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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A JOIA / Artur Azevedo
A JOIA / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

PERSONAGENS: VALENTINA JOAQUIM CARVALHO JOÃO DE SOUZA  GUSTAVO UM JOALHEIRO  UM SUJEITO 
Rio de Janeiro, 1874.  

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ATO I Sala de visitas em casa de Valentina. Duas portas de cada lado e duas janelas de sacada ao fundo. À esquerda do espectador, sofá; ao lado deste, poltrona. À direita, escrivaninha, com preparos para escrever. Cadeiras, consolos com porta-joias, estatuetas, quinquilharias, etc. Nos intervalos das portas, gravuras ricamente emolduradas. Reposteiros de lã em todas as portas e cortinas de rendas às janelas. Piano. Tapete. Lustre de gás. É dia. 
 
CENA I  Valentina, um sujeito.
 
(Valentina está sentada na poltrona, de penteador branco. O sujeito de pé, pronto para sair, de chapéu na cabeça, tem uma das mãos entre as dela) 
 
VALENTINA Adeus. De mim não se esqueça  Nem do número da porta. 
 
O SUJEITO  Não. 
 
VALENTINA Se, de saudades morta  Me não quer ver, apareça. 
 
O SUJEITO (aborrecido)  Adeus. 
 
VALENTINA Adeus. (Ele vai saindo) Até quando? 
 
O SUJEITO (parando)  Prometo voltar bem cedo. 
 
VALENTINA Não minta. 
 
O SUJEITO  Não tenhas medo!  Pois eu vivo em ti pensando. (Sai) 
 
 
CENA II Valentina, só.
 
VALENTINA Pensando em mim!... Na verdade,  O tempo emprega bem mal. (Abrindo o envelope que o sujeito lhe tem deixado nas mãos)  Sim senhor, foi liberal.  Quanta generosidade!...  (Erguendo-se, e como que dirigindo-se ao sujeito que acaba de sair)  Bem! cá fica arquivado  no livro dos preciosos...  (Tirando três cédulas do envelope)  Que três bilhetes formosos!  Fazem-lhe falta... Coitado... 
 
Sei de dois credores seus  que a porta não lhe abandonam,  e sei também que tencionam  mandar citá-lo... (Outro tom) Ora, adeus!  Deixemos estas lembranças...  Fechemos a porta à chave...  (Vai fechar a porta da esquerda, segundo plano, e voltando à cena, vai abrir uma das gavetas da secretária)  E, nesta solidão suave,  vamos tratar de finanças.  Esta semana rendeu!  A receita, com certeza,  cento por cento a despesa  nestes dias excedeu.  (Senta-se à secretária, donde tira um monte de notas de banco, que põe-se a contar)  Dez, vinte, trinta, quarenta,  cento e quarenta, duzentos,  trezentos, e quatrocentos,  quinhentos e cinquenta,  seiscentos... — Que nota antiga!  Não estará recolhida?  (Guarda pressurosa o dinheiro, por ouvir bater à porta)  Quem está aí? 
 
GUSTAVO (fora)  Sou eu, querida! 
 
VALENTINA (erguendo-se)  Gustavo? 
 
GUSTAVO (fora)  Sim, minha amiga. 
 
(Valentina vai abrir a porta a Gustavo, que entra) 
 
CENA III  Valentina, Gustavo.
 
VALENTINA (apertando-lhe a mão)  Não te esperava já, palavra de honra! 
 
GUSTAVO Já? Querias que eu ficasse eternamente lá? 
 
VALENTINA Deste-te bem? 
 
GUSTAVO Então? Não vês como estou nédio?  Para o blazé não há mais eficaz remédio  do que passar um mês de vida regular  onde os prazeres são difíceis de encontrar.  O físico e o moral a roça purifica:  tens precisão também da roça, minha rica.  (Repoltreando-se na poltrona)  Dize-me cá: tem vindo o deputado? 
 
VALENTINA (encostando-se ao espaldar da poltrona) Tem. 
 
GUSTAVO O João Ramos? 
 
VALENTINA E o Pimenta? 
 
VALENTINA Também. 
 
GUSTAVO Que bons amigos tens! Sou eu que tos arranjo!  Em consideração deves tomar, meu anjo... 
 
VALENTINA (descendo à cena)  Pois queres mais dinheiro?! És exigente. 
 
GUSTAVO Sou; mas vê lá também a roda que te dou! 
 
VALENTINA (sentando-se à direita)  Não trouxeste o melhor dos que aqui vêm agora. 
 
GUSTAVO Quem é? Não é segredo? 
 
VALENTINA Um tipo que me adora!  Um fazendeiro rico e velho que supõe  ser ele só que os pés em minha casa põe. 
 
GUSTAVO (com interesse)  E onde foste encontrar esse tesouro raro? 
 
VALENTINA No Prado Fluminense. Eu vi-o, deu-me o faro,  sorri-lhe, ele sorriu-me... Eu dei-lhe o meu cartão... Veio. Adora-me e... crê que tenho coração. 
 
GUSTAVO Um fazendeiro é mina; e quanto mais se explora,  mais ouro dá!... Pois bem, caríssima senhora,  — não é por me gabar — acredito que o seu  é muito bom, mas tenho um ótimo! 
 
VALENTINA Tu? 
 
GUSTAVO Eu. 
 
