse. — Serei a mulher de um fazendeiro, não se esqueça. Vou acender o fogo e você cuida dos cavalos.
Hesitou.
— Sabe acender o fogo, meu amor?
— Saia! — falei com uma indignação fingida. — Fora da minha cozinha. Tenho de pôr as coisas em ordem.
Foi como brincar de casinha, como meus filhos fariam em uma casa feita de samambaia, e ao mesmo tempo, era uma casa de verdade, um desafio de verdade. Havia gravetos na grelha e pedra de fogo, de modo que não levei mais de quinze minutos de um trabalho paciente e minucioso para acender o fogo e as pequenas chamas lamberem a lenha. A chaminé estava fria, mas o vento soprava favoravelmente, portanto logo começou a subir. William chegou exatamente quando o garoto retornou do chalé com a comida envolvida em um pano de musselina. Espalhamos tudo sobre a mesa de madeira e fizemos um pequeno banquete. William abriu uma garrafa de vinho de sua adega sob a escada, e bebemos à saúde e ao futuro.
A família que tinha arado os campos para William durante a sua ausência lhe servira bem. As sebes estavam bem aparadas, os fossos estavam limpos, o feno havia sido cortado e armazenado em segurança no celeiro. Os animais mais velhos do gado e rebanho de carneiros seriam abatidos durante o outono, e sua carne seria salgada ou defumada. Tínhamos galinhas no quintal, pombos no galpão e um suprimento ilimitado de peixes do rio. Por alguns centavos poderíamos descer ao rio e comprar peixe com pescadores. Era uma fazenda próspera e um lugar agradável em que se viver.
A mãe do menino, Megan, vinha diariamente à casa para me ajudar e me ensinar coisas que eu precisava aprender. Ensinou-me a bater a manteiga e a fazer queijo. Ensinou-me a assar pão e a depenar galinha, pombo ou ave de caça. Eu me sentia contente e deliciada por aprender habilidades tão importantes. Estava completamente exausta.
Senti a pele de minhas mãos ressecarem, endurecerem e ficarem rachadas. No pequeno pedaço de espelho, minha face foi, aos poucos, tomando cor com o sol e o vento. Caía na cama, no fim do dia, e adormecia sem sonhar: o sono de uma mulher à beira da exaustão. Mas embora cansada, no fim do dia, sentia que conquistara alguma coisa, por menor que fosse. Gostava do trabalho, já que punha a comida em nossa mesa ou dinheiro em nosso jarro de poupança. Gostava da sensação de estar construindo um lugar com William, reivindicando a terra como nossa. Gostava de aprender as habilidades que uma mulher pobre aprendia desde a infância, e quando Megan me perguntou se eu não sentia falta das roupas boas, dos belos vestidos que usava na corte, lembrei-me do tédio de ter de dançar com homens de que eu não gostava, flertar com homens que eu não desejava, jogar cartas e perder uma pequena fortuna, e sempre tentar agradar todos à minha volta. Ali, havia somente eu e William, e vivíamos tão tranquilos e alegres como dois pássaros nas sebes — exatamente como ele prometera.
Minha única tristeza era a perda dos meus filhos. Escrevia para eles toda semana, e uma vez por mês, para George e Ana, desejando que estivessem bem. Escrevia para o secretário Thomas Cromwell pedindo-lhe para intervir com minha irmã e perguntar se podíamos retornar à corte. Mas nunca pedi desculpas pela escolha que tinha feito. Não adoçaria meu pedido com desculpas. As palavras se paralisavam em minha pena, não podia dizer que me arrependia de amar William, pois o amava mais a cada dia. Em um mundo em que as mulheres eram compradas e vendidas como cavalos, eu tinha encontrado um homem que eu amava. E me casado por amor. Nunca sugeriria que isso tivesse sido um erro.
Inverno de 1535
No Natal, recebi uma carta do meu irmão, George.
Querida irmã,
Espero que esteja bem em sua casa de fazenda, tanto quanto estou na corte. Talvez melhor.
As coisas aqui não vão tão bem para a nossa irmã. O rei tem cavalgado e dançado com uma garota Seymour. Lembra-se de Jane? Aquela que sempre tinha os olhos baixos, extremamente doces, e quando os erguia eram sempre surpresos? O rei a procura bem na cara de nossa irmã e ela não está nada satisfeita. Tem estourado com ele, mas não o comove mais às lágrimas como fazia antes. Ele suporta a insatisfação dela, e simplesmente se afasta. Pode imaginar o que isso provoca nela.
Nosso tio, sendo alertado do extravio do rei, tem colocado Madge Shelton no caminho, e Sua Majestade está dividido entre as duas. Como as duas são damas de honra, os aposentos da rainha estão sempre alvoroçados e o rei acha mais seguro sair para caçar e deixar as mulheres chorarem e gritarem e se engalfinharem, sem se perturbar.
Ana está morta de medo e não sei no que dará tudo isso. Ela nunca pensou que, ao derrubar uma rainha, todas as que se seguiriam estariam inseguras. Não tem outro amigo na corte a não ser eu. Nosso pai, mãe e tio são todos a favor de fazer Madge avançar, para tirar os olhos do rei da garota Seymour. Isso deixa um gosto amargo na boca de Ana, que acusa a família de procurar suplantá-la com uma garota Howard. Sente sua falta, mas não admite.
Falo de você para ela, mas nada a faz aceitar seu casamento. Se você tivesse se casado com um príncipe e fosse infeliz, teria permanecido a sua amiga mais querida. O que a deixa infeliz é saber que você encontrou o amor, enquanto ela está na corte mais importante da Europa, assustada e infeliz.
Estou cada vez mais rico e minha mulher é uma maldição e meu amigo é meu deleite e tormento. Esta corte corromperia um santo, e nem eu nem Ana somos santos. Ela está desesperadamente só e amedrontada e eu anseio pelo que não posso ter e sou obrigado a manter meu desejo oculto. Estou entediado e irritado. Esta temporada do Natal parece ter pouco a oferecer aos Bolena, a menos que Ana consiga engravidar de novo. Escreva contando as suas novidades. Espero que esteja tão feliz quanto imagino que esteja.
Seu irmão,
George
William e eu celebramos a ceia do Natal com um grande pernil de cervo. Tive o cuidado de não perguntar onde o animal tinha sido morto. A pastagem de minha família em Rochford Hall era bem fornida e mal guardada, e não tive muitas dúvidas de ter acabado de comprar o meu próprio cervo. Mas como nem meu pai nem minha mãe me enviavam os votos de um Feliz Natal, achei que podia me conceder um presente de sua fortuna, e comprei o cervo a um preço irrisório e dois faisões. O trabalho na fazenda não se interrompeu por doze dias, mas encontramos tempo para ir à missa, ver os mascarados em Rochford, beber um copo de cerveja temperada com nossos vizinhos, e caminhar à margem do rio enquanto as gaivotas gritavam lá em cima e um vento frio soprava do estuário.
Nos dias difíceis de fevereiro preparei-me para o parto. Dessa vez, eu não seria uma grande dama na corte, não teria de ficar de cama por um mês. Podia fazer como quisesse. William estava mais apreensivo do que eu, insistiu para que chamássemos uma parteira para ficar na casa a partir do fim do mês, para impedir o risco de o bebê nascer enquanto estivéssemos isolados pela neve. Ri da sua ansiedade, mas fiz como ele queria e uma velha, que mais parecia uma bruxa do que uma parteira, veio e ficou conosco a partir dos primeiros dias de março, e cuidou de mim.
Fiquei feliz por William ter sido tão cauteloso quando, numa manhã, despertei e dei com o quarto tomado por uma luz branca brilhante. Tinha nevado à noite, e continuava a nevar, flocos espessos brancos caíam do céu cinza sem fazer ruído, e giravam ao redor do pátio. O mundo foi transformado em um lugar de completo silêncio e magia. As galinhas se escondiam no galinheiro, somente as pegadas de três dedos no quintal mostravam que tinham se aventurado a sair em busca de alimento. Os carneiros se amontoavam no portão, marrons e sujos contra o campo mais branco. As vacas se aglomeravam no estábulo e seu campo era uma relva branqueada. Sentei-me à janela, sentindo minha barriga mexer com o movimento do bebê, e observei a nevasca aumentar e arquear ao longo da sebe. Parecia que os flocos não pousavam no chão, mas que ficavam girando no ar, ao redor da casa. A cada hora, os cumes e caleiras da neve amontoada pelo vento tornavam-se mais altos e mais exoticamente esculpidos. Quando olhei para baixo, os flocos eram brancos como as penas dos patos, mas quando esticava o pescoço e olhava para cima, pareciam pedaços sujos de renda cinza contra um céu opaco.
— Cheguei — disse William. Tinha envolvido suas pernas e botas com sacos de aniagem e estava no pequeno pórtico do lado de fora, desatando-os e batendo a neve. Desci devagar a escada e sorri para ele. Deteve-se ao me ver.
— Você está bem?
— Meio aérea — eu disse. — Passei a manhã observando a neve.
Trocou um olhar rápido e significativo com a parteira que preparava o mingau no fogo, então atravessou a cozinha descalço e me levou para uma cadeira ao lado do fogo.
— Suas dores começaram? — perguntou.
Sorri.
— Ainda não. Mas acho que será hoje.
A parteira pôs o mingau em uma tigela grande e a passou com uma colher para mim.
— Coma — disse ela, de modo encorajador. — Todos precisaremos de força.
No fim, o parto foi fácil. Minha menina chegou depois de somente quatro horas de trabalho de parto. A parteira envolveu-a com um lençol branco aquecido e a colocou em meu seio. William, que ficou do meu lado durante as quatro horas, pôs a mão em sua cabecinha suja de sangue e a abençoou, sua boca tremendo de emoção. Então, se deitou na cama do meu lado. A mulher jogou uma coberta sobre nós três e deixou que nos aquecêssemos, abraçados. Adormecemos rapidamente.
Só despertamos quando o bebê se agitou e chorou, duas horas depois. Coloquei-a em meu seio e experimentei a sensação familiar e maravilhosa de uma filha amada se alimentando. William pôs um xale ao redor de meus ombros e desceu para buscar um copo de ale adoçado com especiarias. Continuava a nevar. Da minha cama, eu vi os flocos brancos contra o céu que escurecia. Aconcheguei-me no calor e me recostei nos travesseiros de penas de ganso, e soube que realmente era uma mulher abençoada.
Primavera de 1535
Querida irmã,
A rainha, nossa irmã, manda que lhe comunique que está esperando bebê mais uma vez e que você deve voltar à corte para ajudá-la, mas que o seu marido deve permanecer em Rochford e seu bebê com ele. Não quer ver nenhum dos dois. Sua pensão será restituída e terá permissão de ver seus filhos em Hever no verão.
Esta é a mensagem que recebi ordens de lhe transmitir, e também eu lhe digo que precisamos de você em Hampton Court. Ana espera seu confinamento para o outono deste ano. Viajaremos no verão, mas não para muito longe. Está ansiosa para tê-la perto porque está em pânico de perder a criança, como pode imaginar, e ela quer uma amiga na corte, além de mim. Na verdade, neste momento, é a mulher mais solitária do mundo. O rei está de amores com Madge, que se exibe com um vestido novo a cada dia. Houve uma reunião de família convocada por nosso tio, a que não foram chamados nem meu pai nem minha mãe. Os Shelton foram. Pode imaginar o que Ana e eu deduzimos disso. Ana ainda é a rainha, mas não mais a favorita nem do rei nem de sua própria família.
Vou avisá-la de mais uma coisa antes de chegar. A cidade está inquieta. O voto de sucessão levou cinco homens bons à Torre de Londres e à morte e pode levar mais outros. Henrique descobriu que seu poder não tem limites e agora não há mais nem Wolsey nem a rainha Catarina nem Thomas More para contê-lo. A corte em si tornou-se mais desregrada do que a que você conheceu. Tenho estado na vanguarda dela, e me enoja. É como uma carroça descontrolada e não consigo ver como saltar fora dela. Não é a um lugar feliz que estou lhe dizendo para vir. Ou melhor — a que estou implorando que venha.
Como incentivo, prometo-lhe um verão com seus filhos, se Ana estiver bem o bastante para dispensá-la.
George
Levei a carta com o pesado selo Bolena ao meu marido, no pátio, ordenhando uma vaca com a sua cabeça pressionada contra seu flanco quente, o leite esguichando com um chiado no balde.
— Boas notícias? — perguntou, lendo o brilho em minha cara.
— Tenho permissão de voltar à corte. Ana espera bebê de novo e me quer lá.
— E seus filhos?
— Poderei vê-los no verão, se ela me dispensar.
— Graças a Deus — replicou simplesmente, e virou a cabeça para a barriga da vaca e fechou os olhos por um momento, e me dei conta de que ele tinha sofrido por mim na perda de meus filhos.
— Perdão para mim? — perguntou depois de um tempo.
Sacudi a cabeça.
— Você está proibido. Mas acho que poderia simplesmente ir comigo.
— Não gostaria de deixar a fazenda de novo por muito tempo.
Dei um risinho.
— Tornou-se um campônio, meu amor?
— Ehh — disse ele. Levantou-se do banco e deu um tapinha na anca da vaca. Segurei o portão aberto para ela passar para o campo, onde a relva crescia viçosa. — Irei à corte com você, queiram eles ou não. E quando o verão chegar, voltaremos para cá.
— Depois de Hever — determinei.
Sorriu e sua mão quente fechou-se na minha, que estava sobre o portão.
— Depois de Hever, é claro — disse ele. — Para quando é o bebê da rainha?
— Para o outono. Mas ninguém sabe.
— Queira Deus que a gravidez vingue — hesitou por um momento e, então, mergulhou a concha grande no leite morno. — Prove — ordenou.
Obedeci e bebi um pouco do leite espumoso e quente.
— Bom?
— Sim.
— Quer que o ponha na leiteria para ser batido?
— Sim — respondi. — Achei que eu mesma faria isso.
— Não quero que se canse demais.
Sorri com a sua preocupação.
— Posso fazer isso.
— Levarei para você — disse ele afetuosamente. E foi na frente para a leiteria, onde o nosso bebê, chamado Ana para agradar à sua tia, bem envolvido em seu cueiro, dormia sobre a bancada.
A barcaça real foi enviada para me transportar de volta a Hampton Court. William, a ama de leite e eu embarcamos em Leigh, pomposos em nossa roupa de corte. Nossos cavalos seguiriam depois. A natureza imponente da nossa despedida foi, de certa maneira, estragada por meu marido, que não parou de gritar as instruções de última hora ao marido de Megan que cuidaria da fazenda enquanto estivéssemos fora.
— Tenho certeza de que ele não se esqueceria da tosquia dos carneiros — observei com brandura quando, finalmente, sentou-se e parou de se debruçar na amurada e gritar como um marinheiro. — Quando o pelame tivesse crescido demais, provavelmente, ele teria notado.
Sorriu largo.
— Desculpe. Eu a desonrei?
— Bem, já que é um membro da família real, acho realmente que poderia se comportar de uma maneira que não fosse a de um fazendeiro embriagado em dia de mercado.
Ele não estava arrependido.
— Peço perdão, Lady Stafford — disse ele. — Juro que ao chegarmos a Hampton Court, serei a discrição em pessoa. Por exemplo, onde dormirei? Um telheiro em seu estábulo seria suficientemente humilde?
— Achei que poderíamos alugar uma pequena casa na cidade. E eu passaria lá a maior parte do tempo.
— E é melhor que venha dormir toda noite na casa — disse ele com veemência. — Ou irei ao palácio buscá-la. Agora é a minha mulher, minha esposa legítima. Espero que aja como tal.
Sorri e virei o rosto, para que não visse o quanto me divertia. Não era preciso lembrar a meu determinado e correto marido que meu casamento anterior tinha sido um casamento na corte e que eu quase nunca dormia na cama de meu marido, o que não surpreendia ninguém nem um pouquinho.
— Não faz diferença nenhuma — disse ele, com seu conhecimento intuitivo de meus pensamentos. — Não importa o mínimo como foi o seu primeiro casamento. Este é o meu casamento, e quero a minha mulher na minha cama.
Ri alto e me aninhei em seus braços.
— É onde eu quero estar — confessei. — Por que ia querer estar em outro lugar?
A barcaça real subia o rio suavemente, os remadores mantendo o ritmo marcado pelo tambor, a correnteza favorável nos transportava tão veloz quanto um cavalo a meio galope. Avistamos os familiares marcos divisórios, a grande torre branca quadrada e a boca aberta da comporta da Torre de Londres. A ponte era uma sombra escura sobre o rio, como uma entrada abrindo-se para a beleza dos palácios à beira do rio e seus jardins, e toda a agitação do canal central de uma grande cidade. Os pequenos barcos, ferries, e barcos de pesca iam e vinham no rio à nossa frente. Em Lambeth, o grande e pesado ferry que transportava cavalos hesitou quando o ultrapassamos velozmente. William apontou para uma grande garça cinza aninhada desajeitadamente em algumas árvores à beira da água e um cormorão mergulhando, uma sombra escura ávida sob a água.
Muitos rostos se viraram na direção da barcaça real, mas raros foram os sorrisos. Lembrei-me de mim na barcaça real com a rainha Catarina e de como os homens tiravam o chapéu e as mulheres faziam uma mesura, e as crianças beijavam as mãos e acenavam quando passávamos. Havia a confiança na sabedoria e força do rei, e de que a rainha era bela e boa, e que nada poderia dar errado. Mas Ana e a ambição Bolena haviam aberto uma grande fenda nessa unidade e, agora, todos podiam ver o vazio. Agora viam que o rei não era melhor do que um insignificante e mesquinho prefeito de uma cidadezinha lucrativa, que não queria outra coisa a não ser emplumar seu próprio ninho, e que estava casado com uma mulher que conhecia o desejo, a ambição e a ganância, e ansiava por satisfação.
Se Ana e Henrique tinham esperado que o povo os perdoasse, então se decepcionaram. O povo nunca perdoaria. A rainha Catarina podia ser praticamente uma prisioneira nos charcos frios de Huntingdonshire, mas não era esquecida. Na verdade, a cada dia sem o batizado de um novo herdeiro para a Inglaterra, seu banimento parecia mais e mais sem sentido.
Recostei-me no ombro reconfortante de William e dormitei. Um pouco depois, ouvi nosso bebê chorar, despertei e vi a ama de leite chegá-lo mais para si e amamentá-lo. Meus seios, firmemente atados, doíam de desejo, e William apertou seus braços em volta da minha cintura e beijou minha cabeça.
— Ela está sendo bem-cuidada — disse ele. — E ninguém nunca a tirará de você.
Balancei a cabeça concordando. Podia ordenar que fosse trazida a mim na hora que quisesse, de dia ou de noite. Era minha filha de uma maneira como os outros dois nunca tinham sido. Não havia por que lhe dizer que quando vi seus olhos azuis decididos, sofri ainda mais pela perda dos outros dois. Ela não podia substituí-los, simplesmente não me deixava esquecer que era mãe de três filhos, e que embora eu tivesse aquela coisinha quente em meus braços, havia dois filhos meus em outra parte no mundo, e eu nem mesmo sabia onde o meu menino deitava sua cabeça à noite.
A tarde já caíra quando vimos o grande píer de Hampton Court e os grandes portões de ferro atrás. O tambor rufou mais algumas vezes e vimos os barqueiros aprontando-se para o nosso desembarque. Houve uma breve e apressada fanfarra para exaltar o estandarte do rei, e então a barcaça atracou, desembarcamos, e William e eu estávamos de volta à corte.
Discretamente, William, nosso bebê e a ama de leite seguiram o caminho para a aldeia e me deixaram entrar no palácio sozinha. Ele apertou minha mão brevemente antes de se virar.
— Tenha coragem — disse ele com um sorriso. — Não se esqueça de que agora é ela que precisa de você. Não venda seus serviços barato demais.
Assenti com a cabeça, fechei o manto em volta do meu corpo e virei-me para enfrentar o palácio suntuoso.
Fui introduzida como se fosse uma estranha, conduzida escada acima até os aposentos da rainha. Quando os guardas abriram a porta e entrei, houve um momento de silêncio mortal e, então, uma explosão de entusiasmo feminino ao redor de mim. Todas as mulheres presentes tocaram meus ombros, meu pescoço, as mangas de meu vestido, o capelo em minha cabeça, e comentaram como eu estava bem, como a maternidade me fizera bem, como o ar do campo me convinha e como era bom eu estar de volta à corte. Cada uma se mostrou minha melhor amiga, a prima mais querida, todas querendo dividir o quarto comigo. Foi tão agradável para elas me verem de volta que só pude ficar perplexa diante do fato de terem conseguido ficar sem mim por tanto tempo, nunca, nenhuma delas, me escrevendo, nenhuma delas nunca pedindo à minha irmã clemência para mim.
E eu estava mesmo casada com William Stafford? E era verdade que ele tinha uma fazenda? Só uma? Mas era grande? Não? Que estranho! E tivemos um bebê? Menino ou menina? E quem eram os padrinhos? Como se chamava? E onde estavam William e o bebê? Na corte? Não? Que estranho.
Defendi-me das perguntas o melhor que pude e procurei George. Não estava. O rei tinha saído a cavalo tarde, com alguns poucos favoritos que montavam bem e bebiam bem, e ainda não tinha voltado. As mulheres tinham se vestido para o jantar e esperavam o retorno dos homens. Ana estava em sua câmara privada, sozinha.
Reuni coragem e fui à sua porta. Bati, girei a maçaneta e entrei.
O quarto estava escuro, a única iluminação vindo das janelas, ainda com as cortinas abertas, a luz cinzenta do crepúsculo de maio, e a luz tremeluzente do fogo baixo. Estava ajoelhada no genuflexório e tive de reprimir uma exclamação de medo supersticioso. Vi a rainha Catarina ajoelhada, rezando com todo o seu fervor para conceber um menino para seu marido, para que ele voltasse para ela e se afastasse das garotas Bolena. Mas então, a rainha fantasmagórica virou a cabeça e era Ana, minha irmã, pálida e tensa, seus olhos sedutores tomados pelo cansaço. Imediatamente, meu coração se enterneceu, atravessei o quarto e a abracei, ainda ajoelhada, e disse:
— Oh, Ana.
Ela se pôs de pé e me abraçou, deixando sua cabeça pesada cair sobre meu ombro. Não disse que sentiu minha falta, que estava desgraçadamente só em uma corte que desviava a sua atenção dela. Mas não precisou. A curva de seus ombros foram o bastante para me dizer que, nos tempos atuais, a posição de rainha não era uma grande alegria para Ana Bolena.
Delicadamente, sentei-a em uma cadeira e me sentei, eu mesma, sem pedir permissão, diante dela.
— Você está bem? — perguntei, indo direto ao assunto, o único.
— Sim — respondeu. Seu lábio inferior tremia. Sua face estava muito pálida com sulcos nos dois lados da boca. Pela primeira vez na vida, olhei seu rosto e vi que se parecia com nossa mãe, vi como ficaria quando envelhecesse.
— Dores?
— Nenhuma.
— Está muito pálida.
— Estou cansada — admitiu. — Está sugando a minha força.
— Quantos meses?
— Quatro — respondeu, com a lembrança instantânea de uma mulher que não pensava em outra coisa.
— Vai se sentir melhor logo — eu disse. — Os primeiros três meses são sempre os piores — quase acrescentei “e os três últimos”, mas não era brincadeira para Ana, que somente uma vez tinha sustentado um bebê até o fim.
— O rei está em casa? — perguntou ela.
— Disseram-me que está caçando, e que George está com ele.
Ela balançou a cabeça.
— Madge está com as outras damas?
— Sim — repliquei.
— E aquela coisa Seymour de cara branca?
— Também — eu disse, sem dificuldade de reconhecer Jane Seymour depois dessa descrição.
Ana balançou a cabeça.
— Melhor assim — disse ela. — Contanto que nenhuma delas esteja com ele, fico satisfeita.
— Deveria se contentar de qualquer jeito — eu disse amavelmente. — Não vai querer uma barriga cheia de bílis com um bebê aí dentro.
Lançou-me um olhar rápido e sua risada foi dura.
— Oh, sim, ficar muito contente. Seu marido veio com você?
— Não para a corte — eu disse. — Já que você disse que não viesse.
— Continua inebriada? Ou se cansou dele e de seu punhado de campos?
— Continuo a amá-lo — não estava a fim de morder a isca de Ana. Pensar em William me enchia de paz e não queria brigar com ninguém, muito menos com uma mulher tão pálida e esgotada quanto essa rainha.
Lançou-me um sorriso amargo.
— George diz que você é o único Bolena com juízo — disse ela. — Que, de nós três, você fez a melhor escolha. Nunca será rica, mas tem um marido que a ama e um bebê saudável. A mulher de George o olha como se fosse matá-lo e comê-lo, de tanto seu desejo se mistura com ódio, e Henrique entra e sai do meu quarto com a rapidez de uma borboleta na primavera. E essas duas garotas esvoaçam à sua volta com suas redes preparadas.
Ri ao pensar em Henrique cada vez mais gordo como uma borboleta na primavera.
— Tem de ser uma rede grande — foi tudo o que eu disse.
Ana acabou rindo também: a sua risada alegre, familiar.
— Meu Deus, eu daria tudo para me livrar delas.
— Agora, estou aqui — eu disse. — Posso mantê-las longe.
— Sim — disse ela. — E se as coisas derem errado para mim, poderá me ajudar, não?
— É claro — eu disse. — O que quer que aconteça, sempre terá George e a mim.
Houve uma certa comoção na sala: um urro incontestável de risada, o grande urro Tudor. Ana ouviu a alegria de seu marido e não sorriu.
— Acho que, agora, ele vai querer seu jantar.
Detive-a quando se dirigia à porta.
— Ele sabe que está grávida? — perguntei rapidamente.
Ela sacudiu a cabeça.
— Ninguém sabe, exceto George e você. Não me atrevi a contar.
Abriu a porta e vimos Henrique fechando um medalhão ao redor do pescoço corado de Madge Shelton. Ao ver sua esposa, se retraiu, mas terminou o que fazia.
— Um pequeno regalo — falou para Ana. — Uma pequena aposta ganha por esta garota inteligente. Boa noite, minha esposa.
— Marido — disse Ana, com os dentes trincados. — Boa noite.
Olhou para além dela e me viu.
— Ora, Maria! — exclamou, deliciado. — A bela Lady Carey está de volta!
Fiz uma reverência e olhei para ele.
— Lady Stafford, por favor, Majestade. Casei-me de novo.
Seu movimento rápido com a cabeça indicou que se lembrava — e que se lembrava dos ataques aos berros que sofrera quando ela me baniu da corte. Quando vi seu sorriso persistir e seus olhos se enternecerem sobre minha face erguida, pensei em como minha irmã era uma bruxa venenosa. Ela tinha procurado e obtido o meu banimento sozinha, não tinha sido a vontade do rei. Ele teria me perdoado imediatamente. Se Ana não precisasse de mim para esconder sua gravidez, teria me deixado para sempre na pequena fazenda.
— E têm um filho? — perguntou ele. Não conseguiu deixar de relancear os olhos para Ana, olhando da garota Bolena fértil para a estéril.
— Uma filha, Majestade — repliquei, dando graças a Deus não ter sido um filho.
— William é um homem de sorte.
Sorri.
— Certamente é o que lhe digo.
Henrique riu e estendeu a mão para me aproximar dele.
— Ele não está aqui? — perguntou, olhando em volta.
— Ele não foi convidado... — comecei.
Ele entendeu imediatamente. Virou-se para a sua mulher.
— Por que Sir William não foi chamado de volta à corte com a sua esposa? — perguntou.
Ana não hesitou.
— É claro que foi chamado. Convidei os dois a voltarem para nós assim que minha irmã cumprisse o resguardo.
Não me restou outra coisa a fazer a não ser admirar a sua cara inocente ao mentir. Nada a fazer a não ser aceitar a mentira e representá-la com toda a alma.
— Ele virá me encontrar amanhã, se assim desejar, Majestade. E se me permitir, também terei minha filha comigo.
— A corte não é lugar para um bebê — disse Ana simplesmente.
Imediatamente, Henrique virou-se contra ela.
— Lamentável. E mais lamentável ainda ouvir isso de minha esposa. Esta corte é lugar para um bebê, como achei que a senhora, mais do que todo mundo, saberia.
— Estava pensando na saúde do bebê, milorde — disse Ana friamente. — Estava pensando que ela deveria ser criada no campo.
— Sua mãe pode julgar isso — disse Henrique nobremente.
Sorri, docemente, e então aproveitei minha chance.
— Na verdade, se me permitir, gostaria de levar meu bebê a Hever, no verão. Para que conheça meus outros filhos.
— Meu filho Henrique — lembrou-me Ana.
Lancei um olhar divertido para o rei.
— Por que não? — replicou ele. — O que quiser, Lady Stafford.
Ofereceu-me seu braço, fiz uma reverência e o aceitei. Ergui os olhos para ele como se continuasse a ser o príncipe mais belo da Europa, e não o homem calvo e gordo em que se transformara. A linha de seu queixo se espessara. O cabelo no alto de sua cabeça tornara-se fino e ralo. A boca de botão, tão atraente em um rosto jovem, era agora um biquinho amante da boa-vida, e seus olhos tinham sido obstruídos pela gordura em suas pálpebras e as bochechas redondas. Parecia um homem com os caprichos saciados e, ainda assim, infeliz. Um homem parecido com uma criança rabugenta.
Sorri radiante para ele, inclinei a cabeça em sua direção, ri de suas observações, e o fiz rir com histórias de eu fazendo manteiga, queijo, até chegarmos à mesa no alto e ele ir para seu trono como rei da Inglaterra, e eu ao meu lugar com as damas de honra.
O jantar foi demorado, a corte tinha se tornado glutona. Havia vinte pratos de carne diferentes: carne de caça e de animal abatido, aves e peixes. Havia quinze tipos de pudins. Observei Henrique experimentar um pouco de cada coisa, e não parar de pedir mais. Ana estava sentada ao seu lado com a face feito gelo, beliscando a comida, sem parar de olhar para um e outro lado, como se quisesse ver de onde o perigo a aguardava.
Quando os pratos finalmente foram levados, houve uma mascarada e, depois, a corte começou a dançar. Não tirei os olhos da porta lateral à esquerda da lareira, mesmo quando em um círculo de dançarinos, mesmo quando estava flertando com meus velhos amigos da corte. Depois da meia-noite, minha vigilância foi recompensada: a porta se abriu e meu marido, William, entrou e olhou em volta me procurando.
As velas estavam derretendo e havia tanta gente dançando e se movimentando no salão, que ele não foi visto. Pedi licença e fui até ele, que me levou imediatamente para um recanto atrás da cortina.
— Meu amor — disse ele, e me abraçou. — Pareceu uma vida inteira.
— Para mim também. A neném está bem? Tranquila?
— Deixei-a e a ama de leite dormindo profundamente. E consegui uma boa pousada para nós, assim que puder sair.
— Eu fiz mais que isso — eu disse, com deleite. — O rei ficou feliz em me ver e perguntou por você. Você virá para a corte amanhã. Podemos ficar aqui juntos. Ele disse que podemos levar Ana a Hever no verão.
— Foi Ana que pediu por você?
Sacudi a cabeça.
— É a Ana que devo agradecer o meu exílio — repliquei. — Ela não deixaria nem mesmo eu ver meus filhos se eu não tivesse pedido ao rei.
Deu um assobio baixinho.
— Você deve ter-lhe agradecido por isso.
— Não faz sentido queixar-me de sua natureza.
— E como ela está?
— Amarga — sussurrei bem baixinho. — Abatida. E triste.
Verão de 1535
Nessa noite, George e eu ficamos na sala de Ana enquanto ela se preparava para deitar. O rei tinha dito que se deitaria com ela, o que significava que teria de se lavar, e pediu que eu escovasse seu cabelo.
— Vai fazer com que ele tenha cuidado, não vai? — perguntei com ansiedade. — É pecado ele se deitar com você.
George deu uma risada, estendido na cama dela, suas botas sobre suas belas cobertas.
Ela virou a cabeça por baixo da escova.
— Não corro muito risco de ser cortejada rudemente.
— O que quer dizer?
— Há noites em que ele não consegue. Há noites em que ele não fica duro de jeito nenhum. É nojento. Tenho de ficar debaixo dele enquanto arqueja, sua e resmunga. Então, fica com raiva, e joga a raiva em mim! Como se eu tivesse alguma coisa a ver com isso.
— Será a bebida? — perguntei.
Ela encolheu os ombros.
— Conhece o rei. Está sempre meio bêbado à noite.
— Se lhe disser que espera bebê... — eu disse.
— Terei de dizer em junho, não terei? — observou ela. — Assim que fizer os primeiros movimentos, eu contarei. Cancelará a viagem de verão e todos ficaremos em Hampton Court. George terá de cavalgar e caçar com ele e manter a Jane cara de lua longe.
— O Arcanjo Gabriel não pode afastar todas as mulheres dele — disse George, com indiferença. — Você estabeleceu um padrão, Ana, e vai viver para se arrepender. Todas o mantêm a uma certa distância e lhe prometem o mundo. Era mais fácil quando eram todas como a bonita Maria: faziam uma pequena traquinagem e ganhavam umas duas casas senhoriais.
— Acho que você ganhou as mansões — eu disse rispidamente. — E meu pai. E William Carey. Pelo que me lembro, recebi um par de luvas bordadas e um colar de pérolas.
— E um navio com o seu nome, e um cavalo — disse Ana, com a sua memória precisa e invejosa. — E inúmeros vestidos, e uma cama nova.
George riu.
— Tem um inventário como se fosse um cavalariço da casa, Ana — estendeu-lhe a mão e a puxou para a cama, para o travesseiro ao lado do seu. Olhei para os dois, tão íntimos quanto gêmeos, lado a lado na grande cama da Inglaterra.
— Vou deixá-los — eu disse simplesmente.
— Corra para Sir João-Ninguém — disse Ana por cima do ombro, e puxou o cortinado da cama para que os dois ficassem fora de vista.
