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A IRMÃ DOS OLHOS VERDES / Erle Stanley Gardner
A IRMÃ DOS OLHOS VERDES / Erle Stanley Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A IRMÃ DOS OLHOS VERDES

 

Della Street, secretária confidencial de Perry Mason, entregou ao advogado um bilhete de visita oblongo gravado e perfumado.

- Se vai trabalhar para esta mulher, é melhor exigir sinal.

- Por outras palavras, não simpatiza com ela - deduziu Mason.

- Eu não disse isso.

- Mas não simpatiza?

- Desconfio que ela lhe cortava o coração por trinta e sete cêntimos, se é o que pretende saber.

- Sylvia Bain Atwood - leu em voz alta, examinando o bilhete. - Miss ou Mrs.?

- É Mrs. Atwood e os olhos verdes tão frios como uma caixa registadora - informou Della. - Por outro lado, as suas maneiras constituem uma tentativa puramente sintética para atenuar a expressão do olhar. Calculo que toda a sua vida tem sido assim.

- Que pretende?

- É uma questão de negócios - esclareceu, imitando o tom afectado da cliente. - Um assunto demasiado complicado, que só se pode discutir com um espírito treinado.

- É desse género, hem?

- Exacto. Muito pretensiosa. Muito altiva. Muito arrogante. Habituada, sem margem para dúvidas, a frequentar uma camada social diferente daquela em que se movem as secretárias.

- Está bem. - Mason soltou uma gargalhada.- Mande-a lá entrar.

- Vai-lhe apontar os olhos verdes e começar a contorcer-se e ronronar como uma gata disposta a roçar-se-lhe pela perna.

- Forneceu-me uma descrição muito completa de uma cliente que provavelmente não me vai agradar. Vejamos como ela é.

Della Street saiu para a antecâmara e reapareceu com Sylvia Bain Atwood.

Os olhos verdes moveram-se fugazmente de cima para baixo, numa apreciação rápida, e as pálpebras baixaram-se com modéstia afectada.

- Tenho certa relutância em o procurar com um problema tão simples e insignificante como este, Mr. Mason, mas meu pai costumava dizer que, em caso de necessidade, devemos recorrer aos melhores profissionais.

- Obrigado pelo elogio - agradeceu o advogado, apertando a mão que ela estendia. - Queira sentar-se e explicar como lhe posso ser útil.

Os olhos verdes voltaram a descrever a trajectória vertical descendente de apreciação, após o que Mrs. Atwood se instalou na confortável poltrona destinada aos visitantes. Uma mirada friamente hostil a Della Street deixou transparecer sem reservas o desagrado que a sua presença lhe provocava. Por fim, mudou de posição em movimentos particularmente felinos e assumiu a que se lhe afigurou mais cómoda.

- Exponha o que pretende de mim - acrescentou Mason. - Depois, dir-lhe-ei se a posso ajudar, e não se preocupe com Miss Street. Costuma assistir às consultas, para anotar os pormenores, que são guardados num ficheiro confidencial fechado à chave, e ajudar-me a recordar coisas que me podem passar.

- O meu problema é muito simples - salientou Mrs. Atwood, em tom quase de desdém.

- Nesse caso - sugeriu ele, trocando um olhar malicioso com a secretária-, não necessita dos meus préstimos. Já que se trata de um assunto tão banal como afirma, aconselho-a a procurar um colega menos atarefado do que eu, o qual...

- Oh, não, não, não, não, não! - interrompeu ela, com veemência. - Por favor, Mr. Mason! É... quero eu dizer que será simples para si, mas pode confundir qualquer outra pessoa.

- O mais prático é descrever de que se trata.

- Diz respeito à minha família.

- A senhora é viúva?

- Sou.

- Tem filhos?

- Não.

- Portanto, a sua família...

- Consiste em minha irmã, Hattie Bain, meu irmão, Jarrett Bain, sua mulher, Phoebe, e meu pai, Ned Bain, actualmente retido em casa. Tem problemas cardíacos e precisa de descanso e silêncio absolutos.

- Continue.

- Eu sou naturalmente do tipo aventureiro - sublinhou Mrs. Atwood, com uma expressão de desafio.

- Siga, por favor.

- Por seu turno, Hattie é do género caseiro. A aventureira fui sempre eu. Ela ficou em casa para cuidar da família. Casei e depois meu marido morreu e deixou-me bens substanciais.

- E regressou a casa para viver com a família?

- Que ideia! Acho o ambiente doméstico... como direi... constrangedor. Gosto de viver à minha maneira. Tenho um apartamento aqui, na cidade, mas sou muito apegada à família e mantenho contacto íntimo com ela.

- Sua mãe?...

- Morreu há cerca de um ano, após doença prolongada.

Della Street observava, em silêncio, Mason o qual, de lábios comprimidos, olhava a cliente com ar pensativo - Quem se ocupou dela durante esse período?

- Hattie. Não compreendo porque não recorreu a uma enfermeira, mas nem quis ouvir falar nisso. Tinha de ser ela a fazer tudo. É a doméstica da família, a... talvez eu não devesse dizer isto, mas é pau para toda a colher, o tipo infatigável.

- Ainda bem para sua mãe que isso acontece.

- Ah, sem dúvida - concordou Sylvia, apressadamente.- Foi maravilhosa para a mãe. Eu estimava-a tanto como Hattie, mas nunca teria conseguido prestar-lhe assistência constante como ela. Embora fosse capaz de me desfazer de todos os bens para pagar as enfermeiras, se houvesse necessidade, desconfio que morria se ficasse em casa a tratá-la pessoalmente.

- Compreendo-articulou Mason, secamente.

- Custa-me a crer.

- Acha que isso interessa?

- Não.

- Então, continue a explicar-me o que a preocupa.

- Receio estar a lidar com pessoas que não são totalmente honestas.

- Que pretendem?

- Dinheiro.

- Chantagem?

- Bem, se é, disfarçam-na tão bem que dificilmente se lhe pode dar esse nome.

- E se me contasse tudo?

- Antes de mais, remonta a cerca de sete anos, quando o petróleo do Texas começava a tornar-se um factor importante na vida do Estado. - Ela fez uma pausa e Mason inclinou a cabeça, num gesto de encorajamento. - Meu pai tinha-se arruinado no negócio da compra e venda de propriedades e, na altura, conheceu um indivíduo muito peculiar chamado Jeremiah Josiah Fritch.

- O nome não o é menos.

- Tratavam-no pelas iniciais J. J. Ora bem, ele possuía algum dinheiro e meu pai tinha uma opção de um vasto terreno que supunha conter petróleo, apesar de se situar longe da área que então se considerava petrolífera. J. J. concordou em comprá-lo para meu pai, que investiria todo o seu dinheiro num poço de ensaio indicado pelo amigo.

- Isso foi feito?

- Foi.

-Que aconteceu?

- Tratava-se de um poço seco. Meu pai continuava esperançado, mas era o único. Como deve calcular, o valor do terreno baixou apreciavelmente. Ele hipotecou tudo o que possuía a J. J. por uma opção na propriedade e conseguiu um novo empréstimo de forasteiros interessados em que meu pai explorasse as formações. Assim, abriu um novo poço, desta vez num lugar em que lhe parecia que havia petróleo, embora J. J. fizesse troça e chamasse ao novo projecto de perfuração "Loucura de Bain".

- Que sucedeu a esse poço?

- Continha petróleo. As pessoas disseram que foi apenas sorte e tinha efectuado a descoberta por mero acaso. Mas a verdade é que pôde pagar todas as dívidas, comprar a propriedade a J. J. e compensar os prejuízos anteriores. No entanto, a base de tudo foi o dinheiro que J. J. lhe deu.

- Não tinha sido um empréstimo?

- Rigorosamente, não. Eles eram amigos e J. J. tinha outros interesses. A princípio, foi uma espécie de sociedade. A questão consiste em que todo o dinheiro da família derivou desse entendimento inicial com J. J. Fritch.

- Isso é importante?

- É.

- Porquê?

- Porque tudo indica que J. J. era um ladrão de Bancos. Nunca ouviu falar do Roubo do Inspector de Bancos?

- Não.

- Foi muito famoso, há uns anos. Um homem munido de credenciais de inspector bancário elaboradas com perícia entrou num Banco importante e conseguiu reunir todas as reservas em dinheiro num lugar facilmente acessível. De caminho, desligou o alarme de emergência que indicaria um assalto. Depois surgiram dois cúmplices, que mantiveram o pessoal em respeito e desapareceram calmamente com meio milhão de dólares em dinheiro e cheques de viagem.

- Quer dizer que esse assalto está relacionado com o seu problema? - inquiriu Mason.

- Precisamente. O pessoal do Banco pensa que J. J. era um dos componentes do bando e o dinheiro que deu a meu pai fazia parte do roubo.

- Seu pai não participou no assalto?

- Com certeza que não. Mas podem tentar alegar que estava ao corrente do facto de que o dinheiro tinha sido roubado e, por conseguinte, tornou-se depositário. Dessa forma, o Banco poderia confiscar-lhe os terrenos petrolíferos.

- O Banco afirma isso?

- Pode vir a afirmá-lo. Ao que parece (não pude obter confirmação), em resultado de pesquisas aturadas, as autoridades conseguiram verificar que a impressão digital na carta de condução de J. J. Fritch corresponde à deixada pelo suposto inspector bancário.

- Depois de passados tantos anos?

- Sim.

- Como se inteirou de tudo isso?

- Através de um homem chamado Brogan.

- Quem é?

- George Brogan, um detective particular.

- Começa a cheirar-me a tramóia, além de que nunca ouvi falar desse indivíduo.

- Bem, é um investigador, possuidor, segundo depreendi, de uma reputação pouco lisonjeira.

- O panorama começa a apresentar o aspecto de um tipo de chantagem pouco comum.

- Por conseguinte - prosseguiu Sylvia-, se o Banco conseguisse estabelecer a origem desse dinheiro e provar que meu pai estava ao corrente, podia confiscar-nos os bens alegando que ele se tinha tornado um depositário involuntário ou algo do género. É um assunto de natureza legal muito complicado, fora da minha compreensão.

- O Banco efectuou alguma diligência para conseguir o que refere?

- Não, mas, por informação de Brogan, não hesitará se obtiver determinados elementos que lhe podem chegar às mãos a todo o momento.

Fale-me mais de Brogan.

- Bem, insiste em nos convencer de que não representa J. J. Fritch.

- Onde pára Fritch?

- Não está disponível.

- Quer dizer que está escondido?

- Não exactamente. Trata-se da expressão empregada por Brogan.

- E que pretende Fritch?

- Dinheiro.

- Quanto?

- Muito.

- É uma situação típica de chantagem.

- De facto, tem todo o aspecto disso.

- Especificamente, em que pé estão as coisas neste momento? - perguntou Mason.

- Brogan insiste em que utilizemos os seus préstimos para tentar conceber uma solução.

- Quanto quer ele?

- Diz que pedirá honorários puramente nominais, mas J. J. está necessitado de dinheiro e, embora Brogan afirme reprovar a sua posição moral, alega que a única maneira de ficarmos tranquilos é providenciar para que o seu testemunho não resulte desfavorável.

- Que pensa fazer, Mrs. Atwood?

- Pagar o que for necessário.

- Porquê?

- Porque o assunto afecta toda a família. Não se trata apenas do dinheiro envolvido, mas da nossa reputação.

- Devem ter mais alguma coisa em que se apoiar - observou, olhando-a com intensidade. Omitiu algum pormenor.

- George Brogan possui uma gravação.

- De quê?

- Do que garante ser uma conversa entre J. J. e meu pai.

- Quando ocorreu?

- Há uns três anos.

- Como se explica que esteja em poder de Brogan?

- Segundo parece, Fritch efectuou-a sem o conhecimento de meu pai. A conversa desenrolou-se no escritório de J. J., que tinha um gravador oculto.

- Ouviu-a, Mrs. Atwood?

- Apenas parte. Ele só me deixou escutar algumas palavras.

- É autêntica?

- A voz soa como a de meu pai.

- Mas é?

- Não sei.

- Porquê?

- Porque não tive coragem de lhe perguntar. No seu estado actual, prefiro não o enervar.

O advogado virou-se para Della Street.

- Ligue à Agência de Investigações Drake e peça para falar com Paul.

- Não, não, por favor! - exclamou Sylvia. - Não quero mais detectives particulares metidos no assunto. Detesto-os.

- Drake é um investigador que se rege pela ética profissional - asseverou Mason. - Preciso de contactar com ele, porque quero obter mais pormenores sobre Brogan.

Os dedos ágeis de Della marcaram um número no telefone que não figurava na lista, sobre a sua secretária, nem passava pelo P. B. X, da recepção da antecâmara. No momento imediato, quando a voz de Paul Drake surgiu na linha, inclinou a cabeça para Mason.

Este levantou o auscultador da extensão à sua frente e proferiu:

- É Perry, Paul. Preciso que averigues elementos acerca de George Brogan, que se intitula detective particular. Sabes alguma coisa?... Ah, sim? Então, desembucha.- Escutou em silêncio durante perto de um minuto e disse:-Obrigado. Talvez volte a falar contigo por causa deste assunto. - Cortou a ligação e virou-se para Sylvia Atwood, cujos olhos verdes exibiam uma expressão interrogativa. - O nosso amigo Brogan é uma personalidade curiosa. Conduz um carro dispendioso, pertence a dois clubes elegantes, possui um apartamento luxuoso, esteve três ou quatro vezes à beira de perder a licença profissional e ninguém faz uma ideia exacta da proveniência do seu dinheiro.

- Estabelece contactos profissionais nos clubes?

- Segundo a minha fonte de informações, as pessoas que o conhecem seriam as últimas a dar-lhe trabalho.

- Por outras palavras, o seu detective afirma que é um chantagista de primeira classe?

- Se ele me dissesse isso, eu não lho repetia - salientou Mason, com um sorriso.

- Então, digo-lhe eu a si.

- É claro que, entre advogado e cliente, trata-se de uma comunicação confidencial, mas mesmo assim eu não o diria.

- Nem admitiria que foi o que o seu amigo lhe revelou. - Sylvia fez uma breve pausa, enquanto Mason meneava a cabeça, tornando a sorrir. - Mencionou uma relação entre advogado e cliente. Espero que isso signifique que concorda em se ocupar do meu caso.

- E, para tornar a situação oficial, vai entregar-me quinhentos dólares de sinal, porque quando der o passo seguinte não quero que haja mal-entendidos sobre quem represento e o que pretendo.

- Qual vai ser o passo seguinte? - Vendo que ele se limitava a estender a mão, Sylvia argumentou: - Não costumo andar com tanto dinheiro.

- Contento-me com um cheque.

Hesitou por um momento, com uma expressão dura no olhar, até que abriu a bolsa, puxou do livro de cheques e preencheu um.

Mason examinou-o com atenção e, por fim, indicou:

- Escreva no verso: "Como sinal para serviços legais a prestar."

Ela obedeceu e, depois de receber o cheque, o advogado entregou-o a Della Street, que lhe pôs o carimbo de endosso. Em seguida, ele puxou o telefone para a sua frente e perguntou:

- Quer que trate disto à minha maneira?

- O que me interessa é ver resultados.

- Procure o número de George Brogan, Della, e ligue para lá. Utilizaremos a linha do P. B.X.

- Parece-lhe prudente falar com ele? - aventurou Sylvia.

- Alguém tem de o fazer.

- Eu já o fiz.

- Acho pouco conveniente que volte a contactar com ele.

- Garante-me que procura ser-me útil e todo o dinheiro que receber necessitará de o entregar a Fritch, para o manter sossegado.

E entretanto - retrucou Mason, sarcasticamente -, Fritch confiou-lhe a gravação que contém a suposta conversa entre ele e seu pai. Não lhe parece um pouco invulgar?

- Bem, J. J. tinha de tomar providências para converter a sua informação em dinheiro.

Naquele momento, Della Street fez sinal ao advogado, que levantou o auscultador.

- Brogan? Daqui, Perry Mason. Preciso falar-lhe... É por causa do assunto relacionado com Sylvia Bain Atwood... Exacto... Quero ouvir a gravação... Não, toda, do princípio ao fim... Porquê?... Bem, não espere nem um cêntimo furado... Então, diga a Fritch que não espere nem um cêntimo furado, a menos que eu oiça toda a gravação e fique convencido de que é autêntica... Ao Diabo com isso. Explique ao seu amigo Fritch que agora passa a ter de enfrentar um advogado... A mensagem mantém-se, mesmo que não seja seu amigo... Exacto, tudo o que está gravado... Tintim por tintim... De contrário, ele pode levantar a tenda e ir... Quando aconselho um cliente a comprar um cavalo, examino-o primeiro, de uma ponta à outra... Quando?... Não posso. Tenho que fazer no tribunal... Entendido, imediatamente. Estarei aí dentro de dez minutos... Porquê?... Bem, então no seu apartamento. Tanto se me dá... Daqui a uma hora... Combinado.- Desligou e virou-se para Sylvia. - Vou ao apartamento dele para ouvir a gravação. Toda. Tem de estar presente, para escutar atentamente e dizer-me se acha que é a voz de seu pai. E agora, quero explicar-lhe outra coisa. Nunca gostei de chantagem.

- Parece-lhe que se trata disso?

- Ou então de um parente muito próximo. Tresanda a chantagem com uma intensidade pungente. Fingirei que sou duro de ouvido. Portanto, não fique surpreendida.

- Para que é o aparelho auditivo?

- Provavelmente, para ouvir melhor - explicou, sorrindo. - Fiquei de procurar Brogan no apartamento dentro de uma hora. Portanto, volte daqui a quarenta e cinco minutos. Um quarto de hora chega perfeitamente para a curta distância a percorrer. Entretanto, não mencione as nossas intenções a ninguém.

Ela assentiu com uma inclinação de cabeça e Mason acrescentou:

- Suponhamos que se trata da gravação autêntica de uma conversa entre seu pai e Fritch, na qual ele admite que sabia que o dinheiro investido por J. J. na sociedade provinha do assalto a um Banco. Que pensa fazer, nessa eventualidade?

- Pagar, a menos que o senhor proponha uma maneira de enfrentar o problema mais vantajosa.

- Quanto tenciona pagar? - Vendo-a hesitar e desviar os olhos, ele insistiu: - Quanto?

- O que ele pedir, se não houver outro remédio.

- E depois?

- Quero obter a certeza absoluta de que não existem mais provas e estão todas nas minhas mãos.

- Como espera conseguir uma coisa dessas?

- Não sei. Foi por isso que o procurei. Pretendia conceder-lhe a iniciativa.

- Uma gravação em fita magnetofónica pode reproduzir-se uma dezena de vezes. Se for utilizado equipamento de qualidade, os duplicados ficam tão fiéis como o original.

- Brogan afirma que garante a boa fé de J. J. no assunto e só existe uma gravação, sem qualquer cópia.

- Como pode apresentar uma garantia dessa natureza?

- Não sei. Disse que podíamos confiar na sua palavra.

- Acha que vale alguma coisa?

- Não lhe entreguei quinhentos dólares? - articulou Sylvia, significativamente. - É a melhor resposta que lhe posso dar.

- Confirma-se a minha impressão - retorquiu Mason, secamente. - É uma trapalhada. Bem, tentaremos enfrentá-la da melhor maneira possível.

- Tenho de estar aqui dentro de quarenta e cinco minutos?

- Exactos.

- Muito bem. - Ela levantou-se e abandonou o gabinete.

Quando a porta se fechou, Della Street olhou Mason com uma expressão interrogativa, e ele explicou:

- Primeiro, vou averiguar se é de facto a voz do pai. Quero provar isso para minha satisfação pessoal.

- Como?

- Escutarei a gravação as vezes necessárias para me familiarizar com as vozes e depois procurarei Ned Bain, com o qual trocarei algumas palavras banais. Estudarei a sua voz, compará-la-ei com a da gravação e mandarei proceder a uma comparação científica.

- Não estou a compreender como vai ter oportunidade de fazer tudo isso com a voz gravada. Pensa que Brogan o deixará trazer a fita ou efectuar uma cópia?

- Vê-se que não está ao corrente da minha deficiência- observou, com um sorriso malicioso.

- Da sua quê?

- Surdez.

Abriu a gaveta da secretária e extraiu uma pequena caixa oblonga, que guardou numa algibeira exterior do casaco, após o que aplicou um pequeno dispositivo que continha um pequeno microfone na parte superior da orelha direita.

- Isso talvez lhe permita ouvir com maior nitidez - admitiu Della-, mas como o ajudará a estudar as vozes da gravação?

- Ocultarei os fios que vão do microfone à caixa metálica ao longo da parte posterior do ombro e braço.

- Continuo a não compreender.

Mason tornou a estender a mão para a gaveta da secretária e pegou num pequeno altifalante com cerca de dez centímetros de diâmetro, que pousou na secretária, para ligar, através de uma extensão, à caixa que tinha no bolso.

Por fim, accionou um interruptor e Della Street ouviu a sua própria voz dizer com perfeita clareza:

"Não estou a compreender como vai ter oportunidade de fazer tudo isso com a voz gravada."

Mason sorriu ao ver-lhe a expressão consternada e desligou o altifalante, para voltar a guardá-lo na gaveta.

- Santo Deus! - bradou ela. - Como conseguiu isso?

- Esta geringonça é de fabrico alemão. Permite uma gravação de duas horas e meia numa fita tão pequena que só se pode ver ao microscópio. Se não há interferências, proporciona uma fidelidade incrível. Quando ouvir a gravação no apartamento de Brogan, estarei a obter uma cópia que escutaremos mais tarde com isto.

- Como consegue a corrente para funcionar?

- Por meio de pilhas e válvulas. Tal como um receptor de bolso com auricular.

- E se ele descobre?

- Não descobre.

- Mas suponha que sim. - Que poderá fazer?

- Eu sei lá. Pode... pode tornar-se muito desagradável.

- Eu também - asseverou Mason, com desprendimento.

 

O advogado entrou na antecâmara da Agência de Investigações Drake e perguntou à recepcionista:

- Paul está? - Quando a viu assentir com um movimento de cabeça, acrescentou:-Ocupado?

- Fala ao telefone. Vou preveni-lo. Ela introduziu uma cavilha na caixa do P. B. X., escutou por um momento e indicou a Mason: - Pode avançar.

Ele abriu a porta de acesso a um longo corredor que continha uma autêntica coelheira de gabinetes em cada lado, na sua maioria meros cubículos, onde os agentes podiam redigir os relatórios. O de Paul Drake situava-se ao fundo e, no momento em que Mason entrou, achava-se ao telefone. Fez-lhe sinal para que se sentasse, concluiu a conversa, desligou e exibiu um largo sorriso.

Mason instalou-se numa cadeira de espaldar direito e contemplou o detective do outro lado da secretária, ornamentada com meia dúzia de telefones.

- Ainda não compreendi porque não arranjas uma cadeira decentemente confortável para os clientes.

- Ficavam muito tempo. Como não posso pedir os honorários astronómicos de um advogado, preciso de manter um mínimo de volume de negócios. De momento, tenho uma dúzia de casos a andar, com homens em serviço exterior, que telefonam a cada momento para transmitir relatórios e pedir instruções. Por que estavas interessado em Brogan? Não me digas que te envolveste com ele!

Mason puxou de uma cigarreira, abriu-a e estendeu-a a Drake, o qual, alto, aparentemente indolente, rosto preparado para exibir uma expressão constante de desinteresse, tirou um cigarro e acendeu um fósforo.

- Se te metes com Brogan - advertiu -, talvez aprendas alguma coisa na nobre arte da intrujice.

- Já me meti.

- Nesse caso, confia todo o teu dinheiro a Della, até que te desembaraces dele.

- Que tem o homem de mal?

- Tudo.

- Não foste tão enfático pelo telefone.

- Costumo guardar certa prudência, quando utilizo essa via de comunicação. De qualquer modo, forneci-te uma ideia geral.

- Especifica.

- Para já, é um chantagista. Ainda ninguém o conseguiu apanhar em flagrante, mas não subsistem dúvidas a esse respeito.

- Porque é que não o conseguem apanhar em flagrante?

- Porque é muito atilado. Nunca se apresenta como chantagista. Dá a impressão de que não embolsa um único cêntimo do dinheiro que recebe da chantagem, mas quem o deixa apoderar-se de uma informação confidencial, em qualquer altura, passado um ano ou dezoito meses, quando ninguém se lembra de o relacionar com o assunto, um chantagista aborda-o e exige que o seu cliente pague determinada quantia.

"É claro que Brogan entre imediatamente em contacto com o cliente e mostra-se estarrecido, acusando-o de ter dado com a língua nos dentes. Por seu turno, o cliente garante-lhe que a informação em poder de Brogan era absolutamente confidencial. Este começa a interrogá-lo, para saber se a revelou a alguém: à esposa, namorada, secretária, um amigo no clube, etc.

"Evidentemente que a resposta é sempre a mesma. Durante um período de dezoito meses, com certeza que abordou o assunto com alguém, de contrário Brogan trata de o convencer de que o fez e é então contratado para negociar com o chantagista. Em face disso, finge analisar o caso e aconselha o cliente a pagar, por se lhe afigurar a única solução. Em virtude da sua reputação e ligações no mundo subterrâneo, pode manipular as coisas para que a quantia entregue fique reduzida a cerca de metade e promete providenciar para que só haja um pagamento: não só se apoderará das provas comprometedoras responsáveis da chantagem, como insuflará o medo no espírito do chantagista, para que o caso não se repita.

- E depois?

- Depois, o papalvo paga a Brogan cerca de metade da quantia que o chantagista exigira a princípio, segundo a versão do nosso amigo detective. Esse dinheiro desaparece. Ele entrega então as provas ao papalvo e cobra-lhe uma importância, em regra muito nominal, dadas as circunstâncias.

- Que acontece ao dinheiro da chantagem?

- Brogan recebe a parte de leão, mas ninguém o pode provar. Houve quem tentasse, numerosas vezes, sem o mínimo resultado palpável. O fulano é um finório.

- Finório em que sentido?

- No sentido repelente.

- Que se passa quando há reincidência e continuam a tentar sugar o papalvo?

- Essa é a faceta mais curiosa da questão-explicou Drake. - Quando Brogan intervém, não há reincidência. Alega que intimida o chantagista e o obriga a desistir dos seus propósitos. Na realidade, porém, participa activamente na maquinação, mas eu não quis referir isto pelo telefone, pois podias repeti-lo a um cliente. Eu próprio, não me atreveria a dizê-lo a outra pessoa.

- Tudo indica que vou ter uma sessão interessante com o homem - admitiu Mason.

- Quando?

- Dentro de uns vinte minutos. Fiquei de me encontrar com ele no seu apartamento.

- Tem cautela, Perry.

- Não te preocupes. Vou explicar-te o que pretendo de ti. Conheces Brogan?

- Pessoalmente?

- Sim.

- Com certeza.

- Podes descrevê-lo?

- Claro.

- Tens algum funcionário que o conheça pessoalmente?

- Devo conseguir descobrir dois ou três. De quanto tempo disponho?

- Pouco. Quinze a vinte minutos.

- Queres sempre as coisas de afogadilho.

- És pago para isso - observou, com um sorriso. - Como disse, combinei encontrar-me com ele no apartamento. Ora, preciso de dois dos teus homens postados à entrada do prédio. De preferência, que o conheçam pessoalmente, de contrário forneces-lhes uma descrição minuciosa. Depois de eu me retirar, Brogan dirigir-se-á algures, cheio de pressa. Quero, portanto, que o sigam e averiguem o seu destino. Se contactar com um fulano chamado Fritch, este deve também ser seguido.

- Muito bem - assentiu Drake, estendendo a mão para o telefone. Transmitiu instruções à recepcionista para que mandasse dois agentes, cujos nomes mencionou, falar-lhe imediatamente, cortou a ligação e virou-se de novo para o advogado. - De que se trata?

- De um problema que envolve a gravação de uma conversa. Penso que é falsa, mas não tenho a certeza. De qualquer modo, vou até lá para a ouvir. Brogan alega que a única coisa que sabe sobre o assunto é que um indivíduo chamado J. J. Fritch o procurou e se intitulou possuidor dessa gravação, cujo conteúdo bastaria para arruinar por completo uma família de nome Bain e, como necessitava de dinheiro, tencionava obrigar este a pagar-lhe, sob pena de a divulgar publicamente. A seguir, acredites ou não, confiou-a a Brogan.

"Aparentemente, este ficou muito chocado e contactou com uma representante da família, uma mulher com dinheiro, expôs-lhe o caso e perguntou o que queria que fizesse. Salientou que podia contar com ele para tudo o que pretendesse, excepto para destruir a gravação, porque dera a palavra de honra a Fritch de que tal não aconteceria.

"Segundo a versão de Brogan, consegue conter os ímpetos de gente dessa espécie porque o respeitam por cumprir aquilo que promete. Sabem que se encontra ao lado da Lei e contra a chantagem, mas também não ignoram que, quando empenha a palavra, nada o demove de proceder em conformidade.

- Que táctica tão subtil! - observou, sorrindo por entre o fumo do cigarro.

- Podes repeti-lo.

- Portanto, suponho que prometeu que resolveria o assunto por metade do preço, e, se a família negociar por seu intermédio, pode ficar descansada que a chantagem não se repetirá.

- Mais ou menos - admitiu Mason. - Ainda não conheço todos os pormenores.

- Brogan não vai gostar da tua intervenção.

- Eu sei.

- Fingirá que te recebe de braços abertos, mas, se se lhe deparar a oportunidade, crava-te uma faca nas costas.

- Providenciarei para que a oportunidade não surja. Ao mesmo tempo, se lhe puder sabotar a operação, não hesitarei.

Drake inclinou a cabeça e, após uma pausa, declarou:

- Duvido que se te depare o ensejo.

- Porquê?

- O tipo é cauteloso e conhece a tua reputação. Respeita a tua capacidade, pelo que não tentará qualquer artimanha capaz de lhe explodir nas mãos.

- Se apanhar a gravação ao meu alcance, não terei o menor rebuço em a destruir.

- Acredito, mas não contes muito com isso. Receio que estejas a subestimar o homem.

- É possível.

- Garanto-te que é inteligente. Até hoje, ninguém conseguiu acusá-lo de coisa alguma. Governa-se muito bem e vive principescamente.

- Bem, põe os teus homens em campo. Quero inteirar-me do que acontece após a minha visita a Brogan.

- Porque marcou o encontro para o apartamento em vez do escritório?

- Não sei. Talvez porque não confia no seu pessoal.

- Ele não confia em ninguém, mas tem as suas razões. Realizou muitas operações no escritório.

- De qualquer modo, esta vai desenrolar-se no apartamento.

- Quanto tempo pensas manter-te lá?

- Cerca de uma hora.

- Chega, para pôr os meus homens em campo. Não te preocupes, que ele não dará um passo sem ser vigiado.

- Fixe. Deixo tudo a teu cargo.

Um dos telefones tocou, e o detective pegou no auscultador.

- Estou... Tenho um trabalho urgente para ti. Conheces George Brogan? Quero que o sigas. - Pousou a mão no bocal. - Pronto, Perry. Os meus homens vão entrar em acção.

- Muito bem.

Mason levantou-se, e Drake continuava ao telefone quando ele saiu.

 

Com pontualidade rigorosa, Perry Mason e a cliente emergiram do elevador no piso em que se situava o apartamento de Brogan.

Quando o advogado tocou à campainha, a porta foi aberta quase imediatamente por um homem cuja constituição tinha toda a graciosidade estética de uma aranha. Aparentava um pouco mais de quarenta anos, com tronco curto, braços e pernas longos, pescoço volumoso e cabeça calva na qual colocara uma peruca, nitidamente mais escura que os cabelos naturais que a ladeavam.

- Olá, Mr. Mason - saudou com um largo sorriso, enquanto os olhos protuberantes aguados e observavam com curiosidade e estendia a mão. - Tenho muito gosto em conhecê-lo, sobretudo depois do que me constou a seu respeito. Costumo acompanhar os seus casos com grande interesse e não menor admiração. Sinto profundo prazer com este encontro e espero poder ser-lhe útil e a Mr. Bain. Como está, Mrs. Atwood? Entrem, por favor.

Conduziu-os à sala de um apartamento decorado com sumptuosidade, fechou a porta no trinco de segurança e aplicou uma corrente que não permitia que se abrisse mais que uns escassos cinco centímetros.

- Convém tomar precauções - explicou, com novo sorriso. - Sabe como as coisas acontecem, Mr. Mason. Não me agradaria nada que a nossa interessante conversa fosse interrompida por uma brigada de detectives. Espero que compreenda a minha posição.

- Não estou muito certo disso. Na verdade, tenho a certeza de que não compreendo.

- Sentem-se e estejam à vossa vontade. Preferi que a reunião se realizasse aqui e não no escritório, porque uma pessoa nunca sabe o que pode acontecer num local de trabalho. Há interrupções constantes, sem a atmosfera de intimidade que predomina aqui. - Brogan apercebeu-se então do auricular na orelha de Mason e levantou automaticamente a voz. - Vou ser-lhe franco. Conservo a gravação num cofre, pois tenho de tomar precauções para garantir a sua segurança. Por exemplo, quando está em meu poder, ando armado. - Afastou o casaco e expôs suspenso do ombro um coldre em que repousava uma pistola. - Sabe como estas coisas são, Mr. Mason.

- Estou agora a ver como são.

- Ah, ah, ah! Bem observado. Ora bem, a minha posição no meio disto é a de intermediário. Gozo de confiança de J. J. Fritch. Ou, melhor, coloquei-o numa situação em que se viu forçado a conceder-ma.

- Isso obriga-o a assumir uma atitude invulgar, não acha?

- A minha atitude costuma ser sempre invulgar, o que, de resto, não me preocupa. Há quem se mostre empenhado em me denegrir, mas sou mais ou menos como o senhor. Protejo os meus clientes. É esse o meu credo. Desde que o consiga, estou-me nas tintas para as regras do jogo. Refiro-me às regras convencionais, bem entendido. Portanto, estou aqui para proteger o meu cliente.

Mason limitou-se a inclinar a cabeça.

- E é o que vou fazer.

- Quem é o seu cliente?

- O senhor.

- Não me tinha apercebido.

- Representa Mrs. Atwood e considero que também a represento, ou seja, desejo o privilégio de a representar, e creia que isso me lisonjearia, - Que espera fazer?

- O que lhes parecer conveniente. Há apenas uma coisa em que devo insistir. Na minha profissão, depara-se-me gente de todas as espécies. Umas vezes, lido com pessoas irrepreensíveis e outras com autênticos escroques, mas actuo sempre de boa fé. O meu vínculo é a minha palavra. Assegurei a J. J. que não acontecerá nenhuma calamidade à gravação, nem abandonará a minha posse senão em condições satisfatórias para ele.

"Como devem compreender, foi necessária certa diplomacia de minha parte para que me confiasse a única coisa de que dispõe como prova. Convenci-o de que só conseguiria que alguém lhe oferecesse dinheiro por ela se a escutasse.

- É a gravação original e não existem cópias? - inquiriu Mason.

- Julgo poder garantir-lho - declarou Brogan, com uma expressão solene.

- Quais são as bases da sua garantia?

- Digamos que se apoia numa longa experiência nestes assuntos e na prática de convívio com diversos tipos de pessoas. De qualquer modo, estou absolutamente seguro de que se trata da única prova existente no mundo.

- E qual é a posição de J. J. Fritch? A propósito, é ele o seu cliente?

- Garanto-lhe que não receberei um cêntimo de compensação das mãos dele, nem o representarei. O meu interesse nisto reside apenas na medida em que posso proteger os interesses de pessoas inocentes. No que se refere a Mr. Fritch, devo dizer que não aprovo os seus métodos e nunca o representaria. Na realidade, não lhe tocaria nem com uma vara de três metros. Penso que o homem recorre a métodos muito próximos da chantagem.

"Estou disposto, pois, a actuar como intermediário e representar Mrs. Atwood para lhe assegurar a posse de determinada prova que, segundo ela, resultaria muito embaraçosa para a sua família. Não tenciono identificar-me de modo algum com Fritch. Não simpatizo com ele, de resto, e nunca permitiria que a minha reputação profissional ficasse manchada com o envolvimento em actividades perversas de semelhante natureza.

- Suponhamos que compramos a gravação. Isso equivalerá a suprimir um elemento pertinente num caso criminal?

O sorriso untuoso dissipou-se do semblante de Brogan e os olhos aguados observaram o interlocutor com desconfiança.

- Confesso que a possibilidade não me tinha ocorrido- acabou por asseverar.

- Admira.

- Talvez, mas lembre-se de que não sou advogado, mas um simples investigador. Neste caso, pediram-me apenas que actuasse como intermediário e só continuarei a fazê-lo se for contratado por Mrs. Atwood ou alguém da família Bain. Se recorrerem aos meus préstimos para negociar com Mr. Fritch, envidarei os meus melhores esforços para os comprazer. Agora que um advogado interveio no assunto, afigura-se-me conveniente que seja o senhor a decidir da legalidade da transacção.

"É claro que, como sabemos, falar em suprimir uma prova tem um som pouco agradável, mas, por outro lado, estamos cientes de que não é crime destruir uma falsificação. Creio firmemente que Fritch não tem em que se apoiar. Julgo que a gravação foi forjada, embora me palpite que a efectuaram com tanta perícia que convenceria um júri. Espero que não, embora se trate de uma hipótese a considerar.

"Evidentemente que Fritch não põe a questão numa base de destruição de provas. Limita-se a pedir a Mr. Bain ou a Mrs. Atwood, se ela não quiser importunar o pai, que lhe empreste dinheiro suficiente para se poder defender de uma acusação que afirma ser a todos os títulos descabida.

- A acusação foi colocada à margem da Lei ao abrigo do estatuto das limitações, não é assim?

- Penso que sim, mas, repito, não sou advogado. O essencial consiste em que Mr. Fritch considera que o acusam falsamente e, como seu bom amigo, Mr. Bain devia adiantar-lhe dinheiro suficiente para demonstrar que é capaz de promover uma investigação e uma defesa.

- Quem se encarregaria da investigação? - inquiriu Mason.- Você?

- Não faço a menor ideia. Vejo que insiste em colocar o carro à frente dos bois. Sem dúvida que é possível que ele recorra aos meus préstimos para proceder às diligências necessárias. Confesso que não sei. Se o fizesse depois deste assunto estar solucionado, talvez aceitasse. De momento, nada posso afirmar nesse sentido. No entanto, não subsiste no meu espírito a mínima dúvida do seguinte: não discutiria este caso com ele até que a transacção fosse totalmente concluída.

- Quanto pede Fritch?

- O suficiente para promover a investigação e ilibar-se de uma acusação que insiste ser falsa.

- Faz alguma ideia de um número?

- É claro que implicaria aprofundar numerosas pistas antigas e consultar velhos registos. Não se trata de uma tarefa fácil. Segundo ele, o mínimo possível seriam vinte e cinco mil dólares.

- É muito dinheiro.

- Fritch não encara a questão em termos dinheiro, mas de serviço, do que lhe custaria defender-se da acusação falsa.

- Parece-me uma quantia demasiado elevada.

- Admito a possibilidade. O senhor sabe mais do que eu destas coisas. Se Mrs. Atwood solicitar os meus préstimos para apresentar o assunto a Fritch, farei tudo o que puder para aceitar a menor quantia razoável.

- Que acontece, depois de entregue o dinheiro?

- Não faço a menor ideia, como deve calcular. Abstive-me de discutir essa faceta do caso com Fritch. Foi ele que me procurou e expliquei que não aceitaria qualquer incumbência sua, embora me prontificasse a contactar com Mrs. Atwood e, na eventualidade de ela solicitar os meus préstimos, aceitaria com satisfação. Acrescentei que, admitindo essa hipótese, as minhas actividades se lhe consagrariam inteiramente e trataria de provar que a gravação constituía uma falsificação, se as minhas conclusões se inclinassem nesse sentido.

- Que respondeu Fritch a isso?

- Disse que eu podia levar a gravação, desde que lhe garantisse que não sairia das minhas mãos, e tomar as providências necessárias que entendesse para provar a sua autenticidade. Creio que deixei a minha posição bem clara.

- Muito clara, mesmo - aquiesceu Mason, secamente. - Ouçamos, pois, a gravação. - Vendo que Brogan o olhava com mal dissimulada hostilidade, acrescentou: - Então? Inteiremo-nos da natureza dessa prova.