VALENTINA (erguendo-se)  Onde ele está? 
 
GUSTAVO (idem)  Depois... depois nós falaremos... 
 
VALENTINA Mas que custa dizer? 
 
GUSTAVO Tempo de sobra temos. 
 
VALENTINA Mas dize-me... 
 
GUSTAVO Não posso agora; logo mais voltarei. 
 
VALENTINA ‘Stás com pressa? 
 
GUSTAVO Estou. 
 
VALENTINA Aonde vais? 
 
GUSTAVO Subi só por te ver. Espera-me um amigo  que convidado está para almoçar comigo. 
 
VALENTINA Bem; vai e volta. 
 
GUSTAVO Dá-me uns cinquenta mil-réis. 
 
VALENTINA (vai à secretária e conta o dinheiro)  Com muito gosto. É já... Dois, quatro, cinco, seis...  Dez e dez vinte, e trinta... Ah! Cinquenta... Pega!  (Dá o dinheiro a Gustavo que o guarda) 
 
GUSTAVO Obrigado. Até logo! (Sai por onde entrou) 
 
VALENTINA Adeus. (Só)  Supõe-me cega...  Com tal balela quis uns cobres me apanhar! (Fechando a porta)  Enfim... Vamos a ver... Bem posso me enganar. 
 
 
CENA IV  Valentina, só.
 
(Senta-se de novo à secretária, abre-a e recomeça a contar dinheiro) 
 
VALENTINA Terminemos esta conta...  Três contos... quatro e quinhentos...  e seiscentos... setecentos...  Quase a cinco contos monta  desta semana a receita!  Vamos conferir... (Toma a pena) O Ramos  deu-me na quarta... — Escrevamos — oitocentos de uma feita... (Escrevendo)  “Oitocentos”. (Pensa) O Pimenta  aquele broche me deu  que há três dia me rendeu  trezentos e cinquenta...  Entregou-me o deputado  todo o subsídio. Que bolo!...  É justo: um fútil, um tolo,  que só diz “muito apoiado”  e ganha um conto e quinhentos. (Escreve)  Deu-me no dia seguinte  Mais quatro notas de vinte...  O Sá tem dado trezentos...  O fazendeiro... (Batem à porta)  Quem é?  Já lá vou! (Guardando o dinheiro que estava espalhado)  Deve estar certo...  Levo isto ao Banco, que é perto,  daqui a pouco. (Batem de novo)  Olé! Olé!  Com que pressa está! 
 
O JOALHEIRO (fora)  Estou!  Não se acha em casa a senhora? 
 
VALENTINA Se quer, espere! 
 
O JOALHEIRO (fora)  A demora é pequenina. 
 
VALENTINA Lá vou. (Vai abrir a porta: entra o Joalheiro com uma caixa de joias na mão)   
 
CENA V  Valentina, o Joalheiro.
 
VALENTINA Ah! é o senhor! 
 
O JOALHEIRO (abrindo a caixa, deixa ver um formoso par de bichas de brilhantes)  Ora veja! 
 
VALENTINA Vem aqui tentar-me, aposto! 
 
O JOALHEIRO Não tentei nunca, nem gosto  de tentar quem quer que seja.  (Entregando a joia a Valentina que a examina)  Venho mostrar-lhes uns brilhantes  como os Farâni não os tem;  Se os quer comprar, muito bem!  Se os não quer, passo adiante.  Não tento... não sei tentar...  Apenas lhos ofereço...  Nem sequer os encareço...  Isto é pegar, ou largar!  Veja bem que são granditos!  Sem jaça... veja... sem jaça...  Examine... veja... faça  O que quiser. 
 
VALENTINA São bonitos! 
 
O JOALHEIRO ‘Stou a vendê-los disposto:  se lhos vim mostrar agora,  é porque sei que a senhora  pode comprar, e tem gosto.  Não tento... tentar não vim... 
 
VALENTINA (fechando ao caixa)  E baratinho mos vende? 
 
O JOALHEIRO Ora, a senhora compreende  que dois brilhantes assim...  de dez quilates!... É boa! 
 
VALENTINA (abrindo de novo a caixa)  Dez quilates? 
 
O JOALHEIRO Está visto! 
 
VALENTINA Porém quanto valem? 
 
O JOALHEIRO Isto não são brilhantes à toa! 
 
VALENTINA Bem vejo! Que tentação!  (Vai ao espelho e chega uma das bichas à orelha) 
 
O JOALHEIRO Não são joias de mascates,  brilhantes de dez quilates...  sem jaça... como estes são!... 
 
VALENTINA Mas o preço? 
 
O JOALHEIRO Ora, avalie...  A senhora os tem comprado... 
 
VALENTINA (descendo)  Quatro contos! 
 
O JOALHEIRO (tomando a joia) Obrigado!  Por favor não calunie  os meus brilhantes! (Mostrando-lhos) Repare!  Cravados em dois anéis,  davam dez contos de réis! 
 
Ambas as pedras compare:  são iguais... não vale a pena  separar... (Fecha a caixa) Dou-lhe os marrecos... 
 
VALENTINA Por quanto? 
 
O JOALHEIRO Por seis contecos.  A diferença é pequena... 
 
VALENTINA Não tenho dinheiro agora;  leve os brilhantes. Adeus! (Vai sentar-se à direita) 
 
O JOALHEIRO Ora por amor de Deus!  Que não mos pague a senhora,  mas algum... 
 