William estava me esperando, no jardim, olhando o rio, com a expressão sombria.
— O que houve?
— Ele prendeu Fisher — respondeu. — Nunca pensei que se atreveria.
— O bispo Fisher?
— Achei que tinha uma vida protegida magicamente. Henrique sempre gostou dele, e ele parecia ter permissão para defender a rainha Catarina e sair ileso. Foi seu homem sem mudar de posição. Ela vai sofrer por ele.
— Mas ele simplesmente ficará na Torre por uma semana, não? Depois, se desculpará ou sei lá o quê.
— Vai depender do que exigirem dele. Ele não prestará o voto de sucessão, tenho certeza. Ele não pode dizer que Elizabeth deve suceder no lugar de Mary, ele escreveu dezenas de livros e pregou milhões de sermões em defesa do casamento, não pode deserdar a filha dela.
— Então, ele simplesmente ficará lá — eu disse.
— Acho que sim — repetiu.
Aproximei-me e pus a mão em seu braço.
— Por que está tão preocupado? — perguntei. — Ele receberá seus livros e tudo o mais, seus amigos o visitarão. Será libertado no fim do verão.
William virou-se para mim e pegou minhas mãos.
— Eu estava presente quando Henrique ordenou que fosse mandado para a Torre — disse ele. — Tratava de seus negócios enquanto assistia à missa. Pense nisso, Maria. Estava na igreja quando mandou o bispo para a Torre.
— Ele sempre tratou de seus negócios durante a missa — eu disse. Relutei em reconhecer a veemência de meu marido. — Não quer dizer nada.
— Essas são as leis de Henrique — disse meu marido sem largar minhas mãos — O Voto da Sucessão, depois, o Ato da Supremacia, e depois, o Ato da Traição. Não são leis do país. São leis de Henrique, armadilhas para capturar seus inimigos, e Fisher e More caíram nelas.
— Ele não vai decapitá-los... — falei racionalmente. — Oh, William, ele não pode! Um é o clérigo mais reverenciado no país e o outro foi lorde chanceler. Ele não ousaria decapitá-los.
— Se ousa julgá-los por traição, então nenhum de nós está a salvo.
Peguei-me falando baixo, como ele.
— Por quê?
— Porque terá descoberto que o Papa não protege seus servidores, que os ingleses não se sublevam contra a tirania. Que ninguém é tão considerado, ou tão influente, a ponto de não ser detido baseado em uma nova lei maquinada por ele. Por quanto tempo acha que a rainha Catarina ficará em liberdade agora que seu conselheiro foi aprisionado?
Retirei minhas mãos dele.
— Não quero ouvir isso — eu disse. — É o mesmo que temer sombras. Meu avô Howard foi levado para a Torre por traição e saiu com um sorriso nos lábios. Henrique não executaria Thomas More, ele gosta demais dele. Podem estar brigados agora, mas More foi o seu melhor amigo e sua maior alegria.
— E o seu tio Buckingham?
— Isso foi diferente — repliquei. — Ele era culpado.
Meu marido virou-se de novo para o rio.
— Veremos — foi tudo o que disse. — Queira Deus que você tenha razão e eu esteja errado.
Nossas preces não foram atendidas. Henrique fez o que pensei que ele jamais sonharia em fazer. Processou o bispo Fisher e Sir Thomas More por afirmarem que a rainha Catarina tinha sido realmente casada com ele. Deixou que sacrificassem suas vidas ao declararem que ele não era o chefe da Igreja, um papa inglês. E esses dois homens, sem uma mácula na consciência, dois dos melhores homens da Inglaterra, caminharam para o cadafalso e colocaram suas cabeças nos troncos como se tivessem sido os mais vis dos traidores.
Foram dias muito silenciosos na corte, os dias de junho em que Fisher morreu, em que More morreu. Todos sentiram que o mundo se tornara um pouco mais perigoso. Se o bispo Fisher podia ser decapitado, se Thomas More subia ao cadafalso, quem poderia estar seguro?
George e eu esperamos com uma impaciência cada vez maior que o bebê de Ana se mexesse em seu útero para que ela, então, contasse ao rei que estava grávida. Mas já estávamos em meados de junho e nada tinha acontecido.
— Não se enganou na contagem de tempo? — perguntei.
— Acha que seria possível? — retorquiu. — Consigo pensar em outra coisa?
— Não pode se mexer tão levemente que você nem sente? — perguntei.
— Quem pode saber é você — replicou. — Você é a porca que está sempre parindo. É possível?
— Não sei — respondi.
— Sim, sabe — disse ela. Sua boca pequena e franzida fechada numa linha amarga. — Nós duas sabemos. Nós duas sabemos o que aconteceu. Está morto. Completaram-se cinco meses e a barriga não está maior do que há três meses. Está morto dentro de mim.
Olhei para ela horrorizada.
— Tem de procurar um médico.
Não me deu importância.
— Preferiria ver o diabo em pessoa. Se Henrique souber que carrego um bebê morto, nunca mais se aproximará de mim.
— Vai-lhe fazer mal — avisei.
Riu, uma risada estridente, amarga.
— Será a minha morte de uma maneira ou de outra. Se eu deixar escapar que é o segundo bebê que não consegui segurar, serei posta de lado e estarei arruinada. O que vou fazer?
— Vou procurar uma parteira e perguntar o que podemos fazer para que se livre do feto.
— É melhor que não saiba que é para mim — disse Ana simplesmente. — Se o menor comentário sobre isso se espalhar, estarei perdida, Maria.
— Eu sei — falei apreensiva. — George me ajudará.
Nessa noite, antes do jantar, nós dois descemos o rio. Um barqueiro particular nos transportou, não quisemos a grande barcaça da família. George conhecia uma casa de banhos de prostitutas. Perto dali, morava uma mulher que tinha a reputação de lançar feitiços, interromper gravidez, amaldiçoar uma pastagem ou fazer um rio se encher de trutas. A casa de banhos dava para o rio, com janelas de sacada sobre a água. Havia uma vela protegida com um anteparo em cada janela, e mulheres seminuas do lado da luz, de modo que pudessem ser vistas do rio. George baixou o chapéu e eu puxei o capuz para ocultar meu rosto. Atracamos e ignorei as mulheres debruçadas às janelas acima, tentando atrair George.
— Espere aqui — ordenou George ao barqueiro e subimos a escada molhada e escorregadia. Ele pegou meu cotovelo e me guiou através da rua imunda pavimentada de pedras redondas, até a casa na esquina. Bateu na porta, e quando foi aberta silenciosamente, ele me introduziu na frente. Hesitei, perscrutando o escuro. — Entre — disse George. Um ligeiro empurrão em minha cintura me avisou que ele não estava a fim de demoras. — Vamos, temos de conseguir isso para ela.
Assenti com a cabeça e entrei. Era uma sala pequena, enfumaçada por causa do fogo lento da madeira recolhida na costa que queimava na lareira, mobiliada com nada além de uma pequena mesa de madeira e dois bancos. A mulher estava sentada à mesa: uma mulher velha, encurvada, de cabelo grisalho, a face sulcada de conhecimento, olhos azuis brilhantes que tudo viam. Um leve sorriso revelou dentes enegrecidos.
— Uma dama da corte — falou, observando meu manto e um pedacinho de meu vestido exposto pela abertura na frente.
Coloquei uma moeda de prata na mesa.
— Isto é para o seu silêncio — eu disse sem rodeios.
Ela riu.
— Não terei muita utilidade, se ficar calada.
— Preciso de ajuda.
— Quer que alguém a ame? Que alguém morra? — Seu olhar brilhante me examinou como se me assimilasse por inteira. Seu sorriso abriu-se largo de novo.
— Nem um nem outro — repliquei.
— Problema com bebê, então.
Puxei um banco e me sentei, pensando no mundo dividido tão simplesmente entre amor, morte e nascimento.
— Não é para mim, é para uma amiga.
Ela deu um risinho deliciado.
— Como sempre.
— Ela esperava bebê, mas está no quinto mês e a criança não cresce nem se mexe.
Imediatamente, a mulher ficou mais interessada.
— O que ela diz?
— Acha que o bebê está morto.
— Ela continua a engordar?
— Não. Não está maior do que há dois meses.
— Enjoo pela manhã, seios sensíveis?
— Agora não.
Balançou a cabeça.
— Sangrou?
— Não.
— Parece que está morto. É melhor me levar até ela para confirmar.
— Não é possível — eu disse. — Ela é muito vigiada.
Deu uma risada rápida.
— Não acreditaria nas casas de que já entrei e saí.
— Não pode vê-la.
— Então será um risco. Posso lhe dar uma bebida que a deixará nauseada como um cão e o bebê sairá.
Balancei a cabeça com ansiedade e ela levantou uma mão.
— Mas e se ela estiver enganada? E se o bebê estiver vivo? Apenas descansando por um tempo? Se simplesmente estiver quieto?
Olhei para ela desconcertada.
— E se for assim?
— Você o terá matado — respondeu simplesmente. — Isso a tornará uma assassina, e a ela e a mim também. Pode aguentar isso?
Neguei com um movimento lento da cabeça.
— Meu Deus, não — eu disse, pensando no que aconteceria a mim e aos meus se alguém soubesse que tinha dado à rainha uma poção para que abortasse um príncipe.
Levantei-me e afastei-me da mesa, olhando pela janela o rio cinzento. Lembrei-me de Ana no começo de sua gravidez, sua cor viva, os seios intumescidos e agora, pálida, exaurida, seca.
— Dê-me a beberagem. É ela que deve escolher se a beberá ou não.
A mulher levantou-se do banco e foi gingando até os fundas da sala.
— São 3 xelins — disse ela.
Não protestei contra o absurdo do preço e coloquei as moedas, em silêncio, sobre a mesa sebosa. Ela pegou-as com um movimento rápido.
— Não é isso que você tem de temer — disse ela, de repente.
Eu estava a caminho da porta, mas me virei.
— Não é a beberagem que deve temer, mas sim a lâmina.
Senti um arrepio, como se a névoa cinza vinda do rio tivesse deslizado por minhas costas.
— O que quer dizer?
Ela sacudiu a cabeça como se tivesse adormecido por um momento.
— Eu? Nada. Se isso significar algo para você, leve a sério, se não significar nada, nada significa. Esqueça.
Detive-me por um instante, esperando que acrescentasse algo, e como permaneceu calada, abri a porta e saí.
George me esperava de braços cruzados. Quando cheguei, pegou minha mão, em silêncio, e descemos rapidamente os degraus escorregadios até o barco que se balançava suavemente. Em silêncio, fizemos a longa viagem de volta, o barqueiro remando contra a corrente. Quando desembarcamos na plataforma do palácio, falei com um tom urgente:
— Tem de saber duas coisas: uma é que se o bebê estiver vivo, esta poção o matará, e carregaremos isso na nossa consciência.
— Tem alguma maneira de dizer se é um menino antes de ela beber?
Quase o xinguei por seu pensamento.
— Ninguém nunca sabe isso.
Ele assentiu com a cabeça.
— E a outra coisa?
— A segunda coisa é que a velha disse que não devíamos temer a beberagem, mas sim a lâmina.
— Que tipo de lâmina?
— Não disse.
— Da espada? Da navalha? Do machado do carrasco?
Encolhi os ombros.
— Somos Bolena — disse ele simplesmente. — Quando se passa a vida à sombra do trono, deve-se sempre temer as lâminas. Vamos completar a noite. Vamos dar a bebida a ela e ver o que acontece.
Ana desceu para jantar como uma rainha, o rosto pálido, retesado, mas a cabeça erguida e um sorriso nos lábios. Sentou-se ao lado de Henrique, seu trono só um pouquinho menor do que o dele, e conversou com ele, bajulou-o, encantou-o, como ainda sabia fazer. Quando os ditos espirituosos se interrompiam, mesmo que por um instante, seus olhos se extraviavam pela sala até pousarem nas damas de honra, talvez em Madge Shelton, talvez em Jane Seymour. Uma vez, deu um sorriso afetuoso e pensativo para mim. Ana fingia não ver nada, enchia-o de perguntas sobre a caça, elogiava a sua saúde. Escolhia os bocados mais gostosos dos vários pratos e os punha no prato dele já cheio. Era a mesma Ana, a mesma Ana a cada virada de cabeça e a cada olhar de flerte por baixo de suas pestanas, mas havia algo em seu encanto determinado que me lembrou outra mulher que tinha se sentado nessa cadeira antes e tentado não ver que a atenção de seu marido estava em outra parte.
Depois do jantar, o rei disse que ia cuidar de alguns negócios, de modo que todos soubemos que iria farrear com seus amigos mais íntimos.
— É melhor eu ir com ele — disse George. — Dê-lhe a poção e fique com ela.
— Dormirei no seu quarto esta noite — eu disse. — A mulher disse que ficará nauseada como um cão.
Ele balançou a cabeça, estreitando os lábios, depois se virou e foi para junto do rei.
Ana disse a suas damas que estava com dor de cabeça e que se deitaria mais cedo. Nós as deixamos na sala de audiências, costurando camisas para os pobres. Mostraram-se muito diligentes quando lhes dissemos boa noite, mas eu sabia que assim que fechássemos a porta, haveria os intermináveis fuxicos de sempre.
Ana vestiu a camisola, e me passou seu pente fino.
— Assim faz algo útil enquanto esperamos — disse ela, grosseiramente.
Coloquei o frasco sobre a mesa.
— Despeje-o para mim.
Havia um quê no frasco escuro com a tampa de vidro que me causou aversão.
— Não. Tem de ser você. Tem de ser feito só por você.
Deu de ombros, como um jogador aumentando as apostas com o bolso vazio, e verteu o líquido em uma taça dourada. Ergueu-a para mim, em um brinde sarcástico, jogou a cabeça para trás e bebeu. Vi seu pescoço sacudir quando a tomou em três goles. Depois, bateu a taça na mesa e sorriu para mim, um sorriso desafiador, selvagem.
— Pronto — disse ela. — Queira Deus que atue rápido.
Esperamos. Escovei seu cabelo, e um pouco depois, ela disse:
— Podemos dormir. Não está acontecendo nada — e nos enroscamos na cama, como dormíamos nos velhos tempos, e despertamos assim que amanheceu, com ela sem sentir dor nenhuma.
— Não surtiu efeito — disse ela.
Tive uma leve esperança de que o bebê tivesse resistido, que estivesse vivo, talvez pequeno, frágil, mas que permanecesse vivo, apesar do veneno.
— Vou para a minha cama, se não precisa de mim — eu disse.
— Vá — disse ela. — Corra para Sir João-Ninguém e dê uma tórrida trepadinha, por que não?
Não respondi de imediato. Conhecia o tom de inveja na voz de minha irmã, e era o som mais doce do mundo para mim.
— Mas você é rainha.
— Sim. E você, Lady João-Ninguém.
Sorri.
— A escolha foi minha — eu disse, e atravessei a porta antes que a última palavra fosse sua.
Durante o dia todo nada aconteceu. George e eu observamos Ana como se ela fosse nossa filha, mas apesar de estar pálida e se queixar do calor do sol forte de junho, nada aconteceu. O rei passou a manhã tratando de negócios, recebendo requerentes que tinham pressa de estar com ele, antes que a corte viajasse.
— Nada? — perguntei a Ana enquanto a observava se vestir para o jantar.
— Nada — replicou. — Tem de voltar lá amanhã.
Por volta da meia-noite, pus Ana na cama e, depois, fui para os meus aposentos. William cochilava quando entrei, mas ao me ver, levantou-se da cama e desatou meu corpete, tão delicado e prestativo quanto uma criada. Ri de sua cara concentrada ao desatar a cintura de minha saia, depois segurar a saia aberta para que eu saísse dela, e suspirei de prazer quando ele friccionou minha pele onde as barbatanas do corpete tinham me machucado.
— Melhor? — perguntou.
— Sempre melhora quando estou com você — respondi simplesmente.
Levou-me pela mão para a cama. Tirei a anágua e deslizei para os lençóis quentes. Imediatamente o corpo quente e familiar tragou-me, envolveu-me, seu cheiro me estonteou, o toque de sua perna nua entre minhas coxas me excitou, seu peito quente em meus seios me fez sorrir de prazer, e seus beijos abriram meus lábios.
Fomos despertados às 2 da manhã, quando ainda estava escuro, por arranhões discretos na porta. William levantou-se imediatamente, segurando seu punhal.
— Quem é?
— George. Preciso de Maria.
William praguejou baixinho, pôs um manto em volta dos ombros, jogou minha camisa de dormir para mim, e abriu a porta.
— É a rainha?
George sacudiu a cabeça. Não suportava a ideia de contar a outro homem nossos segredos de família. Olhou para mim.
— Venha, Maria.
William recuou, reprimindo seu ressentimento por meu irmão mandar eu sair da cama de meu marido. Vesti a camisa pela cabeça e pulei da cama. Estendi a mão para pegar o corpete e a saia.
— Não tem tempo para isso — disse George, irritado. — Venha agora.
— Ela não vai sair deste quarto seminua — disse William.
Por um instante, George parou para entender a expressão truculenta de William. Então, deu seu sorriso Bolena sedutor.
— Ela tem de ir trabalhar — disse ele, amavelmente. — É um assunto de família. Deixe que vá, William. Vou cuidar para que não lhe aconteça nada de ruim. Mas ela tem de vir agora.
William tirou o manto dos ombros e o pôs ao redor do meu corpo e beijou-me na testa quando passei apressada. George me puxou pela mão, correndo para o quarto de Ana.
Ela estava no chão diante da lareira, abraçando a si mesma. Do seu lado estava uma trouxa de pano manchada de sangue. Quando abrimos a porta, ela ergueu os olhos e nos viu por trás dos fios de seu cabelo escuro, e depois desviou o olhar, como se não tivesse nada a dizer.
— Ana? — falei em um sussurro.
Atravessei o quarto e sentei-me no chão ao seu lado. Com cuidado, coloquei o braço à volta de seus ombros tesos. Não se entregou ao abraço para um conforto nem me repeliu. Estava tão inflexível quanto um pedaço de madeira. Olhei para o trágico pequeno pacote.
— Era o seu bebê?
— Quase sem dor — disse ela. — E tão rápido que não durou mais do que um instante. Senti minha barriga revirar como se eu quisesse me esvaziar e saí da cama para o vaso e, então, estava tudo terminado. Estava morto. Mal sangrei. Acho que estava morto fazia meses. Foi tudo uma perda de tempo. Tudo isso. Uma perda de tempo.
Virei-me para George.
— Tem de se livrar disso.
— Como? — espantou-se.
— Enterre-o — eu disse. — Livre-se disso de alguma maneira. Isso não pode ter acontecido. Tudo isso nunca aconteceu.
Ana passou os dedos pelo cabelo.
— Sim — falou com a voz apática. — Nunca aconteceu. Como da última vez. Como da próxima vez. Nada nunca acontece.
George foi pegar aquela coisa, mas se deteve. Não conseguiu tocá-la.
— Vou pegar um manto.
Indiquei com a cabeça um dos baús de roupas ao longo das paredes. Abriu-o. O quarto foi tomado pelo cheiro doce de lavanda e absinto. Retirou um manto escuro.
— Esse não — disse Ana. — É guarnecido de arminho genuíno.
Ele se deteve diante do absurdo de suas palavras, mas retirou outro, e o jogou sobre o pequeno volume no chão. Era tão pequenino que parecia não existir, mesmo quando o envolveu e pôs debaixo do braço.
— Não sei onde enterrá-lo — me disse baixinho, mantendo o olho atento em Ana. Ela continuava a puxar o cabelo, como se quisesse sentir dor.
— Vá até William — eu disse, agradecendo a Deus por meu homem, que daria um jeito nesse horror para nós. — Ele o ajudará.
Ana emitiu um pequeno gemido de dor.
— Ninguém pode saber!
Balancei a cabeça para George.
— Vá!
Ele saiu do quarto. A pequena coisa sob seu braço era tão minúscula que poderia passar por um livro envolvido num manto para mantê-lo seco.
Assim que a porta se fechou me virei para Ana. Sua roupa de cama estava manchada e a puxei e tirei também sua camisola. Rasguei-a e coloquei no fogo para queimar. Eu a vesti com uma camisa de dormir limpa e a convenci a ir para a cama e se cobrir com os cobertores. Parecia morta de tão lívida e seus dentes batiam quando se deitou encolhida, miúda sob as cobertas grossas, submersa pelo dossel ricamente bordado e pelo cortinado de sua grande cama de quatro colunas.
— Vou buscar um pouco de vinho.
Havia uma jarra de vinho na sala de audiências, levei-a para o seu quarto e aqueci o vinho com um atiçador de brasas. Misturei também um pouco de brandy nele e o verti em sua taça dourada. Apoiei seus ombros e a ajudei a bebê-lo. Parou de tremer, mas continuou mortalmente pálida.
— Durma — eu disse. — Passarei a noite com você.
Ergui as cobertas e deitei-me ao seu lado. Envolvi-a com os braços para aquecê-la. Seu corpo leve, agora sem barriga, era tão pequeno quanto o de uma criança. Senti minha camisa de dormir umedecer em meu ombro e percebi que ela chorava em silêncio, as lágrimas correndo por debaixo de suas pestanas baixadas.
— Durma — repeti, impotente. — Não podemos fazer mais nada hoje. Durma, Ana.
Ela não abriu os olhos.
— Vou dormir — sussurrou. — E peço a Deus que não acorde mais.
É claro que acordou de manhã. Acordou e pediu uma banheira e mandou que a enchessem de água insuportavelmente quente, como se fervendo a dor a tirasse de sua cabeça e de seu corpo. Entrou na água e esfregou o corpo todo, depois afundou-se na espuma de sabão e ordenou que as criadas trouxessem outra ânfora de água quente depois mais outra. O rei enviou uma mensagem dizendo que estava indo à missa da manhã e ela respondeu que o veria no desjejum, que estava tendo a missa em seu quarto. Pediu que eu buscasse sabão e um pedaço de pano áspero e que esfregasse suas costas até que ficassem vermelhas. Lavou o cabelo e o prendeu no alto da cabeça enquanto se deixava estar na água fervente. Sua pele ficou vermelha como um camarão, e mandou que viesse outro cântaro de água quente, depois lhe trouxeram lençóis de linho aquecidos para envolverem-na.
Ana sentou-se diante do fogo para se secar e mandou que tirassem dos baús seus vestidos mais belos para que escolhesse qual vestiria e qual levaria quando a corte partisse no verão. Permaneci nos fundos da sala observando-a, perguntando-me o que aquele batismo feroz em água quente significava, o que esse desfile de sua riqueza queria lhe dizer. Vestiram-na e atou bem apertado o corpete de modo que seus seios foram comprimidos como duas curvas torturantes de pele cor creme no decote. Seu cabelo preto lustroso ficou exposto pelo capelo puxado para trás, os dedos compridos cobertos de anéis, usou sua gargantilha de pérola preferida, com o “B” dos Bolena, e fez uma pausa, antes de deixar o quarto, para se olhar no espelho, e lançar à imagem refletida aquele seu meio sorriso sedutor, deliberado.
— Está se sentindo bem agora? — perguntei, finalmente me aproximando.
Ao se virar, a bela seda de seu vestido acompanhou o movimento do seu corpo e os diamantes cintilaram na luz.
— Bien sur! Por que não me sentiria? Por que não? — perguntou ela.
— Não há razão — repliquei. Percebi que recuava para os fundos do cômodo não por respeito, como ela gostaria, mas por causa da sensação que aquilo tudo era demais para mim. Não queria estar com Ana quando ela era dura e fulgurante. Quando ela ficava assim, eu sentia falta da simplicidade e delicadeza de William e do mundo em que as coisas eram o que pareciam ser.
Encontrei-o onde esperava encontrá-lo, com a nossa filha no quadril, caminhando à margem do rio.
— Mandei a ama comer seu desjejum — disse ele, passando o bebê para mim. Pus meu rosto no alto de sua cabeça e senti a pulsação em minha bochecha. Inspirei o cheiro doce de bebê e fechei os olhos de prazer. A mão de William percorreu minhas costas até minha cintura e me puxou para si.
Descansei por um momento, amando seu toque, amando o calor de meu bebê encostado a mim, amando o som das gaivotas e o calor do sol em meu rosto, e então, caminhamos devagar, lado a lado, no caminho de sirga, ao longo da margem do rio.
— Como está a rainha agora?
— Como se nada tivesse acontecido — repliquei. — Nunca tivesse existido.
Balançou a cabeça.
— Estava pensando uma coisa — disse ele, com certa relutância. — Não quero ofendê-la, mas...
— O quê?
— O que há de errado com ela? Para que não consiga ter filhos?
— Teve Elizabeth.
— Depois?
Estreitei os olhos ao me virar para ele.
— O que está pensando?
— O que qualquer um pensaria se soubesse o que sei.
— E o que qualquer um pensaria? — perguntei, com certa rispidez.
— Você sabe.
— É você quem diz.
Deu um risinho triste.
— Não se vai ficar me olhando desse jeito. Está parecendo seu tio. Estou morrendo de medo.
Isso me fez rir e sacudi a cabeça.
— Está bem! Não vou olhar ameaçadoramente. Continue. O que todo mundo pensaria? O que está pensando e não querendo dizer?
— Diriam que tem um pecado na alma, algum trato com o diabo ou com uma bruxa — disse ele sem mais rodeios. — Não se zangue comigo, Maria. É o que você mesma diria. Simplesmente pensava que se ela se confessasse ou fizesse uma peregrinação, ou limpasse sua consciência. Sei lá, como posso saber? Nem mesmo quero saber. Mas ela deve ter feito alguma coisa extremamente errada, não deve?
Virei-me e me afastei devagar. William me alcançou.
— Deve se perguntar...
Sacudi a cabeça.
— Não — repliquei com firmeza. — Não sei metade do que ela fez para se tornar rainha. Não faço ideia do que seria capaz para conceber um menino. Não sei, e não quero saber.
Caminhamos em silêncio por um momento. William relanceou os olhos para o meu perfil.
— Se ela não tiver um filho, ficará com o seu — disse ele, conhecendo meus pensamentos.
— Eu sei — sussurrei, com angústia. Abracei meu bebê com mais força.
A corte viajaria em uma semana e eu poderia estar com meus filhos assim que todos tivessem partido. Na excitação e caos da agitação de fazer as malas e organizar a viagem anual, eu parecia um acrobata dançando sobre ovos, com medo de fazer alguma coisa que irritasse a rainha.
Tive sorte e o gênio de Ana se manteve sob controle. William e eu acenamos nos despedindo do grupo real quando partiram rumo ao sul, às melhores cidades e casas que Sussex, Hampshire, Wiltshire e Dorset podiam oferecer. Ana estava belamente vestida de branco e dourado, Henrique, ao seu lado, continuava a ser um rei imponente, especialmente sobre um grande cavalo de caça. Ana cavalgava em sua égua tão próxima a ele como sempre cavalgavam, há somente dois, três anos, quando ele se encantou por ela e ela viu a glória em suas mãos.
Ainda conseguia fazê-lo virar-se para escutá-la, ainda conseguia fazê-lo rir. Ainda conseguia conduzir a corte como se fosse uma garota montando por prazer em um dia de verão. Ninguém sabia o que custava a Ana montar e se exibir para o rei, e acenar para o povo à beira da estrada, que a olhava com curiosidade, mas não amor. Ninguém nunca saberia.
William e eu ficamos acenando até ficarem fora de vista. Então, fomos buscar a ama de leite e o nosso bebê. Assim que a última das centenas de carroças deixou o pátio das cavalariças e desceu a West Road, partimos para Kent, para Hever, para o verão com meus filhos.
Eu tinha planejado esse momento e rezado por ele, de joelhos, todas as noites do ano. Graças a Deus os mexericos da corte não tinham alcançado Kent, e meus filhos não sabiam o risco que nossa família corria. Tinham permitido que recebessem minhas cartas em que eu contava que tinha me casado com William e esperava bebê. Tinham-lhes contado que eu dera à luz uma menina, que tinham uma irmãzinha, e os dois ficaram tão excitados quanto eu, ansiosos por me verem tanto quanto eu estava ansiosa por vê-los.
Estavam à toa na ponte levadiça quando atravessamos o parque. Vi Catarina levantar Henrique e os dois correram para nós. Catarina erguia sua saia comprida para não tropeçar e Henrique a ultrapassou com sua passada mais vigorosa. Desmontei e estendi os braços para eles. Jogaram-se para mim, agarraram minha cintura e me abraçaram forte.
Tinham crescido. Quase chorei ao ver como tinham crescido na minha ausência. Henrique batia no meu ombro, teria a altura e peso de seu pai. Catarina era quase uma moça, tão alta quanto seu irmão, e graciosa. Tinha os olhos castanho-claros dos Bolena e o sorriso malicioso. Afastei-a um pouco para vê-la melhor. Seu corpo começava a formar curvas de uma mulher, seus olhos quando encontraram os meus foram os de uma mulher prestes a se tornar adulta: otimistas, confiantes.
— Oh, Catarina, você vai ser mais uma beldade Bolena — eu disse, e ela corou e se aninhou no meu abraço.
William desmontou e abraçou Henrique. Depois, se virou para Catarina.
— Acho que devo beijar a sua mão — disse ele.
Ela riu e se jogou para abraçá-lo.
— Fiquei tão feliz quando soube que se casaram — disse ela. — Agora, devo chamá-lo de pai?
— Sim — disse ele com firmeza, como se nunca tivesse existido qualquer dúvida sobre isso. — Exceto quando me chamar de sire.
Ela deu um risinho.
— E o bebê?
Fui até a ama em sua mula e peguei o bebê de seus braços.
— Aqui está ela — eu disse. — Sua irmã.
Catarina falou com ela carinhosamente e a pegou no colo. Henrique inclinou-se sobre o ombro dela, puxou o cueiro e olhou sua carinha.
— Tão pequena — disse ele.
— Ela já cresceu muito — eu disse. — Quando nasceu era miudinha.
— Chora muito? — perguntou Henrique.
— Não muito — repliquei sorrindo. — Não como você. Você foi um bebê chorão.
Sorriu largo, um sorriso de menino.
— Fui mesmo?
— Um horror.
— Ainda é — disse Catarina com o desrespeito de uma irmã mais velha.
— Não sou — retorquiu ele. — Mas não importa. Mãe e, bem, pai, querem entrar? Logo o jantar estará pronto para vocês. Não sabíamos a que horas chegariam.
William virou-se na direção da casa e pôs o braço sobre os ombros de Henrique.
— Fale-me de seus estudos — disse ele. — Soube que está trabalhando com os eruditos cistercienses. Estão lhe ensinando o grego e o latim também?
Catarina ficou para trás.
— Posso carregá-la?
— Pode ficar com ela o dia inteiro — falei sorrindo. — Sua ama ficará feliz em poder descansar.
— Vai acordar logo? — perguntou, perscrutando de novo o bebê.
— Sim — tranquilizei-a. — E então poderá ver seus olhos. São de um azul muito escuro. Muito bonitos. E talvez ela sorria para você.
Outono de 1535
Recebi somente uma carta de Ana, no outono:
Querida irmã,
Estamos caçando com falcão, e a caça é boa. O rei cavalga bem e comprou outro cavalo a um preço irrisório. Tivemos o grande prazer de ficarmos com os Seymour em Wulfhall, e Jane ficou em evidência como a filha dos donos da casa. Não existe cortesia maior. Caminhava com o rei nos jardins e apontava para as ervas que usa para tratar os pobres, mostrou-lhe seus bordados e seus pombos preferidos. Fez os peixes no fosso se alimentarem na sua mão. Gosta de supervisionar a comida preparada para o jantar de seu pai, achando que é dever da mulher ser uma criada dos homens. Mais encantadora, impossível. O rei parecia um garoto. Como pode imaginar, não fiquei tão encantada, mas sorri, sabendo que carrego o ás não na manga, mas no meu ventre.
Queira Deus que desta vez tudo corra bem. Se Deus quiser. Estou lhe escrevendo de Winchester e prosseguiremos para Windsor, onde espero que me encontre. Quero-a do meu lado o tempo todo. O bebê deve nascer no próximo verão e todos estaremos salvos outra vez. Não conte a ninguém, nem mesmo a William. Tem de ser segredo até o mais tarde possível, para o caso de um aborto. Só George sabe, e agora, você. Só contarei ao rei depois de três meses. Dessa vez, tenho boas razões para acreditar que o bebê nascerá forte. Reze por mim.
Ana
Pus a mão no bolso e senti o rosário, e rezei, rezei com toda a paixão que eu tinha que, dessa vez, a gravidez de Ana vingasse e ela tivesse um menino. Achava que nenhum de nós sobreviveria a outro aborto. O segredo se revelaria, a nossa sorte não sobreviveria a outro desastre, ou a própria Ana poderia simplesmente saltar a pequena lacuna entre a ambição determinada e a loucura.
Estava observando minha criada arrumar minha roupas e meu baú, para o nosso retorno à corte, em Windsor, quando Catarina bateu na porta, entrando em seguida.
Sorri e ela veio sentar-se ao meu lado, os olhos baixos para as fivelas de seus sapatos, claramente querendo dizer algo.
— O que é? — perguntei. — Fale, Cat, senão vai sufocar com isso.
Levantou a cabeça imediatamente.
— Queria lhe pedir uma coisa.
— Peça.
— Sei que Henrique tem de ficar com os cistercienses, com os outros garotos até a rainha ordenar que vá para a corte.
— Sim — rangi os dentes.
— Pensei se não poderia ir para a corte com você. Tenho quase 12 anos.
— Tem onze.
— Que é quase 12. Quantos anos tinha quando partiu daqui?
Fiz uma leve careta.
— Quatro. E isso foi algo de que sempre lhes quis poupar. Chorei todas as noites até completar 5 anos.
— Mas tenho quase 12.
Sorri com a sua insistência.
— Tem razão. Deve ir à corte. E estarei lá para tomar conta de você. Ana pode colocá-la como uma de suas damas, e William também pode cuidar de você.