- Antes de mais, entendamo-nos numa coisa. Não chegaremos a parte nenhuma, se persistirmos em duvidar dos nossos motivos mútuos. O senhor é um advogado e depreendo, por conseguinte, que recebeu um sinal de Mrs. Atwood. Ora, antes de me aventurar um passo, um único passo que seja, insisto em que ela me entregue igualmente um sinal para actuar em seu nome e o senhor, como seu advogado, o aprove. Não sei se me exprimi com clareza suficiente.

- Por outras palavras, pretende proteger-se - observou Mason.

- Não tenha a mínima dúvida.

- Está bem. Ouçamos a gravação. Suponho que está autorizado a ir até esse ponto...

- Até esse ponto e nem mais um milímetro.

- Óptimo. Passe-a lá.

Brogan foi buscar um gravador, ligou-o à corrente, aproximou-se da parede, premiu um botão que fez deslocar-se uma secção e expôs um cofre embutido. Em seguida, abriu-o, depois de rodar o puxador em conformidade com o segredo, e extraiu uma bobina de fita magnetofómica.

- Como referi, tenho a minha reputação profissional em jogo. Garanti a Fritch que não aconteceria nada à gravação, enquanto se encontrasse em meu poder, e nenhuma outra pessoa lhe tocaria. Portanto, peço-lhes que se mantenham afastados do gravador e não façam a menor tentativa para lhe tocar. De acordo?

- É você que impõe as condições - replicou Mason.

- E espero que as cumpram.

- Podemos retirar-nos, em qualquer momento que não desejemos cumpri-las.

- Decerto.

Brogan pousou a bobina no pano bordado ao lado do gravador, verificou se os comandos estavam nas posições apropriadas, colocou-a no aparelho e enfiou a extremidade da fita na bobina vazia.

- Sem pretender pôr em causa a sua hospitalidade - proferiu o advogado, com um sorriso agradável -, confesso que uma bebida não calhava mal.

- Queiram desculpar! - balbuciou Brogan. - Estava tão concentrado no nosso assunto, que esqueci as boas maneiras. Que toma, Mrs. Atwood?

- Pode ser scotch e água gasosa.

- Uísque e água simples, para mim - informou Mason. - Se não se importa, gostava de ser eu a prepará-lo.

- Sem dúvida. Esteja à sua vontade. - O sorriso de Brogan pôs em evidência uma série de dentes enormes. - Compreendo a sua posição. Tem de desconfiar de tudo. Espero, portanto, me perdoe se me mostro igualmente desconfiado- Diz que deseja preparar a sua bebida, Mr. Mason, e vou tomar o seu pedido à letra. Se me preceder em direcção à kitchenette e permanecer lá com Mrs. Atwood na minha presença, não haverá problemas. Por outras palavras, não me agradaria que usasse o subterfúgio do meu afastamento momentâneo, ao ir buscar uma bebida, para criar uma oportunidade de inutilizar a gravação. A kitchenette fica do outro lado daquela porta. Queiram preceder-me, por favor.

Mason e Mrs. Atwood obedeceram sem protestar, enquanto ele prosseguia:

- Tenho de comprar um daqueles bares portáteis que produzem gelo e que se podem conservar na sala, mas até lá o meu gelo encontra-se no frigorífico da kitchenette. Espero que compreenda, Mr. Mason.

- Compreendo.

- Sem ressentimentos?

- Sem ressentimentos.

Na kitchenette, pousou três copos na mesa, abriu o frigorífico, pegou no pequeno tabuleiro de cubos, premiu uma cavilha e estes tombaram num prato. A seguir, dirigiu-se à copa a um canto e abriu a porta para revelar um armário com várias garrafas nas prateleiras.

- Está bem abastecido - comentou Mason.

- É verdade. Obtenho a maior parte dos meus rendimentos comprando acções de firmas falidas. Tive a sorte de adquirir um restaurante nessas condições, há uns meses, e orientei as coisas para conseguir algum lucro na operação. Toda a reserva de bebidas ficou nas minhas mãos após a revenda do mobiliário e equipamento. É claro que também podia ter vendido a garrafeira, mas nesse caso era obrigado a pagar o respectivo imposto. Assim, a transacção resultou equilibrada e deixou-me na posse das bebidas, que, evidentemente, figuram nos meus livros segundo um valor nominal.

E Brogan esfregou as mãos, satisfeito não só consigo próprio, mas por dispor de um momento tão oportuno para impressionar Mason com a sua argúcia comercial, assim como com a natureza legítima das suas actividades.

- Sirvam-se - convidou. - Preparem as bebidas da maneira que preferirem. Aprecio as suas suspeitas e a forma como toma precauções, Mr. Mason. Eu tomo as mesmas. Cada um trata da sua bebida e bebe do seu copo sem o pousar. Custava-me vê-lo verter algumas gotas de um narcótico na minha e o senhor decerto reagiria do mesmo modo se eu procedesse assim com a sua.

Serviram-se do gelo e utilizaram as garrafas, após o que o advogado se dirigiu à torneira e misturou água ao uísque.

- Dias felizes - brindou o dono da casa.

- Confusão para os nossos inimigos - contrapôs Mason, levando o copo aos lábios.

- É um grande ponto, Mr. Mason - admitiu Brogan, com uma gargalhada-, mas confesso que não esperava outra coisa. Passemos à sala para ouvir a famigerada gravação. Um momento-acrescentou, ao ver o advogado avançar apressadamente para a porta. - Desconfio que não me presta o devido respeito. Eu é que vou à frente. Não o quero junto do gravador sem a minha presença... nem por um único instante. Entendido?

- Queira desculpar. Agora reparo que preciso de um pouco mais de água na bebida. - E Mason retrocedeu para a torneira, enquanto o outro se afastava para a sala, seguido de Mrs. Atwood.

Por cima do secador de loiça, havia um suporte de facas magnético com cerca de oito centímetros de largura por vinte de comprimento, que continha oito ou nove. Mason retirou-as todas, colocou os dedos por baixo do íman oblongo, separou-o do suporte e guardou-o na algibeira. Em seguida encaminhou-se para a sala, onde chegou pouco depois de Mrs. Atwood.

- Fiquem desse lado da mesa - advertiu Brogan. - Assim, não lhes acudirá a menor tentação de assumir alguma atitude susceptível de causar problemas. Embora esteja a vosso favor, sou forçado a proteger a minha reputação profissional.

- Uma posição muito louvável - assentiu Mason, com uma expressão impenetrável. - Você compreende a minha atitude e eu a sua. Se puder destruir o projecto de Fritch, não deixarei de o fazer.

Pousou o copo na mesa, puxou uma cadeira e sentou-se, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, fazia deslizar o íman da algibeira para debaixo da toalha da mesa.

Depois, pegou no copo, levou-o aos lábios e colocou-o de modo que ficasse atrás do íman. Manipulando-o com lentidão de um lado para o outro, deslocou o íman alguns centímetros na direcção do gravador.

- Pode começar - indicou. - Estamos a postos para ouvir a conversa.

Brogan actuou num interruptor e reclinou-se na cadeira para observar o advogado e Mrs. Atwood.

O aparelho emitiu alguns estalidos preliminares e surgiram vozes surpreendentemente claras e distintas que ecoaram na sala. Durante quinze minutos, Mason e Sylvia Atwood escutaram o que pretendia ser um diálogo entre J. J. Fritch e Ned Bain relacionado com a sociedade original por eles fundada. Da conversa, não se podia deixar de concluir que o segundo sabia, sem margem para quaisquer dúvidas, que o dinheiro emprestado pelo primeiro provinha do assalto a um Banco.

- Então?-exclamou Brogan, com uma inflexão de triunfo, quando a gravação chegou ao fim. - Está convencido?

- Com quê? - retrucou Mason.

- De que se trata da voz de seu pai - apressou-se o outro a esclarecer, dirigindo-se a Mrs. Atwood. - De contrário, só nos resta um caminho a seguir. Mandaremos prender Fritch por tentativa de extorsão.

- E em caso afirmativo? - inquiriu Mason.

- Teremos de ser mais cautelosos, claro. Levantou-se, pousou as mãos na mesa e inclinou-se lentamente para o gravador, fixando o olhar na bobina, ao mesmo tempo que impelia o íman para a frente com os dedos, sob a toalha.

- Um momento, por favor - proferiu Brogan, subitamente desconfiado. - Não se aproxime mais.

- Quero observar a fita, para verificar se sofreu cortes ou acrescentos. - E os dedos continuaram a fazer deslizar o íman.

- Que interessa isso?

- Pode interessar muito.

- Garanto-lhe que não aconteceu nada do género, embora não perceba a sua intenção.

Enquanto dizia isto, Brogan enrolava a fita na bobina inicial e retirava esta do gravador.

De súbito, Mason tornou a inclinar-se e aplicou um derradeiro impulso ao íman.

- Deixe-me ver.

- Não tente nenhum dos seus truques - preveniu Brogan, pousando-a na mesa. - Vou ter de lhe pedir que recue um pouco e depois mostro-lha.

- Muito bem - concordou Mason, obedecendo.- Quero ver se sofreu cortes.

- No fundo, isto é uma questão de negócios para ambos. O senhor representa uma cliente que eu também espero representar. Os nossos interesses são comuns. Temos experiência de situações desta natureza. Portanto, mantenhamos a cabeça fria e discutamos o assunto numa base adulta lógica.

Brogan enfiou um lápis no centro da bobina e desenrolou cerca de cinco metros de fita, que deslizou para o chão.

- Como vê, não há sinais de cortes.

- Pelo menos, até aí - observou Mason.

 

Brogan desenrolou mais uns dez metros, após o que, , com o indicador da outra mão, tornou a enrolá-la, fazendo girar a bobina no lápis pousada na mesa.

- De momento, ficamos por aqui. Não estou autorizado a ir mais para diante. Posso, no entanto, garantir-lhe que não existe um único corte. Que eu saiba, não apresenta a menor anormalidade. É absolutamente genuína. - Enquanto recolhia a bobina, informou: - Vou voltar a guardá-la no cofre antes de continuarmos a conversar.

Os olhos verdes de Sylvia Atwood arregalaram-se subitamente, no momento em que Mason fazia desaparecer algo na algibeira posterior das calças, mas conservou-se silenciosa em obediência a um leve sinal dele.

- Bem, vou preparar-me outra bebida, se não vê inconveniente - declarou o advogado-, para depois nos sentarmos e palestrar um pouco.

Dirigiu-se à kitchenette, colocou o íman no suporte e em seguida as facas neste, e vertia uísque no copo quando Brogan e Sylvia surgiram à entrada.

- Sirva-se à vontade, Mason. Desculpe se me mostrei um pouco desconfiado, mas confesso que estava com certo medo de si. Tem uma reputação que obriga qualquer pessoa a ficar de pé atrás.

- Bom, vamos ao que interessa - replicou o advogado.- Fritch quer vinte e cinco mil dólares. Quanto está disposto a aceitar?

- Vinte mil, suponho - declarou Brogan, semicerrando as pálpebras. - Penso que, se representasse Mrs. Atwood, conseguiria obter uma redução de cinco mil.

- Quais seriam as suas condições?

- Condições? Apenas pretendo uma compensação razoável. Deixaria o assunto inteiramente nas suas mãos, dada a sua experiência em casos desta natureza. Como pode apreciar a gravidade da situação, conhece o valor da gravação.

Mason ingeriu parte da bebida com uma expressão pensativa e esclareceu:

- Não vou aconselhar a minha cliente a pagar um único cêntimo ou a contratá-lo como intermediário para o fazer até me convencer da autenticidade da gravação. Como não quer que eu lhe toque, proponho o seguinte: Torne a passá-la, mas deixe-me ocupar uma posição da qual a possa ver deslizar pela cabeça do aparelho, a fim de verificar se existem cortes.

- Para quê essa preocupação com os cortes?

- Eu explico. Pode tratar-se de partes de duas conversas coladas com tanta perícia que as respostas de Mr. Bain se refiram a perguntas totalmente diferentes.

- Que hipótese tão forçada! - Brogan inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. - Duvido que fosse possível obter uma falsificação dessa natureza.

- Garanto-lhe que é.

- E eu garanto que não aconteceu nada disso.

- A sua opinião não me interessa. Quero certificar-me.

- Como?

- Volte a passar a gravação, enquanto me sento a seu lado.

- Não posso concordar.

- Preciso ver o interior da fita, para ter a certeza de que não contém cortes.

- Vamos fazer outra coisa - sugeriu, após um momento de ponderação. - Viro o gravador para aí e desse modo pode observar o que pretende sem sair desse lado da mesa.

- Muito bem - concedeu Mason. - De qualquer modo, quero tornar a ouvir a gravação.

- Porquê?

- Para ser franco, porque me quero familiarizar com a voz de Ned Bain.

- Pode estar certo de que é a dele.

- Lamento não me poder contentar com a sua palavra.

- Faz mal, pois poupava trabalho.

- O trabalho nunca me assustou.

Brogan abriu o caminho em direcção à sala mais uma vez, ligou o gravador e voltou a abrir o cofre, conservando-se ligeiramente de lado, para não perder de vista os movimentos de Mason.

A seguir pegou na bobina, colocou-a no aparelho, fê-lo rodar cento e oitenta graus, a fim de ficar virado para Mason, actuou no interruptor e recuou um passo, cruzando os braços sobre o peito, com uma expressão atenta.

O gravador emitiu alguns estalidos, enquanto a fita começava a deslizar lentamente, mas não surgiu qualquer voz.

- Ligue lá isso - indicou Mason. - Ou colocou mal a fita?

O semblante de Brogan deixava transparecer pânico crescente, ao mesmo tempo que se inclinava para a frente e fazia rodar os botões do aparelho.

- Tenha cuidado, não vá apagar a gravação - advertiu o advogado.

O outro desligou o gravador, retirou a bobina, examinou-a com perplexidade e tornou a colocá-la.

- Não há perigo - replicou entre dentes. - Estou habituado a lidar com estas máquinas. Sei o que faço. Deixe-se estar aí.

- Não me mexo. Queria apenas ajudá-lo.

- Prescindo da sua ajuda, obrigado.

Voltou a ligar os comandos, porém o silêncio persistiu durante um longo momento, até que soaram algumas palavras abafadas pertencentes a um diálogo inaudível.

Rodou o botão do volume de som até ao extremo, enquanto a fita continuava a deslizar. Uma vez por outra, era possível distinguir uma palavra distante, mas sem a clareza suficiente para a identificar.

- Santo Deus!-rugiu Brogan, que começava a transpirar com abundância. De repente, cravou o olhar em Mason com uma expressão de desconfiança.-Que fez ao gravador?

- Que podia eu fazer?

- Isso queria eu saber!- balbuciou, desligando o aparelho e enrolando a fita manualmente. - Palpita-me que inverteu as cabeças, embora não perceba como. Mas não lucra nada com isso, porque hei-de arranjar outro gravador e...

- Por mim, não se prenda - atalhou Mason.- Depois de o conseguir e passar a fita de modo que o satisfaça, agradecia que me desse uma apitadela. Antes de aconselhar Mrs. Atwood a recorrer aos seus préstimos para negociar com Fritch, quero certificar-me de que se trata de uma gravação autêntica.

- Não se preocupe quanto a isso - articulou Brogan, levando o lenço à fronte.

- Você é que parece preocupado.

- Tenho a minha reputação profissional a considerar. Se acontecesse alguma coisa à gravação, ficava entalado.

- É o que deixou transparecer por várias vezes. Posso contar que me telefona, quando conseguir outro gravador para passar a fita?

- Sem dúvida.

- Óptimo, Então, até lá.

- O aparelho deve ter-se avariado. Não pode ser outra coisa. Os ímanes polarizaram-se ou coisa que o valha. Amanhã, espero conseguir outro.

- Depois telefone-me, para combinarmos novo encontro. Agora, já estou atrasado para o tribunal.

Brogan acompanhou-os à porta, abriu-a e disse:

- Desculpem não os convidar para almoçar, mas vou tratar do gravador imediatamente. - Com um olhar incisivo a Mason, acrescentou: - Que diabo lhe aconteceu? Duvido que a gravação fosse afectada, mas trata-se de um golpe de génio. Gostava de saber como o fez.

- Golpe?

- Exacto.

Hesitou por um momento e fechou a porta com brusquidão.

- Pronto - segredou Mason a Sylvia. - Já está.

- Que fez, realmente? - quis saber ela, a meia voz. - Que era aquilo que guardou na algibeira? O que havia debaixo da toalha?

- Não faço a menor ideia - replicou ele, com uma expressão inocente.

- Acredito - aquiesceu Sylvia, exibindo um sorriso malicioso.

- Entrarei em contacto consigo, quando voltar a ter notícias de Brogan.

- Espera que ele lhe telefone em breve?

- Com certeza. Primeiro, terá de fazer algumas coisas, congeminar uma história convincente, para depois se nos apresentar de novo com a afabilidade habitual. Garantirá que houve apenas uma pequena avaria no circuito reprodutor do gravador e estará reparada amanhã.

- Mas que fez realmente, Mr. Mason? Dá a impressão de que conseguiu apagar toda a conversa!

- Parece-lhe?

- Sim.

- Como podia fazer uma coisa dessas, com Brogan a vigiar-me todos os movimentos?

- Calculo que é isso mesmo que o preocupa neste momento - observou Sylvia, enquanto se dirigiam para o elevador.

- Em especial, porque, segundo ele próprio afirmou, não existem cópias da gravação.

- Não sei porquê - volveu, com desprendimento-, mantenho o pressentimento de que o seu aparelho auditivo influiu decisivamente no resultado obtido. Usa-o com frequência?

- Só quando me constipo - explicou Mason com gravidade, ao mesmo tempo que abria a porta do elevador para que ela o precedesse.

 

O gabinete de Mason parecia o laboratório de um estúdio de som. O minúsculo gravador encontrava-se em cima da secretária. Partia dele uma extensão ligada a outro de maiores dimensões para permitir o registo directo do primeiro. Além disso, havia um dispositivo de escuta para o advogado e Della Street poderem inteirar-se do que era gravado.

- Sai com nitidez - observou ela. Fez uma pausa, enquanto Mason aquiescia com uma inclinação de cabeça.-E Brogan?

- Vai ter de mostrar o seu jogo. Para já, tratará de se avistar com Fritch... seguido pelos homens de Drake e... - Soaram pancadas discretas na porta que comunicava directamente com o corredor. - Deve ser Paul.

Com efeito, o detective entrou exibindo um largo sorriso e, ao ver os aparelhos na secretária, enrugou a fronte.

- Que diabo é isso?

- Utilizei o meu pequeno gravador alemão para captar a conversa com o nosso amigo Brogan e, de caminho, para ficar com a reprodução da gravação que ele possuía.

Drake escutou por uns momentos e admitiu:

- Sai com clareza. Que estás a fazer com o gravador maior?

- Transfiro a gravação para fita normal. Depois, utilizá-la-ei para consulta e guardarei o original para prova.

- Dá a impressão de que abalaste Brogan - comentou, continuando a ouvir a gravação. - Isto aconteceu depois da passagem da conversa entre Bain e Fritch?

- Exacto. Pedi-lhe que a passasse segunda vez. Ele conduziu os teus homens a Fritch?

- Por ora, não. Ainda nem sequer saiu de casa.

- Com certeza? - estranhou Mason.

- Absoluta. Tenho pessoal postado à entrada do prédio.

- Desde quando?

- Já lá estava antes de tu e Mrs. Atwood se retirarem.

Franziu o sobrolho, mas acabou por sorrir.

- Isso significa que procura determinar o que aconteceu ao gravador e não se atreve a informar Fritch.

- Mas que sucedeu, afinal?

- Destruí-lhe as provas.

- Como?

- Para ser absolutamente franco, a ideia acudiu-me de repente. Pedi-lhe uma bebida, a fim de o afastar da sala e poder observar se a fita apresentava cortes, mas não foi nisso.

- É natural. Um tipo daqueles não te deixaria só com o gravador um único instante. Segundo a sua ética, podias pegar na bobina e atirá-la pela janela.

- Eu sei. Insistiu em que passássemos todos à cozinha. Depois, teve medo de que lhe vertesse um narcótico no copo ou eu pensasse que pretendia drogar-nos e quis que cada um preparasse a sua bebida. Quando reparei num suporte de facas magnético junto do lava-loiça, acudiu-me a tal ideia.

- Que fizeste?

- Consegui ser o último a sair da cozinha, retirei as facas, guardei o suporte na algibeira e fiquei com um excelente íman que introduzi por baixo da toalha da mesa, mais ou menos no lugar em que calculei que ele colocaria o gravador. Aleguei que pretendia ver a fita enquanto deslizava no aparelho, no momento em que o voltou para mim, o campo magnético fez com que a gravação se apagasse.

- Mas como?

- Um gravador é meramente uma reunião de moléculas numa fita magnetizada. Assim a gravação pode-se apagar as vezes que se quiser fazendo-a passar por um campo magnético, que é, dito de uma forma algo grosseira, o que acontece sempre que se procede a um novo registo de som. Assim, pode-se utilizar um íman vulgar e movê-lo em torno de uma bobina, para eliminar o que está gravado, mas se for plano funciona melhor.

- Essa, agora! - exclamou Drake, abismado. - Confesso que desconhecia tudo isso. Só sabia que as conversas são gravadas devido a impulsos num campo magnético. Como reagiu Brogan? Aposto que teve um chilique.

- Pelo menos, entrou em pânico por uns momentos - reconheceu Masom, com um sorriso. - Depois, deve ter-se lembrado de que tinha possibilidade de duplicar a gravação, pelo que correu virtualmente coonnosco, ao mesmo tempo que pretendia convencer-nos de que o defeito estava no aparelho.

- Sabe o que fizeste?

- Calcula que interferi de algum modo, mas não como, o que o preocupa substancialmente.

- Mas se perdeu a gravação...

- Era sintética.

- Não compreendo.

- Fritch deve ter provocado uma conversa com Ned Bain acerca de uma variedade de tópicos (política, episódios dos velhos tempos, etc.) e depois dirigiu-se a um estúdio de gravação, onde um técnico pouco escrupuloso o ajudou a obter um diálogo constituído por fragmentos dispersos do anterior.

- Continuo a não ver...

- Suponhamos que, na conversa original, Fritch perguntou a Bain: "Lembras-te daquela vez em que matámos um veado no topo de uma montanha?". O outro responderia, mais ou menos: "Perfeitamente. Nunca me esquecerei." Ora bem. O tipo visita a seguir o tal estúdio e a resposta é aproveitada noutra gravação, como se correspondesse à pergunta: "Lembras-te daquela vez que reuni capital suficiente para a tua aventura petrolífera no Texas através do assalto a um Banco?"

- Queres dizer que toda a conversa foi fabricada dessa maneira?

- Nem mais.

- Nesse caso, a fita é um estendal de cortes.

- A original, embora devam ter sido praticados com eficiência, de modo a tornar impossível a sua detecção por meio da escuta. Depois de preparada, foi reproduzida noutra bobina, que nos apresentam agora como única.

- Como pensas provar essa maquinação?

- O problema reside aí, sem dúvida. No entanto, creio que disponho de uma pista prometedora.

- Qual?

- O técnico foi demasiado arguto.

- Explica-te melhor.

- A verdadeira conversa entre Fritch e Bain verificou-se num quarto ou apartamento algures. Ora, nota-se um ligeiro eco sempre que este último fala e apenas às vezes no caso do outro. No entanto, em todas as perguntas de J. J. a que Bain dá uma resposta comprometedora não existe eco algum. É fácil deduzir o significado disto. As interrogações foram formuladas em ambiente à prova de som e, apesar dos cuidados empregados, a diferença nota-se com clareza. Numa sala vulgar, a voz, em particular de um homem, se for grave, ricocheteia, por assim dizer, do tecto, das paredes e do próprio chão. Numa conversa vulgar, não reparamos conscientemente nesses sons, pelo que o ouvido não os capta, mas registada através de um microfone sensível, detectam-se com clareza.

"Os estúdios de gravação não podem permitir que tal aconteça, naturalmente, e utilizam salas preparadas para o efeito. Escutei a gravação com o maior cuidado e não descobri um único momento em que Ned Bain admita coisa alguma sem margem para dúvidas. Limita-se a confirmar determinadas coisas que Fritch disse. Penso, pois, que, por esse motivo, poderemos provar que a gravação foi forjada.

- Na tua opinião, que aconteceu na realidade?

- Logo que nos retirámos, Brogan deve ter telefonado a Fritch, para lhe comunicar mais ou menos o seguinte: "Mason conseguiu apagar a gravação desta bobina, o que nos obriga a obter nova cópia da matriz. Depois, voltarei a passá-la na sua presença e direi que o gravador se tinha avariado. Ele desconfiará de que minto, mas não poderá fazer nada, por falta de provas."

Drake conservou-se silencioso por uns segundos e perguntou:

- Podes provar que se trata de outra bobina?

- Não.

- Então, que lucraste em apagar a gravação?

- Obriguei Brogan a entrar em contacto com Fritch. A partir do momento em que o fizer, localizaremos J. J. Além disso, provoquei-lhes a necessidade imperiosa de tirar nova cópia da gravação forjada, que deve estar bem guardada algures, sem dúvida num cofre alugado de um Banco. Seguindo Brogan até Fritch e este até ao Banco, conheceremos o paradeiro dessa bobina. Depois, enviaremos uma subpoena duces tecum a J. J., ordenando-lhe que vá buscar a bobina forjada ao cofre número tal de determinado Banco, o que bastará para assustar ambos, pois não saberão até que ponto estamos elucidados da realidade dos factos.

- Mas Brogan não abandonou o apartamento.

- Provavelmente porque Fritch se ausentou e não conseguiu contactar com ele.

- A tua cliente sabe que sabotaste a gravação?

- Sabe, mas desconhece como o fiz. Brogan, pelo contrário, inteirou-se e está cheio de medo, embora ignore os pormenores.

- Bem, os meus homens estão a postos - informou Drake. - Vim para o confirmar. - Fez uma pausa, enquanto Mason tomava conhecimento com uma inclinação de cabeça. - Pensas que consegues notar a diferença na natureza da conversa, quando Fritch faz uma pergunta comprometedora?

- Este minúsculo gravador executou o seu trabalho de forma impecável, ao ponto de as discrepâncias se detectarem na cópia. Convém, é claro, ter presente que o som provinha de um altifalante e havia um certo eco das paredes e tecto do apartamento de Brogan. Em todo o caso, as vibrações devem estar distribuídas igualmente por todo o diálogo, pelo que ainda existirá uma melhor qualidade de gravação nas interrogações formuladas por Fritch.

Mason ligou um interruptor do gravador de maiores dimensões, desligou o outro, rebobinou a fita durante uns minutos e principiou a passá-la.

- Esta parte da conversa sai quase uniformemente clara, porque tanto a voz de Fritch como a de Bain têm um número muito aproximado de ecos. Falam de gado. Presta atenção.

A voz de Fritch surgiu repentinamente no altifalante: "Não sei o que aconteceria, se alguém descobrisse que fui eu quem assaltou o Banco."

E a resposta de Bain, pausada, quase indiferente, como se abordassem um assunto banal:

"Como poderiam descobrir, J. J."

- Percebes ao que me refiro? - perguntou o advogado, desligando o aparelho.

- Acho que não - confessou Drake. - Ouvi a pergunta de Fritch com a maior clareza. O que me impressionou foi a naturalidade com que Bain respondeu.

- Exprimiu-se assim, porque abordavam um assunto totalmente diferente. Vou repetir a passagem dessa parte. Apura bem os ouvidos. Apesar de se tratar da reprodução de uma reprodução, a diferença de qualidade das vozes nota-se bem. Fritch fez a pergunta num estúdio, não esqueças. Repara.

Mason rebobinou a fita por uns Instantes e tornou a passá-la, enquanto o detective fechava os olhos, para se concentrar melhor. Desta vez, quando o gravador foi desligado, inclinou a cabeça com veemência.

- Agora, compreendi. De facto, a diferença de qualidade é nítida.

- Evidentemente que não se pode detectar com tanta clareza como na gravação original.

- Se isto lhes ocorrer, não poderão tomar providências?

- Decerto. Podem forjar uma nova matriz com as perguntas de Fritch formuladas num apartamento onde se verifiquem os ecos normais e obter cópias. No entanto, por muito que se esforçassem, não conseguiriam reproduzir as perguntas com exactidão, mesmo que usassem um guião. Haveria sempre uma palavra diferente, aqui e ali, uma alteração de ritmo ou de inflexão.

"É a vantagem de possuir um gravador destes. Se introduzirem alguma alteração, apresentarei esta gravação e acusá-los-ei de tentativa de fraude. Era essa a minha esperança, quando visitei Brogan, Calculava obter uma cópia da que possuíam e, a seguir, assustá-los ao ponto de procurarem forjar outra com algum elemento diferente. Em face disso, eu podia provar, sem margem para dúvidas, que se tratava de uma maquinação.

- Era preferível a teres de confiar na diferença de qualidade do som.

- Talvez ainda consiga, mas não pude resistir à tentação de apagar a gravação nas barbas do homem.

- Fica a respeitar-te mais.

O telefone de Della Street tocou e ela levantou o auscultador, enquanto Mason aguardava para ver se a chamada era para ele. Por fim, a secretária pousou a mão no bocal e informou:

- Brogan quer falar consigo, chefe.

- Diga a Gertie que transfira a ligação para a minha linha. - Em seguida, ele pegou no auscultador e proferi u: - Estou...

- Telefonei só para lhe comunicar que localizei a avaria do gravador - articulou a voz de Brogan.

- Ah, sim? - retorquiu Mason, secamente. - Espero que a fita não fosse afectada.

- Absolutamente nada. Está intacta. Tratava-se apenas de um terminal solto que impedia a passagem do som ao altifalante. O gravador já funciona bem.

- Óptimo! Está a falar de casa?

- De casa? - ecoou Brogan, levemente surpreendido.- Que ideia! Do escritório.

- Julguei que tivesse ficado a reparar a avaria.

- Levei o aparelho ao representante.

- Nesse caso, ainda não passou a gravação?

- Não, mas passei outras, pelo que sei que funciona bem.

- Por conseguinte, não sabe de certeza se a avaria danificou a que nos interessa.

- Não vejo como seria possível.

- Mas não a passou?

- Apenas uns centímetros, para me certificar.

- E soava normalmente?

- Limpa como a água. É uma gravação excelente, atendendo às circunstâncias.

- Espero que compreenda a minha posição - disse Mason. - Tenho de voltar a ouvi-la, para me certificar.

- Insisto mesmo nisso.

- Quando?

- O mais depressa possível. Que tal às nove da manhã, no meu apartamento? Ou é muito cedo?

- Não, acho bem. A hora convém-me.

- Então, até amanhã - despediu-se Brogan, e cortou a ligação.

Mason virou-se para Drake e explicou:

- Ele diz que está no escritório, mas descobriu a avaria, que consistia num terminal solto do altifalante. Assim, encontra-se tudo a postos para passar a gravação mais uma vez, amanhã, às nove, no seu apartamento. Ora, sabemos que o tipo não saiu de casa, e isso permite-nos traçar uma conclusão importante. A matriz está escondida algures no apartamento, existe mais de um gravador e ele completou nova reprodução.

- E a matriz encontra-se na sua posse e não na de Fritch - salientou Drake.

- É o que parece, de facto.

- Queres que mantenha os meus homens na peugada dele?

- Sim. Convém-me que lhe vigiem os movimentos, embora já saibamos onde está a matriz.

O telefone voltou a tocar e Della apressou-se a atender.

- Sim, Gertie... Um momento. - Virou-se para Mason e informou: - É Sylvia Atwood. Diz que precisa de lhe falar imediatamente de um assunto muito importante.

O advogado assentiu com uma inclinação de cabeça e levantou o auscultador da sua extensão.

- Estou...

- Tem de vir imediatamente, Mr. Mason! - A voz de Sylvia denunciava profunda excitação...-Aconteceu uma coisa horrível.

- O quê?

- Fritch telefonou a meu pai e ameaçou-o de vender a sua história ao Banco, se eu não prescindisse dos seus serviços. Alegou que não subsistia motivo algum para lhe ser leal e passaria a agir em conformidade com os seus interesses. A princípio, meu pai não tinha a menor ideia do que ele estava a falar, até que se lhe fez luz no espírito, em face das palavras que J. J. continuava a pronunciar. Ficou profundamente abalado, convencido de que existe uma tentativa para fazer chantagem connosco por causa dos terrenos petrolíferos. Pensámos que a melhor maneira de o tranquilizar seria em deixá-lo falar consigo, Mr. Mason. Creio que a sua presença lhe será mais benéfica que todos os medicamentos que o médico lhe receitasse.

- Quer que eu o procure?

- Sim, por favor. -Quando?

- O mais depressa possível. Já, se puder.

- Está com ele?

- Não, encontro-me no centro da cidade. Posso, portanto, passar por aí dentro de cinco minutos e trazê-lo, mais tarde.

- Um momento. - Mason reflectiu por uns segundos e decidiu: - Está bem, venha. - Desligou e dirigiu-se a Drake:-Que motivo levaria Fritch a proceder assim?

- Como?

- Telefonou a Ned Bain e impôs-lhe que prescindisse dos meus serviços.

- Porque te admiras?

- Porque o ascendente que ele tinha sobre a família consistia principalmente na teoria de que Ned Bain devia ignorar por completo o que se passava. Ora, acaba de sacrificar esse trunfo. Porquê?

- Deve calcular que isso lhe trará alguma vantagem.

- Sem dúvida. A questão reside em saber a natureza dessa vantagem. - Mason voltou-se para Della: - Sylvia Atwood não tarda aí. Vou visitar o pai para tentar tranquilizá-lo. Entretanto, Paul, mantém os teus homens na vigilância a Brogan. Ele e Fritch devem ter estado em contacto, provavelmente pelo telefone, uma vez que o nosso homem não abandonou o apartamento. É claro que Fritch pode tê-lo procurado.

- Conhece-lo?

- Não.

- Tens a sua descrição?

- Talvez pudesse obtê-la, mas duvido que servisse de muito, nesta altura. Até aqui, eu raciocinava em termos de que ele possuía a matriz da gravação e Brogan o procuraria. Afinal, tudo indica que é precisamente o contrário. Foi J. J. que visitou Brogan, em cujas mãos ela se encontra.

- Parece-me o mais provável. É ele o cérebro por detrás da chantagem.

- Muito bem. Actuaremos com base nesse princípio, até ver.

 

Mason, sentado à direita de Sylvia Atwood, observava com aprovação a perícia e prudência com que ela conduzia pelas artérias particularmente concorridas.

Ele conservava os braços cruzados sobre o peito, enquanto os olhos perscrutadores captavam todos os pormenores e o rosto exibia uma impassibilidade granítica.

De vez em quando, Sylvia lançava uma olhadela fugaz ao companheiro e tornava a concentrar-se no volante.

Depois de se afastarem das áreas mais movimentadas, quando rolavam num bulevar, observou com uma expressão de amargura:

- J. J. levantou a máscara e revelou a sua verdadeira índole de chantagista empedernido. - Fez uma pausa, porém Mason limitou-se a inclinar a cabeça. - Como pode prejudicar meu pai sem ficar também afectado? Terá de confessar que foi ele que assaltou o Banco.

- Foi um dos que assaltaram o Banco - corrigiu o advogado.

- Pela parte que nos toca, é a mesma coisa.

- Porquê?

-Porque tudo se resume à questão de meu pai saber ou não que utilizava dinheiro roubado, mas dá-me a impressão de que J. J. inverteu a sua posição por completo. Anteriormente, pretendia proteger-se e ao seu bom nome. Agora enveredou pela chantagem, pura e simples.

- A chantagem nunca é pura e só muito raramente simples.

- Talvez tenha razão, mas porque não havia ele de tentar proteger-se?

- Porque incumbiram advogados muito atilados de se debruçarem sobre o estatuto das limitações e decidiram que o lapso de tempo tornou Fritch imune de qualquer acusação. Deve ser por isso que a Polícia ainda não caiu em cima de Fritch e o deteve pelo assalto ao Banco. Compete a este, num processo civil, tentar recuperar o que lhe pertence...

- Mas o estatuto das limitações não vigora contra os Bancos?

- Trata-se de uma situação legal particularmente ardilosa. Em certos tipos de crédito involuntário, em que o depositário da propriedade se presume ter conhecimento dos meios ilegais pelos quais foi adquirida e a outra pessoa os desconhece e está impedida de se inteirar em virtude das acções encobertas do depositário involuntário, o estatuto das limitações pode advir mais da descoberta dos factos que destes em si.

- Você, advogados, são tão técnicos!

- Os termos técnicos são indispensáveis para haver Lei. No momento em que se estabelece uma linha de demarcação entre o bem e o mal, têm de surgir forçosamente casos que se encontram no gume dessa linha. Desloquemo-nos à fronteira entre o México e os Estados Unidos, por exemplo. Cinco centímetros aquém da linha divisória, achamo-nos em território norte-americano. Cinco centímetros além dela, estamos no mexicano, sujeitos às suas leis. Por outras palavras, a diferença de cinco centímetros para um lado ou para o outro coloca-nos à disposição de um conjunto de leis distintas.

- Bem, isso é compreensível.

- É compreensível para si, porque consegue assimilar com clareza a linha divisória entre o México e os Estados Unidos. Os advogados assimilam as linhas divisórias legais com a mesma clareza e compreendem prontamente a distinção entre permanecer no limite de uma ou da outra. - Mason fez uma pausa. - Fale-me um pouco da família que vamos visitar.

- Meu pai é extraordinário. Foi um homem maravilhoso, admirável. Infelizmente, agora não goza de boa saúde.

- E há uma irmã?

- Hattie.

- Continue.

- Também é maravilhosa. Quando a conhecer, verá. Como lhe expliquei, gosta de permanecer em casa, mas possui um temperamento admirável. Quando o homem que viria a ser meu marido começou a fazer-me a corte, passe a expressão, ela insistiu em que casássemos, pois ficaria a cuidar da família.

- Sua mãe ainda vivia?

- Sim.

- E seguiu o conselho?

- Exacto. Talvez fosse egoísmo de minha parte, mas estava apaixonada e Hattie ficou em casa a cuidar dos pais. É maravilhosa, repito, e agora depara-se-lhe a oportunidade de ser feliz.

- Fale-me disso.

- Ele chama-se Edison Levering Doyle, um homem inteligente, com um futuro prometedor à sua frente, no meu entender. Estou certa de que concordará, quando o conhecer, Mr. Mason. Sinto-me muito contente com Hattie... e, apesar disso, receosa.

- De quê?

- É difícil de explicar - articulou Sylvia, hesitante.

- Experimente.

- Preferia não o fazer.

- Vá. Diga lá.

- Bem, receio que ela não seja feliz com Edison e venha mesmo a sofrer, mas não sei o que fazer para o evitar.

- Não foi isso que começou a dizer - observou Mason.

- Seja, vou exprimir-me com maior clareza. No passado, nunca tive oportunidade de analisar o assunto com o discernimento suficiente, talvez porque andava sempre ou em viagem ou de uma recepção para outra e parava pouco em casa. Pode dar-se o caso de ser algo que uma existência circunscrita e recatada produziu em Hattie. Confesso que não sei. No entanto... como direi?... a vida tem uma maneira muito sua de nos manipular. Não nos apercebemos de que os minutos que passam nos vão moldando o carácter. Não podemos... não podemos esperar que as coisas aconteçam quando nos convém... Mas estou a baralhar tudo, como previa.

- Quer dizer que Hattie se tornou um pouco desmazelada, incaracterística, insignificante?

- Não empreguei esses termos.

- Mas é o que quer dizer?

- Soa horrivelmente referido dessa maneira, mas... não sei como explicar com exactidão o que quero dizer. Tomemos duas raparigas quaisquer. Suponhamos que são absolutamente iguais, idênticas, se é possível conceber uma coisa dessas. Uma torna-se atraente aos homens. Gosta da companhia masculina. Eles entregam-se a certas liberdades que lhe agradam. Veste caro e com gosto, frequenta salões de beleza, viaja, convive com mulheres aparatosas e manifesta a tendência natural para, digamos, dar nas vistas.

- Siga.