CENA VI  Valentina, o Joalheiro, Joaquim Carvalho.
 
(Joaquim Carvalho entra pela esquerda, segundo plano, sem reparar no Joalheiro que, de costas voltadas para ele, limpa as bichas com o lenço) 
 
CARVALHO Cá vou entrando. (Tomando as mãos ambas de Valentina)  Como estás? 
 
VALENTINA Bem, obrigada.  Mas de saudades ralada...  e você nem se lembrando  talvez que existo! 
 
CARVALHO (protestando)  Ó minha... (Vendo o Joalheiro interrompe-se)  Quem é aquele senhor? 
 
VALENTINA Um caixeiro. 
 
CARVALHO Manda-o pôr a panos. 
 
VALENTINA Uma continha  vem receber, e não há  com que pagar... 
 
CARVALHO Não me espanta!  Gastas tanto, minha santa!  Queres dinheiro? (Tirando a carteira) Aqui está.  Quanto lhe deves? 
 
VALENTINA Pouquito:  oitenta mil réis. 
 
CARVALHO É pouco. (Dando-lhe uma nota de cem mil réis)  Paga, e fica tu com o troco,  enquanto eu leio o Mosquito. 
 
(Senta-se à direita e lê um periódico de caricaturas que vai buscar sobre a secretária. Valentina dirige-se ao Joalheiro) 
 
O JOALHEIRO (a meia voz)  ‘Stá terminado o negócio? 
 
VALENTINA (idem) 
 
Vá para casa, que em breve  alguém procurá-lo deve. 
 
O JOALHEIRO Se não estou eu, está meu sócio.  Se uma decisão dar pode... 
 
VALENTINA Irei eu mesma em pessoa  em meia hora! 
 
O JOALHEIRO Essa é boa!  Não quero que se incomode,  nem tenho mais pretendentes... 
 
VALENTINA Em meia hora lá estou. 
 
O JOALHEIRO Bem! bem! descansado vou. 
 
VALENTINA Até logo! 
 
(O Joalheiro sai por onde entrou)   
 
CENA VII  Valentina, Joaquim de Carvalho.
 
CARVALHO (deixando periódico)  Impertinentes  são estes credores! 
 
VALENTINA São; 
 
por isso é que me coíbo  de dever muito; 
 
CARVALHO E o recibo?  Pediste-lho? 
 
VALENTINA E por que não?  (Aproximando-se de Carvalho e passando-lhe o braço em volta do pescoço)  Por que não vieste esta noite?  Ai, que saudades eu tive!  Para a mísera que vive  de teu amor, fero açoite  é tua ausência! Sozinha  a noite inteira passei...  Lembrei-me tanto... Nem sei  mesmo por quê... 
 
CARVALHO Coitadinha! 
 
VALENTINA (sentando-se num tamborete, aos pés do Carvalho)  Porém, vamos lá saber:  e tu?... tu como passaste? 
 
CARVALHO Assim... 
 
VALENTINA De mim te lembraste? 
 
CARVALHO De ti me posso esquecer?  E tu? 
 
VALENTINA Muito despeitada... 
 
CARVALHO Por que, meu bem? 
 
VALENTINA Faze ideia:  desejar uma teteia  e não poder... Que maçada! 
 
CARVALHO Não poder o quê? 
 
VALENTINA Comprá-la. 
 
CARVALHO Por que comprá-la não podes? 
 
VALENTINA Pois pensa que a dão de godes? 
 
CARVALHO Se é muito cara, deixá-la! 
 
VALENTINA É difícil esquecer! 
 
CARVALHO Dificuldades não vejo... 
 
VALENTINA (erguendo-se) Sufocar o meu desejo!  Matá-lo logo ao nascer!  Esquecer! Fora um suplício!  Pois desejar hei de em vão! (Batendo o pé)  Oh! não! não!... Mil vezes não!... 
 
CARVALHO (erguendo-se)  Mas eu não digo... 
 
VALENTINA (evitando-o)  Outro ofício! 
 
CARVALHO Menina, não te exacerbes!  Se queres a tal teteia,  não me faças cara feia,  que dentro em pouco a recebes!  (Tomando o chapéu que deixou na cadeira perto da secretária)  Dize-me o que é que num salto,  vou buscá-la. Dize! o que é?... 
 
VALENTINA (à parte)  Parece estar de maré...  Preparemos este assalto!... 
 
CARVALHO Algum chapéu enfeitado  pras corridas de amanhã?  Algum vestido de lã? 
 
VALENTINA (com desprezo)  Lã. 
 
CARVALHO Ou seda. 
 
VALENTINA ‘Stá enganado.  É um capricho. 
 
CARVALHO (deixando o chapéu)  Ah! caprichas? 
 
VALENTINA Procure. 
 
CARVALHO É coisa que enfeita? 
 
VALENTINA É uma cosa que se deita  nas orelhas! 
 
CARVALHO Umas bichas? 
 
VALENTINA Tem talento: adivinhou! (Senta-se no sofá) 
 
CARVALHO Nas orelhas... Pois quem julga  não sejam bichas? (À parte)  Co’a pulga  atrás das minhas estou.  De que são as bichas? 
 
VALENTINA Ora! 
 