Eu pensava na crescente libertinagem da corte, e em como uma nova garota Bolena seria o centro das atenções, e em como a beleza delicada de minha filha me parecia muito mais segura no campo do que nos palácios de Henrique.
— Suponho que isso tenha de acontecer — eu disse. — Mas precisamos da permissão de tio Howard. Se ele disser sim, então poderá ir à corte com William e comigo na próxima semana.
Sua face se iluminou. Bateu palmas.
— Terei vestidos novos?
— Acho que sim.
— E um cavalo novo? Vou ter de ir à caça? Vou?
Revisei as coisas contando nos dedos.
— Quatro vestidos novos, um cavalo novo. Mais alguma coisa?
— Capelos e manto. O meu velho está pequeno demais.
— Capelos. Manto.
— Só isso — disse sem fôlego.
— Acho que podemos dar um jeito — eu disse. — Mas não se esqueça, Srta. Catarina, que a corte nem sempre é um bom lugar para uma jovem donzela, especialmente se for bonita. Espero que faça o que eu mandar e se houver flertes ou receber cartas, terá de me contar. Não quero que vá para a corte e se magoe demais.
— Oh, não! — Dançava ao redor do quarto como um bobo da corte. — Não. Vou fazer tudo o que mandar, basta me dizer o que fazer e farei. Além do mais, não acho que alguém vai nem mesmo me notar.
Sua saia girou em volta de seu corpo esguio e seu cabelo castanho esvoaçou.
Sorri para ela.
— Oh, vão notá-la sim — repliquei. — Vão notá-la, minha filha.
Inverno de 1536
Foram os melhores doze dias de Natal que passei até então. Ana esperava bebê e irradiava saúde e confiança. William estava ao meu lado, meu marido reconhecido. Eu tinha um bebê no berço e uma jovem e bela filha na corte. Para os dias dos festejos do Natal, Ana disse que também podíamos levar seu protegido Henrique. Quando me sentei para jantar no Dia de Reis, minha irmã estava no trono da Inglaterra e a minha família, nas melhores mesas do salão.
— Você parece feliz — disse William quando se posicionou à minha frente para a dança.
— E estou — repliquei. — Finalmente, parece que os Bolena estão onde queriam estar, e podemos desfrutar isso.
Ele relanceou os olhos para onde Ana começava a conduzir as damas na complicada configuração da dança.
— Ela está grávida? — perguntou ele baixinho.
— Sim — sussurrei de volta. — Como adivinhou?
— Por seus olhos — disse ele. — E somente isso a faria ser cortês com Jane Seymour.
Dei um risinho e olhei para o círculo de dançarinas, onde Jane, palidamente virginal, em um vestido creme, aguardava, de olhos baixos, sua vez de dançar. Quando avançou para o centro do círculo, o rei observou-a como se fosse devorá-la ali mesmo, como um pudim de marzipã.
— Não há mulher mais angelical — comentou William.
— É uma cobra descorada — repliquei resolutamente. — E pode ir tirando os olhos dela, pois não vou tolerar isso.
— Ana tolera — disse ele, me provocando.
— Ele não tem permissão, pode ter certeza.
— Um dia, ela ainda vai se dar mal por querer abarcar o mundo com as pernas — declarou William. — Um dia, ele se cansará de seus acessos de fúria e uma mulher como Jane Seymour parecerá uma trégua agradável.
Sacudi a cabeça.
— Ela o aborreceria em uma semana — eu disse. — Ele é o rei. Gosta de caçar, de justas e entretenimento. Somente uma garota Howard é capaz de fazer tudo isso. Basta olhar para nós.
William olhou de Ana, para Madge Shelton, para mim e, finalmente, para Catarina Carey, minha bonita filha, que estava sentada observando a dança, com uma virada de cabeça que era exatamente igual ao gesto coquete de Ana.
William sorriu.
— Que sábio eu fui ao colher a flor da safra — disse ele. — A melhor das garotas Bolena.
Na manhã seguinte, eu estava com Ana e Catarina nos aposentos da rainha. Ana pôs suas damas para bordarem a grande toalha de altar, e me lembrei do trabalho que todas fazíamos com a rainha Catarina, e o interminável céu azul que parecia se estender ao infinito, enquanto seu destino era decidido. Catarina, como a mais nova e modesta dama de honra, só teve permissão para a bainha ao redor do grande retângulo de pano, enquanto as outras se ajoelhavam no chão ou aproximavam seus bancos para trabalharem o centro. Seus mexericos soavam como o arrulho de pombos no verão, somente a voz de Jane Parker destoava. Ana segurava uma agulha, mas estava recostada para escutar os músicos. Eu não estava com disposição para trabalhar. Sentei-me no vão da janela e olhei o jardim frio.
Houve uma batida na porta, que foi aberta bruscamente. Meu tio entrou e procurou Ana. Ela levantou-se.
— O que foi? — perguntou sem formalidades.
— A rainha morreu — disse ele. Seu choque foi tal que se esqueceu de que deveria dizer princesa Dowager.
— Morreu?
Assentiu com a cabeça.
Ana ficou rubra e um sorriso radiante iluminou aos poucos sua face.
— Graças a Deus — disse ela simplesmente. — Está tudo acabado, então.
— Que Deus a abençoe e a tenha em Sua santa paz — sussurrou Jane Seymour.
Os olhos escuros de Ana faiscaram de raiva.
— E que Deus a abençoe, Srta. Seymour, se se esqueceu de que a princesa Dowager foi a mulher que desafiou o rei, seu próprio cunhado, atraindo-o para um casamento falso e lhe causou muita aflição e sofrimento.
Jane encarou-a sem se retrair.
— Eu a servi, nós duas a servimos — disse ela com um tom de voz gentil. — E era uma boa mulher e boa senhora. E claro que desejo que Deus a abençoe. Com a sua permissão, irei fazer uma prece por ela.
Ana olhou como se fosse adorar negar a permissão a Jane, mas percebeu o olhar ávido da mulher de George e se lembrou de que qualquer desavença seria relatada e aumentada na corte em poucas horas.
— É claro — disse ela docemente. — Mais alguém quer ir à missa rezar com Jane enquanto vou celebrar com o rei?
A escolha não era difícil. Jane Seymour foi sozinha, e o restante de nós atravessou o salão e subiu para o aposento do rei.
Ele recebeu Ana com um grito de alegria e beijou-a. Foi como se nunca tivesse sido Sir Coração Leal à sua rainha Catarina. Foi como se o seu pior inimigo tivesse morrido e não uma mulher que o amara lealmente por vinte e sete anos e que morrera abençoando-o. Convocou o mestre de folia e ordenou um banquete preparado às pressas, entretenimento e dança. A corte da Inglaterra festejaria porque uma mulher que nada fizera de errado tinha morrido só, longe de sua filha, abandonada por seu marido. Ana e Henrique usariam amarelo: a cor do sol, a mais alegre das cores. Na Espanha, era a cor do luto real, portanto foi uma pilhéria com o embaixador espanhol que teria de relatar o insulto ambíguo a seu senhor, o imperador espanhol.
Não consegui forçar um sorriso ao ver Henrique e Ana vibrando com o triunfo. Virei-me e me dirigi à porta. Uma mão tocou meu cotovelo e me deteve. Virei-me e meu tio estava do meu lado.
— Você fica — sussurrou ele.
— Isso é uma desgraça.
— Sim. Talvez. Mas você fica.
Eu teria me soltado, mas ele me segurou firme.
— Ela era inimiga da sua irmã e portanto nossa inimiga. Quase nos arruinou. Quase venceu.
— Porque tinha razão — sussurrei de volta. — E todos nós sabemos disso.
Seu sorriso foi genuíno. A minha indignação realmente o divertia.
— Com ou sem razão, agora está morta, e sua irmã é rainha sem ninguém para contestá-la. A Espanha não vai invadir, o Papa suspenderá a excomunhão. A sua causa, embora possa ter sido justa, morreu com ela. Tudo o que precisamos é de Ana ter um menino, e então teremos tudo. Portanto fique e pareça feliz.
Obedientemente, fiquei ao seu lado enquanto Henrique e Ana iam para o vão de uma janela para conversarem a sós. Algo em suas cabeças tão próximas e o ritmo acelerado de sua conversa os faziam parecer os maiores conspiradores do mundo. Achei que se Jane Seymour os visse nesse momento, saberia que jamais conseguiria penetrar nessa unidade. Quando Henrique queria uma mente tão sagaz e inescrupulosa quanto a dele, era sempre Ana. Jane tinha ido rezar pela rainha morta, Ana dançava em seu túmulo.
A corte, entregue à diversão, dividida em grupos e pares, conversava sobre a morte da rainha. William, ao me localizar ao lado do meu tio, com a cara fechada, veio me chamar.
— Ela vai ficar aqui — disse meu tio. — Nada de se extraviar.
— Ela fará o que quiser — disse William. — Não quero que receba ordens.
Meu tio ergueu a sobrancelha.
— Uma esposa incomum.
— A que me convém — disse William. Virou-se para mim. — Quer ficar ou ir embora?
— Vou ficar — cedi. — Mas não vou dançar. É um insulto à sua memória, e não quero participar disso.
Jane Parker apareceu ao lado de William.
— Estão dizendo que ela foi envenenada — disse ela. — A princesa Dowager. Dizem que morreu repentinamente com muita dor, que foi algo que colocaram em sua comida. Quem vocês acham que faria uma coisa dessa?
Prudentemente, nenhum de nós três olhou na direção do casal real, as duas pessoas no mundo que mais se beneficiariam com a morte de Catarina.
— É uma mentira absurda. Eu não a repetiria se fosse você — aconselhou meu tio.
— Já se espalhou por toda a corte — defendeu-se. — Todos perguntam quem, se foi envenenada, fez isso?
— Pois responda a todos que ela não foi envenenada, que morreu de melancolia — replicou meu tio. — Exatamente como uma mulher pode morrer de excesso de difamação, acho. Especialmente se calunia uma família poderosa.
— É a minha família — lembrou Jane.
— Estou sempre me esquecendo — respondeu ele prontamente. — Está tão raramente ao lado de George, tão raramente trabalha em nosso benefício que, às vezes, me esqueço completamente de que é um parente.
Ela sustentou seu olhar só por um momento, então baixou os olhos.
— Estaria mais com George se ele não estivesse sempre com sua irmã — disse ela baixinho.
— Maria? — meu tio fingiu que não a tinha compreendido.
Ela levantou a cabeça.
— A rainha. São inseparáveis.
— Porque ele sabe que a rainha tem de ser servida e a família tem de ser servida. Você também deveria se colocar à sua disposição. Deveria estar à disposição dele.
— Não creio que ele queira qualquer mulher à sua disposição — disse ela sediciosamente. — Exceto a rainha, não existe nenhuma mulher para ele. Ou está com ela ou com Sir Francis.
Gelei. Não ousei olhar para William.
— É seu dever estar ao seu lado, ele ordene ou não — disse meu tio simplesmente.
Por um momento, achei que ela ia replicar, mas deu seu sorriso dissimulado e se afastou.
Ana chamou-me à sua câmara privada uma hora antes do jantar. Notou imediatamente que eu não estava usando amarelo para o banquete.
— É melhor se apressar — disse ela.
— Eu não vou.
Por um momento, achei que talvez fosse me contestar, mas preferiu evitar uma discussão.
— Oh, está bem — disse ela. — Mas diga a todo mundo que não está passando bem. Não quero ninguém fazendo perguntas.
Relanceou os olhos para o espelho.
— Dá para notar? — perguntou. — Estou mais gorda com este do que com os outros. Isso significa que o bebê está se desenvolvendo bem, não? Que é forte.
— Sim — tranquilizei-a. — E você está com boa aparência.
Sentou-se diante do espelho.
— Escove meu cabelo. Ninguém faz isso melhor do que você.
Tirei seu capelo amarelo e deixei sua cabeleira farta, escura e lustrosa cair sobre seus ombros. Ela tinha duas escovas de prata, e usei uma, depois outra, como se escovasse um cavalo. Ana jogou a cabeça para trás e entregou-se ao deleite ocioso.
— Ele será forte — disse ela. — Ninguém sabe o que contribuiu para fazer esse bebê, Maria. Ninguém nunca vai saber.
Senti minhas mãos, de repente, pesadas e desajeitadas. Pensei nas feiticeiras que ela devia ter consultado, nos sortilégios a que devia ter recorrido.
— Será um grande príncipe para a Inglaterra — disse ela baixinho. — Pois fui aos portões do inferno para consegui-lo. Você nunca vai nem imaginar.
— Pois então não me conte — eu disse, covardemente.
Ela riu.
— Oh, sim, tire o corpo fora, irmãzinha. Mas não será capaz de imaginar o que já enfrentei por meu país.
Esforcei-me para escovar seu cabelo.
— Tenho certeza de que sim — repliquei calmamente.
Ela ficou em silêncio por um instante e, então, de súbito, abriu os olhos.
— Eu senti — disse ela com um tom de assombro. — Maria, de repente, senti.
— Sentiu o quê?
— Neste instante, senti. Senti o bebê. Ele se mexeu.
— Onde? — perguntei. — Me mostre.
Bateu em seu corpete, frustrada.
— Aqui! Aqui! Eu o senti. — interrompeu-se. Vi seu rosto se iluminar como nunca tinha acontecido antes. — De novo — sussurrou. — Uma pequena ondulação. É o meu bebê que dá sinais de vida. Graças a Deus, estou com um bebê, um bebê vivo.
Levantou-se da cadeira, o cabelo ainda solto, caindo em seus ombros.
— Vá depressa contar a George.
Mesmo sabendo da intimidade entre os dois, fiquei surpresa.
— George?
— Quer dizer, o rei — corrigiu-se rapidamente. — Vá buscar o rei para mim.
Corri para os aposentos do rei. Estava sendo vestido para o jantar, mas havia uma meia dúzia de homens na câmara privada. Fiz uma reverência ao chegar à sua porta e ele sorriu radiante ao me ver.
— Mas ora, é a outra garota Bolena! — disse ele. — A mais doce.
Mais de um dos homens riu em silêncio do gracejo.
— A rainha pede para vê-lo imediatamente, sire — eu disse. — Ela tem boas notícias para Sua Majestade.
Ele ergueu uma de suas sobrancelhas cor de areia, estava muito régio ultimamente.
— Então, ela a mandou correr como um pajem para me buscar como um cachorrinho?
Fiz mais uma reverência.
— Sire, são notícias que me deixam feliz por ter vindo correndo. E responderia a esse assobio, se soubesse do que se trata.
Alguém murmurou algo atrás de mim, e o rei colocou sua capa dourada e alisou o punho de arminho.
— Vamos, então, Lady Maria. Conduzirá este cãozinho ansioso ao assobio. Pode me conduzir aonde quiser.
Coloquei minha mão, levemente, sobre seu braço estendido, e não resisti quando me puxou para mais perto.
— A vida de casada parece ter-lhe feito bem, Maria — disse com intimidade, enquanto descíamos a escadaria com metade dos cavalheiros nos seguindo. — Está tão bonita quanto era antes, quando era o meu coração.
Eu ficava sempre cautelosa quando Henrique se mostrava íntimo.
— Isso foi há muito tempo — repliquei prudentemente. — Mas Sua Graça é duas vezes o príncipe que era então.
Assim que as palavras saíram de minha boca, me amaldiçoei pela tolice. Tinha querido dizer que ele agora era mais poderoso, mais bonito. Mas, que idiota fui, soou como se eu lhe dissesse que, agora, estava duas vezes mais gordo, o que era, espantosamente, verdade.
Ele se deteve de imediato, a três degraus do piso. Quase caí de joelhos. Não me atrevi a erguer os olhos. Sabia que, no mundo todo, não existia um cortesão tão incompetente quanto eu com o meu desejo de formar uma frase bonita e minha completa incapacidade de dizê-la da maneira correta.
Ouviu-se um som gritado. Olhei timidamente para ele e vi, para meu grande alívio, que gargalhava.
— Lady Maria, ficou maluca? — perguntou.
Eu também comecei a rir, de alívio.
— Acho que sim, Majestade — repliquei. — Eu só quis dizer que, na época, Sua Majestade era apenas um rapaz e eu uma garota, e que agora é um rei entre príncipes. Mas saiu...
De novo, sua gargalhada abafou minha voz, e os cortesãos que vinham atrás esticaram o pescoço e se curvaram à frente, querendo saber o que divertia o rei, e por que eu estava vermelha de vergonha e rindo ao mesmo tempo.
Henrique pôs a mão ao redor de minha cintura e me abraçou forte.
— Maria, adoro você — disse ele. — É o melhor dos Bolena, pois ninguém me faz rir como você. Leve-me à minha mulher, antes que diga algo tão terrível que eu tenha de mandar decapitá-la.
Soltei-me de seu abraço e segui na frente para os aposentos da rainha, o introduzi, e seus cavalheiros o acompanharam. Ana não estava em sua sala de audiências, mas em seu quarto. Bati na porta, e anunciei o rei. Ela continuava com o cabelo solto e o capelo na mão, e irradiando aquele brilho admirável.
Henrique entrou e fechei a porta, ficando do lado de fora, para evitar que algum bisbilhoteiro se aproximasse. Era o momento principal da carreira de Ana, e eu queria que ela o saboreasse. Diria ao rei que estava grávida, e desde Elizabeth, era a primeira vez que sentia um bebê se desenvolver em seu útero.
William entrou e me viu diante da porta. Abriu caminho até onde eu estava.
— Está montando guarda? — perguntou. — Devia pôr as mãos nos quadris como uma peixeira vigiando seu balde.
— Ela está lhe contando que espera bebê. Tem o direito de contar isso sem ter uma maldita garota Seymour bisbilhotando.
George apareceu ao lado de William.
— Contando?
— O bebê está se mexendo — eu disse, sorrindo para o meu irmão, antecipando a sua alegria, como a minha. — Ela o sentiu. Mandou-me buscar o rei na mesma hora.
Esperava ver a sua alegria, mas vi outra coisa — uma sombra atravessou seu rosto, a mesma cara que mostrava quando tinha feito algo errado. Era a expressão de culpa de George. Passou por seus olhos tão rapidamente que fiquei insegura de tê-la realmente percebido. Mas por um instante, tive certeza absoluta de que a sua consciência não estava limpa, e adivinhei que Ana o levara como seu companheiro na viagem aos portões do inferno, para conceber essa criança para a Inglaterra.
— Oh, Deus! O que houve? O que vocês dois fizeram?
Imediatamente, ele deu seu sorriso fútil de cortesão.
— Nada! Nada. Como vão ficar felizes! Que dois dias esses! Catarina morre e o bebê se mexe. Vivat Bolena!
William sorriu para ele.
— A sua família sempre me impressiona com sua capacidade de ver tudo sob a luz de seus próprios interesses — disse ele polidamente.
— Refere-se à alegria com a morte da rainha?
— Da princesa Dowager — interrompemos William e eu juntos.
George sorriu largo.
— Sim. Ela. É claro que celebramos. O seu problema, William, é que não tem ambição. Não vê que na vida há um único objetivo.
— E qual é? — perguntou William.
— Mais — respondeu George, simplesmente. — Mais de qualquer coisa. Mais de tudo.
Durante os dias escuros e frios de janeiro, Ana e eu ficamos juntas, lendo, jogando cartas e escutando seus músicos. George estava sempre com ela, tão atencioso quanto um marido devotado, sempre buscando-lhe algo para beber, almofadas para as suas costas, e ela vicejava com sua atenção. Afeiçoou-se a Catarina e a mantinha conosco. Eu observava Catarina copiar cuidadosamente as maneiras das damas da corte, até ser capaz de distribuir as cartas ou pegar um alaúde com a mesma graça.
— Ela vai ser uma verdadeira garota Bolena — disse Ana de maneira aprovadora. — Graças a Deus ela tem o meu nariz e não o seu.
— Realmente agradeço a Deus todas as noites por isso — eu disse, embora Ana nunca percebesse o sarcasmo.
— Vamos procurar um bom marido para ela — disse Ana. — Sendo minha sobrinha, será um grande partido. O próprio rei vai se interessar em providenciar isso.
— Não quero ainda que se case, não contra a sua vontade — eu disse.
Ana riu.
— Ela é uma garota Bolena, tem de se casar com quem convier à família.
— Ela é minha filha — eu disse. — E não a quero vendida a quem fizer o maior lance. Você pode noivar Elizabeth ainda no berço, é um direito seu. Ela será princesa, um dia. Mas meus filhos podem viver a infância antes de se casarem.
Ana balançou a cabeça.
— Mas seu filho continua sendo meu — disse ela, empatando a discussão.
Trinquei os dentes.
— Nunca me esqueço disso — falei baixinho.
O tempo se manteve claro. Toda manhã, o solo ficava coberto da geada e os cães sentiam o cheiro forte de cervo ao atravessarem o parque e seguirem para a região rural. O ritmo da caça exigia demais dos cavalos, e Henrique trocava de montaria duas, três vezes ao dia, banhado do vapor do calor de sua capa grossa de inverno, esperando impacientemente o cavalariço aparecer correndo com o grande cavalo dançando na ponta das rédeas. Montava como um jovem porque se sentia de novo um jovem, capaz de ter um filho com uma esposa bonita. Catarina estava morta e ele podia se esquecer de que tinha existido algum dia. Ana esperava seu filho, e isso restaurara a fé em si mesmo. Deus estava sorrindo para Henrique, como ele achava que Deus deveria fazer. O país estava em paz e não havia nenhuma ameaça de invasão espanhola, agora que a rainha tinha morrido. A prova da decisão estava na consequência. Já que o país estava em paz e Ana estava grávida, Deus devia ter concordado com Henrique e tirado a sorte contra o Papa e o imperador espanhol. Certo de que ele e Deus concordavam nisso, assim como em todo o resto, Henrique era um homem feliz.
Ana estava satisfeita. Nunca antes sentira o mundo na ponta de seus dedos. Catarina tinha sido sua rival, a rainha fantoche que sempre obscurecera seus próprios passos ao trono, e agora Catarina estava morta. A filha de Catarina, que tinha ameaçado o direito dos filhos de Ana de governarem, tinha sido obrigada a admitir que ocuparia o segundo lugar, e a filha de Ana, Elizabeth, recebeu juramento de fidelidade de cada homem, mulher e criança do país — e aqueles que se recusaram a prestar o juramento ou estavam na Torre ou tinham sido executados. E o melhor de tudo, Ana carregava no ventre um bebê forte.
Henrique anunciou que haveria um torneio e que todo aquele que se considerasse um homem deveria pegar sua armadura e cavalo e participar. O próprio Henrique montaria, seu senso de juventude e confiança renovado o incitava a aceitar o desafio novamente. William, queixando-se principalmente da despesa, pediu emprestada a armadura de outro cavaleiro empobrecido e montou, tomando um imenso cuidado com seu cavalo, no primeiro dia do torneio. Não foi derrubado no chão, mas seu adversário foi facilmente declarado vencedor.
— Que Deus me ajude, casei-me com um covarde — eu disse quando veio me encontrar na tenda das mulheres, Ana sentada na frente, sob o toldo, e o restante de nós, bem agasalhadas com peles, em pé atrás dela.
— Graças a Deus — disse ele. — Meu cavalo saiu sem um arranhão, e prefiro isso à reputação de heroísmo.
— Você é um plebeu — eu disse, sorrindo.
Deslizou o braço ao redor de minha cintura e me puxou para si, para um beijo rápido e escondido.
— Tenho os gostos mais vulgares — sussurrou. — Pois amo minha mulher, amo um pouco de paz e tranquilidade, amo minha fazenda, e nenhuma outra refeição é melhor do que uma fatia de bacon e um pedaço de pão.
Aconcheguei-me a ele.
— Quer voltar para casa?
— Quando você também puder — replicou com calma. — Quando o bebê dela nascer e ela nos deixar partir.
Henrique competiu no primeiro dia e venceu até o segundo dia. Ana deveria estar lá para vê-lo, mas sentiu-se nauseada pela manhã e disse que desceria ao meio-dia. Ordenou que eu e várias outras damas ficássemos com ela. As outras foram a cavalo para as liças, usando suas roupas mais vistosas e coloridas, e os cavalheiros, alguns já de armadura, cavalgaram com elas.
— George vai cuidar da coisa Seymour — disse Ana, observando da janela.
— E o rei não estará pensando em outra coisa a não ser na justa — falei, tranquilizando-a. — Mais do que tudo, ele gosta de vencer.
Passamos a manhã em paz, em seus aposentos. Mandou estenderem a toalha de altar para ser bordada, e eu tentei resolver um pedaço grande e maçante de relva, enquanto ela fazia o manto de Nossa Senhora no outro extremo. Entre nós duas havia uma grande extensão de revelações: santos indo para o paraíso e demônios caindo no inferno. Então, ouvi um barulho repentino lá fora. Um cavaleiro galopando rápido para o pátio.
— O que é? — Ana levantou a cabeça de sua costura.
Ajoelhei-me no batente da janela para olhar lá embaixo.
— Alguém cavalgando como um louco para o pátio. Eu me pergunto o que...
Engoli as últimas palavras. Saindo apressadamente do pátio das cavalariças, estava a liteira real puxada por dois cavalos vigorosos.
— O que é? — perguntou Ana atrás de mim.
— Nada — respondi, pensando em seu bebê. — Nada.
Levantou-se e foi até a janela e olhou por cima do meu ombro, mas a liteira já tinha desaparecido.
— Alguém cavalgou para as cavalariças — eu disse. — Talvez o cavalo do rei tenha perdido uma ferradura. Sabe como ele odeia ficar sem cavalo, nem que seja por um instante.
Concordou com a cabeça, mas permaneceu olhando por cima do meu ombro para a estrada.
— Lá está tio Howard.
Seu estandarte à frente, um pequeno grupo de seus homens acompanhando-o, nosso tio vinha na direção do palácio, e entrou no pátio.
Ana voltou à sua cadeira. Dali a pouco, ouvimos a porta do palácio bater e seus passos e de seus homens ressoaram alto na escadaria. Ana ergueu a cabeça, e o olhou de modo inquiridor quando entrou na sua sala. Ele fez uma mesura. Algo nessa mesura, mais profunda do que a que lhe costumava fazer, me alertou. Ana pôs-se de pé, sua costura caindo de seu colo no chão, uma mão na boca, a outra apoiada em seu corpete alargado.
— Tio?
— Lamento informar que Sua Majestade caiu de seu cavalo.
— Machucou-se?
— Gravemente.
Ana ficou lívida, e oscilou.
— Precisamos nos preparar — disse meu tio com determinação.
Empurrei Ana para uma cadeira e olhei para ele.
— Preparar para o quê?
— Se ele morrer, precisaremos garantir Londres e o norte. Ana deve escrever. Terá de ser regente até podermos estabelecer um conselho. Eu a representarei.
— Morrer? — repetiu Ana.
— Se ele morrer, teremos de manter o país unido — repetiu meu tio. — Vai levar muito tempo até o bebê que está na sua barriga se tornar homem. Temos de fazer planos. Temos de estar prontos para defender o país. Se Henrique morrer...
— Morrer? — perguntou ela de novo.
Tio Howard olhou para mim.
— Sua irmã lhe dirá. Não há tempo a perder. Temos de proteger o reino.
Ana ficou lívida com o choque, tão apática quanto seu marido. Não conseguia imaginar um mundo sem ele. Era completamente incapaz de fazer o que meu tio mandava ou de proteger o reino, sem o rei governando.
— Eu faço isso — eu disse rapidamente. — Vou redigi-la e assiná-la. Não pode lhe pedir isso, tio Howard. Ela não deve se preocupar, tem de proteger o bebê. A nossa letra é igual, já passamos uma pela outra antes. Posso escrever por ela, e assinar por ela também.
Ele animou-se ao ouvir isso. Para ele uma garota Bolena era sempre igual à outra. Puxou um banco para a escrivaninha.
— Comece — disse ele sucintamente. — Afianço a vós...
Ana recostou-se na cadeira, a mão na barriga, a outra na boca, olhando pela janela. Quanto mais tempo tivesse de esperar, pior seria o estado do rei. Um homem que sofria uma queda era rapidamente levado para casa. Um homem ameaçado de morrer tem de ser transportado com mais cuidado. Enquanto Ana esperava, olhando para a entrada do pátio das cavalariças, me dei conta de que toda a nossa segurança estava se desmoronando. Se o rei morresse, ficaríamos, todos nós, arruinados. O país poderia se fragmentar com os lordes lutando por conta própria. Seria como antes de o pai de Henrique tê-lo unificado: York contra Lancaster, cada homem por si. Seria um país selvagem, com cada condado com seu próprio senhor e ninguém para se ajoelhar ao verdadeiro rei.
Ana percebeu minha expressão consternada, o rosto baixo para a reivindicação de regência durante a infância de sua filha, Elizabeth.
— Morto? — me perguntou.
Levantei-me da mesa e segurei suas mãos frias.
— Queira Deus que não — repliquei.
Eles o trouxeram tão vagarosamente que a liteira mais parecia um esquife. George vinha na frente, William e o resto do grupo da justa, vestido elegantemente, atrás, dispersos e em um silêncio apreensivo.
Ana emitiu um gemido e caiu, seu vestido ondulando à sua volta. Uma das criadas a pegou e a carregamos para seu quarto, a deitamos, e mandei um pajem buscar correndo hipocraz e um médico. Desatei seu corpete e senti sua barriga, sussurrando uma prece em silêncio, rezando para que o bebê estivesse seguro.
Minha mãe chegou com a bebida e lançou um olhar a Ana, lívida, que tentava se levantar.
— Fique deitada — disse ela rispidamente. — Quer estragar tudo?
— Henrique? — perguntou Ana.
— Acordou — mentiu minha mãe. — Sofreu uma queda feia, mas está bem.
Pelo canto do olho, vi meu tio fazer o sinal da cruz e sussurrar uma palavra de prece. Nunca tinha visto esse homem austero apelar para a ajuda de ninguém. Minha filha Catarina espiou pela porta e recebeu um sinal para entrar com a taça de vinho que seria dada a Ana.
— Termine a carta de regência — disse meu tio a meia-voz. — Isso é mais importante do que qualquer outra coisa.
Lancei um olhar demorado a Ana e fui para a sala de audiências, onde peguei de novo a pena. Redigimos três cartas: a Londres, ao norte e ao parlamento, e assinei as três como Ana, rainha da Inglaterra. O médico chegou nesse meio-tempo, seguido de dois droguistas. Mantendo a cabeça baixa, em um mundo que se desintegrava, eu estava provocando o destino ao assinar como rainha da Inglaterra.
A porta se abriu e George entrou, parecendo aturdido.
— Como está Ana? — perguntou.
— Desmaiada — respondi. — E o rei?
— Delirando — sussurrou. — Ele não sabe onde está. Está perguntando por Catarina.
— Catarina? — repetiu meu tio tão prontamente quanto um espadachim aponta sua espada. — Ele está perguntando por ela?
— Não sabe onde está. Acha, simplesmente, que foi derrubado de um cavalo em uma justa anos atrás.
— Vocês dois vão ficar com ele — disse-me meu tio. — E o mantenham calado. Não pode mencionar o nome dela. Não podemos deixar que a chame em seu leito de morte, Elizabeth perderá o trono para Mary, se isso se espalhar.
George assentiu com a cabeça e me levou ao salão. Não o transportaram lá para cima. Recearam que caísse. Ele pesava muito e não ficaria quieto. Juntaram duas das mesas e colocaram a maca em cima, e ele estava agitado, se movendo de um lado para o outro sem parar. George me conduziu pelo círculo de homens assustados e o rei me viu. Seus olhos azuis se estreitaram lentamente ao me reconhecer.
— Caí, Maria — sua voz dava dó, como a de um menino.
— Pobrezinho — aproximei-me, peguei sua mão e a levei ao coração. — Está doendo?
— O corpo todo — replicou, fechando os olhos.
O médico veio por trás de mim e sussurrou:
— Pergunte se pode mover os pés e os dedos, se sente todas as partes do corpo.
— Pode mexer os pés, Henrique?
Todos vimos suas botas se contorcerem.
— Sim.
— E todos os dedos?
Senti sua mão apertar a minha com mais força.
— Sim.
— Dói lá dentro, meu amor? A sua barriga dói?
Sacudiu a cabeça.
— Dói por toda parte.
Olhei para o médico.
— Temos de sangrá-lo.
— Sem saber onde foi ferido?
— Pode estar sangrando internamente.
— Deixem-me dormir — disse Henrique baixinho. — Fique comigo, Maria.
Virei-me do médico para olhar o rei. Ele parecia tão mais jovem, ali deitado quieto e sonolento, que quase achei que tinha sido o jovem príncipe que eu tinha adorado. Deitado, a gordura de suas bochechas desapareceu e a bela linha de sua testa ficava inalterada. Esse homem era o único que conseguiria manter o país unificado. Sem ele, todos nos arruinaríamos, não somente os Howard, não somente nós, os Bolena, mas todos os homens, mulheres e crianças de todas as paróquias do país. Ninguém mais conseguiria impedir que os lordes abocanhassem a coroa. Havia quatro herdeiros com bons motivos para reivindicar o trono: a princesa Mary, minha sobrinha Elizabeth, meu filho Henrique e o bastardo Fitzroy. A Igreja já estava em rebuliço, o imperador espanhol ou o rei francês conseguiriam uma ordem do Papa para virem restaurar a ordem e, então, nunca mais nos livraríamos deles.
— Vai se sentir melhor se dormir? — perguntei.
Abriu seus olhos azuis e sorriu para mim.
— Oh, sim — falou com a voz fraca.
— Vai ficar quieto se o carregarmos para a sua cama?
Balançou a cabeça.
— Segure a minha mão.
Virei-me para o médico.
— Podemos fazer isso? Levá-lo para a cama e deixá-lo descansar?
Ele pareceu aterrorizado. O futuro da Inglaterra estava em suas mãos.
— Acho que sim — replicou hesitante.
— Bem, aqui, ele não pode dormir — apontei.
George avançou e escolheu meia dúzia dos homens de aparência mais forte e os dispôs em volta da maca.
