O túmulo de Doran, o amigo dos dragões, continha somente seu cantil de prata e uma pedra estranha e brilhante de muitas cores. Esses objetos antigos eram tudo o que tinha restado do maior explorador de Deltora.
A sepultura ficava num local selvagem como Doran queria — no alto de um penhasco afagado pelo vento que apontava para a Ilha dos Mortos, onde a Irmã do Oeste tinha sido destruída.
Lief, Barda e Jasmine estavam ao lado do túmulo. Junto com eles, estavam Ava, a vidente, e Red Han, o zelador desaparecido do Farol de Bone Point. Havia também dois dragões, Veritas, o dragão da ametista, e o bebê dragão, órfão do dragão de diamante, que ainda não tinha nome. E, segundo a opinião de Lief, era a presença deles que mais teria agradado a Doran.
Depois de refletir bastante, Veritas tinha raspado as letras sobre a pedra do túmulo.
— É melhor que usemos o seu nome verdadeiro — disse Veritas com calma. — Para os dragões, saber o verdadeiro nome é ter poder sobre o seu dono. Mas o Amigodosdragões está em paz. Nada pode prejudicá-lo agora.
Quando Lief se afastou do túmulo, seu coração estava muito satisfeito. Ele sabia que a pedra de muitas cores era a pedra da alma de Doran. Quando Lief a colocou no local de seu último descanso, sua mente foi inundada de imagens.
Lugares lindos e selvagens. Milhares de rostos. Os mares secretos do submundo. Os vôos nos dragões...
E em todas elas se ouvia a voz de Doran, sussurrando numa língua estranha. Sussurrando, parece, sobre Veritas.
Veritas hopian forta fortuna fidelis honora joyeu... Veritas hopian forta fortuna fidelis honora joyeu...
Veritas certamente sabia o que as palavras significavam, mas Lief não conseguiu perguntar. A pedra da alma tinha lhe mostrado os segredos do coração de Doran. Ele sentiu que não tinha direito de falar sobre eles.
— Acho que você sempre esteve nos pensamentos de Doran — ele se contentou em dizer para o triste dragão quando ele, também, se afastou do túmulo.
— Assim como ele sempre vai estar presente nos meus — Veritas retrucou. — É por isso que, embora eu queira voltar para o meu território, vou ficar aqui por um tempo. O bebê diamante precisa aprender a conhecer o próprio território e como um dragão deve agir. O Amigodosdragões gostaria disso.
Uma hora mais tarde, os companheiros foram para a estrada larga do litoral, com Red Han andando ansiosamente na frente deles, e os cavalos Honey, Bella e Swift trotando igualmente ansiosos atrás do grupo.
Kree tinha partido horas antes. Levava uma mensagem para Zeean, avisando que estava tudo bem, que Red Han tinha sido encontrado e que os companheiros e o zelador do farol queriam ser transportados com rapidez para Tora.
Era evidente que a mensagem tinha sido entregue em segurança, pois os viajantes já sentiam a leve atração da magia de Tora. Eles estariam na cidade branca do oeste ao anoitecer.
Ali, Red Han encontraria a ajuda de que precisava para voltar a Bone Point, onde tanto queria estar. E ali, Lief, Barda e Jasmine e os cavalos encontrariam comida, descanso e um meio de chegar rapidamente a Del, seu objetivo final.
— Puxa, como eu queria um banho quente e uma cama confortável — Barda exclamou.
— E eu queria umas frutas frescas — Jasmine suspirou, acompanhada por Filli, que viajava em seu ombro gritando alegremente.
A magia aumentou e eles começaram a se mover mais depressa. Um vento fresco e salgado batia em seus rostos. Eles exclamaram e apontaram para as aves marinhas que voavam acima das ondas perto da praia, banqueteando-se com os pequenos peixes que nadavam abaixo da superfície cintilante.
Só 24 horas tinham se passado desde a destruição da Irmã do Oeste, mas a terra e o mar já estavam voltando à vida.
“E vai acontecer a mesma coisa em Del”, Lief pensou. “Vai acontecer a mesma coisa em todo o sul, se conseguirmos encontrar a última irmã”.
Ficou claro que Jasmine pensava a mesma coisa.
— Não consigo imaginar onde a Irmã do Sul possa estar escondida num lugar tão agitado como Del — ela disse. — Será que ela está enterrada no fundo da areia da praia?
— Acho difícil — Barda retrucou sério. — Quando a irmã foi escondida, o porto de Del já era muito movimentado, sempre cheio de gente e barcos.
— Eu estava pensando no labirinto de túneis de esgoto debaixo da cidade — Lief sugeriu.
— Claro! — O rosto de Barda se iluminou. — Um desses túneis começa no palácio. Perdição sabe onde fica e até já o usou. Teria sido fácil para Drumm, o servo do Senhor das Sombras, conselheiro-chefe do rei naquela época, arrastar-se por aquele túnel e esconder a irmã em algum lugar.
— É fácil para ele e todos os conselheiros que o seguiram visitá-la em segredo e protegê-la — Lief acrescentou.
— Mas não há mais conselheiros-chefes no palácio — Jasmine comentou. — Quem está protegendo a irmã agora?
— É mesmo — Barda disse, preocupado. — Quem é o novo guardião? Pode ser qualquer pessoa. Del é uma cidade grande.
— É verdade — Lief concordou. — Mas muito poucas pessoas têm como descobrir onde estamos ou o que estamos fazendo. No entanto, o Senhor das Sombras sempre soube onde estávamos.
— Talvez isso não tenha nada a ver com o guardião do sul — Barda disse. — Comecei a me perguntar se alguma coisa que estamos levando ajuda o inimigo a nos seguir. Sugiro que deixemos para trás nossas mochilas, até as nossas roupas, quando sairmos para Del.
Lief concordou com um gesto de cabeça. Ele estava se lembrando da voz de Ava sussurrando em seu ouvido quando se despediu.
— Cuidado, Lief de Del! — sussurrou a vidente cega. — Talvez você tenha enfrentado o monstro da Ilha dos Mortos e sobrevivido, mas vejo uma escuridão assustadora em seu futuro. O caminho em que colocou os pés leva ao desastre. Escute meu aviso e se desvie dele!
— Não posso fazer isso, Ava! — Lief disse com delicadeza.
E Ava se afastou pisando firme e zangada, resmungado e curvando os ombros.
A voz de Jasmine interrompeu seus pensamentos.
— Já estamos bem perto da fronteira — ela gritou. — Logo vamos ser apanhados pela magia de Tora e vamos voar!
Em Tora, uma grande multidão esperava para cumprimentá-los. Os cavalos foram levados para serem cuidados, Red Han foi conduzido para o banquete que tinha sido preparado e logo Lief, Barda e Jasmine ficaram sozinhos na grande praça de mármore com Zeean, Marilen, Ranesh e Manus, o homem Ralad.
Surpreso, Lief olhou ao redor à procura da mãe.
— Sharn voltou a Del — Zeean contou com calma. — Parece que a cidade está sendo atacada por um dragão dourado. O povo está se armando e exigindo que o dragão seja caçado.
— Não! — Lief exclamou horrorizado. — O dragão do topázio não pode ser ferido!
— Parece que Sharn sabe disso — Manus comentou com a expressão séria. — Ela acha que pode acalmar o povo. Por isso, partiu para Del no momento em que ouviu a notícia, no mesmo dia em que soubemos que você estava a salvo nas Dunas Adormecidas. Mas...
— Mas o quê? — Lief exclamou muito impaciente.
— Você precisa se preparar para um choque, Lief — Zeean disse secamente. — Sharn ficou doente quase no mesmo instante em que chegou ao palácio. E acho que não é uma doença comum. É uma infecção fatal que agora está se espalhando muito depressa na cidade. A sua mãe ainda está viva, mas centenas de outras pessoas em Del morreram.
Lief ficou com o olhar fixo, aterrorizado e Jasmine o abraçou.
— O diamante do Cinturão de Deltora não protege contra doenças? — ela perguntou. — E também dá força. Não tenha medo, Lief. Tenho certeza de que Sharn vai se recuperar assim que você se aproximar dela.
— Que doença é essa? — Barda perguntou. — Ela tem um nome?
— Ela recebeu um nome — Zeean contou preocupada. — Como Sharn foi a primeira a ficar doente, o povo parece acreditar que ela levou a doença para Del. Ele a está chamando de praga de Tora.
Ela empurrou dois bilhetes na mão de Lief.
— O pássaro Ebony trouxe um recado de Perdição há uma hora
— ela informou. — O outro chegou no dia em que Sharn partiu.
— É a letra de Josef — Ranesh reconheceu. — Ele está ficando cada vez mais desesperado. Eu deveria ir vê-lo, mas...
— Mas o seu lugar é com sua mulher, que está grávida, e precisa de você — Zeean interrompeu. — Josef tem muitas pessoas para ajudá-lo.
Ela se virou para Lief, Barda e Jasmine.
— Manus e eu precisamos ir — ela avisou. — Red Han quer ia a Bone Point imediatamente para acender o farol ainda nesta noite. Há comida para vocês na sala de refeições, e os seus quartos foram preparados. Descansem bastante.
Ela se afastou de costas eretas, seguida por Manus.
— Zeean está preocupada com Sharn e sofre porque Tora está sendo culpada pela praga — Marilen disse com sua voz suave.
— Ah, sim — Ranesh respondeu secamente. — Pois de Tora só podem vir coisas boas.
— Vamos buscar a comida na sala de refeições — Marilen disse, olhando para ele. — Tenho certeza de que nossos amigos preferem comer num lugar tranqüilo.
Assim que Marilen se afastou com Ranesh, Lief abriu o bilhete de Perdição.
Lentamente, decifrando o código, Lief leu cada sentença de trás para a frente, deixando de lado todas as palavras que tinham alguma coisa a ver com plantas.
“Complete a missão. Fique longe daqui. Sua mãe não quer que corra perigo. “
— Para completar nossa missão, precisamos ir para Del — Barda comentou com um riso triste. Mas é claro que Perdição não sabe disso.
Lief abriu o bilhete de Josef, anterior ao de Perdição.
Com a testa franzida, Lief passou o papel a Barda e Jasmine.
— Acho que a mente dele está falhando — Barda afirmou depois de um instante.
Lief suspirou. Barda devia ter razão, mas, no entanto...
— Alguém leu esse bilhete antes de nós! — Jasmine exclamou, batendo o dedo no papel. — Veja! O papel foi dobrado em lugares diferentes. Ele foi aberto e dobrado outra vez com pressa.
— Isso não é nenhum mistério — Barda disse. — Tenho certeza de que Perdição lê todos os bilhetes que são enviados do palácio para verificar se podem ser úteis a algum espião.
— Então ele perdeu seu tempo com este aqui — Jasmine falou, devolvendo o bilhete a Lief. — Ele não diz absolutamente nada.
Lief releu a mensagem. Ele não conseguia se livrar da sensação de que ela tinha alguma coisa estranha. As palavras pareciam impensadas e confusas. No entanto, a letra do velho bibliotecário estava firme como sempre.
Ele observou as linhas abaixo da assinatura. Tantos travessões!... Rezo para que entenda. Afinal, a mensagem vem do meu coração...
Lief sentiu a pele formigar.
...travessões... afinal, a mensagem...
Lief voltou ao começo do bilhete, mas desta vez leu somente as palavras que vinham depois de um travessão.
— Preciso... — ver... — urgente... — notícias... — assustado — diga... — ninguém.
Preciso ver você. Urgente. Notícias assustadoras. Não diga a ninguém.
Lief sentiu o sangue subir ao rosto. Que notícias seriam tão assustadoras que nem mesmo Jasmine e Barda deveriam saber? Ou Perdição? Pois estava claro que o bilhete tinha sido escrito em código para que escapasse ao exame de Perdição.
As notícias não deviam ser sobre a praga ou sobre a doença de Sharn. A carta tinha escrito antes de qualquer uma dessas coisas acontecer.
Era possível que a mente de Josef estivesse realmente falhando e suas “notícias assustadoras” fossem somente alguma suposição boba. Mas e se fosse verdade? E se ele tivesse descoberto onde a Irmã do Sul estava escondida?
— Sobrou um pouco da Água dos Sonhos que as Kins trouxeram, Jasmine? — Lief perguntou de repente.
— Só um pouco — Jasmine disse. — Deve ser suficiente para que você veja Sharn. — Ela tirou um pequeno cantil de um de seus bolsos e o entregou a Lief.
Lief o pegou murmurando algumas palavras de agradecimento. Ele não gostava de deixar os amigos acreditar que queria ver a mãe quando, na verdade, queria a Água dos Sonhos para outra coisa. Mas não tinha escolha. Ele tinha que cumprir o desejo de Josef, pelo menos até que tivesse visto como as coisas estavam e decidido o que fazer.
Mais tarde, sozinho em sua cama, no quarto branco e fresco de Tora, Lief usou a Água dos Sonhos e pensou em Josef. Ele entrou na cama e ficou deitado, imóvel, mas sua mente estava agitada demais para descansar. Pareceu que horas se passaram até a exaustão finalmente o dominar e ele cair no sono.
Ele começou a sonhar quase no mesmo instante.
Ele se viu parado no quarto de Josef, no fundo da biblioteca. Josef estava curvado sobre a escrivaninha de costas para a porta, trabalhando à luz de uma vela. À esquerda, havia uma pilha de papéis caprichosamente amarrada com uma fita azul. À direita, estava um volume aberto dos Anais de Deltora e um amontoado de potes e pincéis de pintura, penas e xícaras de chá vazias. O seu corpo escondia algo que estava exatamente na sua frente.
O coração de Lief começou a bater mais forte quando ele entrou no fundo do aposento. Ele se viu andando em silêncio, embora soubesse que não podia ser ouvido ou visto. A cada passo, ficava mais assustado e angustiado. Mesmo visto de trás, era fácil perceber que Josef estava tristemente mudado.
Os cabelos brancos do velho bibliotecário não tinham brilho e muitos deles tinham caído, deixando entrever manchas de pele rosada entre os fios compridos. A colcha quente que o envolvia não conseguia disfarçar sua fragilidade.
Enquanto Lief observava, Josef empurrou para o lado a régua de metal com a qual estava trabalhando. A mão que segurava o objeto parecia uma garra cheia de veias azuis.
“Mas Josef não estava assim quando saí de Del!”, Lief pensou desanimado. “Como ele tinha enfraquecido tão depressa?”
Lief deu um salto quando Josef gemeu.
— Não, não há dúvidas — o velho homem resmungou. — Não cometi nenhum erro. Ah, que truque perverso é este? Se ao menos eu o tivesse visto antes! Se ao menos eu tivesse lembrado! Idiota! Idiota!
Lief se aproximou. Ele estava para espiar por cima do ombro de Josef quando ouviu um barulho forte de passos do lado de fora da biblioteca.
Josef levou um grande susto. A mão ossuda disparou na direção do volume aberto dos Anais de Deltora. Vidros e potes de tinta viraram quando ele puxou o livro para o centro da mesa, cobrindo tudo o que estava lá.
Perdição entrou na sala, com uma expressão muito zangada e arrastando Paff, a assistente de Josef, pelo colarinho. Os olhos de Paff estavam saltados de pavor.
Josef se virou para olhar para eles. Sua expressão estava sombria e seus olhos pareciam buracos escuros. Mas ele ainda endireitou os ombros e se levantou, numa tentativa patética de parecer no controle da situação.
— O que significa isso? — ele perguntou com a voz trêmula.
— Lindai, de Broome, pegou a sua assistente tentando entrar no quarto de Sharn às escondidas, Josef — Perdição contou com frieza. Ele sacudiu Paff como um filhote de cachorro, e um som sufocado escapou dos lábios da moça.
Josef apertou as costas da cadeira com a mão.
— Solte-a, por favor — ele disse em voz alta. — Ela só estava cumprindo minhas ordens.
— Parece que sim — Perdição respondeu com o olhar faiscante. — Ela estava levando isto.
Ele estendeu o papel que tinha nas mãos. Com o coração pesado, Lief leu o que estava escrito.
— Josef, eu não lhe disse que Sharn está gravemente doente? — Perdição reclamou entre dentes. — E não lhe disse que a praga de Tora é muito contagiosa? Pelos céus, você não sente o cheiro do crematório que sai das almas sofridas que estiveram em contato com ela antes que sua doença se tornasse conhecida?
Lief sentiu um calafrio de medo percorrer o seu corpo.
— Preciso ver lady Sharn — Josef insistiu teimoso, erguendo o queixo. — Você não tem o direito de me manter afastado dela, Perdição. Se Lief estivesse aqui...
— Mas Lief não está aqui! — Perdição disparou. — Eu estou. Josef, você não pode ver Sharn. Se tem alguma coisa importante para falar, fale comigo.
Josef fechou os lábios e não disse nada.
Perdição emitiu um som de aborrecimento e soltou o colarinho de Paff. Ela se afastou depressa e correu para o lado de Josef.
Juntos, o velho frágil e a garota de cabelos despenteados encararam Perdição, estranhos aliados numa batalha muito desigual.
— Então fique com seus segredos, Josef! — Perdição tornou zangado. — Mas estou avisando, na próxima vez em que mandar Paff numa missão parecida, pense bem. Ela ofegava tão alto por causa do medo, quando andava às escondidas pelo corredor que leva para o quarto de Sharn, que Lindai a escutou do outro lado da porta!
Irritado, Josef olhou para Paff. Ela corou e seus lábios tremeram.
— Sinto muito, Josef — ela sussurrou. — Eu esperei, como você mandou, até que Lindai, de Broome, saísse para buscar mais água quente. Ela estava carregando um jarro. Escutei os passos dela se afastarem. Mas foi só um truque! Acho que ela voltou devagarinho. Eu tinha dado só um passo para dentro do quarto quando ela me pegou!
Os olhos da menina se encheram de lágrimas.
— Ela torceu o meu braço e me tratou como se eu fosse uma criminosa — ela sussurrou. — Estou tão envergonhada!
— É Josef que devia estar com vergonha! — Perdição vociferou. — Da próxima vez, deixe que ele mesmo faça o trabalho sujo!
Paff ergueu o rosto. De repente, seus olhos marejados de lágrimas se encheram de raiva.
— Josef quase não pode andar! — ela berrou. — Ele só pode subir ao quarto de Sharn se os guardas o carregarem, você sabe disso! Como você pode zombar da fraqueza dele?
— Eu não quis dizer... — Perdição começou impaciente. Mas, agora que Paff tinha começado a falar, parecia que não conseguia parar.
— E, seja como for, Josef não me obrigou a ajudá-lo — ela contou. — Eu concordei com alegria. O seu antigo assistente, Ranesh, teria concordado na mesma hora. E eu... eu estou cheia de ser comparada a Ranesh. Eu não ia recusar minha única oportunidade de provar do que sou capaz.
— Eu acho que Josef sabia disso muito bem — Perdição comentou com secura.
Lief viu uma faísca de vergonha no rosto pálido de Josef e gemeu interiormente.
— Josef, não posso mais perder tempo com você — Perdição disse ao velho bibliotecário. — Pare de criar problemas. Você precisa, aceitar de uma vez por todas que não pode ver Sharn.
— Mas por que ele não pode vê-la? — Paff indagou com a voz aguda.
— Por que Lindai, de Broome, que é quase uma estranha, deve ficar com lady Sharn, enquanto Josef fica afastado? É por que Lindai é sua aliada em todas as coisas, e Josef não é?
O rosto cheio de cicatrizes de Perdição ficou sombrio e seus olhos se estreitaram.
— Paff, vá para o seu quarto — Josef balbuciou apressado.
Em silêncio e com o rosto vermelho, Paff se afastou do velho, passou perto de Perdição e desapareceu na escuridão pela porta aberta. Josef a observou sair, oscilando levemente onde estava parado.
— Eu lhe dei todas as notícias que ouvi, Josef — Perdição sussurrou.
— Sharn não poderia lhe dizer nada de novo, mesmo que ela pudesse falar. Eu lhe mostrei a mensagem de Zeean contando que Lief, Barda e Jasmine foram bem-sucedidos no oeste. Você não pode ficar satisfeito com isso e se acalmar?
Josef pôs a mão trêmula na testa, mas não disse nada.
— Você não está bem — Perdição disse com a voz mais baixa. — A sua mente está confusa. Essa menina, Paff, é boba demais para enxergar isso, mas eu sei. E você também sabe.
Ele olhou com atenção para o homem fraco à sua frente e balançou a cabeça como se quisesse pensar melhor.
— Josef, peço desculpas se perdi a paciência com você — ele acrescentou. — Mas não tenho dormido mais do que uma hora ou duas em todos esses dias. E, mesmo em épocas de tranqüilidade, palavras doces não são o meu forte.
Para Perdição, esse foi um pedido de desculpas generoso. Lief queria que Josef entendesse, mas o velho homem continuava com seu silêncio teimoso. Ele estava de pé agarrado às costas da cadeira, com os nós dos dedos brancos, e o rosto pálido rígido como um pedaço de madeira retorcida.
Perdição praguejou baixinho e saiu do quarto.
Josef só se moveu quando o som de seus passos tinha desaparecido. O seu rosto estava tomado pela exaustão. Tremendo, ele se sentou na cadeira.
— Ah, por que Lief não vem? — ele sussurrou. — Lief precisa falar comigo... ele precisa... antes que outra pessoa saiba que ele está aqui... antes que qualquer outra coisa seja feita! Será que deixei isso claro? — Não... consigo lembrar.
Novamente ele levou a mão à testa.
— Eu mandei a mensagem ou não? — ele balbuciou. — Será que foi só um sonho? Ah... por que não consigo mais raciocinar?
Ele enterrou o rosto nas mãos.
— Josef! — Lief exclamou frustrado. — O que quer me contar? Diga em voz alta!
O velho levantou a cabeça com um movimento violento. Lentamente, ele se virou na cadeira. Mas no momento seguinte o seu rosto desapareceu e Lief estava de volta à cama, piscando para o teto branco inundado pela luz da Lua.
Ele ficou deitado quieto por um momento e pôs os pensamentos em ordem. Então, pulou da cama e foi até a porta.
Ele sentia ter de acordar Barda e Jasmine na primeira noite de sono tranqüila que desfrutavam em muitos dias. Mas ele não podia deixá-los para trás. Além disso, achariam que a sua pressa tinha sido causada pelos sonhos com a mãe e não fariam perguntas.
Ele tinha de ver Josef. E não podia esperar.
Em menos de uma hora, três sombras estavam voando rapidamente para Del. Somente os pássaros e os animais noturnos os viram passar. Alguns aldeões se mexeram nas camas e pensaram ter ouvido o bater de cascos voadores. Mas o som passou tão depressa que eles acharam que estavam sonhando.
De acordo com o plano de Barda, os três companheiros estavam usando roupas toranas e levavam apenas as suas armas. Com as túnicas brilhantes flutuantes, eles se inclinaram sobre os pescoços dos cavalos, perdidos num sonho de velocidade.
Na cidade branca do oeste, só Zeean estava acordada. Mas sua vontade era suficiente para guiá-los rapidamente pelo velho caminho para Del.
Kree estava voando bem atrás dos cavalos. O velho ferimento em sua nuca ainda o incomodava, mas ele tinha se recusado a viajar mansamente com Filli no braço de Jasmine. Talvez uma ou duas vezes ele tenha permitido ser carregado nas costas de um dragão, mas, levados pela rápida magia de Tora ou não, Honey, Bella e Swift eram cavalos comuns de Del, e Kree era orgulhoso demais para pousar sobre eles.
Ele sabia que Jasmine e Filli estavam em segurança, envoltos na magia de Tora. Assim, ele voava sozinho sob a Lua, que descia lentamente no céu, apreciando a noite e o silêncio, com toda a calma.
Nem ele, nem os viajantes à sua frente perceberam o momento em que uma presença maligna girou e despertou com sua passagem. Nenhum deles sentiu a explosão de ódio que surgiu ao aviso de sua aproximação.
Eles voavam despreocupados pela noite, enquanto uma sombra negra e líquida, cheia de maldade deslizou por baixo de uma porta e começou a avançar secretamente pelo palácio de Del, às escuras.
A lua tinha se posto, e o sol ainda não nascera quando os companheiros chegaram aos portões da cidade. Os quatro guardas de sentinela levantaram as lanternas, viram os cavalos e as túnicas de Tora dos cavaleiros e recuaram, rapidamente cobrindo a boca e o nariz com lenços.
— O que querem aqui, gente de Tora? — um dos guardas perguntou num tom nada amistoso.
— Estamos aqui para aconselhar Perdição sobre a questão da praga de Tora — Jasmine disse como planejado. — Pediram a nossa presença.
— Ninguém nos avisou desse pedido — o guarda retrucou irritado.
— A mensagem está aqui — Jasmine respondeu, tirando um bilhete do bolso. — Quer vê-la?
Ela fez com que Swift desse um passo à frente e estendeu o papel.
— Pare! Não se aproxime! — o guarda gritou, recuando apressado e cobrindo ainda mais o rosto com o lenço. — Podem passar, mas saibam que não vão poder sair da cidade até que ela seja declarada livre da praga.
— Nós concordamos — Jasmine disse.
— Então eles vão morrer aqui, presos numa armadilha como ratos, como todos nós — Lief escutou um dos guardas resmungar para o companheiro. — Pelo menos vai ser um fim justo.
Os portões foram abertos. Os guardas recuaram até onde puderam e esperaram os visitantes desaparecerem ao longe, nas sombras, para fechá-los novamente.
— Que vergonha! Eles nem mesmo olharam o bilhete — Barda resmungou em voz baixa.
— Felizmente, já que era só um bilhete de Marilen para Sharn, e eles certamente teriam nos reconhecido se tivessem olhado com mais atenção.
Barda fez cara feia. Ele sabia que Jasmine tinha razão, mas o orgulho que tinha de seus guardas bem treinados tinha sido bastante abalado.
— Não seja duro demais com eles — Lief disse baixinho. — Eles teriam enfrentado um inimigo sem hesitar, mas uma doença dessas dá medo. O que me preocupa é que eles nos cumprimentaram com tanta desconfiança... até mesmo raiva.
E, enquanto ele falava, Jasmine respirou fundo. Ela tinha feito Swift parar e estava olhando um aviso amarelo preso numa parede ao seu lado.
— Vejam isto! — ela sussurrou.
A VERDADE SOBRE A PRAGA DE TORA
POVO DE DEL, ACORDE! NÃO SE DEIXE ENGANAR!
A PRAGA NÃO FOI CAUSADA PELA NATUREZA.
ELA FOI MANDADA POR TORA PARA NOS DESTRUIR!
PARA TER CERTEZA, CONTINUE A LER E ENFRENTE A VERDADE.
# VERDADE! Os feiticeiros de Tora se banqueteiam e vivem tranqüilamente enquanto todos ao seu redor trabalham e passam fome. Mesmo assim, esperam a nossa boa-vontade.
# VERDADE! Os toranos têm inveja de Del, porque Del é o lar dos governantes. Isso fez com que a nossa querida lady Sharn nos deixasse e morasse longe, durante meses, em Tora, como refém do orgulho de Tora.
#VERDADE! A história prova a deslealdade de Tora. Quando o Senhor das Sombras nos invadiu, Tora quebrou seu juramento de lealdade e permitiu que o inimigo nos escravizasse.
#VERDADE! Rei Lief, na inocência e generosidade da juventude, perdoou os toranos por sua deslealdade e permitiu que voltassem à sua cidade encantada.
#VERDADE! Tora retribuiu a confiança do rei com um plano para destruir Del às escondidas. A praga de Tora é prova disso!
— Todas essas “verdades” são mentiras! — Jasmine exclamou.
— Mas há verdade suficiente nelas para enganar as pessoas assustadas — Barda respondeu sério. — Há comida em Tora, Sharn foi para lá, em parte, para que os toranos soubessem que sua amizade era valorizada. Os toranos realmente quebraram o juramento de lealdade e Lief os perdoou...
— Na “inocência e generosidade de sua juventude” — Lief repetiu, amargo. — Quem escreveu isso também poderia ter dito “por sua ignorância e burrice”, pois é isso o que a frase quer dizer.
Ele balançou a cabeça.
— Esse aviso é tão estúpido! Ele diz que vai provar que os toranos mandaram a praga para destruir Del. Então diz que a própria praga prova que os toranos estão planejando destruir Del. Onde está a lógica disso?
— Não existe nenhuma lógica — Barda replicou, arrancando o bilhete da parede. — Mas acho que aqueles que estão procurando um culpado por sua má sorte não vão perceber isso. É melhor seguirmos em frente. Logo o sol vai nascer e, se formos vistos nas ruas usando roupas de Tora, podemos ser atacados antes de sermos reconhecidos.
Cada vez mais inquietos, eles continuaram a cavalgar. O ar estava tomado pela fumaça das cremações. Medo e estranheza rondavam as ruas conhecidas. Vez ou outra, eles encontravam uma cópia do terrível aviso amarelo preso numa cerca ou poste. Era evidente que a cidade estava cheia deles.
À medida que se aproximavam do palácio, muitas das portas tinham amuletos que os donos imaginavam que protegeriam suas casas da doença. Um número cada vez maior estava fechado com tábuas e tinha um X vermelho indicando que as pessoas que ali moravam tinham morrido por causa da praga.
Finalmente, eles chegaram ao pé da colina do palácio. O palácio se erguia diante deles, e Lief não viu os guardas parados nas portas de entrada, mas sabia que eles deviam estar ali, como todas as noites.
“Está quase na hora de fazer minha jogada”, Lief pensou. Mas, antes que pudesse falar, Jasmine fez Swift parar mais uma vez.
— Vou esperar Kree aqui — ela anunciou. — Ele não deve entrar no palácio sozinho, pois foi envenenado na última vez em que esteve lá.
— Ele dormiu um dia e uma noite e nós acreditamos que ele tinha sido drogado — Barda concordou. — Mas talvez ele estivesse apenas exausto. Quem pode saber?
— Vou esperar — Jasmine respondeu com firmeza. — Você e Lief vão em frente.
— Não — Lief respondeu, pulando para o chão e colocando as rédeas de Honey nas mãos de Jasmine. — Vocês dois esperem Kree aqui. Encontro vocês lá dentro.
E, ignorando os sussurros espantados e furiosos dos companheiros, disparou pela estrada e foi engolido pela escuridão quase que imediatamente.
As túnicas de Tora eram mais adequadas para andar em corredores de mármore do que para subir uma colina acidentada no escuro. Mas pelo menos Lief atingiu seu objetivo: uma pedra enorme no formato de um urso adormecido que marcava o caminho secreto para dentro do palácio.
Lembranças passaram por sua mente quando ele afastou a grama que escondia a entrada do túnel.
Na última vez em que tinha feito isso, ele tinha sido impulsionado por um medo desesperado. Na última vez em que tinha feito isso, o Senhor das Sombras dominava Deltora, e Perdição, Jasmine e Barda eram prisioneiros prestes a serem condenados à morte.
“Aqueles dias já estão bem longe”, ele disse a si mesmo, enquanto andava com dificuldade pela passagem estreita de pedra. “Sem dúvida, é tolice eu entrar no palácio às escondidas, como um ladrão. Fui contaminado pelas fantasias de Josef”.
Mas o medo aumentava dentro dele enquanto rastejava pelo silêncio escuro do túnel. E ele não sabia se o medo era uma lembrança ou se era real.
Quando saiu na capela do palácio, seus dentes batiam. Ele recolocou o ladrilho que fechava o túnel, estremecendo diante do som agudo e leve que ele fez ao deslizar para o seu lugar.
Logo ao seu lado, estava a alta plataforma de mármore que dominava o pequeno aposento. Lief roçou nela quando se levantou e instintivamente se virou para o lado.
Durante séculos, os reverenciados mortos do palácio haviam ficado expostos naquela plataforma. O seu pai havia ficado ali por um dia inteiro quando morreu, e Lief tinha se ajoelhado com a mãe no silêncio frio da capela durante uma ou duas longas horas. O ritual não o tinha consolado, e ele nunca mais tinha voltado à capela.
Ele tentou afastar a sensação de medo que parecia cobri-lo como um pesado casaco e foi tateando até a porta. Abriu-a com cuidado e subiu os degraus que levavam ao enorme espaço vazio do salão de entrada.