CARVALHO (à parte)  Estes caprichos aleijam... 
 
VALENTINA (erguendo-se)  Pois há bichas que não sejam  de brilhantes? 
 
CARVALHO Sim, senhora:  há bichas de coralina;  há de esmeralda, safira,  de pingos d’água... 
 
VALENTINA Mentira! 
 
CARVALHO Não me desmintas, menina!  Aos teus desejos conforme  ‘stou, mesmo quando caprichas;  mas entre teteias e bichas  há uma diferença enorme! 
 
VALENTINA Em quê? 
 
CARVALHO No preço: a teteia  é sempre coisa miúda,  e as bichas, Deus nos acuda! 
 
VALENTINA Nem tanto assim! 
 
CARVALHO Faço ideia  que essas, que desejas tanto,  custam dois contos! 
 
VALENTINA (irônica)  Ou três!  Sem os brilhantes talvez... 
 
CARVALHO (benzendo-se)  Padre, Filho e Espírito Santo! 
 
VALENTINA Valem dez contos de réis;  o dono, que é meu amigo,  além de freguês antigo,  deixa-as... 
 
CARVALHO Por quanto? 
 
VALENTINA Por seis. 
 
CARVALHO Seis contos! 
 
VALENTINA Então não valho  seis contos, meu... Que chalaça!  Não me lembra a tua graça! 
 
CARVALHO (sombrio)  Joaquim dos Santos Carvalho. 
 
VALENTINA Meu Quincas, meu Carvalhinho,  meu primeiro amor! 
 
CARVALHO (à parte)  Tramoias. 
 
VALENTINA Uma mulher que quer joias  é o mesmo que o nenezinho  que quer balas! 
 
CARVALHO (à parte)  Não sou zebra,  que, se quer balas alguém,  compra-as a três por vintém; 
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e recebe uma de quebra. (Alto)  Menina, deixa os brilhantes  para essas escandalosas  que contam dúzias e grosas  de indiferentes amantes.  Tu, meu bem, que não és destas,  que só me tens, que não vives  para prazer dos ouvires,  compra umas bichas modestas... 
 
VALENTINA (desdenhosa)  Modestas... 
 
CARVALHO Iguais a umas  que comprei para a Qué-qué... 
 
VALENTINA (arrebatadamente) Oh! essa Qué-qué, quem é?  Quero saber! 
 
CARVALHO Não presumas  que seja alguma cocote:  é minha mulher. 
 
VALENTINA Se acaso  me mentes, vai tudo ao raso! 
 
CARVALHO Eu, nem mesmo em rapazote  Nunca menti. 
 
VALENTINA (acariciando-o)  Ó meu Quincas! (Desatando a chorar)  Mas ah! que não me conheço! 
 
Imploro... peço... Pareço  uma mendiga! 
 
CARVALHO (tomando-a nos braços com interesse)  Tu brincas! 
 
VALENTINA E quem me avilta? É este homem  que tanto amor me inspirou!  Que mais me resta? Que sou?  Minhas ilusões se somem,  e para sempre! Não voltam!  Cruéis desenganos surgem!  Contra mim os céus de insurgem  e os infernos se revoltam!  Amor! qual amor! É peta!  (Soluçando) E eu, desgraçada! que adore... (Senta-se no sofá) 
 
CARVALHO (aproximando-se dela com mimo e bonomia paterna)  ‘Stás tal e qual a Ristóri  na Maria Antonieta 
 
VALENTINA (a fingir um ataque de nervos)  Ah! Ah!... 
 
CARVALHO Meu Deus! o que é isto?! 
 
VALENTINA (a espernear)  Socorro!... 
 
CARVALHO (percorrendo a cena)  Jesus! 
 
VALENTINA Socorro!  Eu morro! 
 
CARVALHO (atarantado)  Qual morres! 
 
VALENTINA Morro!  Quem me acode? 
 
CARVALHO Jesus Cristo!...  Que devo fazer? Eu vou...  Queres médico? 
 
VALENTINA Decerto. 
 
CARVALHO Há doutor por aqui perto?  Corro a chamá-lo!  (Na ocasião em que toma o chapéu, Valentina ergue-se) 
 
VALENTINA Passou. 
 
CARVALHO (deixando o chapéu)  Pois os médicos da corte  são bens bons; basta fazer  tenção de os chamar, pra ver  o doente livre da morte! 
 
VALENTINA (depois de alguns momentos, angustiada)  A provação foi atroz...  Foi cruel o sofrimento...  Porém, desde este momento  não há mais ente nós. (Sai pela direita, segundo plano)   
 
CENA VIII 
 
Carvalho, só.
 