— Segure a sua mão, Maria, e faça com que fique quieto. Vocês suspendam quando eu der o sinal e vão para a escada. Descansamos no primeiro patamar, depois prosseguimos. Um, dois, três, levantem.
Usaram de toda força para o levantarem e manterem a maca nivelada. Eu segui do lado, a mão segurada com firmeza pelo rei. Acertaram uma passada larga, e subimos para os aposentos do rei. Alguém correu à frente e abriu a porta dupla que dava para a sala de audiências e, depois, mais além, sua câmara privada. Puseram a liteira na cama, sacudindo-o muito, e ele gemeu de dor. Depois tivemos de tirá-lo da maca e acomodá-lo na cama. Não houve outra alternativa a não ser uns subirem na cama e o levantarem pelos ombros e pés, enquanto os outros retiravam a liteira de debaixo.
Percebi a expressão do médico diante desse tratamento grosseiro e me dei conta de que, se o rei estivesse com hemorragia interna, provavelmente tínhamos acabado de matá-lo. Ele gemia de dor e, por um momento, achei que era a respiração ruidosa dos moribundos e que todos seríamos acusados disso. Mas então abriu os olhos e se dirigiu a mim:
— Catarina? — perguntou.
Houve um sussurrar supersticioso de todos os homens à minha volta. Olhei para George.
— Fora — disse ele direto. — Todo mundo para fora.
Sir Francis Weston aproximou-se e cochichou algo em seu ouvido. George escutou com atenção e agradeceu tocando no braço do amigo.
— São ordens da rainha que Sua Majestade seja deixado com os médicos, com a sua querida cunhada, Maria, e comigo — comunicou George. — Os outros podem esperar lá fora.
Deixaram o quarto com relutância. Ouvi meu tio, lá fora, declarar alto que se o rei ficasse incapacitado, a rainha seria regente pela princesa Elizabeth, e que ninguém precisaria ser lembrado que jurara fidelidade à princesa Elizabeth, a única e legítima herdeira do rei.
— Catarina? — perguntou Henrique de novo, olhando para mim.
— Não, sou eu, Maria — repliquei calmamente. — Maria Bolena, agora, Maria Stafford.
Hesitante, pegou minha mão e levou-a aos lábios.
— Meu amor — disse ele, baixinho, e nenhum de nós soube a qual dos seus muitos amores ele se dirigia: à rainha que morrera amando-o, à rainha que estava sofrendo de medo no mesmo palácio ou a mim, a garota que amara no passado.
— Quer dormir? — perguntei ansiosamente.
Seus olhos azuis estavam enevoados, ele parecia um bêbado.
— Dormir. Sim — murmurou.
— Vou ficar ao seu lado.
George puxou uma cadeira para eu me sentar, sem retirar a mão da mão do rei.
— Reze a Deus para que acorde — disse George, olhando o rosto lívido de Henrique, e suas pálpebras trêmulas.
— Amém — repliquei. — Amém.
Ficamos com ele até metade da tarde, os médicos ao pé da cama, George e eu na cabeceira, minha mãe e meu pai entrando e saindo o tempo todo, meu tio em alguma parte do palácio, conspirando.
Henrique estava suando e um dos médicos começou a afastar as cobertas e, então, se deteve. Em sua gorda panturrilha, onde se machucara em um torneio anos atrás, havia uma mancha de sangue e pus. O ferimento, que nunca tinha cicatrizado como devia, abrira-se de novo.
— Terá de ser sangrado — disse o médico. — Vamos colocar sanguessugas em sua pele para que suguem o veneno.
— Não aguento olhar — confessei tremendo a George.
— Sente-se à janela e não se atreva a desmaiar — disse ele de maneira rude. — Eu a chamo quando as retirarem, e poderá voltar para a sua cabeceira.
Fiquei no vão da janela, sem olhar para trás, tentando não escutar o tinido das jarras ao porem as lesmas pretas sobre as pernas do rei para que sugassem a pele aberta. Então George chamou.
— Venha se sentar ao lado dele, não precisa olhar — e voltei ao meu lugar na cabeceira da cama, só me afastando quando as sanguessugas se tornaram bolas de gosma preta, saciadas, e foram retiradas do ferimento.
No meio da tarde, quando eu segurava e acariciava a mão do rei, como se afagasse um cachorrinho doente, de repente ele me apertou a mão, seus olhos se abriram e seu olhar foi límpido.
— Deus meu — disse ele —, o meu corpo todo dói.
— Sofreu uma queda de seu cavalo — eu disse, tentando avaliar se ele sabia onde estava.
— Eu me lembro — disse ele. — Não me lembro de como vim para o palácio.
— Nós o carregamos — George veio do vão da janela. — Nós o trouxemos para cima. Quis Maria ao seu lado.
Deu-me um sorriso surpreso.
— Quis?
— Não estava em seu juízo perfeito — eu disse. — Delirou. Graças a Deus, está bem de novo.
— Enviarei uma mensagem à rainha — George ordenou que um dos guardas fosse lhe dizer que o rei tinha acordado e estava bem de novo.
Henrique deu um risinho.
— Devem ter, todos vocês, suado um bocado — mexeu-se na cama, e de repente, fez uma careta de dor. — Deus! Minha perna.
— Seu antigo ferimento tornou a se abrir — eu disse. — Colocaram sanguessugas sobre ele.
— Sanguessugas. Tinham de ter aplicado um cataplasma. Catarina sabe como fazer. Pergunte a ela... — interrompeu-se. — Alguém deveria saber como tratar disso — falou. — Pelo amor de Deus. Alguém deve saber a receita — ficou em silêncio por um instante. — Dê-me vinho.
Um pajem surgiu correndo com uma taça e George levou-a à boca do rei. Henrique bebeu-a de um só gole. Sua cor retornou e sua atenção voltou-se para mim.
— Quem fez o primeiro gesto? — perguntou com curiosidade. — Seymour, Howard ou Percy? Quem manteria meu trono aquecido para a minha filha e se designaria regente durante toda a sua menoridade?
George conhecia Henrique muito bem para cair em uma confissão hilariante.
— A corte inteira estava de joelhos — disse ele. — Ninguém pensou em outra coisa senão a sua saúde.
Henrique assentiu com a cabeça, sem acreditar.
— Vou dar a notícia à corte — disse George. — Oferecerão uma Missa de Ações de Graças. Estávamos muito receosos.
— Traga-me mais um pouco de vinho — disse Henrique com uma carranca. — Meu corpo dói como se todos os ossos tivessem se quebrado.
— Devo sair? — perguntei.
— Fique — replicou sem dar muita atenção. — Mas levante os travesseiros nas minhas costas. Sinto as costas presas. Quem foi o idiota que me deitou tão reto?
Pensei no momento em que o tiramos da maca para o leito.
— Tivemos medo de movê-lo.
— Galinhas no quintal da fazenda — disse ele com uma leve satisfação — quando o galo é levado.
— Graças a Deus, não foi levado.
— Sim — disse ele com um prazer mesquinho. — Seria difícil para os Howard e os Bolena, se eu morresse hoje. Fizeram muitos inimigos em sua ascensão que ficariam felizes em vê-los cair de novo.
— Meus pensamentos eram só por Sua Alteza — eu disse, com prudência.
— E obedeceram à minha vontade e colocaram Elizabeth no trono? — perguntou com uma aspereza súbita. — Creio que vocês, Howard, teriam se submetido a um dos seus. Mas e os outros?
Enfrentei seu olhar.
— Não sei.
— Se eu não estivesse mais aqui, sem um príncipe para me suceder, os juramentos de lealdade talvez não se sustentassem. Acha que seriam leais à princesa?
Sacudi a cabeça.
— Não sei. Não poderia afirmar nada. Não fiquei nem mesmo com a corte, passei o tempo todo aqui, cuidando de Sua Majestade.
— Você apoiaria Elizabeth — disse ele. — Ana seria regente com seu tio por trás, acho. Um Howard governando a Inglaterra. Depois, mais uma mulher para suceder a outra, de novo governada por um Howard — sacudiu a cabeça e sua expressão se obscureceu. — Ela tem de me dar um filho — uma veia latejou em sua têmpora e ele pôs a mão na cabeça como se para aliviá-la com a ponta dos dedos. — Vou me deitar de novo — disse ele. — Tire estes malditos travesseiros. Mal consigo enxergar com essa dor atrás dos olhos. Uma garota Howard como regente e uma garota Howard para sucedê-la. Uma promessa de nada além de um desastre. Dessa vez, ela tem de me dar um filho.
A porta abriu-se e Ana entrou. Continuava muito pálida. Dirigiu-se vagarosamente à cama de Henrique e pegou a sua mão. Os olhos dele giraram com dor para examinar sua face sem cor.
— Achei que ia morrer — disse ela sem rodeios.
— E o que você teria feito?
— Teria feito o melhor possível como rainha da Inglaterra — retorquiu ela. Manteve a mão na barriga enquanto falava.
Ele pôs sua mão maior sobre a dela.
— É melhor que tenha um menino aí, senhora — disse ele friamente. — Acho que o seu melhor possível como rainha da Inglaterra não seria suficiente. Preciso de um menino para manter este país unificado. A princesa Elizabeth e seu tio ardiloso não são o que quero deixar quando morrer.
— Quero que prometa que nunca mais participará de uma justa — disse ela com paixão.
Ele virou a cabeça.
— Deixe-me descansar — disse ele. — Você e seus juramentos e promessas. Que Deus me ajude. Quando deixei a rainha, achei que teria algo melhor do que isso.
Foi o momento mais gélido que eu tinha presenciado entre os dois. Ana nem mesmo discutiu. Sua face estava tão pálida quanto a dele. Os dois pareciam fantasmas, semimortos de seu próprio medo. O que poderia ter sido um reencontro de amor tinha servido somente para lhes lembrar como era frágil o seu domínio sobre o país. Ana fez uma reverência ao corpo pesado na cama e saiu. Andou devagar como se carregasse um fardo pesado. À porta, fez uma pausa.
Observei-a se transformar. Jogou a cabeça para trás, os lábios se curvaram em um sorriso. Seus ombros se ergueram e ela se empertigou um pouquinho, como um dançarino quando a música começa. Então fez um sinal com a cabeça para o guarda à porta, ele a abriu, e ela saiu para o burburinho da corte, com o semblante repleto de gratidão por Deus, para lhes dizer que o rei estava bem, que havia feito piada com a sua queda, que voltaria a participar dos torneios assim que pudesse, e que eram felizes.
Henrique se tornou calado e pensativo ao se recuperar da queda. As dores em seu corpo foram um prenúncio da velhice. O ferimento em sua perna exsudava uma mistura de sangue e pus amarelo, tinha de mantê-lo com uma atadura espessa o tempo todo, e quando se sentava, colocava a perna sobre um escabelo. Sentia-se humilhado ao ver aquilo, logo ele que sempre se orgulhara de suas pernas fortes e sua postura tenaz. Agora, mancava ao andar e a linha de sua panturrilha tinha sido destruída pela bandagem grossa. Pior que isso, ele exalava o cheiro de um galinheiro sujo. Henrique, que fora o Príncipe Dourado da Inglaterra, reconhecido como o homem mais bonito da Europa, viu a velhice se aproximar, quando seria manco, sentindo dores constantes e fedendo como um monge sujo.
Ana não conseguia entender.
— Pelo amor de Deus, marido, fique feliz! — disse-lhe. — Você foi poupado, o que quer mais?
— Nós dois fomos poupados — disse ele. — Pois o que seria de você se eu não estivesse mais aqui?
— Eu me sairia muito bem.
— Acho que todos vocês se sairiam muito bem. Se eu morresse, você e os seus se sentariam em meu trono ainda quente.
Ela poderia ter contido a língua, mas estava acostumada a enfurecer-se contra ele.
— Está querendo me insultar? — perguntou ela. — Acusa minha família de outra coisa que não lealdade absoluta?
A corte, aguardando para jantar no salão, conversava um pouco mais baixo, querendo escutar.
— Os Howard são leais primeiro a si mesmos, segundo a seu rei — retorquiu Henrique.
Vi a cabeça de Sir John Seymour se erguer e seu sorriso dissimulado.
— Minha família sacrificou a vida a seu serviço — respondeu Ana, rapidamente.
— A senhora e sua irmã certamente sacrificaram — interveio o bobo de Henrique, tão rápido quanto um açoite, e houve uma grande gargalhada. Fiquei da cor de um camarão e olhei para William. Vi sua mão ir para onde estaria sua espada, mas não fazia sentido injuriar um bobo, especialmente se o rei também estava rindo.
Henrique estendeu o braço e deu um tapinha na barriga de Ana.
— Por uma boa causa — disse ele.
Irritada, ela afastou sua mão. Ele se imobilizou, seu bom humor desaparecendo em um instante.
— Não sou um cavalo — disse ela rispidamente. — Não gosto de ser afagada como se fosse.
— Não — disse ele com frieza. — Se eu tivesse um cavalo tão genioso como você, o teria usado como comida para os cães.
— Faria melhor montando essa égua e a domando — desafiou ela.
Esperamos a sua resposta fogosa de sempre. Houve um silêncio que se estendeu por um minuto. O sorriso de Ana tornou-se mais tenso.
— Algumas éguas não valem serem rompidas — replicou ele baixinho.
Somente poucas pessoas sentadas próximas à mesa real poderiam tê-lo escutado. Ana ficou lívida, e então, em um instante, virou a cabeça e riu, uma risada aguda sussurrada, como se o rei tivesse dito algo irresistivelmente engraçado. A maioria das pessoas manteve a cabeça baixa e fingiu estar falando com seus vizinhos de mesa. Seus olhos passaram por mim direto para George, que a olhou de volta, sustentando o olhar por um momento, tão palpável quanto uma mão firme.
— Mais vinho, marido? — perguntou Ana sem uma alteração na voz e o cavalheiro deu um passo à frente e serviu o rei e a rainha, e o jantar teve início.
Henrique ficou emburrado o tempo todo. Nem mesmo a dança e a música animaram-no, embora bebesse e comesse ainda mais do que o usual. Levantou-se e andou mancando e com dores no meio da corte, dizendo algo aqui, escutando ali um cavalheiro que lhe fez uma reverência e pediu um favor. Veio à nossa mesa, onde se sentavam as damas de honra e se deteve entre mim e Jane Seymour. Nós duas nos levantamos, uma ao lado da outra, e ele olhou para os olhos baixos de Jane quando ela fez a reverência.
— Estou cansado, Srta. Seymour — disse ele. — Gostaria de estar em Wulfhall e que pudesse me preparar uma bebida quente com as ervas de sua horta.
Ela se ergueu da reverência com o sorriso mais doce.
— Eu também gostaria — disse ela. — Faria qualquer coisa para ver Sua Majestade repousar e aliviar sua dor.
O Henrique que eu conhecia teria respondido: “Qualquer coisa?”, pelo prazer de uma piada obscena. Mas esse novo Henrique puxou um banco e fez um sinal para que nos sentássemos, cada uma de um lado seu.
— Pode curar contusões e inchaços, mas não a velhice — disse ele. — Tenho 45 anos e nunca senti a minha idade antes.
— É apenas a queda — replicou Jane, a voz tão doce e confortante quanto leite pingando no balde. — É claro que está machucado e cansado, e deve estar exausto com o trabalho para proteger o reino. Sei que pensa nisso dia e noite.
— Um belo legado, se tivesse um filho a quem deixá-lo — disse ele pesaroso. Os dois olharam na direção da rainha. Ana, chispando de irritação, devolveu o olhar.
— Se Deus quiser, a rainha terá um menino dessa vez — disse Jane docemente.
— Reza por mim realmente, Jane? — perguntou ele baixinho.
Ela sorriu.
— É meu dever rezar por meu rei.
— Vai rezar por mim hoje à noite? — perguntou ele ainda mais baixo. — Quando estou insone e sentindo dores em cada osso do meu corpo, e amedrontado, gostaria de pensar que está rezando por mim.
— Estarei — replicou ela simplesmente. — Será como se eu estivesse no quarto com Sua Majestade, com minha mão em sua cabeça, ajudando-o a dormir.
Eu me contive. Na mesa do lado, vi minha filha Catarina, os olhos esbugalhados, tentando entender essa nova forma de flerte feita em um tom de piedade melosa. O rei levantou-se com um gemido de dor.
— Um braço — disse ele por cima do ombro. Meia dúzia de homens se adiantaram para ter a honra de ajudar Sua Majestade a voltar para o trono na plataforma. Rejeitou meu irmão e escolheu o irmão de Jane. Ana, George e eu observamos em silêncio, enquanto um Seymour ajudava o rei a retornar ao trono.
— Vou matá-la — disse Ana inflexível.
Eu estava deitada em sua cama, apoiada, preguiçosamente, em um braço. George espreguiçava-se diante da lareira, Ana estava sentada na frente do espelho, e uma criada penteava seu cabelo.
— Farei isso por você — eu disse. — Dando uma de santa.
— Ela é muito boa — observou George judiciosamente, como alguém elogiando um bom dançarino. — Muito diferente de vocês duas. Ela tem pena dele o tempo todo. Acho isso tremendamente sedutor.
— Uma pequena puxa-saco — disse Ana com raiva. Tirou o pente da mão da criada. — E você pode ir.
George nos serviu mais uma taça de vinho.
— Também tenho de ir. William está esperando.
— Você fica — falou Ana peremptoriamente.
— Sim, Majestade — repliquei obedientemente.
Lançou-me um olhar severo, de alerta.
— Devo expulsar a coisa Seymour da corte? — perguntou a George. — Não a quero afetando timidez com o rei o dia todo. Isso me deixa furiosa.
— Deixe-a em paz — aconselhou George. — Quando ele estiver bem de novo, vai querer algo mais ardente. Mas pare de disputar a atenção dele. Ontem, se irritou com você e você o provocou.
— Não aguento vê-lo tão digno de pena — disse ela. — Não morreu, morreu? Por que ficar tão infeliz por nada?
— Ele está com medo. E não é mais um jovem.
— Se ela sorrir afetado para ele mais uma vez, vou esbofeteá-la — disse ela. — Pode avisá-la por mim, Maria. Se eu pegá-la olhando para ele com esse sorriso de Virgem Maria na cara, eu o tirarei fora com um tapa.
Deslizei para fora da cama.
— Direi alguma coisa a ela. Talvez não essas palavras exatamente. Posso ir agora, Ana? Estou cansada.
— Oh, está bem — disse ela, com irritação. — Você vai ficar comigo, não vai, George?
— Sua mulher vai comentar — avisei. — Ela já diz que você não sai daqui.
Achei que Ana ia deixar para lá, mas os dois trocaram um olhar rápido, e George levantou-se para sair.
— Tenho de estar sempre só? — perguntou Ana. — Caminhar sozinha, rezar sozinha, deitar-me sozinha?
George hesitou diante do apelo desolado.
— Sim — repliquei com firmeza. — Escolheu ser rainha. Eu avisei que isso não lhe traria alegrias.
De manhã, Jane Seymour e eu ficamos, casualmente, lado a lado, no caminho para a missa. Passamos pela porta aberta do rei e o vimos sentado à mesa, a perna machucada esticada sobre uma cadeira, um escrivão ao seu lado, lendo as cartas e as pondo na sua frente para serem assinadas. Quando Jane passou, diminuiu o passo e sorriu para ele. Ele fez uma pausa e a observou, a pena em sua mão, a tinta secando no bico.
Jane e eu nos ajoelhamos uma ao lado da outra, na capela da rainha, e assistimos à missa celebrada diante do altar embaixo.
— Jane — falei baixinho.
Ela abriu os olhos, estava distante, orando.
— Sim, Maria? Perdoe-me, eu estava rezando.
— Se continuar a flertar com o rei com esses sorrisinhos manhosos, um de nós, Bolena, arranca seus olhos.
Ana adotou o hábito de caminhar à beira do rio até a pista de boliche, passando pela aleia de teixos, as quadras de tênis, retornando então ao palácio, todos os dias durante a sua gravidez. Eu sempre caminhava com ela, e George estava sempre ao seu lado. A maior parte de suas damas e alguns cavalheiros do rei também a acompanhavam, já que o rei não estava caçando à tarde. George e Sir Francis Weston caminhavam cada um de um lado de Ana, e a faziam rir, davam-lhe o braço e a ajudavam a subir os degraus da pista de boliche, e um do nosso círculo particular, Henry Norris, Sir Thomas Wyatt ou William caminhava comigo.
Um dia, Ana sentiu-se cansada e pegou um atalho. Voltamos ao palácio com ela de braço dado com George e eu, alguns passos atrás, com Henry Norris. Os guardas abriram as portas de seus aposentos ao nos verem chegar e, assim, demos com a cena de Jane Seymour pulando do colo do rei, ele tentando se levantar, ajeitando a capa, e querendo parecer indiferente, mas como ainda mancava, cambaleou e pareceu um bobo. Ana entrou como um tufão.
— Saia, puta — disse ela a Jane Seymour. Jane fez uma reverência e disparou para fora. George tentou levar Ana para seus aposentos internos, mas ela atacou o rei.
— O que estava fazendo com essa coisa no seu colo? Ela é algum tipo de cataplasma?
— Estávamos conversando... — respondeu ele, sem jeito.
— Ela fala tão baixo que tem de pôr a língua em seu ouvido?
— Eu estava... era...
— Sei o que era! — gritou Ana. — A sua corte toda sabe o que era. Nós todos tivemos o privilégio de ver o que era. Um homem que diz que está cansado demais para sair a caminhar, esparramado à vontade com uma espertinha fuçando no seu colo.
— Ana... — disse ele. Todos, menos Ana, perceberam o tom de advertência em sua voz.
— Não vou admitir isso! Ela tem de deixar a corte! — falou.
— Os Seymour são amigos leais da coroa e bons servidores — disse ele pomposamente. — Eles ficam.
— Ela não é melhor do que uma prostituta em uma casa de banhos — gritou Ana enfurecida. — E não é amiga minha. Não a quero como dama.
— Ela é uma jovem delicada e pura e...
— Pura? O que ela estava fazendo no seu colo? Rezando?
— Basta! — disse ele com um arroubo de cólera. — Ela continua como dama. A sua família permanece na corte. Foi longe demais, senhora.
— Não fui! — replicou ela. — Tenho a última palavra quanto a quem me serve. Sou rainha e estes são meus aposentos. Não quero ter aqui alguém de quem não gosto.
— Terá os servidores que eu escolher para a senhora — insistiu ele. — Eu sou o rei.
— Não vai me dar ordens — disse ela, sem fôlego, a mão no coração.
— Ana — eu disse. — Acalme-se — ela nem mesmo me ouviu.
— Todos recebem ordens minhas — replicou ele. — Vai fazer o que eu mandar, pois sou seu marido e seu rei.
— Que eu me dane se fizer! — gritou ela, virou-se e foi para a sua câmara privada. Abriu a porta e gritou, do limiar, para ele: — Você não me domina, Henrique!
Mas ele não podia correr atrás dela. Esse foi seu erro fatal. Se pudesse ter corrido atrás dela, poderia tê-la pego, e os dois cairiam na cama, como tinham feito tantas vezes. Mas a sua perna doía e ela era jovem e atrevida, e em vez de ele se excitar, sentiu-se insultado. Ressentiu-se de sua juventude e de sua beleza, e não mais se divertia com isso.
— É você que é a puta, e não ela! — gritou ele. — Não pense que me esqueci do que fez para subir no colo do rei. Jane Seymour nunca conhecerá metade dos artifícios que usou comigo! Artifícios franceses! Artifícios de putas! Não me seduzem mais, mas não me esqueci deles.
Ouviu-se um arfar chocado da corte e George e eu trocamos um olhar de horror absoluto. A porta de Ana bateu e o rei virou-se para a corte, e George e eu encontramos seu olhar fulminante com a apatia do terror absoluto.
Ele se pôs de pé e disse:
— Um braço — Sir John Seymour empurrou George e o rei se apoiou nele e se dirigiu, devagar, a seus aposentos, seus cavalheiros atrás. Observei-o ir e me dei conta de que minha garganta doía de tão seca.
A mulher de George, Jane Parker, estava ao meu lado.
— Que artifícios ela costumava usar?
Tive a súbita lembrança de ensiná-la a usar seu cabelo, sua boca, suas mãos nele. George e eu lhe ensinamos tudo o que sabíamos, aprendido na época em que George frequentara casas de banho da Europa com prostitutas francesas, senhoras espanholas e putas inglesas, e tudo o que eu sabia do casamento, de deitar com um homem e seduzir outro. Havíamos treinado Ana a fazer o que Henrique gostava, coisas de que todos os homens gostam, coisas expressamente proibidas pela Igreja. Tínhamos lhe ensinado a se despir na sua frente, levantar seu pau aos pouquinhos, a lhe mostrar suas partes íntimas, havíamos lhe ensinado a lamber seu pau da base à cabeça com longos toques langorosos. Tínhamos lhe ensinado as palavras que ele gostava de ouvir e o que ele queria imaginar. Tínhamos lhe dado as habilidades de uma prostituta e agora estava sendo censurada por isso. Encontrei o olhar de George e percebi que ele tinha a mesma recordação.
— Oh, Deus, Jane — disse ele. — Não sabe que o rei, quando está com raiva, diz qualquer coisa? Nada, é o que ela fez. Nada além de um beijo e carícias. O tipo de coisa que todo marido e mulher fazem em seus dias de alívio — fez uma pausa e se corrigiu. — Nós não, é claro. Mas você não é uma mulher adorável, é?
Ela virou-se por um momento, como se ele a tivesse beliscado.
— Mas é claro — disse ela, tão baixo como uma serpente se esgueirando por uma samambaia —, na verdade, você não gosta de beijar mulheres, a menos que sejam suas irmãs.
Deixei Ana sozinha por meia hora e, então, bati na sua porta e me esgueirei para dentro da sala. Fechei a porta na cara curiosa das damas de honra e a procurei. A sala estava no escuro do começo da tarde de inverno, ela não tinha acendido velas e somente a luz da lareira tremeluzia nas paredes e no teto. Estava deitada de bruços e, por um momento, achei que dormia. Então se virou e vi seu rosto pálido e seus olhos escuros.
— Meu Deus, ele estava com raiva — sua voz estava rouca de gritar.
— Você o irritou. Você pediu isso, Ana.
— O que eu podia fazer? Quando ele me insulta na frente de toda a corte?
— Ser cega — aconselhei-a. — Olhar para o outro lado. Como a rainha Catarina fazia.
— A rainha Catarina perdeu. Olhou para o lado e o peguei. O que fazer para segurá-lo?
Não respondemos nada. Havia somente uma resposta. Havia sempre uma única resposta, a mesma resposta.
— Eu estava morrendo de raiva — disse ela. — Era como se fosse vomitar minhas entranhas.
— Tem de se acalmar.
— Como posso ficar calma com Jane Seymour em toda parte?
Fui até a cama e tirei o capelo de sua cabeça.
— Tem de se aprontar para o jantar — eu disse. — Desça bem bonita e tudo será esquecido.
— Não por mim — disse ela com amargura. — Eu não vou esquecer.
— Então, aja como se fosse — aconselhei-a. — Ou todos vão se lembrar de que ele a insultou. Era melhor que tivesse agido como se nada tivesse sido dito.
— Chamou-me de prostituta — disse ela com ressentimento. — Ninguém vai se esquecer disso.
— Todas somos putas em comparação a Jane — repliquei animada. — E daí? Você é a sua esposa, não é? Com um bebê legítimo na barriga. Pode lhe chamar do que quiser quando estiver de mau humor, e pode reconquistá-lo quando se acalmar. Reconquiste-o hoje à noite, Ana.
Chamei sua criada e Ana escolheu o vestido. Escolheu um branco e prateado, como se afirmasse a sua pureza mesmo quando a corte tinha ouvido ser acusada de usar artifícios de puta. Seu corpete era bordado com pérolas e diamantes, a bainha do vestido confeccionada com fio de prata. Quando pôs o capelo em seu cabelo preto, pareceu realmente uma rainha, uma rainha da neve, uma rainha de beleza imaculada.
— Muito bom — eu disse.
Ana deu-me um sorriso cansado.
— Tenho de fazer isso e continuar a fazê-lo eternamente — disse ela. — Vou dançar para manter Henrique interessado. O que vai acontecer quando eu estiver velha e não puder mais dançar? As garotas em meus aposentos ainda serão jovens e belas. O que vai acontecer então?
Eu não tinha como confortá-la.
— Vamos completar esta noite. Não importa o futuro. E quando tiver um filho, depois mais filhos, não vai se preocupar em envelhecer.
Ela deixou a mão sobre o corpete bordado.
— Meu filho — disse ela baixinho.
— Está pronta?
Ela assentiu com a cabeça e se dirigiu à porta. Com outro movimento, jogou os ombros para trás e levantou o queixo, sorriu, seu sorriso confiante e estonteante, e fez um sinal com a cabeça para a criada abrir a porta. Saiu para enfrentar os comentários espalhados de seus próprios aposentos, brilhando como um anjo.
Percebi que a família acabou sendo um apoio, e que meu tio deveria ter ouvido o suficiente para ficar receoso. Meu pai e minha mãe estavam lá. Meu tio estava nos fundos da sala em uma conversa amigável com Jane Seymour, o que me fez parar para pensar. George estava na soleira da porta, sorriu e então avançou e pegou a mão de Ana. Houve um ligeiro murmúrio de interesse em seu belo vestido, e seu sorriso desafiador, e então a sala agitou-se com as pessoas dispersando e formando novos grupos. Sir William Brereton apareceu e beijou sua mão e sussurrou que ela parecia um anjo caído na terra, Ana riu e replicou que ela não tinha caído, mas simplesmente chegado de visita, de modo que a fantasia sugestiva foi nitidamente alterada. Ouviu-se então um farfalhar na porta e Henrique entrou com passos pesados, sua perna ferida causando-lhe um andar desajeitado, sua cara redonda com novos sulcos de dor. Cumprimentou Ana com a cabeça e a expressão carrancuda.
— Bom dia, senhora — disse ele. — Está pronta para o jantar?
— É claro, marido — replicou, doce como mel. — Fico feliz por ver Sua Majestade tão bem.
Sua capacidade de mudar de humor sempre foi desnorteante para mim. Ele notou seu bom humor e olhou em volta, para os rostos ávidos da corte.
— Já cumprimentou Sir John Seymour? — perguntou ele, escolhendo o único homem que ela não queria honrar.
O sorriso de Ana não se alterou.
— Boa noite, Sir John — disse ela, tão dócil quanto a sua própria filha. — Espero que aceite um pequeno presente.
Ele fez uma mesura, um tanto sem jeito.
— Seria uma honra, Majestade.
— Gostaria de lhe dar um pequeno banco esculpido de minha câmara privada. Uma bela peça da França. Espero que goste.
Ele fez outra reverência.
— Eu ficaria muito grato.
Ana sorriu de lado para seu marido.
— É para a sua filha — disse ela. — Para Jane. Para que ela tenha onde se sentar e não precise usar o meu.
Houve um momento de um silêncio perplexo e, então, o urro alto da gargalhada de Henrique. Imediatamente, a corte percebeu que também podia rir e os aposentos da rainha foram sacudidos com a sua piada sobre Jane. Henrique, sem parar de rir, ofereceu o braço a Ana e ela olhou para ele com malícia. Ele começou a conduzi-la para o salão, e a corte assumiu seu lugar de sempre, atrás deles. Então, escutei um suspiro e alguém dizer baixinho:
— Meu Deus! A rainha!
George atravessou o grupo como uma foice cortando o mato e puxou Ana pela mão, afastando-a de Henrique.
— Perdão, Majestade, a rainha não se sente bem — ouvi dizer rapidamente. E então falou ao ouvido de Ana, sussurrando algo com urgência. Consegui ver seu perfil, vi a cor se esvair de seu rosto. Ela abriu caminho por eles todos, George correndo na frente para abrir a porta de sua câmara privada e pô-la para dentro. As pessoas atrás espichavam o pescoço para ver melhor, e consegui ver a parte de trás de seu vestido. Havia uma mancha escarlate, aquele vermelho sangue contra o branco e prata de seu vestido. Ela estava sangrando. Estava perdendo o bebê.
Penetrei naquela aglomeração de gente para acompanhá-la ao seu quarto. Minha mãe veio atrás e bateu a porta nas caras ávidas que olhavam para dentro, na do rei que continuava olhando, atordoado, a pressa súbita de Ana e sua família em se esconderem.
Ana estava de frente para George, puxando a parte de trás do vestido para ver a mancha.
— Não senti nada.
— Vou buscar um médico — disse ele dirigindo-se à porta.
— Não diga nada — advertiu-o minha mãe.
— Diga! — exclamei. — Todos viram! O próprio rei viu!
— Ainda pode ficar tudo bem. Deite-se, Ana.
Ana foi lentamente para a cama, a cara tão branca quanto seu capelo.
— Não estou sentindo absolutamente nada — repetiu.
— Então, quem sabe, não está acontecendo nada — disse minha mãe. — Apenas uma pequena mancha.
Fez sinal para as criadas tirarem os sapatos de Ana, suas meias. Viraram-na de lado e desataram o corpete. Retiraram o belo vestido branco com a grande mancha escarlate. Suas anáguas estavam ensopadas de sangue. Olhei para a minha mãe.
— Talvez ele esteja bem — disse ela, sem muita certeza.
Fui até Ana e peguei sua mão, já que era óbvio que precisaria estar em seu leito de morte para que minha mãe pusesse um dedo nela.
— Não tenha medo — sussurrei.
— Dessa vez, não podemos esconder deles. Todos viram.
Fizemos de tudo. Colocamos uma caçarola com carvão quente em seus pés, para aquecê-los, os médicos trouxeram um estimulante, dois estimulantes, um cataplasma e um cobertor especial, benzido por um santo. Ela foi sangrada e colocaram uma caçarola ainda mais quente em seus pés. Mas nada disso adiantou. À meia-noite, entrou em trabalho de parto, na luta e sofrimento das contrações, puxando o lençol amarrado de uma coluna à outra da cama, gemendo de dor, e então, por volta das 2 da manhã, de repente deu um grito e o bebê saiu, e não havia mais nada que se pudesse fazer para que o seu corpo o segurasse.