- Por outro lado, suponhamos que a segunda mulher permanece em casa. Não tem tempo para ir a salões de beleza, nem se preocupa com isso, porque não há ninguém para a admirar, raramente aparece em reuniões sociais e prefere conviver com pessoas mais velhas e cuidar delas. Passados dois ou três anos desse género de existência, que acontece?

- A rapariga caseira perde os seus atractivos?

- Pelo menos, não desenvolve nenhum.

- Mas acaba de dizer que Hattie terá a sua oportunidade de ser feliz com Edison Doyle - argumentou Mason.

- Espero que a oportunidade se lhe depare, mas... bem, um homem exige muito de uma mulher. Quer uma companheira. Quer alguém que lhe cuide da casa. Quer uma pessoa que lhe crie os filhos. Quer uma amante. E também quer divertir-se.

- Está a tentar dizer-me que Edison Doyle foi feliz com Hattie até que passou a conviver consigo e, ultimamente, você pressentiu que ele as comparava e começava a interessar-se por si?

- Santo Deus! Deixei-o transparecer com essa clareza?

- É ou não o que pretende dizer-me?

--Não exactamente... Pelo contrário, é o que pretendia não lhe dizer. Já nem sei. Não consigo sequer...

- O facto preocupa-a?

- De certo modo.

- Fale-me um pouco mais de si. Casou e depois? Foi feliz?

- Casei com Sam Atwood e éramos felizes. Levávamos uma vida maravilhosa. A sua morte abalou-me profundamente. No entanto, sou uma pessoa que se adapta ao ambiente com facilidade. Deixou-me um seguro de vida, acções da Bolsa, algumas propriedades e bons investimentos, embora eu depois fizesse também vários, bem sucedidos. No fundo, tive sorte.

- Há quanto tempo morreu seu marido?

- Uns dezoito meses.

- E que tem feito você desde então?

- Viajo. Sempre desejei viajar e, após a morte de Sam, não havia razão alguma para que não o fizesse.

- Dantes não viajava?

- Pouco. Os interesses de negócios dele mantinham-no amarrado a um sítio. Não se podia afastar muito. A sua morte abalou-me, como disse. Apeteceu-me viver num novo ambiente, conhecer pessoas, ver coisas novas. Por conseguinte, viajei.

- Aprendeu alguma coisa nas viagens?

- Acho que sim. Julgo que se aprende sempre. Pretendo dizer na minha que cada dia da vida de uma pessoa aplica uma chancela à individualidade. Escolhe-se o género de existência que se quer viver e ao vivê-la fica-se marcado, pelo que se muda de rumo constante-mente, de uma maneira ou de outra.

- Há quanto tempo regressou?

- Cerca de um mês.

- Voltou e depararam-se-lhe Edison Doyle e Hattie noivos?

- Não propriamente noivos, mas andam juntos e creio que existe um entendimento qualquer entre ambos. A condição cardíaca de meu pai deteriora-se rapidamente e duvido que ele dure muito. Creio que Hattie deseja permanecer a seu lado. De qualquer modo, a situação atingiu um ponto em que meu pai depende dela.

- E quando voltou das suas viagens viu-a sob um novo prisma.

--Confesso que fiquei chocada. Não me apercebi... É tão difícil de explicar, de descrever, que nem sequer tentarei.

- E, por outro lado, Edison Doyie viu em você uma atraente cunhada potencial. Começou a tratá-la com gentileza e agora dá a impressão de que procede à comparação das duas?

- Não sei o que se está a passar, Mr. Mason. Simpatizo com ele, sem dúvida. É um excelente rapaz e creio que tem encarado a vida demasiado a sério. Precisa de ser arrancado dessa situação. Podia casar, criar raízes e tornar-se um bota-de-elástico, ou emergir da casca de gravidade e assumir uma atitude mais aberta e expansiva.

- Qual é o seu modo de vida?

- Arquitectura.

- Você permanece em casa muito tempo?

- Tento estar junto de meu pai, o mais possível, para aliviar um pouco o fardo de Hattie. Gostava de ficar lá sempre e libertá-la por completo. Quanto a mim, ela e Edison deviam sair mais vezes. Minha irmã não se preocupa suficientemente com o vestuário e o seu aspecto em geral.

- Qual é a reacção dela?

- Não sei... É claro que o coração de meu pai se encontra em tal estado que pode morrer a todo o momento. Julgo que Hattie se empenha em continuar a seu lado, para estar presente nos últimos instantes.

-E você?

- Eu não vejo as coisas assim. Meu pai tanto pode morrer amanhã como daqui a vários anos. Pelo menos, foi o que concluí da conversa que tive com o médico.

Ninguém pode prever a data aproximada. Tenho os meus problemas. Possuo um apartamento, convivo com os amigos e procuro vestir bem, sem que isso me impeça de tentar estar ao lado de meu pai tanto tempo quanto possível. Insisti várias vezes com Hattie para que contratasse enfermeiras, a fim de poder arejar um pouco.

- Mas não quer?

- Pois não, e nos últimos tempos tem-se mostrado um pouco... Às vezes penso que ela... Enfim, não encaramos as coisas da mesma maneira.

- Acha que ela pensa que Edison se sente atraído por você e tem ciúmes?

- De modo algum! Hattie e os ciúmes são absolutamente incompatíveis. Talvez se sentisse magoada, mas nada mais.

-E então?

- Então, quando estou com Edison não uno as mãos no regaço e fixo os olhos no chão. Aceitei-o como futuro cunhado e conversamos e rimos com naturalidade. Adoro a vida e uma boa gargalhada de vez em quando... e creio que envereda por um caminho que não interessa necessariamente ao assunto que me levou a procurá-lo, Mr. Mason... ou talvez lhe faça revelações que não deva. Esta discussão é... enfim, existe a possibilidade de o senhor estar a traçar conclusões precipitadas. Parece-me preferível aguardar até abarcar o panorama com os seus próprios olhos.

- Fale-me do resto da família.

- Jarrett é arqueólogo. Anda com o nariz sempre metido em ruínas e coisas do género. De momento, encontra-se no lucatão.

- E a mulher dele?

- É podre de rica e horrivelmente pretensiosa.

- Por outras palavras, não simpatiza consigo.

- Nem eu com ela. Em todo o caso, está bem para Jarrett. Em virtude do seu dinheiro, ele pôde continuar a escavar onde lhe apetece e examinar velhas gravuras com uma lupa.

- Depreendo que se parece mais com Hattie do que consigo.

- Não se parece com ninguém, excepto com Jarrett Bain. É uma pessoa singular. Quando alguém se lhe dirige, olha-o em silêncio por detrás das lentes tão grossas que deformam toda a perspectiva do rosto. Não abre a boca. Limita-se a permanecer sentado e calado. As vezes escuta o que se lhe diz e nessas ocasiões possui a capacidade extraordinária de recordar tudo. Noutras, deixa o espírito vaguear por regiões distantes e não presta a menor atenção ao interlocutor. É um homem desconcertante, porque nunca sabemos se está presente ou ausente.

- Não participa na conversa?

- Limita-se a estar sentado e olhar.

- É feliz com a esposa?

- Julgo que sim. Ela domina-o, mas Jarrett não se dá conta. Tudo indica que lhe agrada estar casada com um arqueólogo. Viajam juntos para esgaravatar entre ruínas.

- Ela gosta disso?

- Pelo menos, acompanha-o, embora eu desconfie que o faz para se documentar e dispor de assunto para as conversas nos círculos que frequenta. De qualquer modo, arranja sempre tempo para digressões a Paris, Londres, Roma, Cairo, Rio, etc. Em regra, instala-se num ambiente acolhedor e trepidante, enquanto Jarrett "estabelece o guartel-general" para mais uma expedição. Ficou assim a conhecer a situação, Mr. Mason.

- Se transpirasse que o Banco podia recuperar o produto do assalto ou as propriedades adquiridas com ele, Jarrett não seria afectado, porque casou com uma mina de ouro, segundo se depreende das suas palavras. A você tão-pouco, uma vez que tem fortuna própria. Mas Hattie seria fortemente prejudicada.

- Talvez, se põe a questão desse modo, mas há também a considerar o bom nome da família. Phoebe pode sustentar um arqueólogo e adora fazê-lo, mas estar casada com o filho de um ladrão de Bancos é uma coisa muito diferente. Aliás, eu tenho igualmente a minha reputação a considerar.

- E Hattie?

- Influiria pesadamente nela, sem dúvida. - E Edison?

- Não compreendo.

- Ele decerto possui inteligência humana. Por conseguinte, deve ter-se apercebido de que, mais dia menos dia, seu pai morrerá e Hattie herdará bens substanciais.

- Não é desses.

- Não pretendo insinuar que quer casar com ela por causa disso, mas deve estar ciente dessa faceta da situação.

- É natural.

- O que pode exercer uma diferença apreciável na sua posição.

- Tem uma maneira levada da breca de se exprimir - comentou Sylvia, abrandando a velocidade e voltando a cabeça para olhar o companheiro.

- Suponho que Jarrett não está ao corrente disso - observou Mason, mudando bruscamente de assunto.

- Está. Falei com ele pelo telefone, ontem à noite.

- E mencionou esse pormenor?

- Exacto.

- Para quê a urgência?

- Se vou investir dinheiro para salvaguardar os bens da família, espero recuperá-lo. Portanto, quis certificar-me de que tudo o que faço merece a aprovação de todos os seus membros.

- Ele aprovou?

- De uma forma limitada - declarou ela, com uma risada seca.

- Qual é a limitação?

- Recomendou-me que falasse com Hattie, e concordaria com tudo o que ela decidisse. No entanto, antes de qualquer pagamento, desejava conhecer o quantitativo e com quanto esperava que ele contribuísse.

- E elucidou-o?

- Com certeza. O que ele pretendia era ouvir-me dizer que não se preocupasse e eu adiantaria todo o dinheiro necessário, para o cobrar da herança após a morte de meu pai. Mas deixou transparecer as suas intenções com tanta clareza, que me irritei e comuniquei que esperava que contribuísse com a terça parte do que necessitássemos de pagar.

- Como reagiu?

- Não se manifestou muito, mas eu quase adivinhava o que pensava. Como teria de recorrer a Phoebe para obter o dinheiro, haveria a necessidade de lhe explicar a que se destinava. Até certo ponto, compreendo a posição dele. Eu é que tenho fama de egoísta na família, mas Jarrett não me fica atrás. Não fez absolutamente nada para a auxiliar. Casou com uma mulher rica e partiu em busca de ruínas para fotografar. Se tivesse procedido de forma mais decente, talvez eu entrasse com o dinheiro. Assim, que escave a sua parte. Espero que possua imaginação suficiente para mentir a Phoebe, mas confesso que me estou nas tintas para isso.

- Bem, creio que fiquei com uma ideia geral da situação - admitiu Mason.

Ela cortou quase repentinamente à direita, transpôs três quarteirões e travou diante de um prédio de dois pisos de linhas algo antiquadas.

- É aqui? - perguntou o advogado.

- É.

- Viveu cá algum tempo?

- Nasci aqui. Agora, a estrutura não passa de um elefante branco, mas gostamos dela. Antes de entrarmos, permita-me que lhe diga uma coisa, Mr. Mason. Se pretende continuar a falar e encarar-me dessa maneira, as nossas relações não tardarão a atingir a ruptura. Detesto que as pessoas assumam para comigo a atitude de censura velada de que devia ter ficado em casa para me sacrificar pela família, quando possuo um par de pernas que excita os homens.

- Excita-os mesmo?

Sylvia exibiu uma expressão maliciosa, estendeu as pernas à sua frente e puxou a saia até muito acima dos joelhos.

- Que lhe parece? - De súbito, mudou de tom.- Desconfio que consegue estimular os meus instintos animais, Mr. Perry Mason. Entremos.

Abriu a porta e saltou para o passeio antes que ele abrisse a do seu lado, após o que se encaminharam para a ampla entrada da construção que representava uma época extinta.

- lu-uu! - bradou ela, depois de abrir a porta.- Trago visitas. Estão todos decentes? - Virou-se para o companheiro. - Acho que podemos avançar. - Fez uma pausa momentânea e disse por cima do ombro, num tom misto de desculpa e desafio: - Não costumo ser exibi-cionista, nem mal intencionada. Esta é minha irmã. Hattie, apresento^te Perry Mason.

Hattie Bain parecia cansada. Havia um aspecto flácido nos ombros e no canto dos lábios e uma expressão apreensiva nos olhos negros encimados por uma fronte larga e cabelos pretos como o ébano penteados para trás num estilo conservador.

- Alegra-me que aceitasse em nos representar - proferiu, estendendo a mão.--Nem imagina como estamos aliviados com a sua presença.

- Como vai o pai? - perguntou Sylvia.

- Nada bem. Os medicamentos parece que não fazem muito efeito. Edison está cá.

Mason notou que o semblante de Sylvia se iluminava no momento em que surgia um jovem alto e bem parecido.

- Ao ouvir mencionar o meu nome, julguei conveniente agitar as asas - declarou, com um sorriso.- E avançou para o advogado, de mão estendida.

- Apresento-lhe Edison Doyle, Mr. Mason.

- Tenho muito gosto em conhecê-lo - afirmou o recém-chegado, sacudindo a mão com cordialidade. - Conheço a sua reputação e acompanhei muitos dos casos em que interveio. Lamento que o que o traz aqui represente um infortúnio potencial para a família, mas é uma honra inesperada para todos.

- Creio que é arquitecto...

- Bem, tenho o canudo e um escritório, além de um pouco de trabalho.

Mason apercebeu-se de que as duas mulheres pareciam suspensas das palavras do rapaz. Os lábios de Sylvia comprimiam-se numa leve expressão indulgente, como se dissesse para consigo: "É de facto um amor."

Os olhos de Hattie Bain não deixavam margem para dúvidas quanto aos seus sentimentos, embora por detrás da devoção radiante da sua expressão existisse algo que se poderia tomar por ansiedade.

- Bem, vamos - indicou Sylvia a Mason. - Onde está o pai, Hattie?

. - No quarto.

- Deitado?

- Não. Quando se deita enerva-se. O médico deu-lhe o remédio, mas ele não consegue dominar a excitação. Ainda bem que veio, Mr. Mason. Creio que ficará mais calmo, quando o vir.

Sylvia abriu a marcha através de uma sala e em seguida um corredor, enquanto explicava por cima do ombro:

- Meu pai tinha o escritório e o quarto lá em cima, mas o médico recomendou que não subisse escadas, pelo que o transferimos para o rés-do-chão.

Por fim, deteve-se diante de uma porta e bateu.

- Entre - indicou uma voz masculina. Ela obedeceu e perguntou:

- Como estás, pai?

Conseguiu introduzir uma inflexão de desprendimento na voz, uma confiança jovial que produziu uma reacção instantânea no homem de cabelos brancos reclinado numa poltrona, com a cabeça pousada numa almofada.

- Sylvia! Eu sabia que não estarias inactiva.

- Claro que não. Apresento-te o famoso advogado Perry Mason.

- Desculpe não me levantar - articulou Bain.

- Tenho muito gosto em conhecê-lo -disse Mason, aproximando-se, para lhe apertar a mão.

- É, de facto, um grande prazer para mim. - A voz do ancião deixava transparecer a fadiga suscitada pela excitação. - Ouvi falar de si e nunca supus vê-lo nesta casa. É uma das coisas boas de Sylvia. Consegue sempre o melhor, como convém, quer se trate de um médico ou de um advogado.

- Obrigado. Não lhe vou tomar tempo algum. Somos da opinião de que deve conservar as energias. Quero apenas comunicar-lhe que me vou ocupar do vosso caso e espero resolvê-lo da melhor maneira.

- J. J. é um escroque - asseverou Bain. - Eu depositava confiança nele, mas ludibriou-me.

- Não se preocupe com isso. Havemos de o enfrentar da forma mais conveniente.

- Oxalá que sim. Estou profundamente inquieto com tudo isto. Quero deixar a família em situação desafogada quando morrer, o que suponho não tardará muito a acontecer. No entanto, prefiro que conserve o respeito por si própria do que dinheiro. Se transigíssemos com aquele burlão, prevaleceria a convicção de que fui seu cúmplice, e a mancha da vergonha continuaria muito depois de eu desaparecer. É um preço demasiado elevado para a segurança financeira. - Virou-se para Sylvia.--Onde está Hattie?

- Vinha atrás de nós.

- Calculo que Edison está ao corrente de tudo...

- Por meu intermédio, não.

- No fundo, não se pode evitar. De resto, parece-me justo que...

Naquele momento, Hattie entrou no quarto quase de rompante e anunciou:

- Querem falar-lhe do escritório, Mr. Mason. Dizem que é muito importante.

- Se me dão licença... --começou o advogado.

--Há um telefone aqui - explicou Bain, apontando para um pequeno móvel junto da cadeira. Em seguida, premiu um botão e moveu-se uma espécie de prateleira com o aparelho.- É uma extensão da linha ao lado.

- Se não vê inconveniente, atenderei daqui. Parece que é urgente.

Mason levantou o auscultador e lançou uma mirada fugaz a Hattie, que declarou:

- Vou desligar o outro telefone. Às vezes, não se ouve bem, com os dois fora do descanso.

A voz de Della Street denotava excitação, do outro lado do fio:

- Um dos homens de Paul Drake acaba de telefonar, chefe. Conhece os sinais de J. J. Fritch? Peça a descrição, depressa. Paul está à espera.

Mason voltou-se para Ned Bain e pediu:

- Pode descrever J. J. Fritch?

- Sem dúvida. É magro, com malares salientes, olhos cinzentos encovados e um pouco encurvado. Gosta de usar chapéus de abas largas, ao estilo do Texas. Além disso, é baixo.

-E a idade?

- Cerca de cinquenta e cinco.

- Quanto pesará, aproximadamente?

- Uns setenta quilos, quando muito.

Repetiu as indicações para o bocal e ouviu Della transmiti-las a Drake.

- Aguente mais um momento--solicitou ela. O advogado ouviu o detective dizer:

- Informe você disso, Della. - No instante imediato, a sua voz surgia na linha. - Perry?

- Que há de novo, Paul?

- O teu amigo Brogan acaba de abandonar o apartamento. A avaliar pela tua descrição, o homem que o acompanhava devia ser J. J. Fritch.

- Isso significa que se dirigiu a casa de Brogan e... Espera! Significa é que Fritch deve morar no mesmo prédio, talvez no mesmo andar.

- Exacto. Já nos certificámos. Vive no apartamento em frente do de Brogan. Do outro lado.

- Do outro lado do corredor?

- Isso mesmo.

- Com que nome?

- Frank Reedy.

- Por conseguinte, trata-se de chantagem ortodoxa e simples.

- Parece que sim. Brogan apresenta a fachada de uma pessoa preocupada com a ética profissional, enquanto Fritch se mantém na sombra.

- Mandaste-os seguir?

- Com certeza. Um dos meus homens vigia Fritch e o outro Brogan.

- Bom trabalho. Se precisares de recorrer a mais pessoal, não hesites. Interessa-nos aprofundar a situação em todos os pormenores.

- Muito bem.

- Os teus homens puderam concluir alguma coisa das expressões deles?

- Sorriam, como se estivessem divertidos com alguma partida que acabassem de pregar.

- É natural. Veremos se conseguimos que a castanha lhes rebente na boca. - Mason pousou o auscultador, dirigiu um sorriso tranquilizador a Bain e afirmou: - Está a desenrolar-se tudo da melhor maneira.

- Porque pretendeu a descrição de Fritch?

- Localizámo-lo.

- Onde? - inquiriu o ancião, pestanejando. - Onde está o patife?

- Tem um apartamento no mesmo piso do de George Brogan, alugado em nome de Frank Reedy. Creio subsistirem escassas dúvidas de que possui lá equipamento para reproduzir gravações de som. Na minha opinião, Fritch entabulou uma longa conversa consigo acerca de questões de gado, evocação dos velhos tempos e coisas do género.

- Recordo^me disso perfeitamente. Conversámos durante cerca de duas horas.

- Ele e Brogan gravaram as palavras que trocaram, aproveitaram as que lhes convinham, e Fritch, num estúdio de gravação, forjou um diálogo em que elas se adaptassem com aparente naturalidade. Surgiu assim o produto final, ou seja, o registo de uma conversa que nunca aconteceu.

- O médico recomendou-me que dominasse a cólera - articulou Ned Bain, a meia-voz. - De contrário, corro o risco de sofrer uma síncope fatal.

- Decerto-assentiu Mason.- Deve tentar manter-se calmo.

- O pior é que a calma não contribui para melhorar a situação. Que pensam eles fazer com a gravação?

- Para ser franco, creio que não farão coisa alguma além de chantagem. Só se tal não for possível é que procurarão negociar com o Banco. Nessa altura, Brogan tomará parte mais activa na operação. Apresentar-se-á como um detective particular que se dedicou a investigações revestidas de valor para o Banco e sugerirá que, se quiserem recorrer aos seus préstimos por um preço convidativo, tentará reunir provas para que lhe movam um processo, Mr. Bain.

- Como deve compreender, não me posso dar ao luxo de permitir que tal aconteça, independentemente do preço.

- Porquê? Talvez não fosse má ideia ventilar tudo no tribunal.

- O simples facto de me processarem bastaria para me arruinar por completo. Os jornais divulgariam o assunto a todo o país e o público não hesitaria em se convencer de que fui cúmplice de Fritch no assalto ao Banco. Ora, não posso admitir que as coisas cheguem a esse ponto. A mancha no nome da família seria mais tenebrosa do que se pagasse aos chantagistas para me livrar deles.

- Mas nunca se livraria deles - argumentou Mason, pacientemente. - Como possuem a matriz da gravação, podem obter todas as reproduções forjadas que quiserem. Apesar de Brogan me ter garantido que só havia a que me mostrou, consegui certificar-me de que não passava de uma cópia.

- Não te preocupes, pai - interveio Sylvia. - Deixa esses patifes a cargo de Mr. Mason, que arranjará uma maneira de lhes tratar da saúde.

- É o que vou fazer - assentiu Bain. - Em todo o caso, gostava de ouvir a gravação, para verificar se contém de facto a minha voz.

- Não restam dúvidas a esse respeito - asseverou ela.

- De qualquer modo, não se deve apoquentar tanto - opinou Mason. - Estou certo de que os privaremos de munições. Eles obtiveram a sua voz e forjaram perguntas para se adaptarem às respostas dadas previamente. Para já, posso assegurar-lhe uma coisa. Não existe nada que o comprometa nessa gravação. As sua respostas limitam-se a concordar com as afirmações de J. J. Fritch. Fiquei de voltar a encontrar-me com Brogan no seu apartamento amanhã, às nove, para a ouvir de novo.

Bain tornou a pestanejar, inclinou a cabeça e, de súbito, os olhos cerraram-se, ao mesmo tempo que começava a respirar com regularidade.

Hattie, que entretanto regressara da sala ao lado para pousar o auscultador da outra extensão, levou o indicador aos lábios e fechou a porta atrás deles, depois de desfilarem para a saída.

-O médico deu-lhe um sedativo--esclareceu em voz baixa. - Diz que precisa de repousar e excitar-se o menos possível. A nossa presença impediu que adormecesse mais cedo. Em todo o caso, ficou sensivelmente mais calmo depois de falar consigo, Mr. Mason. Vi-o serenar à medida que o escutava. Não reparaste, Sylvia?

- Sim, tens razão.

- Bem, vou regressar ao escritório - anunciou Mason. - Quer aparecer para o encontro de amanhã com Brogan, Mrs. Atwood?

- Sem dúvida. No entanto, é um pouco cedo. E se nos encontrássemos?... Vai-me ser difícil chegar ao centro da cidade e daí ao apartamento dele, devido ao trânsito do período de ponta. E se seguisse directamente para lá?

- Não vejo inconveniente.

- Espero chegar às nove. Agora, vou levá-lo.

- Não é necessário-interpôs Edison Doyle.- Tenho de voltar à cidade e posso dar boleia a Mr. Mason.

- Bem, talvez eu deva ficar e ver o que posso fazer se meu pai acordar - admitiu Sylvia, hesitante. - Não se importa, Mr. Mason?

- Decerto que não. Espero termos conseguido tranquilizá-lo.

- Não tenho dúvidas a esse respeito - acudiu Hattie. - Ele estava muito preocupado. Há qualquer coisa que desconhecemos... que ele sabe acerca de J. J. e leva a temê-lo. Penso que se trata de um indivíduo capaz de recorrer a medidas desesperadas.

- Acha-lo capaz de cometer um acto tão repreensível como telefonar a Mr. Bain? - perguntou Doyle.

- Isso revela que o encostámos à parede - declarou Mason.

- Não estou a compreender - confessou Hattie.

- A partir do momento em que Mr. Mason entrou em cena, eles convenceram-se de que seriam derrotados - explicou Sylvia. - Assim, J. J. telefonou ao pai, numa tentativa para o assustar, indiferente às consequências.

- Precisava de uma sova mestra - observou Doyle.

- Na verdade, tudo indica que se aliou a esse detective particular para a operação de chantagem.

- Não pode haver outra explicação - volveu Mason.

- Fritch tem um apartamento mesmo em frente do de Brogan, embora o alugasse em nome de Frank Reedy.

- Que se pode fazer para lhes frustrar os planos?

- Se conseguirmos apoderar-nos da prova que forjaram, como espero, podemos mandá-los prender por conluio.

- O pai não quereria uma solução dessas - disse Hattie, apressadamente. - Desejo evitar toda a publicidade.

- Bem, vamos, Mr. Mason - sugeriu Doyle. - Tenho a carripana junto da porta. Não é dos últimos modelos, mas serve para o fim em vista.

O advogado despediu-se dos outros, seguiu Doyle e subiu para um carro com cerca de cinco anos de existência.

- Há uma coisa que não compreendo acerca do aspecto legal do caso, Mr. Mason.

- O quê?

- Como vão eles identificar a gravação?

- Tem de ser feito por meio do testemunho de J. J. Fritch - informou Mason, enquanto o outro punha o veículo em movimento. - Ou seja, Fritch seria chamado a depor e juraria que tivera essa conversa e a gravara para sua própria protecção.

- E ele é um escroque?

- Indiscutivelmente.

- E chantagista?

- Idem aspas.

- Se acontecesse alguma coisa que tivesse de omitir e ele não estivesse presente para identificar a conversa, não poderia ser utilizada?

- Exacto. A gravação teria de ser identificada. Fritch necessitaria de declarar que se tratava de uma conversa autêntica que sustentara com Ned Bain.

- E, no contra-interrogatório, teria de admitir que assaltara o Banco?

- Com certeza.

- Dá-me a impressão de que o senhor o pode esmagar no contra-interrogatório.

- Pois posso, mas adviria daí uma publicidade indesejável. Creio que é isto que preocupa Ned Bain.

- Sou da mesma opinião - reconheceu Doyle.- No entanto, duvido que se apoquente particularmente consigo mesmo. Pensa nas filhas, duas jóias de moças, sobre cujas cabeças paira uma ameaça ominosa. Não, não podemos permitir que tal aconteça. Umas raparigas como aquelas! - Começava a entusiasmar-se com os seus próprios argumentos. - Duvido que se consiga encontrar melhores! Hattie é leal, atenciosa e modesta. E, quanto a Sylvia, não precisa de um agente de publicidade para enaltecer os seus atributos. Pode considerar-se uma beldade, alegre, cheia de vivacidade. Junto dela, um homem sente-se revigorado. Não vejo inconveniente em lhe confessar, Mr. Mason, que tenho encarado a existência demasiado a sério, com o nariz sempre colado ao estirador.

- É natural que, mais cedo ou mais tarde, venha a colher dividendos disso - profetizou o advogado.

- É possível, mas quando vejo o que acontece a quem encara a vida muito a sério... Aqui para nós, penso que a vida, como o dinheiro, foi feita para se despender. Não existe nada de mais efémero que os segundos eliminados pelo avanço do ponteiro do relógio. Não se podem recuperar. Têm de se consumir, vivê-los.

- As coisas não se revestem dessa simplicidade. Uma pessoa tem de se preparar. Estabelecer as fundações da sua vida. O tempo que gasta em estudos de projectos representa um investimento tão valioso como dinheiro depositado no Banco.

- Talvez tenha razão - concedeu Doyle, e imergiu em silêncio.

Trascorrido um momento, Mason aventurou:

- Suponho que elas lhe confiaram a verdade, logo que a crise eclodiu...

- Fê-lo Hattie. É uma rapariga muito conscienciosa. Se houvesse alguma coisa que viesse a afectar a família (um velho escândalo ou algo do género), queria que eu me inteirasse antes... bem, antes que tomasse uma posição - concluiu Doyle, com uma risada de nervosismo.

- Não pretendi intrometer-me na sua vida privada.

- Não, de modo algum. Aliás, alegra-me que surgisse a oportunidade de me explicar. Farei tudo o que for necessário por aquelas duas moças.

- Pelas duas?

- Exacto - assentiu, após breve pausa.

A seguir, não tornou a pronunciar palavra até que depositou Mason à entrada do prédio em que se situava o escritório.

- Tive muito gosto em conhecê-lo - declarou, com um aperto de mão efusivo. - Foi uma experiência que nunca esquecerei. O facto de se encontrar do nosso lado dá-me uma sensação de invencibilidade absoluta.

- Não exagere os meus méritos - replicou Mason, com uma gargalhada. - Penso que estamos a progredir, mas é tudo o que posso afirmar de momento.

 

Eram quase oito horas e meia da manhã seguinte, quando Mason estacionou o carro à entrada do prédio de apartamentos, e Della Street abriu a porta do seu lado para se apear.

- Quer que suba consigo? - perguntou, enquanto ele contornava o veículo para se lhe reunir.

- Quero.

- Que devo fazer?

- Conservar os olhos e ouvidos bem abertos.

- Como tenciona explicar a minha presença a Brogan?

- Não tenho de explicar nada àquele cavalheiro. Doravante, vai estar na defensiva.

- Depreendo que desempenharei o papel de testemunha...

- Exacto.

- Mas dispõe de Sylvia Atwood.

- Pois disponho. No entanto, preciso de uma testemunha na qual possa confiar.

- Não acha que pode confiar nela?

- Não sei. Bem, vamos subir. Vejo que Sylvia já chegou. O carro estacionado ali adiante é o dela.

- Veio cedo - comentou Della, consultando o relógio.

- Não muito. Precisamos de dois ou três minutos para subir no elevador.

Entraram no átrio do prédio e, depois de se encontrarem no piso que lhes interessava, atravessaram o corredor. Della, que se movia um pouco à frente, anunciou:

- Está aqui um bilhete, chefe. É-lhe dirigido. Mason espreitou por cima do ombro da secretária e viu um sobrescrito fixado à porta por meio de uma tacha, com os dizeres a vermelho: Mr. Perry Mason.

Obedecendo a um sinal dele, Della arrancou-o, abriu-o e leram o conteúdo simultaneamente:

Mr. Mason:

De vez em quando, permito-me uma partida de póquer com uns amigos, como acontece esta noite, e vamos começar cedo, cerca das dez. Espero que termine muito a tempo de comparecer ao nosso encontro. Se, todavia, me atrasar uns minutos, queira entrar e estar à sua vontade, pois deixo a porta fechada no trinco. Garanto-lhe que, se não aparecer às nove em ponto, não tardarei mais de dez minutos.

George Brogan

 

Mason oihou a mensagem pensativamente, até que a voltou a dobrar e guardar no sobrescrito, após o que colocou a cigarreira por baixo, a fim de examinar o orifício produzido pela tacha.

- Está desconfiado? - perguntou Della.

- É uma armadilha. Vou deixar o sobrescrito como estava, para que ninguém possa provar que lemos o conteúdo e... olá!

- Que foi?

- Há dois orifícios. Alguém se nos antecipou, sem se aperceber da necessidade de utilizar o mesmo para tornar a afixar o sobrescrito.

- Que fazemos?

- Uma coisa que não vamos fazer é um terceiro orifício. Brogan deve ter sido suficientemente atilado para prever como eu procederia, pelo que produziu dois para que não pudesse afirmar que não tinha lido o bilhete. E já que esteve com tanto trabalho e caímos na ratoeira, vou ficar com ela. - E, com estas palavras, tornou a cravar a tacha na porta e fez desaparecer o sobrescrito com o bilhete na algibeira.

- Sempre entramos? - quis saber Della.

- Não.

- Porquê? - Como lhe disse, é uma armadilha. Ele pretende que entremos e revistemos o apartamento. Está demasiado ansioso porque o façamos.

- Por que razão?

- Nenhuma que nos favoreça. A que existir será para sua própria vantagem.

- Mas que lucrava ele?...

- Suponha que entramos e descobrimos que alguém forçou o cofre?

- Nesse caso, aguardamos aqui?

- Não sei... - Mason assumiu uma expressão pensativa.- Como não fechou a porta à chave, ele pode alegar que entrámos... Não, vamos esperar cá fora, para lhe dizer o que pensamos das suas armadilhas e... Mas espera. Sylvia deve ter-nos precedido...

Interrompeu-se no momento em que soou um baque no apartamento, suficientemente intenso para abalar o sobrado.

- Que foi aquilo? - balbuciou Della, surpreendida.

- Não sei. Parece que alguém...

Registou-se um grito agudo e, num gesto instintivo, ela estendeu a mão para o puxador da porta e começou a fazê-lo rodar. Porém, o advogado apressou-se a retirar-lha.

- Mas está alguém em apuros, lá dentro, chefe! Aquilo foi um grito de terror!

A porta foi aberta de dentro com brusquidão, para dar passagem a uma mulher que se preparava para correr quando viu Mason e Della Street e parou, como que petrificada.

- Parece que se entregou a investigações por sua conta, Mrs. Atwood- observou o advogado.

- Ainda bem que o encontro, Mr. Mason! Santo Deus!...

- Que aconteceu?

- Mataram J. J. Fritch!

- Como sabe?

- O corpo encontrava-se no armário das bebidas e caiu de bruços quando o abri.

Mason puxou de um lenço da algibeira, utilizou-o para envolver a palma da mão e os dedos e fechou a porta, enquanto dizia a Sylvia:

- Vejo que calça luvas. Conservou-as sempre, lá dentro?

Ela assentiu com uma inclinação de cabeça. As faces tinham-se tornado lívidas sob a maquilhagem, o que fazia com que o carmim se destacasse com uma tonalidade bizarra.

- É de facto Fritch? - volveu ele.

- Sim.

- Tem a certeza de que está morto?

- Sem dúvida. Caiu para a frente e...

- Como está vestido?

- Não está.

- Desnudo?

- Tem apenas a roupa interior. Uma camisola sem mangas e cuecas.

-E peúgas?

- Não.

- Sapatos?

- Também não.

- Não será melhor nós?... - começou Della, com uma expressão de ansiedade.

- É uma armadilha - replicou Mason, abanando a cabeça. - Já que caímos nela, tentemos agora safar-nos.

Ainda com o lenço na mão, aproximou-se da porta do lado contrário, fez girar o puxador e impeliu-a, após o que se virou para as duas mulheres.

- Prestem muita atenção. Brogan deve estar a aparecer, ofegante, para alegar que se atrasou por causa da partida de póquer. Digam-lhe que fiquei lá em baixo à procura de um lugar para arrumar o carro. A sua conclusão natural será que viemos os três juntos, parei à entrada do prédio para que vocês se apeassem e subirei logo que encontre um espaço para estacionar.

- Não quererá saber pormenores? - alegou Della.

- Aparecerei antes que tenha oportunidade de as interrogar, desde que procedam exactamente como digo. Conserve na mão o bilhete que estava afixado na porta e mantenha-o fora do sobrescrito, como se acabasse de o ler. Isso proporciona-lhe o pretexto para saber que a porta não se encontra fechada à chave. Depois de lhe comunicar que fiquei a arrumar o carro, abra-a com naturalidade e entre, dizendo que o faz porque leu o bilhete que me é dirigido e eu não devo tardar.

- Muito bem.

- Entretanto - prosseguiu Mason, voltando-se para Sylvia -, você terá uma oportunidade para se manter em segundo plano. Não se vire de modo que esteja voltada para este apartamento, mas estenda a mão para trás até localizar o botão da campainha. Toque duas vezes consecutivas e breves. Depois, siga Della e Brogan ao apartamento. Providencie para ser a última a...

- Ele não se desviará para nos deixar passar à frente?

- Esforce-se por evitar que tal aconteça. Brogan é um escroque e chantagista. Nunca se preocupou muito com as boas maneiras.

-E o senhor que fará?

- Há uma possibilidade em cem de me apoderar da matriz da gravação antes de ele chegar. Como ouvirei o seu sinal da campainha, deixarei passar uns três segundos para que transponham a porta, após os dois toques, deslizarei para o corredor, fechá-la-ei atrás de mim e tocarei à campainha de Brogan ou talvez acabe de chegar no momento em que vocês estão a fechar a porta depois de entrarem. Desse modo, ele não pode provar onde me encontrava. É provável que se convença de que procurava um lugar para arrumar o carro. Entenderam bem?

- Sim - assentiu Della.

- Só não compreendo como...-aventurou Syívia.

- Nem é preciso - cortou Della, em tom incisivo. - Faça exactamente o que Mr. Mason indica.

Este introduziu-se no apartamento de Fritch, que fora alugado em nome de Frank Reedy, e fechou a porta atrás dele.

As cortinas das janelas achavam-se corridas e as luzes acesas, enquanto um televisor ao canto transmitia um spot publicitário.

Mason atravessou a sala e entrou no quarto, cujas cortinas estavam como as outras. A cama apresentava-se intacta, como se ninguém a tivesse ocupado na noite anterior, e havia um roupão pousado no espaldar de uma cadeira próxima, com um par de chinelos ao lado.

A casa de banho contígua estava perfeitamente arrumada, com a luz acesa e o estore baixado.

Após uma inspecção superficial, retrocedeu e entrou na kitchenette, onde se lhe deparou uma situação peculiar. Todas as prateleiras estavam cheias de comida enlatada e o frigorífico continha uma quantidade apreciável de géneros. A seguir, levantou a tampa da arca congeladora e emitiu um silvo de admiração, pois depararam-se-lhe os produtos alimentares mais variados. Por último, tornou a baixá-la e entregou-se a breves reflexões.

Tudo indicava que J. J. Fritch se preparara para uma longa hibernação. Na realidade, achava-se em condições de fechar a porta do apartamento à chave e isolar-se do mundo. Não necessitaria de sair para nada. Poderia manter-se no esconderijo ao longo de semanas ou meses, consoante as suas conveniências.

Por fim, abandonou a kitchenette, regressou à sala e abriu a porta de um largo armário, que se encontrava repleto de vestuário, sapatos e equipamento de gravação de som.

Em seguida, inspeccionou os móveis do quarto. Acabava de descobrir que o guarda-fato continha uma variedade convencional de roupa de homem e preparava-se para examinar a cómoda, quando a campainha da porta soou duas vezes consecutivas.

Acto contínuo, correu para lá, escutou e detectou duas vozes femininas e uma masculina.

Aguardou três segundos, entreabriu a porta, viu que a do apartamento em frente se fechava, precipitou-se para lá, impeliu-a e proferiu:

- Afinal, não tardei muito.

George Brogan sorriu-lhe e dirigiu-se à janela, para afastar as cortinas e permitir a entrada da claridade matinal, que evidenciou o seu aspecto pouco atraente. As faces apresentavam a sombra característica de quem não se barbeara, o colarinho da camisa estava desabotoado, com o nó da gravata puxado para o lado e os olhos estavam congestionados, além do que o hálito continha uma notável percentagem de vapores de álcool.

- Desculpem o atraso. Leu o meu bilhete, Mason? Este exibiu uma expressão de perplexidade, enquanto

Della Street explicava:

- Está aqui, chefe. - E estendeu-lho.

- Miss Street é a minha secretária confidencial - explicou o advogado.