CARVALHO (depois de alguma pausa)  Se eu não fosse um covarde,  que bela ocasião para me por a andar...  (Pegando o chapéu,) Ainda não é tarde!  Nem um momento mais eu devo aqui ficar!  (Dispõe-se a sair, e para, olhando para a porta por onde entrou Valentina)  Encerrou-se na alcova!  ‘Stá soluçando a triste... o seu amor maldiz...  Oh! que eloquente prova  de que ela me estremece e de que sou feliz!  (Colocando o chapéu sobre uma cadeira e o sobretudo nas costas da poltrona. Resoluto)  Não! não sairei! Fico!...  Mas a colheita?... a safra? os filhos e a mulher?  Eu sou bastante rico  e posso demorar-me o tempo que quiser!  Fui sempre ótimo pai, fui ótimo marido:  é muito que um momento eu me esqueça de mim?  Hei de voltar melhor assim fortalecido...  Oh! maldito o momento em que a cidade vim! (Pausa)  E se eu pilhado for co’a boca na botija?  Não me posso entender!  Não sei para que lado os passos meu dirija!...  sou preso por ter cão e preso por não ter!  (Dirigindo-se à porta por onde saiu Valentina)  Ela está mal comigo... as pazes fazer vamos...  Prometo dar-lhe a joia; e, quando a vir, direi  que é muito cara... e tal... Depois nós combinamos!  E uma joia barata então lhe comprarei... (Ajoelha-se à porta)  Vamos lá... vamos lá... Meu anjo... Valentina...  dentre os soluços teus soluça o meu perdão! Não zangues-te, meu bem; não chores mais, menina...  Abre-me a porta, já... Vem cá, meu coração!   
 
 
CENA IX  Carvalho e Valentina.
 
(Valentina está pronta para sair. Tem os olhos vermelhos. Dirige-se à secretária e guarda em uma bolsa que traz na mão as notas de banco, que tira da gaveta sem que Carvalho veja) 
 
CARVALHO Menina, dos calcanhares  olha que não me levanto  nem mesmo a cacete, enquanto  teu perdão me não lançares!  (Valentina acaba de guardar o dinheiro e desce à cena, fingindo que chora, mas rindo-se à socapa. À parte)  Coitadinha! que lamúria! 
 
VALENTINA Sei que não tenho o direito  de exigir nenhum respeito,  de perdoar uma injúria...  Vocês têm razão: enxerguem  na mulher que cai somente  a meretriz impudente,  que nem as lágrimas erguem.  Tem graça o perdão! De rastros,  sou eu que devo alcançá-lo!  (Ajoelha-se também. Ficam ajoelhados defronte um do outro)  Sou perdida e quis amá-lo!  Sou lama: quis ir aos astros! 
 
CARVALHO Um astro és! És minha lua,  és minha lua querida! 
 
VALENTINA Sua sombra, refletida  num charco imundo da rua, serei... 
 
(Ergue-se e vai sentar-se na poltrona)  Meu pobre passado!  Tu onde estás? onde fostes?  Dá licença que me encoste  ao seu capote? — Obrigado.  Eu tive a flor dos maridos...  Que quer? Não havia meio  de amá-lo! Um dia deixei-o.  deu um tiro nos ouvidos!  Como mariposa inquieta,  pousei aqui e ali...  Amar jamais consegui...  mas encontrei-te... poeta!...  (Vai arrebatadamente colocar-se outra vez de joelhos, defronte de Carvalho) 
 
CARVALHO (admirado)  Poeta!... 
 
VALENTINA Poeta, repito!  A ti não parecia;  mas tinhas tanta poesia!...  Escuta: não és bonito...  já não és novo, sequer...  És calvo, tens nariz grande;  mas nisso mesmo se expande  meu coração de mulher.  Não sou vulgar... amo o horrível,  e és horrivelmente belo!  Ao teu carão amarelo  meu coração foi sensível...  Um instante me pareceu  — mas, ai de mim, me enganara — que tu, com tão feia cara,  deverias ser só meu!  (Erguendo-se) Sim, o velho mundo espante-se  e belas razões deduza: 
 
seis contos você recusa  a tanto afeto! — Levante-se! 
 
CARVALHO (erguendo-se)  És um anjo! 
 
VALENTINA E você é... 
 
CARVALHO Teu escravo! 
 
VALENTINA É um verdugo!  Entretanto, Victor Hugo  disse: Oh! n’insullez jamais... 
 
CARVALHO Então? Estou perdoado? 
 
VALENTINA Estás, que tudo se esquece. (Vendo que Carvalho limpa os olhos)  Choraste? 
 
CARVALHO Se te parece!  Falas como um advogado!  Onde é que as bichas se vendem?  Vou buscá-las. 
 
VALENTINA (mudando inteiramente de tom)  Meu amigo,  o ouvires vem ter contigo  e vocês dois cá se entendem. 
 
CARVALHO Quem o manda? 
 
VALENTINA Eu. 
 
CARVALHO Deveras? 
 
VALENTINA Eu fiquei de lá ir. (À parte) Como  tenho de ir ao banco, tomo  um carro e vou lá. (Alto) Esperas? 
 
CARVALHO Espero. 
 
VALENTINA (beijando-o) Adeus. 
 
CARVALHO Sedutora!  (Saída falsa de Valentina, pela esquerda, segundo plano)  Se eu não puder arredar-me,  conto que hei de desforrar-me  pela colheita vindoura. (Senta-se no sofá) 
 
VALENTINA (voltando) Outra bicota. (Beija-o) Mais duas!  A chama do amor me abrasa!  Ainda não saí de casa,  já tenho saudades tuas! (Vai saindo e para)  Não queres ler um pouquinho? 
 
CARVALHO Quero, sim. 
 
VALENTINA Olha, aqui tens...  (Dá-lhe o Mosquito e dirige-se para a porta da esquerda, segundo plano) 
 
CARVALHO (deitando-se) Enquanto tu vai e vens,  eu fico lendo o Mosquito. 
 