Tudo estava em silêncio, mas ele sabia que não continuaria assim por muito tempo. Kree já devia estar com Jasmine e Barda. Logo seus companheiros chegariam ao palácio, por isso não havia tempo a perder.
Ele passou correndo pelas escadas e foi à biblioteca. Entrou e andou em silêncio na escuridão. Prateleiras escuras se erguiam à sua volta. O cheiro conhecido dos velhos livros encheu suas narinas. No fim do longo aposento, brilhava uma luz fraca pela porta semi-aberta de Josef.
Lief se moveu rapidamente na direção da luz. Quando estava quase chegando, viu outro facho de luz à sua direita, perto do piso.
Ele se lembrou de que Paff também dormia na biblioteca, no quarto separado do de Josef por uma despensa e uma pequena cozinha, onde ela e Josef podiam aquecer uma sopa e fazer chá. A porta de Paff estava fechada, mas parecia que ela também estava acordada.
Em silêncio, Lief entrou no quarto de Josef. Ele estava inclinado sobre a escrivaninha e repousava a cabeça sobre os braços. Diante dele, uma vela tremia numa poça de cera derretida.
“Adormeceu trabalhando”, Lief pensou. Ele se aproximou da escrivaninha e pôs a mão no ombro do velho homem.
— Josef — ele sussurrou. — Sou eu, Lief.
— Lief... — A voz era fraca e indistinta. As pálpebras se agitaram e se abriram, mas ele não se mexeu.
O coração de Lief deu um grande salto e ele apertou o ombro de Josef com mais força.
— Lief? — o velho murmurou. — Ou... é outra visão?
— Não! — Lief sussurrou, caindo de joelhos ao lado da cadeira. — Não, Josef, desta vez estou mesmo aqui.
— Afaste-se — ele disse com dificuldade, piscando. — Afaste-se,
Lief...
Com um esforço enorme, ele levantou a cabeça. Lief prendeu a respiração quando viu o rosto conhecido e enrugado brilhando de suor e terrivelmente desfigurado por bolhas inchadas e vermelhas.
— A praga de Tora — Josef murmurou. — Ah, eu... não achei que houvesse perigo. Nunca... teria mandado a garota até Sharn se soubesse.
Seu olhar enevoado se concentrou em Lief e se encheu de um pânico repentino.
— Cubra o seu rosto! — ele gemeu. — Saia deste quarto! Ah, Lief, eu imploro! Não me torne duas vezes assassino!
— Vou... vou buscar ajuda! — Lief balbuciou, levantando-se assustado.
— Não há tempo — Josef murmurou. — Preciso avisar você. As Quatro Irmãs. Você... o feiticeiro... você precisa parar...
— Eu vou, Josef! — Lief prometeu com os olhos cheios de lágrimas.
— Três delas já foram destruídas. Você sabe onde está a última? Foi por isso que me chamou?
— Conspiração — o velho homem disse em voz baixa. — Traição. Norte... para o sul. Leste... para o oeste... linhas... mapa...
Sua cabeça caiu como se o pescoço estivesse fraco demais para sustentá-la.
— Perigo — ele sussurrou. — Imenso... Preciso avisar... Lief.
— Estou aqui, Josef — Lief exclamou. — Sei que a Irmã do Sul está em Del. Mas onde?
Os lábios secos de Josef tremeram quando ele se esforçou para falar. Lief tentou ouviu e seus ouvidos captaram uma única palavra. Ele arregalou os olhos, sem acreditar. Será que Josef tinha dito “aqui”?
— Aqui, Josef? — ele repetiu. — No palácio?
— Cuidado, Lief... o mal... o centro... o coração... a cidade... de...
— Josef murmurou franzindo ainda mais a testa.
A sua voz foi ficando cada vez mais fraca.
Lief se virou e correu para o quarto de Paff. Ele bateu desesperadamente na porta, chamou a garota, mas ninguém respondeu. Com uma sensação de medo, tentou abrir a porta. Como esperava, estava trancada.
Lief se afastou e deu um pontapé. A porta estremeceu, mas continuou firme. Ele agarrou o diamante do Cinturão e chutou outra vez. A fechadura foi arrebentada e a porta se abriu.
Paff estava na cama apoiada em dois travesseiros. Ela estava usando uma camisola cor-de-rosa de mangas compridas. Seus cabelos amarelos formavam duas tranças finas. Um livro estava aberto em seu colo e um toco de vela queimava no criado-mudo, ao lado de uma xícara de chá pela metade.
À primeira vista, parecia que ela simplesmente tinha adormecido enquanto lia. Mas Lief sabia que não tinha sido assim. A cabeça de Paff caiu para trás. O seu rosto estava brilhante de suor. Seus membros estavam rígidos como se tivessem sido esculpidos em pedra. A saliva escorria de um dos cantos da boca aberta. Debaixo das pálpebras trêmulas, o branco dos olhos brilhava.
Lief se afastou da porta com o coração batendo violentamente.
Então, de repente, assustadoramente, o silêncio do palácio foi quebrado por um horrível coro de sons: o relinchar de cavalos assustados, o grito de Jasmine e o rugido de Barda, o grasnado selvagem de Kree e, acima de tudo, um uivo feroz e ensurdecedor de gelar o sangue.
Lief empunhou a espada, mergulhou na escuridão da biblioteca e foi para o corredor e para o salão de entrada. Quando ele se atirou de encontro às portas altas da entrada e empunhou a barra de ferro que as fechava, ouviu gritos vindo do fundo do palácio.
A ajuda estava a caminho, mas ele não podia esperar. Pulou descuidadamente para fora, quase tropeçando nos corpos dos guardas da noite, estendidos sem vida no alto das escadas.
O sol estava nascendo e jogava um brilho vermelho e estranho sobre o gramado do palácio onde Honey, Bella e Swift empinavam, relinchando e revirando os olhos aterrorizados. Os três cavalos mancavam e estavam cobertos de feridas ensangüentadas.
E, ombro a ombro, tropeçando de costas escadas acima, Barda e Jasmine estavam lutando para salvar suas vidas.
Um monstro enorme e terrível estava atacando os dois e os fazia subir as escadas, um degrau depois do outro. A sua cara parecia a de um imenso cachorro furioso, mas pavorosamente liso e brilhante. A massa negra e sem forma de seu corpo ondulava como água e nela tremiam centenas de ferrões compridos e afiados que se agitavam como chicotes quando golpeavam suas vítimas.
Barda e Jasmine estavam se defendendo da melhor forma possível. Os ferrões atingiam a espada e a adaga como uma chuva assustadora nos degraus aos seus pés. Mas, quando os fragmentos retorcidos caíam, eles derretiam e formavam poças de um líquido preto e oleoso, que se juntavam e voltavam rapidamente ao monstro e se tornavam parte de seu corpo mais uma vez.
E a cada momento mais e mais ferrões disparavam da carne ondulante.
Agitado, Kree grasnava e mergulhava sobre a cabeça da coisa, atacando sem parar a superfície preta e brilhante com o bico afiado. Ele certamente a estava perturbando, mas a criatura continuava a atacar.
Quando a criatura virou o pescoço para rosnar para o pássaro que a atacava, o estômago de Lief se revirou, pois na parte de trás de sua cabeça havia outra cara, estreita e enrugada, com um bico cruel em forma de gancho e olhos vermelhos e faiscantes.
Não tinha sentido atacar o monstro por trás ou, então, fazer qualquer coisa para tentar fugir. Pois, mesmo quando Lief desceu os degraus aos pulos erguendo a espada, ele sabia que armas comuns não poderiam derrotar aquele horror.
Aquele monstro era fruto de feitiçaria, como o falso dragão no Ninho do Dragão, como o fantasma que os tinha perseguido quando estavam se dirigindo para o Portal das Sombras.
O guardião do sul tinha estado à espera deles. Novamente, os seus movimentos eram conhecidos. Mais uma vez, eles tinham sido traídos.
— Barda! Jasmine! — Lief rugiu. — As portas estão abertas! Subam até lá!
Mas, assim que terminou de falar, ele viu Jasmine cair enquanto o sangue escorria de um ferimento do lado de seu corpo. O ferrão que a tinha atingido a prendia, enquanto outra dezena a atacava para tentar matá-la. A cara de cachorro uivou e atacou triunfante, e jatos de espuma espirraram de suas mandíbulas. A cara com bico na parte de trás soltou um grito agudo e sobrenatural.
Com um rugido, Barda golpeou os ferrões com selvageria. Suas pontas se precipitaram e derreteram, formando poças de líquido oleoso onde caíram. Lief desceu descuidadamente os últimos degraus, soltou Jasmine e começou a levantá-la.
— Leve-a para dentro, Lief — Barda mandou ofegante. — Vou tentar segurar...
Ele gemeu agoniado, quando três ferrões se enrolaram ao redor de seu pescoço. O sangue começou a correr livremente das feridas, e os ferrões o apertaram e puxaram. Quando Barda cambaleou sufocado, o monstro disparou em sua direção, uivando com as duas caras, e atirou mais ferrões pelo ar como se fossem cobras.
Lief deixou Jasmine onde estava e saltou para a frente, desferindo golpes na direção do monstro. Pedaços de ferrões caíram, retorcendo-se, sob o ataque de sua lâmina. As pontas cortadas que seguiam Barda se dissolveram em montes de limo negro. Quando Barda dobrou o corpo, segurando a garganta e tentando respirar com dificuldade, os montes se juntaram, formaram um só e deslizaram depressa no chão.
A besta estremeceu e recuou. Os olhos faiscantes da cara de cachorro encontraram os olhos de Lief e então pousaram no Cinturão em sua cintura.
— Sim! — Lief berrou, fora de si com raiva e ódio. — Sou eu quem mandaram você destruir! Mas não é tão fácil assim, é? Não é fácil enfrentar o Cinturão de Deltora. Vá embora... vá para o lugar malcheiroso de onde você veio.
Os lábios manchados de espuma da cara de cachorro formaram um sorriso horrível. E o coração de Lief pareceu saltar até a garganta quando o horrível monte de carne na sua frente dobrou de tamanho e centenas de outros ferrões saíram de sua superfície negra e ondulante.
E, um segundo depois, a criatura estava em cima dele.
Lief foi envolvido pela escuridão ondulante e oleosa que não o deixava respirar nem enxergar. A dor atravessou o seu corpo quando os ferrões o chicotearam, prendendo seus braços e pernas, apertando-o num abraço mortal.
Mas muito pior era o som desagradável e o ondular assustador que enchiam seus ouvidos enquanto ele entrava cada vez mais na massa fria e gelatinosa da besta. Seu estômago se revirou diante da situação repugnante. Ele queria gritar, mas sua boca estava selada.
Lief sentia a carne do monstro estremecendo e se retorcendo. O Cinturão de Deltora o estava queimando, mas mesmo assim a criatura não o soltou. O sangue rugia em seus ouvidos. A necessidade de respirar fazia o seu peito doer. A sua mente estava ficando enevoada. Figuras do passado passaram num mar vermelho por seus olhos fechados.
“Então foi isso que Ava quis dizer”, ele pensou, atordoado. “Era esse o destino que me esperava. A morte...”
Ainda não, rei de Deltora. Estou com você...
A voz do dragão do topázio sussurrou em sua mente, ecoando como a voz vinda de um sonho. No mesmo instante, ele sentiu um solavanco, como se a besta que o envolvia tivesse tremido inteira. E então ouviu um rugido como um trovão distante e soube...
A besta estremeceu outra vez. Lief ouviu um chiado como o de gordura caindo sobre o fogo e logo se sentiu caindo nos degraus duros, sentiu a carne grudenta e fria deslizando para longe dele, afastando-se de seu nariz e sua boca, de seus braços e suas pernas.
O ar entrou com violência nos seus pulmões doloridos quando respirou profundamente. O ar estava quente e trazia um cheiro de queimado. Lief sentiu dor, mas foi maravilhoso!
Ele abriu os olhos e viu que estava deitado de lado. A fumaça escurecia o ar e um vento forte o atingiu, prendendo-o ao chão. Ele viu um facho de luz dourada, um rugido retumbante e uma onda de calor.
Lief não pôde fazer nada. Ele só conseguiu deitar ofegante como um peixe fora da água, assistindo, perturbado, ao rastro de líquido oleoso e negro que desaparecia como uma cobra nas sombras ao lado das escadas.
Sentindo muita dor e lutando contra o vento poderoso, ele se virou de costas e olhou para cima. O dragão do topázio pairava acima dele, envolto em fumaça, com as grandes asas cintilando sob o sol que nascia. Novamente ele ouviu a voz em sua mente.
O que era aquela coisa nojenta de duas caras? Em toda a minha vida, nunca vi uma coisa parecida.
Lief tentou falar, mas não conseguiu, então pensou a resposta
— resposta que sabia ser verdadeira.
“Ele é o guardião da presença maligna chamada a Irmã do Sul”. Os olhos dourados do dragão se estreitaram. E, desta vez, ele falou em voz alta, num tom muito frio.
— Quando me acordou, rei, senti o mal no meu território. Mas você me disse que o centro do mal estava na terra do rubi, onde eu não poderia entrar.
— Não quis enganar você — Lief disse consternado. — Eu disse que havia quatro irmãs ao todo e que nós só sabíamos o paradeiro de uma delas, a Irmã do Leste, no Ninho do Dragão. Desde então, viajamos pelo reino, e três irmãs foram destruídas. Mas uma continua viva e acabamos de descobrir que está em Del.
— Eu sei disso — o dragão sussurrou, abaixando-se um pouco mais.
— A canção dela tem me atormentado. Eu a estou escutando. Ela está aqui, escondida bem no fundo do coração da cidade.
...o centro... o coração...
A voz de Josef ecoou na mente de Lief.
— Você sente o mal no palácio, dragão? — Lief perguntou depressa.
— Sim — o dragão grunhiu. — Por que outro motivo tenho rondado este lugar, enfrentando as armas de seus guardas? Não gosto de cidades, onde o ar é ruim, e os humanos correm desesperados ao me ver, como granous numa armadilha.
E, enquanto ele falava, ouviram-se sons assustados vindos do alto das escadas. No instante seguinte, uma flecha atravessou o ar e se enterrou na barriga macia do dragão.
O dragão berrou e subiu para o céu da manhã. Seu sangue vermelho-escuro espirrou nos degraus, sujando o rosto e as mãos de Lief.
Lief gritou horrorizado, lutando para se levantar, para gritar para os guardas que parassem imediatamente! Mas o vento forte das batidas das asas poderosas o prendeu ao chão e sua voz rouca não foi ouvida por causa dos rugidos do dragão.
O dragão se afastou voando desajeitadamente, perdendo altura devagar. As flechas o perseguiam apressadas, mas não o alcançaram, caindo inúteis no chão. O sangue escorria de seu ferimento enquanto ele voava. Indefeso, tomado pela dor e dominado pelo desânimo, Lief apenas olhava.
Ele ouviu o som dos pés nos degraus abaixo. Então alguém se agachou ao lado dele. Pela névoa formada pela fumaça que ainda se espalhava no ar, Lief viu um rosto quadrado e de olhos vivos cercado por cabelos crespos e castanhos. Ele viu o arco velho pendurado num dos ombros fortes e soube de quem era a flecha que havia ferido o dragão.
— Gla-Thon — Lief murmurou com voz rouca, tentando se sentar. — Como... ?
— Fique quieto — a gnoma disse determinada. — Você perdeu muito sangue. Jasmine e Barda também. Aquela besta amarela e perversa quase acabou com vocês.
— Não — Lief murmurou. A cabeça dele parecia flutuar. Sombras pontilhavam o canto de seus olhos.
Desesperado, ele tentou afastar as sombras. Precisava explicar. Precisava contar a Gla-Thon e a todos os outros sobre a besta de duas caras, do salvamento realizado pelo dragão. Mas havia uma coisa ainda mais urgente.
— Josef. Paff — ele sussurrou. — A praga de Tora...
Ele viu Gla-Thon arregalar os olhos, viu os lábios dela se moverem como se ela estivesse falando.
Mas as sombras se aproximaram. Lief não conseguiu impedi-las. Elas vinham cada vez mais depressa... e, finalmente, tudo ficou escuro.
Quando Lief acordou, estava deitado em seu antigo quarto do palácio, coberto por uma colcha de penas. Havia um travesseiro macio debaixo de sua cabeça. O perfume suave de sabonetes, lençóis limpos e ervas medicinais pairava no ar. A luz do sol atravessava as grades da janela, transformando a poeira suspensa no ar em partículas de ouro.
Durante um momento, ele ficou imóvel, com o pensamento perdido numa névoa agradável. As lembranças voltaram devagar e, de repente, todos os nervos de seu corpo ficaram atentos.
Lief se sentou abruptamente, e respirou fundo quando uma pontada de dor percorreu seu corpo. Ele viu que a túnica de Tora rasgada e ensangüentada tinha sido levada embora, e ele usava uma camisola branca e limpa. No mesmo instante, percebeu que, enquanto estava inconsciente, alguém havia banhado seus ferimentos, feito um curativo nos mais graves e coberto os outros com pomada.
Num impulso de pânico, Lief procurou o Cinturão de Deltora. Mas ele estava no lugar, em sua cintura, brilhando contra a camisola branca.
Ele olhou ao redor do quarto conhecido. Sua espada estava num canto perto da porta. Ao lado dela, estava a mochila que tinha deixado em Tora.
Quem a tinha trazido? Quanto tempo tinha ficado inconsciente? Meio dia? Mais?
De repente, o silêncio no quarto já não era tranqüilo, mas ameaçador.
Lief pensou na mãe, pensou em Jasmine e Barda sangrando nas escadas do palácio. Ele pensou em Josef com o rosto desfigurado pelas bolhas vermelhas e em Paff revirando os olhos na cama.
Aterrorizado, olhou para as mãos e, com um alívio envergonhado, viu que nenhuma mancha vermelha marcava sua pele.
A praga de Tora não o tinha atingido. Pelo menos, não ainda...
Lief jogou as pernas doloridas para o lado da cama e se levantou. O quarto pareceu girar ao seu redor e ele se agarrou à pequena mesa junto da cabeceira para não cair. Caminhou com dificuldade até onde estava a mochila, encontrou suas roupas e começou a vesti-las.
Seu coração se apertou no peito quando ouviu o clique na fechadura e viu a maçaneta virar. Sem saber exatamente por que, ele empunhou a espada e esperou, apoiado à parede.
A porta se abriu e Perdição entrou no quarto em silêncio. Ele ficou paralisado ao ver Lief parado no canto com a espada na mão. Seus lábios se estreitaram.
— Então, finalmente, você ficou cuidadoso, Lief — ele disse. — Antes tarde do que nunca.
Trêmulo, Lief sorriu e largou a espada.
— Perdição — ele disse, estendendo a mão. — Estou muito feliz em ver você.
— Tenho certeza de que você vai entender quando eu disser que não estou feliz em ver você — Perdição retrucou com frieza. — Eu não lhe disse para ficar longe daqui?
— Você também me disse para continuar minha busca — Lief respondeu, lutando para não se zangar. — Querendo ou não vir ver minha mãe doente, eu tinha que vir para Del. A Irmã do Sul está aqui.
Com uma satisfação amarga, ele viu a mudança na expressão de Perdição e o desânimo do amigo e sentiu-se envergonhado.
— Desculpe — ele disse depressa, estendendo a mão outra vez. — Você não podia saber. E, sem dúvida, eu teria vindo mesmo que a irmã não estivesse aqui.
Desta vez, Perdição se adiantou e tomou a mão estendida de Lief entre as dele.
— É claro que viria, Lief — ele retrucou. — Muitas vezes a sua cabeça foi dominada por seu coração. Essa é uma das muitas coisas que faz de você, apesar de toda a sua juventude, um rei melhor do que eu jamais seria.
Como se estivesse receoso de ter mostrado demais os sentimentos, ele pigarreou e soltou a mão de Lief abruptamente.
— Barda e Jasmine ainda estão dormindo — ele informou num tom de voz quase normal. — Segundo Gla-Thon, é um milagre vocês estarem vivos. Parece que os dragões podem ser aliados mortais.
Sem esperar uma resposta, ele estendeu um pedaço de tecido vermelho parecido com o que tinha amarrado no pescoço.
— Sei que não há esperança de convencer você a ficar longe de Sharn, por mais que eu queira — ele disse. — Amarre esta máscara em seu rosto. Ela vai lhe dar um pouco de proteção contra a infecção.
— Preciso ver Josef antes de visitar minha mãe — disse Lief apressado.
— Faça o que quiser, Lief — Perdição retrucou espantado e zangado. — Mas, se quer ver Sharn com vida, não há tempo a perder.
O medo atingiu Lief como um vento frio, afastando tudo o mais de sua mente, paralisando-o.
Minutos mais tarde, Lief estava ao lado da cama da mãe, respirando depressa e com dificuldade debaixo da asfixiante máscara de pano que cobria seu nariz e sua boca.
— Não chegue perto demais — avisou Perdição, que tinha ficado junto da porta — e não a toque.
Caroços feios e vermelhos cobriam o rosto e o pescoço de Sharn. A testa dela estava coberta por gotículas de suor. Seus lábios estavam secos e rachados. Sombras escuras e cinzentas manchavam a pele debaixo dos olhos e sua respiração estava muito fraca.
— Há quanto tempo ela está assim? — Lief indagou com um aperto na garganta.
— Hoje é o terceiro dia — Perdição contou. — Ela chegou a Del ao pôr do sol, três noites atrás, trazendo as boas notícias de que você tinha sido encontrado em segurança e que estava viajando para encontrar a Irmã do Sul. Uma tropa de guardas a acompanhou até o palácio. Ela falou com todos eles... como é o jeito dela.
Ele parou e depois continuou no mesmo tom calmo.
— As coisas dela foram trazidas para cá, mas ela ficou embaixo, apesar de estar cansada e empoeirada da viagem. Cumprimentou a multidão de famintos reunida no saguão de entrada e serviu a sopa que tinha sido preparada para eles com as próprias mãos. Depois, foi visitar os estábulos e então ela e eu comemos na cozinha com os empregados. Finalmente, ela admitiu estar exausta e veio diretamente para a cama.
Mais uma vez, ele parou de falar. Lief esperou, o olhar fixo no rosto da mãe.
— Pela manhã, ela estava ardendo em febre e as bolhas vermelhas já cobriam seu rosto — Perdição continuou depois de um instante. — Os guardas que a escoltaram ao palácio, muitas das pessoas que ela serviu e o chefe dos estábulos que a cumprimentou nas cocheiras estavam nas mesmas condições. A maioria morreu no mesmo dia. Então as pessoas próximas a eles começaram a adoecer. E assim a coisa continuou.
— Quantos morreram? — Lief se obrigou a perguntar.
— Várias centenas — Perdição informou tristemente, esfregando a testa com as costas da mão. — Perdi a conta nos últimos dias. Dei ordens para que os mortos sejam cremados. Os cidadãos foram aconselhados a cobrir o rosto nas ruas enquanto cuidam dos doentes. Mas as mortes continuam.
Perdição suspirou.
— Parece que a única coisa que consegui foi evitar que a doença se espalhasse para além de Del. Ninguém tem permissão para deixar a cidade. É por isso que Gla-Thon está com a gente. Uma Kin a carregou da Montanha do Medo para trazer notícias suas. A Kin voltou imediatamente, mas Gla-Thon ficou e ela ainda estava aqui quando a doença começou. Gers, o Jalis, e Steven ficaram presos da mesma maneira.
— Gers e Steven? — Lief repetiu estupidamente.
— Gers veio pedir comida para o seu povo — Perdição contou. — Steven chegou há uma semana com o garoto Zerry. Eles me contaram da viagem ao Portal das Sombras e seu encontro com os Mascarados e Jack Risonho.
Lief assentiu com a boca repentinamente seca.
— Para mim, os Mascarados eram somente uma das muitas curiosidades de Deltora — Perdição continuou sério. — Nunca conheci a história deles, nem tentei descobrir. Fiquei espantado quando Steven me contou que a trupe foi fundada por Ballum, o irmão mais novo do rei Elstred.
Ele viu Lief arregalar os olhos e assentiu.
— Steven não lhe contou? — ele indagou. — Você é parente dos líderes tradicionais dos Mascarados, Lief. Acho que foi por isso que Bess viu uma semelhança entre você e o filho. Steven me contou que Ballum era mágico e malabarista e era muito amado pelo povo e por seu irmão, o rei. Um belo dia, um truque não deu certo e o rosto de Ballum ficou gravemente marcado pelo fogo.
— Então ele começou a usar uma máscara para esconder as cicatrizes — Lief disse devagar.
— Isso mesmo — Perdição concordou. — Mas logo depois ele foi acusado de tentar matar Elstred, por rancor e inveja, e foi obrigado a fugir.
Ele deu de ombros quando ouviu Lief abafar uma exclamação.
— Sim, é possível que o conselheiro-chefe de Elstred tenha planejado tudo para garantir que o rei só desse ouvidos a ele. Séculos depois, seu pai e eu fomos separados pelo mesmo truque. Parece que o inimigo não esquece nada.
— E Ballum foi mesmo perseguido, aparentemente por ordens do rei — Lief disse, lembrando-se do rancor com que os Mascarados tinham falado do rei em Del.
— É verdade — Perdição concordou. — Mas ele se escondeu nas regiões mais selvagens de Deltora, ganhava a vida como artista ambulante e nunca foi pego. Gradativamente, uma trupe leal se juntou a ele. Eles viajavam constantemente e todos usavam máscaras para que, se fossem atacados, os guardas não soubessem de imediato quem era Ballum. — Ele levantou a mão cansada e a deixou cair outra vez. — Ninguém sabe se Ballum descobriu o segredo de fazer com que as máscaras fossem permanentes naquela época ou mais tarde — Perdição acrescentou.
Lief estremeceu e virou a cabeça.
— Desculpe-me — Perdição disse, sem jeito. — Agora não é o momento de falar dessas coisas — ele continuou, pigarreando. — A história de Steven sobre o que quase aconteceu a você me encheu de pavor, mas fiquei feliz em vê-lo... muito mais do que posso dizer. Agora, gostaria muito que ele tivesse ficado longe. Se ele e Nevets forem contagiados por essa maldita praga...
— Eles não vão ser — alguém disse em voz baixa. — Você não me disse que Steven e o menino tomaram o lugar do chefe dos estábulos? Lá eles vão ficar em segurança.
Lief ergueu os olhos e, com uma surpresa muda, viu Zeean, de Tora, parada perto de uma segunda cama do outro lado do quarto. Como ele e como Perdição, Zeean estava usando uma máscara vermelha que cobria a boca e o nariz. Suas mãos estavam cobertas por luvas justas feitas de algum tecido vermelho e brilhante de Tora.
Zeean viu Lief olhando fixamente para ela e o cumprimentou com um sorriso triste. Chocado, ele viu que havia um hematoma grande e escuro na face dela, exatamente embaixo do olho
— Como você pode ver, resolvi vir atrás de você para confortar Sharn da melhor forma possível — ela disse. — Marilen também queria vir, mas o pai a convenceu a ficar em segurança, e estou muito satisfeita por isso. Del não é lugar para ela agora, e não só por que o risco de se contagiar é muito grande.
Zeean andou até a bacia de água, revelando a pessoa que estava deitada imóvel na cama. Lief olhou horrorizado para o rosto decidido e bonito marcado pelas terríveis manchas da praga de Tora.
— Lindai! — ele sussurrou. — Mas ontem à noite ela estava...
— A doença age depressa quando ataca — Perdição disse com tristeza. — Pense nos guardas na porta na noite passada: estavam saudáveis quando entraram em serviço e mortos antes do amanhecer. Encontrei Lindai desse jeito quando vim dizer a ela que você tinha chegado e estava ferido e que Josef e Paff tinham caído de cama. E agora Zeean chegou para passar algum tempo nessa câmera da morte — ele acrescentou.
— Ela insiste nisso, apesar de saber que Lindai e Sharn não iriam querer que se arriscasse...
— Elas não podem ficar sofrendo sozinhas, Perdição — Zeean respondeu com calma, molhando um pedaço de pano na bacia de água e torcendo-o. — E você não pode ficar aqui dia e noite. Quem está cuidando de Josef e Paff?
— Gla-Thon se ofereceu — Perdição contou.
Zeean assentiu com a cabeça e foi até a cama de Sharn com o pano molhado nas mãos.
— Não há muito o que a gente possa fazer — ela murmurou, começando a limpar o rosto quente de Sharn. — Resfriar o rosto e as mãos, estar aqui para oferecer conforto e água. Esperar e rezar para que o corpo tenha forças para lutar contra a doença.
— Eu tinha esperança de que o diamante do Cinturão pudesse ajudar minha mãe — Lief disse com voz rouca depois de molhar os lábios.
— Agora, tenho medo de que a ajuda tenha chegado tarde demais.
— Talvez você tenha razão — Zeean disse com delicadeza, depois de hesitar. — Sharn tem se prendido à vida por muito mais tempo do que qualquer outra pessoa, mas essa doença que chamam de praga de Tora é cruel.
Lief viu os lábios de Zeean se apertarem debaixo da máscara.
— O próprio Perdição foi até os portões da cidade para me acompanhar numa volta — ela contou. — Acho que se ele não tivesse feito isso as pessoas teriam me machucado. As pessoas nas ruas pareciam ficar irritadas só de me ver com a túnica de Tora. Elas chamavam e gritavam, e algumas jogaram pedras.
Pensativa, ela levantou a mão enluvada até o ferimento no rosto.
— Oh, Zeean! — Lief murmurou desalentado. — Estou tão...
— Não me importo comigo — Zeean interrompeu, voltando para a bacia de água para colocar o pano de lado e apanhar o pote de pomada para Sharn. — Estou preocupada porque o seu povo acredita que esse mal veio para eles de Tora, quando sei que isso não pode ser verdade.
— Mas tem de ser, Zeean — Perdição disse com firmeza. — Sharn veio para cá direto de Tora e não há dúvida de que a doença veio com ela. Talvez ela estivesse protegida de seus efeitos enquanto ficou entre os muros da cidade mágica, mas depois que saiu...
Zeean balançou a cabeça e olhou fixamente a tampa do pote que estava abrindo.
— Se as sementes desse mal estivessem dentro de Sharn em Tora, nós saberíamos — ela afirmou.
— Eu imploro que não diga isso fora deste quarto — Perdição pediu sério. — Pelo que ouvi, é exatamente disso que o povo de Del desconfia.
— O que você quer dizer? — Zeean perguntou, olhando para ele finalmente.
Desanimado, Lief viu Perdição tirar um bilhete amarelo do bolso e o estender para ela.
“De qualquer forma, Zeean com certeza acabaria descobrindo”, Lief disse a si mesmo, enquanto observava com o coração apertado Zeean pegar o papel amarelo e começar a ler. “Só espero que ela possa ser convencida a não contar ao seu povo. Se os navios que trazem alimentos começarem a chegar à costa oeste agora que o Farol de Bone Point foi religado, Del vai precisar desesperadamente da boa vontade de Tora.”
Cerrando os dentes, Lief ficou de costas para os companheiros, afastou as vozes do seu pensamento e, devagar, abriu o Cinturão de Deltora.
Zeean estava lendo o papel com ar preocupado. Perdição a observava e nenhum dos dois viu Lief tirar o Cinturão e colocá-lo no peito da mãe com o grande diamante sobre seu coração.
E nenhum dos dois o viu olhar fixamente, espantado, para o que aconteceu em seguida.
Foi como ser atingido por um raio. Lief parou de respirar, o sangue subiu para o seu rosto e, durante um momento, ele ficou imóvel, incapaz de acreditar no que estava vendo. Então, lentamente, levantou os braços.
— Lief! — Perdição chamou, olhando ao redor de repente. — Lief, não! O que você está fazendo?
Lief estava tirando a máscara vermelha do rosto.
Lief olhou para Zeean e Perdição, que estavam paralisados pelo susto. Então ele se voltou novamente para a mãe e lhe tomou o pulso. As batidas já estavam ficando mais fortes.
— Não tenham medo — ele disse. — Não há nenhuma infecção aqui.
— Você ficou louco, Lief? — Perdição explodiu. — Coloque a máscara, depressa!
Lief não se mexeu. Desesperado, Perdição passou os dedos pelos cabelos.
— O que você fez? — ele grunhiu. — Paff entrou neste quarto sem máscara, apenas por um instante, mas mesmo assim pegou a doença e a passou para Josef.