Brogan pronunciou a fórmula de cortesia da praxe, porém os olhos ansiosos e furtivos não se desviaram do rosto de Mason, enquanto lia o bilhete. Depois de calcular que chegara ao fim, disse:

- Lamento o atraso, sobretudo porque costumo ser pontual. Como vê, nem me preocupei em fazer a barba. Corri para aqui e só me detive uns momentos pelo caminho para tragar dois ovos estrelados com uma chávena de café. Doía-me a cabeça e não conseguia raciocinar em termos, com o estômago vazio. - Consultou o relógio e acrescentou:-Assim, apenas me atrasei cinco minutos. Sabe como estas coisas são, Mason. Queria raspar-me cedo, mas comecei a perder e tentei recuperar algum do dinheiro, até que consegui. No entanto, como, além disso, passei a ficar na mó de cima, tive de proporcionar a desforra aos outros. Por conseguinte, fui adiando a hora de me retirar, até que amanheceu e vi que a custo me apresentaria no encontro combinado com a pontualidade que costumo observar. Mas sentem-se, por favor. Espero que as senhoras perdoem o meu ar desmazelado. Sei o que pensa, Mason. Julga que a deficiência não estava no aparelho e a gravação tinha sido apagada, devido a qualquer outra anomalia. Portanto, vou passá-la mais uma vez, para que veja que permanece intacta. No entanto, primeiro, se me permitem, irei pôr café a aquecer.

Encaminhou-se para a porta da kitcheneite e, quando se preparava para a transpor, estacou, como que petrificado.

- Que aconteceu? - perguntou Mason, transcorrido um momento.

O outro voltou-se com lentidão, fechou a porta atrás dele e postou-se diante do advogado, com uma expressão acusadora.

- Qual é a sua ideia?

- Não compreendo.

- Deixei um bilhete na porta, quando saí. O apartamento não estava fechado à chave. Você chegou primeiro e leu-o. Bem, em face das circunstâncias, creio que é isto que se deve fazer. - Brogan dirigiu-se ao telefone, levantou o auscultador e pediu à telefonista: - Ligue à Polícia, depressa. Houve um homicídio e conservo três pessoas comigo, uma das quais é provavelmente o assassino.

 

O sargento Holcomb, do Departamento de Homicídios, podia, quando lhe apetecia e sem esforço aparente, mostrar-se invulgarmente acutilante, sarcástico e desagradável.

Desta vez, apresentava-se em forma excepcional.

- Já lhe disse que não posso ficar o dia inteiro aqui - advertiu Mason, irritado. - Passaram duas horas e a sessão ameaça eternizar-se.

O sargento, que requisitara o apartamento do administrador do prédio e mantinha as testemunhas incomunicáveis, tardara propositadamente em chamar Perry Mason, e agora os olhos emitiam um clarão quase sádico.

- Não venha com tretas dessas. São velhas e gastas. Você está farto de descobrir cadáveres, para conhecer a rotina.

- Não fui eu que descobri este.

- Isso é o que você diz.

- Alguém afirmou o contrário?

- Quem faz as perguntas sou eu.

- Então, faça-as.

- Conhecia J. J. Fritch?

- Que me recorde, nunca o vi.

- Que sabe das circunstância em que o corpo foi encontrado?

- George Brogan dirigia-se à cozinha para aquecer café, mas parou à entrada, voltou para trás e telefonou à Polícia.

- Que fazia você aqui?

- Tinha um encontro marcado com Brogan.

- Para quê?

- Uma questão de negócios.

- De que natureza? - Vendo Mason abanar a cabeça, Holcomb insistiu: - Porque não o quer revelar? - É confidencial.

- Nada é confidencial na investigação de um homicídio.

- As nossas opiniões diferem, nesse particular. Discordámos no passado e creio que isso continuará a acontecer agora e no futuro.

- Sei que disse a Brogan que ouvia mal, e necessitava de usar um aparelho auditivo.

- A sua informação é incorrecta.

- Mas usa um aparelho auditivo.

- Engana-se. Trata-se de um gravador de bolso. Temho o microfone junto da orelha. Se Brogan pensou que era um aparelho auditivo, equivocou-se.

- Mostre-mo.

- Não tem nada gravado. Ainda não estava ligado. Aguardava o momento em que se iniciasse a minha conversa com Brogan.

- Mostre-mo.

Mason extraiu o gravador da algibeira e estendeu-o ao sargento, que o examinou por uns minutos e acabou por guardar na pasta.

- Ser-lhe-á devolvido depois de inspeccionado pelos peritos. Não me contento com a sua palavra.

- Garanto-lhe que não há nada gravado, hoje.

- E ontem?

- isso é comigo e com a minha cliente.

- Posso averiguá-lo - ameaçou Holcomb.

- Então, averigue.

- Brogan diz que deixou um bilhete para si na porta.

- É verdade.

- Encontra-se em poder da sua secretária, Della Street.

- Que diz ela?

- Quero ouvir o que você diz - salientou, com um sorriso escarninho.

- Muito bem. - Mason comprimiu os lábios e assumiu uma expressão granítica. - Faça a pergunta.

- Lembre-se de que é advogado, um membro dos tribunais. Portanto, não julgue que pode armar em esperto e dissimular informação arbitrariamente.

- Devo proteger os interesses dos meus clientes, o que farei na medida do possível. Não pense que pode usar da sua autoridade para me arrancar aquilo que eu considerar inconveniente.

- A sua cliente assassinou J. J. Fritch?

- Como quer que eu saiba?

- O que o leva a desconfiar?

- Não desconfio de nada.

- As suas palavras implicam a possibilidade de ela o poder ter feito.

- Decerto que a possibilidade existe.

- Não tem a certeza?

- Não.

- Porquê?

- Para já, porque não me permitiram que trocasse impressões com ela. Aliás, não permitiram que falasse com ninguém.

- Julga-me estúpido ao ponto de deixar as testemunhas juntas, para congeminarem uma versão que se adapte a todos os factos e eu ficar de mãos a abanar? Não nasci ontem.

- E julga-me estúpido ao ponto de lhe fornecer informações susceptíveis de trair os interesses de um cliente antes de podermos conversar?

- Se não mas fornece, arrepende-se.

- Faça as perguntas e depois se vê.

- Que o trouxe aqui?

- Tinha uma entrevista.

- Com quem?

- George Brogan.

- A que horas?

- Às nove.

- Quando chegou você?

- Não olhei para o relógio.

- Ele deixou um bilhete na porta.

- Foi o que ouvi dizer.

- A sua secretária afirma que o leu. --Obrigado.

- Porquê?

- Por me revelar o que ela disse. --Não lhe vou revelar tudo.

- Então, retiro os agradecimentos.

- Isto assim não nos conduz a parte alguma.

- Não o conduzirá a parte alguma.

- Quando se inteirou de que Fritch tinha sido assassinado?

- Ainda não sei que foi assassinado.

- Acabo de lho dizer.

- Eu ouvi.

- Quer dizer que não aceita a minha palavra?

- Não afirmei isso.

- Sugeriu-o. - Holcomb fez uma pausa, enquanto Mason encolhia os ombros e acendia um cigarro. - Quando viu J. J. Fritch vivo pela última vez?

- Nunca o vi vivo.

- Quando viu o seu corpo pela primeira vez?

- Não vi o corpo.

- Quais são as suas relações com Mrs. Sylvia Atwood?

- É minha cliente.

- Quando chegou ela aqui?

- Não sei.

- Por "aqui" refiro-me ao apartamento de Brogan.

- Não sei.

- Quando lhe disse ela que tinha chegado?

- Ainda não tive oportunidade de lho perguntar.

- Não era essa a minha pergunta.

- Pois não, é o que eu lhe disse.

- Quando lhe disse ela que chegou ao apartamento de Brogan?

- Ainda não tive oportunidade de lho perguntar.

- Peço-lhe uma informação específica.

- Estou a fornecer-lhe uma informação específica.

- Quando chegou a sua secretária?

- Ainda não tive oportunidade de conversar com ela.

- Veio consigo, hem?

- Ainda não tive oportunidade de lho perguntar.

- Não é sua cliente, mas secretária.

- Sei lá se é minha cliente ou não? Sei lá o que você pretende fazer? É suficientemente alucinado para a acusar de homicídio premeditado.

- Com mil diabos, Mason!-vociferou o sargento, com uma expressão apoplética. - Sou suficientemente corajoso para o acusar a si de homicídio premeditado!

- É uma ameaça?

- Sem dúvida. Garanto-lhe que sou capaz de o fazer.

- Muito bem. Em face da afirmação que acaba de proferir, recuso responder a ulteriores perguntas suas, até consultar um advogado.

- Qual advogado? Você é advogado, e dos bons, embora me custe reconhecê-lo.

- Um advogado não pode ser o seu próprio cliente. Se me vai acusar de homicídio, necessito do apoio de um colega.

- Como quer que saiba se vai ou não ser acusado de homicídio?

- Você disse que tencionava fazê-lo.

- Referi que era capaz disso.

- Disse que o faria.

- Bem, faço, se os factos o exigirem.

- E os factos exigem-no?

- Sei lá!

- Nesse caso, não sei se preste declarações. Já mencionei que tinha uma entrevista com Brogan às nove, à qual compareci. Talvez chegasse uns minutos atrasado ou adiantado. Não me recordo de ver as horas. Não sei sequer se tenho o relógio certo. Sei que ele deixou um bilhete na porta no sentido de que entrássemos e esperássemos. Entretive-me um pouco lá em baixo, a fim de procurar lugar para arrumar o carro, e, quando cheguei, vi que a minha secretária, Della Street, já entrara com Brogan, e Sylvia preparava-se para os seguir, pelo que consegui passar antes que fechassem a porta.

"Quase imediatamente, Brogan explicou que tinha passado a noite a jogar póquer com uns amigos e viera directamente para aqui, apenas com uma breve paragem para comer ovos estrelados e tomar café. Pediu desculpa do atraso de alguns minutos, poucos, mas não consultei o relógio para confirmar a sua afirmação, embora depreendesse das suas palavras que passava das nove.

- Portanto, você também chegou atrasado - acusou Holcomb. Vendo que Mason se conservava silencioso, inquiriu: - Seguiu directamente para o apartamento de Brogan?

- Depois de arrumar o carro? -Exacto.

- Sim.

- Há qualquer coisa que não joga certo, no meio disto - comentou, enrugando a fronte. - Diz você que seguiu directamente para o apartamento de Brogan?

- Sim, até à entrada. Para onde queria que fosse?

- Por conseguinte, teve de procurar lugar para arrumar o carro e as mulheres precederam-no. Foi assim?

- Já prestei declarações - redarguiu Mason, com um sorriso. - Em virtude de ter anunciado que tenciona acusar-me de homicídio premeditado, não direi mais nada senão na presença de um representante legal. Penso que o meu depoimento abarca uma margem suficiente para não omitir qualquer elemento susceptível de lhe facilitar as investigações. Não pretendo revelar-lhe coisa alguma que se possa considerar divulgação de uma confidência profissional.

- Não pode indicar a natureza do assunto que vinha tratar com Brogan?

- Não o quero fazer.

- E quanto ao facto de Mrs. Atwood ser ou não sua cliente?

- Isso digo.

- É ou não?

- É.

- Que serviço se comprometeu a prestar-lhe?

- Tratar de um assunto.

- Qual? - Mason encolheu os ombros e o sargento prosseguiu: - Brogan afirma que se relaciona com uma gravação.

- Sim?

- Diz que a procurou e não conseguiu encontrá-la. Parece convencido de que você se apoderou dela.

- Não me diga.

- Apoderou-se de uma gravação que se encontrava no apartamento dele?

- Não.

- Sabia que J. J. Fritch tinha alugado o apartamento em frente e dado o nome de Frank Reedy?

- Ocupava o apartamento mesmo em frente do de George Brogan? - articulou Mason, mostrando-se surpreendido.

- Sim. Evidentemente que na altura não sabia. - Holcomb voltou a impacientar-se ante o novo mutismo do advogado. - Fale, homem!

- Já falei.

- Não respondeu às minhas perguntas.

- Não tenciono responder a todas. Tenho de traçar uma linha limitativa.

- Então, explique em que ponto a traçou.

- É uma linha muito bem definida. As suas perguntas resolvem-se em duas grandes categorias.

- Está bem - concedeu, com um suspiro de resignação. - Quais são?

- Aquelas a que posso responder e as que não posso.

- É uma atitude levada da breca para um advogado.

- Talvez tenha razão. Que alternativa sugere?

- Sugiro que responda, se não se quer ver em sérios apuros.

- Já tinha esclarecido bem essa faceta da situação. Até chegou a especificar a natureza dos apuros. Por outras palavras, a acusação de homicídio premeditado. Estou convencido de que lhe dispensei toda a consideração, sargento. Aguardei aqui pacientemente, enquanto as outras testemunhas eram interrogadas. Quanto a mim, a sua determinação de que ninguém podia abandonar o edifício é a todos os títulos asinina. Sou advogado, com escritório no centro da cidade, onde me pode encontrar sempre que necessitar de algum esclarecimento. Agora, vou levantar-me e sair daqui.

-É o que você pensa.

- Repito que me vou levantar e sair daqui, a menos que seja retido pela força. E isso só poderá acontecer se me der voz de prisão. Na eventualidade de ser detido, quero que formule concretamente a natureza da acusação, a fim de me proporcionar a oportunidade de tratar de assegurar o pagamento da caução.

- Os detidos por suspeita de homicídio premeditado não têm direito a caução.

- Óptimo. Então, acuse-me de homicídio premeditado.

- Ainda não estou em condições de o fazer.

- Sendo assim, vou retirar-me. Quando estiver em condições, sabe onde me encontra. - E Mason levantou-se e começou a mover-se para a porta.

- Sente-se! - rugiu Holcomb.- Ainda não acabei.

- Mas acabei eu - retorquiu o advogado, abrindo a porta.

O sargento fez sinal a um agente uniformizado, que segurou Mason pelo braço.

- Se pretende acusar-me de homicídio premeditado, faça-o - desafiou este último. - Se deseja prender-me, leve-me para a esquadra. Por outro lado, se me retém aqui sem dar voz de prisão ou prende sem me acusar, movo-lhe um processo por abuso de autoridade. Decida o que prefere.

O agente soltou-lhe o braço e consultou com o olhar o sargento, que insistiu:

- Não o deixes sair. Isso comigo não pega.

- Vai acusar-me de alguma coisa? - perguntou Mason.

- Há um facto indiscutível - rosnou Holcomb. - A sua versão não condiz com as outras que ouvi. Estou convencido de que visitou o apartamento de Brogan antes dos outros suspeitos.

- Declarei distintamente que entrei atrás de Brogan e das duas mulheres.

- Pela primeira vez?

- Pela primeira vez, hoje. Tinha lá estado ontem.

- Penso que mente.

- Vá para o diabo. - Mason recomeçou a mover-se para a porta. - Acuse-me ou deixe-me sair. Não direi nem mais uma palavra.

O agente avançou um passo na sua direcção, todavia Holcomb mudou de ideias.

- Deixa-o sair - indicou, e reclinou-se na cadeira com uma expressão de desalento.

 

Paul Drake assumiu a sua posição favorita na confortável poltrona do gabinete de Mason: o corpo quase em diagonal com o assento, as pernas pousadas num dos braços e a cabeça no outro.

- Despeja lá o saco - disse o advogado, instalado atrás da secretária.

- J. J. Fritch foi morto com vários golpes de um furador de gelo. Sangrou pouco para fora, mas havia abundante hemorragia interna, em virtude de o coração ter sido atingido duas vezes.

- Quantos ferimentos, ao todo?

- Oito.

- Alguém quis ter a certeza de que executava um trabalho perfeito.

- Parece que sim. Evidentemente que, no caso de uma arma pequena como essa...

- Encontraram o furador de gelo?

- Até agora, não.

- Havia uma arca congeladora no apartamento de Brogan?

- Não. Ele utilizava um frigorífico vulgar, do qual obtinha os cubos para as bebidas. Fritch também. A Polícia não tem a certeza de que foi essa a arma empregada, mas pensa que sim. Vou revelar-te uma coisa que ainda não ocorreu às autoridades.

- O quê?

- Em casa dos Bain existe um frigorífico comum, mas também uma arca congeladora na varanda das traseiras. De vez em quando, há necessidade de aplicar gelo ao velho. Consomem cerca de vinte quilos por dia.

- Holcomb já lá esteve?

- Não.

- Della encontra-se lá neste momento.

- Talvez não fosse má ideia mandá-la procurar o furador de gelo.

Mason conservou-se silencioso por um momento e inquiriu:

- Quando foi cometido o crime?

- Ao que parece, entre a meia-noite e as três da madrugada. Segundo o médico que praticou a autópsia, não pode ter sido antes nem depois. Não consegue indicar uma hora mais concreta. - Drake fez uma pausa, antes de perguntar: -Onde estavas nessa altura?

- Na cama.

- É o inconveniente dos solteirões. Precisas de casar, pelo menos para evitar situações destas. Assim, não dispões de álibi. Resta-te apenas a tua palavra sem confirmação.

- O prédio tem um homem de serviço permanente à entrada.

- Ter-te-ia visto, se saísses?

- Julgo que sim.

-E quando regressasses?

- Também.

- Devem estar a interrogá-lo.

- Então, pensam mesmo que matei Fritch? - bradou Mason, com uma expressão de incredulidade.

- Bem, a situação é esta. Brogan possui um álibi perfeito.

- Até que ponto? Só me convencerei se for mesmo à prova de fogo. O caso apresenta demasiado o aspecto de uma maquinação, para que me satisfaça. A partida de póquer surgiu com uma oportunidade suspeita. Quanto a mim, foi ele que matou Fritch.

- Garanto-te que tem um álibi. Começou a jogar às dez da noite e só se retirou às cinco da manhã. Estivera a perder pesadamente, e a essa hora teve de ir buscar mais dinheiro. Regressou uns quarenta e cinco minutos mais tarde e recomeçou a jogar. Por volta das oito, quando já estava a ganhar, alegou que tinha de se retirar por causa de um encontro às nove da manhã e precisava de se barbear e mudar de camisa, mas os outros exigiram que lhes concedesse o ensejo de uma desforra.

- A que horas acabou por sair?

- Ninguém sabe com exactidão, mas foi cerca das oito e meia. Tomou o pequeno-almoço e chegou ao apartamento diante do qual Della Street e Sylvia Atwood aguardavam. Que declarou Della à Polícia?

- Nada. Adoptou a atitude de que era minha secretária e, ao abrigo da Lei, qualquer informação que possuísse devia considerar-se confidencial, sob pena de afectar os direitos de um cliente, e como não conhecia todos os pormenores do caso de que me ocupava, se falasse podia revelar inadvertidamente algum pormenor susceptível de prejudicar o meu trabalho. Por conseguinte, negou-se a prestar quaisquer declarações.

- É uma moça fixe - aprovou Drake. - Constou-me que Holcomb a crivou de perguntas.

- Acho que sim. Tentou todos os ardis. No entanto, ela limitou-se a aguentar a barragem com um sorriso e replicar que teria o maior prazer em revelar tudo o que não fosse confidencial, mas só depois de lhe ser permitido falar comigo para se elucidar do que era ou não confidencial.

- E quanto a Sylvia Atwood?

- Foi a primeira a ser interrogada e, depois de descrever a sua versão, Holcomb deixou-a ir embora. Telefonei-lhe para que me procurasse, mas ainda não apareceu.

- Perguntaste-lhe alguma coisa?

- Apenas de um modo geral. Della está a averiguar exactamente o que foi dito.

- Suponho que indagaste o que disse a Holcomb...

- Sem dúvida. Repetiu o que dissera a Brogan: quando chegou ao apartamento, viu Della à entrada, lendo o bilhete, no qual ele explicava que talvez chegasse um pouco atrasado e a porta não estava fechada à chave e podíamos entrar. Della não queria, mas Sylvia insistiu em que o fizessem.

- Não estavas presente?

- Ela disse que eu tinha ficado a arrumar o carro e não tardaria. Brogan apareceu, enquanto discutiam se deviam entrar ou não, e eu pouco depois. Não se recorda de ter consultado o relógio nesse momento.

- A Polícia descobriu alguém que mora no mesmo andar e jura que ouviu uma mulher gritar pouco antes das nove, convencido de que foi no apartamento de Brogan. Os ocupantes do piso em baixo deram conta de um baque e do som de uma mulher a gritar, pouco antes das nove. Têm a certeza da hora porque aguardavam o noticiário das nove. Uma testemunha que vive no rés-do-chão viu Mrs. Atwood em apuros para arrumar o carro num pequeno espaço entre dois outros, até que surgiu o dono de um deles que lhe comunicou que ia sair. Essa testemunha afirma que eram então oito e meia.

- Oito e meia? - ecoou Mason, surpreendido.

- Exacto.

- Que diz o homem que tirou o carro e facilitou a manobra?

- Pensa que eram cerca de oito e quarenta, pois chegou ao escritório às nove menos cinco, após um percurso que costuma demorar um quarto de hora, naquele período de ponta. - Drake fez uma pausa. - Dá a impressão de que o teu amigo Brogan foi sincero com a Polícia.

- Que queres dizer?

- Revelou a natureza exacta das vossas relações.

- O quê?!

- Segundo ele, não teve outro remédio.

- Que divulgou?

- Que Fritch possuía uma gravação que continha provas importantes de uma acusação que podia ser formulada contra Ned Bain e tu tentavas negociar a sua compra.

- O biltre...

- Explicou que houve qualquer anomalia no gravador quando passava a gravação para que a ouvisses e insististe em a escutar de novo hoje, para te certificares de que ele estava em condições de entregar a mercadoria, se o teu cliente se dispusesse a pagar o preço exigido. Declarou a Holcomb ter a certeza de que conseguiste polarizar a fita para apagar a gravação, única intenção por que exigiste que a passasse. Quando referiu tudo isto a Fritch, este começou por se mostrar preocupado, mas depois afirmou que não haveria novidade e Brogan devia marcar novo encontro para as nove da manhã seguinte, pois durante a noite obteria nova cópia.

- Como?

- Brogan alegou que o ignorava.

- Um rapaz muito inocente, hem?

- Evidentemente que desenvolve esforços desesperados para convencer a Polícia de que não se tratava de uma operação de chantagem. Garante que se inteirou então pela primeira vez de que não era a gravação original, embora agora reconheça que Fritch devia possuir a matriz.

- Encontraram-na?

- Revistaram o apartamento minuciosamente, sem resultado. Descobriram várias bobinas de fita virgem e alguns gravadores, mas nada mais.

- Nesse caso, Fritch tinha guardado a matriz algures - ponderou Mason, pensativamente.

- Mas desapareceu. - Drake assumiu uma expressão desconfiada. - Tens as mãos limpas a esse respeito? - Vendo o advogado sorrir, acrescentou: - Falo-te nisto, porque me palpita que eles possuem alguma coisa contra ti.

- Conservo as cartas bem junto do peito.

- Então, não as afastes muito. Evita fazer alguma declaração que contrarie os factos, porque penso que Holcomb preparou uma ratoeira e receio que já caísses nela.

- Nesse caso, terei de me safar.

- Talvez não seja tão simples como julgas. Della está "limpa"?

- Acho que sim. Mandei-a a casa dos Bain, para se inteirar da situação antes que Holcomb comece a espremê-los.

- Para já, ele não explora esse filão. Parece mais preocupado em recolher elementos contra ti, e continua a interrogar Brogan.

- É natural - proferiu Mason, secamente.

- O nosso comum amigo está a suar sangue. Por outro lado, há detectives empenhados em esquadrinhar o apartamento que Fritch alugou em nome de Reedy. Sabias que o tipo estava preparado para um cerco prolongado? Podia ficar lá encerrado durante meses, sem precisar de sair para se alimentar. - Drake fez uma pausa, antes de revelar: - Sei que encontraram impressões digitais no apartamento de Brogan que não são dele nem de Fritch. Alguém andou a revistar os móveis.

- Palavra?

- Suponho que não cometeste uma imprudência dessas... - observou, fitando o amigo com uma expressão grave.

- Não me introduzi durante a ausência de Brogan, embora estivesse lá ontem.

- Então, as impressões digitais foram produzidas ontem. Em todo o caso, podem datar do momento em que ocorreu o crime.

Mason enrugou a fronte e, antes que tivesse oportunidade de replicar, o telefone tocou.

- Desculpa, Paul - proferiu, estendendo a mão para o auscultador. - É a linha que não vem na lista e só tu e Della conhecem.

Na verdade, foi a voz desta última que soou no outro extremo do fio, alterada pela excitação:

- É melhor meter-se no carro e vir o mais depressa possível, chefe!

- Aonde?

- A casa dos Bain.

-Que aconteceu?

- Ned Bain morreu, e convinha que se inteirasse de uma coisa antes da chegada de Holcomb.

- Não me diga que houve crime!

- Não. Foi morte natural... até certo ponto, pois pode ter sido provocada.

- Sigo já para aí. - Mason cortou a ligação e voltou-se para Drake. - Não te afastes do telefone, porque posso precisar de ti com urgência. Vou-me pôr a andar.

- Para onde?

- Para a casa dos Bain.

- Há por lá outro cadáver?

- Há, mas parece que foi morte natural.

- Experimenta dizer isso a Holcomb.

- Vou fazer o possível mas é para não lhe dizer nada. Averigua tudo o que puderes acerca de Fritch e Brogan. Utiliza os homens que forem necessários.

Pegou no chapéu, saiu pela porta de acesso directo ao corredor, premiu o botão de chamada do elevador e quando entrou perguntou à ascensorista:

- Pode seguir para baixo sem parar? Trata-se de uma emergência.

- Sim, senhor.

A cabina moveu-se rapidamente, ante a surpresa de três outros passageiros, a qual se acentuou no momento em que viram o advogado transpor a porta e precipitar-se para a saída do prédio em direcção ao parque de estacionamento.

Quinze minutos mais tarde, apeava-se à entrada da residência dos Bain, onde Della Street o aguardava.

- Está cá o médico, chefe.

- Quem é?

- O Dr. Flasher, que tratava Ed Bain. Vem aí.

Sylvia Atwood apareceu no átrio com um homem alto, de expressão fatigada, que aparentava cerca de cinquenta e cinco anos e observou o recém-chegado atentamente. De súbito, o semblante iluminou-se e esboçou um sorriso:

- Mr. Mason! De facto, tinha ouvido dizer que o iam chamar.

Sylvia apresentou os dois homens e em seguida indicou um indivíduo de estatura elevada e movimentos indolentes, que contemplou Mason com curiosidade.

- Meu irmão, Jarrett Bain.

- Estou surpreendido - confessou o advogado, apertando a mão firme que o outro lhe estendia. - Julgava-o a escavar ruínas no Iucatão.

- É onde estava, na verdade, mas minha irmã telefonou-me e decidi vir. Tive a sorte de haver uma desistência de última hora, o que me permitiu utilizar o primeiro avião.

- Quando chegou?

- Esta manhã - interpôs Sylvia, apressadamente.

- Ainda não tivemos oportunidade de conversar - observou Jarrett, dirigindo-se à irmã. - Suponho que te baseias no meu telegrama. Na realidade, cheguei...

Mason consultou o relógio e voltou-se para o Dr. Flasher, esforçando-se por aparentar despreocupação, embora tivesse plena consciência de cada segundo que se escoava.

- Fale-me de Mr. Bain, doutor.

- Pouco há para dizer. O coração estava gravemente afectado. A única coisa que pude fazer foi prescrever repouso absoluto, na esperança de que se verificasse uma recuperação. Um momento de excitação poderia resultar fatal e... Enfim, ele morreu e não adianta entregarmo-nos a conjecturas.

- O que o Dr. Flasher quer dizer - acudiu de novo Sylvia-, é que foi uma morte absolutamente normal e mais ou menos esperada. Ele vai passar a certidão de óbito, para evitar a necessidade de demasiada burocracia.

- Estabeleceu a causa da morte? - quis saber Mason.

- Sem dúvida - afirmou o médico. - O coração não conseguiu continuar a cumprir a sua função. Além disso, Mr. Bain sofria de uma infecção que não contribuía para melhorar a situação. Se eu tivesse oportunidade de iniciar o tratamento mais cedo, talvez este desenlace não se verificasse já. Sabe como é, Mr. Mason. Os homens habituados a viver ao ar livre julgam-se mais resistentes que os outros, mas tudo se modifica quando mudam de ambiente e passam a ver-se rodeados de quatro paredes quase permanentemente.

- Espero que esta troca de impressões não a magoe muito - observou Mason, dirigindo-se a Sylvia.

- Não faço as perguntas por mera curiosidade.

- Compreendo perfeitamente. Estou amargurada, claro, mas não se pode dizer que foi uma ocorrência inesperada.

- Tudo indica que expirou serenamente, sem dores - declarou o Dr. Flasher. - Não existe o menor indício de que tivesse tentado utilizar o telefone ao seu alcance. O mais certo é ter morrido durante o sono.

- Ainda bem - murmurou ela.

- Tenho acompanhado a sua carreira com particular interesse, Sr. Mason, e confesso que não esperava encontrá-lo aqui, embora Mrs. Atwood me dissesse que o consultara. Suponho que se ocupará dos pormenores legais relacionados com a herança...

- Creio que ainda é cedo para discutirmos isso, mas vim imediatamente, quando tomei conhecimento do sucedido.

- Bem, nada mais tenho que fazer aqui. Lastimo profundamente o que aconteceu, mas não se podia evitar. Se me encontrasse presente no momento crítico, talvez (note-se que digo talvez) conseguisse prolongar-lhe a vida mais um pouco, embora, para ser franco, me pareça esta a melhor solução. Duvido que ele se apercebesse do fim. Limitou-se a mergulhar no sono de que não voltou a despertar. Por outro lado, fiquei algo surpreendido, pois ontem dava mostras de certas melhoras. Evidentemente que, na sua idade e com aquele historial clínico, não se podia esperar que o coração rejuvenescesse, apesar de haver exemplos de recuperações muito satisfatórias.

- Quando faleceu?

- Eu diria que foi entre as cinco e as seis horas da manhã. Num caso desta natureza, o pormenor carece de importância especial.

- Acho que tem razão. Portanto, não haverá autópsia?

- Espero bem que não! - exclamou Sylvia.

- Não se preocupe com isso, minha filha-tranquilizou-a Flasher.- A morte foi natural, como referirei na certidão de óbito. Pode prevenir a agência funerária, a menos que prefira que eu o faça.

- Conhece alguma de confiança?

- Decerto. Incumbir-me-ei de tudo.

- Parece-me o mais conveniente. Não concordas, Jarrett?

Viraram-se todos para o arqueólogo, o qual, com um sorriso indefinido e braços cruzados sobre o peito, os contemplava em silêncio.

- Não és da minha opinião? - insistiu Sylvia.

- Hem? Desculpem, não estava...

- O Dr. Flasher prontificou-se a tratar dos preparativos com a agência funerária.

- É o melhor, sem dúvida.

Sylvia dirigiu uma mirada furtiva a Mason e disse ao médico:

- É uma experiência opressiva. Estou preocupada com Hattie e...

- Foi de facto um grande abalo para ela - assentiu ele. - Ministrei-lhe um sedativo por via intramuscular, para que durma nestas primeiras horas após o golpe brutal que sofreu.

Ela inclinou a cabeça e, após nova olhadela fugaz ao advogado, dirigiu-se uma vez mais a Flasher:

- Convinha que as formalidades fossem abreviadas, na medida do possível. Pode explicar na agência funerária que, embora não fosse inesperada, a morte surgiu no termo de uma longa luta e alguns membros da família estão muito abalados. Por outras palavras, acelere as coisas dentro do razoável. Gostava que o corpo fosse levado para lá e embalsamado, antes que Hattie acorde.

- Tratarei de tudo de modo que não haja atrasos desnecessários.

- Imediatamente?

- Decerto. Logo que regresse ao consultório.

- Não haverá quaisquer dificuldades, burocráticas ou outras?

- Absolutamente nenhuma - asseverou o médico.

- Não se apoquente. Redigirei a certidão de óbito, o corpo será removido, na agência funerária ocupar-se-ão da sua preparação e, entretanto, você pode tratar das formalidades do serviço fúnebre.

- É maravilhoso, doutor. - Sylvia acercou-se dele e pousou-lhe a mão no braço. - Simplesmente maravilhoso.

Flasher voltou-se, a fim de olhar por cima do ombro, sorriu e acenou a Mason.

- Tive muito gosto. Até à próxima.

Ela acompanhou-o à porta e, depois de os seguir com a vista por um momento, o advogado virou-se para o arqueólogo a seu lado.

- Deve ter sido um forte abalo para si.

- Perdão?...

- Dizia eu que deve ter sido um forte abalo para si.

- Ah, sem dúvida. Pobre pai... Há tempos, aconselhei-o a levar uma vida mais calma, mas não fez caso. E para quê? Depois de percorrer ruínas resultantes de pessoas que viveram, amaram e morreram há milhares de anos e ver a forma como a selva cresceu em torno dos seus templos, para fazer desaparecer os seus mercados, destruir as obras de arte e apagar a sua cultura, compreendo que o indivíduo não devia transformar a existência numa corrida de ratos, mas numa jornada digna e tranquila com destino ao campo do conhecimento universal. - Jarrett pareceu emergir subitamente de um sonho. - Se me dá licença, Mr. Mason, preciso de tratar de uns assuntos. - E afastou-se.

- Safa, que o fulano anda com a cabeça nas nuvens!

- murmurou Della Street. - Sylvia tem qualquer coisa escondida na manga.

- O quê? - perguntou o advogado.

- Não sei. Ela aí vem.

Com efeito, depois de acompanhar o Dr. Flasher, Sylvia regressou apressadamente e segurou o braço de Mason com os dedos crispados.

- Preciso falar-lhe - articulou a meia-voz.

- Sou todo ouvidos.

Os olhos verdes desviaram-se para Della Street e de novo para ele.

- Não haverá qualquer atraso com autópsias ou burocracia?

- Suponho que não, se o Dr. Flasher passar a certidão de óbito, a menos que as autoridades levantem alguma objecção.

- Aquele sargento da Polícia sabe ser particularmente desagradável.

- É um facto.

- Ele podia... bem, claro...

- De que me quer falar?

Ela olhou em volta, para se certificar de que não a podiam ouvir, tornou a fitar Della por um instante, e proferiu em surdina:

- Foi meu pai.

- Foi ele quê?

- Que matou J. J.

- O quê? - exclamou Mason, abismado. - Vejamos se nos entendemos. Seu pai encontrava-se em casa, de cama, e Fritch foi morto entre a meia-noite e as três da madrugada, pelo que...

- Foi ele. Eu sei. Posso prová-lo, se for necessário. Embora não queira levar as coisas a esse extremo, receio que se nos deparem problemas graves, se ocultarmos a verdade.

- Custa-me a crer que deseje colocar-se na situação de ter descoberto a morte de seu pai e depois comunicar às autoridades que ele assassinou o homem cujo corpo descobriu, esta manhã - redarguiu Mason, secamente.

- Ninguém sabe que fui eu que o descobri - volveu Sylvia, apressadamente. - Insisti na versão de que nos tínhamos encontrado todos à entrada do apartamento de Brogan. Aliás, não era o que o senhor pretendia?

- Foi o que revelou a Holcomb?

- Foi.

- Nesse caso, não o podemos alterar.

- Pois não. De resto, não existe razão alguma para tal.

- É claro que você devia desenvolver todos os esforços para proteger a memória de seu pai e...

- O senhor e eu somos pessoas práticas. Talvez não se nos depare tão cedo outra oportunidade de conversarmos.

- Porquê?

- Não se faça estúpido, por favor. Vou ficar prostrada pela dor e não posso discutir estas coisas na presença de terceiros. Eles não sabem o mesmo que nós. E, por outro lado, nada disto pode brotar dos meus lábios, sem correr o risco de parecer uma filha inconsciente, mas meu pai ficou apreensivo com o que lhe revelou acerca de Fritch e Brogan. Não conseguia dormir e, ontem, cerca de vinte minutos depois da meia-noite, levantou-se e saiu no carro, apesar de estar proibido de conduzir. Nem sequer se devia ausentar de casa. Não convinha que se excitasse, mas tomava um medicamento que o fazia sentir-se melhor e julgava-se com vigor para tudo o que considerava necessário.

- E que era?

- Procurou J. J., para lhe chamar mentiroso e patife e exigir a gravação.

- Qual gravação? A que estava em poder de Brogan?

- Não, a que o senhor disse que Fritch possuía, a matriz, em que tinham sido feitos cortes.

- Continue.

- Discutiram e suponho que meu pai se descontrolou. Ao certo, ninguém saberá jamais o que aconteceu, mas não tenho a menor dúvida de que ele esteve lá. Regressou entre a uma e meia e as duas horas da madrugada, arrumou o carro e voltou para a cama. Tudo indica que a tensão a que obrigou o coração foi excessiva. Confesso que até me admira que não morresse durante a visita a Fritch.

- Siga - urgiu Mason, sem se preocupar em dissimular o cepticismo.

- Foi o que aconteceu - asseverou Sylvia. - Meu pai matou-o. Não posso incumbir-me de informar as autoridades, mas o senhor deve providenciar para que se inteirem.

- Eu?

- Bem, alguém tem de o fazer.

- Porque não as deixa averiguá-lo sem a nossa ajuda?

- Podiam não descobrir a verdade e... bem, podiam atribuir as culpas a outra pessoa.

- A você, por exemplo?

- Possivelmente.

- Seu pai morreu. Por conseguinte, não se pode defender, nem explicar o que na realidade se passou. Como sabe que saiu à hora que indicou?

- Foi à meia-noite e vinte. Posso afirmá-lo, porque o segui.

- Seguiu-o?

- Sim.

- Aonde?

- Àquela casa.

- Porque não o impediu?

- Cheguei a pensar nisso, mas depois reconheci que era preferível deixá-lo desabafar e resolver o assunto à sua maneira. Para ser franca, eu não tinha a certeza... não podia ter... de que não existira uma associação entre ele e J. J. Mesmo que o senhor tenha razão a respeito da gravação e Fritch a forjou, podia haver uma ligação anterior entre eles. Depois de muito reflectir, resolvi não intervir.

- Mais alguém o viu sair?

- Não.

- Alguém está ao corrente da sua ausência? - O advogado fez uma pausa, enquanto ela meneava a cabeça. - Receio que haja necessidade de provas mais consistentes...

- Eu tenho a prova - atalhou Sylvia, aproximando-se um pouco mais dele.

- O quê?

- Tenho a prova!

- Continue.

- Poucos minutos antes da chegada do Dr. Flasher, entrei no quarto para o último adeus a meu pai. Enfiei a mão debaixo do travesseiro, para lhe endireitar a cabeça e...

- Adiante. Que aconteceu?

- Havia um objecto debaixo do travesseiro.

- O quê?

- A bobina da gravação.

- Isso é verdade?

- Com certeza. Era a matriz que se achava em poder de Fritch. Notam-se as partes em que colaram a fita, após os cortes. Meu pai apoderou-se dela e trouxe-a.

- Que destino lhe deu você?

- Guardei-a em lugar seguro... pelo menos, o único seguro de momento. Vou buscá-la e confiar-lha, para que proceda como julgar mais conveniente. Mas, por favor, não interprete mal as minhas palavras. Não sei se meu pai matou J. J. em legítima defesa ou não. É o responsável da morte de Fritch, mas já ninguém o pode condenar a qualquer pena. Temos de providenciar para que as autoridades obtenham um indício que as conduza à verdade. Embora eu não deseje encarregar-me disso, fá-lo-ei, se não houver outra solução.

- Bem, possui a bobina. Que mais?

-Não basta?

- Tem mais alguma coisa?

- Porque pergunta?

- Porque quero ficar na posse de todos os elementos.

- Tenho... tenho um furador de gelo.

- Onde o arranjou?

- Naquele apartamento, esta manhã, quando o corpo caiu do armário e rolou a meus pés. Foi simplesmente horrível!

- Deixe as tiradas histriónicas para mais tarde. Onde estava o furador?

- No corpo de J. J.

- Onde?

- No corpo.

- Não é isso. Em que parte?

- No peito.

- Que lhe fez?

- Arranquei-o e guardei-o na bolsa.

- Porquê?

- Porque era nosso.

- Como soube?

- Reconheci-o. Foi-nos oferecido por Doyle, que o comprou num saldo. É grande, com uma parte metálica especial numa das extremidades, para se poder utilizar como martelo, a fim de triturar gelo. São uns objectos muito úteis.

- Fala como se houvesse mais do que um.

- Doyle comprou três e, rindo, explicou que nos oferecia um, ficava com outro e reservava o terceiro para prenda de casamento daquela de nós que casasse primeiro.

- E você reconheceu o furador?

- Exacto.