A parteira, ao recebê-lo em suas mãos, emitiu uma exclamação inesperada.
— O que foi? — perguntou Ana ofegando, seu rosto vermelho do esforço, o suor escorrendo para o seu pescoço.
— É um monstro! — disse a mulher. — Um monstro.
Ana sussurrou bruscamente, de medo, e me retraí involuntariamente, com um terror supersticioso. Nas mãos manchadas de sangue da parteira, estava um bebê horrivelmente deformado, com a espinha exposta, sem a pele, e a cabeça imensa, o dobro do corpinho espigado.
Ana deu um grito enrouquecido e fez força para levantar o corpo e se afastar dele, arrastando-se, como um gato assustado, ao alto da cama, deixando um rastro de sangue nos lençóis e travesseiros. Encolheu-se contra as colunas, as mãos estendidas como se rechaçando o próprio ar.
— Envolva-o! — gritei. — Leve-o daqui!
A parteira olhou para Ana, a expressão muito grave.
— O que fez para ter isto dentro de você?
— Não fiz nada! Nada!
— Este não é um filho do homem, é um filho do diabo.
— Não fiz nada!
Eu quis dizer “tolice”, mas minha garganta estava apertada demais de medo.
— Envolva isso! — Senti o pânico em minha voz.
Minha mãe afastou-se da cama e se dirigiu rapidamente para a porta, com a expressão tão austera como se estivesse se afastando do tronco do carrasco na Torre de Londres.
— Mãe! — chamou Ana com um grasnido.
Minha mãe nem olhou para trás nem parou. Saiu do quarto sem dar uma palavra. Quando a porta se fechou atrás dela, pensei: “isto é o fim”. O fim de Ana.
— Não fiz nada — repetiu Ana. Virou-se para mim e pensei na poção da feiticeira na noite em que ela se deitou no quarto secreto com a máscara dourada no rosto, como o bico de um pássaro. Pensei em sua viagem aos portões do inferno para conseguir esse filho para a Inglaterra.
A parteira fez menção de sair.
— Terei de contar ao rei.
Imediatamente me pus entre ela e a porta, barrando seu caminho.
— Não vai afligir Sua Majestade — eu disse. — Ele não vai querer saber. Segredos de mulheres devem permanecer entre mulheres. Vamos deixar isso entre nós e cuidar disso privadamente, e terá o favor da rainha e o meu. Providenciarei para que seja muito bem paga pelo seu trabalho de hoje e por sua discrição. Providenciarei para que seja muito bem paga, prometo.
Ela nem mesmo relanceou os olhos para mim, e me retraí. Aproveitou-se disso e abriu a porta.
— Não irá ver o rei! — jurei, agarrando seu braço.
— Não percebeu? — perguntou, a voz quase penalizada. — Não percebeu que já sou sua serva? Que ele me enviou para vigiar e escutar por ele? Fui designada para isso a partir do momento em que as regras da rainha se suspenderam.
— Por quê? — perguntei com a voz entrecortada.
— Porque ele não confia nela.
Apoiei-me na parede, minha cabeça girando.
— Não confia?
Ela deu de ombros.
— Não sabe o que há de errado com ela para que não consiga vingar uma gravidez — indicou com a cabeça a trouxinha de pano flácida. — Agora, ele vai saber.
Lambi meus lábios secos.
— Pagarei quanto pedir para se esquecer disso e dizer ao rei que ela perdeu o bebê, mas pode conceber outro — eu disse. — Pagarei o dobro do que quer que ele esteja lhe pagando. Sou uma Bolena, e temos influência e fortuna. Poderá se tornar uma das criadas Howard pelo resto de sua vida.
— É o meu dever — disse ela. — Faço isso desde que era muito jovem. Fiz um voto solene à Virgem Maria de nunca falhar em minha tarefa.
— Que tarefa? Que dever? — perguntei impensadamente. — Do que está falando?
— De caçar bruxas — disse ela simplesmente. Depois, atravessou a porta com o bebê do diabo no braço e desapareceu.
Fechei a porta e deslizei o ferrolho. Não queria que ninguém entrasse até a sujeira toda ter sido limpa e Ana estar em condições de lutar por sua vida.
— O que ela disse? — perguntou.
Sua pele estava branca e opaca como cera. Seus olhos escuros pareciam lascas de vidro. Ela estava muito distante desse quarto quente e do senso de perigo.
— Nada de importante.
— O que ela disse?
— Nada. Por que não dorme?
Ana me olhou com fúria.
— Nunca acreditarei nisso — disse ela simplesmente, não como se falasse comigo, mas sim com uma inquisição. — Nunca me farão acreditar nisso. Não sou nenhuma camponesa ignorante chorando sobre um relicto que é apara de madeira e sangue de porco. Não me extraviarão do meu caminho com medos tolos. Pensarei e agirei, e farei o mundo segundo o meu próprio desejo.
— Ana?
— Não serei intimidada por nada — disse ela com firmeza.
— Ana?
Virou-se para a parede.
Assim que adormeceu, abri a porta e chamei uma Howard — Madge Shelton — para ficar com ela. As criadas levaram rapidamente os lençóis sujos de sangue e lavaram o chão. Do lado de fora, na sala de audiências, a corte aguardava notícias, as mulheres cochilavam, a cabeça nas mãos, alguns jogavam cartas para passar o tempo. George estava recostado na parede, conversando em voz baixa com Sir Francis, as cabeças tão próximas quanto as de amantes.
William apareceu, pegou minha mão, parei por um instante e me fortaleci com seu toque.
— É sério — eu disse simplesmente. — Não posso falar agora. Tenho de contar algo a tio Howard. Venha comigo.
George surgiu imediatamente do meu lado.
— Como ela está?
— O bebê está morto — respondi sem rodeios.
Vi-o empalidecer como uma donzela e fazer o sinal da cruz.
— Onde está nosso tio? — perguntei olhando em volta.
— Aguardando notícias em seus aposentos, como o resto de nós.
— Como está a rainha? — alguém perguntou.
— Perdeu o bebê? — perguntou outra.
George se adiantou.
— A rainha está dormindo — disse ele. — Descansando. Mandou que fossem todas para a cama e, pela manhã, serão informadas de seu estado.
— Ela perdeu o bebê? — alguém pressionou George, olhando para mim.
— Como vou saber? — replicou George imperturbavelmente, e houve murmúrios de descrédito.
— Está morto — alguém disse. — Qual é o problema que a impede de lhe dar um filho?
— Vamos — disse William a George. — Vamos sair daqui. Quanto mais falar, pior ficará a situação.
Com meu marido de um lado e meu irmão do outro abri caminho pela corte e desci aos aposentos de tio Howard. Seu criado, de libré escura, nos introduziu sem dizer uma palavra. Meu tio estava na mesa grande, papéis espalhados na sua frente, uma vela irradiando uma luz amarela por todo o cômodo.
Ao entrarmos, fez sinal para que o criado atiçasse o fogo e acendesse mais velas.
— Sim? — perguntou ele.
— Ana deu à luz um bebê morto — falei direto.
Ele balançou a cabeça, a expressão grave sem trair qualquer emoção.
— Tem alguma coisa errada nisso — eu disse.
— Que tipo de coisa?
— Suas costas estavam esfoladas, sem pele, e sua cabeça era grande — eu disse. Senti a garganta se comprimir de nojo e apertei um pouco mais a mão de William. — Era um monstro.
Balançou a cabeça mais uma vez, como se eu estivesse contando coisas banais. Mas foi George que fez uma exclamação abafada e se apoiou no espaldar de uma cadeira para não cair. Meu tio pareceu não prestar atenção, mas viu tudo.
— Tentei deter a parteira.
— Oh?
— Ela disse que já tinha sido contratada pelo rei.
— Ah.
— E quando ofereci dinheiro para que ficasse ou deixasse o bebê, ela disse que era o seu dever com a Virgem Maria levá-lo porque ela era uma...
— Uma?
— Uma caçadora de bruxas — sussurrei.
Tive a sensação estranha do chão flutuar sob meus pés e todo o som da sala vir de muito longe. William apressou-se em me sentar em uma cadeira e segurou uma taça de vinho para que eu a bebesse. George não me tocou, segurava-se no espaldar da cadeira e sua face estava tão lívida quanto a minha.
Meu tio permaneceu impassível.
— O rei contratou uma caçadora de bruxas para espionar Ana?
Bebi mais um gole de vinho e confirmei com a cabeça.
— Então ela está correndo grande perigo — observou.
Houve outro silêncio demorado.
— Perigo? — sussurrou George, endireitando o corpo.
Meu tio confirmou com a cabeça.
— Um marido desconfiado é sempre um perigo. Um rei desconfiado é um perigo ainda maior.
— Ela não fez nada — disse George com determinação. Relanceei os olhos para ele, ouvindo-o repetir a ladainha que Ana tinha jurado ao ver o monstro que o seu corpo gerara.
— Talvez — concordou meu tio. — Mas o rei acha que ela fez, e isso basta para destruí-la.
— E o que vai fazer para protegê-la? — perguntou George cautelosamente.
— Sabe, George — replicou bem devagar —, na última vez que tive o prazer de conversarmos, ela disse que eu podia deixar a corte e me danar, disse que tinha chegado onde estava por seus próprios esforços e que não me devia nada, e ameaçou me prender.
— Ela é uma Howard — eu disse, pondo o vinho de lado.
Ele baixou a cabeça.
— Era.
— É Ana! — exclamei. — Dedicamos a vida para que ela chegasse lá.
Meu tio balançou a cabeça.
— E ela nos retribuiu com gratidão? Você, pelo que me lembro, foi exilada da corte. E ainda estaria lá se ela não tivesse precisado de seus serviços. Não fez nada para me recomendar ao rei, pelo contrário. E George, ela o favoreceu, mas está agora um xelim mais rico do que quando ela chegou ao trono? Não ganha o mesmo de quando ela era a amante do rei?
— Não se trata de favores, mas de vida e morte — replicou George, inflamado.
— Assim que ela tiver um filho, sua posição estará segura.
— Mas ele não pode fazer um filho! — gritou George. — Não conseguiu fazer em Catarina, não pode fazer nela. Ele é praticamente impotente! Por isso ela tem sentido tanto medo...
Houve um silêncio mortal.
— Que Deus o perdoe por nos colocar, a todos nós, em perigo — disse meu tio friamente. — É traição dizer uma coisa dessas. Eu não ouvi. Você não disse nada. E agora, podem ir.
William ajudou-me a me levantar e nós três saímos lentamente da sala. Na soleira da porta, George se virou, para se lamentar, mas a porta fechou-se silenciosamente em sua cara antes que tivesse tempo de falar.
Ana só despertou no meio da manhã, e com a temperatura muito alta. Procurei o rei. A corte se preparava para partir para o Palácio de Greenwich, e ele estava longe do barulho e da agitação, jogando boliche, cercado de seus favoritos, inclusive os Seymour proeminentes. Fiquei feliz em ver George ao seu lado, parecendo confiante e sorridente, e meu tio entre os que assistiam. Meu pai ofereceu ao rei uma aposta com boa vantagem. Esperei até a última bola rolar e meu pai, rindo, entregar vinte moedas de ouro, antes de me adiantar e fazer uma reverência.
O rei franziu o cenho ao me ver. Percebi de imediato que nenhuma garota Bolena teria o seu favor.
— Lady Maria — disse ele friamente.
— Majestade, vim a mando de minha irmã, a rainha.
Ele balançou a cabeça.
— Ela pede que a corte adie a mudança para o Palácio de Greenwich por uma semana, até que tenha se restabelecido completamente.
— É tarde demais — replicou. — Ela pode nos encontrar lá, quando estiver bem.
— Ainda vão começar a arrumar a bagagem.
— É tarde demais para ela — corrigiu-me. Um murmúrio ao redor da pista de boliche foi instantaneamente reprimido. — É tarde demais para ela me pedir favores. Eu sei o que sei.
Hesitei. Um lado meu queria agarrá-lo pelo colarinho e arrancar dele aquele egoísmo todo. Minha irmã estava doente depois de um parto infernal, e ali estava seu marido, tranquilo, jogando boliche ao sol e alertando a corte de que ela não teria nenhum favor seu.
— Então, deve saber que ela, eu e todos os Howard nunca perdemos nosso amor e nossa lealdade à Sua Majestade — eu disse. Percebi a carranca de meu tio diante da menção ao nome da família.
— Esperemos que nem todos vocês tenham sido postos à prova — disse o rei, com um tom de aborrecimento. Em seguida, virou-se e fez um sinal para Jane Seymour. Modestamente, com os olhos baixos, ela adiantou-se do grupo de damas.
— Caminha comigo? — perguntou com uma voz completamente diferente.
Ela fez uma reverência como se a honra fosse tão imensa que ficasse sem palavras, e pôs a mão sobre sua manga adornada de joias, e a corte seguiu-os a uma distância discreta.
A corte espalhava rumores que George e eu não podíamos negar. Antes seria um crime punido com a morte dizer uma única palavra contra Ana. Agora, havia canções e piadas sobre seu círculo mais íntimo e insinuações escandalosas sobre sua incapacidade de ter filhos.
— Por que Henrique não os cala? — perguntei a William. — Ele tem poder para fazer isso.
William sacudiu a cabeça.
— Ele está permitindo que digam o que quiserem — replicou. — Dizem que ela vendeu a alma ao diabo.
— Tolos! — exclamei com raiva.
Delicadamente, ele pegou minhas mãos e abriu os dedos tensos.
— Maria, de que outra maneira ela teria gerado uma criança monstruosa senão com uma união monstruosa? Ela deve ter concebido em pecado.
— Com quem, pelo amor de Deus? Você acha que ela fez um trato com o diabo?
— Não acha que ela faria se fosse para conseguir gerar um menino? — perguntou ele.
Isso me calou. Sentindo-me infeliz, olhei em seus olhos castanhos.
— Psiu — eu disse, com medo das palavras. — Não quero pensar nisso.
— E se ela realizou alguma bruxaria que acabou lhe dando um monstro?
— E daí?
— E daí que ele tem o direito de abandoná-la.
Por um momento, tentei rir.
— É uma piada triste em um momento triste, William.
— Não é piada, minha mulher.
— Não consigo entender! — gritei, de repente impaciente com uma mudança tão repentina do mundo. — Não consigo compreender o que aconteceu conosco!
Sem se importar com o fato de estarmos no jardim e de que qualquer membro da corte poderia se deparar conosco a qualquer momento, passou a mão em volta da minha cintura e me abraçou forte, tão íntimo quanto se estivéssemos no estábulo de sua fazenda.
— Meu amor, meu amor — disse ele carinhosamente. — Ela deve ter feito algo muito ruim para ter parido um monstro. E você nem sabe o que foi. Nunca fez algo secreto para ela? Buscado uma parteira, comprado uma poção?
— Você mesmo... — comecei.
Ele assentiu com a cabeça.
— E eu enterrei um bebê morto. Queira Deus que esse assunto se mantenha secreto e que nunca façam perguntas demais.
A única vez em que a corte tinha abandonado uma rainha em um palácio vazio fora quando o rei e Ana partiram rindo e deixaram a rainha Catarina sozinha. Agora, Henrique repetiu o feito. Ana observou, sem ser vista, da janela de seu quarto, ajoelhada em uma cadeira, ainda fraca demais para ficar em pé, enquanto ele, com Jane Seymour montando ao seu lado, conduzia a mudança para Greenwich, seu palácio preferido.
No séquito de cortesãos alegres atrás do rei sorridente e da nova e bela favorita estava minha família: pai, mãe, tio e irmão fazendo de tudo para conseguir o favor do rei, enquanto William e eu seguíamos com nossos filhos. Catarina estava calada e reservada. Olhou para trás, para o palácio, e depois para mim.
— O que foi? — perguntei.
— Não é certo partirmos sem a rainha — disse ela.
— Ela irá ao nosso encontro, quando se sentir bem — eu disse tentando confortá-la.
— Sabe onde Jane Seymour terá seus aposentos em Greenwich? — perguntou.
Sacudi a cabeça.
— Vai dividir um quarto com outra garota Seymour?
— Não — minha filha respondeu brevemente. — Ela disse que o rei lhe dará belos aposentos, só para ela, e damas de honra. Para que tenha onde praticar a música.
Não quis acreditar, mas Catarina estava certa. Divulgou-se que o próprio secretário Cromwell tinha aberto mão de seus aposentos em Greenwich para que a Srta. Seymour pudesse se dedicar ao seu alaúde sem perturbar as outras damas. De fato, os aposentos do secretário Cromwell tinham uma passagem secreta que os ligava à câmara privada do rei. Jane foi oculta em Greenwich como Ana tinha sido, em aposentos rivais do aposento da rainha, com uma corte rival.
Assim que a corte se instalou, um pequeno grupo Seymour se reuniu, conversou, dançou e jogou nos novos aposentos suntuosos de Jane, e as damas da rainha, com ela ausente, também iam para lá. O rei ali passava o tempo todo, conversando, lendo, escutando música ou poesia. Jantava com Jane informalmente, em seus aposentos ou nos dela, com os Seymour ao redor da mesa, rindo de suas piadas ou distraindo-o com jogo, ou ele a levava para jantar no salão e a sentava perto. Somente o trono vazio da rainha lembrava a todos que existia uma rainha da Inglaterra deixada no palácio vazio. Às vezes, ao olhar para Jane inclinada à frente para dizer alguma coisa a Henrique sobre o trono vazio de minha irmã, sentia como se Ana nunca tivesse existido, e que não havia nada que impedisse Jane de mudar de um lugar para outro.
Ela nunca hesitou em doçura com Henrique. Deviam tê-la submetido a uma dieta de beterraba em Wilshire. Ela era absolutamente agradável com Henrique, estivesse ele com o humor azedo por causa da dor na perna ou exultante como um menino, se sentindo vitorioso por ter abatido um cervo. Ela estava sempre muito calma, era sempre muito devota — ele a encontrava frequentemente ajoelhada em seu genuflexório, as mãos apertando o rosário, e a cabeça para cima — e se mostrava sempre modesta.
Ela pôs de lado o capelo francês, o elegante adorno da cabeça em forma de meia-lua que Ana introduzira ao retornar à Inglaterra. Usava o capelo na forma de espigão, como a rainha Catarina, e que fazia apenas um ano marcava aquela que o usasse como alguém terrivelmente deselegante, fora de moda. O próprio Henrique tinha jurado que odiava a roupa espanhola, mas a sua austeridade ajustava-se perfeitamente à beleza fria de Jane. Ela a usava como uma freira usava a touca — para mostrar seu desdém pelo exibicionismo mundano. Mas a usava em azul bem claro, no verde mais suave, em amarelo: todas cores claras como se a sua paleta fosse suave.
Percebi que estava a meio caminho do lugar de minha irmã quando Madge Shelton, a ousada, coquete e solta Madge, apareceu para jantar com um capelo na forma de espigão em azul-claro, com um vestido de gola alta combinando, e suas mangas francesas reformadas no estilo inglês. Em apenas alguns dias, todas as mulheres da corte usavam o capelo em espigão e andavam de olhos baixos.
Ana foi ao nosso encontro em fevereiro, chegando com toda a pompa: o estandarte real ondulando sobre sua cabeça, o estandarte Bolena seguindo atrás, e um grande séquito de servidores de libré e cavalheiros montados. George e eu a estávamos esperando na escada da frente, com as grandes portas abertas atrás de nós, e Henrique ausente.
— Vai lhe contar sobre os aposentos de Jane? — perguntou George.
— Eu não — repliquei. — Você conta.
— Francis diz para lhe contar em público. Ela vai controlar o gênio diante da corte.
— Discute a rainha com Francis?
— Você fala com William.
— Ele é meu marido.
George concordou com a cabeça, olhando para os homens à frente do séquito de Ana, quando se aproximavam.
— Confia em William?
— É claro.
— Sinto o mesmo em relação a Francis.
— Não é a mesma coisa.
— Como pode saber o que é o seu amor para mim?
— Sei que não pode ser como o amor de um homem por uma mulher.
— Não. Eu o amo como um homem ama outro homem.
— Isso contraria a Sagrada Escritura.
Pegou minha mão e me deu o irresistível sorriso Bolena.
— Maria, está feito. Vivemos um tempo perigoso e meu único conforto é o amor de Francis. Deixe-me vivê-lo. Pois Deus é testemunha que tenho poucas outras alegrias, e acho que estamos correndo o perigo mais grave.
A escolta de Ana passou e ela, com um sorriso radiante, parou o cavalo do nosso lado. Usava um traje de montaria vermelho bem escuro, e um chapéu também vermelho-escuro para trás de sua cabeça, com uma pena comprida presa na aba com um grande broche de rubi.
— Vivat Ana! — exclamou meu irmão, em reação ao seu estilo notável.
Ela olhou para o grande vestíbulo atrás de nós, esperando ver o rei a aguardando. Sua expressão não se alterou quando percebeu que ele não estava lá.
— Você está bem? — perguntei, indo na sua direção.
— É claro — respondeu animadamente. — Por que não estaria?
Sacudi a cabeça.
— Por que não? — repliquei cautelosamente. Claramente não comentaríamos nada sobre esse bebê morto, assim como não falávamos nada dos outros.
— Onde está o rei?
— Caçando — replicou George.
Ana entrou no palácio, os criados correndo à sua frente para abrir as portas.
— Ele sabia que eu estava vindo? — perguntou por cima do ombro.
— Sim — respondeu George.
Ela balançou a cabeça e esperou até ficarmos a sós em seus aposentos, com as portas fechadas.
— E onde estão minhas damas?
— Algumas delas caçando com o rei — eu disse. — Outras... — não sabia como concluir a frase. — Outras não — falei desanimada.
Seu olhar passou de mim para George, com a sobrancelha erguida.
— Vai me explicar o que a minha irmã quer dizer? — perguntou. — Sabia que o seu francês e o seu latim são incompreensíveis, mas agora, seu inglês parece também estar além de sua capacidade.
— Suas damas estão se reunindo ao redor de Jane Seymour — replicou ele sem rodeios. — O rei lhe deu os aposentos de Thomas Cromwell, e janta com ela diariamente. Ela tem uma pequena corte só sua.
Ela arfou e olhou para mim.
— É verdade?
— Sim — respondi.
— Ele lhe deu os aposentos de Thomas Cromwell? Ele pode ir direto a seu quarto sem ninguém saber?
— Sim.
— Eles são amantes?
Olhei para George.
— Não tem como saber — replicou ele. — A minha aposta é que não.
— Não?
— Ela parece se recusar a se entregar a um homem casado — disse ele. — Explora a sua virtude.
Ana andou vagarosamente até a janela, como se deslindasse essa mudança em seu mundo.
— O que ela pretende? — perguntou. — Atraindo-o e rejeitando-o ao mesmo tempo?
Nenhum de nós dois respondeu. Quem saberia melhor do que nós?
Ana virou-se, seus olhos vigilantes como os de um gato.
— Pretende me pôr de lado? Ela está louca?
Nenhum de nós dois respondeu.
— E Cromwell foi obrigado a ceder a essa exibição dos Seymour?
Neguei com a cabeça e disse:
— Cromwell ofereceu seus aposentos.
Ela balançou lentamente a cabeça.
— Portanto Cromwell, agora, está francamente contra mim.
Olhou para George buscando conforto, uma expressão estranha, como se não estivesse segura dele. Mas George nunca a decepcionava. Com cuidado, aproximou-se e pôs a mão em seu ombro, fraternalmente. Em vez de se virar para abraçá-lo, retrocedeu o passo até ele ficar atrás dela, e descansou a cabeça em seu peito. Ele deu um suspiro, a abraçou e balançou-a delicadamente, os dois olhando pela janela o Tâmisa cintilando na luz do sol de inverno.
— Achei que você estaria com medo de me tocar — disse ela baixinho.
Ele sacudiu a cabeça.
— Oh, Ana. Segundo as leis do mundo e da Igreja, sou amaldiçoado dez vezes antes do café da manhã.
Estremeci ao ouvir isso, mas ela riu como uma menina.
— E o que quer que tenhamos feito, foi feito por amor — disse ele suavemente.
Ela virou-se em seus braços e o olhou, estudando sua face. Dei-me conta de que nunca a tinha visto olhar assim para alguém antes. Olhou para ele como se se importasse com o que ele sentia. Ele não era apenas um degrau na escada de sua ambição. Ele era o seu amado.
— Mesmo quando a consequência foi monstruosa? — perguntou ela.
Ele encolheu os ombros.
— Não pretendo bancar ser um conhecedor de teologia. Mas a minha égua pariu um potro com uma perna unida à outra, e não a afoguei por ser uma bruxa. Essas coisas acontecem na natureza, nem sempre significam alguma coisa. Você não teve sorte, nada além disso.
— Não vou deixar que isso me amedronte — disse ela com determinação. — Vi sangue de santos feito de sangue de porcos, e água benta ser retirada de um riacho. Metade da doutrina dessa Igreja é para nos atrair, metade para nos amedrontar. Não serei seduzida e não me deixarei ser intimidada. Por nada. Decidi construir minha própria estrada e é o que farei.
Se George estivesse escutando, teria percebido o tom ansioso, nervoso, de sua voz. Mas ele estava observando sua face determinada.
— Para a frente e para cima, Ana Regina! — disse ele.
Sorriu para ele.
— Para a frente e para cima. E o próximo será um menino.
Virou-se para ele, pôs as mãos em seus ombros, e o olhou como se fosse um amante fiel.
— Então, o que tenho de fazer?
— Tem de reconquistá-lo — disse ele seriamente. — Não o repreenda. Não deixe que perceba seu medo. Tem de atraí-lo de novo com todos os artifícios que conhece. Encante-o de novo.
Ela hesitou, depois sorriu e disse-lhe a verdade por trás da face animada.
— George, estou dez anos mais velha do que quando o atraí pela primeira vez. Estou com quase 30 anos. Ele teve somente uma filha viva de mim, e agora sabe que pari um monstro. Vou causar-lhe aversão.
George apertou seus braços ao redor de sua cintura.
— Não pode lhe causar aversão — disse ele simplesmente. — Ou todos cairemos. Tem de atraí-lo de volta.
— Mas fui eu que lhe ensinei obedecer a seus desejos. Pior ainda, enchi sua cabeça idiota com o novo ensinamento. Agora, ele pensa que seus desejos são manifestações de Deus. Basta querer alguma coisa para pensar que é a vontade de Deus. Não precisa da confirmação de nenhum padre, bispo ou papa. Seus caprichos são sagrados. Como fazer que um homem desse retorne à sua esposa?
George olhou por cima dela para mim, pedindo ajuda. Cheguei um pouco mais perto.
— Ele gosta de conforto — eu disse. — Um lenitivo. Mime-o, diga-lhe que é maravilhoso, elogie-o, e seja terna com ele.
Olhou-me tão apaticamente como se eu estivesse falando em hebraico.
— Sou sua amante, não sua mãe — disse ela simplesmente.
— Ele agora quer uma mãe — disse George. — Está magoado, sente-se velho e teme a morte. O ferimento em sua perna fede. Está apavorado com a ideia de morrer sem deixar um príncipe para a Inglaterra. O que ele quer é uma mulher que seja terna com ele, até que se sinta bem de novo. Jane Seymour é a doçura personificada. Você terá de suplantar a sua doçura.
Ela ficou calada. Sabíamos que era impossível ser mais doce do que Jane Seymour quando ela tinha a coroa à vista. Nem mesmo Ana, essa sedutora consumada, conseguiria ser mais doce do que Jane Seymour. O brilho desapareceu de seu rosto e, por um momento, em sua palidez, vi a face dura de nossa mãe.
— Por Deus, espero que isso a mate — falou, de repente, vingativamente. — Se ela puser a mão na minha coroa e o traseiro em meu trono, espero que seja a sua morte. Espero que morra jovem. Que morra de parto, dando à luz um menino. E que o menino também morra.
George enrijeceu-se. Viu, da janela, o grupo retornando da caça.
— Desça rápido, Maria, e diga ao rei que cheguei — disse Ana sem se soltar do abraço de George.
Desci correndo, quando o rei desmontava. Vi-o se retrair ao pisar no solo, e seu peso sobrecarregar a perna machucada. Jane montava ao seu lado, uma falange de Seymour ao redor deles. Olhei em volta, procurando meu pai, minha mãe e meu tio. Tinham sido empurrados para trás, desprestigiados.
— Majestade — eu disse fazendo uma reverência. — Minha irmã, a rainha, chegou e pediu que transmitisse seus cumprimentos a Sua Majestade.
Henrique olhou para mim, a cara emburrada, a testa sulcada de dor, a boca franzida.
— Diga-lhe que estou cansado da cavalgada, que a verei no jantar — disse ele de maneira concisa.
Passou por mim com o andar pesado, irregular, protegendo a perna machucada. Sir John Seymour ajudou a filha a desmontar. Percebi seu novo traje de montaria, o cavalo novo, o diamante cintilando em sua mão enluvada. Tive tanta vontade de cuspir veneno nela que precisei morder a ponta da minha língua para conseguir lhe sorrir com doçura e recuar quando seu pai e seu irmão a escoltaram ao atravessar as grandes portas de seus aposentos — os aposentos da favorita do rei.
Meu pai e minha mãe seguiam atrás dos Seymour, em seu séquito. Esperei que me perguntassem como Ana estava, mas passaram por mim apenas com um aceno de cabeça.
— Ana está bem — falei, quando minha mãe passou.
— Ótimo — disse ela com indiferença.
— Não vai vê-la?
Sua face permaneceu tão inexpressiva quanto a de uma mulher estéril. Era como se, para ela, nenhum de nós tivesse nascido.
— Eu a visitarei quando o rei for a seus aposentos — replicou.
Então, percebi que Ana, George e eu estávamos sós.
As damas retornaram ao quarto de Ana como um bando de bútios, sem saberem onde obteriam maior lucro. Notei, com um deleite amargo, a crise do adorno da cabeça que o retorno confiante de Ana tinha provocado. Algumas voltaram a usá-lo ao estilo francês, que Ana continuava a usar. Outras persistiram no capelo em forma de espigão, preferido por Jane. Todas elas estavam aflitas sem saber se deviam estar no belo aposento da rainha ou no outro lado, com os Seymour. Aonde o rei iria em seguida? Qual ele preferia? Madge Shelton usava um capelo em espigão e tentava se introduzir, com adulações, no círculo de Jane Seymour. Madge achava que Ana estava em declínio.
Quando entrei, três mulheres silenciaram imediatamente.
— Quais são as novidades? — perguntei.
Ninguém falou nada. Então, Jane Parker, sempre a mais confiável de todas a mexeriqueiras, se aproximou de mim.
— O rei mandou um presente para Jane Seymour, uma imensa bolsa de ouro, e ela o recusou.
Esperei.
Os olhos de Jane brilhavam de deleite.
— Ela disse que não pode receber esse tipo de presente do rei até ser uma mulher casada. Que a comprometeria.
Fiquei calada por um momento, tentando decodificar essa declaração enigmática.
— Comprometê-la?
Jane confirmou com a cabeça.
— Com licença — eu disse. Abri caminho pelas mulheres até a câmara privada de Ana. George estava lá, Sir Francis Weston também. — Quero falar a sós com você — falei simplesmente.
— Pode falar na frente de Sir Francis — replicou Ana.
Respirei fundo.
— Souberam que Jane Seymour recusou o presente do rei?
Negaram com um movimento da cabeça.
— Parece que ela disse que não podia aceitar esse tipo de presente até ser uma mulher casada, pois poderia comprometê-la.
— Oh — disse Sir Francis.
— Acho que não passa de um alarde de sua virtude, mas a corte só fala nisso — eu disse.
— Lembra ao rei que ela pode se casar com outro — disse George. — Ele vai odiar pensar nessa possibilidade.
— Exibe a sua virtude — acrescentou Ana.
— E isso vai se propagar — disse Sir Francis. — Puro teatro. Ela não recusou o cavalo, recusou? Recusou o anel de diamante? O medalhão com o retrato dele? Mas agora a corte acha, e o mundo logo achará também, que o rei está interessado em uma jovem que não ambiciona a riqueza. Touché! E tudo em uma única cena.
Ana rangeu os dentes.
— Ela é insuportável.
— E não há nada que você possa fazer para revidar — disse George. — Por isso nem pense na possibilidade. Erga a cabeça, sorria, e o encante, se puder.
— É capaz de, no jantar, mencionarem a aliança com a Espanha — advertiu-a Sir Francis quando ela se levantou da cadeira. — É melhor não dizer nada contra.
Ana olhou para ele por cima do ombro.
— Se eu tenho de me transformar em Jane Seymour, posso muito bem ser posta de lado — disse ela. — Se tudo o que sou, minha inteligência, meu temperamento e minha paixão pela reforma da Igreja, tem de ser renegado, então terei abandonado a minha própria personalidade. Se o que o rei quer é uma esposa obediente, eu não deveria nem ter aspirado ao trono. Se não puder ser eu mesma, poderei muito bem não estar aqui.
George foi até ela, levantou sua mão e a beijou.
— Não, pois nós todos a adoramos — disse ele. — E isso é só um capricho passageiro do rei. Ele agora quer Jane como quis Madge, como quis Lady Margaret. Ele vai recuperar o juízo e voltar para você. Lembre-se de por quanto tempo a rainha o conservou. Ele foi e voltou para ela dezenas de vezes. Você é a sua esposa, a mãe de sua princesa, como ela era. Pode conservá-lo.
Ela sorriu, empertigou-se e fez sinal para eu abrir a porta. Ouvi o ruído de cochichos quando ela saiu, usando um belo veludo verde, esmeraldas nas orelhas, diamantes cintilando em seu capelo verde, o “B” dourado na gargantilha de pérolas.