— Eu vi Josef — Lief disse devagar, balançando a cabeça. — Eu me ajoelhei ao lado de sua cadeira e falei com ele. No entanto, não fiquei doente com o que vocês chamam de a praga de Tora.
— Mas quando você viu Josef? — Perdição gritou espantado.
— Antes da besta nos atacar nas escadas — Lief informou. — Ninguém sabia e foi por isso que não fiquei doente.
— O que você quer dizer? — Zeean perguntou irritada.
— Quero dizer que essa praga de Tora não existe — Lief disse. — Toda a doença, todas as mortes, foram causadas por veneno.
Zeean abafou um grito. Perdição resmungou, sem acreditar, mas Lief sabia que tinha razão. A prova estava diante de seus olhos.
— Você sabe que a ametista do Cinturão empalidece na presença de veneno — ele disse com calma. Veja!
Ele apontou para a pedra grande que estava clara como água de lavanda e viu os lábios de Perdição empalidecerem.
Zeean correu até a cama e se curvou sobre Sharn.
— As marcas vermelhas estão clareando! — ela exclamou.
— Elas sempre clareiam quando a morte se aproxima — Perdição disse com dificuldade. — Uma ou duas horas depois da morte, elas desaparecem totalmente.
— Sharn não está morrendo. Ela está sarando! A febre está baixando. Como... — Zeean disse, balançando a cabeça e olhando para o Cinturão. — A esmeralda — ela disse baixinho. — Antídoto para o veneno.
— Ela salvou Barda uma vez — Lief contou, assentindo. — Agora vai salvar minha mãe e Lindai também. E Josef. E todos os outros que sofrem, se eu puder chegar até eles a tempo.
Lentamente, Zeean endireitou o corpo. Então, com muito cuidado, guardou o pote de pomada, tirou a máscara vermelha do rosto e as luvas das mãos.
— Assim está bem melhor — ela murmurou. Rapidamente, pegou o pote outra vez e começou a passar o creme suavizante nos lábios de Sharn.
— Vocês dois estão cometendo um erro terrível — Perdição disse irritado. — Sharn não pode ter sido envenenada! Nós dois comemos e bebemos a mesma coisa. Ela não tocou a jarra de água durante a noite — essa foi a primeira coisa que verifiquei quando não consegui acordá-la de manhã. E todos os que se aproximaram dela ficaram doentes.
— Menos você, Perdição — Lief disse devagar. — Por que você ainda está de pé?
Lief não imaginou que Perdição pudesse ficar ainda mais pálido, mas isso aconteceu diante de seus olhos.
— O que você está sugerindo? — Perdição sussurrou.
— Só que você está muito exausto, porque tem dormido pouco, e é tão cuidadoso com o que come e bebe que seria quase impossível envenenar você. Os outros que ficaram com a minha mãe são uma história diferente.
Lief sacudiu os ombros.
— Uma tropa de guardas usa o mesmo tonel de água. Famílias comem juntas. Grupos de famintos são servidos da mesma panela. Essas pessoas foram vítimas fáceis para um assassino que queria imitar os efeitos de uma doença. Assim como Josef e Paff, que usam a mesma chaleira na cozinha da biblioteca.
— Como um envenenador poderia entrar em tantas casas e andar pelo palácio, e até por esse quarto, sem ser visto? — Perdição perguntou, balançando a cabeça.
Mas Lief se lembrou da trilha de mal líquido que deslizava nas sombras das escadas do palácio. Ele estava imaginando esse mal se espalhando por debaixo das portas, atravessando os buracos das fechaduras, se estendendo como uma sombra viva nos cantos escuros sem ser visto, insuspeito.
— Tem uma coisa perversa vivendo no palácio — ele disse em voz baixa. — Uma coisa criada por feitiçaria. Eu vi.
Perdição e Zeean o olharam fixamente e depois um para o outro, cheios de incerteza. Talvez estivessem se perguntando se ele tinha perdido o bom senso.
E, de fato, a cabeça de Lief girava. Os pensamentos que passavam por sua mente apressados, um depois do outro, ameaçavam tomar conta dela.
Ele tinha certeza de que depois de renovar suas forças junto da Irmã do Sul, o guardião iria se recobrar e tentar matá-lo outra vez. E, ao mesmo tempo, a morte de outras pessoas continuaria. Lief tinha certeza de que a falsa “praga” tinha começado por uma simples e única razão. Mas o guardião tinha percebido que ela atendia também a outros objetivos.
Não havia dúvida: enquanto a canção secreta e assustadora da Irmã do Sul continuava a tocar incontrolada, seu guardião iria continuar uma ameaça para todos os seres vivos em Del.
“Preciso levar o Cinturão até Josef para que ele possa me contar o que sabe”, Lief pensou. “Depois, preciso chamar o dragão do topázio para que possamos enfrentar a irmã juntos. Preciso agir depressa, antes que o guardião recupere a força. Mas o que fazer com Lindai, Paff e todos os outros que precisam do poder da esmeralda? Terei de deixá-los sofrendo até que morram?”
O pânico tomou conta dele, com intensidade cada vez maior, enquanto os pensamentos continuavam a correr em sua mente.
Ele tinha de avisar o povo de Del para tomar cuidado com o veneno. A comida teria de ser jogada fora — comida preciosa —, enquanto as pessoas morriam de fome! Ele tinha de fazer os guardas do palácio entenderem que o dragão do topázio não era uma ameaça...
Eram tantas coisas a serem feitas de imediato! E ele não podia perder tempo, de jeito nenhum!
Lief olhou para a mãe. As marcas vermelhas no seu rosto ainda não tinham desaparecido totalmente, mas ela estava respirando normalmente. O poder da esmeralda tinha agido sobre ela durante vários minutos. Ele se lembrava de que Barda tinha se recuperado ainda mais depressa. Seria seguro tirar o Cinturão?
“Vai ter de ser”, Lief pensou preocupado. Afastando suas dúvidas, pegou o Cinturão de Deltora, atravessou o quarto correndo e foi até a cama de Lindai.
Mas, quando abaixou o Cinturão, percebeu que alguma coisa dentro dele tinha mudado. Seu coração acelerado já batia mais devagar, e a sensação de pânico desaparecia.
Ele olhou para o Cinturão pesado em suas mãos e viu que seus dedos agarravam o topázio dourado e a ametista cor de água.
Ele não tinha imaginado que precisaria da ajuda delas. Ele tinha pensado que estava simplesmente enfrentando a verdade. Agora via que a verdade mais importante de todas tinha sido afastada de seus pensamentos por medo.
“Isso foi uma charada, como qualquer outra”, ele pensou numa surpresa muda, enquanto estendia o Cinturão sobre Lindai. “Eu quase não consegui resolvê-la. O pânico quase me derrotou. Mas agora sei o que precisa ser feito ou, pelo menos, por onde começar.”
— Não eu, mas nós — ele disse em voz alta. — Não estou sozinho.
— Claro que não está! — Zeean exclamou. — O quê...?
Ela se interrompeu com um grito espantado quando a porta foi aberta com um movimento inesperado. Barda entrou no quarto com a garganta enfaixada e o olhar inquieto. Jasmine entrou atrás dele, tentando segurá-lo sem conseguir.
— Lindai! — Barda disse com voz rouca. — É verdade...? — Ele prendeu a respiração quando viu Lindai deitada inconsciente na cama.
— Ela vai sobreviver, Barda — Lief garantiu depressa. — Josef, também. O Cinturão...
— Josef morreu — Barda contou quase sem mover os lábios.
O coração de Lief ficou gelado. Zeean soltou um gemido baixo, e o rosto de Perdição se entristeceu.
— Morreu? — Lief sussurrou. Ele não conseguia acreditar. De alguma forma, não conseguia imaginar o mundo sem Josef.
— Steven acabou de nos contar — Jasmine disse com os olhos cheios de lágrimas. — Josef morreu em paz, há pouco tempo, com Ranesh ao seu lado.
— Ranesh está aqui? — Zeean murmurou.
— Manus veio com ele — Jasmine informou. — Eles não tiveram problemas nas ruas, pois a aparência deles não revelou a ninguém que tinham vindo de Tora.
— Mas eu avisei para que ficassem longe daqui! — Perdição explodiu, fechando os punhos com força. — Eles ficaram loucos?
— Somente se amor e lealdade forem considerados loucura — Jasmine retrucou irritada. — Se você não queria que Ranesh viesse a Del, por que lhe contou que Josef estava doente?
— Eu não contei! — Perdição respondeu no mesmo tom de voz. — Eu, pelo menos, não perdi a cabeça!
— Acho que a culpa foi minha — Zeean confessou.
Perdição se virou de repente, mas ela encontrou seu olhar furioso com calma.
— O meu coração estava pesado demais depois da minha chegada
— ela disse. — Os toranos dividem seus pensamentos, mas a distância entre nós agora é grande demais para fazermos isso. Assim, escrevi para Marilen contando da doença de Josef, do ataque a Lief, Barda e Jasmine e... tudo o mais.
Perdição fez cara feia, e Lief entendeu bem o motivo. Ele sabia que seu rosto também deveria estar mostrando o seu desânimo.
Estava claro que todos em Tora já sabiam que o povo de Del os culpava pela doença e que Zeean tinha sido atacada nas ruas.
— E posso saber como mandou a sua carta? — Perdição perguntou com frieza. — Os pássaros-mensageiros são mantidos sob vigilância.
— Acho que você esqueceu que o pássaro Ebony veio de Tora comigo
— Zeean retrucou com um leve sorriso. Ele levou minha mensagem.
Perdição praguejou baixinho.
— Parece que você preferia que o meu povo ficasse na ignorância de coisas que ele tem todo o direito de saber — ela disse num tom gelado.
— Parem com isso, por favor! — Lief exclamou, incapaz de ficar quieto por mais tempo. — Vocês não estão vendo? É isso que o guardião do sul quer! O guardião quer que haja desconfiança entre Del e Tora, talvez apenas para criar medo e confusão, para impedir que suprimentos venham do oeste no caso de navios com comida aportarem.
Perdição e Zeean não responderam.
— Não poderemos fazer nada se brigarmos — Lief tornou, estendendo as mãos, desesperado. — E precisamos agir depressa, antes que o guardião recupere força suficiente para nos impedir. Sabemos que a Irmã do Sul está em algum lugar do palácio.
Jasmine respirou fundo, Zeean arregalou os olhos e até Barda ergueu os olhos, de repente alerta.
— A irmã está no palácio — Lief repetiu. — Acho que Josef sabia onde, mas agora ele não pode mais nos contar nada. Talvez ele tenha deixado uma pista, e o dragão do topázio também vai nos ajudar. Vou chamá-lo assim que...
— Chamar essa ameaça? — Perdição grunhiu. — Você não pode...
— Escute-me! — Lief implorou. — Há muitas coisas que você não entende. Precisamos nos reunir com Gla-Thon, Steven, Ranesh, Gers e Manus imediatamente. Quando eles estiverem conosco, vou explicar tudo.
Ele viu o rosto de Perdição se endurecer na expressão conhecida de teimosa e suspeita e se inclinou para a frente depressa.
— Certa vez, Perdição, quando nos conhecíamos muito menos do que agora, ficamos juntos no Vale dos Perdidos e ouvimos Zeean dizer “não há mais lugar para segredos”. Essas palavras são tão verdadeiras agora quanto naquela época, tenho certeza disso!
O olhar assustado do amigo encontrou o seu. Lembranças faiscaram entre eles. Lembranças de desconfiança e heroísmo, dor e triunfo. Lembranças de planos, ousadia, esperança — e até de risos.
— Não há sentido em manter segredo agora — Lief disse com calma. — O ataque desta manhã prova que o Senhor das Sombras sabe muito bem onde estamos. Como? Não tenho idéia, mas esses são os fatos. O destino fez com que os amigos em que mais confiamos estejam aqui. Precisamos pedir que eles nos ajudem.
Perdição curvou a cabeça. Ele não encarou Zeean quando esta deu um passo à frente e pousou a mão em seu braço. Mas assentiu devagar.
— Vou reunir os outros — Barda disse de mau humor. — Onde vai ser a reunião?
— Aqui, velho urso, ou vai ser pior para você — alguém disse com uma voz pouco clara do outro lado do quarto.
Eles se viraram e Barda soltou um grito abafado. Os olhos de Lindai estavam abertos. Ela virou a cabeça no travesseiro e olhou para eles.
— A reunião precisa ser aqui — ela repetiu. — Pois, se vocês me deixarem de fora, vão ter de agüentar as conseqüências e tenho medo de que... justamente nesse momento... não vá conseguir andar.
Não muito tempo depois, uma reunião estranha se realizou no quarto de Lady Sharn. Enquanto ela estava profundamente adormecida, a gnoma do medo Gla-Thon; Steven, de Plains; Zeean, de Tora; Manus, de Raladim; Gers, dos Jalis; Perdição; Barda e Jasmine se reuniram ao redor da cama de Lindal, de Broome, e ouviram Lief contar tudo.
Apenas Ranesh não se juntou a eles. Ele simplesmente tinha se recusado a deixar Josef. Nenhuma súplica surtiu efeito e, finalmente, Barda se viu obrigado a deixá-lo onde estava.
Quando Lief acabou de falar, houve um longo silêncio. Todos acreditavam tanto na praga de Tora que foi difícil aceitar a verdade. E todos, exceto Barda, Jasmine e Zeean, acharam ainda mais difícil aceitar que uma presença maligna rondava o palácio.
— Você está dizendo que esse guardião do sul é um Ol? — Steven perguntou finalmente, depois de pigarrear. Seus olhos dourados faiscavam perigosamente. — Pensei que o Cinturão tinha livrado Deltora dessas criações pegajosas que mudam de forma...
— O guardião não é um Ol — Lief interrompeu depressa. — O guardião é um ser humano com fortes poderes de feitiçaria. A besta de duas caras e a gosma preta que eu vi deslizando para dentro do palácio simplesmente são formas que o guardião acha... convenientes.
Houve outro momento de silêncio enquanto todos assimilavam o que Lief tinha dito.
— Se o que você disse é verdade, Lief — Gla-Thon começou — nenhuma comida ou bebida em Del está em segurança.
— O guardião tem saído do palácio escondido pela escuridão, mas eu não acho que a irmã fica desprotegida por muito tempo — Lief comentou. — Acho que as casas mais próximas do palácio correm maior perigo.
— É verdade que a maioria das mortes ocorreram no próprio palácio ou perto dele — Perdição concordou, franzindo a testa pensativo. — E pareceu perfeitamente natural quando imaginamos que essa maldição tinha sido uma doença trazida para Del por Sharn. Os empregados do palácio que vão para suas casas todas as noites costumam viver bem perto.
— Então devemos criar um círculo ao redor da área afetada com o palácio no centro — Lindai sugeriu, ajeitando-se nos travesseiros. — Toda a comida dentro do círculo deve ser retirada. As pessoas devem comer apenas comida entregue a elas depois de ter sido testada.
— As pessoas não vão se desfazer de seus estoques de comida sem brigar — Gers murmurou.
— Acho que posso convencê-las — Steven disse alegre. — Elas passaram a conhecer a mim e minha carroça nos últimos dias. As crianças gostam do meu cavalo e Zerry os diverte com truques de mágica.
Ele sorriu.
— Se eu carregar a carroça com comida que já foi testada e quiser trocá-la por seus estoques particulares, tenho certeza de que elas vão concordar de boa vontade.
Lief sentiu uma onda calorosa de alívio que era quase alegria. Agora, dez mentes em vez de uma estavam tentando resolver os problemas. E cada uma das dez tinha alguma coisa útil para oferecer.
— Não entendo por que, depois de meses ou anos escondido, esse inimigo — esse guardião do sul — de repente resolveu começar a envenenar pessoas inocentes — Manus disse subitamente.
— Ele não envenenou quaisquer pessoas — Lief ressaltou, tomando cuidado para não olhar para Perdição. — Ele envenenou minha mãe imediatamente depois da chegada dela a Del. E depois envenenou todos aqueles que entraram em contato com ela para que pensássemos que ela estava espalhando uma doença. As vítimas de epidemias sempre são isoladas dos outros. Pessoas que querem falar com elas são mantidas afastadas.
— Você está dizendo que tudo isso começou para evitar que Josef visse Sharn? — Perdição perguntou.
— Acho que sim — Lief concordou aborrecido. — Josef tinha descoberto uma coisa muito importante. Ele teria contado a descoberta para minha mãe, se pudesse. Ele confiava nela totalmente.
— Enquanto eu não era digno de confiança — Perdição disse azedo.
— Josef era uma pessoa confusa — Gla-Thon contou. — Vi muita gente assim na Montanha do Medo. Alguns dos idosos continuam duros como espinhos Boolong até morrer. Outros ficam com a cabeça cheia de fantasias. Josef era um deles. Ele se virou contra você, Perdição, porque você era firme com ele.
— Confuso ou não, é evidente que Josef tinha informações importantes — Barda disse sacudindo os ombros. E agora ele está morto e sua assistente, em quem ele pode ter confiado, muito doente.
— Duvido que Josef tenha contado alguma coisa para Paff — Perdição balbuciou. — Ele não gostava dela.
— Se Paff sobreviver, pode nos contar se sabe de alguma coisa — Gla-Thon comentou. — E, na verdade, ela pode até sobreviver. Ela tomou apenas metade do caldo que Lief disse que a envenenou, e ela tem todo o vigor da juventude. Se ela também tiver a ajuda da grande esmeralda...
— Ela vai ter, assim que terminarmos aqui — Lief garantiu. — E, até que possa falar, ela deve ser vigiada de perto. Nenhum mal pode acontecer a ela.
— Vou cuidar disso — Gla-Thon concordou, virando-se depressa para sair como se tivesse ficado satisfeita por ter algo prático para fazer.
— Gla-Thon, espere! — Lief chamou. — Tem mais uma coisa que preciso pedir a você... e a seu povo.
— Diga — Gla-Thon falou com a mão na maçaneta da porta.
— Preciso de todas as esmeraldas grandes da caverna do tesouro dos Gnomos do Medo. Todas as esmeraldas e todas as ametistas também.
Gla-Thon arregalou os olhos e, por um instante, todos no quarto puderam ver faiscando neles a habitual desconfiança dos Gnomos do Medo e o amor por seus tesouros.
Então Gla-Thon piscou e a luz ambiciosa e desconfiada desapareceu.
— Claro — ela disse com calma. — As esmeraldas para ajudar os que foram envenenados, e as ametistas para testar a comida.
— Isso mesmo — Lief respondeu, muito grato por ela ter entendido tão depressa. — Há algumas jóias no palácio, mas não são suficientes. É claro que as pedras da Montanha do Medo vão ser devolvidas assim que a crise passar.
— Sei disso — Gla-Thon disse, curvando-se levemente. Ela tinha puxado uma pequena sacola de um dos bolsos e virou seu conteúdo na palma da mão e mostrou uma pequena pilha de esmeraldas que brilhavam como um fogo verde.
— Eu queria comprar comida para levar para casa no fim da minha estada — ela disse. — As coisas na Montanha do Medo estão melhorando, mas as plantações ainda são novas. Logo percebi que minha intenção era tola, mas agora estou contente por ter trazido as pedras comigo.
— Mas não é só a pedra do Cinturão que pode...? — Lindai começou.
— Pedras menores são apenas sombras das sete que estão no Cinturão de Deltora, mas elas ainda têm algum poder, principalmente se forem muitas — Gla-Thon informou. — Os Gnomos do Medo sempre souberam disso. Esse é um dos motivos por que damos tanto valor às pedras.
— Meu plano é reunir todos os doentes num lugar junto com as esmeraldas — Lief contou. — Mas não pode ser aqui no palácio, pois ele deve ter o menor número de pessoas possível. Não sei onde mais... — ele disse, olhando para Perdição, hesitante.
— O grande armazém de alimentos perto da praça está quase vazio
— Perdição contou. — Há espaço para centenas de camas. Talvez Gers possa começar o trabalho enquanto pego as jóias do palácio. Vou encontrar vocês assim que puder.
Gers grunhiu, concordando.
— Muito bem — disse Gla-Thon. — Vou conseguir as pedras. Só preciso de um pássaro para mandar a mensagem, e tudo vai se resolver.
— Vou pegar um pássaro — Jasmine ofereceu, andando ansiosamente para se reunir a Gla-Thon na porta.
— Pegue dois — Lief pediu a ela. — Zeean precisa escrever para Marilen de novo.
— Preciso mesmo? — Zeean murmurou. — E o que devo dizer? Lief olhou para ela que se deixou cair numa poltrona. Zeean levantou a mão até o hematoma escuro debaixo do olho como se doesse.
— O seu povo deve saber que a praga de Tora é uma mentira e que logo todos em Del vão saber disso — ele falou.
— E o que mais? — ela perguntou, assentindo com um gesto devagar.
Lief hesitou. Tinha planejado falar com Zeean, depois em particular. Contudo, era evidente que ela já tinha adivinhado a segunda parte da mensagem e não ia permitir que ele guardasse segredos.
“Talvez ela tenha razão”, ele pensou. “Todos devem compreender o que esperar do futuro.”
— Marilen precisa vir a Del sem demora — ele disse com relutância.
— Ela é a herdeira do Cinturão de Deltora. Quando eu enfrentar a Irmã do Sul, Marilen deve estar aqui pronta para usar o Cinturão se eu não sobreviver.
Ele fez uma pausa. O quarto ficou extremamente silencioso. Zeean tinha fechado os olhos e todos os outros, assustados, olharam para Lief.
— Barda e Jasmine vão estar comigo — Lief continuou, sem olhar para nenhum dos companheiros. — Eles vão ter a missão de tirar o Cinturão de mim e entregá-lo em segurança para Marilen quando acharem que chegou a hora.
— Você enfrentou três irmãs antes disso e seus três guardiões também, Lief — Barda afirmou quase zangado. — Como sabe que...?
— Esta é a última irmã e acho que vai ser a mais terrível, pois toda a fúria do Senhor das Sombras vai estar concentrada nela — Lief interrompeu. — E...
Ele olhou para as mãos. “E senti a tragédia que nos espera desde que pus os pés no palácio”, ele pensou. “Essa sensação fica cada vez mais forte à medida que me aproximo do meu objetivo.”
— E o dragão do topázio não está só exausto, como estava o dragão da ametista, mas ferido — ele disse em voz alta. — Ele vai tentar com todas as forças livrar seu território do mal do Senhor das Sombras. Mas o esforço poderá destruí-lo e, sem ele, eu também estarei perdido.
— Então, se você morrer, a culpa vai ser minha, pois fui eu quem atacou a besta!
— Você não pode ser responsabilizada por nada, gnoma — Gers grunhiu. — Você pensou que estava salvando a vida de Lief. Em seu lugar, eu teria feito a mesma coisa.
— Eu também — Lindai acrescentou. — Ninguém de Broome, que foi construída nas ruínas de Capra, poderia duvidar da deslealdade dos dragões. E tenho dito isso para todos os que me perguntam desde que cheguei aqui.
Lief não discutiu. Não havia tempo para brigas sobre a lealdade dos dragões naquele momento.
— Esse é mais um motivo para que Barda avise os guardas para que o dragão do topázio seja protegido e não atacado — ele disse, em vez disso.
— Eles não vão gostar disso — Gers resmungou. — Eles acham que o dragão está atacando o seu rei. Vai ser difícil convencê-los do contrário.
— Eles vão acreditar no que dissermos e fazer o que mandarmos! — tornou Barda irritado. — Se eles tivessem atendido aos nossos pedidos de ajuda na hora certa, eles mesmos teriam visto o verdadeiro atacante.
De cara feia, ele balançou a cabeça.
— Achei que os tinha deixado em boas mãos com Corris, mas parece que a disciplina ficou muito frouxa.
— Corris morreu no primeiro dia da praga — Perdição contou.
— Dunn, o segundo no comando, está na chefia agora.
Barda fez uma careta, mas Lief não soube dizer se era de tristeza por causa de Corris ou desconfiança por causa de Dunn.
— Sugiro que terminemos essa reunião agora — Perdição disse de repente. — Temos muitas coisas para fazer e pouco tempo a perder.
Houve murmúrios de concordância e logo depois apenas Lief, Zeean, Lindal e Manus estavam no quarto com Sharn, que continuava dormindo.
— Parece que todos têm alguma coisa a fazer, menos eu — Manus disse baixinho. — Não há nada que eu possa fazer?
Lief abraçou o homem de Ralad. Seu coração estava pesado, mas sua voz estava firme quando falou.
— Você, Manus, tem a tarefa mais importante de todas — ele disse.
— Você é um construtor de Raladim. Os seus ancestrais construíram este palácio, pedra por pedra. Se há alguém que pode me ajudar a encontrar a Irmã do Sul, esse alguém é você.
Depois de deixar Zeean escrevendo a carta para Marilen, Lindal se restabelecendo da fraqueza que a obrigava a ficar na cama e Sharn ainda dormindo, Lief e Manus correram para a biblioteca no andar de baixo.
Lief foi até o depósito e rapidamente encontrou a caixa em que estava a planta original desenhada pelos construtores de Raladin para o rei Brandon, muito tempo atrás. Quando tirou a caixa da prateleira alta e a levou para a mesa, escutou um baque forte.
Muitas vezes, Josef tinha mostrado a caixa para ele, evidentemente esperando que ele pedisse para ver as plantas. Mas Lief nunca tinha pedido. Ele ficou aborrecido com a idéia. Josef só tinha conseguido despertar seu interesse uma vez, quando disse a Lief que o Palácio tinha levado quarenta anos para ser construído.
— Quarenta anos! — Lief tinha exclamado.
— Isso mesmo! — Josef concordou radiante. — Brandon se mudou assim que o piso térreo foi terminado, mas não viveu para ver o trabalho terminado. Foi seu filho, Lucan, quem teve essa honra. Agora, se você quiser tirar a caixa para mim, eu vou lhe mostrar...
Mas Lief tinha dado desculpas apressadas e deixou a biblioteca, prometendo examinar as plantas num outro dia.
Agora, parecia que o dia tinha chegado. Mas Josef não tinha vivido para vê-lo.
Manus começou a tirar os documentos, um por um, exclamando fascinado diante deles.
— Procure por espaços secretos, principalmente nos quartos centrais, Manus — sugeriu Lief. — Josef disse que a irmã estava “no centro”, “no coração”. Talvez ele estivesse se referindo apenas ao próprio palácio, no centro de Del. Mas ele pode ter querido dizer que a irmã está escondida em algum lugar no centro do palácio.
Manus assentiu vagamente com os olhos fixos nas plantas.
Lief o deixou e foi rapidamente até o quarto de Josef. Ele bateu de leve na porta, olhou para dentro e ficou espantado ao ver o quarto vazio.
Durante um momento, ele só olhou assustado. Então percebeu que Ranesh certamente tinha levado Josef até a capela onde poderia ficar exposto como um herói de Deltora.
Lutando contra o aperto na garganta, Lief correu até a escrivaninha. Quando estendeu a mão para o volume aberto dos Anais de Deltora, que Josef tinha puxado para cima de seu trabalho secreto, viu a pilha de papéis amarrada com uma fita azul no lado esquerdo da mesa.
Ele observou a primeira página.
Então finalmente Josef tinha terminado o seu livro. Mais uma vez, Lief sentiu um aperto na garganta. Ele respirou fundo e olhou para o pesado volume aberto à sua frente.
Era o Volume 1 dos Anais, onde estavam registrados todos os contos populares. O coração de Lief começou a bater mais depressa quando percebeu que o livro estava aberto na história das Quatro Irmãs.
Novamente revoltado ao pensar no prazer maldoso com que o Senhor das Sombras nomeou as criações perversas como as irmãs do antigo conto dos Jalis, Lief empurrou o livro para o lado.
E não havia nada debaixo dele. Josef, ou alguma outra pessoa, tinha mudado de lugar ou destruído o que tinha estado ali.
O desapontamento foi como um soco. Mas Lief estava envergonhado ao descobrir que, bem no fundo de seu ser, debaixo da decepção e da frustração, havia uma leve onda de alívio. Seria preciso fazer outra busca no quarto, todos os livros e papéis teriam que ser examinados. Mas, por ora, o esconderijo da irmã continuava desconhecido. Ele não tinha de dar outro passo em direção à escuridão.
Ele se sentiu entorpecido quando se afastou da escrivaninha e deixou o quarto.
Manus ainda estava concentrado nas plantas, e Lief não o perturbou. Em vez disso, foi rapidamente para o quarto de Paff.
A porta estava aberta, inclinada nas dobradiças. Lief chamou baixinho e entrou. Gla-Thon estava parada ao pé da cama com o arco pronto.
— Ah, Lief, é você — Gla-Thon disse, baixando o arco e dando um passo para o lado.
Lief pôde ver de imediato que Paff estava bem melhor. O corpo tinha relaxado, os olhos estavam fechados no que parecia um sono natural.
— Todas as esmeraldas que eu tinha estão debaixo das cobertas, perto do coração dela — Gla-Thon sussurrou. — Eu as coloquei ali, assim que voltei. E aqui está a mensagem para ser mandada para Fa-Glin.
Ela estendeu o bilhete. Lief o pegou com um aceno de agradecimento e se aproximou da cama. Pareceu que Paff se mexeu um pouco quando ele se aproximou. Lief procurou o fecho do Cinturão.
— Se nós a deixarmos se recuperando só com a ajuda das minhas esmeraldas, vamos aprender muita coisa que poderá ajudar no tratamento de outras pessoas — Gla-Thon murmurou. — Seria uma experiência muito útil.
Lief hesitou e então balançou a cabeça.
— Talvez Josef tenha contado alguma coisa a ela — ele disse. — É uma chance pequena, talvez, mas, quanto antes ela puder falar, mais cedo...
Ele se interrompeu e se virou quando ouviu o som de passos apressados e vozes do lado de fora da biblioteca. Com o canto dos olhos, Lief viu que Gla-Thon tinha levantado o arco novamente.
Jasmine apareceu na porta com o rosto tomado por uma palidez mortal. Kree batia as asas no braço dela e Filli choramingava tristemente em seu ombro. Manus apareceu atrás dela com o rosto azul-acinzentado franzido de aflição.
O coração de Lief começou a bater mais forte. Ele foi até Jasmine. Ela estendeu as mãos cegamente e agarrou a jaqueta dele.
— Fui até o viveiro de pássaros — ela contou com a voz baixa e tensa. — Os guardas não estavam lá e os pássaros... todos os pássaros...
— Mortos? — Lief exclamou.
— Mortos... ou quase — Jasmine sussurrou. — Lief, você precisa vir e me ajudar. Se eles não puderem ser curados, precisam que alguém ponha um fim ao seu sofrimento. Eles... eles estão sofrendo.
— Fique com Paff! — Lief pediu para Gla-Thon por cima do ombro. E, abraçando Jasmine, saiu correndo do quarto com ela.
No centro do viveiro de pássaros, havia uma árvore com galhos compridos que quase chegavam até o teto alto coberto por uma rede. O sol brilhante entrava por entre as folhas da árvore, iluminando dolorosamente a cena embaixo.
Todos os poleiros estavam vazios. A palha que cobria o chão estava coberta por corpos pretos emplumados, alguns batendo as asas e gritando horrivelmente, alguns mortalmente imóveis.
Kree estava encolhido em silêncio no braço de Jasmine. Seus olhos dourados pareciam vidrados.
— Nós vamos ajudá-los, Kree — Jasmine garantiu, mas seu rosto parecia assustado quando olhou os pássaros, muitos dos quais ela tinha criado desde pequenos. Todos tinham sido treinados por ela.
— Veneno — Lief murmurou, virando a tina de água que estava no chão perto da porta. — O guardião deve ter entrado às escondidas na noite passada, quando nos aproximamos de Del e enquanto os pássaros ainda dormiam. Não há dúvida de que o plano foi impedir que mandássemos qualquer mensagem daqui.
— Onde está o encarregado dos pássaros? — Jasmine perguntou baixinho. — E os guardas? Perdição me prometeu que os pássaros ficariam em segurança. Ele jurou!
— Perdição não pode estar em todos os lugares — Lief respondeu em voz baixa, abrindo o Cinturão de Deltora. — E ele tem de dormir, como qualquer mortal.