- Quando descobriu o corpo, esta manhã?

- Sim. Não compreende, Mr. Mason? Eu tentava então proteger meu pai a todo o custo. Ainda não sabia que tinha ido prestar contas a um tribunal mais elevado. Por muito que me repugnasse tocar no objecto, arranquei-o do corpo de Fritch e guardei-o na bolsa. Depois, corri para a porta e esbarrei no senhor e Miss Street.

- O sargento Holcomb não lhe revistou a bolsa?

- Com certeza que o fez, mas eu já não o tinha comigo.

- Onde estava?

- Ocultei-o atrás da mangueira enrolada no corredor, onde era fácil recuperá-lo após o interrogatório.

- Por conseguinte, descobriu o corpo e possui a arma do crime?

- Escondi o furador onde ninguém o procurará, mas preciso que me diga o que devo fazer para...

Soaram passos e surgiu Edison Doyle, algo afogueado.

- Olá, Mr. Mason. Que significa isto, Sylvia?

- O quê? - Ela arregalou os olhos de assombro, ao vê-lo estender a mão em que segurava uma bobina de fita magnetofónica - Onde foi buscar isso?

- À gaveta da cómoda de Hattie.

- Que procurava?

- Por sugestão do Dr. Flasher, fiquei a seu lado até que adormecesse. Tinha-lhe ministrado um sedativo, como sabe. Ela chorara e, quando finalmente fechou os olhos, procurei um lenço para limpar as lágrimas. Assim, abri a gaveta da cómoda e deparou-se-me isto mesmo em cima.

- Oh, Edison... você fez uma coisa que...

- Mas que é isto? - insistiu ele.

- Não esperava que alguém encontrasse a bobina. Estava debaixo do travesseiro de meu pai e eu coloquei-a na gaveta, até consultar Mr. Mason sobre o destino a dar-lhe. Como Hattie repousava e decerto ninguém a incomodaria, pensei que era um lugar seguro. - De súbito, Sylvia cobriu o rosto com as mãos e principiou a chorar.

- Então, então...-murmurou Doyle, rodeando-lhe os ombros com o braço. - Não se apoquente. Temos aqui Mr. Mason, que nos aconselhará. Está arrasada, pobre rapariga!

Sem proferir palavra, Della Street tirou-lhe a bobina da mão e, ao ficar com ambas livres, ele apressou-se a abraçar Sylvia, cujo corpo era abalado por fortes soluços.

- É tão compreensivo, Edison... - balbuciou ela. - Importa-se de tomar conta de tudo, Mr. Mason?

- Não se preocupe - volveu Doyle. - Venha comigo. Tem de se deitar e descansar.

- Bem, o assunto parece arrumado - disse Della Street, quando eles se retiraram.

- É o que se verá - retrucou Mason.

- Quer dizer que a vamos ouvir?

- Precisamente.

- E depois?

- Se for a matriz com os cortes, encontramo-nos em apuros.

- E se não for?

- Os apuros persistirão - admitiu, com um sorriso.

- E, como o chefe não é uma mulher, não pode ir chorar para o ombro de Halcomb, para que o leve carinhosamente para a cama.

- Pois não, mas ele pode levar-me carinhosamente para uns aposentos tranquilos cuja porta apresenta um característico ornamento gradeado, gesto que anseia por consumar desde longa data.

- E a arma do crime?

- Por sorte, ela não referiu o destino que lhe deu. Provavelmente, levou-a e guardou-a no congelador.

- Não convinha certificar-se?

- Essa manifestação de curiosidade podia converter-me em cúmplice. A gravação constitui uma prova, mas não de homicídio, enquanto o furador de gelo assume um aspecto totalmente distinto. Deixaremos a nossa azougada moça de olhos verdes encarregar-se disso.

- Duvido que tenha tempo. Está demasiado ocupada em roubar o namorado à irmã.

- Não, limita-se a conceder exercícios matinais ao seu sex appeal.

- Isso é o que o senhor pensa. Bem, chefe, se vamos ouvir a gravação, mais vale que o façamos antes que haja mais crimes.

- Mais? Quantos pensa que houve, até agora?

- Eu conto dois.

 

Mason e Della Street dirigiram-se ao local onde tinham deixado os carros estacionados e ele indicou:

- Vamos para o escritório.

- Deixe-me levá-la, chefe.

- O quê?

- A bobina. - Vendo-o menear a cabeça, Della insistiu: - Eles não me revistam.

- Não esqueça que também está envolvida. Encontrava-se no apartamento de Brogan, hoje de manhã.

- Preferia que o senhor não...

- Não se preocupe. Há momentos em que um advogado tem de correr riscos, para representar o seu cliente.

- Quem é o seu cliente?

- Do ponto de vista técnico, acho que é Sylvia Atwood, embora na realidade represente a causa da justiça.

- Pois, quanto a mim, trata-se de duas entidades diferentes.

- Talvez - concedeu Mason. - De qualquer modo, tentaremos averiguá-lo. Bem, encontramo-nos no escritório. Faça o possível por não ser autuada por excesso de velocidade, porque vou carregar no acelerador.

- Não sairei de trás de si - prometeu Della. Quando alcançaram o parque de estacionamento do prédio em que se situava o escritório, arrumaram os carros junto um do outro e apearam-se.

- Até aqui, chegámos sem novidade - comentou Mason.

- Esperemos que a aragem de sorte se mantenha.

Depois de subirem no elevador entraram no gabinete dele e, movendo-se como conspiradores, foram buscar o gravador, ligaram-no e colocaram a bobina.

- Reduza o volume de som na medida do possível - recomendou o advogado.

Della actuou no interruptor respectivo e, por uns momentos, o silêncio não se alterou. Por fim, a voz de J. J. Fritch brotou do altifalante e ela apressou-se a baixar o som.

Transcorridos cerca de cinco minutos, Mason decidiu:

- Pode desligar. Não subsiste a menor dúvida quanto ao conteúdo, e também é indiscutível que se trata de uma gravação forjada.

- Sim, nota-se a diferença em algumas das perguntas, as que foram introduzidas no estúdio que Fritch utilizou e...

Naquele momento, a porta de comunicação com a antecâmara entreabriu-se e Mason advertiu:

- Não recebo ninguém, Gertie.

No entanto, a porta continuou a abrir-se com lentidão e surgiu o tenente Arthur Tragg, do Departamento de Homicídios.

- Olá, Perry. Olá, Miss Street.

- Você! - bradou o advogado.

Della apressou-se a desligar a ficha da tomada na parede e começou a colocar a tampa no gravador, para o recolher.

- Deixe estar isso aí - ordenou o recém-chegado.

- Para quê? - inquiriu Mason.

- Dá-se a circunstância de me acompanhar um mandado de busca.

- Um mandado de busca?

- Exacto.

- Para quê?

- Para revistar o escritório.

- Que diabo espera encontrar?

- Creia que me custa fazer-lhe isto, Mason.

Incumbi-me pessoalmente da diligência, em vez de a confiar a Holcomb, para evitar atritos sempre desagradáveis.

- Qual o motivo do mandado de busca?

- Procuro a matriz de uma gravação em que foram efectuados cortes, roubada do apartamento de J. J. Fritch, esta manhã. Tenho dois homens lá fora que mantêm a recepcionista ocupada, Ela julgava que você não estava, pelo que não tentou preveni-lo da nossa visita.

- Acabamos de chegar e entrámos para aqui directamente do corredor.

- Foi o que depreendi. Vim munido do mandado de busca, aproximei-me da porta, ouvi o som do gravador, entreabri-a e escutei um pouco. E agora, se não se importa, vou apreender a bobina por constituir um elemento importante para as investigações.

- Que representa?

- O motivo do assassínio de J. J. Fritch. E se não tentar nenhuma das suas artimanhas, Mason, vou arriscar-me a fornecer-lhe informações valiosas.

- Muito bem.

- No fundo, não o devia fazer.

O advogado preparava-se para dizer algo, mas conteve-se ao observar a expressão do interlocutor.

- Continue - sugeriu.

- Está em maus lençóis.

- Não é a primeira vez que me dizem isso.

- Até aqui, conseguiu sempre desembaraçar-se de forma airosa. Agora, porém, vai-se ver em apuros.

- Estou à espera do resto.

- A sua cliente, Sylvia Atwood, introduziu-se no apartamento de George Brogan, esta manhã, por volta das oito e quarenta, a fim de comparecer a uma reunião marcada para as nove. Com vinte minutos de antecedência, portanto, que aproveitou para proceder a uma busca minuciosa.

- Como é que isso me coloca em maus lençóis?

- Espere até ouvir o resto. Como dizia, ela entrou no apartamento cerca das oito e quarenta e tratou de procurar uma bobina de fita magnetofónica que se supunha conter uma conversa entre o pai e J. J. Fritch, a mesma que você e Miss Street escutavam há momentos.

- Siga - urgiu Mason.- Continuamos atentos às suas revelações.

- Sylvia Atwood acabará por confessar que, aproximadamente às nove horas, abriu a porta do armário das bebidas, soltou um grito agudo e precipitou-se para a saída, onde esbarrou convosco.

- Muito interessante. Suponho que vai afirmar a seguir que, depois de se encontrar lá durante uns vinte minutos, ela descobriu de repente o corpo de J. J. Fritch.

- Eu não - redarguiu Tragg. - Quem o afirma é ela.

- Mais alguma coisa?

- Sylvia sabia que vocês chegariam por volta das nove, aguardou até os ouvir, dirigiu-se ao armário, subiu a uma cadeira, saltou para o chão, a fim de produzir uma espécie de baque, deu o tal grito agudo e correu para a porta.

- Cada vez mais interessante-admitiu o advogado, com uma expressão impassível.

- Explicou-lhe então que descobrira o corpo de Fritch e você recomendou que ficasse à entrada com Della Street, com o bilhete que Brogan deixara na mão, como se acabassem de chegar. Acrescentou que tencionava entrar no apartamento de Fritch para procurar a matriz da gravação, pois havia uma possibilidade em cem de a encontrar, e, logo que Brogan aparecesse, Sylvia Atwood deveria tocar duas vezes consecutivas à campainha desse apartamento. Assim que ouvisse o sinal, você acudiria à porta, aguardaria que elas e Brogan entrassem no dele e trataria de se lhes reunir, como se viesse da rua, onde se demorara a arrumar o carro. - Tragg fez uma pausa, para observar o efeito produzido, e inquiriu: - Então?

- A pormenorização do seu relato indica que foi informado por uma testemunha.

- Exacto, embora provavelmente me aplicassem uma reprimenda, se constasse que lhe divulguei tudo isto.

- E, em face das circunstâncias, a testemunha só pode ser Sylvia Atwood. Uma vez que se trata de uma cliente, não me pronunciarei quanto à sua veracidade ou motivos que a animaram.

- Engana-se.

- Em quê?

- Na identidade da testemunha.

- Então, quem foi?

- Um tal Perry Mason.

- Compreendo - declarou o advogado. - Surpreendeu-me a sonhar alto.

- Não. Terá de reflectir maduramente, antes que obtenha a explicação.

- E qual é a explicação?

- Brogan armou-lhe uma ratoeira Como estava interessado em averiguar a sua opinião e a de Sylvia Atwood acerca dos elementos que possuía, sobre se vocês tencionavam sujeitar-se à chantagem ou ripostar, improvisou uma partida de póquer que o reteria durante toda a noite, depois de deixar o apartamento fechado no trinco e um bilhete na porta em que lhes indicava que entrassem, se tardasse um pouco. A seguir, instalou um gravador com o microfone colocado tão engenhosamente que podia captar os sons do apartamento e da entrada, ligou-o a um relógio do tipo utilizado para pôr a funcionar telefonias e televisores automaticamente e acertou-o para as oito e meia. Nem imagina como o salto da cadeira, o grito de Sylvia Atwood e a vossa conversa subsequente ficaram registados com nitidez. Brogan foi-se abaixo durante o interrogatório de Holcomb, revelou tudo e apresentou a gravação.

- Compreendo - murmurou Mason. - E a minha resposta é: nada a comentar.

- Calculei isso mesmo - tornou Tragg. - Aqui para nós, gosto dos seus pouco convencionais métodos. Penso mesmo que, se persistir em aplicá-los, teremos o prazer de o ver na penitenciária, mais dia menos dia. Comunico-lhe tudo isto em atenção à nossa velha amizade, para que não preste declarações em discordância com os factos apurados. Lembre-se que eles podem ser confirmados pelo som da sua própria voz, de Della Street e de Sylvia Atwood.

- Obrigado pela atenção -.agradeceu Mason, secamente.

- E agora, com a autoridade que este mandado de busca me confere, vou apreender a bobina que você teve a argúcia de encontrar no apartamento de Fritch.

- E se eu não a tivesse encontrado lá?

- Não diga disparates. Em face da vossa conversa gravada, na qual manifesta a intenção de entrar, todas as tentativas para o negar carecem de consistência. Por sinal, foi graças a ela que consegui obter o mandado de busca. Como costuma acontecer em situações similares, o magistrado torceu o nariz, até que escutou a gravação. Decidi incumbir-me pessoalmente da diligência, porque Holcomb poderia tentar armar-lhe uma ratoeira por sua conta e fazer com que você dissesse algo de que viesse a arrepender-se, mais tarde.

Mason levantou-se, hesitou um momento, contornou a secretária e apertou a mão ao detective, que acrescentou:

- Espero que não se oponha a que leve a gravação...

- Decerto que não. Já que está a mexer no assunto, não se esqueça de verificar os movimentos de George Brogan na noite passada.

- Já se tratou disso.

- Apresentou um álibi?

- Inatacável. Passou-a a jogar póquer com sete homens, um dos quais é amigo do chefe da Polícia.

- A que horas principiaram?

- Cerca das dez e só terminaram por volta das oito e meia desta manhã, altura em que Brogan anunciou que tinha um encontro importante e ainda queria comer qualquer coisa antes de comparecer.

- Esteve sempre presente?

- Ausentou-se cerca de trinta minutos, às cinco. Como perdera uma quantia elevada, foi procurar um amigo para que lhe emprestasse algum dinheiro, e reapareceu às cinco e meia com mil e quinhentos dólares. O crime foi cometido entre a meia-noite e as três.

- De certeza?

- Absoluta. Pelo menos, é o que garante o médico encarregado da autópsia. Portanto, escute a voz da razão, Mason, e não se meta num beco sem saída.

- Obrigado pelo aviso.

Tragg guardou a gravação na algibeira, passou um recibo e retirou-se.

Della Street exibiu uma expressão de assombro, ao mesmo tempo que dizia:

- Não acha que devia ter-lhe dito onde a bobina estava realmente?

- Ainda é cedo.

- Mais tarde, ninguém acreditará.

- Agora, tão-pouco.

- Sylvia não lhe poderá valer, se aguardar. Pensarão que combinaram contar essa versão. O senhor devia proteger-se já, revelando a verdade e...

- Não diremos absolutamente nada à Polícia - interrompeu Mason. - Isto é uma firma de advocacia e não um departamento informativo das autoridades.

- Depois, não se queixe das consequências.

- Não será a primeira vez que se me depara uma situação deste tipo, nem a última, provavelmente.

- Que vamos fazer?

- Contacte com Sylvia Atwood - indicou, apontando para o telefone. - Diga-lhe que venha o mais depressa possível.

 

Sylvia Atwood sentava-se na poltrona destinada aos clientes, no gabinete de Mason, que contemplava com a expressão cautelosa do jogador de póquer empenhado em adivinhar o jogo de um adversário que acaba de duplicar a aposta.

- Continue.

- Já terminei - anunciou ele. - Passávamos a gravação, para nos certificarmos de que era a que nos interessava, quando entrou Tragg munido de um mandado de busca.

- E agora encontra-se em poder da Polícia?

- Exacto.

- Devia ter procedido como sugeri.

- Como foi?

- Dizer-lhes que meu pai se apoderara dela e... e era o responsável do que aconteceu no apartamento de Brogan.

- Refere-se à morte de J. J. Fritch?

- Sim.

- Eu não podia dizer uma coisa dessas.

- Porquê?

- Porque não sei se foi isso que aconteceu.

- Mas eu expliquei-lhe...

- Mandei-a chamar precisamente por isso. Quero inteirar-me exactamente do que sucedeu. Preciso de conhecer os pormenores completos. Antes, porém, devo recomendar-lhe cuidado com o que disser, porque Della Street vai anotar as suas palavras, além do que haverá um gravador ligado.

- Sou sua cliente! - exclamou Sylvia, indignada. - Não lhe assiste o direito de me tratar como se fosse uma inimiga... uma suspeita.

- É de facto uma cliente, mas isso não impede que possa ser igualmente uma suspeita. Comece lá a desbobinar o rosário.

Hesitou por um momento, enquanto os olhos verdes emitiam um clarão de revolta, e acedeu:

- Muito bem. Vou revelar-lhe todos os factos. Após a breve conversa consigo, ontem à tarde, meu pai ficou muito agitado.

- Sem dúvida. No entanto, o que o agitou foi o que Fritch lhe disse e não as palavras que trocámos.

- De qualquer modo, não o estou a censurar, entenda-se. Pretendo apenas estabelecer um ponto de partida. Só depois de o senhor se retirar nos apercebemos do nervosismo que o dominava. Tentámos contactar com o Dr. Flasher, mas não conseguimos, pelo que nos limitámos a dar-lhe o calmante que ele tinha receitado. Apesar disso, continuava agitado e mantivemo-nos no quarto com ele, até que serenou um pouco, cerca das dez horas.

- Continue.

- Edison Doyle apareceu mais tarde e, por fim, resolvemos vigiar meu pai por turnos, por pensarmos que o seu estado se agravasse sem a presença de alguém. Edison precisava de terminar um projecto e disse que voltaria pouco depois da meia-noite. Assentámos que Hattie se deitaria e eu ficaria junto de meu pai até que adormecesse profundamente, após o que iria também para a cama. Deixámos a chave da porta das traseiras sob o capacho, para que Edison pudesse entrar e instalar-se num dos quartos de hóspedes. Por meu turno, eu espreitaria cada noventa minutos e, se meu pai continuasse a dormir, não importunaria os outros, de contrário chamaria Edison, que permaneceria a seu lado durante duas horas. Combinámos não acordar Hattie a menos que surgisse alguma emergência, pois era a mais fatigada de todos.

- Muito bem. Que sucedeu a seguir?

- Antes de me deitar, verifiquei que meu pai dormia, ou parecia dormir, sem agitação aparente, vi se todas as portas estavam fechadas à chave e reclinei-me na cama. De repente, ouvi o motor de um carro na garagem e, pouco depois, a sua passagem, lenta, como se o condutor não quisesse ser ouvido, no caminho de acesso à rua.

- Que fez você?

- Assomei à janela e vi meu pai ao volante.

- Tem a certeza de que era ele?

- Absoluta. Aliás, certifiquei-me.

- Como?

- Fui ver ao quarto. Em face disso, meti-me no meu carro e segui-o.

- Porque não tentou interceptá-lo?

- Confesso que não sei, mas queria averiguar as suas intenções. Calculei que só sairia de casa por um motivo de peso, um caso de vida ou de morte, por assim dizer.

- Aonde foi?

- Seguiu directamente para aquela casa, como já lhe expliquei, e aguardei cá fora, convencida de que se retiraria passados poucos minutos. No entanto, passou cerca de hora e meia sem que aparecesse e, preocupada, entrei.

- Continue.

- É um daqueles prédios em que não há porteiro e a porta está sempre aberta. Uma pessoa dirige-se ao apartamento que pretende sem se fazer anunciar.

- Eu sei. Adiante.

- Quando me aproximei do elevador, vi que se encontrava no andar de Brogan e pressenti que meu pai estava lá. Preparava-me para carregar no botão de chamada, no momento em que principiou a descer. Tratei de correr para a escada, a fim de me esconder. Passados uns minutos ouvi alguém sair e, espreitando, descobri que os contornos do vulto que se encaminhava para a porta não correspondiam aos de meu pai. Pelo menos, na altura foi o que pensei. Pareceram-me mais de uma mulher. Após breve hesitação, subi ao apartamento de Brogan e escutei à porta, mas não ouvi vozes. Afastei-me para o fundo do corredor e esperei. Passados uns trinta minutos sem que acontecesse nada, tornei a aproximar-me e reparei então que havia um sobrescrito afixado na porta. Retirei-o, li o bilhete que continha, que me permitiu ficar ciente de que o apartamento não estava fechado à chave, e tornei a colocá-lo onde estava. Em seguida, fiz rodar o puxador e entrei, apenas para verificar se meu pai se encontrava lá. A luz da sala achava-se acesa, mas não havia ninguém.

- Que fez então?

- Percorri todo o apartamento, mas não o vi em parte alguma.

- Onde estava J. J. Fritch?

- Na altura, não sei.

- Nesse caso, não se encontrava lá?

- Julgo que sim, mas eu não sabia. Calculo que o corpo já devia estar no armário.

- Não espreitou?

- Naquele momento, não. A princípio, supus que meu pai estava no apartamento de J. J. e tentei abrir a porta, mas encontrava^se fechada à chave. Escutei, sem que conseguisse detectar qualquer som. A seguir, toquei à campainha e perguntei-me se os olhos me teriam iludido e fora de facto meu pai que vira sair. Na verdade, quando abandonei o prédio, verifiquei que o carro dele desaparecera. Ao chegar a casa fui encontrá-lo deitado e profundamente adormecido, pelo que recolhi ao quarto e acertei o alarme do despertador para acordar hora e meia mais tarde, a fim de ir ver como se encontrava. Às sete e meia levantei-me, fui tomar o pequeno-almoço a um restaurante e segui para o apartamento de Brogan, onde tínhamos combinado encontrar-nos. No entanto, como sabia que não estava fechado à chave, apareci lá com vinte minutos de antecedência.

- Portanto, não viu ninguém, quando regressou a casa?

- Não. Edison tinha-se deitado e Jarrett desembarcou do avião às quatro da madrugada, alugou um carro e, mal chegou, meteu-se na cama.

- Falou nisto a alguém?

- Não, mas tenciono fazê-lo.

- Porquê?

- Porque me parece o mais sensato. Se Fritch foi assassinado à hora que a Polícia afirma, meu pai encontrava-se lá. Procure compreender a minha posição, Mr. Mason. Enquanto ele vivia, fiz tudo ao meu alcance para o proteger, incluindo arrancar do corpo a arma do crime. Pense na minha situação, se o horrível sargento Holcomb encontrasse o furador de gelo em meu poder.

- Acredite que já pensei, e não pouco.

- Como dizia, estava disposta a tudo para proteger meu pai, mas agora, que ele já não existe, parece-me insensato correr riscos com a ocultação de factos importantes. A Polícia até era capaz de atribuir o crime a um de nós!

- Tem a certeza de que não revelou nada disto a Holcomb?

- Por enquanto, guardei silêncio. De resto, a princípio não tinha prova alguma disso. Mais tarde, encontrei a gravação debaixo do travesseiro e...

- Que destino lhe deu?

- Resolvi escondê-la onde ninguém a procurasse, até falar consigo, para saber como devia proceder. Entrei no quarto de Hattie, sob o pretexto de ver se se encontrava bem, sabendo que lhe tinha sido administrado um sedativo, e, aproveitando o facto de estar a despir-se para se deitar, coloquei dissimuladamente a bobina na gaveta da cómoda.

- Continue.

- Bem, minha irmã continuava um pouco enervada e o Dr. Flasher considerou boa ideia Edison ir fazer-lhe companhia, até que acalmasse, recomendando que falasse em voz baixa e com frases longas, para criar a atmosfera mais apropriada ao sono. O resto é do seu conhecimento, Mr. Mason.

- Brogan gravou a conversa que tivemos à entrada do seu apartamento, esta manhã, e entregou a bobina à Polícia. Assim, as autoridades sabem que você descobriu o corpo, assim como a minha intenção de procurar a matriz da outra gravação no apartamento de Fritch.

Sylvia ponderou a revelação por um momento e, de súbito, pôs-se de pé.

- Já decidi o que vou fazer.

- Espere. Não decidiu nada. Se quer que a represente, vai proceder como eu lhe indicar.

- Mas o senhor não me representa.

- Deixou sinal para o efeito.

- Para representar a família - salientou. - Eu não estou em apuros, sobretudo depois do que vou fazer.

- Talvez se engane - advertiu Mason.

- Que ideia! Quanto a mim, está a comportar-se de uma maneira demasiado conservadora e devia ter divulgado à Polícia todas as informações que possui.

- Que aconteceu a Hattie?

- Ainda dorme. É capaz de não acordar antes da meia-noite ou mais tarde. O Dr. Flasher estava particularmente interessado em que repousasse várias horas.

- Esclareçamos alguns pontos. Quero conhecer toda a verdade acerca daquele cadáver. Que aconteceu, quando o descobriu?

- Eu disse-lhe a verdade, Mr. Mason.

- Não faz mal. Diga outra vez.

- Estava empenhada em encontrar algum indício de que meu pai visitara o apartamento e procedi a uma busca sumária. Foi por isso que conservei as luvas calçadas, para não deixar impressões digitais. No momento em que fiz rodar o puxador do armário, a porta abriu-se de rompante, porque o corpo devia exercer pressão e... Foi simplesmente horrível!

- Deixe lá isso, agora. O corpo estava rígido?

- Não... não sei ao certo. Julgo que os braços apresentavam certa rigidez, dobrados pelos cotovelos, embora as pernas parecessem um pouco flácidas. Havia uma escoriação nas costas, um pouco acima da camisola... Ninguém se deve inteirar de que o furador de gelo está na minha posse, Mr. Mason!

- Onde se encontra agora?

- Vou buscá-lo. Não acha preferível ignorar algumas coisas? Farei o que for necessário.

- Espere aí - bradou o advogado ao ver Sylvia pegar na bolsa e levantar-se. - Aonde vai?

Ela pareceu disposta a dizer algo, mas mudou de ideias e os olhos verdes exibiram uma expressão inocente.

- Para casa. É o meu lugar, junto de Hattie. - E encaminhou-se apressadamente para a porta.

- Espere aí! - insistiu Mason.

- Não tenho tempo - foi a resposta, enquanto abria a porta com um gesto brusco.

 

Paul Drake telefonou a Mason cerca das três horas da tarde.

- Já sabes a última, Perry?

- Qual?

- A Polícia foi informada por "uma fonte não identificada, mas autêntica", fim de citação, de que Ned Bain se levantou da cama de enfermo, a fim de se encontrar com J. J. Fritch, por volta da meia-noite de ontem. No decurso de breve conversa, assassinou-o, a fim de se apoderar de uma gravação que a vítima utilizava para o obrigar a pagar uma quantia avultada.

- Isso foi anunciado pela Imprensa?

- Exacto. Acabo de o ouvir no noticiário da rádio.

- Quem forneceu a informação?

- "Uma fonte não identificada", fim de citação. Foste tu?

- Não.

- Converter um morto num assassino é sempre um movimento hábil. Livra os vivos de apuros.

- Já te disse que não fui eu. Mais alguma coisa?

- A Polícia recuperou a gravação em causa, graças a uma "brilhante acção dedutiva", fim de citação. Analisou uma série de pistas e concluiu que ela estava em poder de um "proeminente advogado do centro da cidade", fim de nova citação. Muniu-se de um mandado de busca, dirigiu-se ao escritório do supracitado causídico e surpreendeu-o, juntamente com a atraente secretária, escutando a gravação que se tornou um dos elementos mais valiosos do caso.

- O advogado não é mencionado pelo nome? - inquiriu Mason.

- Não, mas o noticiarista anunciou que tinha as iciais PM.

- Bonito... Obrigado pela informação, Paul. - Pousou o auscultador e virou-se para Della Street. – Temos o caldo entornado. Agora, precisamos de aguardar e ver o que acontece.

- Ela fez revelações à Polícia?

- As autoridades anunciaram que receberam a informação de uma fonte não identificada.

- Estão a investigar?

- Parece que sim.

- Sylvia Atwood podia ao menos ter tido a gentileza de nos explicar o que tencionava fazer.

- Sylvia Atwood assume a atitude de quem sabe mais do que o seu próprio advogado - resmungou Mason, levantando-se e começando a percorrer o aposento em cadenciado vaivém.

- Do seu próprio advogado, não - corrigiu Della. - Da família.

--Tem razão - admitiu ele, com um sorriso.

- Isso servirá para o livrar de apuros, chefe?

- Talvez, se a Polícia acreditar nela.

- Acha que o fará?

- Quanto a mim, existe uma possibilidade em cem. Pensarão que ela se lirmita a congeminar uma versão para evitar aborrecimentos. Por outro lado, o público encarará com desagrado a sua ansiedade em atribuir o homicídio ao pai, quando o corpo deste ainda nem arrefeceu. Receio que isso contribua para estabelecer um clima de relações públicas de cortar à faca.

- Sem dúvida - assentiu Della, indignada. - E quando a fotografarem com aqueles olhos verdes frios, dando a impressão de que quis transformar o pai no bode expiatório logo que morreu... - Interrompeu-se, meneando a cabeça. - De facto, a coisa está mal parada. Ainda por cima, ela tinha a gravação...

- Eu é que a tinha.

- Porque ela lha confiou.

- É uma coisa que não podemos ventilar.

- Porquê?

- Porque é nossa cliente.

- Mas pode ao menos dizer como a obteve.

- Não. É claro que há que contar com Edison Doyle, que provavelmente dirá à Polícia onde a encontrou. No entanto, a Polícia adoptou publicamente a posição de que investigações inteligentes e eficientes lhe permitiram descobrir a gravação, depois de eu a levar do apartamento de Fritch. Se tivessem de rectificar essa versão e fosse ventilado que eu a recebera de alguém que a encontrara, os ilustres detectives ficariam numa situação pouco airosa. Ora, Holcomb tem aversão às situações pouco airosas. Tragg rebusca os factos e enfrenta-os, ao passo que o sargento é capaz de remover o céu e a terra para tentar provar que eu me introduzi de facto naquele apartamento para surripiar a gravação.

- E em que posição o deixará isso, chefe?

- Embaraçosa, como de costume, mas temos de proteger os nossos clientes, sem olharmos a considerações de outra ordem.

-Acha que Brogan possuía na verdade a gravação do que se passou à entrada do seu apartamento?

- Sem dúvida. De contrário, Tragg não conseguiria repetir a nossa conversa tão fielmente. - Naquele momento soou o besouro do telefone e Mason indicou: - Diga a Gertie que não posso atender clientes, hoje. Que filtre todas as chamadas, excepto as importantes. Estou ocupado com uma questão de emergência da maior importância.

Della Street pegou no auscultador e começou...

- Oiça, Gertie. Mr. Mason... O quê... Quem?... Um momento. - Virou-se para Mason. - Está lá fora Jarrett Bain. Diz que precisa de falar consigo, e parece excitado.

- Está só?

- Creio que sim.

- Muito bem. Vá buscá-lo.

Jarrett Bain entrou no gabinete dominado por profunda indignação.

- Boa tarde - saudou Mason, indicando a poltrona à sua frente. - Sente-se e explique-me o que pretende.

Todavia, o recém-chegado preferiu permanecer de pé, com uma expressão em que a cordialidade não se achava minimamente representada.

- Que história é essa de quererem atribuir a morte de J. J. Fritch a meu pai?

- Não sei. Recebi um telefonema da Agência de Investigações Drake, há momentos, segundo o qual a Polícia anunciou que a informação lhe foi fornecida por uma fonte didedigna não identificada.

- Essa fonte fidedigna não identificada não foi o senhor?

Bain olhou o advogado com intensidade por um momento e acabou por se sentar, como se a cólera inicial se tivesse atenuado um pouco.

- Eu devia ter calculado - articulou entre dentes.

Sylvia - proferiu numa inflexão de desdém.

- Pensa que foi ela quem informou a Polícia?

- Sem dúvida! Tinha de o fazer ela própria ou por intermédio do senhor. Só há coisa de uma hora me inteirei de que a gravação tinha sido encontrada numa gaveta da cómoda de Hattie. Não percebo porque não me disseram nada. Consideram-me um teórico. Reconheço que muitas vezes me isolo involuntariamente do que se passa à minha volta, mas... Porque não me teria ela consultado?

- Que adiantaria isso?

- Meu pai não saiu, ontem a noite. É invenção de Sylvia.

- Como o sabe?

- Eu estava sentado à cabeceira da cama.

- O quê?! - exclamou Mason. - Mas eu julgava que tinha chegado a casa depois das quatro da madrugada e não vira seu pai vivo.

- Foi o que depreenderam, porque ninguém se deu ao trabalho de me perguntar nada. Sylvia traçou conclusões sem bases e Hattie recebera uma injecção para dormir.

- Então, viu-o?

- Claro que o vi. Foi para isso que regressei a casa.

Sylvia revelou-me pelo telefone que a condição do pai não era famosa e, se se inteirasse do problema que surgira poderia ter um colapso fatal Em face disso, tratei de viro mais depressa possível. Que faria qualquer filho, em semelhantes circunstâncias?

- Continue. .

- Eu tinha uma chave da porta e entrei sem que os outros se apercebessem. Como é natural, não quis aparecer a meu pai de repente e procurei uma das minhas irmãs. Não encontrei nenhuma. Aliás, parecia não haver ninguém em casa, o que me fez pensar que era uma maneira muito singular de cuidar de um enfermo.

Mason e Della Street trocaram um olhar de inteligência e o primeiro urgiu:

- Explique-nos exactamente o que fez. Descreva os seus movimentos com a maior pormenorização possível.

- Bem, a casa é grande, com muitas dependências. Levei a bagagem para o primeiro quarto de hóspedes que encontrei, mas vi imediatamente que Sylvia o havia ocupado, pois encontravam-se vários dos seus frascos e boiões de produtos de beleza em cima da cómoda. Dirigi-me, portanto, a outro, onde deixei as minhas coisas, e em seguida resolvi acordar Hattie. A porta do quarto estava entreaberta e bati suavemente, mas não obtive resposta. Espreitei, acendi a luz e verifiquei que ela não estava lá.

- Que fez em seguida?

- Alarmei-me, por causa de meu pai, e dirigi-me ao seu quarto.

- Estava lá?

- Sim, sentado na cama, a ler. Quando ouviu abrir a porta ergueu os olhos, estremeceu de surpresa e bradou: "Que fazes aqui, Jarrett?"

- Não o esperava?

- Tudo indica que não. Na verdade, parece que ninguém me esperava. Eu tinha enviado um telegrama para informar que chegaria no avião das quatro da madrugada, mas só foi entregue na manhã seguinte.

- E chegou antes das quatro?

- Por sorte, consegui lugar num voo anterior. Seguindo de Nova Orleães para Dallas, numa carreira local, obtive ligação com um avião que me permitiu encurtar a viagem.

- Siga, por favor.

- Conversei com meu pai durante alguns minutos e apercebi-me de que estava profundamente preocupado. Explicou que o médico lhe prescrevera um calmante, mas pouco depois de adormecer acordara excitado e pegara num livro, numa tentativa para se acalmar. Aparentemente, não fazia a menor ideia de que se encontrava só em casa.

- Continue.

- Embora eu reconhecesse que não o devia importunar com a minha presença, ainda nos entretivemos a falar durante uns três quartos de hora. Evidentemente que evitei abordar o assunto da chantagem, por supor que o desconhecia por completo, mas foi ele próprio que o fez, referindo-se ao telefonema de Fritch com ameaças por terem recorrido aos seus serviços, Mr. Mason. Convenci-o a tomar mais uma das cápsulas para serenar os nervos e despedimo-nos. Fui à cozinha para comer uma sanduíche com um copo de leite e entretanto apareceu Edison Doyle.

- Já se conheciam?

- Não, embora estivesse ao corrente da sua existência e do seu interesse por Hattie.

- Que sucedeu a seguir?

- Ele explicou que as raparigas estavam preocupadas com o pai e tinham decidido que alguém o vigiasse ao longo da noite. Compreendi que depreendia que eu tinha regressado a casa e me incumbira disso, para que pudesse descansar.

- Disse-lhe que elas não estavam?

- Não, achei que não era de sua conta. Não me pronunciei a esse respeito.

-E que aconteceu?

- Revelou que comparecera para ajudar no que fosse necessário, e não o fizera antes porque tinha um trabalho para terminar no escritório. Como apresentava um ar fatigado, indiquei-lhe que se fosse deitar.

- Onde?

- No terceiro quarto de hóspedes.

- E fê-lo?

- Sim. Não precisei de insistir muito.

- E depois?

- Fui de novo espreitar ao quarto de meu pai e vi que dormia calmamente, com o candeeiro da mesa-de-cabeceira aceso. Por fim, decidi que não havia necessidade de ficar alguém a vigiá-lo e podia ir dormir, após acertar o alarme do despertador para noventa minutos mais tarde, a fim de ir ver como ele se encontrava.

-E que sucedeu?

- Quando subia a escada, ouvi abrir a porta das traseiras e vi entrar Hattie.

- Tem a certeza de que era ela?

- Absoluta.

- Que vestia?

- Uma saia de xadrez, recordo-me perfeitamente. E devia usar casaco, porque a ouvi abrir o armário do vestíbulo antes de se me tornar visível.

- Que fez ela? Falou-lhe?

- Seguiu para o seu quarto, sem que me visse, e não a chamei, porque entretanto descobri que estava cansado da viagem e não queria perder tempo a ouvi-la descrever o seu namoro com Doyle a uma hora daquelas.

- Que fez, então?

- Recolhi ao quarto, como era minha intenção, meti-me debaixo do chuveiro e, no momento em que acabava de apagar a luz e me metia na cama, ouvi bater a porta de um carro à entrada da casa. A curiosidade levou-me a espreitar à janela e vi que era o de Sylvia. Fiquei mais descansado por saber que ela e Hattie se encontravam em casa e, calculando que a minha presença não seria necessária durante a noite, desliguei o alarme do despertador.

- Durante quanto tempo dormiu?

- Muito. Só me levantei às dez da manhã. Estava arrasado da viagem, como disse.

- Que se passou a seguir?

- Entretanto, chegara o meu telegrama em que anunciava que viria no avião das quatro da madrugada. Evidentemente que todos supunham que eu só tinha entrado depois daquela hora e ido para a cama.

- Mas Edison Doyle estava ao corrente do momento exacto em que tinha chegado.

- Sem dúvida, mas tinha-se levantado às sete e quarenta e cinco e seguido imediatamente para o escritório, onde o aguardava um cliente. Pelo menos, foi o que me revelou que tencionava fazer. Portanto, levantei-me às dez e desci para tomar o pequeno-almoço. Vi então Hattie e conversámos um pouco, mas depressa nos separámos, porque e!a tinha várias tarefas para executar em casa, depois de me dizer que o pai ainda dormia. Por volta das onze, entrou no quarto para lhe levar o pequeno-almoço e descobriu que morrera.

"A partir de então, estabeleceu-se certa confusão. Movíamo-nos todos de um lado para o outro sem rumo definido, e o Dr. Flasher não tardou a aparecer. Depois, quase sem que me apercebesse como, a casa encheu-se de gente: o senhor, Miss Street, eu sei lá... Sylvia apareceu a certa altura e alguém telefonou a Edison Doyle. O Dr. Flasher ministrou um sedativo a Hattie, que era a mais perturbada de todos, e o ambiente serenou um pouco. - Jarrett fez uma pausa, como se tentasse coordenar as ideias. - Começo agora a compreender o que aconteceu. Hattie ausentou-se durante a noite e, como fazia muito frio, deve ter vestido o sobretudo do pai. Assim, Sylvia pode ou não ter pensado que era a ele que seguia. Talvez espreitasse no quarto no momento em que tinha entrado na casa de banho. De qualquer modo, uma coisa é certa. Meu pai não saiu de casa, nem matou Fritch, e quem afirma o contrário mente.

- E a gravação?

- A que se supõe encontrar-se debaixo do travesseiro?

- Sim.

- Não creio que estivesse lá, quando visitei meu pai. Podem tê-la colocado depois... confesso que não sei. Garanto-lhe, porém, uma coisa, Mr. Mason. Sylvia sempre foi uma manipuladora. Tem a mania de que sabe mais que os outros e adora congeminar e pôr em prática esquemas bizarros. Tenha cautela com as suas maquinações, de contrário depois não diga que não o preveni.