O frio se intensificou no fim de fevereiro e o Tâmisa, na frente do palácio, congelou. A plataforma de desembarque se estendia como um caminho sobre um chão de gelo branco, o portão dava para a escada que descia a uma superfície lisa de vidro. O rio parecia uma estrada estranha, que podia levar a qualquer lugar. Ao olhar para baixo, nas partes mais finas, dava para ver a água se movendo, verde e perigosa, sob a superfície clara do gelo.
Os jardins, as passagens, os muros e as aleias ao redor de Greenwich assumiam uma alvura milagrosa, enquanto nevava, depois congelava, e tornava a nevar. Nos jardins, o renque de árvores estava enregelado. Nas manhãs de sol, as teias de aranhas brilhavam com cristais brancos, como uma renda mágica lançada sobre os galhos mais finos. Cada graveto, cada folha fina estava traçada de branco, como se um artista tivesse percorrido todo o jardim determinado a fazer com que víssemos o detalhe de cada ramo em cada árvore.
À noite, fazia um frio gélido, com um vento gelado que soprava do leste, um vento vindo da Rússia. Mas durante o dia, o sol brilhava forte e era delicioso correr no jardim, jogar boliche na relva congelada, enquanto os tordos saltavam nos teixos escuros da aleia e esperavam que jogássemos migalhas de pão, e bandos de gansos sobrevoavam, batendo as asas e a cabeça comprida esticada, buscando água descoberta.
O rei declarou que deveríamos ter uma feira de inverno e competições de patinação no gelo e dança sobre patins, e uma mascarada com trenós, comedores de fogo e acrobatas moscovitas, e incitar cães contra um urso acorrentado, esporte muito mais divertido do que era em geral, quando o pobre animal escorregava e caía, e se lançava na direção dos cães que derrapavam. Um cão disparou para dar-lhe uma mordida e depois escapar rapidamente, mas suas patas não encontraram apoio e o urso o levou à morte com uma patada em seu dorso. O rei caiu na gargalhada ao ver isso.
Trouxeram bois de Smithfield usando o rio congelado como rodovia, e os assaram em espetos sobre fogueiras à margem do rio, e os rapazes corriam da cozinha para a ribanceira com pão quente, os cães da cozinha latindo e correndo com eles, esperando algum contratempo.
Jane era uma princesa de inverno, usando azul e branco, pele branca no pescoço e no capuz de seu manto. Ela patinava mal, tendo de ser segura por seu irmão de um lado e seu pai do outro. Conduziram-na em direção ao rei e a empurraram, passivamente bela, para o trono, e pensei que ser uma garota Seymour devia ser igual a ser uma garota Bolena, quando seu pai e seu irmão a empurram para o rei, e ela não tem nem a capacidade nem a sabedoria para fugir.
Henrique sempre tinha para ela uma cadeira do seu lado. O trono da rainha estava à sua direita, como deveria, mas à sua esquerda, havia uma cadeira para Jane, se ela resolvesse descansar depois de patinar. O rei não patinou, sua perna ainda não tinha sarado e falavam de médicos franceses ou, quem sabe, uma peregrinação a Canterbury para aliviar a sua dor. Somente Jane era capaz de desfazer a sua carranca, e conseguia isso sem fazer nada. Ficava ao seu lado, deixava que a conduzissem ao patinar diante dele, retraía-se ao ver uma briga de galos, arfava ao assistir ao comedor de fogo, comportava-se como sempre se comportara, como uma perfeita tola, e isso acalmava o rei de uma maneira que Ana não conseguiria.
Ana desceu para jantar com o rei por três dias, e ao vê-la deslizar em seus patins de barbatana de baleia, com a graça de uma dançarina russa, pensei em como nós, os Bolena, pisávamos em gelo fino nessa temporada. Até mesmo a palavra mais inocente proferida por ela fazia o rei fechar a cara, não havia como agradá-lo. Ele a observava o tempo todo com seus olhos cobiçosos e desconfiados apertados. Esfregava os dedos enquanto a observava, mexendo no anel em seu dedo mindinho.
Ana tentou fasciná-lo com sua beleza e energia. Ela manteve a calma com ele, apesar de ele se mostrar amargo e insensível. Dançou, jogou, riu, patinou, era só alegria, despreocupação. Pôs Jane Seymour em segundo plano, nenhum homem tinha olhos para outra quando Ana estava de humor exultante. Nem mesmo o rei conseguia desviar os olhos quando ela dançava, a cabeça ereta, girando charmosamente o pescoço quando alguém falava com ela, cercada de homens que escreviam poemas sobre a sua beleza, músicos que tocavam para ela, o centro da excitação da corte em jogo. O rei não conseguia tirar os olhos dela, mas seu olhar não era extasiado. Ele a olhava como se tentasse compreender alguma coisa, como se fosse elucidar seu encanto, de modo que pudesse vê-la destrinçada, despojada de tudo que, no passado, a tornara tão adorável para ele. Ele olhava para ela como um homem olha para uma tapeçaria que lhe custou uma fortuna e que, de repente, em certa manhã, a considera sem valor e quer desfazer a compra. Ele olhava para ela como se não entendesse como podia ter-lhe sido tão cara, e o recompensado tão pouco. E nem mesmo o encanto e a vivacidade de Ana o convenciam de que a barganha tinha sido positiva.
Enquanto eu observava Ana, George e Sir Francis observavam Cromwell. Corriam boatos de que o rei poderia deixar Ana com base em que o casamento não tinha sido válido desde o começo. George e eu escarnecemos dessa ideia, mas Sir Francis nos lembrou que o parlamento seria dissolvido em abril sem nenhum motivo.
— Que diferença vai fazer? — perguntou George.
— Assim todos os bons cavalheiros do país retornarão a seus condados, caso o rei tome uma atitude contra a rainha — respondeu Francis.
— Eles não a defenderiam — eu disse. — Eles a odeiam.
— Talvez defendessem a ideia da condição de rainha — disse ele. — Foram obrigados a depor contra a rainha Catarina, foram obrigados a renegar a princesa Mary e a reconhecer a princesa Elizabeth. Se o rei rejeitar Ana, acharão que foram feitos de bobos e não vão ficar nada satisfeitos. Se ele retornar à opinião do Papa, podem achar uma reviravolta rápida demais para engolirem.
— Mas a rainha está morta — eu disse, pensando na rainha Catarina, minha antiga senhora. — Mesmo que o casamento com Ana se dissolva, não poderá voltar para ela.
George emitiu um som de impaciência com a minha lerdeza, mas Sir Francis foi mais tolerante.
— A visão do Papa continua a ser a de que o casamento com Ana nunca foi válido. Portanto, agora, Henrique é viúvo e pode se casar de novo.
Instintivamente, George, Francis e eu olhamos para o rei. Estava se levantando do trono na plataforma azul, por causa do gelo. Sir John Seymour e Sir Edward Seymour estavam cada um de um lado dele, ajudando-o a se erguer. Jane estava à sua frente, os lábios ligeiramente entreabertos em um sorriso, como se nunca tivesse visto homem mais bonito do que esse gordo inválido.
Ana, que patinava no lado oposto do gelo, com Henry Norris e Thomas Wyatt, foi até ele e disse casualmente:
— Então, marido, não vai ficar?
Ele olhou para ela. A cor em seu rosto pelo vento frio, o chapéu vermelho de montaria com a pena comprida e uma madeixa roçando sua bochecha — ela estava radiante, inegavelmente bela.
— Estou com dor — replicou ele devagar. — Enquanto se divertia, eu sofria. Vou para meus aposentos descansar.
— Vou acompanhá-lo — disse ela imediatamente, deslizando na sua direção. — Se eu soubesse, teria ficado ao seu lado, mas disse-me para patinar. Meu pobre marido. Vou lhe preparar uma tisana e ler para Sua Majestade, se quiser.
Ele sacudiu a cabeça.
— Prefiro dormir — disse ele. — Prefiro o silêncio à sua leitura.
Ana enrubesceu. Henry Norris e Thomas Wyatt olharam para longe e desejaram não estar ali. Os Seymour mantiveram, diplomaticamente, a expressão inalterada.
— Eu o verei no jantar, então — disse Ana, reprimindo seu gênio. — E vou rezar para que repouse e não sinta mais dor.
Henrique assentiu com a cabeça e virou-se. Os Seymour o ajudaram a atravessar os belos tapetes que tinham sido colocados sobre o gelo para que ele não escorregasse. Jane, com um sorrisinho submisso, como se pedisse desculpas por ser a favorita, seguiu atrás.
— E aonde pensa que vai Srta. Seymour? — A voz de Ana soou como uma chicotada.
A mulher mais jovem virou-se e fez uma reverência à rainha.
— Ele ordenou que o acompanhasse e lesse para ele — respondeu simplesmente, os olhos baixos. — Não sei ler latim muito bem. Mas posso ler um pouco de francês.
— Um pouco de francês! — exclamou minha irmã, trilíngue desde seus 6 anos.
— Sim — replicou Jane com orgulho. — Embora não o entenda.
— Aposto que não compreende nada — disse Ana. — Pode ir.
Primavera de 1536
O gelo derreteu-se, mas o tempo não esquentou. Os galantos floresciam em moitas por toda a pista de boliche, mas o gramado estava tão ensopado que não podíamos jogar, e as trilhas também estavam tão cheias de água que não podíamos caminhar. A perna do rei não sarava, era um ferimento aberto e as diferentes poções e cataplasmas que aplicavam pareciam inflamá-lo ainda mais. Começou a temer nunca mais dançar, e as notícias de que o rei Francis da França estava animado e com boa saúde o deixaram ainda mais amargo. A Quaresma chegou e não houve mais dança nem banquetes. Tampouco havia chance de Ana seduzi-lo na cama e conceber outro bebê. Ninguém, nem mesmo o rei e a rainha, podia se deitar junto durante a Quaresma, portanto Ana teve de suportar a visão de Henrique sentado em uma cadeira acolchoada, a perna manca sobre um escabelo, com Jane, ao seu lado, lendo artigos religiosos, sabendo que não podia nem mesmo reivindicar seu direito de esposa de que ele dormisse com ela.
Ela foi sobrepujada e negligenciada. A cada dia se reduzia o número de damas em sua câmara. Eram designadas e pagas para serem damas da rainha, mas todas ficavam nos aposentos de Jane Seymour. As únicas que permaneceram fiéis foram aquelas não desejadas em parte nenhuma: a nossa família, Madge Shelton, tia Anne, minha filha Catarina, e eu. Havia dias em que os únicos cavalheiros em seus aposentos eram George e seu círculo de amigos: Sir Francis Weston, Sir Henry Norris, Sir William Brereton. Eu me misturava com os homens contra quem meu marido me alertara, mas Ana não tinha outros amigos. Jogávamos cartas ou mandávamos vir músicos, ou se Sir Thomas Wyatt nos visitasse, fazíamos um torneio de poesias, cada homem compondo um verso de um soneto de amor à mais bela rainha do mundo. Mas havia algo oco nisso, um espaço vazio onde a alegria deveria estar. Ana estava perdendo tudo, e não sabia como reaver isso.
Em meados de março, reprimiu seu orgulhou e mandou que eu chamasse nosso tio.
— Não posso ir agora, tenho de tratar de alguns negócios. Diga à rainha que irei vê-la hoje à tarde.
— Achei que não se deixava uma rainha esperar — comentei.
À tarde, Ana recebeu-o sem dar mostra de contrariedade e o levou ao vão de uma janela, para que pudessem falar a sós. Eu estava perto o bastante para escutá-los, apesar de falarem baixo.
— Preciso de sua ajuda contra os Seymour — disse ela. — Temos de nos livrar de Jane.
Ele encolheu os ombros com pesar.
— Minha sobrinha, nem sempre me foi útil como eu gostaria que fosse. Não faz muito tempo, me incriminou com o próprio rei. Se já não é rainha, não creio que possa voltar a ser uma Howard.
— Sou uma garota Bolena, uma garota Howard — sussurrou, a mão no “B” dourado em seu pescoço.
— Há muitas garotas Howard — disse ele calmamente. — Minha mulher, a duquesa, cuida da casa com uma dúzia delas, em Lambeth, suas primas, todas tão bonitas quanto você, quanto Maria ou Madge. Todas dinâmicas e audaciosas. Quando ele se cansar de uma molenga, haverá uma garota Howard para aquecer a sua cama, sempre haverá outras.
— Mas eu sou a rainha! Não mais uma dama de honra.
Ele assentiu com a cabeça e disse:
— Vou lhe fazer uma oferta. Se George conseguir a Ordem da Jarreteira em abril, então ficarei ao seu lado. Vê se consegue isso para a família e veremos o que a família pode fazer por você.
Ela hesitou.
— Posso pedir-lhe isso.
— Pois peça — aconselhou meu tio. — Se puder ajudar a família, poderemos fazer um novo contrato, defendê-la contra seus inimigos. Mas dessa vez, tem de se lembrar de quem é o seu senhor.
Ela mordeu a parte interna de seu lábio para conter a rebeldia, fez uma reverência e manteve a cabeça baixa.
Em 23 de abril, o rei deu a Ordem da Jarreteira a Sir Nicholas Carew, amigo dos Seymour, indicado por eles. Meu irmão George foi negligenciado. Nessa noite, no banquete oferecido para celebrar as novas distinções, meu tio e Sir John Seymour estavam sentados lado a lado, partilhando os melhores pedaços das carnes, e se relacionando esplendidamente.
No dia seguinte, Jane Seymour estava, excepcionalmente, entre nós nos aposentos da rainha, que portanto estava agitado com toda a corte presente. Os músicos foram chamados, haveria dança. O rei não era esperado. Ana o tinha desafiado a um jogo de cartas e ele tinha respondido friamente que estava ocupado tratando de negócios.
— O que ele está fazendo? — perguntou ela a George, quando este lhe trouxe sua recusa.
— Não sei. Está recebendo bispos. E a maioria dos lordes, individualmente.
— Sobre mim?
Prudentemente, nenhum dos dois olhou para Jane, que era o centro das atenções nos aposentos da rainha.
— Não sei — replicou George abatido. — Acho que serei o último a saber. Mas perguntou que homens a visitam diariamente.
Ana ficou pasma.
— Todos me visitam — disse ela. — Sou a rainha.
— Foram mencionados alguns nomes — disse George. — Henry e Francis entre eles.
Ana riu.
— Henry Norris frequenta a corte por causa de Madge — olhou em volta e o viu debruçado sobre o ombro de Madge, pronto para virar a página da pauta enquanto ela cantava. — Sir Henry! Venha cá, por favor!
Depois de uma palavra com Madge, foi até a rainha e caiu de joelhos, com um cavalheirismo gozador.
— Obedeço! — disse ele.
— Está na hora de se casar, Sir Henry — disse Ana com uma gravidade fingida. — Não posso tê-lo rondando meus aposentos, comprometendo minha reputação. Tem de fazer um pedido a Madge, não quero que minhas damas se comportem de maneira desonrosa.
Ele riu, também diante da ideia de Madge se comportar bem.
— Ela é o meu escudo. Meu coração está em outro lugar.
Ana sacudiu a cabeça.
— Não quero discursos bonitos — disse ela. — Tem de fazer uma proposta de casamento a Madge e cumpri-la.
— Ela é a lua, mas Sua Majestade é o sol — replicou Henry.
Girei os olhos para George.
— Não sente, às vezes, vontade de chutá-lo? — sussurrou.
— O homem é um idiota — eu disse. — E isso não nos levará a lugar nenhum.
— Não posso oferecer à Srta. Shelton o meu coração inteiro, portanto não lhe oferecerei nada — disse Henry, livrando-se com uma cortesia formal. — Meu coração pertence à rainha de todos os corações da Inglaterra.
— Obrigada — disse Ana simplesmente. — Pode voltar a virar páginas para a lua.
Norris riu, levantou-se e beijou sua mão.
— Mas não posso evitar comentários em meus aposentos — advertiu-o Ana. — O rei tornou-se severo desde a sua queda.
Norris beijou sua mão de novo.
— Nunca terá motivos para se queixar de mim — prometeu-lhe. — Eu sacrificaria minha vida pela senhora.
Andou de modo afetado até Madge, que ergueu os olhos e encontrou os meus. Fiz uma careta e ela sorriu largo de volta. Nada conseguiria fazer essa garota se comportar como uma dama.
George inclinou-se sobre o ombro de Ana.
— Não pode pôr fim a todos os boatos. Tem de viver como se nenhum deles tivesse importância.
— Vou acabar com cada um — jurou. — E você vai descobrir com quem o rei está se reunindo, e o que estão dizendo sobre mim.
George não conseguiu descobrir o que estava acontecendo. Mandou-me procurar meu pai, que olhou para o outro lado e disse para eu perguntar a meu tio quais eram as novidades. Encontrei meu tio no pátio das cavalariças, examinando uma égua que ele pretendia comprar. O sol de abril estava quente. Esperei na sombra da entrada até ele ter terminado, e então me aproximei.
— Tio, o rei parece muito envolvido com o secretário Cromwell, com o tesoureiro-mor e com o senhor. A rainha se pergunta qual será o assunto que está demorando tanto a se resolver.
Dessa vez não se afastou de mim com seu sorriso amargo. Encarou-me e seus olhos escuros estavam repletos de algo que nunca vira neles: pena.
— Eu tiraria seu filho dos tutores e levaria para casa — avisou em tom baixo. — Está estudando com o filho de Henry Norris nos cistercienses, não está?
— Sim — respondi confusa com a mudança de conduta.
— Eu não manteria nenhuma relação com Norris, Brereton ou Weston, se fosse você. E se lhe mandarem cartas ou poemas de amor, ou quaisquer lembrancinhas, eu os queimaria.
— Sou uma mulher casada, e amo meu marido — repliquei confundida.
— Este é a sua salvaguarda — concordou ele. — Agora vá. O que sei não a ajudaria, e é uma carga só minha. Vá, Maria. Mas se eu fosse você, teria meus dois filhos comigo. E deixaria a corte.
Não fui ver George e Ana, que me aguardavam ansiosamente. Fui direto aos aposentos do rei, procurar meu marido. Ele estava na sala de audiências, o rei estava em suas salas privadas com o núcleo interno de consultores que o mantiveram ocupado durante toda essa primavera. Assim que William me viu entrar, veio até mim e me levou para o corredor.
— Más notícias?
— Nenhuma, parece uma charada.
— Que charada?
— Do meu tio. Disse-me para não ter nada a ver com Henry Norris, William Brereton, Francis Weston ou Thomas Wyatt. Quando respondi que não tinha, disse-me para tirar Henrique de seus tutores, manter meus filhos comigo e deixar a corte.
William refletiu por um instante.
— Onde está a charada?
— No que ele quis dizer.
Sacudiu a cabeça.
— Seu tio sempre será um enigma para mim — disse ele. — Não vou pensar em qual foi a sua intenção, vou seguir o seu conselho. Vou buscar Henrique imediatamente.
Com dois passos largos, ele estava de volta à sala do rei, pegou um homem pelo braço e lhe pediu que se o rei o procurasse, dissesse que estaria de volta em quatro dias. Então, saiu para o corredor, e se dirigiu à escada com tanta pressa que tive de correr para acompanhá-lo.
— Por quê? O que acha que vai acontecer? — perguntei, assustada.
— Não sei. Só sei que se o seu tio diz que nosso filho não deve ficar com o filho de Henry Norris, então o levarei para casa. E quando eu chegar com ele, iremos todos para Rochford. Não vou esperar o segundo aviso.
A grande porta para o pátio foi aberta e ele correu para fora. Segurei a barra do meu vestido e corri atrás. No pátio, gritou para um dos garotos Howard que veio aos tropeções e recebeu ordens de atrelar o cavalo de meu marido.
— Não posso tirá-lo de seus tutores sem a permissão de Ana — falei apressadamente.
— Vou buscá-lo — disse William. — Você consegue a permissão depois, se for necessário. Os eventos estão se desenrolando rápido demais para mim. Quero que o seu menino fique seguro — abraçou-me e beijou-me forte na boca. — Meu amor, odeio ter de deixá-la aqui, em meio a tudo isso.
— O que poderia acontecer?
Beijou-me com força.
— Só Deus sabe. Mas o seu tio não faz advertências levianas. Vou buscar nosso filho e depois nos afastaremos disso antes que sejamos envolvidos.
— Vou buscar sua capa de viagem.
— Usarei a de um dos cavalariços — entrou rapidamente na cavalariça e saiu com um manto comum de fustão.
— Está com tanta pressa que nem pode esperar eu buscar seu manto?
— É melhor eu ir — replicou simplesmente, e essa certeza inabalável me deixou mais temerosa que nunca em relação à segurança de meu filho.
— Está com dinheiro?
— Bastante — sorriu largo. — Acabei de ganhar uma bolsa de moedas de ouro de Sir Edward Seymour. Bem oportuna, não?
— Quanto tempo ficará fora?
Refletiu por um momento.
— Três, quatro dias, não mais. Viajarei sem parar. Pode esperar quatro dias por mim?
— Sim.
— Se a situação piorar, parta com Catarina e o bebê. Levarei Henrique a Rochford.
— Sim.
Mais um beijo e William montou. O cavalo estava descansado e ansioso para partir, mas ele o conduziu a passo ao passar pela arcada e sair para a estrada. Protegi os olhos do sol com a mão e o observei partir. Sob o sol forte sobre o pátio, estremeci como se o único homem que pudesse me salvar estivesse partindo.
Jane Seymour não voltou aos aposentos da rainha e uma quietude estranha pairou nos cômodos ensolarados. As criadas continuaram vindo e fazendo seu trabalho, o fogo era aceso, as cadeiras arrumadas, as mesas postas com frutas, água e vinho, tudo era preparado, mas ninguém aparecia.
Ana, eu, minha filha Catarina, tia Anne e Madge Shelton sentávamos, inquietas, nos grandes cômodos vazios. Minha mãe nunca apareceu, havia se afastado completamente de nós, como se não existíssemos. Nunca vimos nosso pai. Meu tio olhava para nós como se não nos visse.
— Sinto-me como se fosse um fantasma — disse Ana. Caminhávamos à margem do rio, ela apoiada no braço de George. Eu seguia atrás com Sir Francis Weston, Madge, mais atrás com William Brereton. Eu mal conseguia falar de ansiedade. Não sabia por que o meu tio tinha mencionado esses homens para mim. Não sabia que segredos guardavam. Sentia como se houvesse uma conspiração e, a qualquer momento, pisaria em uma armadilha e cairia sem saber nada.
— Estão tendo uma espécie de audiência — disse George. — Soube disso por um pajem que entrou para lhes servir vinho. O secretário Cromwell, nosso tio, o duque de Suffolk, o restante deles.
Cautelosamente, meu irmão e minha irmã não trocaram um olhar.
— Não têm nada contra mim — disse Ana.
— Não — disse George. — Mas podem forjar acusações. Pense no que foi dito contra a rainha Catarina.
Ana, de súbito, falou:
— É o bebê morto, não é? — disse ela. — Não é? E o testemunho daquela velha asquerosa, com suas mentiras malucas.
George balançou a cabeça.
— Pode ser. Não têm nada mais.
Ela deu meia-volta e partiu na direção do palácio.
— Eles vão ver só!
— Ana! — gritei. — Não se precipite!
— Tenho me esgueirado por esse palácio feito um rato, com medo de minha própria sombra, por três meses! — exclamou. — Aconselhou-me a ser doce. Fui doce! Agora vou me defender. Estão em uma audiência secreta para me julgar em segredo! Farei com que falem alto! Não serei condenada por um bando de velhos que sempre me odiou. Vão ver só!
Atravessou o gramado correndo, em direção à entrada do palácio. George e eu ficamos paralisados por um momento. Então, nos viramos para os outros.
— Continuem passeando — falei impetuosamente.
— Vamos com a rainha — disse George.
Francis pôs a mão instintivamente no braço de George para impedi-lo de ir.
— Está tudo bem — George tranquilizou-o. — Mas é melhor eu ir com ela.
George e eu atravessamos o gramado e seguimos Ana.
Ela não estava à porta da sala de audiências do rei e o soldado que a guardava disse que ela não tinha entrado. Esperamos sem saber aonde teria ido. Então, ouvimos seus passos subindo rápido a escadaria. Trazia a princesa Elizabeth nos braços, murmurando e rindo por ter sido tirada de seu quarto, observando o bruxuleio da luz enquanto sua mãe corria com ela no colo.
Enquanto corria, desabotoava o vestidinho da criança. Fez sinal para o guarda, que abriu a porta. Ela estava na sala de audiências antes de eles se darem conta.
— Do que sou acusada? — perguntou ao rei, da soleira da porta.
Ele levantou-se desajeitadamente da cabeceira da mesa. O olhar inflamado, furioso de Ana abarcou os nobres sentados à sua volta.
— Quem ousa dizer uma palavra contra mim na minha frente?
— Ana — começou o rei.
Ela virou-se para ele.
— Estão enchendo-o de mentiras e veneno contra mim — disse ela. — Tenho direito a um tratamento melhor. Tenho sido uma boa esposa, o amei mais do que qualquer outra mulher o amou.
Ele recostou-se em sua cadeira esculpida.
— Ana...
— Ainda não completei a gestação de um filho varão, mas a culpa não foi minha — disse ela com veemência. — Catarina tampouco. Chamou-a de bruxa por causa disso?
Houve murmúrios ao ouvirem a menção de seu nome, a palavra mais potente, de uma maneira causal. Vi um punho se cerrar com o polegar entre o indicador e o dedo médio, fazendo o sinal da cruz, para se proteger da bruxaria.
— Mas lhe dei uma princesa — gritou Ana. — A mais bela princesa que já existiu. Com seu cabelo e seus olhos, incontestavelmente sua filha. Quando ela nasceu, você disse que era só o começo, que teríamos filhos homens. Na época, você não tinha medo nem da sua sombra.
Ela tinha praticamente desnudado a criança e agora a estendia para que ele a visse. Henrique retraiu-se quando a menina gritou “papai!” e estendeu os braços para ele.
— Sua pele é perfeita, não tem uma mancha no corpo, nenhuma marca! Ninguém pode dizer que não é uma criança abençoada por Deus. Ninguém pode dizer que ela não será a maior princesa que este país já teve! Eu gerei para você esta bela e abençoada criança! E vou gerar muitas outras! Consegue olhar para ela e não perceber que terá um irmão tão forte e tão belo quanto ela?
A princesa Elizabeth olhou em volta, para aquelas caras austeras. Seu lábio inferior tremeu. Ana segurava-a no colo, a face atraente e desafiadora ao mesmo tempo. Henrique olhou para as duas, depois desviou os olhos de sua mulher e ignorou sua filha.
Achei que Ana explodiria de raiva por ele não ter tido coragem de encará-las, mas quando ele virou o rosto, a paixão, de súbito, abandonou-a, como se soubesse que ele já tinha tomado a decisão, e que ela sofreria por sua estupidez voluntariosa, obstinada.
— Oh, meu Deus, Henrique, o que fez? — sussurrou ela.
Ele proferiu apenas uma palavra. Disse:
— Norfolk! — e meu tio levantou-se de seu lugar à mesa, procurou por George e por mim, que pairávamos na entrada, sem saber o que fazer.
— Levem a sua irmã embora — disse ele. — Não deviam ter deixado que viesse aqui.
Em silêncio, entramos na sala. Tirei Elizabeth dos braços de Ana e ela me recebeu com um grito de prazer e se acomodou sobre meu quadril, e pôs o braço em volta do meu pescoço. George pôs o braço ao redor da cintura de Ana e a conduziu para fora.
Olhei para trás ao sairmos. Henrique não tinha se mexido. Continuou sem olhar para nós, Bolena, e para a nossa pequena princesa até a porta se fechar. Ficamos do lado de fora ainda sem saber o que estavam discutindo, o que tinham decidido, o que aconteceria depois.
Voltamos aos aposentos de Ana, a ama buscou Elizabeth. Entreguei-a com tristeza, ciente de meu desejo de carregar o meu próprio bebê. Pensei em William indo para tão longe buscar meu filho. A sensação de presságio pendia sobre o palácio como uma tempestade.
Ao abrirmos a porta para a sua câmara privada, uma pequena figura pulou à frente e Ana deu um grito e recuou. George puxou o punhal, e quase golpeou-o.
— Smeaton! — disse ele. — O que diabos está fazendo aqui?
— Vim ver a rainha — disse o garoto.
— Pelo amor de Deus, quase o matei. Não devia entrar sem autorização. Saia, garoto. Saia!
— Tenho de perguntar... tenho de dizer...
— Fora — repetiu George.
— Vai depor a meu favor, Majestade? — gritou Smeaton por cima do ombro, enquanto George o empurrava para fora. — Eles me chamaram e fizeram tantas perguntas...
— Espere um pouco — eu disse com urgência. — Perguntas sobre o quê?
Ana deixou-se cair sentada no vão da janela e olhou a distância.
— O que isso importa? — disse ela. — Perguntarão tudo a todo mundo.
— Perguntaram se eu era íntimo de Sua Majestade — disse o garoto, corando como uma menina. — Ou do senhor — disse a George. — Perguntaram se eu tinha sido um ganimedes para o senhor. Não entendi e, então, me explicaram.
— E o que respondeu? — perguntou George.
— Que não. Não quis contar para eles...
— Ótimo — disse George. — Insista nisso e não se aproxime da rainha, de mim ou de minha irmã de novo.
— Mas estou com medo — disse o garoto. Estava tremendo, havia lágrimas em seus olhos. Tinha sido interrogado por horas sobre vícios de que nunca ouvira falar. Eram velhos soldados e príncipes da Igreja endurecidos, sabiam mais sobre pecado do que ele algum dia saberia. Tinha corrido para pedir a nossa ajuda e não tinha recebido nada.
George levou-o à porta.
— Meta isso na sua bela cabecinha — disse ele sem rodeios. — Você é inocente, e lhes disse isso, e pode se safar. Mas se o veem aqui, acharão que é subornado por nós. Por isso vá embora e se mantenha longe daqui. Este é o pior lugar do mundo para procurar ajuda.
Empurrou-o para a porta, mas o garoto se agarrou ao caixilho, mesmo quando o soldado esperou por uma palavra de George para jogá-lo escada abaixo.
— E não mencione Sir Francis — disse George a meia-voz. — Nem nada que chegou a ver ou ouvir. Entendeu? Não diga nada.
O garoto continuou agarrado à porta.
— Eu não disse nada! — exclamou ele. — Fui leal. Mas e se me perguntarem de novo? Quem vai me proteger? Quem vai ser meu amigo?
George fez sinal com a cabeça para o soldado, que golpeou o braço do menino. Ele largou a porta com um grito de dor e George, antes de batê-la na sua cara, disse:
— Ninguém. Assim como ninguém vai nos proteger.
O dia seguinte foi 1º de maio, o começo da primavera. Ana deveria ter sido despertada com suas damas cantando sob sua janela e as donzelas desfilando com varinhas de salgueiro. Mas ninguém tinha organizado isso e assim, pela primeira vez, não aconteceu. Ela acordou desgrenhada e pálida na hora de sempre, e passou uma hora de joelhos no genuflexório, antes de ir à missa, conduzindo suas damas.
Jane seguiu atrás de branco e verde. Os Seymour tinham começado maio com flores e cantando, Jane tinha dormido com flores sob o travesseiro e sonhado, sem a menor dúvida, com seu futuro marido. Olhei para a sua face meiga e doce e me perguntei se ela sabia como as apostas eram altas no jogo que estava jogando. Sorriu para a minha expressão dura e me desejou uma alegre manhã de maio. Passamos em fila pela capela do rei e ele desviou o olhar quando Ana passou. Ela ajoelhou-se para as preces, e as acompanhou, dizendo palavra por palavra, tão devota quanto a própria Jane. Quando o serviço acabou e deixávamos a igreja, o rei surgiu de sua galeria e lhe perguntou:
— Vai comparecer ao torneio?
— Sim — disse Ana, surpresa. — É claro.
— Seu irmão foi escalado para combater Henry Norris — disse ele, observando-a atentamente.
Ana encolheu os ombros.
— E? — perguntou ela.
— Você terá dificuldades em escolher o campeão dessa justa — cada palavra sua estava carregada de significado, como se Ana soubesse do que ele estava falando.
Ela olhou para mim, como pedindo ajuda. Ergui a sobrancelha. Eu tampouco estava entendendo.
— Vou favorecer meu irmão, como qualquer boa irmã faria — disse ela, prudentemente. — Mas Henry Norris é um cavalheiro muito amável.
— Talvez não consiga escolher entre os dois — insinuou o rei.
Teve um quê digno de pena em seu sorriso intrigado.
— Não, sire. Qual gostaria que eu escolhesse?
O rosto dele ensombreceu-se imediatamente.
— Esteja certa que observarei quem você vai escolher — disse ele com um desprezo repentino, e afastou-se, mancando acentuadamente, a perna machucada aumentada pela atadura. Ana observou-o ir sem dizer nada.
A tarde foi quente, nuvens baixas comprimiam o palácio, e o local do torneio estava uma brasa. Uma vez ou outra, eu me pegava olhando na direção da estrada para Londres, para ver se William estava retornando, embora soubesse que deveria esperá-lo para somente dali a dois dias.
Ana estava usando prata e branco, carregando uma varinha, como se fosse uma garota despreocupada festejando a primavera. Os cavalheiros se preparavam para o torneio, passando a cavalo diante da galeria real, os capacetes sob os braços, sorrindo para o rei, com a rainha do lado, e para as damas atrás dela.
— Vai apostar? — perguntou o rei a Ana.
Notei seu sorriso diante do tom de voz normal dele.
— Oh, sim! — disse ela.
— De quem gosta mais para a primeira justa?
Foi a mesma pergunta que ele lhe fizera na capela.
— Vou torcer pelo meu irmão — disse ela sorrindo. — Nós, Bolena, somos unidos.
— Emprestei meu cavalo a Norris — avisou-lhe o rei. — Acho que vai descobrir que ele é o melhor.
Ela riu.
— Então devo lhe dar uma prenda e pôr o dinheiro em meu irmão. Gostaria que fosse assim, Majestade?
Ele balançou a cabeça sem dizer nada.