Ele se ajoelhou junto do pássaro vivo mais próximo e, com delicadeza, apertou a esmeralda em seu peito. No mesmo instante, a luta penosa da ave parou. Ela abriu os olhos e piou debilmente.
Jasmine soltou um som leve e abafado. Ela caiu de joelhos e tocou a cabeça do pássaro.
— Muito bem, Blackwing — ela balbuciou. — Muito...
Em silêncio, Lief foi até o próximo corpo que se debatia. Por um momento, lembrou-se de Paff, mas afastou o pensamento da mente. Paff estava se recuperando sem sua ajuda. Se ela tivesse alguma coisa a dizer, teria de esperar.
Meia hora depois, o sol brilhava sobre 12 poleiros ocupados no viveiro de pássaros. As aves que Lief tinha salvado estavam quietas e com as penas eriçadas, muito cientes dos espaços vazios à sua volta.
— Nenhum deles está forte o suficiente para voar até a Montanha do Medo — Jasmine disse em voz baixa, enquanto ela e Lief observavam os sobreviventes.
Kree guinchou e bateu as asas.
— Não, Kree! — ela exclamou. — Você acaba de voltar de Tora. Você precisa...
Kree guinchou de novo e bateu o bico. Era óbvio que ele estava determinado a ir até a Montanha do Medo, com ou sem a aprovação de Jasmine.
Lief estendeu o papel dobrado. Kree o tirou com cuidado de sua mão e o segurou com força.
— Vá e se despeça dele, Jasmine — Lief disse com suavidade. — Não vou deixar os pássaros até você voltar.
Jasmine respirou fundo, então concordou com um aceno de cabeça e saiu do viveiro com Kree pousado serenamente em seu braço.
Lief enfiou as mãos no fundo dos bolsos e começou a andar devagar pelo viveiro, chutando a palha com a ponta das botas. Em sua volta, os pássaros em recuperação piavam e gorjeavam.
Ele deu um salto violento quando ouviu um barulho atrás dele. Lief se virou com a mão na espada quando a porta do viveiro se abriu.
Barda entrou com a expressão sombria. Logo atrás dele, vinha um guarda atarracado, quase careca, com um olhar ansioso no rosto vermelho e bondoso. Lief reconheceu Dunn, o novo auxiliar de Barda. Uma máscara vermelha estava pendurada em volta do pescoço de Dunn como se ele tivesse acabado de tirá-la recentemente.
— Manus nos contou o que aconteceu — Barda disse aborrecido. — descobrimos Jarvis, o encarregado dos pássaros, morto em sua cama.
Os guardas do viveiro foram encontrados no corredor mais adiante. Eles não têm nenhuma marca no corpo, mas também estão mortos.
— Não há dúvidas de que Zon e Delta se arrastaram em busca de ajuda, senhor, e morreram onde estavam — Dunn murmurou.
— Sem dúvida — Barda retrucou, apertando os lábios. — Mas isso deve ter acontecido bem antes do amanhecer, pois seus corpos já estão frios e rígidos. Por que você não descobriu antes que o viveiro estava desprotegido?
— Fui obrigado a abandonar as inspeções nessa área, senhor — Dunn contou, corando. — Estamos com pouco pessoal, senhor, por causa da praga de Tora. E o viveiro fica muito longe.
— É exatamente por esse motivo que as inspeções são necessárias aqui, Dunn — Barda respondeu entre os dentes cerrados. Quantas vezes tenho que dizer isso? Não há praga! Pare de usar essa maldita palavra!
Dunn secou a boca com as costas da mão.
— É verdade, o senhor disse que não há praga, apenas veneno, senhor — ele murmurou. — Os guardas nos portões da cidade foram avisados, como o senhor mandou, e todos nós tiramos as máscaras.
Com um jeito infeliz, ele mostrou o tecido vermelho ao redor do pescoço com o dedo.
— Mas Zon e Delta estão mortos, senhor, assim como Airlie e Wax, os homens que estavam na porta de entrada na noite passada. E juro que nenhum deles foi envenenado.
Ele encontrou o olhar furioso de Barda e desviou os olhos depressa.
— O senhor deixou ordens severas, senhor, de que nenhum guarda aceitasse comida ou bebida durante o turno, pois no passado os guardas receberam soníferos dos inimigos — ele murmurou. — Zon e Delta não eram do tipo que desobedece, Airlie e Wax também não.
— Mesmo assim, todos tomaram veneno, de algum jeito — Barda disse com firmeza. — Ponha isso na sua cabeça e se certifique de que outros homens façam o mesmo.
As orelhas de Dunn ficaram muito vermelhas e ficou claro que ele achava que Barda estava errado. Ele piscou rapidamente, mas não disse nada.
Barda hesitou e então se virou para Lief.
— Mas é verdade que esses homens eram bons soldados — ele disse, olhando diretamente nos olhos de Lief. — Eles não teriam desobedecido minhas ordens a menos que... tivessem um bom motivo.
Lief entendeu bem demais o que Barda lhe dizia, mas o pensamento era horrível. Sua mente não queria aceitá-lo. Dunn estava muito inquieto.
— Posso ir agora, senhor? — ele perguntou nervoso. — Os homens que estão cuidando de Zon e Delta estão esperando por mim e vão ficar impacientes.
— Então, vá — Barda suspirou. — Mas, Dunn, tente se lembrar de que agora você é meu auxiliar. Seja sempre atencioso, mas não tenha medo da insatisfação dos homens ou eles não vão respeitá-lo.
Dunn abaixou a cabeça e correu para a porta, tirando um grande lenço branco do bolso para enxugar a testa.
— Ele terá de ser substituído — Barda resmungou baixinho. — É ansioso demais para se tornar um bom líder dos guardas.
Mas Lief não estava escutando. Ele tinha disparado para a frente e apanhado uma coisa que tinha caído do bolso de Dunn quando ele pegou o lenço.
Era um pedaço de papel amarelo dobrado. Lief o desdobrou e sentiu o estômago revirar.
— Dunn! — ele gritou. — Onde você conseguiu isso?
Dunn ficou rígido e se virou hesitante quando viu o papel amarelo na mão de Lief. Apalpou com jeito de culpa seu bolso e arregalou os olhos azuis.
— Há... havia uma pilha enorme deles na mesa do nosso refeitório, nesta manhã — ele balbuciou. — Achei que não tinha nada demais em pegar um.
— Não há mal em pegar um — Lief concordou, fazendo um grande esforço para não mudar o tom de voz. — Também não há mal em ler o aviso. Só haveria mal em acreditar no que diz. São tudo mentiras, Dunn.
— Se o senhor diz que são, majestade — Dunn respondeu, sem olhar nos olhos de Lief.
— Isso é a bobagem sobre a praga de Tora que vimos pregada em toda a cidade quando chegamos? — Barda exclamou, olhando para Dunn.
— Não, isso é uma coisa nova — Lief explicou. — Muito bem, Dunn, pode ir.
Agradecido, Dunn escapou do viveiro, e eles o ouviram quase correndo pelo corredor.
Lief estendeu o papel amarelo para Barda.
— É melhor você ler isto — ele disse aborrecido.
A TRAMA DE TORA
OS FEITICEIROS DE TORA SEMPRE INVEJARAM DEL, LAR DA FAMÍLIA REAL E PRINCIPAL CIDADE DO REINO. AGORA ELES ESTÃO TRAMANDO ROUBAR O PODER PARA ELES MESMOS!
# VERDADE! Enquanto o nosso amado rei continua sem filhos, a herdeira do Cinturão de Deltora é a garota torana, Marilen, marionete dos poderosos protetores de Tora.
# VERDADE! Se o rei Lief morrer por causa da praga de Tora ou for assassinado por espiões toranos, Marilen vai se tornar rainha.
# VERDADE! A nova rainha não vai viver no palácio de Del. Seus protetores vão alegar que ela não pode fazer isso, enquanto Del é atingida pela fome, por ataques de dragões e doenças. Ela vai ficar em Tora.
# VERDADE! A marionete Marilen já está grávida, embora seja um pouco mais que uma criança. Se ela se tornar rainha, seu filho vai ser o novo herdeiro do Cinturão. Ele vai nascer em Tora e lá vai ficar. Tora vai se tornara principal cidade do reino,enquanto Deltora definha.
CIDADÃOS DE DELTORA, FAÇAM COM QUE SUA VOZ SEJA OUVIDA! Façam com que os feiticeiros de Tora saibam que a sua trama foi descoberta.
Façam com que eles entendam que, se o seu rei for ferido, nós vamos saber a quem culpar.
Façam com que eles vejam que nós nunca vamos aceitar a marionete Marilen como nossa rainha.
— Isso é mesmo uma coisa nova — Barda comentou, assobiando. — Isso não só alimenta o ódio contra Tora, mas também...
— Ameaça a segurança de Deltora — Lief terminou para ele. — Se Marilen não tiver a confiança do povo, o Cinturão não vai ter força. Vão surgir rachaduras na armadura que nos protege de uma invasão pelo inimigo. Tudo pelo que trabalhamos vai correr perigo.
— Somente se você morrer, Lief — Barda disse abruptamente. Lief assentiu. O viveiro iluminado parecia ter escurecido. “Realmente”, ele pensou. “E, se enfrentar a Irmã do Sul, eu vou morrer. Essa sensação de mau presságio só pode significar isso.”
Durante um momento, ele ficou parado com a cabeça inclinada. Ele ouviu Jasmine voltar para o viveiro e o barulho de papel quando Barda entregou a ela o aviso amarelo, mas não se mexeu nem falou.
“Concentre-se no seu problema atual”, ele disse para si mesmo. “Ainda há tempo para resolver se você deve enfrentar a irmã ou não. Quando você descobrir onde ela está. Quando...”
— Esses avisos não estão sendo escritos por um cidadão de Del — ele disse em voz baixa. — Eles são obra do guardião do sul.
Ele ergueu os olhos. Jasmine tinha desviado o olhar do aviso e agora o fitava espantada. Barda, contudo, só balançava a cabeça devagar.
— Você não percebe, Jasmine? — Lief continuou. — Fazer as pessoas terem ódio da minha herdeira é o jeito perfeito para fazer com que eu tenha medo de arriscar a vida atacando a Irmã do Sul. O guardião é um inimigo perigoso: sutil, de raciocínio rápido e muito esperto.
— É alguém que todos conhecemos e em quem confiamos — Barda balbuciou. — É alguém de quem um guarda aceitaria comida e bebida sem desconfiança, apesar das ordens recebidas.
Os olhos de Jasmine escureceram até ficarem quase pretos.
— Por que você disse que o guardião tem raciocínio rápido? — ela perguntou devagar.
— Para evitar que Josef contasse o que sabia, minha mãe foi envenenada e foram criados os falsos temores de uma praga. Isso levou à idéia de gerar ódio por Tora. Então o guardião se lembrou de que minha herdeira era de Tora e isso, por sua vez, levou a uma idéia ainda melhor.
Ele olhou o papel amarelo na mão de Jasmine.
— Mas nem sempre dá certo ser esperto demais — Barda comentou. — Esses avisos vão ser a ruína do nosso inimigo oculto. A feitiçaria pode ter sido usada para fazer várias cópias, mas o papel amarelo é bastante real. Vou ordenar uma busca e, se encontrarmos um estoque dele escondido na casa de alguém, vamos saber.
Lief concordou. Ele pegou o aviso das mãos de Jasmine como se tivesse um peso muito grande sobre sua mão e seu braço.
— Preciso mostrar isto para Zeean — ele disse. — Não posso arriscar que ela veja isto por acaso, como nós vimos. E preciso dizer a ela que não há nenhum pássaro em condições de levar uma mensagem a Tora.
— Ainda bem que não há — Barda completou, com um sorriso sombrio. — Seria loucura se Marilen viesse para Del agora, mesmo que o pai permitisse sua vinda.
— Marilen certamente pode fazer o que quer! — Jasmine exclamou.
— Agora ela é uma mulher casada. E o seu marido, o pai de seu filho, está aqui.
— Talvez ele esteja — Barda disse, dando de ombros. — Mas Marilen é de Tora, Jasmine. O pai tem grande influência sobre ela. E, se os toranos vêem Del com frieza, isso não é nada comparado ao que irão sentir se desconfiarem que o povo acredita nesse último aviso.
Ele fez uma careta.
— O estranho é que as palavras do aviso fazem sentido. Tora sempre teve inveja da preferência que Del tinha no reino. Marilen é herdeira do Cinturão. Ela tem protetores poderosos. Ela está grávida...
— Mas... mas você até parece acreditar que Tora está tramando contra nós, Barda! — Jasmine gritou exaltada.
Barda ficou sério.
— Só estou dizendo que devemos manter nossas mentes abertas — ele retrucou. — E, a partir deste momento, só devemos confiar em nós mesmos.
Quando subiu correndo as escadas depois disso, Lief ouviu o som de pés batendo no chão e respirações ofegantes vindas de cima. Ele olhou e viu uma mão agarrando o corrimão curvo da escada bem acima de sua cabeça.
Com o coração na boca, ele subiu aos pulos até que finalmente alcançou Lindai, encolhida nos degraus.
— Graças aos céus! — ela disse ofegante. — Não consegui andar mais. Lief, acho que você cometeu um erro terrível. Zeean está mortalmente doente. E Sharn... está pior. Mas não foi veneno. Elas não comeram nem beberam nada...
Lief correu sem pensar em nada.
A porta do quarto da mãe estava escancarada. Ele entrou rapidamente no aposento e na mesma hora viu as manchas vermelhas novamente no rosto de Sharn. Ele viu Zeean recostada na poltrona com a testa coberta de suor, e as faces, o queixo, o pescoço e os braços cobertos com as mesmas bolhas vermelhas.
Apavorado, ele levantou Zeean e a carregou para a cama da mãe. Ele a deitou ao lado de Sharn e então arrancou o Cinturão de Deltora da cintura e o estendeu em cima das duas mulheres.
A ametista tinha um brilho rosado e malva pálido, que o deixou inquieto.
“A ametista acalma e tranqüiliza”, Lief pensou agitado. “E perde a cor perto de comida ou bebida envenenada. Que erro posso ter cometido?”
“A ametista acalma e tranqüiliza...”, ele repetiu em voz alta. E, de repente, ele se lembrou do resto das palavras, como as tinha visto no O cinturão de Deltora.
As palavras que Lief tinha esquecido queimavam em sua mente.
Ela muda de cor na presença de doenças...
Seu coração deu um pulo dolorido. Agitado, olhou novamente para a ametista. Mas ela tinha empalidecido, não só mudado de cor! Certamente...
Elas não comeram nem beberam nada...
Os pensamentos dele estavam a toda, lutando presos num pesadelo ainda mais assustador do que todos os que já tinha enfrentado.
Ele tinha errado. Os pássaros tinham sido envenenados, é verdade, mas as pessoas, não. Durante todo o tempo, a ametista tinha reagido diante da doença, não ao veneno. A praga de Tora era real.
Horrorizado, ele pensou em Kree que voava para a Montanha do Medo. Não havia outro pássaro para mandar atrás dele. E as esmeraldas que os gnomos iriam mandar seriam inúteis. Não era a esmeralda, o antídoto para venenos, que tinha revivido Lindai e ajudado Sharn. Tinha sido a força do diamante ao lado dela que as tinha ajudado... por algum tempo.
Todos os planos que tinha feito não tinham sentido. Tudo o que tinha dito na reunião tinha sido baseado num erro terrível. A reunião...
Lief enterrou o rosto nas mãos.
Zeean tinha removido a máscara por que tinha acreditado nele. Jasmine, Barda, Perdição, Manus, Steven, Gers e Gla-Thon tinham se reunido naquele quarto desprotegidos — porque tinham acreditado nele.
E os guardas que até mesmo naquele momento estavam levando Zon e Delta para longe? E os seus camaradas que foram obrigados por Barda a retirar as máscaras?
“Eu matei todos eles”, Lief pensou, desesperado. “Eu me matei também. O diamante certamente teria me protegido da doença se eu tivesse tomado cuidados simples, mas...”
Mas ele não tinha tomado esses cuidados. Ele tinha se exposto à infecção de modo imprudente. Ele não tinha dúvida de que a praga já tinha se instalado nele e, cedo ou tarde, iria se revelar.
A praga age rapidamente quando ataca.
Talvez não tão depressa para ele. O poder do diamante iria mantê-lo vivo durante um tempo. Ele iria viver para ver a morte da mãe, de Zeean, de Jasmine, Barda, Perdição... todos os que amava e que tinha traído.
Mas agora não poderia mais enfrentar a Irmã do Sul. Ele não iria morrer lutando, mas suando nas garras da doença. E então Marilen teria de solicitar o Cinturão.
Trêmulo, Lief pegou o aviso amarelo e leu as últimas linhas.
Façam com que eles entendam que, se o seu rei for ferido, nós vamos saber a quem culpar.
Façam com que eles vejam que nós nunca vamos aceitar a marionete Marilen como nossa rainha.
Enquanto lia, enquanto via o que já sabia, um medo gelado entrou em seu coração.
Aquela era a tragédia que Ava tinha previsto. Aquela era a condenação que ele sentia pairando no futuro desde que tinha entrado no palácio.
Ele tinha imaginado que podia decidir se devia dar o passo final ou não. Mas o passo final tinha sido dado há muito tempo, sem que soubesse. Ele tinha sido dado no momento em que tirou a máscara vermelha do rosto e anunciou que a praga de Tora era uma invenção.
Ele tinha entregado Deltora nas mãos do Senhor das Sombras. Ele e mais ninguém.
— Lief...
O coração de Lief deu um salto. Os olhos de Zeean estavam abertos e ela olhava para ele.
— Parece que nós erramos — ela disse com delicadeza, tentando sorrir.
Lief sentiu como se o coração estivesse sendo apertado por uma mão gigante.
— Zeean, me desculpe — ele disse com a voz sufocada. — Eu acreditei mesmo que...
— Lief, me escute — Zeean sussurrou. — Estou velha, já vi muitas coisas e sei. Um erro não pode destruir uma vida ou um reino. É o que se faz depois desse erro que conta. Lembre-se das lições da história. O desespero é nosso inimigo. Não deixe que ele o derrote...
A voz dela sumiu e ela fechou os olhos.
Lief olhou para ela. As manchas vermelhas estavam desaparecendo do seu rosto. Ou o diamante a estava deixando mais forte, ou ela estava morrendo.
“O desespero é nosso inimigo. Não deixe que ele o derrote...”
— Já estou derrotado — Lief murmurou. — Todos estão morrendo, Zeean. Todos os que confiaram em mim. Não há ninguém...
Então ele lembrou. Havia ainda uma pessoa: a pessoa que realmente podia...
Lentamente, ele pegou o Cinturão de Deltora e o prendeu novamente na cintura. Lief tocou o rosto de Zeean, inclinou-se e beijou a testa da mãe.
Então, saiu do quarto sem olhar para trás.
Lindal ainda estava agachada nos degraus onde Lief a tinha deixado. Ela levantou a cabeça quando ele passou, mas não disse nada, e Lief não parou. Ele chegou ao pé das escadas sem encontrar mais ninguém. O saguão de entrada também estava deserto. Era como se o palácio estivesse sem vida.
“As pessoas não podem ter adoecido tão depressa”, Lief disse a si mesmo. “Elas estão todas em outro lugar, realizando nossos planos, isso é tudo.” Mas, ao mesmo tempo, imagens horríveis passavam por sua mente.
Ele imaginou Gla-Thon encolhida ao lado da cama de Paff, Perdição gemendo em meio a uma confusão de jóias inúteis, Manus caído sobre as plantas do palácio. Ele imaginou Steven estremecendo no banco da carroça enquanto seu irmão selvagem urrava dentro dele e Zerry gritava aterrorizado. Ele imaginou guardas apavorados se afastando do corpo marcado pela doença de Barda, recolocando as máscaras nos rostos, tarde demais. E Jasmine deitada indefesa entre seus amados pássaros.
Uma dor forte começou a crescer dentro dele.
“O desespero é nosso inimigo. Não deixe que ele o derrote...”
Ele foi até as escadas que levavam para a capela. Lief desceu os degraus aos tropeços e abriu a porta.
O corpo de Josef estava deitado na plataforma de mármore, vestido com a túnica tradicional de veludo e luvas brancas de um bibliotecário do palácio. Velas queimavam ao seu redor.
Ranesh estava ajoelhado ao lado da plataforma. Ele se virou depressa quando a porta abriu. A boca e o nariz estavam cobertos pela máscara vermelha e ele também usava luvas brancas.
Lief soltou a respiração num suspiro trêmulo de alívio.
Foi como ele esperava. Sozinho e sofrendo naquele lugar, esquecido por todos, Ranesh não tinha ouvido a história de que a praga era uma invenção. Provavelmente, ele era a única pessoa no palácio que não tinha tirado a máscara. Por um estranho acidente do destino, só ele tinha alguma chance de segurança.
Lief entrou no círculo iluminado pelas velas e observou Josef.
O rosto do velho homem estava tranqüilo. As marcas do sofrimento já tinham desaparecido. As manchas vermelhas da praga de Tora tinham sumido.
Ranesh levantou com o corpo rígido.
— Josef merece essa honra — ele afirmou com um tom de desafio na voz. — Ele a merece tanto quanto qualquer rei.
— Claro que sim — Lief concordou em voz baixa.
— Você não está usando a máscara — Ranesh comentou, olhando para ele com indiferença. — O Cinturão protege você da praga?
Sem esperar uma resposta, Ranesh se virou para olhar para Josef outra vez.
— Eu falhei com ele, mas ele não disse uma única palavra de reprovação — ele balbuciou. — Quando pedi perdão, ele disse que não havia nada a perdoar.
O coração de Lief deu um salto violento. Ele não tinha percebido que Josef tinha falado de novo antes de morrer.
“Talvez, mesmo agora, ainda não seja tarde demais para fazer bom uso das últimas horas da minha vida”, ele pensou cheio de esperança. ‘Ainda não adoeci. Ainda tenho tempo de destruir a irmã. Se Josef contou a Ranesh onde...”
— Ranesh, o que mais Josef disse? — ele perguntou apressado. — Ele disse alguma coisa sobre um documento na escrivaninha dele?
— Cada palavra era um esforço enorme — Ranesh respondeu balançando a cabeça. — Tínhamos apenas alguns momentos, e ele só falou de assuntos pessoais.
— Conte! — Lief insistiu. — Ranesh, eu imploro.
— Ele disse que queria ser exposto aqui com a túnica de sua profissão — Ranesh começou com expressão dura. — Ele disse que todos os seus bens pessoais eram meus, exceto o manuscrito do livro novo, que deveria ser dado a você. E... isso foi tudo.
A breve pausa antes das últimas palavras fizeram Lief ficar atento.
— Não! — ele explodiu. — Houve mais uma coisa, eu sei. Você precisa me contar...
Ranesh se virou para Lief com os olhos castanhos faiscando de raiva.
— Josef disse que eu era seu filho, apesar de tudo — ele sibilou. — Ele disse que me amava e que tinha orgulho de mim. E então morreu.
Ele cerrou os punhos com força.
— Agora está satisfeito, Lief? Agora que você ouviu tudo, até mesmo o que só eu tinha direito de ouvir, você vai me deixar sozinho com meu sofrimento?
— Sinto muito — Lief disse devagar, mordendo o lábio. — Mas não posso deixar você sozinho. Há uma coisa que você precisa fazer.
— Não posso fazer nada — Ranesh murmurou. — Preciso manter vigília até o dia amanhecer, como se faz no palácio. Você deve pedir que outra pessoa cumpra suas ordens.
— Quando o dia amanhecer, todos no palácio vão estar mortos, Ranesh — Lief retrucou de punhos fechados. — A praga vai ter acabado com eles. Talvez eu ainda esteja vivo, mas vou estar tão fraco que vou ser inútil. Você é o único que pode fazer o que precisa ser feito.
Quando Ranesh horrorizado olhou para Lief, ele tirou o aviso amarelo do bolso e o estendeu ao rapaz.
— Você precisa pegar um cavalo e cavalgar como o vento até Tora — ele disse. — Mostre esse bilhete para Marilen e diga a ela que basta uma pessoa para entregar Deltora para o Senhor das Sombras. Diga a ela que o destino de nosso reino está nas mãos dela.
O rosto de Ranesh ficou preocupado quando leu o aviso.
— Marilen precisa vir até aqui, apesar da praga, e tomar posse do Cinturão — Lief disse. — Ela precisa convencer o povo de que ela não é somente uma marionete de Tora, mas a verdadeira rainha de toda Deltora. E você precisa ficar ao lado dela, Ranesh. Você veio do povo, e ele o conhece. Ranesh...
— Não precisa dizer mais nada — Ranesh murmurou, enfiando o papel amarelo no bolso do casaco.
Ele tocou o ombro de Josef com delicadeza e então foi até a porta da capela. Parado ali, ele parecia mais alto do que antes.
— Nunca antes me pediram para assumir responsabilidade por nada — ele contou. — Fui um ladrão nas ruas. Fui aluno e ajudante de Josef. Sou marido de Marilen, mas você está confiando em mim, Lief, e não vou falhar.
— Os guardas vão deixar você passar — Lief garantiu sério. — Eles vão dizer que não precisa da máscara, mas estão enganados. Não descubra o rosto até Del ficar bem para trás.
Ranesh assentiu brevemente e saiu.
Sozinho, de repente sem energia, Lief caiu de joelhos do lado da plataforma.
Agora tinha de espalhar a notícia de que tinha errado, de que a praga era real, afinal. Cada momento de demora significava mais pessoas tirando as máscaras e se expondo à infecção.
Mas ele ficou onde estava e apertou a testa quente contra o mármore frio da plataforma. O silêncio pesado do pequeno quarto gelado era tão intenso que parecia criar seus próprios ruídos.
Ocorreu a ele que sua família era amaldiçoada pela maravilha que era o Cinturão de Deltora. O Cinturão tinha oprimido várias gerações de reis e rainhas indignas de seu poder.
E, de repente, Lief ficou quase satisfeito por nunca se casar com Jasmine, por eles nunca terem um filho que usasse o Cinturão em seu lugar.
“Qualquer filho meu viria para esse mundo apenas para passar por lutas, sofrimentos, medos e fracassos”, ele pensou. “Como eu. Como o meu pai. Seria muito melhor nunca ter nascido.”
O Cinturão pendia pesado em sua cintura. De repente, ele o detestou.
“Que ele fique aqui para Marilen”, ele pensou. “Estou cansado dele.”
Ele pegou o Cinturão e tentou tirá-lo. O fecho resistiu sob seus dedos trêmulos. Quase soluçando, frustrado, ele lutou para abri-lo. Seus dedos deslizaram por cima do grande diamante, da esmeralda, do lápis-lazúli, do topázio... e ali ficaram paralisados. Pois a próxima pedra era a opala, e ele não iria tocá-la.
A pedra do arco-íris podia mostrar imagens breves do futuro. E ele não queria ver o futuro. Ele não poderia suportar.
Ele se lembrou de que apenas um dos últimos sete dragões de Deltora continuava preso num sono encantado — o dragão da opala, o dragão da esperança. “É um presságio”, ele pensou. “Agora o dragão da opala talvez nunca mais voe nos céus de Deltora. Assim como a esperança talvez esteja perdida para sempre.”
O topázio se aqueceu debaixo de seus dedos. E, de repente, a capela ficou cheia de sombras que dançavam ao redor dele como fumaça.
Lief começou a tremer. “Hoje vai ser uma noite de Lua cheia, como a noite em que queimamos o cristal do inimigo, a noite em que tudo isso começou”, ele pensou. “Os espíritos de meus ancestrais tinham vindo até mim, para me ajudar. Agora, eles vêm até mim de novo, mas desta vez...”
Vozes de espíritos começaram a ecoar das paredes de mármore, gritando desesperadas. Lief não conseguia entender o que diziam, mas os rostos enevoados estavam zangados e assustados. Não havia dúvida de que eles o acusavam de covardia e falta de fé. Ele não se importou.
— Eu vou tirá-lo! — ele rugiu, puxando o fecho do Cinturão. — Pelo menos, vou morrer livre dele!
E então, entre todas as formas envoltas em sombras, ele viu Josef, que, suplicante, estava estendendo os braços. Seus lábios se mexiam, mas Lief não ouvia uma só palavra.
— Josef, não posso escutar você — ele gritou. — Josef... Ele se virou quando a porta da capela se abriu.
Um pequeno vulto cinza-azulado estava parado na entrada com um grande pedaço de pergaminho na mão.
— Manus! — Lief disse, abafando um grito. — Depressa, ele olhou novamente para onde tinha visto a imagem de Josef pela última vez. Não havia nada ali. Todas as sombras tinham desaparecido.
— Sinto perturbar você, Lief — Manus disse um pouco nervoso.
— Não sabia que estava aqui. Vim ver...
Ele parou de falar, olhando o corpo de Josef deitado na plataforma cercada de velas.
— Ah, como alguém pôde fazer uma coisa tão terrível? — ele exclamou num tom totalmente diferente. — É... abominável!
— Não tenho mais certeza de que a morte de Josef foi planejada
— Lief conseguiu dizer, levantando-se. — Manus...
— Não, não! — Manus interrompeu se adiantando. — Eu não estava me referindo à morte de Josef. Eu falava disto... este monumento horrível e enorme aqui. Abominável!
Ele chutou o lado da plataforma de mármore violentamente.
Lief olhou fixamente, tentando entender. Ele nunca tinha visto o Ralad tão zangado. Até o tufo de cabelos ruivos na cabeça de Manus parecia estar tremendo de raiva.
— Esta capela foi um dos primeiros aposentos a ser completado quando o palácio foi construído — Manus contou ofegante. — Era para ser um lugar de paz, um refúgio da vida agitada do palácio. E, pelas plantas, foi assim. Era muito requintado!
Ele chutou o lado da plataforma outra vez.
— E, então, essa coisa monstruosa foi construída bem no centro do aposento, arruinando totalmente o espaço! Veja só! Da altura do seu ombro e muito largo. Ah, esse homem! Rei ou não, ele era um bobo!
O coração de Lief começou a bater dolorosamente.
— Rei Brandon? — ele perguntou com voz rouca.
— Não Brandon — Manus resmungou. — Brandon tinha noção de beleza. — Esse “crime” foi cometido por seu filho, o rei Lucan.
Manus fez cara feia.
— Tenho certeza de que os construtores de Ralad não fizeram parte disso. Eles estavam trabalhando nos andares superiores do palácio naquela época. Eles ficaram sabendo disso quando seu chefe, Rufus, visitou a capela e viu o que tinha sido feito.
Zangado, ele agitou o pergaminho.
— É claro que Rufus ficou horrorizado. Ele encontrou a planta original da capela, que está aqui comigo, e escreveu um bilhete nela para o rei, implorando para que a sala fosse restaurada como era antes. Mas o rei Lucan se recusou totalmente. Ou, pelo menos, foi o que seu conselheiro-chefe disse no bilhete insultuoso que escreveu de volta.
— Qual era o nome desse conselheiro-chefe, Manus? — Lief perguntou em voz baixa.
Manus estendeu o pergaminho para a frente.
— Veja você mesmo! — Manus exclamou com amargura, apontando o dedo para as palavras escritas debaixo do bilhete do construtor de Ralad.
O rei deseja que a capela continue exatamente como está. Não toque mais no assunto.
DRUMM
Lief afastou o olhar do pergaminho e observou o rosto tranquilo de Josef. “Então era isso que você estava tentando me contar, Josef!, ele pensou. “O mal está aqui, no coração morto do palácio, o centro de séculos de sofrimento e dor”.
Com delicadeza, levantou o corpo do velho homem nos braços e o tirou da plataforma.
— Lief, o que você está fazendo? — Manus gritou muito chocado.
— A plataforma é horrível, é verdade, mas eu não quis dizer...
Mas, abraçando o corpo frágil de Josef, Lief já estava andando até a porta da capela.
— Drumm foi o conselheiro-chefe na época de Doran, o Amigo dos Dragões, quando as Quatro Irmãs foram colocadas em seus esconderijos
— ele falou sobre o ombro. — Ele mandou construir a plataforma. Sei que a Irmã do Sul está aqui.
— Mas este não é o centro do palácio, Lief! — Manus exclamou, trotando ansioso atrás dele. — Está totalmente afastado dele!
Ele fez um gesto atrás dele na direção da parede oposta da capela.