"Dá a impressão de que nunca lhe passa pela cabeça que os outros podem saber mais. Para dar nas vistas, é capaz de distorcer a verdade à medida das suas conveniências. Percebo pouco ou nada de questões legais, mas conheço bem minha irmã e penso que a sua irresistível tendência para manipular os factos e falsear pistas pode provocar um autêntico pandemónio numa investigação de homicídio. Engano-me?

- Receio que não - declarou Mason, sorrindo. Seguiu-se um breve silêncio, enquanto tamborilava com os dedos no tampo da secretária. - Tentemos estabelecer a hora com a maior aproximação possível.

- O meu avião chegou às onze e quarenta e cinco e necessitei de alguns minutos para recuperar a bagagem. Tinha alugado um carro a uma agência e encontrei-o à minha espera no aeroporto, o que me permitiu chegar a casa por volta da meia-noite e trinta.

- Recorda-se de ter consultado o relógio em qualquer altura?

- Lembro-me de que era cerca da uma, quando me encontrava com meu pai. Depois de conversarmos um pouco e compreendendo que ele precisava de descansar, fingi-me mais fatigado do que estava, bocejei e manifestei a intenção de ir para a cama.

- Quanto tempo esteve com ele, depois de ver as horas?

- Pouco. Alguns minutos, apenas.

- E encontrava-se na cozinha a comer uma sanduíche, quando Edison Doyle chegou?

- Exacto.

- Ele tinha uma chave da porta?

- Segundo explicou, Hattie tinha-lhe dito que a deixava sob o capacho da entrada das traseiras. Recordo-me de a fechar à chave atrás dele.

Mason fixava o olhar no tampo da secretária, imerso em reflexões, enquanto recomeçava a tamborilar com os dedos.

- Que vamos fazer? - quis saber Jarrett. - Tudo indica que Sylvia pretende estabelecer a confusão. Para já, iniciou qualquer coisa que não será capaz de concluir.

- Há Hattie a considerar-lembrou o advogado.- E a própria Sylvia.

- Não perca tempo a preocupar-se com Sylvia. Sabe cuidar de si perfeitamente. De momento, conseguiu envolver Hattie em apuros e manchou a memória do pai. Embora goste dela como irmã, algumas das coisas que faz arrasam-me a paciência. Divulgou uma história inconcebível, e quando as autoridades me interrogarem descobrirão que é falsa.

- Talvez não lhes ocorra interrogarem-no. Pode não ter de ser interrogado.

- Sou um mau mentiroso. De qualquer modo, sempre gostei de dizer a verdade. Quero dormir descansado.

- Nesse caso, tenciona revelar o que acaba de expor?

- Sem dúvida. De resto, não posso esquecer a lealdade que devo a meu pai. No entanto, quis explicar-lhe tudo em primeiro lugar, Mr. Mason.

- E, a seguir, a quem?

- Tenho de me encontrar com um fulano da Polícia.

Chama-se... - Jarrett puxou de um papel da algibeira - ...Tragg, do Departamento de Homicídios. Conhece-o?

- Conheço - suspirou   Mason,   reclinando-se   na cadeira.

- Sigo para lá agora - declarou o outro, levantando-se, depois de consultar o relógio. - Não sabia que era tão tarde. Bom dia, Mr. Mason.

- Bom dia.

Quando ficaram sós, Della Street comentou, com uma expressão de desalento:

- Acontecem-nos as coisas mais endiabradas. Apetece-me dar um grito de desespero.

- Dê também um por mim - grunhiu Mason, com um sorriso de amargura.

 

Soaram pancadas repetidas na porta do gabinete de Mason que comunicava com o corredor e ele indicou a Della:

- Se for Sylvia, deixe-a entrar.

A secretária entreabriu a porta e acabou por puxá-la por completo, após o que se desviou.

- Entre, Mrs. Atwood.

Os olhos da recém-chegada revelavam que estivera a chorar, e foi quase com histerismo que balbuciou:

- Graças a Deus que o encontro, Mr. Mason! Fartei-me de ligar para cá, sem obter resposta...

- O P. B. X. é desligado após as horas de expediente.

- Da   Companhia   negaram-se   a   dar-me   o   outro número. Disseram que era confidencial. Oh, Mr. Mason, fiz a coisa mais horrível que se possa conceber!

- Procure acalmar-se e explicar o que aconteceu.

- Acho que me enganei num pormenor. Podiia ter sido Hattie que esteve no apartamento de Brogan. Se tal aconteceu, usava o sobretudo do pai. Quando essa pessoa desceu no elevador e espreitei da escada para ver quem era... bem, agora estou convencida de que se tratava de uma mulher.

- Com o sobretudo vestido?

- Não. Na altura, tinha-o dobrado no braço.

- Portanto, você subiu...

- Subi e aguardei à entrada do apartamento de Brogan.

- Quanto tempo?

- Uns bons minutos, como referi antes, até que julguei que o vulto que saíra devia ser meu pai. Acredite que supus desde o princípio que era dele que se tratava.

- Bem, precisamos de obter a versão de Hattie, sem demora. - Receio que não seja possível, até estabelecermos a nossa estratégia.

- Porquê?

- Encontra-se nas mãos da Polícia.

- Da Polícia?! - exclamou Mason.- Mas o médico disse...

- Acordaram-na, deram-lhe voz de prisão e levaram-na antes que se desse conta do que lhe acontecia.

- Estava sob o efeito de um sedativo. Não tinham o direito de proceder assim. Quem foi o responsável?

- O sargento Holcomb.

- Continue.

- Encontraram o furador de gelo.

- Qual furador de gelo?

- O utilizado para assassinar Fritch.

- Onde?

- Na gaveta da cómoda da Hattie, por baixo dos lenços... a mesma onde eu tinha guardado a gravação, mas por cima dos lenços.

- É um pormenor interessantíssimo - observou, secamente.

- Calculo o que deve pensar de mim, Mr. Mason. Julga-me, sem dúvida, uma das pessoas mais insensatas do mundo, mas... Bem, estamos mergulhados na voragem e temos de nos apoiar mutuamente. - Sylvia abriu a bolsa e continuou:--Dei-lhe um cheque de quinhentos dólares como sinal. Agora, vou passar-lhe outro no valor de mil e quinhentos, para que represente... Hattie. E faça o que lhe disse, por favor - acrescentou, começando a preenchê-lo. - Não quero manchar a memória de meu pai, mas, no fundo, Fritch era um chantagista e merecia morrer. Segundo o código moral de meu pai, assistia-lhe todo o direito de o matar. Se isto tivesse acontecida há anos, no Texas, não hesitaria em puxar do revólver e abatê-lo, sem que júri algum o condenasse.

- Infelizmente, isto não aconteceu há anos no Texas - retorquiu o advogado. - Além de mais, todas as suas conjecturas sobre a ideia de que seu pai matou Fritch revelaram-se falsas.

- Eu sei, mas... enfim, ele agora também morreu. Ninguém o pode punir e parece-me preferível uma mancha na sua memória do que uma carga de trabalhos para nós, digo, para Hattie. A intervenção de Jarrett complicou um pouco a situação, mas se alguém forjar um telegrama para o atrair às escavações sob um pretexto qualquer, partirá sem pensar duas vezes, nem esperar pelo funeral. Está tão familiarizado com civilizações mortas, que encara a morte das pessoas como...

- Não estabeleça uma confusão ainda maior e abstenha^se de lhe enviar telegramas falsos.

- Julga-me capaz de uma coisa dessas? Quero que o senhor tome a iniciativa de tudo.

- Explique-se melhor. Para que é este cheque?

- Quero que defenda Hattie.

Mason virou-se para Della Street:

- Escreva no verso que se destina à defesa de Hattie Bain e tenho carta branca para orientar o caso à minha maneira. Além disso, se se me deparar a oportunidade, disponho de inteira liberdade para desmascarar o assassino, seja ele quem for. Sublinhe "seja ele quem for". - Dirigiu-se de novo a Sylvia Atwood.- Acha isto satisfatório?

- Decerto, Mr. Mason. - Os olhos verdes exibiam uma expressão de candura. - Porque não havia de achar?

- Os apuros em que nos encontramos devem-se, em grande parte, à sua actuação irreflectida, Mrs. Atwood. Portanto, abstenha-se de enviar telegramas falsos ou fazer qualquer outra coisa suceptível de complicar a situação.

- Considero-o horrivelmente conservador. Se Jarrett não estivesse cá para testemunhar que vira o pai, eles não poderiam provar que não foi ele que visitou o apartamento de Brogan, enquanto eu posso jurar com a maior boa fé e sinceridade que supunha tratar-se dele quando o segui desde casa.

- Obrigado pelo elogio.

- Qual elogio?

- O de me achar conservador. Não se esqueça de o repetir à Polícia, na primeira oportunidade.

- Está a entrar comigo.

- Falo a sério. Só lhe peço uma coisa, Mrs. Atwood. Conserve a boca fechada e os dedos afastados da lata das bolachas. De acordo?

- É um homem horrível. Vê-se que fez caso das calúnias de Jarrett. Antes de tudo isto terminar, terá ensejo de me agradecer por ver claro e fazer aquilo em que a sua antiquada moção de ética profissional nem lhe permite pensar! - E, com esta tirada triunfal, Sylvia retirou-se de cabeça bem erguida.

- Que Deus nos proteja, se ela tenta mais algum dos seus golpes! - bradou Mason.

- Quer apostar?

- Nem por sombras!

 

Perry Mason sentava-se na sala de visitas da prisão, com Hattie Bain na sua frente, separados por uma espessa divisória de chapa de vidro. Um microfone e um pequeno altifalante de cada lado permitiam que se ouvissem com clareza. À excepção desse pormenor, as pessoas achavam-se tão distanciadas como se estivessem em países diferentes.

O rosto dela deixava transparecer os efeitos devastadores da dor provocada pela morte do pai, a tensão nervosa a que se encontrava sujeita e o abalo produzido pela detenção.

- Como se sente? - perguntou Mason.

- Mal. Que aspecto tenho?

- Satisfatório.

- As minhas fotografias nos jornais eram horríveis.

- Estava sob o efeito de sedativos.

- Não me concederam a menor oportunidade.

- Falou com eles?

- Decerto - declarou ela, com simplicidade. - Respondi às perguntas que me fizeram.

- Importa-se de me descrever o que aconteceu? Procurou J. J. Fritch na noite do crime?

- Sim.

- Quando?

- Depois de haver sossego, em casa. Esperei que meu pai adormecesse e Sylvia fosse para a cama.

- Porque foi lá?

- Julguei que podia convencê-lo a estabelecer um acordo.

- Conseguiu?

- Não.

- Falou com ele no apartamento de Brogan?

- Não, no seu. Mostrou-se desagradável, insultuoso para meu pai. Achei-o mesmo desprezível.

- Revelou tudo isso à Polícia?

- Sem dúvida.

- Bem, descreva lá o que se passou.

Arrumei o carro junto do prédio e subi ao apartamento alugado em nome de Frank Reedy, onde Fritch se encontrava.

- Conhecia-o?

- Sim, desde os tempos em que era sócio de meu pai.

- Continue.

- Toquei à campainha. Tive de o fazer várias vezes, antes que...

- Refere-se ao apartamento de Reedy?

- Exacto.

- E quanto ao do outro lado do corredor, ocupado por George Brogan?

- J. J. levou-me lá. Estava mesmo ansioso por sair do seu. Creio que não se encontrava só. Assim, mal abriu a porta, arrastou-me virtualmente para o apartamento em frente.

- Pense bem antes de responder - indicou Mason. - Reparou em algum sobrescrito afixado nessa porta?

Hattie reflectiu por um momento e replicou: - Não tenho a certeza, porque estava muito preocupada, mas creio que sim.

- Mas não tem a certeza?

- Isso, não.

- Muito bem. Que aconteceu, quando se encontraram no apartamento de Brogan?

- Anunciei-lhe que ia pôr as cartas na mesa e o senhor podia provar que ele era um chantagista através de uma gravação forjada que se achava em seu poder. Salientei que os seus manejos só serviriam para abreviar a morte de meu pai sem qualquer vantagem para ele e roguei-lhe que fosse um homem digno e não um traiçoeiro chantagista.

- Como reagiu?

- Tornou-se insultuoso.

- E depois?

- Correu praticamente comigo. Gritou que, se não nos livrássemos de si, Mr. Mason, havíamos de nos arrepender.

- Que mais?

- Voltei para casa e deitei-me.

- Levou o sobretudo de seu pai?

- Levei. Quando ia a sair de casa, reparei que não tinha vestido o casaco e, para não perder tempo em voltar ao quarto, abri o armário do vestíbulo e peguei no primeiro agasalho que encontrei.

- Revelou tudo isto à Polícia?

- Com certeza. O seu dever é investigar e fazer perguntas e o de um bom cidadão cooperar. - Vendo que Mason se mantinha silencioso, com uma expressão pensativa, acrescentou: - Garanto-lhe que é a verdade.

- E disse tudo à Polícia?

- Exacto.

- Bom, talvez possamos evitar que a confissão figure como prova por se achar sob o efeito de drogas.. A que horas foi isso?

- Entre a meia-noite e... Bem, regressei. a casa entre a uma e meia e as duas. Não vi as horas.

- Quando se separou de Fritch?

- Não sei a hora exacta..

- Doravante não preste mais declarações até indicação minha em contrário. Vou tentar a realização de uma audiência preliminar imediata e obter os-factos como na realidade se passaram, para dispormos de uma base de apoio sólida. Espero que não esteja a mentir para proteger a memória de seu pai...

- Decerto que não.

- Bem, faremos o melhor que pudermos.

- Não tenho dinheiro para os seus honorários, Mr. Mason, a menos que queira aguardar a distribuição da herança.

- Sylvia pediu-me que a representasse e entregou mil e quinhentos dólares de sinal.

Por um momento, o semblante de Hattie deixou transparecer uma expressão peculiar, até que articulou:

- Vai fazer o que ela lhe indicar? Permitir que oriente a minha defesa?

- Ocupar-me-ei da sua defesa da melhor maneira que souber. Trabalharei para si e mais ninguém. Olhe para mim, Miss Bain. Compreende o que estou a dizer?

- Sim.

- Compreende que me exprimo com sinceridade absoluta?

- Sim.

- Óptimo. Conserve isso presente no espírito. É minha cliente e eu o seu advogado. Não represento mais ninguém.

- Obrigada, Mr. Mason.

 

A sala do tribunal achava-se repleta de espectadores que avaliavam a importância da batalha legal prestes a desencadear-se.

Por fim, o juiz Taylor emergiu dos seus aposentos para ocupar o lugar habitual e o oficial de diligências proferiu a fórmula da praxe:

- O Povo contra Harriet Bain.

- A Acusação está preparada - anunciou Delbert Moon, um dos adjuntos da Procuradoria.

- A Defesa também - informou Mason.

- Vai iniciar-se a audiência preliminar de uma acusação de homicídio premeditado - revelou o magistrado.

Delbert Moon, suave, de raciocínio rápido e desembaraçado, um dos causídicos mais competentes da nova vaga numa Procuradoria em reorganização, levantou-se e proferiu:

- Chamo a minha primeira testemunha, George Brogan>.

Este avançou para o banco das testemunhas e prestou juramento, após o que indicou o nome, morada e ocupação de detective particular ao escrivão.

- Conhecia um indivíduo que dava pelo nome de J. J. Fritch? - principiou Moon.

- Sim, senhor.

- Onde se encontra?

- Morreu.

- Como o sabe?

- Vi o seu corpo sem vida.

- Nada mais.

Brogan preparava-se para abandonar o banco das testemunhas, quando Mason interveio:

- Um momento, por favor. Quero formular-lhe algumas perguntas.

- Chamo a atenção do Tribunal para o facto de que orientei propositadamente as minhas interrogações de molde que a testemunha, que mais tarde intervirá de uma forma mais pormenorizada, se limitasse a depor sobre uma fase do corpus delicti - esclareceu Moon.- Insisto, portanto, em que o meu prezado colega da Defesa restrinja o seu contra-interrogatório a essa parte do caso.

- Não creio que o meu ilustre colega da Acusação necessite de me ensinar a conduzir o contra-interrogatório-retrucou Mason. - Penso que a sua única função consiste em escutar as minhas perguntas e objectar a todas as que se lhe afigurarem despropositadas.

- Prossiga - concedeu o juiz Taylor, com um leve sorriso.

- Diz o senhor que viu o corpo sem vida de J. J. Fritch?

- Exacto.

- Quando?

- Na morgue.

- Quem estava presente?

- O sargento Holcomb, do Departamento de Homicídios, e o Dr. Hanover, que praticou a autópsia.

- Conheceu J. J. Fritch em vida?

- Sim, senhor.

- Aproximadamente durante quanto tempo?

- Vários anos.

- Pode precisar melhor?

- Não, senhor.

- Porquê?

- Já lá vai muito tempo. . .

- Cinco anos?

- Mais.

- Dez?

- Talvez.

- Quinze?

- Não sei.

- Mais de dez anos?

- Não o posso afirmar.

- Pode revelar quando o conheceu?

- Não, senhor.

- Afirmou que viu o corpo de J. J. Fritch na morgue?

- Sim, senhor.

- Quando foi a primeira vez que viu o corpo sem vida de Fritch?

- Protesto, excelência - apressou-se Moon a intervir. - A testemunha foi chamada apenas para estabelecer que conheceu J. J. Fritch em vida e que morreu. A nossa próxima testemunha será o Dr. Hanover, que praticou a autópsia e provará que Fritch. morreu em virtude de um acto de violência cometido por uma terceira pessoa. Estaremos então em condições de relacionar a ré com a morte do citado Fritch. Por conseguinte, a pergunta não tem cabimento neste momento. Mais tarde, quando a testemunha prestar o seu depoimento pormenorizado sobre outras fases do caso, será apropriada.

- Considero-a absolutamente apropriada neste momento - redarguiu Mason.- O senhor perguntou à testemunha se viu o corpo de J. J. Fritch e eu pergunto-lhe quando o viu pela primeira vez.

- Protesto indeferido - determinou o juiz Taylor.

- Quando viu o corpo pela primeira vez?--repetiu Mason.

Brogan mudou ligeiramente de posição na cadeira, encheu os pulmões de ar, olhou por cima da cabeça do advogado para o fundo da sala e em seguida para o chão.

- Não é capaz de responder? - inquiriu Mason.

- Estou a tentar determinar a hora exacta.

- Pense o tempo que quiser.

O outro hesitou por um momento, lançou, um olhar fugaz ao adjunto da Procuradoria e declarou:

- Tanto quanto consigo recordar, foi aproximadamente cinco minutos depois das nove da manhã do dia sete do corrente mês.

- Onde estava o corpo?

- Estendido no chão do meu apartamento, diante da porta do armário em que guardo bebidas.

- Qual era a condição do corpo?

- Vejo-me obrigado a protestar mais uma vez - interpôs Moon. - Tudo isto pode ser abordado quando Mr. Brogan vier depor como testemunha, na outra fase do processo. De momento, não é apropriado.

- Foi perguntado à testemunha, em interrogatório directo, se conhecia J. J. Fritch e viu o corpo deste. Agora, peço-lhe que o descreva. Creio que me assiste esse direito.

- Eu também - apoiou o magistrado. - O protesto é indeferido. A testemunha deve responder à pergunta.

- A parte superior do corpo estava rígida, com os cotovelos dobrados e comprimidos contra os lados. Além disso, vestia apenas roupa interior.

- Recorda-se de mais algum pormenor?

- Havia vários ferimentos circulares e pequenos.

- Observou-os nessa altura?

- Não, senhor. Só me apercebi de pequenas manchas de sangue coagulado na camisola.

- Que espécie de camisola era?

- Sem mangas.

- Que pode dizer acerca da cor do corpo?

- Nada. Tinha a coloração acinzentada, própria dos cadáveres.

- Não notou nada nas costas?

- Agora que falou nisso, creio recordar-me de uma escoriação abaixo do pescoço, entre os ombros.

- Visível por baixo da camisola?

- Sim, senhor. A cabeça estava um pouco torcida. O corpo encontrava-se estendido de costas.

- Isso tudo refere-se ao momento em que viu o corpo pela primeira vez?

- Sim, senhor.

. -Passemos agora à segunda. Onde foi?

- Na morgue.

- Qual era a condição do corpo?

- Parecia mais longo.

- Conseguiu reconhecer as feições?

- Sim, senhor.

- Foi antes ou depois da autópsia?

- Logo a seguir.

- Ora bem, Mr. Brogan. Quando lhe perguntei pela primeira vez se o tinha visto, hesitou perceptivelmente. Recorda-se?

- Por favor! - acudiu Moon, afogueado. - Não me parece que seja esta a maneira apropriada de proceder a um contra-interrogatório, além do que não creio que a testemunha tivesse hesitado.

- A testemunha hesitou e, além disso, quando lhe perguntei porquê, alegou que tentava determinar o momento exacto. ...- Julgo que isso corresponde a verdade - admitiu o juiz Taylor.

- Porque hesitou? - persistiu Mason.

- Tentava coordenar as ideias.

- Tinha-as descoordenadas?

- Foi uma força de expressão.

- Porque teve de raciocinar para se recordar do momento em que viu o corpo pela primeira vez?

- Queria ter a certeza de que não me enganava.

- Obrigado. Agora, vou fazer-lhe algumas perguntas sobre as suas relações com J. J. Fritch. Não se recorda de quando o conheceu?

- Não, senhor.

- Teve algum negócio com ele?

- Bem, propriamente negócio não.

- Consultou-o por causa de determinado assunto, pouco antes da sua morte?

- Vou pôr a questão nos seguintes termos, Mr. Mason- sei onde pretende chegar, mas garanto-lhe...

- Não perca tempo a tentar antever o que pretendo concluir. Fiz-lhe uma pergunta bem clara. Queira responder.

- Não representava J. J. Fritch.

- Quem representava?

- Ninguém.

- Pretendia que Silvia Atwood, irmã da ré, recorresse aos seus préstimos?

- Sim, senhor.

- Para quê?

- Para obter uma gravação que, no meu entender, resultaria prejudicial para a família.

- Quem o abordou inicialmente nesse sentido?

- J.J. Fritch.

- Que queria?

- Supunha ser possível receber algum dinheiro da família Bain em troca da gravação.

- O senhor ouviu-a?

- Sim.

- Sabia que havia mais de uma gravação?

- Bem... houvera... creio que só havia um original.

- Mas sabia que tinham sido obtidas mais cópias?

- Penso que o contra-interrogatório já se desviou demasiado do seu objectivo inicial - argumentou Moon. - A Defesa tenta apresentar o seu próprio caso à força de instar a minha testemunha. O meu prezado colega terá ampla oportunidade de se elucidar acerca da gravação, quando for chamado a depor para explicar como lhe foi parar às mãos.

- O Tribunal vê-se obrigado a pedir à Acusação que se abstenha de alusões mordazes pessoais - advertiu Taylor. - Protesto deferido.

- Obrigado, Mr. Brogan> - disse Mason, com um sorriso à apreensiva testemunha. - Estou satisfeito, de momento.

- Chamo a depor o Dr. Hanover - anunciou Moon.

Este prestou juramento, forneceu os esclarecimentos de natureza pessoal usuais e aguardou calmamente a primeira pergunta.

- Gostava que nos dissesse se estava presente quando o corpo foi identificado por George Brogan, a testemunha que o precedeu - indicou Moon.

- Estava, sim, senhor.

- Era o corpo que ele agora identificou como sendo de J. J. Fritch?

- Sim, senhor.

- Quando viu o corpo em causa pela primeira vez, doutor?

- Aproximadamente às nove e quarenta da manhã do dia sete.

- Na altura, procedeu a testes preliminares para determinar a hora da morte?

- Sim, senhor.

- Que indicaram? ;

- Que a morte ocorrera entre a meia-noite e as três da madrugada do mesmo dia.

- Praticou subsequentemente a autópsia?

- Sim, senhor.

- Não pretendo uma descrição técnica do que apurou, mas apenas que revele ao Tribunal, em termos simples, a causa da morte.

- A causa da morte consistiu numa série de oito perfurações na cavidade torácica. Quatro praticadas no peito, duas das quais penetraram no coração, e as restantes nas costas. Destas últimas, uma penetrou igualmente no coração, duas nos pulmões e a outra não avançou muito porque atingiu a escápula ou omoplata.

- Esses ferimentos provocaram a morte?

- Sim, senhor.

- Imediata?

- Depende do que entende por imediata. Eu diria que os efeitos imediatos dos ferimentos residiram em obrigar o homem a cair para a frente e ficar incapacitado. A morte sobreveio passado relativamente pouco tempo.

- Está familiarizado com o fenómeno denominado lividez post-mortem?

- Sem dúvida.

- Importa-se de explicar o que se entende por essa expressão?

- Após a morte, quando o sangue deixa de circular no corpo, tem tendência, enquanto se mantém fluído, para afluir à parte inferior do corpo, o que provoca o congestionamento dos vasos sanguíneos nessa região e à medida que sofre as alterações associadas à cessação da circulação (uma estagnação, se me é permitido o termo para tornar a situação mais facilmente compreensível), regista-se uma descoloração ou lividez da porção do corpo afectada que, para os leigos, poderá parecer uma escoriação.

- Onde se forma essa lividez post-mortem?

- Nas partes do corpo afectadas pela afluência do sangue em virtude da força da gravidade.

- Refere-se às partes mais baixas?

- Exacto. Do ponto de vista da posição do corpo e não da estrutura anatómica. Por outras palavras, se o corpo estiver estendido de costas, a lividez post-mortem aparecerá ao longo dos músculos desse lado, excepto nas áreas em que a pele permanece em contacto com algum objecto.

- Se o corpo jazer de bruços, não se forma nas costas?

- Decerto que não.

- E se estiver numa posição em que se encontre sentado, deverá esperar-se que a lividez post-mortem ocorra entre os ombros ou ao longo da parte posterior do pescoço?

- Não, senhor.

- Encontrou alguma lividez post-mortem no corpo de J. J. Fritch?

- Sim, senhor. Muito definida mesmo.

- Onde se localizava? Peço-lhe apenas que o indique e explique em linguagem corrente, evitando as designações anatómicas, na medida do possível.

O Dr. Hanover pousou a mão direita nas costas, mais ou menos num ponto intermédio entre as omoplatas, e informou:

- Havia alguma lividez post-mortem aqui e em mais dois ou três lugares ao longo das costas.

- Que revelaram a um cirurgião e patologista experiente como o senhor?

- Que o corpo jazera de costas.

- E quanto ao rigor mortis?

- O rigor mortis estabelecera-se na medida em que os braços e ombros estavam bloqueados, embora as pernas ainda não se achassem afectadas.

- Refere-se ao momento em que o corpo foi descoberto?

- Sim, senhor.

- Voltemos à lividez post-mortem, doutor. Quando começa a formar-se?

- Na maior parte das condições, a descoloração começa a tornar-se aparente entre uma e duas horas após a ocorrência da morte.

--E que nos pode dizer quanto ao desenvolvimento do rigor mortis?

- Desenvolve-se primeiro no rosto e mandíbulas, entre três e cinco horas após a morte. A rigidez estende-se gradualmente para baixo, envolvendo o pescoço, peito, braços, abdómen e, por último, as pernas e pés. Para que o rigor mortis se torne extensivo a todo o corpo, costuma ter de passar um período aproximado de oito a doze horas. No entanto, trata-se de um factor variável, que depende das circunstâncias e também um pouco da temperatura.

- Do conjunto das suas observações, pode determinar a hora da morte do corpo em causa?

- Decerto. Posso circunscrevê-lo a um período de três horas.

- Quais são essas horas?

- Entre a meia-noite e as três da madrugada.

- Pode instar a testemunha-indicou Moon.

- Determinou a hora da morte apenas a partir do desenvolvimento do rigor mortis? - perguntou Mason.

- Não, senhor.

-Da lividez post mortem?

- Também não.

- Suponhamos que um corpo jazeu em determinada posição o tempo suficiente para se formar a lividez post mortem e depois alguém o mudou de posição. Isso alteraria a lividez post mortem?

- De modo algum. Quando o sangue se imobiliza, existe uma certa quantidade de coagulação que se regista nos tecidos, pelo que, se o corpo é mudado de posição depois de isso acontecer, a lividez original mantém-se. Como afirmou uma autoridade de renome num livro sobre este tema, quando é encontrado um corpo com lividez post mortem na sua superfície superior, o investigador pode ter a certeza de que alguém o mudou da posição inicial numa altura várias horas após a morte. Uma vez mais, Mr. Mason, por superfície superior entendo a porção superior posicional e não anatómica.

- Compreendo. Segundo entendi, doutor, não baseia as suas conclusões quanto à hora da morte inteiramente na lividez post mortem?

- Sem dúvida que não. Isso constitui um factor, mas a lividez post mortem e o rigor mortis são de certo modo indefinidos. Este último varia consideravelmente a par do período do desenvolvimento. Se uma pessoa morre na sequência de uma rixa ou de um esforço muscular extremo, o rigor mortis estabelece-se com notável rapidez. A meu ver, é algo perigoso tentar basear uma conclusão quanto à hora da morte inteiramente no rigor mortis.

"Isto refere-se, claro, a fixação da hora da morte dentro de limites estreitos de uma, duas ou três horas-Evidentemente que num lapso de tempo mais longo, uma pessoa pode proceder a uma estimativa, e muito rigorosa, diga-se de passagem, como, por exemplo, de um período de seis horas durante o qual a morte deve ter ocorrido. Passadas vinte e quatro horas, se estiverem presentes determinadas alterações características no rigor mortis, eu diria que seria possível traçar uma conclusão quanto a um intervalo de seis horas durante o qual a morte se deve ter verificado.

- Mas, neste caso, o senhor estabelece a morte num período de três horas?

- Exacto.

- Agora, gostava de lhe fazer uma pergunta de outra natureza, doutor. Está, por assim dizer, predisposto contra a ré, neste caso?

O médico ponderou o assunto por um momento, antes de declarar:

- É claro que tenho uma opinião quanto à sua inocência ou culpabilidade.

- Considera-a culpada?

- Sim.

- É uma opinião firme?

- Sim.

- Resultante de investigações a que procedeu?

- Investigações a que procedi e outras a que se dedicaram as autoridades, além dos resultados que conheço.

- Nesse caso, tem uma opinião formada contra a ré?

- Penso que se pode dizer apenas que tenho uma opinião acerca da sua culpabilidade.

- E, como cidadão, não deseja que uma pessoa culpada escape à pena que o seu crime justifica?

- Decerto.

- Portanto, como a considera culpada, está ansiosa por vê-la condenada?

- Acho que isso corresponde à verdade.

- Assim, ao depor, procura naturalmente incutir às suas palavras um peso susceptível de contribuir para agravar a situação da ré?

- De modo algum.

- Não me refiro a alterar os factos, doutor, mas à maneira como presta declarações.

- Sim, isso é correcto.

- Pode saber-se que factos tomou em consideração para fixar a hora da morte dentro de um período de três horas?

- Foram dois. O factor tempo envolvido em relação à ingestão de uma refeição, que depreendo ter sido uma refeição normal da noite, e a temperatura do corpo. Este último factor afigura-se-me um indicador absoluto.

- Não mencionou nenhum deles durante o interrogatório precedente.

- Nada me foi perguntado nesse sentido.

- Pediram-lhe que estabelecesse a hora da morte?

- Sim, e estabeleci-a.

- Sabia que não o interrogariam sobre esses dois factores?

- Não me parece que isto seja um contra-interrogatório legítimo, excelência - interveio Moon.- O meu prezado colega limita-se a irritar a testemunha, sem qualquer resultado prático, através de alusão a factos irrelevantes para o assunto em causa.

- Discordo - contrapôs Mason. - Pretendo demonstrar a parcialidade da testemunha.

- Ela já declarou que considera a ré culpada e deseja vê-la condenada.

- Exactamente. Mas também afirmou que a sua opinião não afectou de forma alguma a maneira como prestou declarações. Proponho-me demonstrar que não é assim.

- Que quer dizer, Mr. Mason? - perguntou o juiz Taylor.

- Proponho-me demonstrar que o Dr. Hanover se absteve propositadamente de aludir aos factores pelos quais estabeleceu a hora da morte em resultado do exame directo do corpo, porque estabeleceu um acordo com a Acusação no sentido de evitar referi-los, o que me obrigaria a interrogá-lo unicamente acerca do elemento tempo. Considerou que se acharia numa posição estratégica mais confortável para prejudicar a situação da ré fazendo-o durante o contra-interrogatório do que no decurso das perguntas formuladas pela Acusação.

- Protesto indeferido - decidiu o magistrado.

- Pode responder à pergunta, doutor? - Insistiu Mason.

O interpelado mostrou-se subitamente pouco à vontade.

- Bem, evidentemente que discuti o meu depoimento com as autoridades.

- Por autoridades, quer dizer o adjunto da Procuradoria?

- E a Polícia.

- Mas com o adjunto da Procuradoria?

- Sim, senhor.

- A Polícia disse-lhe alguma coisa acerca da forma como devia prestar declarações?

- De modo algum. Não existe nada que justifique semelhante insinuação.

- E o adjunto da Procuradoria?

- Bom, houve uma discussão geral quanto ao campo que o meu depoimento deveria abarcar.

- Não houve porventura uma discussão específica no sentido de que não dissesse nada durante o interrogatório directo quanto à forma como estabeleceu a hora da morte e se limitaria a emitir a simples opinião de que ela ocorrera entre a meia-noite e as três da madrugada e evitaria uma descrição minuciosa dos seus motivos, para quando eu o interrogasse se achar em condições de me crucificar?

- Não creio que o termo crucificar fosse empregado.

- Mas o seu equivalente?

- Bem, admito que recebi instruções para... não, instruções não é o vocábulo conveniente. Confesso que não me ocorre o apropriado à situação. Ficou estabelecido que eu me absteria de mencionar pormenores até que as perguntas surgissem durante o contra-interrogatório.

- Para me obrigar a ficar de rastos?

- Essa expressão não foi utilizada - declarou o Dr. Hanover, com um sorriso.

- Então, qual utilizaram?

- Por favor, excelência - volveu Moon. – Penso que os termos exactos carecem de importância. O Dr. Hanover já confirmou o ponto que a Defesa desejava laboriosamente demonstrar.

- Quero ouvir as palavras exactas - persistiu Mason.- Creio que me assiste esse direito, por estar convencido de que farão luz sobre a atitude da testemunha.

- Protesto indeferido - anunciou Taylor.

- Qual foi a expressão empregada?

- Pregá-lo à cruz - balbuciou o médico.

- Por conseguinte, quando afirmou que o termo crucificar não tinha sido empregado, tirava partido de um pormenor técnico?

- Protesto contra a pergunta por ser argumentativa - disse Moon.

- Deferido - determinou o juiz. - Os factos são suficientemente elucidativos.

- Ora bem - Mason mudou bruscamente de táctica-, afirmou que o efeito imediato dos ferimentos não consistiu em causar a morte, mas obrigaria a vítima a cair de bruços e ficar incapacitada?

- Creio que foi o que eu disse.

- É essa a sua opinião?

- Sim, senhor.

- Cair de bruços?

- Exacto.

- Porque pensa que caiu de bruços e não de costas?

-Porque parto do princípio de que os quatro ferimentos no peito foram os primeiros e os restantes infligidos depois de a vítima estar estendida de bruços.

- E porque parte desse princípio?

- Porque é... é natural.

- E porque diz que é natural?

- Bem, francamente, não existe nada em qualquer dos ferimentos que me permita determinar a ordem pela qual foram infligidos. Ocorreram todos aproximadamente na mesma altura, ou seja, segundo aquilo que eu consideraria uma sequência rápida, mas se o homem fosse atingido no coração e caísse para a frente, resultaria impossível produzir ulteriores ferimentos nesse lado do corpo e os quatro restantes situar-se-iam nas costas.

- A menos que os quatro primeiros fossem nas costas e ele caísse para trás, em cuja eventualidade os quatro restantes se localizariam na frente.

- Trace as conclusões que preferir.

- Não se trata do que eu prefiro. Pretendo apenas salientar o facto de que, para além de meras conjecturas, o senhor nada pode afirmar de irrefutável quanto à sequência dos ferimentos ou se os da frente precederam os das costas.

- Concluí que os da frente foram produzidos primeiro, mas reconheço que não o posso provar.

- Não obstante, afirmou há pouco que a lividez post mortem indicava que o corpo jazia de costas.

- Bem... sim, quando se imobilizou finalmente.

- E a morte pressupõe isso?

- Julgo que sim.

- Portanto, os elementos que apurou dos seus exames indicam que os primeiros quatro ferimentos foram os das costas?

- É uma possibilidade.

- Pergunto-lhe se os elementos que apurou no seu exame não o indicam.

- Sim, acho que sim.

- Não ache, doutor. Indicam ou não?

- Sim, mas esses elementos não são suficientes para se considerarem concludentes.

- Nesse caso, sabe em que posição o homem morreu?

- Não, senhor.

- Mas admite que o corpo foi movido após a morte?

- De modo algum.

- Então, o ataque deve ter sido desferido pelas costas.

- Não quero discutir esse ponto, Mr. Mason.

- Não discuta, responda.

- Bem... não sei.

- Então, não sabe se ele caiu para a frente?

- Pois não.

- Procurou indícios de veneno no corpo?

- Examinei-o para tentar determinar a causa da morte e descobri que consistia na série de ferimentos já mencionados.

- Considerou-os suficientes para provocar a morte?

- Sim, senhor.

- Sabe se houve alguma outra causa que contribuísse para a morte, como, por exemplo, veneno?

- Não, senhor. Sei que os ferimentos foram infligidos durante a vida da vítima e o seu resultado só podia consistir na morte. Por conseguinte, concluí que representavam a única causa. Ignoro se houve algum outro factor que originasse sintomas. Sei, sim, repito, que os ferimentos constituíram a causa da morte. Foi o que me perguntaram e o que declarei.

- Disse que determinou que a morte ocorrera entre a meia-noite e as três horas da madrugada do dia sete?

- Exacto.

- É uma determinação rigorosa?

- Entendamo-nos, Mr. Mason. Não posso afirmar com exactidão quando a morte ocorreu, mas tenho possibilidade de fixar limites dentro dos quais deve ter ocorrido. Estou em condições de asseverar que não foi antes da meia-noite, nem depois das três horas. Penso que as probabilidades se cifram em que ocorreu por volta da uma, mas, por uma questão de segurança, estabeleci esse limite de três horas e posso afirmar que se verificou dentro desse lapso de tempo.

- Como o sabe?

- Fundamentalmente, pela temperatura do corpo em comparação com determinadas informações estatísticas que possuímos quanto ao grau de arrefecimento.

- E foi essa fase do seu depoimento que o senhor e a Procuradoria decidiram que convinha abordar apenas durante o contra-interrogatório? - perguntou Mason, com um sorriso.

- Bem... sim.

- Nesse caso, abordemo-la. Fale-nos do grau de arrefecimento.

- A temperatura normal média de um corpo humano no momento da morte, em particular nos casos de morte violenta, pode considerar-se de trinta e seis vírgula oito graus Celsius. O corpo arrefece à razão aproximada de um grau por hora, consoante as circunstâncias do ambiente... pelo menos, nas primeiras doze horas.

- Porque diz "nos casos de morte violenta"?

- Porque, tratando-se de morte natural, a vítima podia sofrer de febre elevada. Se, por exemplo, se registasse uma febre de trinta e nove graus, isso influiria na temperatura do corpo, assim como nos cálculos para determinar a hora da morte. Por outro lado, quando uma pessoa se acha aparentemente em gozo de perfeita saúde no instante do passamento e conhece um fim violento, pode-se assumir a existência de uma temperatura de trinta e seis graus vírgula oito.

- Por conseguinte, determinou a hora da morte, neste caso, em virtude da temperatura do corpo?

- Fundamentalmente. Também entrei em linha de conta com a extensão que o rigor mortis atingira, o estado da comida no canal digestivo e o aspecto da lividez post mortem.

- Tomou em consideração o facto de o corpo se achar praticamente desnudo?

- Decerto. Tomei em consideração os vários elementos da temperatura. Por outras palavras, a temperatura do ar em volta e o facto de o corpo se encontrar desnudo.

- Mas o corpo estava mesmo desnudo no momento da morte?

- Parti desse princípio.