 
ATO II A mesma decoração.
 
CENA I  Carvalho, só.
 
CARVALHO (está ainda deitado no sofá; dorme e sonha alto, muito agitado. O Mosquito está caído a seus pés)  Ai! o que é isto? O que é?  Não me agarrem!... Não me puxem!...  Que mais querem!... Desembuchem!...  Não creias nisso, Qué-qué!  (Levanta-se do sofá e desperta, atônito)  Hein? Que foi?... Ah! era um sonho  Um sonho... não há que ver...  Já me lembro: estava a ler  o Mosquito... Foi medonho  o pesadelo! Primeiro,  sonhei que havia chegado  à fazenda, e visitado  senzala, alpendre, chiqueiro,  horta, engenho, etcetera e tal.  Depois fui ter co’a patroa...  Os sonhos são coisa à toa,  pois que não é natural  que eu, se à fazenda chegasse,  do que à madama, primeiro  senzala, alpendre, chiqueiro,  horta e pomar visitasse.  No momento justamente  em que os meus lábios se uniram aos lábios dela, surgiram,  donde não sei, de repente,  mulheres assim... assim...  (Gestos indicando que eram muitas)  Altas, baixas, magras, cheias;  belas umas e outras feias,  que se acercaram de mim!  Contei dez... mais dez... mais dez!  Saía uma por uma  do teto... do chão... Em suma,  a alma caiu-me aos pés!  Pr’agravar o pesadelo,  dessa tropa feminina  vinha à frente Valentina,  em desalinho o cabelo,  e às outras dizia assim:  “— Segurem-me esse tratante!  Não sabem que é meu amante  e que se afastou de mim?...”  E as outras me carregavam!  Davam-me beijos... abraços...  Disputavam-me nos braços;  aos trambolhões me levavam!  “— Levem-no; tenho o direito  de disputar o seu amor,  pois amo-o... amo-o!...” Senhor!  que pesadelo! No leito  a Qué-qué se revolvia...  Teve mais um faniquito!  Dava gritos! Cada grito  que um surdo despertaria!  Nisto acordei; já de pé,  protestos inda fazia,  e à pobre Qué-qué dizia:  “— Não creias nisso...”  (Batem à porta da esquerda, segundo plano)  Quem é? 
 
O JOALHEIRO (fora)  Um criado de vossa senhoria 
 
CARVALHO (consigo)  É o sujeito das bichas. (Alto) Pode entrar. 
 
 
CENA II  Carvalho, o Joalheiro.
 
O JOALHEIRO Com licença, senhor. Muito bom dia. 
 
CARVALHO Bom dia. Faz favor de se sentar. (Senta-se e indica-lhe uma cadeira) 
 
O JOALHEIRO Estou a gosto. 
 
CARVALHO Sente-se. 
 
O JOALHEIRO (sentando-se)  Obrigado. 
 
CARVALHO (à parte) Olho vivo! Tem cara de judeu... As bichas, o senhor... 
 
O JOALHEIRO (erguendo-se) Um seu criado... 
 
CARVALHO ...é que vem... 
 
O JOALHEIRO Sim, senhor... 
 
CARVALHO ...mostrar? 
 
O JOALHEIRO Sou eu. 
 
CARVALHO Queira sentar-se. Faz favor de dar-mas? 
 
O JOALHEIRO (tirando a caixa do bolso e abrindo-a. Senta-se)  Aqui as tem. Perdão! (Limpa-as mais uma vez) 
 
CARVALHO (à parte)  Vejam com o tratante apronta as armas! 
 
(O Joalheiro entrega-lhe a joia, que ele examina com atenção) 
 
O JOALHEIRO São bonitos, não acha? 
 
CARVALHO Acho que são;  mas também acho exorbitante o preço. 
 
O JOALHEIRO Exor... Meu caro, por amor de Deus!  que preço lhe disseram? 
 
CARVALHO Seis! 
 
O JOALHEIRO Não desço  um real. Veja bem! 
 
CARVALHO (à parte)  Estes judeus! 
 
O JOALHEIRO (erguendo-se)  Que me conste, até hoje aqui não houve  dois brilhantes assim!  Donos deles fazer-me aos céus aprouve;  porém... pobre de mim!  Muitos há que desejam possuí-los;  mas seu valor não dão...  E na vidraça os míseros tranquilos  por muito tempo permanecerão!  (Pausa durante a qual Carvalho continua a examinar os brilhantes, mas com indiferença)  Estes brilhantes tinham mais preço  em dois grandes anéis;  mas não nos quero separar. O preço  sãos seis contos de réis.  Se não achar de todo nesta terra  quem os queira comprar,  vou vendê-los à c’roa de Inglaterra  que os não há de enjeitar.  (Toma os brilhantes, coloca-os nas orelhas e passeia pela sala como uma senhora)  Veja que belos são! De conta faça  que uma senhora sou:  Veja que alvura!... que ladrões sem jaça! 
 
CARVALHO Por quatro contos dá-lo quer? 
 
O JOALHEIRO Não dou; 
 
CARVALHO Então, amigo, não fazemos nada:  perde o seu tempo e perde o seu latim... (À parte)  Se eu me livrar puder desta rascada,  hei de um terço rezar a São Joaquim,  meu glorioso patrono. 
33
 
O JOALHEIRO (à parte, embrulhando a caixa)  A sirigaita  disse-me que o velho dava-me os seis paus;  ela supõe que berimbau é gaita...  Não se lembra que os tempos vão tão maus...  Hei de sempre falar-lhe... talvez queira... (Alto, guardando a joia)  Até mais ver, senhor. 
 