— Esta é a parede leste do palácio. Antigamente, o Local das Punições ficava exatamente aí fora. O Grande Saguão fica acima...
— Eu sei, Manus — Lief disse devagar. — Mas, ainda assim, este é o lugar.
Ele subiu as escadas carregando o corpo de Josef e o colocou no chão do saguão de entrada com delicadeza.
— Mas... mas você não pode deixá-lo aqui! — Manus gritou horrorizado.
— É melhor do que onde estava — Lief respondeu. Ele se virou para voltar à capela.
— Lief, espere um pouco — Manus pediu nervoso, puxando a manga de seu casaco. — Você está pálido como um fantasma! As suas mãos estão tremendo. Você... você não está bem.
— Acho que não — Lief murmurou. — Não sei quanto tempo ainda tenho. E é por isso que preciso me apressar.
Seus olhos obscurecidos finalmente focalizaram a expressão preocupada do homem de Ralad e ele piscou como se acordasse de um sonho.
— Sinto muito, Manus — ele disse devagar. — Não há um jeito fácil de dizer o que preciso. Cometi um erro pavoroso e todos nós vamos pagar por isso. Não há veneno. A praga de Tora é real.
Manus respirou fundo e ruidosamente e juntou as mãos sobre o coração. Lief se preparou para os gritos de susto, medo e censura que sabia que viriam. Mas o Ralad curvou a cabeça e, quando a levantou outra vez, mostrou os olhos límpidos e calmos.
— O que posso fazer para ajudar? — ele perguntou simplesmente.
Durante um momento, Lief não conseguiu falar. Então ele colocou a mão no braço de Manus: pequeno e magro e, mesmo assim, tão cheio de força.
— O que há debaixo da capela? — ele perguntou.
— Ora... nada — Manus contou. — A parede externa desce abaixo da terra até as fundações do palácio. A parede interna do nosso lado continua para baixo para formar a primeira parede das masmorras debaixo do saguão de entrada. De acordo com as plantas, só existe um espaço vazio entre elas: uma caverna tão pequena e baixa que não serve para nada.
— Parece que o inimigo encontrou uma utilidade para ela — Lief retrucou, sombrio. — Agora, escute bem, Manus. Todos, menos os que estão doentes demais para andar, devem sair do palácio agora mesmo. Diga a eles que é uma ordem do rei. Diga para usarem as máscaras outra vez, irem para a cidade e espalharem a notícia de que a praga é real. Depois, você também deve ir embora, Manus. Se puder, encontre Perdição, Gers e Steven e diga a eles que...
A garganta dele se apertou. Ele lutou para continuar, mas dessa vez não conseguiu.
— Você não falou de Barda e Jasmine — Manus comentou em voz baixa. — Eles estão aqui, no palácio. Você acha mesmo que eles vão embora “por ordem do rei”?
— Não — Lief admitiu, com um sorriso torto. — Se eles ainda puderem, virão até onde estou, não importa o que eu diga. Nós vamos lutar contra o inimigo mais uma vez.
Manus as sentiu com os olhos muito brilhantes e saiu em disparada, sem dizer nenhuma palavra.
Lief colocou os dedos no topázio mais uma vez e, silenciosa e insistentemente, chamou o dragão dourado.
O alto da plataforma era feito de uma placa de mármore lisa, cercada por uma faixa esculpida com desenhos circulares. Lief se perguntou se ela podia ser removida. Ele colocou o ombro de encontro à placa e empurrou, mas ela não se mexeu.
— Você não vai tirá-la desse jeito — trovejou uma voz conhecida. Lief se virou e viu Barda andando em sua direção acompanhado de Jasmine. O grande homem carregava a comprida barra de ferro da porta de entrada no ombro com tanta facilidade quanto carregaria um pedaço de lenha para a lareira.
— Jasmine e eu nos encontramos nas escadarias — Barda contou, tirando a barra do ombro com um grunhido e indo para o lado da plataforma. — Ela tinha acabado de falar com Manus e estava vindo para cá, então resolvi vir com ela.
— Todos os pássaros estão bem — Jasmine contou, segurando o braço de Lief. — Eles, pelo menos, foram envenenados, e a esmeralda fez maravilhas com eles. Ah, Lief, fico tão feliz em saber que eles vão viver e voar outra vez.
Muito emocionado, Lief olhou para ela. Jasmine estava sorrindo.
Barda observou a plataforma e acenou com a cabeça.
— Parece que a força bruta vai dar melhor resultado aqui — ele disse. — Não é uma forma elegante de resolver um problema, mas às vezes é melhor cortar um nó do que perder tempo tentando desmanchá-lo. Algumas vezes, também mais satisfatório.
Ele bateu na lateral da plataforma com a ponta da barra.
— Parece oca — ele disse satisfeito. — Tirem as velas daí, amigos. Precisamos de lugar para nos movimentar.
— Barda — Lief disse com a voz abafada, quando Jasmine começou a empurrar a vela mais próxima para o lado.
— O que Lindai não contou quando nos encontramos lá em cima, Jasmine acabou de me contar — ele disse por cima do ombro. — Nós dois sabemos tudo o que temos de saber, Lief, e não temos mais nada a dizer. Vamos fazer o que temos de fazer enquanto pudermos.
Ele se afastou um pouco e direcionou a barra diretamente para o meio da lateral da plataforma.
— Fique atrás de mim, Lief, e me ajude com a barra. Nós vamos usar esta barra como aríete.
Sem saber o que dizer, Lief obedeceu.
— Quando eu der o sinal, empurre a barra para a frente com todas as suas forças — Barda ordenou. — Jasmine, mantenha a cabeça baixa e Filli fora de vista. Lascas de mármore podem voar por aí.
— AGORA! — ele gritou, dando impulso à barra. — JÁ!
Lief empurrou. O fim da barra entrou na lateral da plataforma com um forte barulho. O choque do impacto abalou os seus braços e fez todo o seu corpo estremecer.
— Outra vez! — Barda rugiu, puxando a barra para trás. — Faça força, para valer! Pronto! Agora!
Mais uma vez, a barra saltou para a frente, atingindo o mármore com um baque ensurdecedor. Ouviu-se o estrondo. O choque do impacto atingiu os braços de Lief e fez todo o seu corpo estremecer.
— Outra vez! — Barda rugiu, puxando a barra para trás. — Ponha todas as suas forças nisso! Pronto!... AGORA!
Mais uma vez, a barra foi arremetida para a frente, atingindo o mármore com um ruído assustador. Ouviu-se o ruído de pedras caindo e Jasmine soltou um grito de triunfo.
Ansiosamente, Lief se inclinou para ver.
O lado da plataforma estava rachado e um pedaço do mármore tinha caído, deixando um pequeno buraco negro e irregular.
— É isso o que queremos! — Barda rugiu. Ele pôs as mãos fortes na barra outra vez. — Pronto, Lief... AGORA!
A ponta da barra atingiu o ponto enfraquecido. Um enorme pedaço do mármore se quebrou e caiu no chão.
— De novo! — Barda gritou.
Mais uma vez, eles atacaram e, quando recuaram, o chão a seus pés estava coberto por mármore quebrado, o ar estava cheio de pó e quase todo o lado da plataforma era um enorme buraco escuro.
Eles deixaram a barra cair. Ela fez um barulho forte e tilintante quando atingiu o chão. Barda se inclinou para a frente com as mãos nos joelhos, ofegante.
As mãos de Lief estavam úmidas e escorregadias. Suor pingava em seus olhos e molhava seus cabelos. Meio tonto, ele enxugou a testa com a manga da jaqueta e percebeu que suas mãos tremiam.
O buraco preto surgia à sua frente, escuro como a noite, abrindo-se como a entrada de um túmulo. Ele não conseguia ver nada dentro dele. O medo lhe revirava o estômago.
Jasmine entregou uma vela para ele. A chama balançou perigosamente quando ele se inclinou diante do buraco. Ele prendeu a respiração e levou a vela para a frente.
Exceto por alguns pedaços de mármore, o buraco estava totalmente vazio.
— Não tem nada aqui — Lief avisou com uma voz que ecoava assustadoramente contra as paredes de mármore. — Não tem nada...
A vela caiu de sua mão trêmula, rolou duas vezes e ficou imóvel no fundo do buraco. A chama que lutava para ficar acesa tremeu na pedra lisa e cinzenta que havia sob os pedaços de mármore quebrados.
A boca de Lief ficou seca. Ele se agachou, agarrou a vela que se apagava, agitou-a de um lado para outro e afastou as lascas de mármore.
— No chão — ele disse em voz baixa.
Com uma vela nas mãos, Barda e Jasmine se ajoelharam ao lado dele. Com a luz trêmula da vela, eles leram as palavras gravadas na pedra, ainda nítidas e claras como no dia em que foram escritas.
Lief sentiu a raiva subir à cabeça. Uma onda de náusea passou por seu corpo e ele não soube dizer se a sensação era causada pelo mal que havia na pedra ou pela praga de Tora. Não tinha importância. Tudo o que importava eram as palavras zombeteiras escritas na pedra: palavras do Senhor das Sombras, dirigidas somente a ele.
— Esse verso não é como os versos que vimos nas pedras no leste, no norte e no oeste — Jasmine murmurou, transformando os pensamentos de Lief em palavras. — Aqueles eram avisos reais, destinados para os olhos de qualquer estranho que passasse. Isso aqui é... pessoal.
— É verdade — Lief disse perturbado. — Isso é um desafio. O inimigo está me desafiando a procurar debaixo da pedra. Como antes ele me desafiou a procurar a primeira parte do mapa.
Ele se lembrou da voz do Senhor das Sombras, sibilando através do cristal.
...esse rei nunca vai achá-lo. Eu o desafio a tentar e apressar a sua morte...
“Mas encontrei a primeira parte do mapa e não morri”, Lief pensou. “E então encontrei a segunda parte, a terceira e a última. E ainda estou aqui.”
Mas ele sabia que o inimigo tinha planejado aquilo também. A mensagem na pedra era a prova. Planos dentro de planos...
— Esmague essa coisa zombeteira e perversa — Jasmine murmurou. — Quebre-a em mil pedaços!
— Afastem-se! — Barda disse sombrio, levantando-se e pegando a barra de ferro.
Lief e Jasmine obedeceram.
E Barda, de dentes arreganhados, com a expressão cheia de ódio, atingiu a pedra gravada com a barra de ferro. Ele bateu uma, duas vezes e, na terceira, ouviu-se um baque forte e um raio forte de luz branca atingiu seus olhos.
Barda cambaleou para trás e cobriu os olhos com as mãos. A barra pesada caiu no chão com um estrondo. Rachaduras se espalharam rapidamente sobre a pedra até que toda a superfície achatada e esculpida se transformasse num labirinto de linhas negras. Então, de repente, a pedra rachada se partiu e caiu com um baque fortíssimo e tudo o que sobrou em seu lugar foi um buraco aberto de onde o mal saía como um cheiro desagradável e penetrante.
Jasmine gritou e cobriu o rosto. Lief caiu de joelhos e olhou fixamente para o espaço aberto. Seus olhos estavam lacrimejando, mas ele não conseguiu desviar o olhar.
No meio da escuridão, uma coisa brilhava, algo tão lindo e atraente quanto as pedras do Cinturão de Deltora.
A Irmã do Sul.
Gritos de terror e advertência ecoavam no saguão de entrada, os sons chegavam até a capela, mas Lief não os ouvia. Ele estava olhando fixamente para o buraco, para a coisa brilhante que estava lá dentro.
Agora, ele podia ver claramente. Era uma pedra grande, cinza como o céu da noite, mas cheia de linhas de luz escarlate que giravam de um lado para outro. Ela estava cantando para ele, cantando a canção de sua terra, a canção que fazia parte dele, a canção que ouviu pela primeira vez no berço, sem saber o que era.
Ela era linda, viva e cheia de um terrível poder.
Ele sabia que, se pudesse tocá-la, segurá-la, tê-la para si, poderia fazer qualquer coisa que quisesse.
“Eu não entendia”, ele pensou assombrado. “Eu não sonhava em...”
Lief deslizou as mãos sobre os ladrilhos de mármore que cercavam o buraco. Com os dedos, sentiu as bordas ásperas e serradas de madeira que estavam por baixo.
Em seu pensamento, ele viu vultos escuros atravessando o piso da capela. Viu a pedra brilhante sendo colocada em seu lugar e a abertura no chão sendo fechada. Ele viu a plataforma de mármore sendo construída para esconder o que estava embaixo.
Há muito, muito tempo... e, desde então, a maravilha tinha ficado na escuridão, cantando a canção de seu poder e esperando, esperando por ele.
— Lief! — O chamado penetrou sua mente. Ele se mexeu irritado e se virou para ver quem o tinha interrompido.
Uma gnoma de cabelos arrepiados estava parado à porta do aposento, agitando os braços. Lief fez cara feia. Talvez conhecesse aquele rosto. Ele não lembrava. Mas será que a idiota não percebia que não tinha tempo para bobagens agora? Será que não sentia o poder...?
— Lief, você precisa vir! — a gnoma pediu. — O dragão dourado, o dragão que eu machuquei, está voando sobre a cidade! Ele está rugindo e soltando fogo. Lief...
A voz da gnoma, rouca como o grito de um corvo, sumiu. Ela ficou pálida e seus olhos bobos ficaram arregalados. Caiu de joelhos e envolveu a cabeça com os braços.
Lief sorriu. “Agora ela está sentindo”, ele pensou. Ele começou a se virar para o buraco outra vez.
— Gla-Thon, vá embora daqui! — disse uma voz trêmula atrás dele.
A voz de Jasmine. Jasmine...
Lief parou, e uma sombra de dúvida passou por sua mente. Por um instante, ele tinha esquecido a existência de Jasmine. Como isso pôde acontecer?
— Paff está morrendo — Gla-Thon choramingou. — A praga a está comendo viva. Os olhos dela estão fundos em sua cabeça. Seus membros estão rígidos como pedra. Eu não consegui levantá-la. Tive de deixá-la. Então... vi o dragão. As pessoas na cidade estão gritando e correndo...
Lief cambaleou. O poder do buraco o estava chamando. Ele sentiu vontade de se virar mais uma vez, banquetear os olhos com sua beleza, perder-se em suas maravilhas e, no final, deslizar silenciosamente na espessa e macia escuridão para pegá-la para si.
E então não haveria mais dor nem medo. Não haveria nada que ele não pudesse fazer, nada que não pudesse ter.
Mas ele não se virou. Alguma coisa no fundo de si mesmo estava resistindo, segurando-o.
O que seria? Entorpecida, sua mente procurou a resposta e percebeu a sombra frágil e flutuante da dúvida.
Jasmine...
Se ele tinha esquecido Jasmine, o que mais tinha esquecido? Ele ouviu um rugido semelhante ao de um trovão e um baque ensurdecedor. A parede externa da capela tremeu. Gla-Thon gritou aterrorizada.
Uma voz suave sussurrou na mente de Lief, atravessando a canção da Irmã do Sul como um assobio.
Estou com você, rei de Deltora. Estamos separados apenas por um pouco de terra e pedras, e isso logo vai desaparecer.
“O dragão do topázio”, Lief pensou quase surpreso. “Ele está aqui, no jardim do palácio, do outro lado da parede.”
Ele olhou para o Cinturão que estava em sua cintura. Viu o topázio, que brilhava como uma grande estrela dourada. Era como se ele o estivesse vendo com novos olhos, como quando o viu pela primeira vez nas Florestas do Silêncio.
No começo. Bem no começo. Quando ele pensou que sabia exatamente quem era. Quando Jasmine e Barda ainda era quase estranhos. Quando ele não tinha idéia do que o destino guardava para ele, para todos eles.
Lief pousou os dedos no topázio e sentiu o seu calor dourado.
Era aquilo que tinha esquecido... aquilo. A coisa perigosa e maravilhosa no buraco quase o tinha atraído para uma armadilha. Quase o tinha atraído para dentro, com suas promessas estonteantes de poder, glória e o fim da dor da perda.
E, pela primeira vez, ele viu todo o poder sombrio que tinha escravizado seus inimigos, aqueles outros que tinham abraçado a causa do Senhor das Sombras. Ele quase os entendia... Rolf, o capricon; Kirsten, do Portal das Sombras; Jack Risonho; e o inimigo desconhecido em Del.
Sinto a presença maligna muito perto, rei. Chegou a hora de dar um fim nela.
Lief virou a cabeça na direção da parede de onde veio a voz. Ele quase conseguiu ver através da pedra — quase conseguiu ver a besta enorme e dourada agachada ali.
O dragão de Del. O dragão da fé.
Sim, ele respondeu em silêncio. Chegou a hora.
E seu coração deu um pulo quando ouviu o som das garras fortes raspando a terra, quando ouviu o rugido das chamas lambendo as paredes de pedra expostas ao ar, pela primeira vez em séculos.
A argamassa entre as pedras na base da capela começou a rachar. Então, ouviu-se um som áspero e as pedras começaram a se mover.
E, nesse instante, Lief ouviu um grito abafado atrás da parede. Ele prendeu a respiração, tentando escutar.
— Está atacando o palácio! — a voz rugiu. — Está batendo as garras nas fundações! Eu não disse, Manus? Foi isso o que o dragão fez com Capra! Ah, sua besta idiota e mentirosa!
— Não, Lindai! — Manus gemeu baixinho. — Afaste-se! Não... Ouviu-se um rugido forte de dor, rapidamente seguido por um grito agudo.
Com a mente tomada pela agonia e a raiva do dragão, Lief ficou paralisado onde estava. Ele não conseguiu se mover nem falar. Ele só conseguiu imaginar o sangue escorrendo debaixo da ponta da lança de Lindai, os olhos dourados faiscando com fúria, a cauda enorme em ponta batendo para os lados, esmagando e mutilando...
— Lindal!
Foi Barda quem gritou. Barda tinha se levantado com esforço e foi até a parede do outro lado da capela aos tropeços. Agora, ele estava recostado nela, nas pedras que se moviam, com uma das mãos ainda apertando os olhos.
— Lindai! — ele chamou. — Lindai, responda!
— Barda, afaste-se! — Jasmine gritou com a voz aguda. Ouviu-se um barulho de pedras se partindo. Barda pulou para trás exatamente quando um enorme buraco apareceu de repente na parede junto dos seus pés. Uma luz forte saía de dentro dele, mas foi bloqueada no mesmo instante pelo fogo ardente e então pelas garras enormes que derrubavam mais pedras.
Lief ouviu Filli guinchar aterrorizado. Ele não se virou. Seus olhos estavam presos na parede em fogo.
A voz do dragão sibilou em sua mente, gelada de raiva.
A mulher gigantesca me espetou com a lança. Tenho de dar um jeito nela.
Lief prendeu a respiração. No mesmo instante, ele olhou para Barda, que tinha recuado até o fim da plataforma de mármore e agora estava se virando lentamente, apalpando a beirada com as mãos.
Angustiado, Lief percebeu que Barda estava cego. Angustiado, ele se lembrou do facho de luz intenso que tinha escapado da pedra de advertência quando Barda a atingiu pela terceira vez.
A voz do dragão foi ouvida novamente.
Centenas de pessoas e soldados estão subindo a colina apressados: — inimigos com bastões e espadas. Vou matar todos.
“Não!”, Lief pensou freneticamente. “Eles não são inimigos. O nosso inimigo está aqui dentro, bem no fundo. Estou aqui, mas o mal está mais embaixo.”
Pelo buraco aberto na parede, ele viu as escamas douradas e brilhantes do dragão, viu a terra voando quando a enorme besta começou a cavar.
Ele tentou se levantar, mas não conseguiu. Era como se seus joelhos estivessem presos ao chão, como se a coisa no buraco tivesse jogado uma rede invisível em volta dele e o estivesse amarrando.
— Jasmine! Gla-Thon! — ele gritou desesperado. — As pessoas estão vindo defender o palácio. Vocês precisam sair e impedi-los de atacar o dragão!
Não houve resposta. E, de repente, Lief se lembrou do grito de Filli.
Ele ficou paralisado de medo e virou a cabeça devagar. Gla-Thon estava encolhida junto da porta de entrada e seus braços e pernas se agitavam horrivelmente. A praga...
Mas a palavra mal tinha se formado na mente de Lief quando o corpo de Gla-Thon se enrijeceu e ela se virou de costas de repente. Ele viu que não era a praga que a tinha atingido.
Havia uma coisa terrivelmente errada com o rosto dela. Os seus olhos estavam saltados e a boca era um buraco negro que espumava. Do nariz, saía um líquido que parecia sangue negro. Sangue negro escorria no chão de mármore branco.
Lief estremeceu horrorizado. Congelado onde estava, ele seguiu o sangue com os olhos e então viu, como a visão de um pesadelo, alguém se retorcendo e se debatendo num lago escuro.
Era Jasmine. Com uma vela acesa ainda presa na mão, Jasmine estava se afogando no sangue negro que parecia ter vida própria, que parecia...
Lief soltou um gemido alto quando entendeu o que era o líquido preto e viscoso. Na mesma fração de segundo, ele compreendeu que tinha sido desse jeito que os guardas da porta de entrada e também Zon e Delta tinham morrido.
Eles não tinham desobedecido às ordens. Eles não tinham morrido por causa da praga ou aceitado comida ou bebida envenenada de qualquer pessoa. Tomados de surpresa, com a boca e o nariz cheios do líquido negro que os asfixiava, eles tinham caído e sufocado, incapazes de emitir qualquer som. E então o lodo negro tinha se afastado deles e seguido seu caminho sem deixar pistas.
— Largue-os, guardião! — ele gritou. — É a mim que você quer! Largue-os!
— Lief, o que foi? — Barda perguntou aos gritos, com os ombros tensos, os olhos percorrendo o espaço à sua volta sem ver. — O que está acontecendo? Lief, não estou enxergando...
O lodo negro se afastou do corpo retorcido de Jasmine e se dirigiu para Lief como uma onda. Mas o rosto de Jasmine ainda estava coberto e a boca e o nariz de Gla-Thon ainda estavam tapados. Lief sabia que parte do lodo poderia dominá-lo enquanto o resto ficaria com as outras vítimas até que parassem de respirar e a vida tivesse cessado.
Havia apenas uma coisa que o faria deixá-las e se juntar em um só lugar. Havia apenas uma ameaça que ele não iria ignorar.
Lief se virou para o buraco e permitiu ser atraído para bem perto da beirada.
Ele olhou para onde a Irmã do Sul brilhava na escuridão. Ele sentiu atração e repulsa ao mesmo tempo.
— Vou destruir você! — ele sussurrou.
E, agarrando o Cinturão de Deltora com as duas mãos, passou as pernas sobre a borda e pulou.
Lief caiu rolando no chão cheio de poeira, a canção da Irmã parecia uma lâmina cortando o seu cérebro. Ele gemeu em agonia, encolheu-se como uma bola e fechou os olhos, mas ainda agarrava o Cinturão de Deltora com tanta força que suas mãos chegavam a doer e, muito lentamente, o poder tranquilizador da ametista e a força do diamante lhe deram condições de abrir os olhos.
Ele estava deitado ao lado de uma parede de pedra. “A parede externa do palácio”, ele pensou fracamente, pois através dela podia ouvir os rugidos do dragão e os barulhos que ele fazia cavando. Sentindo muita dor, ele virou a cabeça.
Ali, não muito longe, estava a Irmã do Sul.
Ela tinha exatamente o tamanho e a forma dos sete grandes talismãs do Cinturão de Deltora, mas agora ele podia ver o que ela era na verdade: uma pedra falsa, uma cópia ridícula.
Debaixo da superfície perfeita e polida, debaixo dos veios de vermelho ameaçador que se retorciam e cintilavam, havia um cinza frio e morto.
Lief olhou para ela com uma repulsa cheia de fascínio. Agora, com as pedras verdadeiras do Cinturão quentes sob seus dedos, ele não conseguia imaginar como chegou a desejá-la. Mesmo assim, ainda teve dificuldade de tirar os olhos de cima dela e olhar para o alto, para o buraco quadrado que havia no teto da caverna.
Uma luz fraca vinha da capela acima, pois o espaço estava quase tomado por uma escuridão imensa e pesada.
O coração de Lief bateu forte. Como ele tinha planejado, o guardião veio atrás dele rapidamente. Ele só desejou que a ameaça que sua presença representava para a Irmã do Sul fosse suficiente para que ele reunisse todas as suas forças e deixasse Jasmine e Gla-Thon antes que fosse tarde demais.
Com muito esforço, ficou de joelhos e, dolorosamente, se levantou. Acima da cabeça dele, havia vigas enormes que sustentavam o piso da capela. A altura era suficiente apenas para que ficasse de pé.
Ele olhou o buraco no teto com atenção, esperando que o líquido negro começasse a se espalhar pelo chão. Atrás dele, apesar do tilintar agonizante nos ouvidos, escutou os rugidos do dragão muito próximos. E ele teve certeza de que estava sentindo o calor que saía das pedras às suas costas.
“O dragão tirou o reboco das paredes”, ele pensou. “Ele está jogando fogo sobre as pedras e logo a argamassa vai se desmanchar como aconteceu na capela. As pedras vão se soltar e o dragão vai poder afastá-las. Se ao menos ele puder me alcançar antes que o guardião o faça! Se ao menos...
“Se apresse!”, ele falou para si mesmo. “Você está quase chegando.”
A única resposta foi uma pontada de dor.
E então Lief percebeu que outros sons estavam se misturando aos rugidos do dragão. Pelas rachaduras da parece, ele ouviu vozes zangadas e o estrépito do metal.
“Os guardas!”, ele pensou horrorizado. “Os guardas estão atacando o dragão.”
Ele quis se virar, colar-se à parede e gritar para que os guardas parassem. Mas sabia que seria inútil. Os homens não iriam ouvi-lo. E ele não ousou tirar os olhos do buraco no teto, da escuridão rastejante que surgiria ali.
Nervoso, molhou os lábios. Ele podia ver o lodo negro se movendo, ondulante, para baixo. Por que não caía?
Então ele olhou para além do buraco, para as grandes vigas de madeira que formavam o teto de sua prisão. E, com um estremecimento de terror, ele compreendeu.
A madeira estava negra por causa do lodo. O lodo estava se aproximando dele através do teto e quase o tinha alcançado.
Com um grito, ele se jogou para o lado. Ao mesmo tempo, com um som áspero e forte, um bloco de pedra foi arrancado da parede.
Uma luz entrou pela abertura acompanhada de fumaça e um som tumultuado: gritos, vozes altas, rugidos furiosos do dragão.
E então uma voz se levantou acima de todo o resto, chamando zangada. Lief vibrou quando a ouviu.
— Parem, seus tolos idiotas! Soltem as armas! Afastem-se!
Barda! De algum jeito, o amigo tinha conseguido sair da capela e estava ali, do outro lado da parede.
Os gritos pararam de repente. Ouviu-se metal bater contra metal quando os guardas obedeceram à ordem do chefe e soltaram as armas.
Outro bloco de pedra caiu ao chão, e depois outro, e mais outro. As escamas douradas do dragão e suas patas com garras poderosas quase encheram a abertura. Mas lampejos da luz do dia ainda penetravam a escuridão da caverna e dançavam sobre a pedra falsa que ali estava.
A superfície vítrea da irmã brilhava na luz, e seus veios escarlates pareciam inchar e se iluminar. Sua canção forte e sonora se transformou num uivo que penetrava nos tímpanos, e o mal saía dela como um vento congelante.
Com os olhos lacrimejantes, Lief caiu de joelhos e sentiu o dragão cambalear. E, então, aterrorizado, através das lágrimas que embaçavam sua visão, ele viu o líquido negro se derramando do teto da caverna e formando uma massa bulbosa de onde saíam ferrões como se fossem trepadeiras...
Ele sabia que estava gritando, mas sua voz foi abafada pelo uivo ensurdecedor da besta de duas caras que se aproximava dele e jogava ferrões que cortavam o ar, rosnando ferozmente.
Ele não conseguiu se mexer. Não conseguiu levantar a mão até a espada. Só havia uma coisa que ele ainda tinha poder para fazer. Ele obrigou os dedos a escorregarem pelo Cinturão até encontrarem o topázio e se concentrou na grande pedra.
“Tenha forças e se apresse. A besta está muito perto de mim...”
O topázio queimava debaixo de sua mão. Lief sentiu uma grande onda de poder e, com um baque retumbante, o que restava da parede caiu para dentro.
A besta de duas caras uivou e guinchou quando pedras enormes esmagaram o seu corpo sem forma. E, antes que Lief se desse conta, a cor dourada e patas poderosas formaram uma imagem confusa, e ele foi arrastado, aos tropeços e ofegante, para fora da caverna e para o ar livre.
Ele ficou sufocando, tremendo, meio enterrado no chão poeirento que as garras do dragão tinham trazido com ele. Estava deitado de bruços, apertado contra uma das patas dianteiras do dragão. As escamas estavam escorregadias e úmidas e ele sentiu o cheiro de sangue fresco. A canção da irmã enchia seus ouvidos e seu cérebro, mais alta do que nunca.
E, no entanto... ele estava mais longe da irmã naquele momento. Ele estava fora da caverna que havia debaixo da capela. Ela ainda estava lá dentro. Por quê?...
Ele se obrigou a abrir os olhos e ficou enojado. A irmã não estava mais debaixo do solo. Ela estava ali, do lado de fora da parede destruída do palácio, com as veias vermelhas cintilando através de uma fina camada de poeira.
Intencionalmente ou por acidente, o dragão a tinha puxado para fora da caverna com ele. Ela estava muito perto. O seu mal o estava empurrando para dentro da terra.
E não só a ele, pois agora Lief se deu conta dos soluços, dos gritos, dos gemidos de terror e desespero. Os sons pareciam estar vindo de cima. Com um esforço enorme, ele se virou de lado e olhou para cima.
Ele e o dragão estavam no fundo do grande buraco que a besta tinha cavado para revelar a parede das profundezas da caverna. Acima deles, agrupados ao redor das bordas do buraco, estavam centenas de pessoas usando máscaras vermelhas.
Muitas eram guardas do palácio, mas muitas outras não eram. Pessoas que vieram correndo da cidade, cheias de coragem, determinadas a defender o palácio do dragão. Mas naquele momento estavam de joelhos, gemendo e soluçando, cobrindo os ouvidos com as mãos. O poder maligno da irmã as tinha derrubado.
Somente três pessoas ainda estavam em pé, amontoadas do lado do buraco mais próximo dos fundos do palácio. Elas estavam bem perto da borda, mas, por causa do sol forte, Lief não conseguiu descobrir quem era uma delas. De qualquer forma, parada um pouco atrás das outras, estava uma pessoa alta. Talvez fosse Perdição, ele adivinhou sem certeza.
Mas não havia engano sobre as duas da frente.
Elas eram Barda e Jasmine. Jasmine segurava o braço de Barda. Os cabelos dela estavam balançando ao vendo. Ela estava cambaleando e o seu rosto parecia muito pálido sob a luz da Lua. Mas estava viva. Viva!
“Viva, para acabar morrendo por causa da praga”, disse uma voz gelada em seu pensamento. “Como Barda, como você.”
Ele afastou o pensamento rapidamente. Independente do que tivesse de acontecer, estava muito feliz por ter os companheiros ao seu lado naquele momento. Ele estava satisfeito porque o inimigo que tinha tentado destruí-los estava caído, esmagado e morto, debaixo das pedras da parede destruída.
“Se eu sobreviver a isto, finalmente vou saber quem era o nosso inimigo oculto”, ele pensou. “A verdadeira forma do guardião será revelada na morte. Vou saber...”
Agora, rei de Deltora, enquanto ainda tenho forças.
A voz do dragão era fraca, mas Lief ainda a escutava. Ele sabia o que ia acontecer em seguida. O dragão ia usar o que restava de suas forças para destruir a Irmã. Ele ia livrar o reino da ameaça que a tinha invadido, queimar a coisa perversa até que virasse cinzas.
Ele apertou a mão esquerda na perna do dragão e a direita no topázio. Ele olhou com raiva para a Irmã do Sul, deitada à vista de todos na poeira.
Durante séculos, ela tinha derramado sofrimento sobre os que choravam na capela acima de seu esconderijo e contagiado com desespero os prisioneiros nas masmorras ao seu lado. Durante séculos, seu veneno tinha penetrado na terra de Del, nas Florestas do Silêncio, nas colinas Os-Mine, nas fazendas, na praia, no mar, enfraquecendo o que era bom e fortalecendo o que era mau.