- É um princípio do género do que partiu para determinar a sequência dos ferimentos, baseado simplesmente no que, a seu ver, era o mais natural?

- Não, senhor. Procedi a um exame meticuloso à roupa dependurada no armário do apartamento ocupado pela vítima.

- Esse apartamento situava-se directamente em frente do ocupado por George Brogan?

- Exacto.

- Examinou a roupa meticulosamente?

- Sim, senhor. Toda. -À procura de quê?

- Perfurações ou manchas de sangue.

- Encontrou alguma?

- Não, senhor.

- Portanto, está disposto a afirmar que, no momento da morte, J. J. Fritch se encontrava no apartamento de George Brogan de camisola interior e cuecas?

- Não, senhor.

- Julguei que fosse essa a conclusão do seu depoimento.

- Não posso afirmar uma coisa dessas. Quero mesmo salientar o seguinte. Se o corpo estivesse vestido e a roupa tivesse sido removida logo após a morte, a determinação da hora da morte com base no grau de descida da temperatura não se alteraria. Indiquei o período máximo de três horas, por estar convencido de que a morte não ocorreu antes da meia-noite nem depois das três da madrugada.

- Esse limite é absoluto?

- Sem dúvida, - Está convencido de que a morte antes da meia-noite constituiria uma impossibilidade física?

- Sim, senhor.

- Ou depois das três da madrugada?

- Exacto.

- Está disposto a jogar a sua reputação em semelhante afirmação?

- Com certeza.

- Obrigado. Nada mais.

- Um momento - indicou Moon. - Quero fazer-lhe algumas perguntas relacionadas com pontos abordados por Mr. Mason no contra-interrogatório. Ora bem. Onde se encontrava o corpo, quando o viu pela primeira vez?

- No sobrado do apartamento de George Brogan.

- Em que lugar do apartamento?

- Imediatamente em frente do armário das bebidas, e quero salientar que quem o descobriu afirmou que caiu de lá quando a porta foi aberta.

- Um momento - interveio Mason. - Proponho que a parte final da frase seja eliminada por constituir uma informação em segunda mão.

- Objecção deferida - declarou Taylor. - A parte final da frase será eliminada dos autos.

Enxofrado por reconhecer que a sua posição era legalmente indefensável, Moon aceitou a derrota com a maior graciosidade possível e prosseguiu:

- Na sua opinião, doutor, seria possível que tivessem colocado o corpo no armário e que caísse para a frente ao abrirem a porta?

- Não, senhor.

- Porquê?

- Tomando em consideração os vários factores que enumerei, essa conclusão é absolutamente negativa.

- Por que motivo?

- Em primeiro lugar, é refutada pela posição dos braços. O rigor mortis tinha-se desenvolvido de tal modo que estavam, por assim dizer, bloqueados, com os cotovelos junto dos lados do corpo e as mãos perto das mandíbulas. Apesar disso, não havia qualquer indício de que os braços tivessem sido atados.

- E que indica isso?

- Que o corpo não podia de modo algum ter sido colocado de pé no armário, ou em qualquer outro lugar, imediatamente após a morte. Nessa eventualidade, as mãos e braços teriam ficado estendidos para baixo, e o rigor mortis estabelecer-se-ia, para os fixar nessa posição. O facto de os braços estarem erguidos e os cotovelos junto dos lados indica que o corpo devia jazer de costas. Na minha opinião, era a única maneira de o rigor mortis se poder estabelecer com as mãos nessa posição.

- Alguma outra razão?

- Sim, senhor. O desenvolvimento da lividez post mortem.

- Obrigado, doutor. Nada mais.

- Um instante, por favor - acudiu Mason. - Gostava de fazer mais algumas perguntas à testemunha.

- Muito bem - acedeu Moon.- À vontade.

- Foi este depoimento que discutiu previamente com a Acusação?

- Sim, senhor.

- E concordaram que, em caso de necessidade, abordaria o assunto num segundo interrogatório, embora tentasse aludir, durante o contra-interrogatório, ao facto de que a pessoa que descobrira o corpo afirmara que caíra do armário, quando abrira a respectiva porta?

- É um facto. Eu próprio ouvi essa revelação.

- Na altura em que o corpo foi descoberto?

- Mais tarde. Interroguei essa testemunha.

- Mas foi acordado que tentaria introduzir o facto durante o contra-interrogatório?

- Bem... salientei que essa afirmação da testemunha era obviamente falsa, e Mr. Moon sugeriu que, se possível, eu a referisse durante o meu depoimento.

- E foi sugerido que introduzisse essa afirmação no depoimento, se se lhe deparasse a oportunidade?

- O assunto já foi ventilado numerosas vezes, excelência - protestou Moon.- Assumamos que a testemunha é favorável à Acusação e nada mais.

- Com base nessa assunção, não insistirei na resposta - declarou Mason. - Pretendo simplesmente que o Tribunal compreenda que todo o depoimento desta testemunha é afectado por uma ideia preconcebida favorável à Acusação.

- Não foi isso que eu disse-objectou Moon.

- Mas é o que eu digo, e, se subsiste alguma dúvida, continuarei a instar a testemunha até que fique estabelecido.

- Bem, continue lá, para terminarmos isto de uma vez. No fundo, é um ponto de importância secundária.

- Não seria possível que o corpo tivesse sido colocado no armário e lhe erguessem as mãos, para depois as fixarem nessa posição pela porta?

- Ninguém conseguiria mantê-las levantadas enquanto fechava a porta sem o auxílio de algum dispositivo que as conservasse assim, e, de qualquer modo, não se registaria uma lividez post mortem como a que se me deparou. Tomando as duas circunstâncias em consideração, não subsiste a mínima dúvida de que o corpo jazeu de costas após a morte aproximadamente na posição em que foi encontrado pela Polícia.

- Examinou a carpeta, para ver se havia manchas de sangue?

- Diante do armário?

- Onde o corpo jazia.

- Sim, senhor. Fi-lo.

- Encontrou alguma coisa?

- Não.

- Nada mais, doutor.

- Um momento - interpôs Moon. - Seriam de esperar manchas dessa natureza?

- Não forçosamente. A hemorragia foi muito reduzida em virtude das características dos ferimentos, que ficaram vedados quase em seguida. Verificou-se alguma hemorragia interna, mas pouquíssima externa. É muito possível que a camisola absorvesse todos os sinais de sangue visíveis.

- Obrigado. Nada mais.

- Só mais uma pergunta - volveu Mason, com um sorriso. - Suponho que existem testes muito rigorosos para determinar a presença de sangue...

- Decerto.

- Testes esses que indicam quantidades de sangue microscópicas?

- Bem, não são específicos, mas indicam de facto o sangue. Revelam várias coisas e o sangue é uma delas.

- A carpeta foi submetida a eles?

- Não, senhor. Examinámo-la, mas não descobrimos sinais de sangue.

- Porque não a submeteram aos testes?

- Para dizer a verdade, na altura não nos ocorreu. Quando a Polícia viu o corpo pela primeira vez, depreendeu que as afirmações da testemunha eram correctas e o corpo caíra do armário no momento em que a porta fora aberta. Só mais tarde a autópsia indicou que isso não podia corresponder à verdade. Entretanto, várias pessoas tinham pisado a carpeta, pelo que as condições não eram as mesmas do momento da descoberta do corpo, e a Procuradoria considerou que o facto tornaria discutíveis os elementos que pretendêssemos apresentar. Refiro-me à circunstância de a carpeta não ter sido preservada na mesma condição e várias pessoas a haverem pisado.

- Nada mais - declarou Mason.

- Nada mais, doutor - ecoou Moon.

O Dr. Hanover abandonou o banco das testemunhas, visivelmente aliviado por a provação ter chegado ao fim.

- Chamo Mrs. Erma Lorton a depor - anunciou o adjunto da Procuradoria.

Mrs. Lorton, uma mulher alta, magra, de olhos semi-cerrados e lábios comprimidos numa linha de determinação, avançou em passos pesados. Em seguida, indicou o nome e morada, nos Apartamentos Mendon, após o que Moon perguntou:

- É o prédio em que se encontram os apartamentos de George Brogan e J. J. Fritch?

- Sim, senhor.

- Chamo a sua especial atenção para as primeiras horas da manhã do dia sete - continuou, levantando-se, para abotoar o casaco, passar a mão pelo cabelo e olhar em redor, consciente de que se preparava para lançar uma bomba. - Que fazia a senhora por volta da meia-noite e trinta dessa madrugada?

- Encontrava-me no meu apartamento.

- Ocupada em quê?

- Aguardava.

- O quê?

- Que uma vizinha chegasse.

- A quem se refere?

- À pessoa que ocupava o apartamento contíguo.

- Qual é o seu apartamento?

- O seiscentos e sete.

- E o da sua vizinha?

- O seiscentos e nove.

- Quem era essa vizinha?

- Uma jovem.

- Amiga sua?

- Sim.

- Vou pedir-lhe apenas que revele a natureza do seu interesse. Ela confiara em si sobre determinado assunto? Basta responder sim ou não.

- Sim.

- E a natureza dessa confidência justificava que se interessasse pela hora a que regressou ao apartamento, na noite em causa?

- Sim, senhor.

- E a senhora aguardava para ver a que horas regressava a casa?

- Exacto.

- Que observou?

- À meia-noite e trinta e cinco entreabri levemente a porta, ao ouvir o elevador.

- Ouviu o elevador?

- Sim, senhor.

- E que aconteceu a seguir?

- Quando ouvi a porta do elevador e passos no corredor concluí que era a minha amiga. Interessava^me dizer-lhe que ainda não me tinha deitado, para a eventualidade de precisar de alguma coisa.

-Que se passou?

- Verifiquei que os passos não se aproximavam do meu apartamento e havia uma pessoa diante do elevador, entretida a consultar os números dos apartamentos.

- Pode identificá-la?

- Sim, senhor. Era a ré.

- A que está sentada ao lado de Mr. Mason?

- Exacto.

- Se o Tribunal me permite, vou pedir à ré, Harriet Bain, que se levante.

- Queira levantar-se - indicou o magistrado. Hattie obedeceu e Moon insistiu:

- Era esta a mulher?

- Sim, senhor.

- Viu para onde foi?

- Sim, porque continuei a espreitar pela porta entreaberta.

- Queira revelá-lo ao Tribunal.

- Dirigiu-se ao apartamento ocupado por Frank Reedy, ao fundo do corredor.

- Ou seja, o homem que conhecia por Frank Reedy?

- Exacto.

- Sabe o seu nome verdadeiro?

- Sim, senhor.

- Qual é?

- J. J. Fritch.

- Vou mostrar-lhe uma fotografia do falecido J. J. Fritch, para que diga se era o homem que conheceu como sendo Frank Reedy.

- É o mesmo.

- Solicito que esta fotografia seja identificada como elemento pertinente do caso, excelência.

- Concedido.

- Ora bem, Mrs. Lorton. Que fez a ré?

- Tocou à campainha.

- Desse apartamento?

- Sim.

-E que aconteceu?

- Tocou duas ou três vezes.

- Que sucedeu a seguir?

- Mr. Reedy, ou seja, Mr. Fritch, abriu e deixou-a entrar.

- Viu-a abandonar o apartamento?

- Não, senhor.

- Não a viu sair?

- Não.

- Continuou a espreitar mais algum tempo?

- Sim, senhor.

- Quanto?

- Dez minutos.

- Que se passou?

- A porta do elevador abriu-se, a minha amiga chegou e trocámos breves palavras. Expliquei-lhe que, como ainda não me tinha deitado, podíamos conversar, mas garantiu que tudo fora resolvido satisfatoriamente e fui-me deitar.

- Pode instar a testemunha - declarou Moon.

- Identificou a ré sem dificuldade? - principiou Mason, sorrindo.

- Sim, senhor.

- A sua visão é excepcionalmente apurada?

- Sim, senhor.

- Nunca usa óculos?

- Às vezes, para ler.

- Usa-os sempre, para ler?

- Bem... sim.

- Consegue ver ao longe sem eles?

- Sim, senhor.

- Mas não consegue ler sem os pôr?

- Não, senhor.

- Tem de usá-los para ler?

- Sim, é necessário. Já lhe tinha dito - asseverou ela, irritada.

- E agora não usa óculos?

- Não, senhor.

- E pôde identificar a ré sem dificuldade, quando se levantou?

- Sim, senhor.

- É a primeira vez que a vê, desde a noite de sete?

- Sim, senhor.

- Viu-a na prisão?

- Sim, senhor.

- Na parada de identificação?

- Não, senhor.

- Ela estava só?

- Sim, senhor.

- Indicaram-lha?

- Sim, senhor.

- Quem?

- O sargento Holcomb.

- Que lhe disse ele na altura?

- Protesto, por não se tratar de um contra-interrogatório apropriado, mas de alusão a uma informação em segunda mão - insurgiu-se Moon.

- Deferido - assentiu Taylor.

- Alguém lhe indicou a ré, na altura?

- Eu é que a indiquei.

- Disse que essa pessoa era a ré?

- Exacto.

- Mas quem lhe chamou a atenção para a ré em primeiro lugar?

- Bem, é claro que a Polícia queria saber se eu a podia identificar. Para o efeito, acompanhou-me à prisão.

Mason deixou extinguir-se o momentâneo murmúrio de risadas e volveu:

- Nesse caso, a Polícia indicou-lhe a ré primeiro e só depois a senhora a indicou à Polícia?

- Bem, concordei que era a pessoa que tinha visto.

- Foi a única pessoa que lhe mostraram?

- Sim, senhor.

- Portanto, informaram-na então de que essa pessoa era Harriet Bain, detida pelo assassínio de J. J. Fritch?

- Sim, senhor.

- Ora bem. Já que precisa de usar óculos para ler, como pôde identificar a fotografia de J. J. Fritch numa altura em que não os usava?

- Con... consegui ver bem.

- O suficiente para proceder à identificação?

- Sim, senhor.

Mason pegou num tratado de Direito de cima da mesa, entregou-o à testemunha e indicou:

- Tenha a bondade de ler um parágrafo. Um qualquer serve. Sem pôr os óculos.

Ela semicerrou ainda mais as pálpebras, mudou o livro da posição várias vezes na sua frente e acabou por declarar:

- Não consigo distinguir as letras com clareza.

- E foi capaz de ver a fotografia mais claramente?

- Sabia de quem era - anunciou em tom de triunfo.

- Como?

- O adjunto da Procuradoria, Mr. Moon, explicou que a fotografia que me mostrava era de J. J. Fritch.

- Obrigado. Nada mais.

Visivelmente contrariado, Moon bradou à testemunha:

- Apesar de não ter os óculos postos, suponho que conseguia ver a fotografia com a clareza suficiente para saber que era do homem que conhecia por Frank Reedy, não é assim?

- Protesto por constituir uma pergunta insidiosa e sugestiva - advertiu Mason.

- Trata-se de segundo interrogatório, excelência - salientou o outro.

- Isso não interessa - redarguiu Mason. - Não pode colocar palavras na boca da sua própria testemunha.

- Acho preferível rectificar a construção da frase - recomendou o magistrado.

- Mas no segundo interrogatório torna-se necessário chamar a atenção da testemunha para a parte particular do depoimento abordada no contra-interrogatório que se pretende refutar - insistiu Moon.

- Faça a pergunta, mas sem lhe colocar palavras na boca - observou Mason.

- Não tenho nada que aceitar as suas recomendações.

- Segundo parece, também não as quer aceitar do Tribunal, que já tomou uma posição sobre o assunto.

- Acabemos com as alusões pessoais, meus senhores- interpôs o juiz Taylor.- O Tribunal deliberou que a objecção se justificava. Portanto, queira rectificar a construção da pergunta, senhor adjunto.

- Viu a fotografia? - inquiriu Moon, com um suspiro de resignação.

- Sim, senhor.

- E reconheceu-a?

- Sim, senhor.

- Nada mais.

- Um momento - solicitou Mason. - Como a reconheceu?

- Bem, vi que se tratava de uma fotografia.

- Conseguiu distinguir os traços fisionómicos melhor do que o texto do livro que lhe mostrei há pouco?

- Bom, sabia que era a fotografia em causa, porque Mr. Moon me disse que se tratava da que me chamara para identificar.

- E aceitou a palavra dele?

- Decerto.

- E, analogamente, quando a Polícia lhe indicou a ré e disse que era a pessoa que vira no corredor, contentou-se com a sua palavra?

- A situação não era idêntica. Tenho a certeza acerca dela.

- Então, não tinha a certeza a respeito do homem da fotografia?

- Podia ter algumas dúvidas. Aceitei a palavra de Mr. Moon, que me mostrara a mesma fotografia duas vezes e eu identificara-a.

- Como sabe que era a mesma? - perguntou, com um sorriso indulgente.

- A palavra de um procurador da Justiça basta-me! - vociferou a mulher.

- E, pela mesma razão, a palavra de um sargento da Polícia?

- Sim.

- Nada mais.

- Nada mais - repetiu Moon, irritavelmente. - Vamos resolver o assunto imediatamente. Chamo a depor Frank Haswell.

Este era um indivíduo alto e magro, de gestos indolentes, que se instalou na cadeira como se tencionasse ocupá-la por longos minutos e desejasse passá-los no maior conforto possível.

As perguntas preliminares revelaram que era um perito de impressões digitais, convocado para examinar o apartamento ocupado por George Brogan, onde descobrira e fotografara um número apreciável delas.

Moon voltou a levantar-se para atrair as atenções da assistência, inequivocamente satisfeito com o papel que desempenhava.

- Conseguiu identificar alguma, Mr. Haswell?

- Sim, senhor.

- Encontrou as impressões digitais de alguém presente nesta sala?

- Sim, senhor.

- De quem?

- De Perry Mason.

Irrompeu uma gargalhada geral, apesar dos esforços do oficial de diligências para impor silêncio, e até o juiz Taylor se permitiu um sorriso.

- Onde as encontrou?

- Em três lugares.

- Quais?

- Na parte inferior de uma mesa da sala, na lâmina de uma faca na cozinha e na superfície superior do íman de um suporte de facas, junto do lava-loiça.

- Como as identificou?

- Mr. Mason fornecera as suas ao Departamento, em relação com outro caso de homicídio.

- Que outras encontrou?

- De Harriet Bain.

- A ré?

- Sim, senhor.

- Como as identificou?

- Procedi à comparação directa com outras dos seus dedos.

- Onde as encontrou?

- Posso ilustrar melhor a explicação identificando uma fotografia da sala e outra do local onde o corpo foi encontrado, em que há determinadas áreas marcadas, pequenos círculos brancos, que representam a posição aproximada dos pontos em que encontrei as impressões digitais da ré.

- Queremos incluir essa fotografia como prova. Vou mostrá-la à Defesa e...

- Não é necessário - cortou Mason. - Alegro-me mesmo por verificar que a fotografia figurará como prova.

--Pode instar a testemunha - disse Moon.

- Só encontrou três impressões digitais minhas? - perguntou Mason, com incredulidade.

- Sim, senhor.

- Porque não encontrou mais? Estive nesse apartamento durante algum tempo.

- Bem, encontrar uma impressão digital latente é mais ou menos a mesma coisa que localizar caça no bosque. Pode haver muita e tornar-se particularmente difícil descobri-la. É necessário que a impressão digital se situe numa superfície que a conserve e que seja revelada dentro de um certo limite de tempo.

- Que espécie de limite?

- Nesse aspecto, depara-se-nos um factor regido por numerosas variáveis. Depende das condições atmosféricas, do grau de humidade, da natureza da substância em que a impressão latente ficou marcada, etc. Eu diria que, neste caso, se pode assumir que as que encontrei foram produzidas num período de setenta e duas horas.

- Mais do que isso?

- Não creio. Procedo a uma estimativa, claro, mas, em face das circunstâncias, diria dentro do período que acabo de indicar.

- Por conseguinte, o seu exame indicou que a ré tinha estado no apartamento numa altura determinada dentro das setenta e duas horas anteriores ao seu exame?

- Exacto.

- E que eu tinha estado lá numa altura determinada dentro das setenta e duas horas anteriores ao seu exame?

- Sim, senhor.

- Encontrou impressões digitais da irmã da ré, Sylvia Atwood?

- Sim.

- Portanto, tinha estado no apartamento numa altura determinada dentro das setenta e duas horas anteriores ao seu exame?

- Sim, senhor.

- Encontrou impressões digitais da vítima, J. J. Fritch?

- Sim, senhor.

- Muitas?

- Algumas.

- Por conseguinte, tinha estado numa altura determinada dentro das horas anteriores ao seu exame?

- Sim, senhor.

- E encontrou impressões de Brogan?

- Naturalmente.

- Portanto, tinha estado na altura determinada dentro das setenta e duas horas anteriores ao seu exame?

- Sim.

- Ora bem. Importa-se de nos revelar se encontrou as impressões digitais do sargento Holcomb, do Departamento de Homicídios?

- Por acaso, encontrei - declarou Haswell, sorrindo.

- Por conseguinte, o sargento Holcomb tinha estado no apartamento numa altura determinada dentre das setenta e duas horas anteriores ao seu exame?

- Sim, senhor.

- Importa-se de nos revelar se havia alguma coisa no seu exame que indicasse se o sargento Holcomb tinha estado no apartamento antes da perpetração do assassínio?

- Não, senhor. Apenas encontrei as suas impressões digitais.

- Sabe se a ré esteve no apartamento antes da hora da perpetração do assassínio?

- Só sei que encontrei as impressões digitais dela.

- Sabe se eu estive no apartamento antes da hora da perpetração do assassínio?

- Só sei que encontrei as suas impressões digitais.

- Nessa conformidade, pelo que respeita ao seu depoimento (e sejamos absolutamente francos neste aspecto), existem tantos motivos para supor que a ré cometeu o crime como eu ou o sargento Holcomb.

- Evidentemente que não posso...

- Protesto, por se me afigurar um raciocínio argumentativo - interveio Moon. - Não se trata de um contra-interrogatório apropriado.

- Não nego que é um pouco argumentativo - declarou o juiz Taylor. - No entanto, a Defesa limita-se a tentar salientar a aplicação do elemento tempo. Acho que não me vou opor.

- Qual é a sua resposta? - inquiriu Mason.

- Negativa - retorquiu Haswell. - Não posso determinar quando as impressões digitais foram produzidas. Só sei que, dentro de um período durante o qual elas podiam ser preservadas, a ré esteve no apartamento em causa.

- E que eu estive lá?

- Sim.

- E o sargento Holcomb?

- Exacto.

- E, até onde a sua investigação lhe permitiu apurar, há tantos motivos para crer que o sargento Holcomb esteve no apartamento e cometeu o crime como que foi a ré que esteve no apartamento e cometeu o crime?

- É claro que sei que o sargento Holcomb esteve no apartamento depois de cometido o crime.

- Sabe se esteve no apartamento antes de o crime ter sido cometido?

- Não, senhor.

- Sabe se a ré esteve no apartamento depois de ter sido cometido o crime?

- Sei que... Um momento! Se devo responder à pergunta com honestidade, tenho de dizer que não.

- Obrigado. Nada mais.

Moon hesitou, como se ponderasse se devia formular mais uma pergunta, mas renunciou e limitou-se a dizer:

- Nada mais. - Fez uma pausa. - Agora, quero chamar George Brogan novamente, desta vez para obter o seu depoimento sobre uma outra faceta do caso. Destina-se a estabelecer a base para apresentar a prova da gravação que foi objecto de análise anterior, encontrada pela Polícia através de um mandado de busca.

Brogan voltou a ocupar o banco das testemunhas, e a sua atitude deixava transparecer que sabia que ia enfrentar uma provação a todos os títulos indesejável.

- Ora bem, Mr. Brogan. Antes do dia sete do mês corrente, teve oportunidade de conversar com Perry Mason?

- Sim, senhor.

- Onde?

- No meu apartamento.

- A conversa tinha alguma relação com a família Bain?

- Sim, senhor. Dizia respeito a direitos de propriedade, potencialmente importantes para todos os membros da família.

- E tinha alguma relação com as actividades de J. J. Fritch, o homem que foi assassinado?

- Sim, senhor.

- Pode descrever a sua natureza? - Não necessita de entrar em pormenores, bastando referir o tema geral e as negociações.

Brogan encheu os pulmões de ar, mudou de posição, hesitou e pareceu escolher as palavras que iria pronunciar, enquanto o magistrado lançava uma olhadela a Mason e em seguida se virava para Moon.

- Isto não é um pouco remoto?

- Não, excelência. Prova o motivo e estabelece a base para introdução da prova discutida anteriormente, uma bobina de fita magnetofónica, que a Polícia encontrou na posse de Perry Mason.

- Alguma objecção? - perguntou a este último, que se sentava completamente descontraído e fazia deslizar o polegar e o indicador ao longo de um lápis.

- Absolutamente nenhuma - declarou, com um sorriso afável.

- Bem, então prossiga - determinou o juiz. - No entanto, sugiro que sejamos o mais breves possível. Penso que se a Acusação pretende provar a motivação, a testemunha pode expor de um modo geral os factos relacionados nas negociações e não em pormenor.

- Ouviu o que o Tribunal decidiu - disse Moon a Brogan. - Seja breve. Explique, de um modo geral, a natureza da discussão. - Apurei que J. J. Fritch estava envolvido num assunto que ocultara ao longo de muitos anos. Alegava que houvera uma certa ligação entre ele e Ned Bain, pai da ré, e, se fosse estabelecida, poderia redundar numa perda de propriedade para a família Bain.

- Que fez o senhor?

- Considerei que poderia ser útil e ofereci os meus préstimos aos Bain.

- A todos os Bain?

- Não, a uma representante.

- Quem?

- Mrs. Sylvia Atwood.

- Refere-se à irmã da ré?

- Exacto.

- Que aconteceu a seguir?

- Mrs. Atwood recorreu aos serviços de Mr. Mason, que me procurou. Tentei tornar a minha posição bem clara, salientando que, dadas as circunstâncias, me encontrava em situação de actuar como uma espécie de intermediário, mas para tal exigia que ficasse bem entendido que representaria a família Bain e mais ninguém e em caso algum me comprometeria com Fritch.

- Pode saber-se porque adoptou essa atitude?

- Por motivos de ordem ética. Tratava-se de uma questão de ética profissional.

- Existia porventura algo de menos ético na posição de J. J. Fritch?

- Pareceu-me que sim.

- O quê?

- Francamente, afigurou-se-me que se tratava de chantagem.

- E não queria participar nela?

- Sem dúvida que não.

- Mas contactou com Mrs. Atwood?

- Sim, senhor.

- A qual, por seu turno, recorreu a Mr. Mason?

- Exacto.

- Havia uma bobina de fita magnetofónica envolvida nas negociações?

- Sim, senhor.

- Qual era a natureza da gravação?

- Pretendia constituir o registo de uma conversa que se verificara entre J. J. Fritch e Ned Bain, pai da ré.

- E que sucedeu?

- Mr. Mason e Mrs. Atwood compareceram no meu apartamento para escutar a gravação e eu passei-a.

-Como lhe foi parar às mãos?

- Fritch confiou-ma para esse fim. Supunha que serviria melhor os seus interesses se Mr. Mason e Mrs, Atwood se familiarizassem com os pormenores da sua pretensão, e, logo que se inteirou da intervenção de Mr. Mason, compreendeu que teria de apresentar elementos consistentes, para obter algum dinheiro. Sabia que tinha de colocar todos os trunfos na mesa.

- E que se passou?

- Assegurei a Fritch que, embora não o representasse, nada aconteceria à gravação.

- Aconteceu alguma coisa?

- Sim.

- O quê?

- Foi apagada.

- Como?

- Não sei. Oxalá soubesse... Depreendo, no entanto, que se registou qualquer espécie de polarização radioactiva provocada por um hábil subterfúgio de Mr. Mason.

- De que modo?

O juiz Taylor desviou os olhos para Mason e observou:

- Entramos agora num campo de conjecturas e algo que se me afigura indiscutivelmente fora do âmbito do presente processo.

- Serve para demonstrar a motivação, excelência - explicou Moon-, além de estabelecer a base para introdução da gravação como prova.

- Bem, como parece não haver objecções, prossiga. A testemunha pode responder à pergunta.

- Não sei como Mr. Mason procedeu - confessou Brogan. - Fazia-se acompanhar de um dispositivo que alegou ser um aparelho auditivo. Depreendo que se tratava de um equipamento de polarização, que lhe permitiu apagar a gravação à medida que se desbobinava.

-E que aconteceu?

- Mr. Mason pediu-me que passasse a gravação segunda vez. Quando o fiz, descobri que não continha nada. A fita achava-se completamente silenciosa.

- Como reagiu o senhor?

- Garanti-lhe que se devia tratar de qualquer avaria no aparelho e pedi que me concedesse algum tempo para o mandar reparar.

- Porque disse que se tratava de avaria no aparelho?

- Não podia aceitar a ideia de ter acontecido alguma coisa à gravação e ver-me obrigado a confessar a J. J. Fritch que alguém me ludibriara. Eu sabia que não admitiria a explicação e ficaria furioso.

- Na altura, pensava que essa gravação era a única da conversa em causa?

- Sim, senhor.

- Aconteceu alguma coisa que o levasse a mudar de opinião?

- Sim.

- O quê?

- Vi-me forçado a comunicar a Fritch o que tinha sucedido. Inteirei-me então de que a gravação que eu supunha original e única não passava de uma cópia de uma matriz.

- E onde se encontrava a matriz?

- Em poder de Fritch.

- Ele emitiu algum comentário sobre o assunto?

- Na presença da ré ou de Mr. Mason como seu representante? - quis saber o juiz Taylor.

- Não é isso, excelência - esclareceu Moon.- Procuro demonstrar...

- Nada tenho a objectar, excelência - declarou Mason. - Pode deixá-lo continuar até à saciedade.

- Evidentemente que, não havendo objecção, o Tribunal costuma permitir que o depoimento prossiga. Parto do princípio de que a Defesa está familiarizada com factos que o Tribunal desconhece e existe porventura alguma ligação subjacente, mas afigura-se-me que esperar que a ré esteja vinculada a uma conversa desenrolada entre Fritch e esta testemunha, e da qual decerto não tinha conhecimento, representa forçar um pouco a nota.

- Não tem importância - asseverou Mason.

- Muito bem - decidiu o magistrado. - Responda à pergunta, senhora testemunha.

- Fritch explicou-me que previra algo do género, pelo que me confiara uma cópia da gravação original para indicar a Mrs. Atwood a posição em que ela se encontrava, conservando a matriz em seu poder para que não lhe acontecesse nada. Em face do sucedido, afirmou que obteria nova cópia.

- Que respondeu o senhor?

- Fiquei naturalmente embaraçado, porque tinha garantido a Mr. Mason e a Mrs. Atwood que a gravação que lhes mostrara era a original e única existente, conforme Fritch me assegurara.

- Mas o próprio Fritch disse-lhe que tinha a gravação original?

- Exacto.

- Teve oportunidade de a ver?

- Sim, senhor.

- Havia nela algo de diferente?

- Havia.

- O quê?

- Numerosos cortes e colagens, ou seja, a indicação de que haviam sido misturadas duas ou mesmo mais gravações.

- E Fritch procedeu a nova cópia desse original?

- Sim, senhor.

- Que fez o senhor?

- Fiquei muito preocupado, porque compreendi que tinha sido conduzido a uma posição absolutamente inadmissível.

- Em que sentido?

- Se os representantes da família Bain tivessem concluído negociações com Fritch para obter a gravação copiada, o original continuaria a representar uma ameaça.

- Depreendo que havia alguma coisa na conversa gravada que, na sua opinião, Mr. Brogan, a família Bain não desejava ventilada?

- Sim, senhor.

- E o senhor sabe, pelo que observou, que Fritch possuía, no dia seis do mês corrente, o original, que, segundo as suas palavras, continha cortes e colagens.

- Sim, senhor.

- Onde se inteirou disso?

- No apartamento dele.

- Em que parte do apartamento guardava ele o original?

- Não sei. Foi buscá-lo e mostrou-mo, assim como o gravador com o qual podia fazer os duplicados.

- Ora bem. O senhor tinha um encontro marcado com Mr. Mason para as nove da manhã do dia sete?

- Sim, senhor.

- E com Mrs. Atwood?

- Exacto.

- O senhor encontrava-se no seu apartamento, a essa hora?

- Às nove, não.

- Importa-se de explicar ao Tribunal o que fez?

- Bem, estava muito interessado em me inteirar das reacções de Mr. Mason e Mrs. Atwood e, sobretudo, do método pelo qual ele, sem tocar na bobina, conseguira apagar a gravação da conversa.

- Para tal, que fez?

- Tinha combinado jogar póquer com uns amigos no dia seis e fiquei propositadamente toda a noite, a fim de chegar cinco ou dez minutos atrasado ao encontro.

- Qual a finalidade disso?

- Queria averiguar o que Mr. Mason e Mrs.

Atwood diziam acerca da gravação, os seus comentários confidenciais sobre o assunto.

- Que medidas tomou?

- Ausentei-me deliberadamente do apartamento e deixei um bilhete afixado na porta em que explicava a Mr. Mason, a quem se achava endereçado, que fora jogar póquer e talvez comparecesse com alguns minutos de atraso, pelo que podiam entrar e aguardar no apartamento, que não deixara fechado à chave.

-Que mais fez?

- Dissimulei um gravador munido de microfone.

- Para quê?

- Para registar as palavras que fossem proferidas à entrada ou no próprio apartamento.

- E tomou providências para que o aparelho fosse ligado no período que lhe interessava?

- Sim, senhor.

- De que maneira?

- Por meio de um relógio eléctrico.

- Importa-se de ser um pouco mais explícito?

- Há relógios que funcionam electricamente, aos quais se pode ligar uma extensão para que actuem como um alarme. A uma hora, previamente marcada neles, como num despertador, estabelecem a passagem da corrente eléctrica para qualquer dispositivo que se pretenda. Portanto, acertei esse para as oito e cinquenta, a fim de que ligasse automaticamente o gravador, no qual tinha colocado uma bobina com fita para meia hora de duração. O microfone encontrava-se no tecto da sala, junto da porta.

- Portanto, até que horas continuaria o aparelho a funcionar?

- Até às nove e vinte, uma vez que principiaria às oito e cinquenta, como referi. No entanto, eu esperava comparecer antes disso.

- Por conseguinte, a sua ausência foi propositada?

- Sim, senhor.

- E compareceu?

- Sim.

- Quando?

- Cerca das nove e cinco.

- E deparou-se-lhe Mr. Mason?

- Mr. Mason, Mrs. Atwood e a secretária dele, Miss Street, creio que se chama.

- Entraram então no apartamento?

- Sim, senhor.

- Que aconteceu?

- Foi nessa altura que descobri o corpo de J. J. Fritch.

- Mais tarde, ligou o gravador para verificar o que fora dito na sua ausência?

- Sim, senhor.

- Havia alguma coisa nessa conversa sobre a descoberta anterior do corpo de J. J. Fritch?

- Sim.

- E havia comentários de Mr. Mason relacionados com a descoberta?

- Sim, senhor.

- Recomendações?

- Sim.

- Mr. Mason disse alguma coisa acerca de procurar a bobina da gravação original que supunha encontrar-se na posse de J. J. Fritch?

- Disse.

- Trouxe essa gravação?

- Sim, senhor.

-É possível reconhecer as vozes?

- É.

- Com autorização do Tribunal, desejo apresentar a gravação - disse Moon. - Trouxe um aparelho que a reproduzirá e penso que o Tribunal terá interesse em a escutar.

- Alguma objecção?-perguntou Taylor.

- Muitas - replicou Mason. - Isto não tem nada a ver com o crime, nem vincula a ré, Hattie Bain, de qualquer modo. Ela não estava presente na altura. Não ouviu o que foi dito. Por conseguinte, não se pode vincular a isso.

- Mas estava presente o seu advogado - contrapôs Moon.

- Eu ainda não a representava. Não a pode vincular por algo que eu disse antes de ser seu advogado, de contrário você também podia retroceder dez anos e invocar palavras que então proferi.

- Penso que nos assiste o direito de apresentar esta prova. É altamente significativa.

- Pode fazê-lo em determinadas circunstâncias - declarou Mason. - Teria de perguntar a uma das pessoas presentes se uma certa observação não se verificou. Se ela o admitisse, a gravação poderia ser apresentada. Se negasse, a Acusação achar-se-ia então em condições de apresentar a gravação para desmentir essa pessoa, desde que pudesse provar que o relógio funcionara, a gravação abarcava o período entre as oito e cinquenta e as nove e vinte e uma das vozes registadas era identificável como pertencente à pessoa que pretendia acusar. Mesmo assim, a gravação apenas constituiria prova de circunstâncias acusadoras e não de um facto.

- Creio que é o que reza a Lei - admitiu o magistrado.

- Se o Tribunal me permite, espero demonstrar por meio desta gravação que o próprio Mr. Mason, consciente de que J. J. Fritch morrera, procedeu de forma ilegal ao invadir o apartamento deste último com a finalidade específica e ilegal de procurar a gravação original - anunciou Moon, irritado.

- Sugere, pois, que assassinei Fritch? - inquiriu Mason.

- Talvez acabe por ser envolvido como cúmplice - retorquiu Moon.

- Afinal, que gravação pretende introduzir no processo? - perguntou Taylor.

- Para já, a obtida à entrada do apartamento de Brogan, que indica a descoberta do corpo e a afirmação de Mason de que se prepara para proceder a uma busca ilegal.

- A objecção a isso é deferida - informou o magistrado. - Nenhum dos participantes nesse episódio é julgado neste processo, nem se pretende que a conversa ocorreu na presença da ré.

- Também quero apresentar a gravação que Brogan afirma ser a original.

- Primeiro, tem de estabelecer um fundamento.

- Julgava que já o tinha feito, excelência.

- Esta testemunha limitou-se a declarar que a gravação existia. Não a identificou.

- Se o Tribunal a escutar, convencer-se-á de que contém provas da sua autenticidade. Estabelece o seu próprio fundamento.

- Alguma testemunha terá de a identificar - afirmou Taylor, meneando a cabeça com veemência.

- Bem, Brogan pode afirmar que é similar em aspecto à que Fritch possuía.

- Espreite pela janela - interveio Mason. - Verá centenas de automóveis no parque de estacionamento, todos "similares em aspecto". Alguns, até são modelos idênticos. Para os identificar, terá de mencionar as características individuais e não as características globais do grupo.

- Não preciso que me ensine a exercer Direito! - bradou Moon.

- Alguém tem de o fazer - ripostou Mason, sentando-se.

- Basta, meus senhores - advertiu Taylor. - O Tribunal dispensa a troca de alusões sarcásticas entre a Acusação e a Defesa.

- Limitei-me a replicar no mesmo tom - observou Mason.

- Pois, não aceito que a Defesa replique no mesmo tom. Quero que os trabalhos se desenrolem dentro da compostura indispensável. Ora bem, meus senhores. Tenho escutado este depoimento pacientemente e penso que alguma testemunha terá de identificar a gravação, para que seja introduzida no processo. Sugiro que esta fase seja ultrapassada, de momento.

- Nada mais, para já, Mr. Brogan - indicou Moon. - Voltarei a chamá-lo depois de ter ouvido a gravação.

A testemunha fez menção de se levantar, porém Mason anunciou:

- Quero contra-interrogar.

- Adiante - concedeu o juiz.

O advogado levantou-se mais uma vez, contornou a mesa e postou-se diante de Brogan, para aguardar que este o olhasse.

Seguiu-se um silêncio significativo, cortado finalmente pelo magistrado:

- Siga, por favor.

- Sabia que Fritch tinha assaltado um Banco? - indagou Mason.

- Apercebi-me da possibilidade de tal ter acontecido-- admitiu Brogan.

- Conhecia-o à data do assalto?

- Eu... julgo que sim.

- Sabia quanto ele pretendia em troca do silêncio acerca dos pormenores desse assalto?

- Sei que pedia uma quantia substancial.

- O senhor dispôs-se a agir como intermediário e negociar o pagamento dessa quantia?

- Não no sentido que a sua pergunta implica.

- Então, como?

- Estava disposto a fazer o que pudesse para ajudar Mr. Bain... a família Bain.

- Conhecia os Bain?

- Pessoalmente, não.

- Porque estava tão interessado em os ajudar?

- Porque pensava que estavam a ser... pensava que necessitavam...

- Ia dizer que pensava que estavam a ser vítimas de chantagem, não é assim?