Ana pegou um lenço em seu vestido, debruçou-se na galeria real e acenou para Sir Henry Norris. Ele cavalgou até ela e baixou a lança saudando-a. Ela estendeu a mão com o lenço e ele, elegantemente, ainda segurando o cavalo com uma mão, apontou a lança para ela e tirou o lenço de sua mão com um movimento suave. Foi muito bem-feito, e as damas na galeria o aplaudiram. Norris sorriu, virou a lança, pegou o lenço e o guardou em seu peitoral.
Todos o estavam observando, mas eu observava o rei. Percebi nele uma expressão que nunca tinha visto, mas que senti, de alguma maneira, que estava lá, como uma sombra. O olhar que lançou a Ana quando ela deu seu lenço a Norris foi o de um homem que, depois de beber numa taça, a quebraria. Um homem que se cansou de um cachorro e que vai afogá-lo. Não queria mais saber da minha irmã. Percebi isso em sua expressão. Só não sabia como ele se livraria dela.
Houve um ruído de trovão, tão agourento quanto o rugido de um urso acuado, e o rei gritou que o torneio tivesse início. Meu irmão venceu a primeira justa, e Norris a segunda, e meu irmão, a terceira. Alinhou de novo seu cavalo e deu lugar para o competidor seguinte. Ana levantou-se para aplaudi-lo.
O rei ficou sentado, imóvel, observando-a. No calor da tarde, sua perna começou a exalar mau cheiro, mas ele não percebeu. Ofereceram-lhe bebida e alguns morangos. Ele bebeu e comeu, aceitou um pouco de vinho. O torneio prosseguiu. Ana virou-se e sorriu para ele, conversou com ele. O rei continuou sentado, como se fosse o seu juiz, como se fosse o dia do juízo.
No fim da justa, Ana se levantou para distribuir os prêmios. Eu nem mesmo vi quem venceu. Observava o rei, enquanto ela entregava os prêmios e estendia sua mão pequena para ser beijada. O rei levantou-se e foi para os fundos da galeria. Vi-o apontar para Henry Norris e chamá-lo com um gesto, ao sair. Norris tirou sua armadura, e ainda em seu cavalo suado, dirigiu-se à parte de trás da galeria, ao encontro do rei.
— Aonde o rei está indo? — perguntou Ana, olhando em volta.
Relanceei os olhos na direção de Londres, ansiando por ver o cavalo de William. Mas lá, na estrada, estava o estandarte do rei, estava o inconfundível corpanzil do rei em seu cavalo. Norris estava ao seu lado, e os acompanhava uma pequena escolta. Cavalgavam rapidamente para o oeste, rumo a Londres.
— Aonde vai com tanta pressa? — perguntou Ana, inquieta. — Ele avisou que partiria?
Jane Parker se adiantou.
— Não soube? — perguntou com vivacidade. — O secretário Cromwell manteve aquele garoto, o Mark Smeaton, em sua casa a noite toda e, agora, o enviou para a Torre. Mandou comunicarem isso ao rei. Talvez o rei esteja indo à Torre para saber o que o garoto confessou. Mas por que levou Henry Norris?
George e eu ficamos nos aposentos de Ana como prisioneiros fugitivos. Sentamo-nos em silêncio. Tínhamos a sensação de estarmos sitiados.
— Vou partir assim que clarear — eu disse a Ana. — Lamento, Ana, tenho de tirar Catarina daqui.
— Onde está William? — perguntou George.
— Foi buscar Henrique.
A cabeça de Ana se ergueu ao ouvir isso.
— Henrique é meu pupilo — lembrou-me ela. — Não pode pegá-lo sem o meu consentimento.
Pela primeira vez, não me rebelei contra ela.
— Pelo amor de Deus, Ana, trata-se da segurança dele. Não é hora de nós duas disputarmos nada. Vou mantê-lo a salvo e, se puder proteger Elizabeth, também ficarei com ela.
Ela fez uma pausa, como se mesmo nesse momento fosse competir comigo, mas acabou consentindo.
— Vamos jogar cartas? — perguntou ela, de maneira leviana. — Não consigo dormir. Vamos jogar a noite toda?
— Está bem. Só vou ver se Catarina está dormindo.
Saí para procurar minha filha. Tinha jantado com as outras damas e me contou que o salão era só comentários. O trono do rei estava vazio. Cromwell também não estava. Ninguém sabia por que Smeaton tinha sido preso. Ninguém sabia por que o rei tinha levado Norris. Se tivesse sido uma honra especial, onde estavam? Onde jantariam nessa noite especial?
— Não importa — eu disse de modo repressor. — Quero que arrume algumas coisas suas, uma camisa e algumas meias limpas em uma bolsa, e esteja pronta para partir amanhã.
— Corremos perigo? — Não estava surpresa, era agora uma criança da corte, nunca mais voltaria a ser a garota inocente do campo.
— Não sei — respondi direto. — E quero que esteja bem forte para cavalgar o dia inteiro, por isso agora durma. Promete?
Ela confirmou com a cabeça. Deitei-a em minha cama, e ela descansou a cabeça no travesseiro que William geralmente usava. Rezei a Deus para que William e Henrique chegassem no dia seguinte e que todos nós partíssemos juntos para onde a macieira se inclinava sobre a estrada, e a pequena fazenda se aninhava sob o sol. Dei-lhe um beijo de boa-noite e mandei um pajem correr para avisar à ama que estivesse pronta para partir ao amanhecer.
Voltei aos aposentos da rainha. Ana estava enroscada perto do fogo, George ao seu lado, no tapete em frente à lareira, como se estivessem gelados, apesar de as janelas estarem abertas e a noite quente sem brisa não balançar nem os reposteiros.
— Os Bolena — eu disse, entrando sem fazer barulho.
George virou-se, estendeu um braço para mim, e me puxou para o seu lado, de modo que pudesse segurar nós duas.
— Aposto que sairemos dessa — disse ele com determinação. — Aposto que vamos subir, confundir todos eles, e que, nesta época, no ano que vem, Ana terá um menino no berço e eu serei Cavaleiro da Jarreteira.
Passamos a noite abraçados como vagabundos com medo do bedel, e quando a janela começou a se iluminar, desci silenciosamente a escada, até o pátio das cavalariças e joguei uma pedra na janela da peça em que os cavalariços dormiam. O primeiro garoto que apareceu recebeu a incumbência de atrelar minha égua. Mas quando trouxe a égua de Catarina, parou e sacudiu a cabeça.
— Está sem ferradura — disse ele.
— O quê?
— Tenho de levá-la ao ferreiro.
— Pode ser agora?
— Ainda não abriu.
— Mande-o abrir!
— Senhora, a forja vai estar fria. Ele tem de acordar, acender o fogo, esquentar a forja e, então, ferrá-la.
Praguejei, frustrada, e fiz menção de me afastar.
— Pode levar outro cavalo — sugeriu, bocejando.
Sacudi a cabeça. A viagem era longa e Catarina não era uma amazona tão boa para conduzir um cavalo estranho.
— Não — eu disse. — Teremos de esperar que a égua seja ferrada. Leve-a ao ferreiro, acorde-o e consiga que a ferre. Depois, venha me avisar, onde quer que eu esteja, em particular, que ela está pronta. E não conte para o resto do castelo — relanceei os olhos ansiosamente para as janelas obscurecidas do palácio. — Não quero que todos os bobos do mundo saibam que estou partindo.
Passou a mão no topete. Peguei uma moeda no bolso do meu vestido e pus em sua mão encardida.
— Tem outra para você, se fizer isso direito.
Voltei para o palácio. O sentinela sonolento à porta ergueu a sobrancelha para mim, se perguntando o que eu fazia de lá para cá ao amanhecer. Sabia que ia contar a alguém: ao secretário Cromwell, talvez ao meu tio, ou quem sabe a Sir John Seymour, que se tornava tão importante que deveria ter espiões também.
Hesitei na escadaria. Queria ir ver Catarina dormindo em minha cama grande. Mas havia luz de vela sob a porta dos aposentos da rainha e senti que fazia parte da longa noite de vigília dos dois. O sentinela se afastou, abri a porta e entrei.
Continuavam acordados, rostos colados, diante do fogo, murmurando tão suavemente, que pareciam um par de pombos arrulhando no pombal. Viraram a cabeça juntos, quando entrei.
— Não foi? — perguntou Ana.
— O cavalo de Catarina tem de ser ferrado.
— Quando vai partir? — perguntou George.
— Assim que for ferrado. Paguei um garoto para levá-lo ao ferreiro e me avisar assim que estiver tudo feito.
Atravessei a sala e me sentei perto deles. Nós três nos viramos para o fogo e observamos as chamas.
— Queria que ficássemos aqui, assim, para sempre — disse Ana, com a expressão sonhadora.
— Mesmo? — eu disse surpresa. — Eu estava pensando que esta foi a pior noite da minha vida. Queria que nunca tivesse acontecido, que pudesse acordar e ver que tinha sido um sonho.
O sorriso de George foi triste.
— Isso é porque você não teme o amanhã — disse ele. — Se o temesse tanto quanto nós, desejaria que a noite continuasse para sempre.
Apesar de seu desejo, o dia foi clareando e ouvimos os criados se agitarem no salão, uma criada subindo a escada, retinindo seu balde com gravetos para acender o fogo no quarto da rainha, seguida de outra com escovas e panos para limpar as mesas para o início de mais um dia.
Ana levantou-se, o rosto apático, as bochechas manchadas de cinza, como se tivesse estado se condoendo na igreja na Quarta-Feira de Cinzas.
— Tome um banho — disse George, estimulando-a. — É muito cedo. Mande trazerem água quente e lave a cabeça. Vai se sentir muito melhor depois.
Ela sorriu à banalidade da sugestão e concordou.
George inclinou-se à frente e a beijou.
— Eu a verei nas matinas — disse ele, e saiu.
Foi a última vez que vimos meu irmão como homem livre.
George não compareceu às matinas. Ana e eu, rosadas por causa do banho e nos sentindo mais confiantes, o procuramos, mas não o vimos. Sir Francis não sabia onde ele estava. Nem Sir William Brereton. Henry Norris não tinha voltado de Londres. Não havia notícias de qual era a acusação contra Mark Smeaton. O peso do medo nos abateu de novo, como as nuvens baixas sobre os telhados do palácio.
Mandei uma mensagem à ama de leite dizendo que deveríamos partir em uma hora.
Havia um jogo de tênis e Ana tinha prometido premiar o vencedor com uma moeda de ouro em uma corrente de ouro. Foi para as quadras e se sentou sob o toldo, sua cabeça se movendo com a disciplina de uma dançarina, para a esquerda e para a direita, a cabeça acompanhando a bola, mas sem vê-la. Eu estava em pé atrás dela, esperando o garoto vir avisar que eu podia partir. Catarina estava ao meu lado, esperando que eu a mandasse se vestir para a viagem, quando o portão do recinto real se abriu atrás de mim e dois soldados da guarda se aproximaram, com um oficial. No momento em que os vi, senti que algo profundo e terrível acontecia. Abri a boca para falar, mas as palavras não saíram. Muda, toquei no ombro de Ana. Ela virou-se, olhou para mim, depois para os rostos inflexíveis dos homens.
Não fizeram uma reverência, como deviam. Foi isso que confirmou o nosso medo. Isso e o grito de uma gaivota que, de súbito, sobrevoou baixo a quadra e gritou como uma garota ferida.
— O Conselho Privado ordena a sua presença, Majestade — disse o capitão.
— Oh — disse Ana e se levantou. Olhou para Catarina e para mim. Olhou em volta para as suas damas, e todas olhavam para qualquer lugar menos para ela. Estavam completamente fascinadas pelo tênis. Tinham aprendido o truque de Ana, a cabeça para a esquerda e para a direita, enquanto os olhos não viam nada, os ouvidos aguçados, e o coração batendo forte com receio de ela ordenar que a acompanhassem.
— Devo ter companhia — disse ela. Nenhuma das megeras se virou para olhar. — Uma dama deve vir comigo — seus olhos fixaram-se em Catarina.
— Não — falei de súbito, percebendo o que ela ia fazer. — Não, Ana. Não. Imploro que não.
— Posso levar uma companhia? — perguntou ao capitão.
— Sim, Majestade.
— Levarei minha dama de honra, Catarina — disse ela simplesmente e, então, dirigiu-se calmamente ao portão que o soldado manteve aberto para ela. Catarina lançou-me um olhar perplexo e seguiu atrás de sua rainha.
— Catarina! — eu disse com rispidez.
Ela olhou para mim, não sabia, coitadinha, o que devia fazer.
— Venha — disse Ana, com a voz calma, e Catarina lançou-me um ligeiro sorriso.
— Anime-se — disse ela, de repente, de maneira estranha, como se estivesse representando um papel em uma peça. Então, se virou e seguiu a rainha com a compostura de uma princesa.
Fiquei atônita demais para fazer qualquer outra coisa a não ser observá-las irem. Assim que ficaram fora de vista, segurei minhas saias e corri ao palácio para procurar George, meu pai, qualquer um que pudesse ajudar Ana e que tirasse Catarina dela, sã e salva de volta para mim, e a caminho de Rochford.
Corri e um homem me pegou quando eu me dirigia à escadaria. Empurrei-o e, então, percebi que era o único homem no mundo inteiro que eu queria.
— William!
— Meu amor, então já sabe?
— Oh, meu Deus, William. Levaram Catarina! Levaram a minha menina!
— Prenderam Catarina? Qual a acusação?
— Não! Ela está com Ana. Como dama de companhia. E Ana recebeu ordens de se apresentar ao Conselho Privado.
— Em Londres?
— Não, aqui.
Soltou-me imediatamente, praguejou, deu alguns passos, voltou para mim e pegou minhas mãos.
— Teremos de esperar, então, até ela aparecer. — Examinou meu rosto. — Não fique assim, Catarina é uma mocinha. Estão interrogando a rainha e não ela. Provavelmente nem falarão com ela, e se falarem, não terá nada a esconder.
Respirei fundo e concordei.
— Não. Ela não tem nada a esconder. Não viu nada que não seja conhecido. E só lhe farão perguntas. Ela é da pequena nobreza. Não farão nada mais grave. Onde está Henrique?
— Em segurança. Deixei-o em nosso quarto com a ama e o bebê. Achei que estava correndo por causa do seu irmão.
— O que houve com ele? — perguntei, meu coração voltando a se acelerar. — O que houve com George?
— Foi preso.
— Com Ana? — perguntei. — Para responder ao Conselho Privado?
A face de William estava sombria.
— Não — replicou. — Levaram-no para a Torre. Henry Norris já está lá, o rei em pessoa conduziu-o à Torre ontem. E Mark Smeaton. Lembra-se do cantor? Também está lá.
Meus lábios estavam entorpecidos.
— Qual é a acusação? Por que interrogam a rainha aqui?
Ele sacudiu a cabeça.
— Ninguém sabe.
Esperamos até o meio-dia por mais notícias. Fiquei rondando o hall diante da câmara em que o Conselho Privado estava interrogando a rainha, mas não me deixaram entrar na antecâmara por medo de que eu escutasse à porta.
— Não quero escutar, só quero ver a minha filha — expliquei ao sentinela. Ele balançou a cabeça e não disse nada, mas fez um gesto para que me afastasse da soleira.
Um pouco depois do meio-dia, a porta se abriu e um pajem apareceu e sussurrou algo para o sentinela.
— Tem de ir embora — me disse o sentinela. — Recebi ordens de deixar o caminho livre.
— Para o quê? — perguntei.
— Tem de ir — insistiu com obstinação. Deu um grito para o salão lá embaixo e um grito de resposta ressoou para cima. Empurrou-me delicadamente para o lado, afastando-me da porta do Conselho Privado, da escadaria, do vestíbulo, da porta do jardim, e finalmente, do próprio jardim. Todos os outros cortesãos com que se deparavam pelo caminho também foram afastados. Todos obedecemos, foi como se, até então, não tivéssemos reconhecido como o rei era poderoso.
Percebi que tinham desobstruído o caminho do Conselho Privado até os degraus que desciam ao rio. Corri para a plataforma de desembarque das pessoas comuns. Nessa plataforma, não havia nenhum guarda, ninguém que me impedisse de ir até o seu extremo. Forcei a vista para enxergar o píer do Palácio de Greenwich.
Vi-as nitidamente: Ana em seu vestido azul, que usara para assistir ao tênis, Catarina, um passo atrás dela, em seu vestido amarelo. Ainda bem que levava seu manto, para o caso de esfriar no rio, e percebi como era tola a minha preocupação com a possibilidade de ela se resfriar, já que nem sabia aonde a estavam levando. Observei-as atentamente, como se ao vê-la pudesse protegê-la. Subiram a bordo da barcaça do rei, não a embarcação da rainha, e o rufar de tambores para os remadores me pareceu tão agourento e tão lúgubre quanto o rufar dos tambores quando o carrasco ergue o machado.
— Aonde estão indo? — gritei o mais alto que consegui, incapaz de continuar reprimindo meu medo.
Ana não me ouviu, mas vi a forma branca do rosto de Catarina, ao se virar e me procurar com os olhos no jardim do palácio.
— Aqui! Estou aqui! — gritei ainda mais alto e acenei para ela. Olhou na minha direção, ergueu a mão em um gesto quase imperceptível, e acompanhou Ana a bordo da barcaça do rei.
Os soldados deram impulso com os remos assim que elas embarcaram. O balanço brusco da embarcação fez com que se sentassem e, por um momento, a perdi de vista. Então, a vi de novo. Estava sentada em uma pequena cadeira do lado de Ana e olhava na minha direção. Os remadores levaram o barco ao meio do rio, remando com facilidade na preamar.
Não gritei de novo, o rufar do tambor dos remadores abafaria minha voz e eu não queria assustar Catarina, vendo sua mãe chorar por ela. Fiquei muito quieta e acenei para ela, para que visse que eu sabia aonde estava indo, e que iria ao seu encontro assim que pudesse.
Senti, mas não me virei para olhar, quando William chegou e acenou para a nossa filha.
— Aonde acha que a estão levando? — perguntou, como se não soubesse a resposta tanto quanto eu.
— Você sabe aonde — repliquei. — Por que me pergunta? Ao pior lugar que poderíamos imaginar. À Torre.
William e eu não nos retardamos. Fomos direto ao nosso quarto, jogamos algumas roupas em uma bolsa e corremos para os estábulos. Henrique estava esperando com os cavalos, e recebeu um abraço rápido e um sorriso meu, antes de William pôr-me sobre a sela e montar seu próprio cavalo. Levamos a égua de Catarina, recentemente ferrada, conosco. Henrique puxou-a ao lado de seu cavalo enquanto William puxava o cavalo robusto da ama de leite. Ela estava nos esperando e a pusemos na sela, amarrando o bebê com firmeza em seu peito. Partimos do palácio e pegamos a estrada para Londres em silêncio, sem dizer a ninguém aonde estávamos indo nem por quanto tempo ficaríamos fora.
William alugou quartos para nós atrás de Minories, longe da margem do rio. Dava para ver a Torre Beauchamp, onde Ana e minha filha estavam presas. Meu irmão e os outros homens estavam em outro lugar perto dali. Era a torre em que Ana passara a noite de véspera da sua coroação. Eu me perguntei se ela se lembraria do vestido suntuoso que usara e do silêncio na cidade que a avisara de que nunca seria uma rainha amada.
William ordenou à dona da casa que nos preparasse o jantar e saiu para saber as últimas notícias. Voltou a tempo de comer, e quando a mulher acabou de nos servir e saiu da sala, contou-me o que sabia. Nas hospedarias ao redor da Torre se comentava que a rainha tinha sido aprisionada sob a acusação de adultério e bruxaria, e de sei lá mais o quê.
Balancei a cabeça. O destino de Ana estava selado. Henrique estava usando o poder do boato, a voz da plebe, para preparar o terreno para a anulação do casamento e a aceitação de uma nova rainha. Nas tabernas, já comentavam que o rei estava apaixonado de novo e, dessa vez, por uma bela garota inocente, uma inglesa de Wiltshire, que Deus a abençoasse, e tão devota e doce quanto Ana tinha sido excessivamente instruída e influenciada pelas maneiras francesas. Não se sabe de onde chegou a certeza de que Jane Seymour era amiga da princesa Mary. Havia servido à rainha Catarina. Rezava à maneira antiga, não lia livros polêmicos nem argumentava com homens mais bem informados. A sua família não era de lordes cobiçosos mas de homens honrados. E era uma família fértil. Não havia dúvidas de que Jane Seymour teria mais de um filho varão, enquanto Catarina e Ana não tinham conseguido.
— E meu irmão?
William sacudiu a cabeça.
— Nenhuma notícia.
Fechei os olhos. Não consegui imaginar um mundo em que George não pudesse ir e vir a seu bel-prazer. Quem poderia acusar George? Do que poderiam culpá-lo, ele tão doce e tão fraco?
— E quem está atendendo Ana? — perguntei.
— Sua tia, mãe de Madge Shelton, e duas outras damas.
Fechei a cara.
— Ninguém de quem ela goste ou em que confie. Pelo menos, agora, pode liberar Catarina. Não está sozinha.
— Acho que você poderia lhe escrever. Ela pode receber cartas se forem deixadas abertas. Eu a levarei a William Kingston, o condestável da Torre e pedirei que a entregue a ela.
Desci a escada estreita até o alojamento da zeladora e pedi um pedaço de papel e uma pena. Permitiu que eu usasse a sua escrivaninha e acendeu uma vela para mim, quando me sentei à janela para aproveitar o resto de luz do dia.
Querida Ana,
sei que está sendo atendida por outras damas, portanto, por favor, pode liberar Catarina, já que preciso dela comigo.
Peço que a deixe sair agora.
Maria
Deixei pingar um pouco da cera da vela e pressionei meu anel para imprimir o “B” de Bolena. Deixei a carta aberta e a entreguei a William.
— Ótimo — disse ele, lendo-a rapidamente. — Vou levá-la imediatamente. Ninguém pode achar que você quer dizer outra coisa além do que está escrito. Esperarei a resposta. Talvez já a traga comigo e poderemos partir para Rochford amanhã.
Concordei com a cabeça e disse:
— Vou ficar esperando.
Henrique e eu jogamos cartas diante da pequena lareira, sobre uma mesa instável, sentados em dois bancos de madeira. Apostávamos uma ninharia e eu estava ganhando todas as suas moedas. Então deixei que ganhasse um pouco, avaliei mal e fali rapidamente. E William nada de chegar.
Chegou à meia-noite.
— Lamento ter demorado tanto — disse ele, percebendo minha palidez. — Não a trouxe.
Dei um gemido e ele me puxou para perto.
— Estive com ela — disse ele. — Por isso me demorei tanto. Achei que gostaria que a visse e soubesse como está.
— Está aflita?
— Muito calma — replicou com um sorriso. — Pode ir vê-la amanhã, na mesma hora, e todos os dias até a rainha ser libertada.
— Mas ela não pode sair?
— A rainha quer mantê-la e o condestável tem ordens de lhe conceder tudo o que, razoavelmente, ela desejar.
— Certamente...
— Tentei de tudo — disse William. — Mas é direito da rainha ter atendentes, e Catarina é a única que ela realmente requisitou. As outras foram praticamente impostas. Uma delas é a mulher do condestável, que está lá para espionar tudo o que ela disser.
— E como está Catarina?
— Vai ficar orgulhosa dela. Mandou-lhe um beijo e disse que gostaria de ficar e servir à rainha. Disse que Ana está doente, abatida e que chora. Ela gostaria de ficar enquanto puder ajudar.
Dei um suspiro, metade de amor e orgulho, metade de impaciência.
— Ela é uma menina. Não deveria nem estar lá!
— Ela é uma moça — disse William. — Está cumprindo o seu dever como uma jovem deve fazer. E não corre nenhum perigo. Ninguém vai lhe fazer perguntas. Todos sabem que ela está na Torre como dama de companhia. Ninguém vai lhe fazer mal por causa disso.
— E Ana será acusada do quê?
William relanceou os olhos para Henrique e decidiu que ele já tinha idade para saber.
— Parece que será acusada de adultério. Sabe o que é adultério, Henrique?
O garoto corou um pouco.
— Sim, senhor. Está na Bíblia.
— Acho que é uma acusação falsa à sua tia — disse William sem alterar a voz. — Mas é a acusação que o Conselho Privado escolheu.
Por fim, eu começava a entender.
— E os outros que foram presos serão julgados com ela?
William assentiu com a cabeça, os lábios apertados.
— Sim. Henry Norris e Mark Smeaton serão acusados com ela, por serem seus amantes.
— Isso é um absurdo — eu disse.
William concordou com um movimento da cabeça.
— E meu irmão foi interrogado?
— Sim — replicou.
Algo em sua voz me alertou.
— Vão colocá-lo na roda? — perguntei. — Vão machucá-lo?
— Oh, não — garantiu-me William. — Não se esquecerão de sua classe social. Vão mantê-lo na Torre enquanto a interrogam e os outros.
— Mas do que o estão acusando?
William hesitou, relanceou os olhos para o meu filho.
— Do mesmo que os outros homens.
Por um instante, fiquei sem entender. Então, proferi a palavra.
— Adultério?
Ele confirmou com a cabeça.
Fiquei em silêncio. Meu primeiro pensamento foi gritar e negar, mas então me lembrei da necessidade absoluta de Ana de ter um filho, e da sua certeza de que o rei não poderia lhe dar um bebê sadio. Lembrei-me dela se recostando no peito de George e lhe dizendo que a Igreja não podia determinar o que era e o que não era pecado. E dele respondendo que poderia ser excomungado dez vezes antes do café da manhã — e de que ela tinha rido. Eu não sabia o que Ana tinha feito em seu desespero. Não sabia o que George teria ousado em sua intrepidez. Desviei meus pensamentos dos dois, como tinha feito antes.
— O que vamos fazer? — perguntei.
William pôs o braço em volta do meu filho e sorriu para ele, confiante.
— Vamos esperar — replicou. — Assim que puserem tudo em ordem, Catarina será liberada e iremos para casa, para Rochford. E manteremos a cabeça baixa por algum tempo. Pois seja Ana abandonada, posta em um convento ou exilada, acho que os Bolena já tiveram seu momento. Está na hora de voltar a fazer queijo para você, meu amor.
No dia seguinte, não havia nada a fazer a não ser esperar. Dei folga à ama e encorajei William e Henrique a darem uma volta e a comerem em uma cervejaria, enquanto eu ficava em casa com o bebê. À tarde, levei-a para um pequeno passeio à margem do rio e senti o vento soprar da água contra nossos rostos. Ao chegarmos em casa, tirei suas mantas e lhe dei um banho frio, arrepiando seu corpinho rosado, secando-o com lençol, e depois deixando-a dar chutes no ar, liberta, durante algum tempo, de seu cueiro. Tornei a envolvê-la em um cueiro limpo a tempo de chegarem para o jantar. Depois, deixei-a com a ama e eu, William e Henrique descemos ao grande portão da Torre e perguntamos se Catarina poderia nos ver.
Pareceu muito pequena ao caminhar ao longo do muro interno, da Torre Beauchamp até o portão. Mas andava como uma garota Bolena, como se fosse dona do lugar, a cabeça erguida, olhando em volta, um sorriso amável a um dos guardas por que passou, e um sorriso radiante para mim através da grade, quando abriram a porta dentro do portão de madeira e a deixaram sair.
Abracei-a.
— Meu amor.
Ela me abraçou forte e então abriu os braços para Henrique.
— Hen!
— Cat!
Olharam um para o outro deliciados.
— Cresceu — disse ela.
— Engordou — replicou ele.
William sorriu para mim.
— Nunca usam uma frase completa?
— Catarina, escrevi a Ana pedindo que a liberasse — falei rapidamente. — Quero que venha conosco.
Ela ficou séria no mesmo momento.
— Não posso. Ela está tão angustiada. Nunca a viu assim. Não posso abandoná-la. As outras damas são inúteis, duas não sabem o que estão fazendo e as outras duas são tia Bolena e tia Shelton, que ficam sentadas em um canto o tempo todo, cochichando com a mão na boca. Não posso deixá-la com elas.
— O que ela faz o dia inteiro? — perguntou Henrique.
Catarina enrubesceu.
— Ela chora e reza. Por isso não posso abandoná-la. Simplesmente não posso. Seria o mesmo que abandonar um bebê. Ela não consegue cuidar de si mesma.
— Você está se alimentando bem? — perguntei desanimada. — Onde está dormindo?
— Durmo com ela — disse Catarina. — Mas ela não dorme. E podemos comer tão bem quanto na corte. Está tudo bem, mamãe. E não será por muito tempo.
— Como sabe?
O capitão da guarda inclinou-se à frente e disse baixinho a William:
— Cuidado, Sir William.
William olhou para mim.
— Nós nos comprometemos a não discutir o assunto com Catarina. Viemos só para vê-la e saber que está bem.
Respirei fundo.
— Está bem. Mas, Catarina, se continuar por mais de uma semana, terá de vir conosco.
— Farei como quiser — replicou com doçura.
— Está precisando de alguma coisa? Quer que traga algo amanhã?
— Roupa de cama limpa — disse ela. — E a rainha precisa de mais um ou dois vestidos. Pode mandar trazerem de Greenwich?
— Sim — respondi, resignada. Parecia que a minha vida inteira eu tinha feito tarefas para Ana e, mesmo agora, nessa grande crise por que passávamos, eu continuava à sua disposição.
William olhou para o capitão da guarda.
— Pode ser, capitão? Minha esposa pode trazer roupa de cama e vestidos para elas?
— Sim, sir — respondeu o homem. Bateu no chapéu para mim. — É claro.
Sorri com tristeza. Ninguém nunca tinha aprisionado uma rainha sem provas nem acusação. Era difícil saber qual era o lado seguro.
Abracei Catarina de novo, e senti o cabelo macio em sua testa, que se soltara do capelo, sob meu queixo. Beijei sua testa e senti o perfume de sua pele jovem e quente. Foi terrível ter de deixá-la. Ela passou pelo portão e desceu à passagem pavimentada de pedras sob a grande sombra da torre. Fez uma pausa, acenou e desapareceu.
William acenou e, depois, se virou para mim.
— Uma coisa que nunca falta aos Bolena é a coragem absoluta — disse ele. — Se fossem cavalos, eu não teria outra raça, pois saltariam qualquer coisa. Mas como mulheres, são tremendamente difíceis de se conviver.
Maio de 1536
Peguei um barco rumo a Greenwich para buscar os vestidos para a rainha e a roupa de cama para Catarina, deixando William, Henrique e o bebê instalados perto da Torre. William ficou inquieto por eu viajar sem ele, e eu também estava receosa. Retornar ao Palácio de Greenwich era como voltar a correr perigo, mas preferi ir sozinha e saber que meu filho — aquela mercadoria preciosa e rara, um filho do rei — estava longe da corte. Prometi não levar mais de duas horas e não parar para nada.
Foi fácil entrar em meus aposentos, mas os da rainha estavam lacrados por ordem do Conselho Privado. Pensei em procurar meu tio e pedir vestidos para Ana e a roupa de cama, mas decidi que não valia a pena chamar atenção para a outra garota Bolena, quando a primeira estava na Torre por crimes sem provas. Fiz uma trouxa com vestidos meus e estava saindo furtivamente do quarto quando Madge Shelton passou.
— Meu Deus, achei que tinha sido presa — disse ela.
— Por quê?
— Por que qualquer um de nós está sendo preso? Você desapareceu. É claro que pensei que estava na Torre. Eles a soltaram depois do interrogatório?
— Não fui detida — repliquei pacientemente. — Fui para Londres para ficar com Catarina. Ela foi como dama de companhia de Ana. Continua na Torre com ela. Só vim buscar roupa de cama.
Madge sentou-se no vão da janela e caiu em pranto.
Lancei um olhar rápido ao corredor e mudei a trouxa de roupa de um braço para o outro.
— Madge, tenho de ir. Qual é o problema?
— Meu Deus, achei que você estava presa e que, agora, tinham vindo atrás de mim.
— Por quê?
— É como ser estraçalhada na cova do urso — disse ela. — Interrogaram-me durante toda a manhã até eu não saber mais o que tinha visto ou ouvido. Torceram e torceram minhas palavras, até fazerem com que soassem como se fôssemos um bando de prostitutas em um bordel. Nunca fiz nada de errado. Você também não. Mas querem saber tudo sobre tudo. Precisam saber quando e onde e senti tanta vergonha de tudo!
Parei por um momento, tentando juntar os cacos.
— O Conselho Privado a interrogou?
— Interrogou todo mundo. Todas as damas e criadas da rainha. Todos que dançaram em seus aposentos. Teriam interrogado Purkoy, o cachorro, se ele não estivesse morto.
— E o que perguntaram?
— Quem se deitava com quem, quem prometia o quê. Quem dava presentes, quem faltava às matinas. Tudo. Quem estava apaixonado pela rainha, quem lhe escrevia poemas, que músicas ela cantava, quem tinha seu favor. Tudo.
— E o que responderam? — perguntei.
— Oh, no começo, ninguém disse nada — replicou Madge com vivacidade. — Evidentemente. Todos temos nossos segredos, que não queremos que ninguém conheça. Mas acabam sabendo uma coisa por uma pessoa, outra coisa por outra e, no fim, nos enrolam e nos pegam em erro, perguntam coisas que não sabemos e outras que sabemos, e o tempo todo, tio Howard nos olha como se fôssemos putas incorrigíveis, e o duque de Suffolk é tão delicado que a gente acaba lhe explicando coisas e percebendo que dissemos tudo o que não queríamos.
Encerrou o discurso banhada em lágrimas, e enxugou os olhos com um pedaço de renda. De repente, olhou para mim.
— Vá embora! Se a virem, vão levá-la para ser interrogada, e a única coisa que querem saber é sempre sobre George, você e a rainha, onde passaram uma noite, o que fizeram na outra.
Balancei a cabeça e me afastei imediatamente. Em um momento, a ouvi atrás de mim.