Agora tinha chegado a hora de pôr um fim nisso.
Ele sentiu o dragão reunindo suas forças. Prendeu a respiração e se preparou para a primeira onda de calor.
Então ele piscou, e ficou boquiaberto, e gemeu horrorizado, sem acreditar no que via.
A abertura na parede do palácio atrás da irmã estava se enchendo com uma escuridão oleosa. Ele podia realmente ver mais do mal líquido se espalhando entre as pedras caídas dentro da cavidade e se juntando à massa preta na abertura. A besta de duas caras não tinha sido destruída! Ela estava se compondo outra vez diante de seus olhos.
A massa negra se arqueou para fora e se derramou na terra. A besta se levantou, grande e brilhante à luz do sol com os ferrões brotando às centenas de seu corpo sem forma. Suas duas caras começaram a se formar horrivelmente: a cara de cachorro mordendo e espumando, os olhos vermelhos da cara de pássaro queimando de ódio.
Mas, mesmo quando as caras ainda estavam se retorcendo para se formar, a besta atacava e seus ferrões cortavam o ar.
Lief rolou desesperadamente para o lado quando, com um rugido, o dragão meio que abriu as asas e se levantou nas pernas traseiras para enfrentar seu inimigo. Chamas saíam das mandíbulas do dragão e a carne ondulante da besta de duas caras chiou, estremeceu e se encolheu sob o jato incandescente.
A besta uivou, mas dessa vez não recuou. Ela investiu outra vez, cortando com seus ferrões a garganta macia e pálida do dragão até as escamas ficarem recobertas de filetes de sangue.
O dragão mostrou os dentes brilhantes e afiados como agulhas e se preparou para atacar.
“Não! Não morda!”, Lief pensou desesperado, lutando para pegar a espada. “É isso que ele quer que você faça. Ele vai encher a sua garganta, asfixiar você. Não...”
O dragão cambaleou, batendo a cauda em ponta inutilmente nas paredes de terra do buraco. Então, ele recuou e rugiu outra vez, soltando um jato de fogo. Novamente se ouviu um chiado horrível. A cara de cachorro uivou ferozmente quando dezenas de ferrões estremeceram e caíram no pó e a carne debaixo deles se enrijeceu e queimou.
Então, sem aviso, a besta pulou. Ela saltou para a frente como uma grande onda negra e se enrolou no pescoço do dragão. O dragão tentou se libertar, enterrando as garras no atacante preso ao seu corpo, cortando os ferrões às dezenas. Mas as feridas profundas feitas por suas garras na carne oleosa e ondulante se fechavam no mesmo instante e, para cada ferrão que caía, outro crescia para se juntar aos outros enroscados ao redor do pescoço do dragão, cortando e apertando.
O dragão gritou em agonia. As patas da frente bateram no chão e, ainda lutando, ele rolou pesadamente para o lado.
— Não! — Lief gritou com voz aguda. Finalmente, ele conseguiu pegar a espada e tirá-la do cinturão. Com o suor escorrendo pela testa, ele se levantou com dificuldade, se jogou para cima da besta e a atacou violentamente.
O pescoço da besta virou. Os olhos loucos da cara de cachorro olharam com ódio para Lief. Espuma espirrava das mandíbulas que rosnavam e mordiam. No mesmo instante, a cara de pássaro soltou um grito ensurdecedor de triunfo e seu bico cruel e curvo começou a rasgar a garganta do dragão.
Um rugido muito forte de cima e, de repente, o fosso foi inundado por uma brilhante luz amarela. A cabeça da besta se virou para cima com violência, mostrando o bico da cara de pássaro pingando sangue.
Lief escutou o grito de advertência de Jasmine, ouviu alguma coisa enorme cair com um baque forte no fosso atrás dele. Antes de conseguir pensar, antes de poder se mexer, uma mão gigantesca com garras o mandou para longe.
Ele aterrissou pesadamente a meio caminho da parede inclinada do fosso. Atordoado, olhou para baixo.
Um gigante dourado com uma crina desgrenhada de cabelos castanhos estava atacando a besta, cortando seus ferrões com garras tão afiadas quanto facas, rasgando sua carne trêmula em pedaços.
— Nevets! — Lief conseguiu murmurar.
Através de uma névoa, ele viu Steven tropeçando morro abaixo, seguindo a trilha profunda deixada por seu irmão selvagem.
Talvez Nevets não tivesse sido afetado pela Irmã do Sul, mas era óbvio que o mesmo não acontecia com Steven. No entanto, de espada na mão, ele continuou cambaleando com os olhos presos no irmão.
Nevets e eu não podemos ficar muito tempo longe um do outro. Lutamos juntos ou não lutamos.
Lágrimas quentes saltaram aos olhos de Lief. Então Steven e Nevets, de Plains, iriam morrer lutando. Bem, melhor isso do que...
Ele sentiu a mão de alguém em seu braço, olhou para cima e viu Jasmine agachada ao seu lado.
— Você precisa sair daqui, ir para o alto — ela disse com dificuldade. — Ande depressa...
Ele viu no rosto abatido como tinha sido difícil para ela alcançá-lo, mas ele sacudiu a cabeça.
— Preciso ficar com o dragão — ele murmurou. — Por todo o tempo possível, até que a praga...
— Não existe praga — ela disse, apertando o braço de Lief. — Você tinha razão o tempo todo. Era veneno.
— Mas... mas Zeean! Minha mãe... — ele começou sem entender.
— Encontramos veneno na pomada para lábios de Sharn — Jasmine sussurrou. — Veneno que foi absorvido pela pele. Foi descoberto somente há alguns momentos.
A cabeça de Lief estava girando. Ele não conseguia compreender bem o que tinha ouvido. Era surpreendente. Era maravilhoso. Isso mudava tudo.
Mas, de certa forma, não mudava nada.
— Nevets não pode derrotar a besta — ele disse atordoado. — Não importa o que faça, ela vai se recuperar. Ela vai matá-lo, vai matar Steven e então vai atacar o dragão. Se o dragão tiver a mim e ao topázio, ainda vai haver uma chance de que ele possa sobreviver para destruir a irmã.
Jasmine o olhou fixamente por um momento, então as sentiu e segurou sua mão.
— Filli está com Barda — ela disse.
E Lief entendeu que isso significava que ela tinha intenção de ficar com ele, que, na verdade, ela sempre achou que as coisas acabariam daquele jeito.
Lutamos juntos ou não lutamos.
Ele não discutiu. Ele simplesmente agarrou a mão dela e, juntos, escorregaram para dentro do fosso.
O dragão ainda estava deitado de lado, de olhos fechados. Suas escamas douradas tinham desbotado e estavam amarelo-claras. Segurando a mão de Jasmine, Lief se esforçou para chegar perto da cabeça imensa e se ajoelhou ao lado dela.
O dragão abriu os olhos quando sentiu o toque dele. Lief se sentiu perdido, afundando em grandes espaços e tempos dourados. Ele ouviu a voz do dragão sussurrando em sua mente.
Você voltou para mim, rei de Deltora.
— Sim — Lief sussurrou.
Você trouxe a moça com você, aquela com os lindos cabelos que têm a cor da noite.
— Sim — Lief disse em voz alta, apertando ainda mais a mão de Jasmine.
O dragão quase pareceu sorrir.
Não tenha medo. Não sou ameaça para ela neste estado. Nem estou pensando em construir um ninho. Quem é o gigante dourado que luta com garras de dragão?
— Ele e o irmão vieram de Plains, no território da opala — Lief contou, usando as palavras que ele imaginou que seriam entendidas.
O dragão suspirou.
Ah, sim. Dizem que o território da opala cria seres estranhos. Ele fechou os olhos dourados outra vez. Seres estranhos...
E, de repente, Lief se lembrou de Ava, a vidente cega falando dos irmãos, Jack Risonho e Tom, o comerciante.
Dizem que, quando crianças em nossa casa, em Plains, éramos muito parecidos e que nossas mentes podiam se unir como se fôssemos três partes de um todo...
Outra família estranha de Plains. Era aquilo uma simples coincidência ou...?
— Lief! — Jasmine sussurrou agitada. — Lief, olhe! Lief virou a cabeça e seu coração deu um pulo.
Nevets ainda estava atacando e despedaçando a besta de duas caras. O pêlo dourado que cobria seu corpo imenso estava manchado de espuma, listras pretas e sangue. O chão aos seus pés estava coberto por ferrões que se retorciam e pedaços de carne oleosa.
Steven lutava do outro lado da besta, cortando ferrões onde podia, afastando a cara de pássaro que gritava enquanto o atacava sem parar.
Mas alguma coisa tinha mudado. Os ferrões no chão estavam se retorcendo. Os pedaços de carne despedaçada não se desmanchavam mais no lodo negro nem voltavam para o corpo da besta, estavam secando e endurecendo onde tinham caído.
— O que está acontecendo? — Jasmine perguntou baixinho. — Parece que a besta não pode mais se renovar. É como se...
— Como se o feitiço estivesse falhando — Lief completou devagar. Seus olhos foram até a Irmã do Sul. Através do véu de poeira que a encobria, ele pôde ver que seus veios vermelhos estavam desbotados. E... sua canção estava mais baixa, menos aguda do que antes.
— O mal diminuiu — o dragão murmurou. — Ah... assim é melhor. Muito melhor.
Lief olhou para ele. Seus olhos dourados estavam abertos outra vez. Suas escamas estavam recuperando a cor a cada momento. O sangue havia parado de fluir de suas feridas horríveis. Os músculos de seu maxilar se agitaram sob a mão de Lief ao perceberem que sua força voltava.
— A irmã está morrendo — Jasmine sussurrou. — Mas por quê? É o Cinturão? Steven e Nevets? A luz do sol?
Espantado, Lief olhou para a pedra falsa caída no pó e que perdia seu brilho e então para a besta que lutava.
Era um milagre. Exatamente no momento em que tudo parecia perdido, o poder da irmã tinha começado a falhar.
E a besta sabia disso. Confusão e pânico se misturavam com selvageria nos olhos da cara de cachorro. O bico da cara de pássaro se abriu e atacou Steven desesperadamente como se ela não pudesse nem ao menos ver sua espada que a golpeava.
Steven gritou de dor quando o bico cruel da cara de pássaro atingiu o braço que segurava a espada, ferindo-o. Ele cambaleou, agarrando o ferimento terrível. A espada caiu de sua mão, e a cara de pássaro gritou triunfante. A cara de cachorro salivou e mordeu.
Então, com um rugido de trovão cheio de raiva, Nevets mergulhou para a frente com os braços fortes estendidos, as terríveis garras à mostra, e arrancou a cabeça da besta do corpo.
Durante um longo momento, a cena pareceu ficar congelada. Nevets estava parado, rosnando, levantando a cintilante cabeça de duas caras para o sol como se a estivesse oferecendo aos céus. A massa sem cabeça da besta estremecia na frente dele.
Então, abruptamente, Nevets jogou o prêmio terrível no chão e o pisou até que se desmanchasse. E o corpo sem cabeça caiu como um saco preto vazio, e se amontoou na poeira.
Nevets levantou a cabeça, rugiu e bateu no peito. Depois, como se de repente se lembrasse de sua existência, ele se virou para encarar Lief, Jasmine e o dragão. Seus olhos escuros estavam inexpressivos e queimavam com o desejo de continuar a matar sem parar...
— Não! — Steven gemeu. — Eles são amigos!
Mas parecia que Nevets não o escutava. Ele mostrou os dentes com selvageria e se preparou para saltar.
O dragão soltou um grunhido do fundo da garganta. Lief procurou a espada e Jasmine levantou a adaga.
— Nevets! — Steven gritou desesperado. — Estou ferido. Preciso de sua força. Volte para mim, meu irmão!
Nevets hesitou. Seu rosto abrutalhado se retorceu como se duas emoções poderosas lutassem dentro dele.
— Nevets! — Steven implorou.
Aquilo foi o suficiente. Nevets virou nos calcanhares e com dois passos ficou ao lado do irmão. Ele segurou o braço ferido de Steven com delicadeza nas duas mãos enormes e, logo depois, ele não era mais uma figura sólida, mas um pilar de luz amarela ofuscante.
Lief não pôde olhar para ela. Ele teve que virar o rosto e, quando olhou outra vez, o gigante selvagem dourado com a crina de cabelos castanhos-escuros tinha desaparecido e somente Steven, com seus cabelos dourados e pele morena, continuava ali.
— Agora! — Steven rosnou, cambaleando para o lado.
O dragão rugiu e uma onda de fogo dourado envolveu a já fraca Irmã do Sul. A pedra falsa brilhou fracamente nas chamas e ficou vermelha como um carvão incandescente. Sua canção se tornou um lamento, o vermelho escureceu, ficou escarlate e depois marrom sem brilho.
O dragão sibilou. E, desta vez, o jato estreito de fogo que saiu de sua boca estava branco de tão quente. A irmã começou a estremecer.
O calor era tão intenso que Lief teve que virar para o outro lado novamente. Mas ele não tirou a mão esquerda das escamas do dragão e a direita do topázio.
Ele ouviu a canção chorosa da irmã ficar cada vez mais alta até parar.
O silêncio era estonteante.
Lief abriu os olhos lentamente. No lugar onde antes estava a Irmã do Sul, havia apenas um pequeno monte de cinzas brancas sendo espalhadas pela brisa.
— Então, estamos conversados — o dragão grunhiu, com grande satisfação. — Está acabado.
O silêncio foi quebrado de repente por um barulho vindo de cima. Lief olhou e as pessoas mascaradas que cercavam a borda do fosso estavam em pé, dando vivas, gritando e batendo os pés.
Destacando-se entre elas, estava Barda com os braços levantados num gesto de triunfo, enquanto Filli gritava em seu ombro. Ao lado dele, estava o pequeno vulto de Manus, saltando para cima e para baixo como se tivesse molas nos pés. Gla-Thon estava lá também, ainda segurando arco e flechas nas mãos.
E ao lado de Barda estava Lindai, de Broome, alta e com o corpo ereto. Lief olhou, extremamente feliz. Lindai tinha sobrevivido. Um de seus braços estava apoiado numa tipóia improvisada. Ela estava dando vivas com as outras pessoas, mas seus olhos estavam presos no dragão e ela segurava uma lança na mão saudável.
Quando Lief e Jasmine se levantaram com dificuldade, Steven se aproximou, sorrindo perturbado.
Está acabado.
Lief sabia que aquele era um momento de alívio e comemoração. As pessoas acima dele deliravam de felicidade. Mesmo assim, ele não sentia nada.
— Isso parece um sonho — Jasmine murmurou, ecoando seus pensamentos. — No final, tudo aconteceu muito depressa. Nada parece real.
— É bastante real. E foi por pouco, também — Steven comentou.
— Você e seu irmão se saíram muito bem, homem de Plains — disse o dragão, olhando-o com interesse. — Mas não fique orgulhoso demais. Quando a sua batalha terminou, o inimigo já tinha perdido grande parte de seu poder.
— É mesmo? — Steven respondeu educado. — Então meu irmão e eu tivemos muita sorte.
Lief mal escutava. Ele estava olhando para os retalhos negros que eram tudo o que tinha restado da besta de duas caras.
— A besta não se transformou — ele disse devagar.
— Talvez ela estivesse ferida demais — Jasmine retrucou. — Ou, talvez, ela não tivesse uma forma humana, afinal.
— Talvez... — Lief murmurou. — Mas o guardião do norte criou um fantasma para nos perseguir a caminho do Portal das Sombras. E se o guardião do sul tivesse o mesmo poder, talvez até maior? E se o lodo negro foi... enviado?
— Mas certamente o guardião teria de entrar em algum tipo de transe para realizar esse feito! — Jasmine exclamou. — E o palácio está cheio de gente. O perigo da descoberta teria sido...
— Teria havido pouco perigo de descoberta se o trabalho sujo foi feito na calada da noite — Lief interrompeu. — E foi quando ele foi feito... até ontem, bem antes do amanhecer, e hoje, quando...
E, nesse instante, uma lembrança atingiu sua mente. Uma lembrança. Um rosto. Um nome.
Ele balançou a cabeça. Não podia ser verdade. Ele não poderia suportar se fosse verdade. No entanto, enquanto sua mente trabalhava inquieta, procurando outra resposta, muitas coisas que o tinham perturbado entraram em seus lugares de uma forma terrível.
— É melhor que você volte para o seu povo, rei de Deltora — o dragão disse, de repente. — No momento, eles parecem felizes, mas não confio neles. A qualquer momento, eles podem decidir me atacar de novo e ainda não estou preparado para lutar ou voar.
Lief não perdeu tempo com discussões. O dragão tinha bons motivos para desconfiar do povo de Del. E ele também sentiu que seu lugar era acima dali.
Havia alguém que ele precisava encontrar.
Quando Lief, Jasmine e Steven saíram do fosso, todos na multidão sabiam que a praga, afinal, não era uma ameaça. Todos exceto algumas poucas pessoas, tinham se livrado das máscaras. Guardas e pessoas da cidade estavam festejando.
Steven murmurou alguma coisa sobre encontrar Zerry e desapareceu. Lief imaginou que o pensamento de enfrentar olhares curiosos da multidão o deixava pouco à vontade.
Na verdade, poucos tinham visto Steven e Nevets lutando com a besta: o poder assustador da Irmã do Sul tinha cuidado disso. Somente uns poucos tinham visto o dragão destruir a Irmã do Sul.
Mas todos sabiam que uma grande batalha tinha sido travada e vencida e que alguma coisa assombrosa tinha acontecido. Todos sentiam o espírito leve, uma alegria contagiante.
Muitos continuavam a tapar os ouvidos ou a balançar as cabeças como se quisessem tirar água dos ouvidos. Um som que sempre tinham ouvido tinha desaparecido. Pela primeira vez em centenas de anos, a canção monótona e desesperadora da Irmã do Sul não atravessava mais o ar e a terra de Del.
“Por que não consigo me sentir feliz?”, Lief pensou pela centésima vez. Ele agarrou a mão de Jasmine com mais força. A pequena mão áspera tinha se transformado numa referência do tempo para ele, um elo para o que era real, o que era verdadeiro.
Ele viu que Lindai, Manus e Gla-Thon tinham desaparecido e que Barda estava falando naquele momento com o guarda chamado Dunn. Enquanto Lief observava, Dunn cumprimentou Barda e o deixou para correr e gritar ordens com seus homens.
No momento seguinte, os guardas começaram a fazer com que as pessoas se afastassem do fosso e se dirigissem para os portões do palácio.
— Isso vai deixar o dragão satisfeito — Lief disse. Sua própria voz parecia estranha como se viesse de muito longe.
Barda estava sozinho naquele momento: um vulto alto e orgulhoso formando uma silhueta contra o céu. Jasmine o chamou e ele olhou para ela.
Assim que chegaram perto dele, Filli saltou de seu ombro para os braços de Jasmine, chiando agitado e feliz. Lief observou os olhos apagados e vazios de Barda e deu um grande abraço no amigo.
Por um momento, Barda retribuiu o abraço. Então, constrangido como sempre em demonstrar emoções, ele empurrou Lief para longe.
— Argh! Você está cheirando a dragão, Lief — ele disse, rindo. — Fique longe de mim!
Então o sorriso sumiu de seu rosto, ele piscou e uma ruga se formou entre as sobrancelhas. Barda estendeu o braço.
— Pegue minha mão — ele disse de repente.
Sem entender, Lief agarrou a mão estendida. Barda piscou novamente e Lief viu que o vazio no olhar do amigo diminuiu.
— É o Cinturão — Barda disse com a voz ligeiramente trêmula. — Uma das pedras está ajudando minha visão. Posso sentir!
E Lief se lembrou.
Ele não hesitou. Passou a mão livre para a opala e a segurou com firmeza.
No mesmo instante, sua mente foi dominada por imagens. A terra cinzenta e deserta. As árvores esqueléticas. O rio cinzento com sua água espessa como lama e grandes peixes cinza mortos na superfície enrugada. Criaturas monstruosas gritando no céu. E ele sentiu...
Horrorizado, ele tirou a mão do Cinturão com violência. Ofegante, olhou para Barda, para os olhos escuros e límpidos do amigo que o observavam com curiosidade.
— Foi... suficiente? — Lief balbuciou.
— Por enquanto sim — Barda respondeu. Ele esperou, mas a garganta de Lief estava seca e ele não conseguiu falar.
— O que você viu, Lief? — Jasmine perguntou em voz baixa. — Acho que eu estava nas Terras das Sombras — ele disse, engolindo a saliva. — Vi os sete Ak-Babas. Senti... uma raiva terrível e impotente. Queimando... — a garganta dele se apertou e ele estremeceu.
— Isso é o que o inimigo vai sentir quando souber o que aconteceu aqui hoje — disse alguém em voz baixa ao lado dele. — Talvez tenha sido o futuro dele que você viu.
Muito espantado, Lief se virou e viu Zeean, envolta num xale, apoiada no braço de Lindai. Ele tinha ficado tão concentrado na visão que não ouviu as duas mulheres se aproximarem.
— Zeean! Como... por que... você está aqui? — ele gaguejou quando Lindai se aproximou de Barda contente e feliz por vê-lo curado.
Zeean estendeu a mão para mostrar um enorme anel de esmeralda que Lief reconheceu como sendo uma das jóias reais.
— Ele terminou o que a esmeralda do Cinturão começou — ela disse com calma. — Pude sair andando do palácio com a ajuda de Lindai. Sharn ainda está muito fraca, então Gers a carregou. Acho que Perdição e Gla-Thon trouxeram Paff e o corpo de Josef.
Ela inclinou a cabeça para o lado e observou as expressões confusas e surpresas de Lief e de Jasmine.
— Vocês não sabem? — ela perguntou. — Parece que há risco de o palácio ruir.
— O quê? — Jasmine gritou horrorizada.
— Manus diz que o buraco na parede da fundação fez o palácio ficar sem a sustentação adequada — Barda disse. — Todo ou parte dele vai cair se não for feito algo rapidamente.
Ele apontou para o fosso, e Lief viu o pequeno Manus orientando uma dezena de guardas. Eles estavam trabalhando para levantar um grande poste, um comprido tronco de árvore, no centro do buraco aberto na parede do palácio. Eles ficavam olhando nervosamente sobre o ombro para o dragão do topázio, que, com os espinhos do pescoço levantados, os observava com atenção.
Agora Lief podia ver as grandes rachaduras que subiam pela parede e iam até as janelas compridas do enorme saguão no primeiro andar.
— Não sei por que vocês todos ainda estão parados aí — Lindai disse. — Manus mandou vocês saírem da área! Não acreditei quando vi vocês! Vamos embora!
Mas, enquanto ela falava, um coro de triunfo se ergueu do fosso. Os guardas tinham conseguido colocar o tronco de árvore no lugar. Manus olhou para cima e viu o grupo que o observava.
— O tronco vai segurar o palácio! — ele rugiu, dando um soco no ar. Ele se virou para seus homens, apontou para um segundo poste deitado no chão e começou a dar ordens.
— Excelente! — Lindai disse satisfeita. — Vamos contar para os outros, urso velho?
Eles se afastaram, rindo e conversando.
— Vamos também? — Zeean sugeriu. — Gostaria de me sentar.
— Vamos usar a entrada dos fundos — Jasmine disse, tomando-lhe o braço. — Vamos chegar mais depressa e lá não tem escadas.
Eles começaram a andar para os fundos do palácio em silêncio. Eles andavam muito devagar, por causa de Zeean, e Lief ficou satisfeito por isso. Ele não estava ansioso pelo que vinha pela frente.
Eles chegaram à porta da cozinha e ajudaram Zeean a entrar. Um coro de vivas explodiu. Espantado, Lief e Jasmine viram que a grande mesa estava cheia de pessoas, todas voltadas para eles, sorrindo.
— Ora, até Marilen está aqui! — Jasmine gritou. — E Ebony! Lief olhou para os rostos conhecidos.
Marilen, radiante de felicidade, Ebony pousado em seu ombro; Ranesh, sorrindo; Gla-Thon, levantando um cálice; Gers, gritando. Steven, com um largo sorriso no rosto; o garoto Zerry, mais alto do que Lief se lembrava, com os olhos espertos brilhando; Lindai, rindo e batendo na mesa; Barda, radiante, puxando cadeiras para Jasmine e Zeean; Sharn, muito pálida, com esmeraldas reais cintilando no pescoço e estendendo os braços para ele.
Só faltava uma pessoa.
Lief se aproximou da mãe e a abraçou.
— Onde está Perdição? — ele perguntou devagar.
— Ele levou Paff para a cama — Gla-Thon informou. — Ela se recuperou um pouco, mas ainda está inconsciente. Ele virá logo.
— Se ele não dormiu em pé — Gers grunhiu. — Ele parece um morto-vivo. Eu me ofereci para levar Paff, mas ele não aceitou.
— Com certeza ele achou que a pobre menina já estava doente o bastante sem ver a sua cara feia, Jalis — Gla-Thon brincou.
Com um rugido, Gers se virou com a mão estendida para Gla-Thon, mas conseguiu apenas derrubar uma jarra com o cotovelo e inundou a mesa com vinho. Todos saltaram, gritando ou rindo. No mesmo instante, um pássaro preto passou voando pela porta e foi diretamente até Jasmine.
— Kree! — ela gritou muito feliz.
Lief tirou vantagem da confusão para sair às escondidas. Apenas Sharn o viu.
Lief foi até a biblioteca e andou em silêncio entre o labirinto de estantes com a mão na espada. Sua mente estava vazia.
Uma luz fraca brilhava no quarto de Josef. Lief parou e olhou para dentro. Durante um momento, ele pensou ter visto um vulto curvado de régua na mão, inclinado sobre alguma coisa na mesa — algo que Lief agora sabia que devia ser o mapa da capela.
Não... Não cometi nenhum erro. Ah, que truque cruel é esse?... Se somente eu tivesse lembrado! Que idiota!
Então Lief piscou e a visão se foi. A mesa estava vazia e o corpo de Josef estava deitado na cama. No dia seguinte, ele seria enterrado com todas as honras de um herói de Deltora, mas ele passaria aquela noite em seu quarto humilde.
— Você vai ser vingado, Josef — Lief prometeu em voz baixa. — Descanse bem.
Ele deu uma segunda olhada na mesa quando se virou para sair. Teve a estranha sensação de que algo na sua rápida visão estava errado, mas não conseguia perceber o que era.
Ele foi até o quarto de Paff. Ali, as cortinas estavam abertas, e a luz da tarde deixava o ambiente dourado.
Paff estava ajeitada sobre os travesseiros, exatamente como Lief a tinha visto quando entrou no quarto pela primeira vez, antes do nascer do sol. Mas ela não estava mais rígida e nem suava. Os olhos dela estavam tranqüilamente fechados.
Ao lado dela, numa cadeira tirada de trás da escrivaninha, estava Perdição com uma faca de caça cintilante deitada sobre os joelhos. Ele levantou a cabeça quando Lief entrou e seu rosto sombrio não demonstrou surpresa.
— Afaste-se, Lief — ele disse devagar.
— Você sabe que não posso — Lief respondeu, aproximando-se. Perdição olhou para ele por um instante e então se virou para a garota adormecida. As pálpebras dela começaram a se mexer.
— Ela vai acordar logo — ele disse. — Eu devia ter cortado a garganta dela antes disso. Não sei por que hesitei.
— Talvez porque você sabia que eu viria — Lief disse. — No fundo do seu coração, você sabe que preciso ouvir o que ela tem a dizer.
Perdição balançou a cabeça inquieto. Seus dedos compridos e morenos acariciaram a lâmina brilhante da faca.
— Você não sabe o que é ser totalmente só, Lief — ele disse. — Você não conhece a agonia de ter todos os que ama arrancados de você. Você nunca sentiu a raiva, a dor, o desejo intenso de vingança que queima dentro da gente até que tudo o que resta é um desespero sombrio, um vazio imenso ansiando por ser preenchido.
— Nunca senti isso do mesmo jeito que você — Lief respondeu. — Mas senti a força maligna que promete encher o vazio com riquezas e poder em troca de serviços à sua vontade. E sei que outras escolhas podem ser feitas. Você também sabe, Perdição.
Perdição deu de ombros e deu um meio sorriso. A faca caiu no chão com estrépito.
Paff abriu os olhos. Ela olhou sonhadoramente para o teto e então virou a cabeça para olhar para Lief e Perdição.
— Josef? — ela murmurou.
— Josef está morto — Perdição contou com voz calma.
— Então... ele foi silenciado — a garota disse com a voz suave como um suspiro. — Como ele odiou e temeu você no fim, Perdição. Ele tinha quase tanto medo quanto eu. Mas... mas agora não importa mais, importa? Nada importa agora.
Lágrimas encheram os olhos dela. Lentamente, ela relaxou os dedos e as esmeraldas se espalharam no lençol branco.
— Tentei com tanta força — ela sussurrou com a voz tão fraca que Lief teve de se curvar para ouvir. — Quando comecei, eu tinha... tantas esperanças! Eu só pensava em agradá-lo. Fiz muito mais do que ele pedia. E, mesmo assim...
— E, mesmo assim, no fim ele acabou dando as costas para você — Lief completou. — Ele a abandonou. Por que, Paff? Por quê?
A garota olhou para ele por entre as lágrimas.
— Talvez porque eu tenha tentado demais — ela sussurrou. — Talvez eu tenha feito demais. O meu mestre tem muitos planos.
E, com o desespero de uma criatura presa numa armadilha que apanha sua única oportunidade de escapar, ela se jogou para a frente e agarrou o Cinturão de Deltora.
Lief tentou pular para trás, mas o aperto de Paff era muito forte. Ele olhou horrorizado, quando o rosto dela se retorceu e as costas dela se arquearam. Ele sentiu um cheiro horrível de queimado. E, com um grito que era mais de alívio do que de dor, o guardião fracassado e abandonado do sul caiu para trás nos travesseiros, finalmente livre de seu tormento.
Quando voltaram para a cozinha, Lief e Perdição a encontraram no maior alvoroço. Manus tinha se juntado ao grupo na mesa, mas não era o motivo do excitamento e da aflição. O motivo era Kree.
Depois de saber que as quatro kins estavam a caminho trazendo as pedras que Lief tinha pedido, Jasmine descobriu que o velho ferimento no pescoço de Kree tinha aberto outra vez. Ao tentar limpar o sangue que escorria do machucado, ela achou um objeto alojado no interior do ferimento.
— Acho que estava bem enterrado e aos poucos foi subindo para a superfície — ela disse. — Não é de surpreender que o machucado não tenha sarado como devia.
Ela segurou o objeto na palma da mão. Era uma pequena conta de vidro cinza e linhas vermelhas giravam dentro dela.
Estremecendo, Lief pegou a conta e a jogou no fogão. Ela chiou, brilhou um pouco e então rachou e derreteu.
— Então agora ficou claro como nossos inimigos sempre sabiam onde estávamos — Barda disse irritado. — Só estávamos seguros quando Kree não estava conosco. Ele estava levando o olho do Senhor das Sombras o tempo todo.
Kree gritou alto indignado.
— É claro que você não sabia, Kree — Jasmine o tranqüilizou. — O dispositivo deve ter sido posto em seu pescoço quando você foi drogado na primeira vez em que voltou a Del. Alguém no palácio fez isso... alguém...
— Foi Paff — Lief disse devagar.
— Paff? — Barda explodiu.
— Paff era o guardião do sul — Lief contou. — Mas ela não vai mais nos perturbar. A besta que ela mandou para nos destruir conseguiu resistir ao poder do Cinturão, mas ela não.
Os rostos espantados em volta da mesa da cozinha ficaram cada vez mais sombrios, à medida que a história da morte de Paff era contada. Lief e Perdição não gostaram de contá-la, pois sentiam que tinham fracassado.
— Eu queria poupá-la do horror de despertar — Perdição disse. — Ela tinha se tornado um monstro de maldade, mas ainda assim eu... eu achei que tinha entendido por que ela decidiu tomar o caminho errado. Ela tinha perdido tudo, não era amada por ninguém. O sofrimento a transformou numa presa fácil para o Senhor das Sombras.
O canto de sua boca se torceu no conhecido sorriso zombeteiro.