- É.

- Eram vítimas de chantagem?

- Bem, depende da maneira de encarar o caso. Tratava-se de uma situação a todos os títulos peculiar.

- E achava-se disposto a participar na chantagem?

- Não, senhor.

- Achava-se disposto a receber o dinheiro deles e entregá-lo a Fritch?

- Dito assim, isso assume um aspecto muito diferente da realidade. Exclui os meus motivos, que eram, quanto a mim, muito louváveis.

- Limite-se a responder à pergunta - advertiu Mason. - Achava-se disposto a receber o dinheiro deles e entregá-lo a Fritch?

- Sim, já que quer as coisas postas dessa maneira.

- E participar numa operação de chantagem?

- Eu pensava que equivalia a chantagem.

- Depreendeu que Fritch se achava em condições de fornecer informações ao Banco, susceptíveis de infundir a convicção de que o dinheiro roubado fora utilizado por Ned Bain para adquirir propriedade que posteriormente se tornou muito valiosa através de exploração petrolífera, e o mesmo Ned Bain o utilizara consciente de que representava o produto de um assalto a um Banco. É isto?

- Sim, substancialmente.

- Na noite em que ocorreu o crime, o senhor não estava no seu apartamento?

- Não.

- Conhecia bem Fritch?

- Pode dizer-se que, de certo modo, cooperava com ele. Fritch precisava de dinheiro e supunha que eu me encontrava em condições de lho obter.

- E o senhor tentava obter-lho?

- Tentava resolver o assunto.

- Por "resolver" quer dizer induzir a família Bain a entregar dinheiro suficiente para comprar o silêncio de J. J. Fritch?

- Bem... resolvê-lo.

- Ele tinha um apartamento defronte do seu?

- Exacto.

- Quem lho procurou?

- Eu.

- Ele previu que talvez tivesse de se conservar fora da circulação durante um lapso de tempo considerável?

- Não posso revelar o que se passava na mente de Fritch.

- Não lho divulgou?

Brogan hesitou antes de declarar:

- Creio que houve uma ocasião em que o mencionou vagamente.

- O senhor visitava o apartamento dele, de vez em quando?

- Sim.

- E ele o seu?

- Exacto.

- Ele tinha uma chave do seu apartamento. Mr. Brogan?

Bem...

- Tinha o : não?

- Sim.

- E o senhor do apartamento dele?

- Ele pediu-me...

- Tinha uma chave do apartamento dele?

- Tinha.

- Entrava lá, de vez em quando?

- Sim.

- Estava familiarizado com os preparativos que ele efectuara para se manter oculto, em caso de necessidade?

- Que quer dizer com isso?

- Especificamente, o senhor estava ciente do facto de que ele adquirira uma arca congeladora e a enchera de géneros, para não necessitar de sair para comprar coisa alguma, a fim de não ser visto em público, na rua ou mesmo no elevador do prédio?

- Sim.

- Sabe quanto custa uma arca congeladora como aquela?

- Uns setecentos dólares, suponho.

- E estava cheia de provisões no valor de uma quantia apreciável?

- Julgo que sim.

- Mais de cem dólares?

- É natural.

- Mais de duzentos?

- Penso que por volta... bem, por volta de trezentos ou trezentos e vinte e cinco.

- Quem lhe adiantou o dinheiro?

- É claro que me encontrava numa situação peculiar e...

- Foi o senhor que adiantou o dinheiro para a compra da arca congeladora e das provisões que continha?

- Emprestei uma determinada quantia a Mr. Fritch.

- Quanto?

- Dois mil dólares.

- E sabe que esse dinheiro, ou uma boa parte dele, serviu para custear as despesas da sua instalação naquele apartamento e aquisição de um televisor, uma arca congeladora e as provisões que esta continha?

- Cheguei a essa conclusão, sim.

- Portanto, se divorciarmos os seus esforços de todos os protestos de integridade ética de que se tentou rodear, resta o facto de que financiou as actividades de chantagem de J. J. Fritch.

- Não sou dessa opinião.

- Não as financiou?

- Julgo que não.

- Pois eu julgo que sim.

- Tem direito à sua opinião e eu à minha.

- Na noite do crime, ausentou-se do apartamento deliberadamente?

- Sim, senhor.

- Esteve numa partida de póquer?

- Exacto.

- Pode provar onde se encontrava ao longo de todos os minutos desse período?

- Absolutamente todos, até cerca das oito e vinte.

- Onde esteve depois das oito e vinte?

- Fui comer qualquer coisa. Para dizer a verdade, não me recordo do nome do restaurante. Foi o primeiro que vi aberto, quando percorria a rua no carro. Espreitei e como havia mesas livres e uma empregada de aspecto eficiente, calculei que poderia tomar o pequeno-almoço sem perder muito tempo.

- Esteve toda a noite a jogar póquer, ou seja, a noite de seis e a madrugada de sete, até às oito e vinte?

- Sim.

-Com quantas pessoas?

- Participaram oito, cada uma das quais pode confirmar que passei lá a noite.

- Preparou a partida de póquer deliberadamente?

- Não. Ou melhor, talvez interferisse na sua preparação.

- Nesse caso, fê-lo deliberadamente, a fim de ter um pretexto legítimo para se ausentar do apartamento, deixar um bilhete na porta e utilizar o gravador para se inteirar do que Mrs. Atwood e eu dizíamos.

- É possível. Posso ter tido vários motivos.

- Mas esse era um deles?

- Sim.

- Fundamentalmente, pretendia saber se tencionávamos entregar dinheiro a Fritch em troca da gravação?

- Interessava-me fundamentalmente descobrir como o senhor tinha apagado a gravação sem se aproximar dela.

- Mas providenciou deliberadamente para se ausentar durante o período em que o crime foi cometido?

- Sim, senhor. Eu... espere aí! Não era isso que queria dizer!

- Então, porque o disse?

- Quem disse foi o senhor. Colocou-me as palavras na boca.

- Preparou-se um álibi, hem?

- Dispunha de um álibi perfeito. Não pode envolver-me nesse homicídio, por mais que se esforce.

- Porquê?

- Porque foi cometido enquanto me encontrava sentado na presença de várias testemunhas.

- Não se ausentou da partida de póquer para ir buscar dinheiro?

- É exacto.

- Quando?

- Cerca das cinco da manhã, mas regressei passados uns vinte minutos.

- Onde esteve?

- Em casa de um amigo.

- Qual amigo?

- Não estou disposto a dizer o nome.

- Porquê?

- Podia embaraçá-lo.

- Quanto conseguiu?

- Mil e quinhentos dólares.

- A que horas foi isso?

- Às cinco da manhã!-articulou Brogan, irritado.

- Duas horas após o limite extremo do período em que o médico afirma que J. J. Fritch foi assassinado.

- Que distância há entre o seu apartamento e o local onde se desenrolou a partida de póquer?

- Aproximadamente... não sei, uns cinco quarteirões.

- Podia percorrê-la de carro em cinco minutos?

- Julgo que sim, se não fosse retido pelo trânsito.

- Não houve trânsito que o retivesse às cinco da manhã?

- Não - respondeu, com uma ponta de sarcasmo.

- Podia ter-me deslocado da partida de póquer ao meu apartamento, às cinco da manhã. Podia chegar lá às cinco e cinco e ficar até às cinco e um quarto. Podia então regressar à partida de póquer às cinco e vinte e cinco. Em face disso, Mr. Mason, deduza como podia cometer um crime que ocorreu entre a meia-noite e as três da madrugada, depois de abandonar uma partida de póquer às cinco. Nunca consegui que os ponteiros do relógio andassem para trás.

- A testemunha deve abster-se de lançar reptos à Defesa e limitar-se a responder às perguntas - preveniu o juiz Taylor, visivelmente contrariado.

- Por acaso, excelência - observou Mason-, se o Tribunal não se opõe, gostava de esclarecer o espírito da testemunha a esse respeito. - Fez uma pausa, enquanto o magistrado o olhava com incredulidade.- Na realidade, a explicação é muito simples. Tudo o que Mr. Brogan tinha de fazer resumia-se a seguir no carro até ao seu apartamento, atacar J. J. Fritch com o furador de gelo, retirar as provisões da arca congeladora, colocar lá o corpo da vítima de costas, com os joelhos e cotovelos dobrados, baixar a tampa, regressar à partida de póquer, para permanecer até às oito e vinte, dirigir-se apressadamente ao apartamento, transferir o corpo da arca para o armário, tornar a guardar as provisões, dar uma volta a pé pelo quarteirão até às nove horas, voltar mais uma vez ao apartamento e declarar que estivera a tomar o pequeno-almoço. Os factos adaptar-se-iam então aos que possuímos sobre este caso. A temperatura teria sido de tal modo alterada, que o cirurgião que praticou a autópsia suporia que a morte ocorrera por volta da uma da madrugada e não quatro horas mais tarde.

Regressou à mesa, sentou-se, reclinou-se na cadeira e exibiu um sorriso de satisfação.

O juiz Taylor inclinou-se para a frente e arregalou os olhos, para contemplar a testemunha, o advogado e por fim o adjunto da Procuradoria.

- Isso é falso! - rugiu George Brogan. - Não fiz nada do que afirma!

- Protestamos contra as insinuações da Defesa - declarou Moon. - Não constituem prova. Não se revestem sequer de lógica.

- Indique em que ponto a lógica está ausente - desafiou Mason.

A assistência soltou gargalhadas tão ruidosas que o oficial de diligências necessitou de vários segundos para conseguir impor certo silêncio, embora não absoluto.

- Possui algum vestígio de prova dessa incrível acusação?

- Não se trata de uma acusação. A testemunha limitou-se a lançar-me um repto, como o Tribunal reconheceu. Queria que mostrasse como podia ter cometido o crime e eu satisfiz-lhe o desejo.

- As coisas não se podiam ter passado assim - afirmou Moon ao Tribunal.

- Porquê?

- O médico não se deixaria iludir com semelhante expediente.

- Volte a chamá-lo e pergunte-lhe - sugeriu Mason. Seguiu-se um silêncio embaraçoso, até que Taylor inquiriu:

- Deseja fazer mais alguma pergunta à testemunha?

- Uma ou duas - assentiu Mason.

- Então, adiante - determinou o magistrado, embora fosse aparente que se achava imerso em cogitações.

- Sabia que Fritch assaltara um Banco, há alguns anos?

- Sabia que era o que constava.

- E que o dinheiro roubado ascendia aproximadamente a duzentos mil dólares?

- Foi o que entendi.

- Ele praticou o assalto só?

- Não sei.

- Sabia que os relatos mencionavam que se achava acompanhado?

- Foi o que me constou. Teve um cúmplice, ou talvez dois. Confesso que não sei.

Com a maior naturalidade, a ponto de o impacte da pergunta não se instalar imediatamente no espírito da assistência, Mason proferiu:

- Diga-me uma coisa, Mr. Brogan. Não foi um dos que participaram no assalto?

O interpelado fez menção de saltar da cadeira, mas pareceu mudar de ideias e afundou-se nela, seguindo-se longo intervalo de silêncio.

- A pergunta é simplesmente insultuosa - proclamou Moon. - Carece de todo e qualquer fundamento. Não passa de um tiro na escuridão. Foi formulada única e exclusivamente com a finalidade de humilhar a testemunha.

- Então, deixe-a responder - retrucou Mason.- Que declara sob juramento que não era um dos componentes do bando que assaltou o Banco. O delito em si prescreveu, mas se agora afirmar que não pertencia a esse bando, arrisca-se a ser julgado por perjúrio.

Registou-se novo silêncio.

- Protesto - asseverou Moon. - É...

- Indeferido-cortou o magistrado. Em seguida, virou-se para a cada vez mais perturbada testemunha. - Ouviu a pergunta?

- Sim, senhor.

- Compreende-a?

- Sim, senhor.

- Então, responda.

Brogan mudou de posição, ergueu os olhos ao tecto e acabou por articular:

- Não pretendo responder.

- O Tribunal ordena-lhe que o faça.

- Não responderei - persistiu, abanando a cabeça.

- Por que motivo? - quis saber Mason, com um sorriso.

- A resposta pode comprometer-me.

Lançou um olhar divertido ao perplexo adjunto da Procuradoria e concentrou-se de novo em Brogan.

- Estava a perder no póquer?

- Já expliquei que sim.

- E às cinco da manhã foi buscar mais dinheiro?

- Exacto.

- E regressou com uma quantia considerável?

- Sim.

- Pode revelar-nos onde a obteve?

- Emprestou-ma um amigo, como também já referi.

- E continua a recusar divulgar o nome desse amigo?

- Sim.

- Porquê?

- Porque... acho que não devo.

- Penso que isto é irrelevante, imaterial e impróprio de um contra-interrogatório - tornou Moon.

Mason voltou a sorrir e dirigiu-se ao juiz:

- Se lhe ordenar que responda à pergunta, excelência, recusará sob o pretexto de que a resposta o pode comprometer.

-Objecto - persistiu Moon.- Este contra-interrogatório afigura-se-me absolutamente inadequado.

- Vou indeferir a objecção-anunciou Taylor, sem desviar os olhos da testemunha. - Responda à pergunta.

No entanto, Brogan sacudiu a cabeça com veemência.

- Vai responder ou não? - insistiu Mason.

- Não.

- Porquê?

- Pelo facto que referiu: a resposta podia comprometer-me.

- O amigo ao qual recorreu para obter o dinheiro pode considerar-se íntimo, suponho...

- Sim, senhor.

- Muito íntimo?

- Exacto.

- Porventura, o seu melhor amigo?

- Talvez.

-Por outras palavras, obteve o dinheiro de si próprio. Esse amigo era o senhor. Ausentou-se da partida de póquer e dirigiu-se ao seu apartamento, a fim de retirar o dinheiro do cofre que tem embutido na parede, não é assim?

- Responda - indicou o magistrado, em tom acutilante, vendo que Brogan se mantinha silencioso.

- Não vê que ele desenvolve todos os esforços para me atribuir o crime, excelência? - balbuciou o interpelado, com uma expressão de súplica. - Não disponho de bagagem para o enfrentar nesse campo.

- Mas dispõe para responder às perguntas. Se se dirigiu ao seu apartamento para se munir de dinheiro, à hora indicada, pode revelá-lo.

- Não sou obrigado a dizê-lo. Nego-me a responder.

- Baseado em quê?

- Em que me comprometeria.

- Nada mais - anunciou Mason, sorrindo.

- Nada mais - ecoou Moon. - A testemunha pode voltar para o seu lugar. - Rubro de cólera, acrescentou: - Se o Tribunal me permite a observação, insinuações não são provas, nem podem pesar nelas. No entanto, sei porque foram feitas e o Tribunal decerto que também. Tenciono evitar as situações dúbias que, por vontade da Defesa, seriam canalizadas para a Imprensa.

Vou chamar de novo o Dr. Hanover, a fim de pôr termo imediato às especulações.

- Muito bem - aquiesceu Mason.--Chame-o.

Em seguida, levantou-se e fez sinal a Della Street, que se encontrava sentada perto do fundo da sala, a qual saiu, para reaparecer pouco depois, com vários livros debaixo do braço. Colocou-os em cima da mesa diante do advogado, tornou a abandonar a sala e regressou daí a momentos com nova remessa.

O Dr. Hanover, que acabava de se instalar na cadeira das testemunhas, lançou uma olhadela de curiosidade às lombadas que Mason tivera o cuidado de voltar para aquele lado.

- Ora bem - disse Moon,- Vou fazer uma pergunta ao Dr. Hanover. Considera possível que as condições que se lhe depararam quando examinou o corpo tivessem sido induzidas artificialmente pela sua permanência numa unidade congeladora? Por outras palavras, existe a possibilidade de J. J. Fritch ter sido assassinado às cinco da manhã e o corpo encerrado durante duas ou três horas numa arca congeladora, de modo a levá-lo a situar o período do crime entre a meia-noite e as três?

- Um momento - interveio Mason. - Antes de responder, doutor, quero objectar porque não foi estabelecido qualquer fundamento apropriado.

- Já indiquei as qualificações do médico - argumentou Moon.

- Gostava de o contra-interrogar puramente a respeito das suas qualificações.

- Muito bem - concedeu Taylor. - Assiste-lhe esse direito.

Mason pegou num livro e inquiriu:

- Conhece a obra intitulada Investigação de Homicídios, pelo Dr. LeMoyne Snyder?

- Sim, senhor.

- Na sua opinião, qual é a reputação da obra?

- Excelente.

- Trata-se de uma autoridade no campo da medicina forense?

- Sem dúvida.

- Alguma vez ouviu falar do livro do professor Glaister, Medicina e Toxicologia Forenses?

- Decerto.

- Qual é a sua reputação?

- Excelente.

- Trata-se de uma obra importante no campo da medicina forense?

- Absolutamente.

Começou a abrir os volumes nas páginas que tinham sido previamente marcadas. Entretanto, o Dr. Hanover observava com uma expressão fascinada os movimentos do advogado, que acabou por ter numerosos livros abertos na sua frente.

- Vou objectar à pergunta formulada pela Acusação com base no facto de que não foi estabelecido qualquer fundamento apropriado, pressupõe factos não provados e omite outros evidentes.

- Quais são os factos omitidos? - quis saber Moon.

- Em particular o de que o Dr. Hanover baseou o seu depoimento em parte no estado do conteúdo do estômago e condição da refeição que supôs fora ingerida à hora habitual do repasto. Vou salientar que ele não possui meios para saber quando essa refeição foi ingerida, pelo que o seu testemunho depende inteiramente da temperatura do corpo. Quero igualmente referir que a testemunha Mrs. Lorton, convocada pela Acusação, mencionou especificamente que, quando a ré visitou o apartamento de J. J. Fritch, que ela conhecia pelo nome de Frank Reedy, este lhe abriu a porta e mandou entrar.

"Afirmou que o próprio Fritch abriu a porta e a mandou entrar. Ora, parece óbvio que, nessa altura, ele estava normalmente vestido. Se a testemunha Lorton o viu com clareza suficiente para determinar isso, decerto se aperceberia se estivesse em roupa interior. Resulta, pois, óbvio que o único padrão de que o Dr. Hanover dispôs para estabelecer a hora da morte consistia na temperatura, e como neste momento parece evidente que Fritch trajava normalmente quando Miss Bain o procurou, sustento que a testemunha não teve possibilidade de responder à pergunta agora formulada.

- Muito bem - acedeu Moon. - Vou pegar o touro de caras. Dr. Hanover, admitindo apenas os factos que conhece e que desconhece a hora a que Fritch ingeriu a refeição que lhe encontrou no estômago, com base unicamente na temperatura do corpo, é ou não possível que ele morresse depois das três da madrugada e as condições de temperatura que se lhe depararam fossem causadas pela permanência do corpo numa arca frigorífica?

- Sem esquecer - acudiu Mason- o facto de que isso explicaria absolutamente a posição das mãos no momento em que o rigor mortis dos braços e ombros se estabeleceu.

- Não tenho de incluir isso na minha pergunta - redarguiu Moon, em tom de desafio.

- Limito-me a chamar a atenção do Dr. Hanover para o facto, porque a sua reputação profissional está em jogo e devo igualmente salientar à testemunha e à Acusação que provaremos o que na realidade aconteceu.

- Não necessita de ameaçar a testemunha.

- Não a ameaço. Previno-a. - E, com estas palavras, Mason voltou a sentar-se.

- Responda à pergunta - indicou Moon.

O médico passou a mão pela calva, lançou nova olhadela aos livros diante de Mason e declarou:

- Trata-se de uma situação difícil.

- Em que sentido?

- Como observei atrás, para estabelecer a hora da morte por meio da temperatura do corpo, torna-se necessário tomar em consideração a maneira como está vestido e a temperatura do ambiente circundante. Quando fixei o período compreendido entre a meia-noite e as três da madrugada, tive em conta o facto de o corpo vestir apenas camisola interior e cuecas. Também tomei em linha de conta a temperatura do aposento em que se encontrava. - Com uma ponta de relutância, concluiu:- Vejo-me obrigado a reconhecer que, se se alteram quaisquer desses factores constantes, ou factores que eu considerava constantes, o resultado do meu exame também se modifica.

- Mas modifica-o o suficiente para introduzir uma diferença tão pronunciada na hora provável do crime? - inquiriu Moon.

Vendo que este último se achava agora numa posição algo defensiva, o Dr. Hanover declarou pausadamente:

- Receio que tivesse de me indicar a temperatura do interior da arca congeladora, Mr. Moon.

- Não a conheço.

- Então, não posso responder à pergunta-anunciou com um sorriso, ao vislumbrar a avenida de escape que abrira para si próprio.

- Mas posso inteirar-me. Proponho ao Tribunal que, antes que surja uma oportunidade de destruir algum elemento valioso, mande examinar o local e suspenda os trabalhos, a fim de podermos observar a arca congeladora imediatamente, além do que sugiro que a testemunha, Dr. Hanover, nos acompanhe no exame.

- Penso que o Tribunal gostaria de observar o local - admitiu o juiz Taylor. - Dadas as circunstâncias, parece aconselhável.

- Um momento, excelência - rogou Moon. - Sugiro que todo este divertissement espectacular foi montado com a finalidade de protelar o momento indesejável em que Mr. Perry Mason terá de explicar como se apoderou da matriz da gravação, com os seus cortes e antecedentes de homicídio. Afirmo que tudo isto constitui um expediente desesperado para lançar uma série de pistas falsas, com o intuito de impedir que o interroguem sobre os seus movimentos quando se introduziu no apartamento de Fritch, às nove horas da manhã do dia sete. Dispomos de uma gravação da própria voz de Mr. Mason, pela qual nos podemos inteirar de que o fez para proceder a uma busca. Gostava que o Tribunal a ouvisse, antes de nos deslocarmos ao local do crime.

- A gravação é irrelevante e imaterial - afirmou Mason, com uma gargalhada. - A Acusação só a pode utilizar com a finalidade de me processar, o que está impossibilitada de fazer até que eu tenha prestado declarações acerca de algo oposto à matéria contida na gravação em causa.

- Então, deixe-me perguntar-lhe o seguinte. Entrou ou não no apartamento de Fritch, às nove horas da manhã do dia sete?

- Deixe-me ver... Quantas horas foi isso depois de cometido o assassínio? Quatro ou cinco?

- Tinham passado pelo menos seis desde a hora mais adiantada em que o crime podia ter sido praticado! - bradou Moon. - Foi o que o Dr. Hanover disse, e continuarei apegado ao seu depoimento até que ele o altere.

- Eu pensava que já o tinha alterado - retrucou Mason. - Em todo o caso, você pretende agora vincular a ré através de um acto que executei seis horas após o crime de que é acusada, numa altura em que já expliquei que então ainda não a representava. Pretende mover-me um processo com a apresentação da gravação de uma conversa que a ré desconhecia e se desenrolou na sua ausência.

O magistrado abanou a cabeça e disse:

- Receio que a objecção seja plenamente fundamentada. Evidentemente que, se pretende utilizar a gravação para fundamentar a acusação de conduta anti-profissional, ocultação de elementos pertinentes ao processo, cumplicidade ou qualquer outra coisa no estilo, está no seu pleno direito mas não se pode servir dela senão para os fins que acabo de citar e só pode impugnar uma resposta de uma testemunha dada a uma pergunta relevante.

- Portanto - volveu Mason, sorrindo-, sugiro que vamos examinar o local.

- A audiência é suspensa, para prosseguir no local em causa - determinou Taylor.

O som do martelo na mesa constituiu a deixa para um rugido ensurdecedor, um verdadeiro pandemónio de vozes de pessoas envolvidas em argumentações, algumas das quais procuravam abrir caminho para apertar a mão a Mason.

- Que significa isto? - perguntou Hattie, com uma expressão apreensiva. - É bom ou mau sinal?

- Precisa de ser paciente - recomendou o advogado. - Para já, vai ter de voltar à companhia de uma funcionária da prisão.

- Por quanto tempo?

- Pouco, a avaliar pelo rumo que as coisas estão a tomar.

 

O sargento Holcomb abriu a porta do apartamento de Fritch, dissimulando com dificuldade a cólera que o assolava.

- É costume nestes casos recolher todos os depoimentos do tribunal e não prestar nenhum durante a inspecção ao local - recordou o juiz Taylor. - Desta vez, porém, dada a ausência de júri, não vejo motivo para cumprir semelhante regra. - Voltou-se para Mason.- Referiu-se a uma arca congeladora. - Fez uma pausa, enquanto o interpelado assentia com uma inclinação de cabeça. - Mostre-ma, por favor, sargento.

Holcomb assumiu a vanguarda do cortejo em direcção à larga caixa, cuja tampa levantou.

- Se bem entendi - prosseguiu o magistrado-, afirma o senhor que o corpo foi introduzido aqui.

- Como o Tribunal pode verificar, é suficientemente grande para comportar um corpo humano.

- Também outras arcas num raio de cem metros - interpôs Holcomb, antes que se pudesse conter.

- Dispensamos os apartes, sargento - advertiu Taylor. - Pretendo apenas certificar-me da afirmação de Mr. Mason. Ora bem, existe algum indício, por ténue que seja, de que o corpo possa ter estado aqui? Há a oportunidade e a caixa tem profundidade suficiente. No entanto, vai ter de provar algo mais do que isso, Mr. Mason.

- Para já, observemos isto. - O advogado retirou um recipiente com gelado da parte superior da arca, voltou a colocar a tampa, dirigiu-se ao aparador, extraiu uma colher de chá da gaveta e mergulhou-a no gelado.

- Compreende ao que me refiro?

- Receio que não - confessou o magistrado, enrugando a fronte.

- Este gelado foi derretido e depois tornado a congelar. Repare nos cristais. A superfície não apresenta a suavidade normal dos outros que não foram submetidos a essa operação.

- Ah, agora sim. Deixe-me ver melhor.

Pegou por sua vez na colher e raspou alguns cristais de gelo da superfície congelada.

- Houve uma contracção de volume e tornou a congelar sob a forma de flocos e não de uma substância uniforme - esclareceu Mason.

- Abra uma das outras embalagens de gelado, sargento - ordenou o juiz, deixando transparecer interesse repentino.

Holcomb obedeceu e Mason anunciou:

- A mesma condição.

Holcomb extraiu uma terceira embalagem, em obediência a instruções de Taylor, que mergulhou a colher e inspeccionou a substância destacada.

- É de facto interessante - reconheceu. - Tudo indica que este gelado foi derretido e depois congelado de novo.

- Qualquer arca congeladora está sujeita a avarias - comentou o sargento. - Não me recordo se a desligámos, quando inspeccionámos o apartamento.

- Fizeram-no? - inquiriu Taylor.

- Não me lembro.

- Devia lembrar-se, se a desligou. - O magistrado virou-se para Mason. - Tem algum outro elemento para nos mostrar?

- Sem dúvida. Retirem as provisões e procurem manchas de sangue no fundo da arca.

- Isto não passa de fogo de vista - opinou Moon.

- Toda esta encenação destina-se a atrair a publicidade da Imprensa para desviar as atenções de...

- Diga-me uma coisa, sargento - proferiu Taylor.

- Quando inspeccionaram o apartamento, retiraram as provisões da arca?

- Não tocámos em nada daí - explicou Holcomb.

- Mantivemos tudo como estava. Limitámo-nos a procurar impressões digitais.

- Tire tudo cá para fora.

- Se o fizer, começará a derreter-se e Perry Mason alegará...

- Tire tudo! - persistiu o juiz. - Já nos certificámos de que o gelado esteve cá fora o tempo suficiente para se derreter parcialmente, pelo menos. Quero observar o fundo da arca.

Holcomb começou a retirar as embalagens, que ia amontoando no chão e misturando carne, com vegetais e fruta, numa atitude claramente contrariada. Quando se aproximava do fundo, Taylor espreitou, ao mesmo tempo que observava:

- Demorou dois minutos e dezoito segundos e... que é aquilo?

- Parte do suco da carne vertido -disse Holcomb.

- O suco não se separa da carne congelada. Onde está o Dr. Hanover?

- Vem aí- informou Moon.

- Chamem-no. Tomem todas as precauções para que a mancha não seja alterada. Quero aqui os técnicos da Polícia, para verificarem se se trata de sangue humano. Se houver em quantidade suficiente, quero que o comparem com o da vítima, J. J. Fritch. - O magistrado dirigiu-se a Mason.- Como sabia que havia uma mancha aqui?

- Não sabia, excelência. Deduzi.

- Jogou uma grande cartada - admitiu, com uma ponta de desconfiança.

- Mereceu a pena correr o risco - asseverou Mason, sorrindo.

O outro reflectiu por um momento e sorriu igualmente.

- Não posso deixar de concordar consigo.

- Além disso - volveu o advogado, indicando o monte de embalagens que Holcomb colocara no chão-, notam-se duas ou três manchas de sangue num dos recipientes. Creio que, se chamarmos o perito de dactiloscopia, verificaremos a existência de uma impressão digital latente fixada no sangue.

- Foi produzida quando procederam à embalagem na fábrica - interpôs Holcomb. - Esta...

- Deixe-me ver. - O juiz agachou-se para a examinar e, por fim, endireitou-se com brusquidão. - Toda a gente para fora deste apartamento, que será selado imediatamente! Mandem chamar o perito de dactiloscopia e o patologista da Polícia, para que eu lhes indique como pretendo que procurem marcas. - Virou-se para Holcomb e concluiu com uma expressão severa. - Pode considerar isto uma censura à sua maneira de proceder.

 

Mason, Della Street e Paul Drake encontravam-se sentados no gabinete do primeiro, que, de vez em quando, consultava o relógio.

- Safa, que tardam - articulou entre dentes.

- Não te preocupes. Limitam-se a proceder com meticulosidade. Podes crer que desta vez não vão descurar um milímetro quadrado, porque o juiz Taylor está pior que uma barata. - Drake fez uma pausa, enquanto o advogado se levantava e começava a passear pelo aposento. - Ainda não percebi como abarcaste tudo.

- Não abarquei tudo - retrucou Mason. - E é isso que me preocupa. Tinha de jogar uma cartada. Mas lembra-te do seguinte: Sylvia Atewood é uma menina arguta e cautelosa, apesar de que podia falar verdade acerca da queda do corpo do armário das bebidas. Ouvimo-la gritar e o baque do corpo no chão. Como havia si mais de lividez post mortem nas costas, devia ter jazido desse lado, se estava no armário como ela alegava. Ora, porque haveria alguém de o mover? O único motivo que me ocorreu foi que esse alguém não queria que o corpo fosse encontrado onde jazia enquanto se formava a lividez post mortem. Isso significava que resultava vantajoso para alguém, presumivelmente para o assassino, providenciar para que fosse descoberto num lugar diferente daquele em que jazera. Por outro lado, o cadáver achava-se em trajos menores e não havia qualquer peça de vestuário pertencente a J. J. Fritch no apartamento de Brogan. Por conseguinte, parece razoável supor que foi assassinado no seu próprio apartamento, provavelmente quando se preparava para ir para a cama, ou talvez já estivesse deitado e...

- Mas a cama estava feita - argumentou Drake. - Ninguém se tinha deitado nela.

- Qualquer pessoa pode fazer uma cama - retrucou Mason, com um sorriso.

- Continua.

- Se o corpo fora mutilado de lugar, e a avaliar pela sua posição peculiar, decerto o tinham colocado num espaço apertado...

- O espaço também não era muito no armário - lembrou o detective.

- Mas nesse caso a lividez post mortem situar-se-ia mais abaixo e não em torno da parte posterior do pescoço, e os braços estariam estendidos para baixo.

- Sim, acho que tens razão.

- Por conseguinte, chegámos à indiscutível conclusão de que o corpo fora movido. Ora, Hattie Bain não o poderia fazer, pelo menos sem ajuda. E Sylvia Atwood tão-pouco, pela mesma razão. Além disso, a transferência do corpo de um lado para o outro não lhes proporcionaria a menor vantagem. A pessoa que o fez deve ter sido impelida por um motivo, e o único que me ocorre consiste em estabelecer um álibi. Queria estabelecê-lo interferindo no grau de arrefecimento normal de um corpo sem vida.

-Pensas que Brogan dispôs de tempo para tudo isso?

- Encaremos a situação deste modo, Paul. Alguém moveu o corpo, em obediência a uma finalidade definida. A inferência mais lógica reside em que pretendeu estabelecer um álibi para o período entre a meia-noite e as três horas da madrugada, porque não lhe seria possível justificar a sua inocência noutra altura, mais tarde. Tem de se tratar de alguém suficientemente forte para carregar com o corpo morto às costas e que J. J. Fritch receberia em trajos menores sem relutância. Sabemos que alguém fez a cama e preparou o cenário no apartamento de Fritch, para dar a impressão de que fora morto antes de se deitar.

- Como sabemos isso?

- O corpo pode ter sido colocado numa arca congeladora. Assim, o médico da Polícia concluiria que o crime fora perpetrado mais cedo do que na realidade aconteceu. Mas até ele fixa a hora da morte para a meia-noite e nunca antes. Quando entrei, naquela manhã, o televisor estava ligado, e duvido que Fritch visse televisão muito depois da meia-noite, pois não havia programas àquela hora. O facto indica que ou ele foi assassinado antes da meia-noite ou alguém alterou o cenário. E como Hattie o viu vivo depois da meia-noite, não podem subsistir dúvidas a esse respeito.

- Sim, é lógico - admitiu Drake.

- Uma das pessoas cuja descrição se adapta à do hipotético assassino é George Brogan, mas existe um óbice no nosso raciocínio para o relacionar directamente com o crime.

- Qual?

- Falta-lhe um móbil.

- Como assim? Fritch não estava fulo com ele e?...

- Porque havia de estar? Brogan ia obter-lhe dinheiro dos Bain. _ - Mas não podia ter-se apoderado da gravação e?...

- Não. Com a morte de Fritch, a ameaça que espreitava os Bain desapareceu. A gravação não prova nada. Não passaria de um meio para corroborar o testemunho de Fritch. Se este afirmasse que Bain fora seu cúmplice e sabia que o dinheiro investido nos terrenos petrolíferos provinha do assalto ao Banco, seria diferente. Poderia então servir-se dela para reforçar as suas afirmações, mas, sem estas, a utilidade da gravação extinguia-se.

- Com a breca!-exclamou Drake.- Tens razão! O telefone tocou e Della Street levantou o auscultador.

- Gabinete de Mr. Mason... Ah, um momento.- Voltou-se para o detective. - É para si, Paul.

Este aceitou o aparelho e proferiu para o bocal:

- Estou... Sim... Diabo!... Tens a certeza?... Uma impressão nítida?... O mesmo tipo de sangue?... Bem, obrigado. Vai dando notícias. - Cortou a ligação e sorriu a Mason. - Acertaste no jackpot.

-Como?

- O sangue encontrado no fundo da arca congeladora é humano e do mesmo tipo do de J. J. Fritch. Além disso, encontraram impressões digitais latentes perfeitas no sangue das embalagens retiradas da arca, também de tipo idêntico. Fotografaram-nas, mas não conseguem descobrir iguais em nenhum dos envolvidos no assunto. Não são de Sylvia Atwood, nem de Hattie Bain, nem de Ned, nem de George Brogan ou mesmo tuas. Ocorre-te alguma sugestão?

- Várias.

- Por exemplo?

- Reduzamos a nossa linha de raciocínio. Precisamos de alguém que não disponha de álibi para as horas anteriores à do crime, mas apenas para mais tarde e suficientemente forte para carregar com o corpo de J. J. Fritch. Por outro lado, necessitamos de alguém com conhecimentos científicos suficientes para estar ao corrente de a questão da temperatura do corpo ser considerada pelo médico que praticaria a autópsia como elemento determinante da hora da morte. Além disso, há a ponderar o pormenor da motivação. Precisamos de alguém que lucrasse com a descoberta da matriz da gravação, implacável ao ponto de cravar o furador de gelo nas costas de Fritch e com possibilidades de acesso a esse mesmo furador, que se encontrava na residência dos Bain.

"A escolha desse tipo de arma reveste-se de certo interesse. Significa que a pessoa que cometeu o crime pretendia um instrumento que executasse o trabalho, embora não fosse o mais eficiente do mundo. Por outras palavras, foi uma arma que se lhe deparou no momento, digamos, pouco depois da meia-noite. Precisamos de alguém capaz de estabelecer um álibi para aquela noite até cerca das três horas da madrugada e que dispusesse depois da oportunidade de ir matar Fritch, colocar o corpo na arca congeladora até cerca das oito da manhã e depois transferi-lo para outro lugar qualquer. Evidentemente que o facto de a porta do apartamento de Brogan não estar fechada à chave forneceu-lhe a solução ideal. Portanto, o nosso assassino é forte, implacável, possuidor de sangue-frio científico, interessado nos destinos da família Bain e com acesso ao furador de gelo.

- Já reparou que está praticamente a colocar a corda ao pescoço de Jarrett Bain? - exclamou Della Street.

Mason contemplou-a em silêncio, em seguida a expressão de incredulidade de Paul Drake e, enquanto acendia um cigarro, articulou:

- E então?

- Santo Deus! - bradou o detective. - De facto, analisando tudo friamente, trata-se da única explicação possível. Jarrett regressou a casa, conversou com o pai e inteirou-se do que tinhas dito acerca da probabilidade de a gravação ser forjada. Edison Doyle podia fornecer-lhe um álibi para o período cerca das duas horas da madrugada. Depois, alegou que tinha ido para a cama e dormido até por volta das dez da manhã.

- Nada o podia impedir de procurar J. J. Fritch pelas três horas, cravar-lhe o furador de gelo várias vezes, retirar as provisões da arca congeladora e colocar lá o cadáver, de onde o transferiu para o armário das bebidas de Brogan aproximadamente às oito, em que sabia que seria descoberto quando Sylvia e eu comparecêssemos ao encontro marcado para as nove. Depois, tornou a guardar apressadamente as provisões na arca e...

- Espera aí. De facto, reduziste a linha de raciocínio, mas então e Edison Doyle? Ausentou-se e dispunha de um álibi para cerca da meia-noite, mas não...

- Lembra-te da sua constituição física - atalhou Mason. - Consegues imaginá-lo a erguer o corpo pesado de Fritch para o acondicionar na arca e mais tarde arrastá-lo para o outro apartamento? Doyle é do tipo fox-terrier, ao passo que Jarrett possui compleição atlética e um sangue-frio característico dos cientistas.

- Que vamos fazer? Voltou-se para Della Street:

- Ligue à residência dos Bain e peça para chamarem Jarrett.

Ela obedeceu e, transcorrido um momento, uma mirada de assombro a Mason, que perguntou:

- Que foi?

- Ele nem quis esperar pelo funeral. Deixou dito que lamentava muito, mas não podia valer aos mortos. Apenas aos vivos. Parece que recebeu um telegrama acerca de um novo achado arqueológico e partiu no primeiro avião.

- Então, foi-se - admitiu o advogado, apagando o cigarro no cinzeiro. - E talvez não seja nada fácil localizá-lo.

- A Polícia vai tentar atribuir o crime a Brogan - observou Drake, com certo desconforto. - Afirma que as impressões digitais são de um cúmplice dele, que engendrou tudo.

Vendo que o advogado se limitava a sorrir, Della Street interpôs:

- Não vai revelar a verdade às autoridades, para que larguem Brogan e capturem Jarrett Bain, antes que desapareça na selva?

- Há uma coisa chamada justiça poética - replicou Mason, com novo sorriso. - Deixemos o nosso amigo Brogan transpirar um pouco. Não o podem condenar, com os elementos de que dispõem. Chegam para o prender, mas não para o levar aos tribunais sob a acusação de homicídio. E quanto a Jarrett, a Polícia que resolva os seus problemas sem a nossa ajuda. As nossas responsabilidades são bem definidas e muito limitadas. Representamos Hattie Bain, que já foi posta em liberdade.

- Hattie Bain e a irmã de olhos verdes - salientou Della.

- Sim, não convém esquecer a irmã de olhos verdes, Miss Resolve-Tudo!

- Meu Deus! - exclamou, de súbito. - O telegrama que obrigou o irmão a regressar às escavações... Lembra-se de ela dizer?... - Interrompeu-se e fitou Mason de olhos arregalados.

- Miss Resolve Tudo - murmurou ele, acendendo novo cigarro.

 

                                                                                 Erle Stanley Gardner  

 

                      

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