CARVALHO Passasse bem! 
 
O JOALHEIRO A palavra já disse derradeira!  Não dá mais nada, não? 
 
CARVALHO Nem mais um vintém. 
 
(O Joalheiro cumprimenta e sai por onde entrou)   
 
CENA III  Carvalho, só.
 
CARVALHO Seis contos! seis contos! Irribus!  É mesmo muito dinheiro!  Trabalho um semestre inteiro  para seis contos ganhar,  e devo sem mais preâmbulos  gastá-los com Valentina?  Sai muito cara a menina;  não devo continuar...  mas serei bastante enérgico  pra fugir desta voragem?  Bater a linda plumagem,  ir para junto dos meus? 
 
Lembrar-me dos meus negócios?  dos meus compromissos tantos?  de Valentina aos encantos  dizer pra sempre adeus?...  Seis contos! São seis apólices  pra garantir o futuro:  de cinco por cento ao juro  hão de trezentos render!  No fim de quinze anos, chega-se,  com juros acumulados,  a ter dez contos guardados  para o que der e vier.  Seis contos! compra-se um prédio,  que se aluga a dez por cento!  E, afinal, num bom momento  dez contos por ele dão!  Cinco bons escravos mandam-se  vir do Norte de encomenda,  que, a trabalhar na fazenda,  vinte por cento darão!  Eu bem sei que a joia, cáspite!  por seis contos não ‘stá cara;  é de uma beleza rara:  o homem no preço está.  Of’reci-lhe uma miséria,  e muito acertadamente;  por quatro contos somente  joias dessas ninguém dá. 
 
(Senta-se na poltrona junto da secretária e fica a meditar com a cabeça entre as mãos e os cotovelos fincados nas coxas. Aparecem à porta da esquerda, segundo plano, Valentina e o Joalheiro, que não são pressentidos por Joaquim Carvalho)   
 
CENA IV 
 
Carvalho, Valentina, o Joalheiro.
 
VALENTINA (a meia voz)  Ele ali está!... Psiu... sentido!  Vá pra sala de jantar...  (Encaminha-o na ponta dos pés, para a porta da esquerda, primeiro plano)  Queira um instantinho esperar,  enquanto a questão decido. 
 
O JOALHEIRO (a meia voz)  Senhora, se acha isso caro...  Não tento... Tentar não vim... 
 
VALENTINA (no mesmo tom)  Entre e espere. É já. (O Joalheiro desaparece)  Enfim!  (Logo que o Joalheiro desaparece, Valentina machuca o chapéu e desmancha um pouco o penteado)  É preciso este preparo...  (Desde à cena fingindo estar desesperada, e falando em voz muito alta)  Desaforo! Não se atura  Tamanha pouca vergonha! 
 
CARVALHO (arrancado de súbito de sua meditação)  Valha-me Deus! vem medonha. 
 
VALENTINA (passeando de um lado para o outro)  Fiz uma bela figura! 
 
 
CENA V  Carvalho, Valentina.
 
CARVALHO (à parte)  Ele já sabe de tudo...  Temo-la travada! 
 
VALENTINA (na mesma agitação, senta-se na poltrona e amarrota e rasga o lenço)  Inferno! 
 
CARVALHO (à parte)  Está tão zangada,  que incontinente me mudo...  (Pega no chapéu e dispõe-se a sair sorrateiramente) 
 
VALENTINA (levantando-se rapidamente)  Faça favor!... 
 
CARVALHO Valentina... 
 
VALENTINA (imperiosamente)  Venha cá! 
 
CARVALHO (aproximando-se timidamente)  Cá estou 
 
VALENTINA Aqui!  Como o senhor nunca vi  homem tão tolo e sovina!  Vá-se embora, se quiser,  nem mais um segundo tarde!  Mas saiba que é de um covarde  maltratar uma mulher!  Pois se é tão pobre o senhor,  que meia dúzia de contos  não tem na carteira prontos,  e deles possa dispor,  por que razão prometeu  dar-me uma joia?... 
 
CARVALHO Eu te digo... 
 
VALENTINA (passeando agitada)  Supu-lo tão meu amigo... 
 
CARVALHO (acompanhando-a)  E eu não sou amigo teu? 
 
VALENTINA Encontrei ali na esquina  O joalheiro! Se ouvisse  as coisas que ele me disse! 
 
CARVALHO (no mesmo)  Mas ouve cá, Valentina... 
 
VALENTINA Julga o senhor por acaso  que eu não tenho quem me dê  seis... vinte contos?! não vê!  Sou eu que não faço caso  de muitos banqueiros que andam  a fazer-me roda!... Ontem  (deixá-los que desapontem:  não recebo o que me mandam!)  um lá da Rua Direita  que fez fortuna a galope,  mandou-me num envelope  um conto! Fiz-lhe a desfeita  de não querer: devolvi-lho! 
 
CARVALHO Ele não te conhecia? 
 
VALENTINA Não senhor. 
 
CARVALHO Foi covardia:  maltratou-te! Ai, que se o pilho! 
 