— Mas Lief a queria viva para contar o que sabia — ele acrescentou. — Dessa vez, Lief foi cruel. Mas Paff foi mais esperta.
— E não pela primeira vez — Lief disse sombrio. — Ela me enganou totalmente. O lodo negro nos atacou na capela exatamente depois que Gla-Thon veio correndo contar que Paff tinha piorado. Mas ainda assim não entendi. Foi só quando Jasmine falou de transes e me lembrei da aparência de Paff em seu quarto justamente antes do ataque da manhã que percebi quem ela era.
— E eu adivinhei quando a carreguei para fora do palácio — Perdição contou. — Ela estava dura como uma estátua de pedra. Nenhuma das outras vítimas da praga ficou daquele jeito.
— Confesso que tentei desesperadamente acreditar que não era verdade — Lief murmurou. — Não podia suportar o pensamento de que tinha deixado Josef indefeso nas mãos de Paff para ser drogado e, confuso, dar informações a ela e, finalmente, ser envenenado quando não tinha mais utilidade.
— Você não é o único que vai carregar esse peso até a morte — Ranesh murmurou.
— Sou o maior culpado de todos — Perdição falou. — Era óbvio que Paff estava envenenando a mente de Josef contra mim durante meses. Minha impaciência só fez com que ele desconfiasse e tivesse ainda mais medo de mim.
— E você lia as cartas dele antes de serem enviadas — Barda acrescentou. — Não há dúvida de que ele suspeitava de que você as estava alterando ou talvez nem sequer as enviando.
— Acho que elas foram alteradas — pelo menos uma delas — Lief disse devagar.
Ele tirou a carta que tinha recebido de Josef a caminho da Ilha dos Mortos.
— Estão vendo aqui? — ele perguntou, batendo nas duas pequenas páginas. Josef diz que sabe para onde estamos indo, mas não nos avisa do perigo que existe na Ilha dos Lírios Selvagens. Eu não entendi isso, mas agora acho que sei o que aconteceu.
Ele estendeu as páginas para Perdição.
— Foi Paff quem entregou isso a você para ser enviado? — ele perguntou.
— Foi ela, sim — Perdição respondeu de cara feia. — Josef levou um século para escrever esse bilhete e fiquei impaciente. Eu gritei do saguão de entrada e alguns minutos depois Paff veio correndo como um coelho assustado. Dei uma olhada no bilhete a caminho do viveiro de pássaros. Ele era confuso e desconexo, mas eu não o mudei.
— Não, mas tenho certeza de que Paff mudou antes de entregá-lo a você — Lief afirmou. — Acho que Josef rabiscou em três páginas deste caderninho. A segunda continha as advertências que poderiam ter evitado muito sofrimento para nós. Paff a destruiu e rasgou os cantos das páginas restantes, removendo os números das páginas para que não desconfiássemos.
— Ah, ela foi esperta — Perdição murmurou.
— Ora, você até parece que a admira! — Barda grunhiu.
— Se tivesse escolhido usar seus talentos para o bem, ela poderia ter sido muito útil para nós — Perdição disse, sorrindo. — Lief e eu encontramos um estoque daquele papel amarelo debaixo do colchão dela. Ela nunca parou de pensar e planejar. Tenho certeza de que no fim ela convenceu Josef de que eu estava trabalhando secretamente para o inimigo.
— Eu mesma pensei nisso, Perdição — Jasmine disse com calma.
— É mesmo? — ele respondeu, erguendo uma sobrancelha. — E por quê?
— Lief disse que o guardião do sul era sutil, tinha o raciocínio rápido e era muito esperto — Jasmine contou, dando de ombros. — Essa descrição se parecia com você mais do que com qualquer outra pessoa do palácio.
— Ora, obrigado — Perdição retrucou secamente.
— Além disso... — Jasmine continuou, contando os fatos nos dedos. — Você esteve nas Terras das Sombras, você é orgulhoso e cruel, você se mistura com gente esquisita, fica acordado a noite toda, foi um dos poucos a ver Sharn na noite em que ela ficou doente...
— Ora, está claro que Paff foi ao meu quarto naquela primeira noite e pôs veneno na minha pomada para lábios enquanto eu ainda estava embaixo! — Sharn exclamou muito chocada. — Perdição foi um dos que perceberam que o creme estava envenenado quando trouxe as esmeraldas e ametistas reais para o meu quarto. Foi ele quem me salvou!
— E a mim — Zeean acrescentou. — Jasmine, como pôde pensar uma coisa dessas do seu pai?
— Perdição não é um pai comum — ela respondeu, dando de ombros.
— Isso é verdade — Perdição concordou. — E fico feliz em dizer que você não é uma filha comum. Se eu estivesse em seu lugar, teria pensado exatamente o que pensou. Parece que somos mais parecidos do que imaginamos.
Ele deu um sorriso largo, e o rosto cansado de Jasmine se iluminou.
Zeean e Sharn balançaram as cabeças, claramente admiradas com esse estranho exemplo de lealdade familiar. Gers bateu o punho na mesa.
— Por que temos de ficar aqui tagarelando quando há um banquete nos esperando? — ele gritou. — Estamos todos aqui e o meu estômago está roncando!
Ranesh sorriu e jogou uma grande trouxa de tecido na mesa.
— Não é bem um banquete — Marilen disse, quando a trouxa foi aberta e revelou pacotes, jarras e redes de frutas brilhantes. — É mais uma amostra do que vem por aí. Eu só trouxe o que podia carregar.
Quando Gers, Gla-Thon e Lindai começaram a abrir as redes e os pacotes, Barda sorriu para os rostos espantados de Lief e Perdição.
— Parece que um navio carregado acabou de chegar — ele disse.
— Os marinheiros disseram que foi só o primeiro de muitos — Marilen contou feliz. — Eles disseram que o Farol de Bone Point foi visto por todos que navegam no mar do oeste, que chamamos de mar de prata. Logo vai haver muita comida, tenho certeza de que o suficiente para atender a todos durante o inverno.
— Marilen já estava a caminho quando saí para buscá-la — Ranesh contou, encontrando o olhar de Lief. — Nos encontramos perto de Del. Parece que ela estava sentindo a minha falta.
Ele falou despreocupadamente, mas Lief se sentiu feliz por ele.
“Está tudo bem”, Lief disse para si mesmo, enquanto todos ao seu redor gritavam maravilhados e se serviam dos deliciosos queijos, frutas, peixes secos, pães e pequenos bolos de ervas arrumados sobre a mesa. “Meus maus pressentimentos foram causados pelo cansaço e pelo medo, nada mais.”
Mas mesmo assim ele não conseguiu relaxar. Seus nervos estavam tensos como as cordas de um arco.
— Meu pai tentou me convencer a mudar de idéia, mas eu sabia que meu lugar era aqui — Marilen continuava a tagarelar. — Assim, vesti uma roupa que Sharn tinha deixado em Tora, peguei a comida que podia carregar e vim.
— Se pelo menos você tivesse o tamanho de Lindai — Gers brincou de boca cheia. — Poderia ter carregado cinco vezes mais mantimentos!
Todos riram. Ebony e Kree tiraram os olhos do pedaço de peixe que dividiam e gritaram. Até Filli, que mordiscava alegremente a casca de uma fruta, juntou sua pequena voz à algazarra.
“Está tudo bem”, Lief repetiu para si mesmo com determinação. “Está acabado.”
Mas ele sabia que não era verdade. E, quando inclinou a cabeça sem querer, viu que o Cinturão também sabia. O topázio ainda brilhava como uma estrela dourada, mas o rubi e a esmeralda estavam pálidos e sem brilho como pedras comuns.
Ouviu-se outra explosão de gargalhadas em volta da mesa. Atordoado, Lief levantou a cabeça. Ele viu que Barda, aborrecido, estava mostrando sua caixa de madeira, ainda fechada apesar das pequenas varetas espetadas em três de seus lados esculpidos.
— É óbvio que existe outra fechadura no quarto lado! — Manus gritou, estendendo a mão. — O truque está na escultura. Deixe-me tentar.
— Não, eu quero experimentar! — Zerry gritou. — Bess, dos Mascarados, tinha muitos quebra-cabeças iguais a esse. E eu conseguia resolvê-los!
— Ah, não — Barda grunhiu. — Esta caixa vai se abrir para mim ou para ninguém mais!
Como quem não quer nada, ele espetou a caixa com o dedo e ficou espantado quando a quarta vareta deslizou para fora com um pequeno clique.
A tampa da caixa se abriu com um movimento repentino e, de dentro dela, saltou uma cara de palhaço balançando numa mola.
Barda gritou e deixou a caixa cair. Todos gritaram assustados e depois começaram a rir, sem saber o que fazer.
A caixinha de surpresas estava caída de lado na mesa, com sua cabeça sorridente balançando tolamente, e seu riso mecânico sumindo aos poucos.
Lief sentiu um arrepio na pele.
— Ora, gastei horas com essa coisa idiota! — Barda exclamou aborrecido. — E para quê? Para levar um tremendo susto!
Ele tentou colocar o palhaço de volta na caixa, mas ele não entrou e nem as varetas voltavam ao lugar. Era evidente que aquele era um quebra-cabeças para ser resolvido apenas uma vez.
— Barda! Jogue isso no fogo! — Lief se ouviu gritar asperamente. O seu coração batia forte como um tambor.
— Com todo o prazer — Barda resmungou, jogando a caixa no fogão. Ela pegou fogo imediatamente e logo se transformou em cinzas.
“O que está errado comigo?”, Lief pensou desesperado. “Por que um brinquedo indefeso me assusta tanto?”
— Ah, esse foi um truque muito legal mesmo! — Manus comentou admirado, com lágrimas de alegria escorrendo pelas faces. — As varetas mantêm a tampa no lugar com o palhaço apertado debaixo dela. Quando se tira uma vareta, nada acontece. Duas, três varetas removidas, ainda nada. Mas quando a última vareta é tirada: bang! Ah, Barda, se você tivesse visto a sua cara!
Ele caiu na gargalhada acompanhado por todos.
Lief teve a impressão de que estava sufocando. Ele se levantou de repente e saiu, sentou-se no banco ao lado da porta dos fundos e respirou fundo algumas vezes para encher o pulmão de ar fresco.
A porta abriu novamente e Ranesh saiu.
— Entendo como se sente, Lief — Ranesh disse sério. — Depois de tudo o que aconteceu, parece desumano ficar feliz. Mas Josef ficaria contente em nos ouvir rir.
A mente de Lief estava outra vez dominada pela lembrança do homem frágil curvado sobre sua escrivaninha, murmurando como se estivesse analisando a planta da capela. E, novamente, ele teve a impressão de que havia alguma coisa errada na imagem ou que havia alguma coisa nela que ele não entendia.
“Por que fico me preocupando com isso?”, ele se perguntou zangado. “O que mais há para entender? Josef adivinhou que a Irmã do Sul estava debaixo da capela. Ele ficou aterrorizado e tentou me contatar, me avisar. Na noite em que morreu, ele estava examinando a planta da capela para ter absoluta certeza...”
E, de repente, o estômago de Lief pareceu virar quando ele percebeu que o que tinha pensado simplesmente não podia ser verdade.
Josef não podia estar estudando a planta da capela na noite em que morreu, porque exatamente no dia seguinte a planta estava no seu lugar de sempre, em uma caixa pesada no alto da despensa.
Era impossível que Josef tivesse recolocado a planta naquela caixa. Ele quase não conseguia andar, muito menos se esticar até uma prateleira alta. E, se ele tivesse pedido a Paff para guardar a planta para ele, ela certamente a teria destruído.
Mas, se Josef não estava examinando a planta, o que ele estava fazendo?
A mente de Lief estava tumultuada. Por que não tinha se lembrado da fragilidade de Josef? Por que não tinha percebido que o velho bibliotecário deveria estar estudando alguma coisa que já estava em seu quarto?
Ranesh pigarreou. Ao erguer os olhos, Lief se deu conta de que Ranesh estava olhando para ele e estendia uma pilha de papel amarrada com uma fita azul-claro.
— Este é o manuscrito do livro de Josef — Ranesh dizia. — Josef queria que ficasse com você. Eu o peguei da escrivaninha mais cedo e me pareceu certo dá-lo a você agora.
Lief pegou o manuscrito e, para satisfazer Ranesh, o desamarrou. Ele tirou a primeira página que continha o título do livro e olhou a próxima.
Não era a página com o sumário ou com a introdução, como tinha esperado. Era um conto copiado dos Anais de Deltora e, quando viu qual era, sentiu um frio lhe percorrer o corpo.
Uma história dos Cantos de Pássaros de Tenna, dos Anais de Deltora
Há muito tempo, numa linda ilha localizada no mar de prata, moravam quatro irmãs cujas vozes eram límpidas. Elas se chamavam Flora, Viva, Aqua e Terra e viviam na ilha há tanto tempo que nem se lembravam mais dos anos.
As irmãs gostavam de cantar juntas e suas vozes se espalhavam pela ilha como uma brisa suave e quente, dia e noite. Vez ou outra, um navio passava, mas para a maioria dos marinheiros a canção das irmãs era como folha sussurrante, água ondulante, areia levada pelo vento e o suave e secreto sussurrar de pequenos animais na grama. Os poucos que afirmavam ouvir vozes doces eram ridicularizados pelos colegas. Contudo, eles sabiam o que tinham ouvido e nunca a esqueciam até o dia de sua morte.
Então aconteceu que um feiticeiro chegou à ilha procurando um lugar para si. Ele ouviu o canto e o detestou, como detestava todas as coisas boas e maravilhosas, pois, embora fosse ainda jovem, sua maldade era muito antiga.
Ele apanhou as quatro irmãs e aprisionou cada uma delas em um canto da ilha. Mas as irmãs ainda cantavam umas para as outras de longe e sua canção continuava a banhar a ilha com paz e beleza, dia e noite.
Enlouquecido de raiva, o feiticeiro envolveu o corpo com seu casaco de sombras e examinou suas mágicas. Ele foi para cada um dos cantos da ilha e derrubou as irmãs, uma por uma.
Primeiro, foi a voz de Flora que silenciou. Depois a de Viva. Depois a de Aqua. Durante um tempo, Terra cantou sozinha, e, quando sua voz também foi interrompida, a ilha ficou em silêncio.
Somente então o feiticeiro percebeu o que tinha feito. Bem no centro da ilha, escondida nas profundezas da terra, estava uma besta horrível e má. Acalmada pelo canto das quatro irmãs, a besta tinha dormido durante séculos.
E então ela acordou com toda a sua fúria.
Ela se levantou rugindo de seu leito debaixo da terra. Derrubou árvores, esmagou pequenos animais, destruiu fontes e despedaçou montanhas. Ela quebrou a rocha em que a ilha repousava, e a ilha começou a afundar.
Aterrorizado, o feiticeiro pulou no mar de prata. Ele criou um barco com uma vela cinzenta e uma marca vermelha e navegou para o leste para encontrar novas terras para conquistar.
As ondas se fecharam sobre a ilha e ela nunca mais foi vista por olhos humanos desde aquele dia. Alguns marinheiros que passam por aquele caminho ainda alegam ouvir as vozes doces cantando debaixo da água. Eles são ridicularizados pelos colegas que ouvem apenas o som do vento e das ondas. Mas aqueles poucos sabem o que ouviram e nunca o esquecem até o dia de sua morte.
Lief largou a segunda página com a mão trêmula. As Quatro Irmãs... Você... o feiticeiro... você precisa parar... As palavras ditas com a voz fraca de Josef ecoavam em sua mente. E agora elas tinham um novo e terrível significado.
— Acho que é uma história muito triste para começar um livro
— Ranesh, que estava lendo sobre o ombro de Lief, falou.
— Esta foi a última coisa que Josef escreveu — Lief sussurrou, lutando contra o terror que crescia e ameaçava tomar conta dele. — Ele o copiou dos Anais e o colocou na frente do manuscrito para ter certeza de que eu o veria imediatamente, se algum coisa acontecesse com ele. Ele me mandou um bilhete...
Preciso ver você. Urgente. Notícias assustadoras...
— O volume dos Anais ainda estava aberto na escrivaninha quando cheguei — Lief disse, engolindo em seco. — A história estava ali, em sua forma original. Mas eu não a li.
Você é o feiticeiro. Você precisa parar...
Confuso, Ranesh franziu a testa.
— É só uma velha história do folclore. E certamente Josef já a tinha contado para você antes, não?
“Se ao menos eu tivesse lembrado! Que idiota!”
— As lembranças dele sobre a história eram confusas — Lief contou.
— Ele tinha esquecido o final. Quando ele a leu outra vez para escrever o livro e percebeu o que ela podia significar, eu estava muito longe.
— O que pode significar? — Ranesh perguntou. — Não estou entendendo!
“Será que Josef estava copiando essa história quando Perdição entrou no quarto dele na noite passada?”, Lief pensou. “Não. O volume dos Anais estava bem à sua direita, longe demais para que ele pudesse ver claramente. O manuscrito estava à esquerda, bem amarrado. E Josef estava usando uma régua. Não há linhas feitas com régua nestas páginas.”
Portanto, Josef devia estar trabalhando em alguma outra coisa, algo que provava aquilo de que a história o tinha feito desconfiar.
“Depois que Perdição o deixou, Josef deve ter escondido a prova bem perto”, Lief pensou. “Mas, certamente, ele teria tentado me contar, ou a Ranesh, onde ele...”
Seu coração deu um pulo.
— Ranesh — ele disse devagar. — Quando Josef lhe disse que queria ser enterrado em sua túnica de bibliotecário, o que ele disse exatamente?
— Eu já contei — ele quase não conseguia falar — Ranesh respondeu, olhando para ele fixamente. — Ele só disse “na minha túnica”. Ele repetiu isso várias vezes, muito agitado, como se pensasse que eu não tinha entendido. Mas é claro que eu sabia exatamente o que ele queria dizer. Josef sempre disse que queria ser enterrado com o uniforme de sua profissão quando chegasse a hora.
— Tinha alguma coisa no bolso da túnica? — Lief perguntou. Todo o seu corpo tinha começado a tremer.
— Não olhei — Ranesh disse imóvel.
Conspiração... traição...
Vacilante, Lief se levantou e cambaleou. Alarmado, Ranesh segurou seu braço.
Quando Ranesh meio que carregou Lief de volta à cozinha, e o ajudou a se sentar numa cadeira, as conversas e as risadas pararam de repente. Jasmine, Barda e Perdição se levantaram de um salto. Sham tentou se erguer.
— Cuidem dele — Ranesh pediu e deixou o aposento.
Lief já estava remexendo no bolso da jaqueta à procura das quatro partes do mapa das Quatro Irmãs. De repente, ele teve certeza do que Ranesh iria encontrar na túnica de Josef e não conseguiu esperar.
Ele jogou o conto das Quatro Irmãs nas mãos de Barda.
— Fomos enganados — ele murmurou. — O inimigo usou mais que o nome das irmãs desse conto. Ele usou a idéia e a mudou para atender aos seus propósitos. Se os Anais de Deltora tivessem sido queimados como ele ordenou, se Josef não os tivesse salvo, ninguém nunca iria saber.
Ele tirou os pedaços do mapa do bolso e, com as mãos trêmulas, os colocou na mesa à sua frente.
— Mas Josef os leu, percebeu o perigo e tentou me avisar. Talvez, no fim, até mesmo Paff tenha suspeitado.
O meu mestre tem muitos planos...
Quando Barda, Jasmine e Perdição começaram a ler, Lief juntou as partes do mapa, deu uma olhada no resultado e sentiu o rosto começar a queimar.
...mal... o centro... o coração... a cidade... de...
— Perdição, me empreste a sua faca — ele sussurrou, procurando o lápis sem ponta que tinha carregado por tanto tempo.
Perdição parou de ler com a expressão sombria. Sem dizer nada, ele tirou a faca enorme da bainha e a colocou na mesa.
Norte... para o sul. Leste... para oeste... linhas... mapa...
Lief colocou a borda reta da faca sobre o mapa e, usando-a como uma régua, desenhou uma linha entre o Ninho do Dragão e a Ilha dos Mortos. Depois, moveu a faca e traçou outra linha entre o Portal das Sombras e Del.
Todos se reuniram ao redor da mesa. A história das Quatro Irmãs estava sendo passada de mão em mão e todos os que liam olhavam fixamente para o mapa completo e para as linhas desenhadas por Lief: as linhas que se cruzavam num lugar chamado “Hira”.
Perigo... Assustador... Aqui...
— Josef disse “Hira” — Lief sussurrou. — O perigo sobre o qual ele queria me avisar não era a Irmã do Sul, de jeito nenhum. Era um perigo ainda maior, escondido no centro de Deltora. Na Cidade dos Ratos.
— Sempre me perguntei por que as pessoas foram obrigadas a sair da cidade — Perdição murmurou. — Se quisesse, o Senhor das Sombras poderia tê-las transformado em escravas onde estavam. Mas agora entendo. Ele queria a cidade para seus próprios propósitos.
— Era o lugar que ele queria — Lief afirmou. — O lugar em que as linhas das irmãs iriam se cruzar.
Ranesh irrompeu no aposento com um papel na mão. Ele estava muito pálido e seu olhar, perturbado.
— Tinha uma coisa na túnica de Josef! — ele disse ofegante. — É... Então ele viu os pedaços do mapa na mesa e colocou o papel ao lado deles. Como Lief tinha imaginado, era uma cópia do mapa dos Territórios dos Dragões de Doran. As posições de todas as irmãs tinham sido marcadas com a letra de Josef. E entre elas Josef tinha desenhado as mesmas linhas que Lief tinha acabado de traçar: linhas que se encontravam no território da opala, em Hira, na Cidade dos Ratos.
Lief juntou as mãos e tentou fazer com que parassem de tremer.
— Era isso que Josef queria que eu visse — ele disse. — Ele mandou me chamar com urgência não para me ajudar a destruir a última irmã, como eu e Paff pensamos, mas para me impedir. Ele sabia que, se a voz da última irmã fosse silenciada, um terror pior do que a fome cairia sobre Deltora.
— Então agora sabemos por que a Irmã do Sul foi destruída com tanta facilidade — Jasmine disse em voz baixa. — Com as outras três irmãs fora do caminho e o Farol de Bone Point recuperado, o jogo do Senhor das Sombras de nos fazer morrer de fome tinha chegado ao fim. Ele estava impaciente para montar sua armadilha. Então, retirou o poder da última irmã e abandonou Paff para que lutasse sozinha.
Com a expressão dura como pedra, Barda leu em voz alta os versos escritos no mapa.
Quatro irmãs, bruxas do mal, Trazem à terra um longo e triste final Mas a morte chegará depressa, se você ousar Encontrar o esconderijo das irmãs Como rios secretos suas canções correm Para manter o perigo oculto nas profundezas E, se finalmente suas vozes se calarem, A terra encontrará a paz, por fim.
— Encontrará a paz, por fim — Zeean murmurou. E, de repente as palavras que tinham parecido cheias de esperança se tornaram assustadoras.
— Mas Deltora não é uma pequena ilha! — Gla-Thon exclamou, jogando o manuscrito de Josef na mesa. — Nenhuma besta que estivesse no centro, por mais terrível que fosse, poderia destruir toda essa terra!
— Você está certa, Gla-Thon — Gers grunhiu. — Ele que tente invadir o território dos Jalis!
— O Senhor das Sombras não é conhecido por fazer ameaças em vão — Perdição tornou sério. Ele se virou para Steven, que estava calado desde que tinha visto o mapa.
— Precisamos ir imediatamente para a Cidade dos Ratos — ele disse. — As abelhas e Mellow seriam nosso meio mais rápido. Você pode...?
Steven assentiu com um gesto rápido de cabeça. Seus punhos estavam fechados, seus olhos dourados tinham um brilho castanho.
— O pomar de nossa mãe fica na fronteira da Planície dos Ratos — ele disse em voz baixa. — Mellow vai voar como o vento para defendê-lo.
Eu serei mais rápido, rei de Deltora. E a Lua cheia está nascendo.
A voz do dragão do topázio encheu a mente de Lief. O topázio ficou quente sob suas mãos. Ele sentiu Barda e Jasmine junto dele e se virou para Perdição.
— Você vai com Steven — ele murmurou. — Leve tantos daqui quantos puder, com todas as armas que conseguir carregar. Vamos nos encontrar lá.
O dragão voou mais depressa do que o vento, e suas escamas douradas brilhavam na luz da imensa lua que acabava de nascer. O reino deslizava debaixo dele. As primeiras pequenas luzes surgiam nas vilas e cidades onde as pessoas estavam sentadas ao lado das fogueiras, banhavam os filhos ou preparavam suas refeições simples. Sem saber o que estava acontecendo além da segurança de suas paredes.
Colados ao pescoço do dragão, Lief, Barda e Jasmine só pensavam em se segurar. O frio ficou mais forte à medida que se aproximavam do interior. O vento congelante os atacava sem piedade.
Estamos cruzando a fronteira e entrando no território da opala. Quebrei meu juramento.
A voz do dragão sibilou na mente de Lief. Desafio e arrependimento estavam misturados nela, mas não havia sinal de medo.
Se o dragão da opala surgir, vou explicar, Lief respondeu.
O dragão resfolegou, num divertimento sombrio.
A terra abaixo deles estava mais plana e mais deserta. Não havia mais vilas e cidades. Na distância, a água brilhava.
“Uma curva do rio Largo”, Lief pensou. “Já estamos quase lá.”
Seus dentes começaram a bater outra vez, seus cabelos se arrepiaram na nuca quando ele, lentamente, tomou consciência de um som que surgia, mais forte do que o vento: um estrondo profundo e ameaçador.
Logo depois Jasmine gritou e as costas cobertas de escamas do dragão se retorceram sob as mãos de Lief.
— O que você está vendo? — Lief indagou aos gritos. — Jasmine? Então, ele também viu. E quase não conseguiu mais respirar. Além do brilho da água, alguma coisa enorme estava se erguendo: uma coisa imensa e redonda como um reflexo horrendo da Lua dourada.
— Pelos céus, o que é isso? — Barda gritou com a voz rouca.
O dragão soltou um grunhido do fundo da garganta e voou mais rápido. Naquele momento, a curva do rio estava diretamente adiante deles. E eles puderam ver, fechada na curva, a bolha amarela, gigantesca e venenosa que subia pelas ruínas da Cidade dos Ratos, empurrando os prédios destruídos para o lado como se fossem brinquedos de criança. Alguns ratos estavam fugindo das ruínas, guinchando fortemente enquanto corriam.
Lief olhou com uma fascinação aterrorizada à medida que a bolha inchava e crescia.
Como rios secretos suas canções correm
Para manter o perigo oculto nas profundezas
Mas os versos da canção das irmãs não fluíam mais pela terra. E, como a besta do conto, como o palhaço na caixa de surpresas de Barda, a vingança do Senhor das Sombras estava surgindo de sua longa escuridão, pois agora não havia nada para impedi-la.
Em um pesadelo, Lief viu a água atrás dele. Eles estavam cruzando o Rio Largo. E a coisa que surgia das ruínas da Cidade ainda estava crescendo, inchando da terra como uma bolha assustadora.
Até onde quer que eu vá...
A voz do dragão sumiu quando ouviram um rugido de trovão vindo do outro lado da planície.
Alguma coisa estava se movendo rapidamente na direção deles, com cores do arco-íris, cintilando sob a luz da Lua.
No mesmo instante, o dragão desceu para a terra num mergulho louco. Lief, Barda e Jasmine gritaram quando o chão se aproximou numa velocidade incontrolável e eles finalmente pararam. Tontos e fracos, com os olhos cheios de água, eles se esforçaram para se livrar das cordas que os ligavam.
— Depressa! — o dragão rugiu. Ele bateu as patas nas cordas, cortando-as como se fossem fios de linha.
Os companheiros caíram no chão duro e rolaram para o lado. O dragão estendeu as asas e se preparou para levantar vôo novamente.
— Não! — Lief gritou. — Não voe! Fique parado! Fique no chão!
— E deixar a besta pensar que tenho medo dela? Nunca! — rosnou o dragão soltando vapor de suas mandíbulas assustadoras.
— Em nome de Doran, eu lhe imploro! — Lief exclamou desesperadamente.
O dragão grunhiu, meio que dobrou as asas e ficou quieto.
O dragão da opala estava quase sobre eles. Ele era gigantesco: até mesmo maior do que o dragão da esmeralda. Os espinhos em seu pescoço estavam eriçados, o bater de suas asas parecia o retumbar de trovões, e o vento forte desprendido por elas martelava o chão.
A opala no Cinturão queimava como o fogo do arco-íris. Lief o apertou com os dedos e mandou uma mensagem com toda a força de seu ser.
Dragão da opala, não ataque! O dragão do topázio está aqui obedecendo a um desejo meu.
Ele sufocou um grito quando a fúria cega e vingativa do dragão da opala o atravessou como um raio. Invocando todas as suas forças, tentou outra vez.
Dragão, a sua raiva o está deixando cego. Um grande mal está crescendo em seu território. Um mal muito maior do que o dragão que atravessou sua fronteira. Abra os olhos e veja! Em nome do Amigodosdragões, eu imploro!
Novamente, o nome de Doran, o Amigo dos dragões, teve o efeito de um passe de mágica. Lief sentiu o dragão da opala hesitar, e o vento em suas costas diminuir quando a besta se acalmou.
Ele ficou de joelhos, olhou para a frente e gemeu alto.
A bolha tinha inchado ainda mais. Seu volume terrível agora cobria totalmente a cidade arruinada e tinha a altura do palácio de Del.
Lief olhou para ela fixamente, numa fascinação apavorada. Em sua parte inferior, estava o mesmo amarelo venenoso de antes, mas no alto ela era mais clara, estreita e brilhante. Como se... como se...
Com um ruído horripilante e áspero, o alto da bolha se abriu. Uma fonte de líquido malcheiroso e cinzento, grosso como lodo, espirrou para o ar.
Lief ouviu os dragões rugirem, Barda e Jasmine gritarem enojados, atrás dele. E teve certeza de ouvir outra coisa: o som de um riso distante e maléfico.
O líquido que jorrava começou a correr para o chão e se espalhou para fora numa torrente grossa e cinzenta.
— O que foi? — Jasmine perguntou com voz aguda e os olhos arregalados de terror.
Um rato de olhos vermelhos, mais ousado que os outros, disparou para o líquido cinzento, talvez esperando que fosse alguma coisa boa para comer. No momento em que o líquido o tocou, ele ficou rígido e caiu agitando as pernas convulsivamente.
Os companheiros observaram horrorizados, enquanto o líquido cinzento cobria o corpo trêmulo do rato e continuava a escorrer, movendo-se muito depressa. Os outros ratos gritaram e fugiram, espalhando-se pela planície.
— É venenoso — Barda sussurrou.
— E está vivo — Lief murmurou. — E está crescendo.
Ele sabia que era verdade. O líquido grosso e cinzento estava aumentando, cada vez mais se alimentando da terra e do ar.
Houve uma labareda quando o dragão da opala atacou rugindo o círculo cinzento que se espalhava. Chamas multicoloridas queimaram um grande pedaço da borda da inundação. O pedaço enrijeceu e endureceu. A massa cinzenta de líquido se fechou à sua volta e continuou a fluir, cobrindo o trecho queimado rapidamente como tinha acontecido com o rato.
O dragão da opala girou e rugiu outra vez. Mais uma vez, as chamas atingiram o chão em movimento e novamente o local queimado foi coberto num instante e o círculo cinzento ficou ainda maior.
— Vamos voltar para o ar, rei de Deltora — o dragão do topázio murmurou, assistindo com calma aos esforços de seu rival. — A besta do arco-íris está muito ocupada. Ela não vai nos perturbar. E o veneno cinzento está se espalhando depressa. Esse local não vai ser seguro por muito tempo.
Era evidente que a criatura tinha razão. Os companheiros subiram para seu pescoço com esforço e, momentos depois, estavam respirando com dificuldade no ar frio, segurando-se com força para não cair enquanto o dragão subia para o céu.
A besta voou um pouco para além do rio, virou-se e pairou no ar.
— Felizmente não nos demoramos mais — ele comentou. Tremendo, Lief, Barda e Jasmine olharam para baixo.