— Se estiver com Henry Norris, pode lhe dizer que fiz o possível para não falar nada? — pediu ela, tão digna de pena quanto uma menininha não querendo dizer mentiras. — Eles me forçaram a dizer que a rainha e eu, uma vez, jogamos por um beijo dele, mas nunca contei mais do que isso. Não mais do que conseguiram tirar de Jane.
Nem mesmo o nome da venenosa mulher de George me deteve, de tanta pressa que eu tinha de sair do palácio. Mas segurei a mão de Madge Shelton e a arrastei comigo escada abaixo, até a porta.
— Jane Parker?
— Foi quem levou mais tempo sendo interrogada, e redigiu uma declaração e a assinou. Foi depois de ela falar com eles, que fomos todos chamados de novo, e só perguntaram sobre George. Só sobre George e a rainha, e quanto bebiam juntos e a frequência com que vocês três ficavam a sós, e se você os deixava sozinhos.
— Jane deve tê-lo caluniado — eu disse.
— Ela estava se gabando disso — disse Madge. — E aquela coisa Seymour deixou o palácio ontem para ficar com os Carew, em Surrey, queixando-se do calor enquanto o resto de nós temos nossas vidas investigadas e desfeitas. — Terminou com um soluço. Parei e beijei seu rosto.
— Posso ir com você? — perguntou desesperada.
— Não — respondi. — Procure a duquesa em Lambeth, ela cuidará de você. E não diga que me viu.
— Vou tentar — replicou com franqueza. — Mas não sabe como é quando a acuam e perguntam de tudo repetidamente.
Balancei a cabeça e a deixei, em pé no alto da escada de pedras: uma garota bonita que tinha ido para a corte mais bela e elegante da Europa, e seduzido o próprio rei. E que agora via o mundo dar a volta e a corte se obscurecer e o rei se tornar desconfiado. E aprendeu que nenhuma mulher, por mais frívola, bonita ou dinâmica, podia se considerar segura.
Levei a roupa de cama para Catarina nessa noite e lhe disse que não tinha podido levar os vestidos para a rainha. Não lhe disse o porquê, não quis chamar a atenção para mim mesma nem para o nosso pequeno refúgio atrás de Minories. Não lhe contei o que ouvira do barqueiro no caminho de volta a Londres: que Sir Thomas Wyatt, antigo namorado de Ana, que tinha disputado com o rei a atenção dela há tantos anos, quando não fazíamos nada a não ser brincar com o amor, foi preso e Sir Richard Page, outro do nosso círculo, também.
— Vão me procurar em breve — eu disse a William, sentando-me perto do fogo. — Estão pegando todos que foram próximos dela.
— É melhor parar de ver Catarina todos os dias — disse ele. — Eu vou, ou mandamos uma criada. Você pode ir e ficar oculta, perto do rio, onde possa vê-la e saber que está bem.
No dia seguinte, mudamos de pousada e demos um nome falso. Henrique ia à Torre em nosso lugar, vestido como um cavalariço, e levava roupa de cama ou livros para Catarina. Esquivava-se no meio do povo para chegar ao portão, e depois, para chegar em casa, certificando-se de que ninguém o seguira. Se meu tio chegasse a entender que uma mulher pode amar uma filha, teria vigiado Catarina, e ela o teria levado a mim. Mas ele nunca percebeu isso, é claro. Poucos Howard perceberam que meninas eram algo mais do que fichas para apostarem no jogo do casamento.
E ele tinha mais o que fazer. Na metade do mês, quando as acusações foram publicadas, nos demos conta de que ele realmente andara muito ocupado. William trouxe as notícias ao vir da padaria, onde tinha comprado nosso jantar, e esperou até eu acabar de comer para me contar.
— Meu amor — disse ele, meigamente. — Não sei como prepará-la para as notícias.
Olhei seu rosto sério e afastei meu prato.
— Apenas conte rapidamente.
— Julgaram culpados: Henry Norris, Francis Weston, William Brereton e o garoto Mark Smeaton de adultério com a rainha, sua irmã.
Por um momento, não ouvi. Ouvi as palavras, mas foi como se viessem de muito longe e abafadas. William afastou minha cadeira da mesa e baixou minha cabeça. A sensação passou e vi as tábuas do assoalho debaixo de minhas botas e fiz força para levantar a cabeça.
— Deixe-me levantar, não estou desmaiando.
Soltou-me e se ajoelhou diante de mim, para ver meu rosto.
— Receio que tenha de rezar pela alma de seu irmão. É certo que vão condená-lo.
— Não foi julgado com os outros?
— Não. Eles foram julgados por um tribunal comum. Ele e Ana terão de enfrentar os pares do reino.
— Então, haverá uma explicação. Terão feito algum acordo.
William pareceu em dúvida.
Fiquei em pé com um pulo.
— Tenho de ir à corte — eu disse. — Não devia ter ficado aqui me escondendo covardemente como uma tola. Tenho de ir e lhes dizer que estão errados. Antes que a situação se agrave. Se eles foram julgados culpados, tenho de ir à corte a tempo de depor que George é inocente, e Ana também.
Ele foi mais rápido do que eu, e bloqueou a porta antes de eu dar dois passos.
— Sabia que ia dizer isso e não irá.
— William, meu irmão e minha irmã correm grave perigo. Tenho de salvá-los.
— Não. Porque se levantar um tantinho a sua cabeça, a perderá, assim como eles. Quem você acha que está ouvindo as provas contra esses homens? Quem vai presidir a corte contra o seu irmão? O seu próprio tio! Usou sua influência para salvá-lo? O seu pai usou? Não. Porque sabem que Ana ensinou o rei a ser um tirano e, agora, ele enlouqueceu, e não podem impedir a sua tirania.
— Tenho de defendê-lo — eu disse, empurrando-o. — Trata-se de George, do meu querido George. Acha que quero ser enterrada sabendo que, nesse momento do seu julgamento, ele olhou em volta e não viu ninguém levantar um dedo por ele? Se significa a minha morte, irei.
De repente, William pôs-se de lado.
— Então, vá — disse ele. — Dê um beijo de despedida em nossa filha, antes de sair, e em Henrique. Direi a Catarina que a abençoou. E se despeça de mim. Pois se entrar naquele tribunal, não sairá viva. Não há nenhuma dúvida de que será julgada, no mínimo, por bruxaria.
— Por fazer o quê, pelo amor de Deus? — exclamei.— O que acha que eu fiz? O que acha que cada um de nós fez?
— Ana é acusada de seduzir o rei com feitiçaria. O seu irmão, por ajudá-la. Por isso o julgamento dos dois será feito separadamente. Perdoe-me não ter-lhe dito tudo de uma vez só. Não é o tipo de notícia que gosto de dar à minha mulher, com o jantar. São acusados de serem amantes e de convocarem o diabo. Vão ser julgados separadamente, não porque serão isentados, mas porque seus crimes são graves demais para serem ouvidos em uma única sessão.
Ofeguei e cambaleei. William me segurou e terminou o que tinha a me dizer.
— Juntos, são acusados de destruírem o rei, de torná-lo impotente com sortilégios, talvez com veneno. São acusados de serem amantes e gerarem o bebê que nasceu um monstro. Parte disso vai permanecer, diga você o que disser. Você ficou muitas noites até tarde nos aposentos de Ana. Ensinou-lhe como seduzir o rei, depois de ter sido a sua amante durante anos. Buscou uma parteira para ela, introduziu uma bruxa no próprio palácio. Não introduziu? Ocultou bebês mortos. Eu enterrei um. E tem muito mais, muito mais coisas que nem eu sei. Não tem? Segredos dos Bolena que você não contou nem mesmo para mim?
Quando me virei, ele balançou a cabeça.
— Acho que sim. Ela tomou poções e usou de sortilégios para conceber? — olhou para mim e balançou a cabeça de novo. — Ela envenenou o bispo Fisher, pobre santo homem, e tem a morte de três homens inocentes na consciência. Envenenou o cardeal Wolsey, a rainha Catarina...
— Não pode ter certeza disso! — exclamei.
Ele me olhou sério.
— Você é a irmã dela e não pode oferecer uma defesa melhor do que essa? Que não tem certeza de quantos ela matou?
Hesitei.
— Não sei.
— Certamente ela é culpada de se meter com bruxaria, certamente é culpada de seduzir o rei com um comportamento obsceno. Certamente é culpada de ameaçar a rainha, o bispo e o cardeal. Não pode defendê-la, Maria. Ela é culpada de pelo menos metade das acusações.
— Mas George... — sussurrei.
— George a apoiou em tudo que fez — replicou William. — E pecou por conta própria. Se Sir Francis e os outros confessassem o que fizeram com Mark Smeaton e outros, seriam enforcados por sodomia, antes de qualquer outra coisa.
— Ele é meu irmão — eu disse. — Não posso abandoná-lo.
— Pode ir ao encontro de sua própria morte — disse William. — Ou pode sobreviver, criar seus filhos e ter a guarda da menina de Ana, que ficará desonrada e se tornará bastarda e órfã no fim desta semana. Pode esperar passar este reinado e ver como será o próximo. Ver o que o futuro reserva para a princesa Elizabeth, defender o nosso filho Henrique contra aqueles que vão querer instituí-lo como herdeiro do trono, ou pior ainda, alardear que pretende o trono. Você deve isso a seus filhos: protegê-los. Ana e George fizeram suas próprias escolhas. Mas a princesa Elizabeth, Catarina e Henrique as farão no futuro. Você deverá estar lá para ajudá-los.
Meus punhos em seu peito abriram-se, e minhas mãos penderam ao lado de meu corpo.
— Está bem — eu disse languidamente. — Deixarei que vão a julgamento sem mim. Não irei à corte defendê-los. Mas vou procurar meu tio e perguntar se é possível fazer alguma coisa para salvá-los.
Esperei que negasse também isso, mas hesitou.
— Tem certeza de que não vão detê-la? Ele acaba de julgar três homens que conhece desde meninos e de condená-los a serem enforcados, castrados e esquartejados. Não é um homem misericordioso.
Concordei com a cabeça e pensei melhor.
— Muito bem. Vou procurar, primeiro, meu pai.
Para meu alívio, William concordou.
— Eu a levo — disse ele.
Joguei um manto sobre meu vestido e falei para a ama cuidar do bebê e manter Henrique do seu lado, pois iríamos fazer uma visita e chegaríamos tarde. Em seguida, William e eu saímos.
— Onde ele está? — perguntei.
— Na casa de seu tio — respondeu William. — Metade da corte continua em Greenwich, mas o rei não sai de seus aposentos. Uns dizem que está sofrendo muito, mas outros dizem que escapa toda noite para ver Jane Seymour.
— O que aconteceu com Sir Thomas e Sir Richard que também foram levados? — perguntei.
William encolheu os ombros.
— Quem pode saber? Nenhuma prova contra eles, ou alegação especial, ou algum tipo de favor. Quem pode saber quando um tirano enlouquece? Foram dispensados, mas um garoto como Mark que nunca soube fazer outra coisa a não ser tocar alaúde é torturado até chamar por sua mãe, e dizer-lhes o que quiserem.
Pegou a minha mão fria e a pôs em seu braço.
— Chegamos — disse ele. — Vamos entrar pela porta das cavalariças. Conheço alguns dos garotos. É melhor eu sentir o clima antes de entrarmos.
Entramos em silêncio no pátio das cavalariças, mas antes que William tivesse tempo de gritar “Alô!” na janela, ouvimos um tropel no pavimento de pedras e meu pai chegou em seu cavalo. Precipitei-me para ele, seu cavalo assustou-se e ele praguejou contra mim.
— Perdoe-me, papai, precisava vê-lo.
— É você? — disse ele bruscamente. — Onde andou escondida?
— Ela estava comigo — replicou William com firmeza, vindo por trás de mim. — Onde deveria estar. E com nossos filhos. Catarina está com a rainha.
— Sim, eu sei — disse meu pai. — A única garota Bolena sem uma mácula em sua virtude, até onde eu sei.
— Maria quer lhe fazer uma pergunta e depois iremos embora.
Fiz uma pausa. Agora que estava ali, não sabia o que devia perguntar a meu pai.
— Ana e George serão poupados? — perguntei. — Meu tio está tentando isso?
Lançou-me um olhar sombrio e amargo.
— Deve saber o que fizeram tanto quanto todo mundo — disse ele. — Só Deus sabe como vocês três eram tão íntimos quanto pecadores. Você devia ter sido interrogada com as outras damas.
— Não aconteceu nada — eu disse impetuosamente. — Nada além do que o senhor já sabe. Nada além do que o meu tio ordenou. Ele me mandou ensinar Ana, ensiná-la a encantar o rei. Mandou que ela concebesse um bebê a qualquer preço. Mandou George ficar do seu lado e ajudá-la e confortá-la. Não fizemos nada a não ser o que foi mandado. Ela tem de morrer por ter sido uma filha obediente?
— Não me meta nisso — disse ele rapidamente. — Não tenho nada a ver com as ordens que recebeu. Ela seguiu seu próprio caminho, e ele e você com ela.
Ofeguei ao perceber sua traição e ele desmontou, passou as rédeas para um cavalariço e fez menção de se afastar. Corri atrás dele e agarrei sua manga.
— Meu tio vai ter como salvá-la?
Ele pôs a boca em meu ouvido.
— Ela tem de ir — disse ele. — O rei sabe que ela é estéril e quer outra esposa. Os Seymour venceram este round, não há como negar. O casamento será anulado.
— Anulado? Fundamentado em quê? — perguntei.
— Parentesco — replicou ele brevemente. — Como ele foi seu amante, não pode ser marido de Ana.
Surpresa, eu disse:
— Eu não, de novo.
— Exatamente.
— E o que vai acontecer com Ana?
— Um convento, se for para lá calada. Ou o exílio.
— E George?
— Exílio.
— E o senhor?
— Se eu sobreviver a isso, sobreviverei a qualquer coisa — replicou taciturno. — Agora, se não quer ser chamada para depor contra eles, mantenha-se longe, fora de vista.
— Mas poderei depor em sua defesa, se me apresentar ao tribunal?
Ele riu.
— Não há provas a favor deles — lembrou-me. — Em um julgamento por traição, não existe defesa. Tudo o que podem esperar é a clemência do tribunal e o perdão do rei.
— Devo pedir ao rei o perdão para eles?
Meu pai olhou para mim.
— Se não é uma Seymour, não será bem-vinda. Se é uma Bolena, convém ao machado. Fique fora do caminho, garota. Se quer servir à sua irmã e ao seu irmão, deixe que a situação se resolva o mais sigilosa e rapidamente possível.
William puxou-me para a sombra da cavalariça ao ouvirmos cavaleiros soldados na estrada.
— É seu tio — disse William. — Vamos por ali.
Passamos por um arco de pedra e demos nas portas duplas por onde entravam as carroças com feno. Havia uma porta menor aberta nas grandes vigas e William ajudou-me a atravessá-la. Fechou-a atrás de nós quando as tochas bruxuleavam no pátio e os soldados chamaram os cavalariços para ajudarem meu tio a desmontar.
William e eu voltamos para casa por caminhos escuros, invisíveis em ruas escondidas de Londres. A ama abriu a porta e me mostrou o bebê dormindo no berço e Henrique em seu pequeno catre, os cachos ruivos Tudor ao redor de sua cabeça.
Em seguida, William me levou para a cama de quatro colunas, fechou o cortinado, despiu-me, deitou-me nos travesseiros, envolveu-me com seu corpo, sem falar nada, enquanto eu me agarrava a ele. Passei a noite toda sem conseguir me aquecer.
Ana seria julgada pelos pares do reino no Salão do Rei, no interior da Torre de Londres. Receavam levá-la de Londres a Westminster. A cidade que antes rejeitara sua coroação agora começava a defendê-la. O plano de Cromwell tinha ido além. Poucos acreditavam que uma mulher era capaz de ser tão indecente a ponto de seduzir homens quando estava grávida de um bebê de seu próprio marido, como o tribunal a acusava. Não podiam crer que uma mulher buscaria dois, três, quatro amantes, na cara do seu marido, quando este era o rei da Inglaterra. Até mesmo as mulheres da zona portuária, que haviam lhe gritado “Puta!” durante o julgamento da rainha Catarina, achavam que o rei enlouquecera de novo e estava abandonando uma esposa legítima por outra favorita desconhecida.
Jane Seymour tinha se mudado para Londres, para a bela casa de Sir Francis Bryan, na Strand, e era do conhecimento de todos que a barcaça do rei ficava atracada no píer até depois da meia-noite, e que havia música, banquete, dança e mascarada, enquanto a rainha estava na Torre, assim como cinco homens bons, quatro deles condenados à morte.
Henry Percy, antigo amor de Ana, estava entre os pares, jurado no julgamento da rainha, em cuja mesa todos tinham comido, cuja mão todos tinham beijado, que havia dançado com cada um deles. Deve ter sido uma experiência estranha para todos quando ela entrou no salão e se sentou diante deles, o “B” dourado em seu pescoço, seu capelo francês puxado para trás, mostrando o cabelo escuro e sedoso, o vestido escuro acentuando sua pele clara. O choro constante e as preces diante do pequeno altar na Torre deixaram-na calma para o dia do julgamento. Estava tão confiantemente adorável quanto tinha sido ao chegar da França, muitos anos atrás, e ser orientada por minha família para tirar meu amante real.
Eu poderia ter seguido o povo comum e pego um lugar atrás do prefeito e seu secretariado, mas William teve medo de que eu fosse vista, e eu sabia que não suportaria ouvir as mentiras que diriam sobre ela. Sabia também que não suportaria ouvir a verdade. A mulher da pensão foi assistir ao maior espetáculo que Londres já oferecera e voltou com um relatório adulterado das inúmeras de vezes e lugares em que a rainha tinha seduzido os homens da corte, inflamando seu desejo, beijando-os de língua, que lhes dava presentes, e que eles tentavam superar uns aos outros noite após noite. Uma história que, às vezes, era verdade; outras vezes, pendia para as fantasias mais escabrosas, as quais qualquer um que conhecera a corte perceberia que eram falsas. Mas havia o fascínio do escândalo, sempre erótico, imundo, obscuro. Era o tipo de coisa que o povo desejava que rainhas fizessem, coisas que uma prostituta casada com um rei certamente faria. Isso dizia mais, muito mais, a respeito dos sonhos do secretário Cromwell, um homem vil, do que algo sobre mim, Ana ou George.
Não apresentaram nenhuma testemunha que a vira tocando e acariciando, tampouco nenhuma para provar que ela desejara a doença de Henrique. Alegavam que a úlcera em sua perna e sua impotência também eram culpa dela. Ana declarou-se inocente e tentou explicar, aos pares que já sabiam disso, que era normal a rainha distribuir pequenos presentes. Que não significava nada ela dançar com um homem, depois com outro. Que, evidentemente, poetas lhe dedicariam poemas. E que naturalmente tais poemas seriam de amor. Que o rei nunca se queixara, nem por um momento, da tradição do código de conduta para o amor cortês em toda a Europa.
No último dia de julgamento, o conde de Northumberland, Henry Percy, seu amor de tanto tempo atrás, não compareceu. Desculpou-se dizendo que estava muito doente. Foi quando percebi que o veredicto seria contra ela. Os lordes que tinham estado na corte de Ana, que teriam vendido suas próprias mães às galés por um favor seu, proferiram seu veredicto, do par mais modesto ao nosso tio. Um após o outro, todos disseram: “culpada”. Quando chegou a vez do meu tio, ele reprimiu as lágrimas e mal conseguiu dizer a palavra “culpada”, ou proferir a sentença: ela deveria ser queimada ou decapitada no Green, conforme o desejo do rei.
A mulher da pensão pegou um pedaço de pano no bolso e passou nos olhos. Disse que não lhe parecia justo uma rainha ser queimada porque dançou com alguns rapazes.
— É verdade — disse William judiciosamente, e a dispensou. Depois que ela se foi, ele voltou e me pôs no colo, e me enrosquei como uma criança, e deixei que me abraçasse e me ninasse.
— Ela vai odiar ficar em um convento.
— Terá de aceitar o que o rei decidir — disse ele. — Exílio ou convento, ela ficará feliz.
Julgaram meu irmão no dia seguinte, antes que perdessem a coragem para mentir. Foi acusado, como os outros, de ser seu amante e de conspirar contra o rei, e como eles, negou tudo. Também o acusaram de questionar a paternidade da princesa Elizabeth e de rir da impotência do rei. George, sob juramento, ficou calado: não pôde negar. A prova mais grave contra ele foi uma declaração escrita por Jane Parker, a esposa que ele sempre tinha desprezado.
— Darão ouvidos a uma esposa magoada? — perguntei a William. — Quando se trata de uma condenação à forca?
— Ele é culpado — respondeu simplesmente. — Até mesmo eu, que não sou um de seus íntimos, o ouvi rir de Henrique e dizer que ele não conseguia nem montar em uma égua no cio, muito menos numa mulher como Ana.
Balancei a cabeça.
— Isso é obsceno e indiscreto, mas...
Ele pegou minha mão.
— É traição, meu amor — disse ele gentilmente. — Não se espera que isso vá a julgamento, mas se vai, é traição tanto quanto a dúvida de Thomas More em relação à supremacia do rei na Igreja. Esse rei pode determinar o que é e o que não é crime passível de condenação à morte. Nós lhe demos esse poder quando negamos ao Papa o direito de chefiar a Igreja. Demos a Henrique o direito de decidir tudo. E agora ele decide que sua irmã é uma bruxa, que o seu irmão é seu amante, e que os dois são inimigos do reino.
— Mas ele vai libertá-los — insisti.
Todos os dias, meu filho Henrique ia à Torre ver a irmã e se ela estava bem. Todos os dias, William o seguia no caminho de ida e no de volta, sempre atento a que ninguém estivesse vigiando-os. Mas não havia espiões atrás de Henrique. Era como se já tivessem feito o pior de tudo, ao escutarem a rainha e a enganarem, ao escutarem George e suas indiscrições absurdas e o enganarem.
Certo dia, em meados de maio, fui com Henrique encontrar minha menina. De onde estávamos, do lado de fora do portão, podíamos ouvir o bater dos pregos no cadafalso em que executariam meu irmão e os quatro homens. Catarina estava calma, um pouco pálida.
— Venha para casa — insisti. — E iremos para Rochford, todos nós. Não há mais nada que possa fazer aqui.
Ela sacudiu a cabecinha coberta com o capelo.
— Deixe-me ficar — disse ela. — Quero ficar até tia Ana ser enviada ao convento e tudo estar terminado.
— Ela está bem?
— Está. Reza o tempo todo e se prepara para uma vida na clausura. Sabe que tem de renunciar à sua posição de rainha. Sabe que tem de abrir mão da princesa Elizabeth. Sabe que ela não será rainha. Mas é melhor o julgamento ter se encerrado. Não ficam a espionando da mesma maneira. E ela está mais resignada.
— Viu George? — perguntei, tentando manter a voz normal, mas a tristeza me engasgou.
Catarina me olhou com seus olhos escuros dos Bolena cheios de dó.
— Isto é uma prisão — replicou brandamente. — Não posso sair e fazer visitas.
Balancei a cabeça com a minha própria estupidez.
— Quando estive aqui, era um dos muitos castelos do rei. Eu podia andar por onde quisesse. Devia ter percebido que tudo é diferente agora.
— O rei vai se casar com Jane Seymour? — perguntou. — Ela quer saber.
— Pode lhe dizer que isso é certo — repliquei. — Ele vai à sua casa todas as noites. Ele é o que era nos velhos tempos, quando era ela.
Catarina balançou a cabeça.
— Tenho de ir — disse ela, relanceando os olhos para o sentinela às suas costas.
— Diga a Ana... — interrompi-me. Havia coisas demais para caber em uma única mensagem. Havia muitos anos de rivalidade, depois uma unidade imposta, e sempre, escorando o amor de uma pela outra, a sensação de que a outra devia ser vencida. Como lhe dizer em uma palavra tudo isso, e lhe dizer que ainda a amava, que estava feliz por ter sido sua irmã, embora soubesse que ela mesma se levara aonde estava, e que levara George junto? Que apesar de nunca ser capaz de perdoá-la pelo que tinha feito a todos nós, eu compreendia perfeitamente?
— Digo-lhe o quê? — disse Catarina, esperando para ser dispensada.
— Diga-lhe que penso nela — repliquei simplesmente. — O tempo todo. Todos os dias. Da mesma forma.
No dia seguinte, decapitaram meu irmão com o seu amante, Francis Weston, com Henry Norris, William Brereton e Mark Smeaton. Aconteceu no Green, diante da janela de Ana, e ela assistiu a seus amigos e seu irmão morrerem. Caminhei na praia enlameada à margem do rio, com meu bebê apoiado no quadril, tentando ignorar o que estava acontecendo. O vento soprava delicadamente e uma gaivota gritou com pesar no alto. A parte descoberta da maré era uma mixórdia de restos intrigantes: pedaços de corda, de madeira, conchas incrustadas em plantas. Olhei para as minhas botas e senti o cheiro do sal no ar. Deixei que meu passo embalasse o bebê e tentei entender o que tinha acontecido conosco, os Bolena, que num dia governávamos o país e, no outro, éramos condenados como criminosos.
Virei-me para voltar para casa e senti meu rosto molhado de lágrimas. Eu não tinha pensado em perder George. Nunca tinha pensado que Ana e eu teríamos de viver sem George.
Um espadachim foi chamado da França para executar Ana. O rei estava planejando uma suspensão da pena na última hora, e extrairia disso cada gota de drama. Construíram um cadafalso para ela ser decapitada no Green, do lado de fora da Torre Beauchamp.
— O rei vai soltá-la? — perguntei a William.
— É o que o seu pai disse.
— Fará isso como uma grande mascarada — eu disse, conhecendo Henrique. — No último instante, enviará seu perdão e todos se sentirão tão aliviados que o perdoarão da morte dos outros.
O espadachim atrasou-se na estrada. Levaria mais um dia para que estivesse na plataforma, aguardando o perdão. Nessa noite, Catarina, no portão, parecia um pequeno fantasma.
— O arcebispo Cranmer veio hoje trazer os papéis para anular o casamento e ela os assinou. Prometeram que, se assinasse, seria libertada. Irá para um convento.
— Graças a Deus — eu disse, só agora percebendo como eu tinha estado apreensiva. — Quando será libertada?
— Talvez amanhã — disse Catarina. — Ela terá de viver na França.
— Ela vai gostar disso — eu disse. — Será uma abadessa em cinco dias, vai ver só.
Catarina deu-me um leve sorriso. A pele sob seus olhos estava quase púrpura de cansaço.
— Venha comigo agora! — eu disse com uma ansiedade repentina. — Está tudo decidido.
— Irei quando estiver tudo terminado — disse ela. — Quando ela for para a França.
Nessa noite, deitada insone, olhando para o dossel sobre a cama, eu disse a William:
— O rei vai manter sua palavra e libertá-la, não vai?
— Por que não faria isso? — perguntou-me. — Ele tem tudo o que queria. Uma acusação de adultério contra ela, portanto ninguém pode dizer que ele gerou um monstro. O casamento anulado, como se nunca tivesse acontecido. Todos que contestaram sua virilidade estão mortos. Por que a mataria? Não faz sentido. E ele lhe deu a sua palavra. Ela assinou a anulação. É um compromisso de honra mandá-la para um convento.
No dia seguinte, um pouco antes das 9 horas, eles a levaram para o cadafalso, suas damas, entre elas a minha Catarina, seguindo atrás.
Eu estava mais atrás, no meio do povo, na Torre de Londres. A distância, a vi aparecer, uma figura pequena em um vestido preto com um manto escuro. Retirou o capelo, seu cabelo estava preso em uma rede. Disse suas últimas palavras, não deu para eu escutá-las e não me importei com isso. Era uma bobagem, uma fala da mascarada, tão sem sentido quanto o rei ser um Robin Hood e nós, os aldeões vestidos de verde. Esperei a comporta ser suspensa, e a barcaça do rei surgir com um rufar de tambor e o girar dos remos na água escura, e o rei avançar com passos largos e declarar seu perdão a Ana.
Achei que havia mandado o carrasco se atrasar, esperar que as trombetas reais ressoassem do rio. Era típico de Henrique usar esse momento para o grande drama. Tínhamos de esperá-lo fazer a sua entrada grandiosa e seu discurso de perdão. Então Ana iria para a França, eu buscaria minha filha e iria para casa.
Observei-a se virar para o padre para as suas últimas orações, entregar o capelo francês e o colar. Apertei meus dedos, ocultos sob as mangas compridas, irritada com a vaidade de Ana e o atraso de Henrique. Por que não encerravam logo a encenação para que fôssemos todos embora?
Uma das mulheres, não minha filha Catarina, se adiantou e atou uma venda nos olhos de minha irmã, e segurou seu braço quando ela se ajoelhou na palha. A mulher recuou. Ana ficou só. Como um trigal curvando-se ao vento, a multidão diante do cadafalso também se ajoelhou. Somente eu continuei imóvel, olhando para a minha irmã, ajoelhada em seu vestido preto com a saia carmesim, os olhos vendados, a face lívida.
Atrás dela, a espada do carrasco se ergueu na luz da manhã. Olhei para a comporta, esperando Henrique. E então a espada baixou como um raio, e a cabeça rolou de seu corpo, e a longa rivalidade entre mim e a outra garota Bolena tinha chegado ao fim.
William puxou-me para uma das alcovas do muro e abriu caminho a força pelo povo que se aglomerava para ver o corpo de Ana envolvido em um pano e colocado em uma caixa. Ele ergueu Catarina como se ela não passasse de um bebê, e a trouxe, passando pela multidão chocada e ruidosa, de volta para mim.
— Acabou — disse ele sucintamente para nós duas. — Agora andem.
Como um homem furioso, nos obrigou a andar à sua frente, atravessar o portão e sair para Londres. Cegamente, achamos o caminho para a pensão, atravessando a multidão que se agitava ao redor da Torre, gritando as notícias uns para os outros, gritando que a prostituta tinha sido decapitada, que a pobre mulher tinha sido martirizada, que a esposa tinha sido sacrificada, todas as diversas versões que Ana tinha gerado em uma vida mal vivida.
Catarina tropeçou quando suas pernas cederam, e William carregou-a como um bebê. Vi sua cabeça apoiar-se em seu ombro e percebi que quase adormecera. Tinha ficado acordada durante dias com minha irmã, esperando a clemência prometida. Mesmo então, tropeçando nas pedras arredondadas que pavimentavam a estrada para a cidade, me dei conta de como era difícil admitir que a clemência não tinha acontecido e que o homem que eu amara como o príncipe mais promissor da cristandade tinha se transformado em um monstro que não cumprira com sua palavra e tinha executado sua esposa porque não suportava a ideia de ela viver sem ele, desprezando-o. Ele havia tirado George, o meu querido George, de mim. E havia levado o meu outro ego: Ana.
Catarina dormiu um dia e uma noite inteiros, e quando acordou, William estava com os cavalos prontos e ela se viu sobre a sela antes de ter tempo para protestar. Cavalgamos até o rio e pegamos um barco para Leigh. Ela comeu quando estávamos a bordo, Henrique ao seu lado. Eu segurava meu bebê em meu quadril, observando meus dois filhos mais velhos, dando graças a Deus por estarmos fora da cidade e por, se tivéssemos sorte e juízo, podermos passar despercebidos durante o próximo reinado.
Jane Seymour tinha escolhido sua roupa de casamento no dia em que executaram minha irmã. Nem mesmo a culpei por isso. Ana, ou eu, teria feito a mesma coisa. Quando Henrique mudava de ideia, sempre mudava rápido, e foi uma mulher sensata que o acompanhou e não o contestou. Ainda mais agora que ele se divorciara de uma mulher irrepreensível e decapitara outra. Agora, ele conhecia o seu poder.
Jane seria a nova rainha e seus filhos, quando os tivesse, seriam os próximos príncipes e princesas. Ou esperaria, como as outras rainhas tinham esperado, todo mês, em desespero para saber se estava grávida ou não, sabendo que a cada mês que isso não acontecesse, o amor de Henrique e sua paciência diminuiriam cada vez mais. Ou a maldição de Ana da morte no parto e da morte de seu filho se realizasse. Não invejei Jane Seymour. Tinha visto duas rainhas casadas com rei Henrique, e nenhuma delas tinha tido muitas alegrias.
Quanto a nós, Bolena, meu pai estava certo. Tudo o que podíamos fazer agora era sobreviver. Meu tio tinha perdido uma boa mão com a morte de Ana. Ele a tinha jogado na mesa, como me jogara e jogara Madge. Se a garota era boa de sedução ou servia para ser um lenitivo para a fúria do rei, ou mesmo para aspirar à posição mais alta no mundo, ele sempre tinha uma garota Howard a postos. Ele jogaria de novo. Mas nós, Bolena, estávamos destruídos. Tínhamos perdido a nossa garota mais famosa, a rainha Ana, e perdido George, o nosso herdeiro. E a filha de Ana, Elizabeth, não era ninguém, valia muito menos do que a desprezada princesa Mary. Nunca mais seria chamada de princesa. Nunca se sentaria no trono.
— Fico feliz com isso — eu disse a William quando as crianças adormeceram, embaladas pelo jogar do barco na maré baixa. — Quero viver no campo com você. Quero criar nossos filhos, ensiná-los a amar uns aos outros e temer a Deus. Quero ter um pouco de paz, chega do jogo na corte. Vi o preço a pagar e é alto demais. Quero apenas você. Quero simplesmente viver em Rochford e amar você.
Ele pôs o braço ao redor de mim e me abraçou forte, me protegendo do vento que soprava do mar.
— Trato feito — disse ele. — O seu papel foi cumprido, graças a Deus — dirigiu o olhar para onde estavam meus dois filhos, na proa do barco, olhando rio abaixo para o mar, oscilando com o ritmo dos remos. — Mas e eles dois? Subirão o rio de novo, um dia, de volta à corte e ao poder.
Sacudi a cabeça protestando.
— São metade Bolena e metade Tudor — disse ele. — Meu Deus, que combinação. E sua prima Elizabeth também. Ninguém pode saber o que farão.
Philippa Gregory
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