Nos poucos minutos que tinham se passado desde que o dragão levantou vôo, o lugar onde tinham estado se tornou um lago cinzento. Toda a terra que acompanhava a curva do rio estava quase totalmente coberta. Empurrados para as suas margens, centenas de ratos tinham começado a pular na água, guinchando de terror. Outros ratos estavam correndo para salvar suas vidas pela planície em direção ao norte, quase não conseguindo escapar da torrente cinzenta que se aproximava.
O dragão da opala estava voando em círculos sobre o mar cinzento, atacando-a com um arco-íris de fogo. Mas a massa cinzenta ainda estava aumentando e a cada momento parecia avançar com mais rapidez.
— Nada vai pará-la — Lief se ouviu dizer.
— O rio vai conseguir — Barda disse com firmeza. — A Planície dos Ratos está cercada de água por todos os lados. E perder a planície não é importante. Não há lugar mais sombrio em toda a Deltora.
— Uma grande verdade — disse o dragão do topázio, soltando um grande bocejo. — É um território que não vale a pena salvar.
— Você sentiria a mesma coisa se fosse o seu? — Jasmine perguntou irritada.
O dragão do topázio piscou.
A massa cinzenta atingiu o rio e começou a se derramar sobre as margens para dentro da água. E, por incrível que pareça, a água parecia fortalecê-la. O círculo cinza parecia dobrar quase que no mesmo instante. A água ondulante se achatava e engrossava. Ratos, guinchando e nadando, eram atingidos e engolidos.
Barda praguejou, sem acreditar.
O dragão do topázio rugiu e arqueou o pescoço. Chamas douradas escapavam de suas mandíbulas furiosas, secando o vapor cinzento que se espalhava sobre as margens do rio abaixo.
Mas Lief estava em silêncio, olhando para o centro do círculo.
Naquele momento, a bolha amarela estava escondida debaixo de um cobertor ondulado e cinzento. As formas das ruínas da Cidade dos Ratos podiam ser vistas ao redor dele, mas apenas as formas. Cada prédio destruído, cada torre caída, cada tijolo e pedra estavam cobertos por um manto cinza e espesso.
E ali a massa cinzenta não se mexia e nem brilhava mais sob a luz da Lua, mas se endurecia.
A visão de pesadelo de Lief voltou para sua mente e seu sangue gelou.
A terra cinzenta e deserta. As árvores esqueléticas. O rio cinzento com sua água espessa como lama e grandes peixes cinza mortos na superfície enrugada... Criaturas monstruosas gritando no céu...
Não eram as Terras das Sombras, mas Deltora. Agora ele sabia disso.
Aquele era um monstro contra o qual não podiam lutar. A torrente cinzenta continuaria a se espalhar, iria engolir rios, florestas e planícies. Iria cobrir cidades, e vilas, e fazendas, e vales, e iria remover colinas.
Nada que estivesse em seu caminho seria poupado. A morte viria igualmente para as ferozes Bestas da Areia e para as gentis Kins, para os Grippers comedores de carne e para os assombrosos Lírios da Vida.
Parte da massa cinzenta iria envelhecer e endurecer, transformando rios em lamaçais, prendendo igualmente casas, bestas, plantações, árvores e pessoas numa casca de pedra. O resto continuaria a avançar.
As pessoas que conseguissem fugir seriam obrigadas a ir para a costa, brigariam por barcos ou lutariam inutilmente na beira da água como os ratos nas margens do rio. Ou subiriam as montanhas e esperariam, congelando nos picos, enquanto a massa cinzenta continuaria a subir...
E, no fim, Deltora, depois de perder toda a sua variedade e singularidade para sempre, seria uma grande planície fria e cinzenta.
Era isso o que a maldade e o desejo de vingança do Senhor das Sombras tinha planejado se o rei esperado aparecesse, recuperasse o Cinturão de Deltora e livrasse o reino da tirania.
Nunca tenho apenas um plano...
O Senhor das Sombras sabia que esse novo rei certamente tentaria destruir o cristal mágico, que era o último elo entre Deltora e as Terras das Sombras. Ele sabia que, ajudado pelo Cinturão, o rei seria poderoso o bastante para conseguir seu intento.
Assim, o cristal foi destinado a revelar a trama das Quatro Irmãs quando fosse destruído. Então o rei que tinha ousado desafiar o Senhor das Sombras iria descobrir por que seu reino estava passando fome.
Ele saberia da existência das Quatro Irmãs.
E, claro, procuraria destruí-las.
Lief rangeu os dentes quando, uma por uma, as etapas do plano se encaixaram no lugar.
Ele tinha engolido a isca oferecida para ele sem pensar duas vezes. O inimigo tinha preparado a armadilha para ele, então o desafiou e o obrigou a entrar nela.
Olhando para trás, Lief quase não conseguia acreditar que tinha sido tão facilmente enganado.
Ele não se perguntou nenhuma vez por que o mapa que mostrava a localização das irmãs não tinha sido destruído, mas sim rasgado em quatro partes. Nenhuma vez se perguntou por que cada pedaço tinha sido escondido com uma irmã para ser facilmente encontrado assim que ela e seu guardião tivessem sido destruídos.
Nenhuma vez ele pensou que os versos colocados no mapa poderiam ter um duplo significado.
E, nenhuma vez ele tinha perguntado por que a pedra que protegia a última irmã não exibia uma advertência sensata, mas sim um desafio provocador que quase certamente o faria dar o último passo fatal.
Mas agora, tarde demais, ele entendeu os motivos para todos esses atos. E viu que, desde o começo, o Senhor das Sombras tinha arranjado as coisas para que Deltora fosse dele, não importava o que acontecesse.
Uma raiva inútil e furiosa cresceu dentro dele.
— Foi um prazer para o inimigo nos fazer escolher, sem saber, de que forma o reino iria morrer — ele murmurou. — Se falhássemos em nossa busca, a terra iria morrer lentamente. Se tivéssemos êxito, a morte viria mais depressa. De um jeito ou de outro, o Senhor das Sombras venceria.
E, quando essas últimas palavras deixaram seus lábios, o primeiro peixe morto flutuou na superfície ondulada do rio que morria e, com gritos e uivos estranhos, os sete Ak-Babas vieram voando do norte.
Com a raiva se transformando num terror entorpecido, Lief viu o dragão da opala se virar para enfrentar as monstruosas aves barulhentas que se moviam rapidamente no horizonte. Ele sentiu os músculos do dragão do topázio estremecerem violentamente debaixo dele. Então a criatura torceu o pescoço, virou a terrível cabeça, e Lief se viu observado pelo insondável olho achatado e dourado.
— Não há dúvida de que o inimigo sentiu nossos ataques à torrente cinzenta — o dragão sussurrou. — Ele mandou suas criaturas matadoras para protegê-la. Ele deve estar usando uma feitiçaria poderosa para lutar contra o poder do Cinturão de Deltora.
Ele olhou para a parte seca da margem do rio abaixo e resfolegou.
— Já houve bastante prejuízo. Mas parece que o inimigo tem medo de dragões. Até dois são demais para ele. Preciso deixar você e seus companheiros lá embaixo, rei de Deltora. Quando o grupo terminar com o dragão da opala, vai vir para cima de mim.
— Não! — Lief exclamou. — Ainda há tempo para que você fuja daqui. Vire e...
O olho dourado cintilou.
— Eu prefiro morrer lutando a ter de fugir — o dragão retrucou. — E estou cansado de me esconder.
— E, quando a torrente cinzenta se espalhar, não vai haver mesmo nenhum lugar para quem quer que seja se esconder! — Jasmine gritou quando Kree grasnou agitado, voando em círculos no céu acima dela. — Você precisa nos manter com você, dragão! O Cinturão vai ajudar você... e nós podemos lutar!
— Isso mesmo! — Barda ajuntou, empunhando a espada.
— Não! — Lief gritou de novo desesperado. — Barda, Jasmine... Ele sentiu a mão de Jasmine se fechar sobre a dele e viu o brilho do sorriso selvagem de Barda.
— Nós sabemos muito bem que você não vai abandonar o dragão agora, Lief — Jasmine gritou. — E não vamos abandonar você. Estamos juntos desde o começo disso e vamos estar juntos no fim.
— E se quiser ouvir o conselho de um soldado, dragão, você não vai esperar para ser atacado — Barda rugiu. — Você vai avançar e lutar com o seu irmão!
— A besta da opala não é meu irmão — o dragão rosnou.
— Ele é mais seu irmão do que os sete Ak-Babas! — Jasmine gritou furiosa. — Você vai permitir que ele seja despedaçado enquanto espera a sua vez?
O dragão mostrou suas terríveis presas. Sua língua negra tremeu e então seus olhos pareceram brilhar.
— Tudo bem — ele grunhiu. — Juntos vamos lutar ao lado do dragão da opala e juntos vamos morrer. Essa será a nossa última batalha. Mas, enquanto vivermos, vamos causar todo o prejuízo possível para o inimigo, por nosso reino condenado, por nossos ancestrais e por nossos jovens, que agora nunca vão poder viver.
Ele se atirou para frente e voou por cima do mar cinzento na direção dos Ak-Babas.
E, quando Lief empunhou a espada e fechou os olhos que ardiam com força, ele viu por trás das pálpebras palavras do Cinturão de Deltora: palavras que sempre o encheram de medo e agora tinham um significado novo e terrível para ele.
O livro chamava o inimigo de “ele”. O escritor desconhecido tinha compreendido uma coisa que o próprio Lief nunca tinha aceitado inteiramente até aquele momento.
Não importa de que jeito tinha começado, o Senhor das Sombras agora era muito mais — ou talvez muito menos — que um tirano cruel que também era mestre em feitiçaria.
Talvez muito tempo atrás ele tivesse sido apenas um feiticeiro com um casaco de sombras e um barco de uma vela cinzenta com uma marca vermelha. Ele tinha sentido medo, sentido o sabor da derrota e navegado pelo mar de prata para encontrar novas terras para conquistar.
Mas, se ele era humano então, já não o era mais. Inveja, ódio e maldade tinham acabado com sua humanidade há muito tempo e a tinha transformado em pó. Tudo o que restou foram lembranças.
“Ele” se transformou em uma “coisa”, uma forma para o mal que se alimentava de poder, que destruía e corrompia tudo o que tocava. Uma força que nunca iria morrer.
Tenho muitos planos... Planos dentro de planos...
“Como pude pensar que podia derrotar o Senhor das Sombras?”, Lief pensou com amargura. “Durante milhares de anos, ele trabalhou para atingir seu objetivo. E nós lutamos em sua rede cegamente, estupidamente, repetindo os erros de nossos ancestrais. Em sua época, Doran, o Amigo dos Dragões, foi chamado de louco. Em nossa época, Josef foi insultado e evitado. Vezes sem fim ignoramos as lições da história...”
Aprenda as lições da história... O desespero é o inimigo. Não deixe que ele o derrote...
Os rugidos dos dragões pareciam trovões. Os gritos de gelar o sangue dos sete Ak-Babas cortaram o ar. Jasmine e Barda estavam gritando. Kree guinchava. Eles estavam sendo atingidos por um vento cheio de fumaça e cheiro forte de cabelos queimados, poeira e carne podre, que era o cheiro dos Ak-Babas.
Mas Lief não escutava, não cheirava e não sentia mais nada. A sua mente estava voltada para dentro e sua pele formigava. Porque, quando a voz fraca e cautelosa de Zeean desapareceu, outra voz tomou o seu lugar.
...parece que o inimigo tem medo de dragões. Até dois são demais para ele...
O Senhor das Sombras tinha pensado em tudo, mas tinha se esquecido dos dragões.
Lief abriu os olhos. Os Ak-Babas já estavam muito perto. Ele podia ver seus olhos que pareciam poças ardentes de loucura. Podia ver suas garras, curvas e prontas para rasgar e destruir. Podia ver os bicos abertos, os dentes afiados e brilhantes.
Ele apertou a ametista com os dedos e chamou, em silêncio, mas com toda a força.
Veritas!
E, enquanto pensava no nome, mais palavras se seguiram em sua mente. Ele percebeu que estava se lembrando das palavras estranhas e diferentes que tinham fluido para o seu interior vindas da pedra da alma de Doran, quando ele a pressionou para dentro da terra.
Veritas hopian forta fortuna Fidelis honora joyeu...
E, de repente, compreendeu o que elas significavam. Não era uma frase, mas uma lista de nomes. Os mais importantes da vida de Doran.
Ele pressionou a mão livre no Cinturão mais uma vez e passou os dedos em todas as pedras.
Veritas! Hopian! Forta! Fortuna! Fidelis! Honora! Joyeu! Venham em nossa ajuda, eu imploro! Por Doran! Pelo reino!
Ele sentiu o dragão do topázio se retorcer atrás ele, viu o dragão da opala se virar de repente com os olhos de arco-íris ardentes.
E então os sete Ak-Babas estavam em cima deles. Eles os estavam cercando, uivando como lobos selvagens, rosnando e mordendo, com seus dentes, as garras atacando e rasgando.
Eles agiam em grupo e atacavam de todos os lados, de cima, de baixo. Três ou quatro distraíam os inimigos com ataques ferozes enquanto os outros se aproximavam rapidamente sob a proteção das asas deles.
Eles eram maldosos, corajosos, incansáveis. Mostravam as cicatrizes de inúmeras batalhas e estavam cheios da esperteza que o tempo lhes tinha dado. Mas raramente tinham enfrentado dois dragões ao mesmo tempo e nunca tinham lutado com um dragão ajudado por espadas e pelo Cinturão de Deltora.
Eles gritaram com raiva quando os dragões os atacaram com as patas e os queimaram com o fogo. Eles uivaram quando Lief, Barda e Jasmine os golpearam, impedindo que se aproximassem. Mergulhando sobre eles de cima, tão corajoso quanto os companheiros, Kree os atacava com o bico afiado nos pescoços, nas cabeças, distraindo-os e enraivecendo-os ainda mais.
Então um deles caiu com a garganta cortada por um único golpe da garra do dragão da opala. Gritando e se torcendo, ele caiu na terra e foi quase instantaneamente engolido pela torrente cinzenta.
Os dragões rugiram em triunfo. Lief, Barda e Jasmine deram vivas, mas os Ak-Babas restantes atacaram, gritando ferozmente, e o rugido do dragão da opala se tornou um grito de agonia quando a pele macia de seu pescoço foi perfurada pelos dentes finos como agulhas e pelas garras afiadas.
Um Ak-Baba com a cabeça manchada estava colado ao pescoço do dragão como se fosse um morcego gigante. Sangue escorria dos lados do bico aberto e pingava sobre seus pés. Uivando por causa do cheiro de sangue, os outros Ak-Babas se aproximaram. Em segundos, o dragão do arco-íris estava se debatendo no ar com o corpo quase escondido debaixo da massa furiosa dos pescoços que se retorciam como serpentes e das asas enormes e agitadas.
— Ajude-o! — Jasmine gritou. — Ah, depressa!
— Ele está acabado — gritou o dragão do topázio. — É assim que eles acabam com tudo.
— Não! — Lief rugiu. — Passe por baixo dele!
O dragão virou e voou para baixo da massa de corpos furiosos. Agora, o Ak-Baba de cabeça manchada estava diretamente acima deles com as asas ásperas envoltas no pescoço do dragão e o corpo assustador colado na pele dele.
Lief e Barda hesitaram, com medo de também atingir o dragão com suas espadas, e não só a besta que o atacava.
Mas Jasmine saltou para cima, equilibrando-se no pescoço do dragão do topázio com a mesma leveza e facilidade com que saltava dos galhos de uma árvore derrubada pela tempestade nas Florestas do Silêncio. Sua adaga cintilou quando ela estendeu a mão para cima e a mergulhou no pescoço do Ak-Baba, bem abaixo da cabeça.
O pássaro enorme ficou rijo e soltou um terrível som gorgolejante.
— Vá! — Barda rugiu.
Jasmine arrancou a adaga, Lief a segurou com firmeza pela cintura e a puxou para baixo enquanto o dragão do topázio se afastava depressa e o Ak-Baba de cabeça manchada caía como uma pedra.
Não houve momento de triunfo dessa vez. Libertado de seu atacante feroz, o dragão da opala ficou girando no ar, atacando e rugindo fogo para as outras bestas que rasgavam o seu corpo. Mas seus movimentos eram desajeitados, pois ele estava enfraquecendo.
E o dragão do topázio também estava ficando mais fraco. Sua força enorme tinha se esgotado na luta terrível com a besta de duas caras e com a viagem à Planície dos Ratos. Velhas feridas estavam começando a derramar sangue em todo o seu corpo dourado.
Os Ak-Babas sabiam disso. Eles podiam ver as batidas irregulares das asas da criatura e podiam sentir o cheiro de sangue.
Gritando, eles abandonaram o corpo do dragão da opala, que se debatia e se apressaram para o ataque final. Restavam apenas cinco, mas eles estavam tão fortes, ferozes e sedentos de sangue como no início.
Aos gritos, eles voaram através do fogo dourado e atingiram o dragão do topázio em cheio. Ele cambaleou, se inclinou e perdeu altura, batendo as asas desesperadamente e agitando a cauda em ponta. Os Ak-Babas o perseguiram, cercaram e atacaram novamente.
— Acho que desta vez nós perdemos — o dragão do topázio grunhiu com a voz áspera. — Mas vamos tentar derrubar mais um deles.
Naquele momento, ouviu-se um rugido no alto, e o céu pareceu explodir em uma massa ardente de estrelas cadentes. Os Ak-Babas se espalharam e uivaram assustados. Lief, Barda e Jasmine se encolheram junto das escamas do dragão, tossindo na névoa de fumaça que tinha o mau cheiro de cabelos e tecido queimados. E, dos céus surgiu o dragão do lápis-lazúli com as asas cobertas de estrelas, soltando fogo das mandíbulas abertas.
Os Ak-Babas giraram no ar e se viraram para enfrentá-lo com os pescoços de serpente esticados, bicos abertos, uivando furiosos. Então, de repente, um deles desapareceu, arrancado do ar. Ouviu-se um estalido horrível quando seu pescoço quebrou entre os enormes maxilares vermelhos.
E, quando seu corpo sem vida foi jogado para o lado, quando o dragão do rubi gritou triunfante e os Ak-Babas restantes gritaram e uivaram desafiadores, uma bola de fogo de esmeralda rugiu através da névoa enfumaçada.
Três das bestas furiosas mergulharam. A quarta foi lenta demais e foi atingida pela bola de fogo. As penas de suas asas se incendiaram e ela mergulhou para o chão, deixando uma trilha de fogo.
Agora restavam apenas três Ak-Babas. Através da fumaça e do fogo, eles podiam ver cinco figuras grandes e cintilantes, cinco conjuntos de presas e caudas agitadas. Eles gritaram desafiadores, estudando suas possibilidades.
Mas, quando ouviram ainda outro rugido forte e um jato de chamas púrpura iluminou o céu no oeste, eles se viraram no ar e fugiram.
E os dragões não os seguiram, pois na luz da grande Lua dourada eles viram a torrente cinza abaixo. Eles notaram que ela se espalhava diante de seus olhos, puderam sentir seu frio mortal e souberam o que precisavam fazer.
Sem palavras, Lief, Barda e Jasmine se seguraram no dragão do topázio enquanto ele voava para tomar seu lugar no círculo de dragões que cercava o mar cinzento. Os três observaram admirados, quando os dragões perderam altitude e ficaram planando no ar.
Então, sem uma palavra ou sinal, os dragões rugiram.
Chamas escaparam de suas mandíbulas. Chamas verdes, douradas e vermelhas. Chamas roxas e prateadas, azuis cheias de estrelas e chamas que queimavam com todas as cores do arco-íris.
...parece que o inimigo tem medo de dragões. Até dois são demais para ele...
“E o que dizer de seis?”, Lief pensou. Então ele mudou o número para sete, pois viu o bebê dragão do diamante muito sério, voando ao lado de Veritas, juntando sua pequena chama prateada ao fogo.
As bordas da torrente cinzenta queimaram e escureceram e, quando o círculo foi cercado por uma larga faixa negra, os dragões começaram a se mover devagar e com paciência em direção ao centro. Sempre que respiravam, soltavam fogo; sempre que o fogo caía, a massa cinzenta queimava e morria. E nenhum dragão avançou enquanto ainda havia uma mancha cinza.
E os dragões continuaram a avançar, fechando o círculo, enquanto a Lua enorme nascia e empalidecia, e estrelas enchiam a escuridão do céu.
Aos poucos, a massa cinzenta dentro do círculo crescia mais devagar e a faixa negra do lado de fora ficava maior. Quando a carroça de Steven parou na margem enlameada do Rio Largo, as pessoas que saíram aos trambolhões para olhar admiradas, puderam ver mais negro do que cinza.
E, finalmente, os dragões estavam tão próximos uns dos outros que as pontas de suas asas se tocavam. Juntos, eles rugiam, e as cores do fogo que soltavam se misturavam em chamas de arco-íris. E, quando o último grande fogo tinha se apagado, nada restou do terror do Senhor das Sombras além de um grande círculo de cinzas escuras.
Os dragões ficaram parados no centro do círculo negro como se não quisessem dar fim àquele momento. Diamante, esmeralda, lápis-lazúli, topázio, opala, rubi e ametista, eles se uniram para apreciar seu triunfo, chorar pelo que tinha sido perdido e olhar para o futuro.
E todos os que assistiam à cena foram dominados por uma grande onda de alegria e admiração, pois viram que as asas cintilantes dos dragões eram como as pedras do Cinturão de Deltora brilhando no céu.
E foi dessa forma que o último plano do Senhor das Sombras foi derrotado pela vontade dos últimos dragões de Deltora, e o reino de Deltora estava salvo.
Nos anos que viriam, a história se tornaria uma lenda. A noite chamada de A Noite dos Dragões se tornaria o maior festival do ano, comemorado com banquetes, danças, jogos e círculos de fogos de artifício soltados no mar de prata. Crianças vestidas como Lief, Barda e Jasmine montariam dragões feitos de madeira pintada e tecidos brilhantes e, à meia-noite, uma grande fogueira seria acesa em todas as cidades e vilas no reino, e Deltora iria explodir em vivas.
Mas as pessoas que testemunharam aquela primeira Noite dos Dragões do outro lado do Rio Largo estavam espantadas demais para se alegrar. Talvez porque o destino quis assim, aconteceu que cada um dos sete territórios dos dragões de Deltora estava ali representado. Pois Steven tinha dito que Zerry, de Mere, tinha de ter seu lugar na carroça, e Zerry, os olhos escuros de admiração, estava parado com o resto, pela primeira vez sem saber o que dizer.
O próprio Lief não conseguiu mais do que agradecer em silêncio. Mas quando, finalmente, os dragões pousaram na terra, no círculo escuro que tinham formado, ele sentiu seus olhos sobre ele e sabia que tinha que falar. E sabia o que tinha que dizer.
— Meu nome é Lief — ele disse, curvando a cabeça. — Perdoem-me por usar os nomes que o Amigodosdragões levava em seu coração. Eu o fiz pelo bem de nosso reino e pelo dele.
Os dragões refletiram. Então, todos se curvaram em resposta, até mesmo o dragão da esmeralda, o dragão da honra, mesmo que um pouco rígido.
— Mas não é tão fácil — ele disse. — Você nos chamou a todos ao mesmo tempo. Agora sabemos os nomes verdadeiros uns dos outros, assim como o seu, pois qualquer tolo poderia adivinhar nossos nomes. Esse é um mal que não pode ser desfeito.
— Não pode ser desfeito — Lief concordou, engolindo em seco. — Mas talvez não seja um mal.
— Saber o verdadeiro nome de um ser é dar poder sobre esse ser — disse o dragão da esmeralda, resfolegando.
— Então todos temos poder uns sobre os outros — disse atrevido o dragão do lápis-lazúli. — E eu, para começar, não tenho a intenção de arriscar sua vingança... Honora.
— Muito sensato... Fortuna — o dragão da esmeralda sibilou, mostrando os dentes, mas se calando em seguida.
— Qual é o meu nome? — guinchou o pequeno dragão do diamante.
— O seu nome é Forta — disse Veritas. — Forta, como a sua mãe.
Ao amanhecer, três dragões voaram para Del: o dourado Fidelis, o escarlate Joyeu e Fortuna, o dragão do lápis-lazúli.
Fidelis carregava Lief, Barda e Jasmine. Joyeu carregava Perdição, Lindai e Manus. Fortuna levava Gla-Thon, Ranesh e Gers. Gers, com o rosto largo, pálido como papel, foi visto beijando o chão quando a viagem terminou, mas jurou até a morte que ele só tinha tropeçado.
Apesar de ser tão cedo e apesar de poucos em Del saberem do perigo de que sua terra tinha escapado, a cidade estava fervilhando com pessoas felizes. A maioria tinha ficado acordada a noite toda.
Primeiro, quatro Kins tinham chegado da Montanha do Medo com as bolsas cheias de pedras para curar os doentes e testar a comida restante. Então os portões da cidade se abriram sozinhos e centenas de toranos entraram, puxando carretas cheias de comida vinda do mar de prata.
Alguns bilhetes amarelos ainda voavam, pisoteados e enlameados, nas ruas. Mas ninguém os via ou dava importância para eles.
Inquietos, os dragões se agacharam juntos no gramado do palácio quando seus passageiros escorregaram de suas costas. Muito sérios, aceitaram repetidos agradecimentos e então se prepararam para partir, pois Joyeu e Fortuna se sentiam como invasores, e Fidelis sentia saudades das colinas.
— Espero poder vê-lo novamente, rei de Deltora — disse Fidelis.
— Mas não vou voltar a Del. As lanças e flechas de seus amigos não são nada agradáveis.
Gla-Thon se encolheu, mas Lindai levantou o queixo.
— Sinto ter machucado você, dragão — ela disse em voz alta e clara.
— Mas achei que você estava destruindo o palácio como antes os dragões vermelhos destruíram a antiga Capra por invejarem a sua beleza.
— É mesmo? — Fortuna perguntou com interesse.
O dragão do rubi sibilou e seus olhos vermelhos cintilaram.
— Acho que você andou ouvindo mentiras, mulher de Broome — ele disse asperamente, depois de um momento de silêncio tenso. — Meus ancestrais destruíram Capra, é verdade. Mas por que dragões iriam invejar uma pequena cidade cor-de-rosa feita de pedras? Todo o leste era território do reino dos dragões do rubi, um reino de terras, mar e céu muito mais bonitos do que qualquer cidade poderia ser.
Lief sentiu a garganta apertada e viu, no mesmo instante, que o dragão tinha razão.
Confusa, Lindai olhou para ele.
— Os capricons tinham muito orgulho da cidade que construíram — o dragão continuou com delicadeza. — Eles plantaram árvores elegantes ao seu redor, árvores enfeitadas com centenas de pequenas lanternas vermelhas. Você sabia disso, mulher de Broome?
— Ouvi falar — Lindai disse com cuidado, certamente se perguntando como iria terminar aquela conversa.
— E você sabia — o dragão perguntou ainda mais suavemente — que aquelas bonitas lanternas eram feitas de ovos de dragão? Ovos vivos, roubados dos ninhos enquanto os dragões estavam fora, pescando? Ovos que eram esvaziados e dentro dos quais então se colocavam velas para depois serem pendurados nas árvores para que a cidade ficasse bonita?
Lindai pareceu congelar onde estava. Lief sentiu o sangue sumir de seu rosto. Ele queria curvar a cabeça de vergonha, mas não conseguiu desviar o olhar dos olhos escuros do dragão.
— Por três vezes, os dragões do rubi avisaram que a matança de seus filhotes deveria parar — o dragão contou. — Mas o capricons eram orgulhosos e dominados por seu desejo de aumentar o esplendor de Capra. Os roubos aumentaram. E assim, finalmente, os dragões puseram um fim neles do seu jeito.
— Agora entendo o que aconteceu — Lindai respondeu, molhando os lábios. — Ouvi apenas um lado da história, e isso me fez julgar a sua tribo de modo injusto. Eu peço perdão.
O dragão olhou para ela sem piscar.
— Aceito suas desculpas — ele disse por fim. — E, embora eu me recuse a fazer um juramento que é um insulto aos meus ancestrais, prometo para você, de amigo para amigo, que não vou prejudicar nenhum humano em meu território, contanto que nenhum humano em meu território prejudique a mim ou aos meus.
— Obrigada — Lindai disse humilde. — Não posso pedir mais nada. E vou contar essa história a todos.
Numa manhã brilhante na primavera seguinte, quando Deltora estava cheias de flores, quando as abelhas estavam embriagadas com seu néctar e os pássaros enchiam o ar com seu canto, Jasmine colocou um vestido de seda verde, enfeitou os cabelos com flores e foi se encontrar com Lief na colina do palácio.
De mãos dadas, ele se casaram ali, diante de uma multidão nunca vista em Del. Barda estava ao lado de Lief, Marilen ao lado de Jasmine. Sharn e Perdição observavam e recordavam.
Lindai assistia à cena junto com visitantes risonhos e dançantes de Broome. Gla-Thon tinha vindo da Montanha do Medo, com a velha Fa-Glin e Pi-Ban, que tinha participado da aventura dos companheiros nas Terras das Sombras, e as gentis kins, Ailsa, Bruna, Merin e Prin.
Havia centenas de toranos liderados por Zeean, com suas túnicas flutuando como borboletas.
Manus e o povo de Raladin estavam presentes, e suas flautas enchiam o ar de alegria. Fardeep, o eremita, agora outra vez o mestre da Pousada dos Jogos, de Rithmere, batia palmas e cantava com Orwen e Joanna, campeões dos Jogos de Mere. Gers e um grupo de Jalis estavam ali orgulhosamente com Hellena, Claw e Brianne, lutadores da Resistência das Terras das Sombras.
Todos os homens e mulheres da velha Resistência estavam presentes. E todos os prisioneiros libertados das Terras das Sombras estavam ali. E Zerry, o aprendiz de mágico dos Mascarados, agora assistente-chefe do novo mestre dos estábulos do palácio, usando roupas novas para a comemoração, certificou-se de que Honey, Bella e Swift vissem tudo o que se passava.
Todos os amigos que os companheiros fizeram em sua jornada estavam presentes para lhes desejar felicidades, de Tira de Noradz a Steven e à Rainha Abelha de Plains, de Bede e Mariette, do Portal das Sombras, a Nanion e Ethena, de D’Or.
Até Tom, o comerciante, tinha tirado férias em honra do grande acontecimento e apareceu em roupas vistosas com a irmã Ava apoiada em seu braço.
E os dragões Veritas, Forta, Hopian, Honora, Fortuna, Fidelis e Joyeu circulavam no céu.
Mas para Lief e Jasmine era como se estivessem sozinhos, pois os dois estavam cumprindo o maior desejo de seus corações.
No futuro, enquanto o pequeno Josef dormia no berço ao lado dela, Marilen iria escrever a história de seu casamento nos Anais de Deltora, porque ela agora era a bibliotecária do palácio. Ranesh tinha muito o que fazer, uma vez que Perdição tinha partido para lugares desconhecidos. Perdição queria esticar “as pernas e a mente”, como ele tinha dito, e descobrir se era verdade que um dragão pode pôr ovos sem um companheiro, se a necessidade surgir. Ele os encontraria em Broome, no verão, para o casamento de Barda e Lindai. Ele disse que conhecia as comemorações de Broome e não as perderia por nada deste mundo.
E assim a vida continuou em Deltora, e a vida era boa.
Barda e Lindai tiveram seis filhos, todos mais altos que os pais e muito parecidos, como se fossem gêmeos.
Lief e Jasmine tiveram uma filha, Arma, e dois gêmeos, Jarred e Endon.
E, às vezes, Perdição, quando voltava para casa de uma de suas muitas viagens e silenciosamente observava os meninos brincarem, se lembrava de dois outros meninos correndo pelos jardins do palácio, muito tempo atrás. E sorria.
Com Jasmine ao seu lado, Lief governou o reino durante muito tempo com sabedoria. Mas ele nunca se esqueceu de que tinha sido um homem do povo e que a confiança nele era a fonte de seu poder. Ele também não esqueceu que o inimigo, embora derrotado, não tinha sido destruído. Lief sabia que o inimigo era esperto e astuto e que, para sua raiva e inveja, mil anos eram como um piscar de olhos. Assim, sempre usava o Cinturão de Deltora e nunca o deixava fora de sua vista.
Emily Rodda
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