VALENTINA Covardia foi a sua!  Uma covardia enorme! 
 
CARVALHO Mas ouve, afinal! 
 
VALENTINA Expor-me  ao ridículo na rua!  Escute, senhor... Seu nome?  Sempre me esquece!... 
 
CARVALHO Carvalho  Pra evitar este trabalho,  aqui tem um cartão. (Dando-lhe) Tome. 
 
VALENTINA Escute: se o senhor fosse  um pobretão, um mendigo;  se não trouxesse consigo  os contos de réis que trouxe,  o mesmo afeto lhe tinha,  a mesma atenção lhe dava,  o mesmo agrado mostrava,  o mesmo gosto mantinha!  Mas o senhor está bem...  Antes o não estivesse... 
 
CARVALHO (à parte)  Esta agora! se eu soubesse  não tinha gasto vintém... 
 
VALENTINA Em minha casa que paga  julga o senhor, porventura,  a amizade santa e pura  desta infeliz que o afaga?  Pois saiba que o seu dinheiro,  se o gasta, não é comigo! 
 
CARVALHO Pois eu não gasto contigo? 
 
VALENTINA Não, senhor. Ouça primeiro  e depois fale à vontade.  (Fazendo-o sentar-se à força na poltrona)  Sente-se... Vamos! convenha...  Acha provável que tenha  mais doce comodidade  em qualquer outra poltrona? 
 
CARVALHO Não acho, não, certamente  que este cômodo excelente  nenhuma outra proporciona. 
 
VALENTINA Bem! agora venha cá.  (Fá-lo erguer-se da poltrona e deitar-se no sofá)  Deite-se... deite-se! Assim! 
 
CARVALHO (deitado)  Mas que queres tu de mim? 
 
VALENTINA Que tal acha este sofá?  Diga... Diga! 
 
CARVALHO É uma obra prima!  É o melhor sofá do mundo!  A gente vai para o fundo  e depois volta pra cima!  Hoje — não te digo nada — fiz uma bela soneca! 
 
VALENTINA Levante um pouco a careca,  e chegue mais a almofada. 
 
CARVALHO (depois de obedecer)  Estou no sétimo céu! 
 
VALENTINA Pois bem: venha ver o oitavo!  Erga-se! siga-me! (Leva-o à porta da direita alta) 
 
CARVALHO (olhando para dentro)  Bravo! Que belo sobrecéu!  que cortinado bonito! 
 
VALENTINA E a cama? 
 
CARVALHO A cama conheço... 
 
VALENTINA Que tal? 
 
CARVALHO Um traste de preço,  de um gosto muito esquisito  pouco mais alta que o chão... 
 
VALENTINA É moda agora... 
 
CARVALHO Sei... sim...  A gente, se faz assim,  bate nas esteira co’a mão  Minha cama na fazenda  é deste tamanho... 
 
VALENTINA É alta! 
 
CARVALHO Ninguém para cima salta  sem que a dar um pulo aprenda!  Por causa disto a madama  viu-se muito embaraçada:  muito depois de casada,  não se deitava na cama,  sem subir por uma escada!  Hoje pula como um gato! 
 
VALENTINA (apontando sempre para o quarto)  Veja que lindo tapete!  que magnífica toalete!  que guarda-roupa! 
 
CARVALHO É exato. 
 
VALENTINA Peanhas, estatuetas,  ondinas de biscuit!  (Percorrendo a cena e mostrando a sala, trazendo Carvalho pela mão)  Veja: nada falta aqui!  Chinoiseries, bocetas,  e reposteiros de rendas!  Espelhos, lindas gravuras  em suntuosas molduras! 
 
CARVALHO Sim, tens aqui muitas prendas. 
 
VALENTINA (descendo à cena)  Muito dinheiro enterrado  está aqui! 
 
CARVALHO Tens gosto. Toca! 
 
VALENTINA (à Parte)  Na Rua da Carioca  tem sido tudo comprado... 
 
CARVALHO O que te digo é que há trastes  que com o dono parecem!  Teus olhos tudo merecem;  que importa que tudo gastes? 
 
VALENTINA (aproximando uma cadeira)  Meu caro, agora expliquemo-nos.  Os cobres que me tem dado  emprego... tenho empregado  em tudo isto... 
 
CARVALHO Sei. 
 
VALENTINA Sentemo-nos. 
 
CARVALHO Sim... tanto se paga em pé  como sentado. (Senta-se) 
 
VALENTINA O senhor  não traz o meu puro amor  dentro do porte-monnaie  Paga poltrona macia,  leito fofo e perfumado,  suntuoso cortinado,  custosa tapeçaria.  Os carinhos de uma amante  com beijos se restituem:  eles nãos se retribuem  com sujo metal sonante.  Este rifão acertado  sempre na memória traga:  amor com amor se paga... 
 
CARVALHO É muito velho o ditado  porém não menos o é  o que diziam meus tios... 
 
VALENTINA Qual é? 
 
CARVALHO Dois sacos vazios  não se podem ter de pé.  E há mais outro... 
 
VALENTINA Ouça primeiro:  o senhor gosta do luxo;  pois bem: aguente o repuxo,  uma vez que tem dinheiro. 
 
Eu, para estar de harmonia  com o luxo que vejo em roda  de mim, devo andar à moda,  ter preciosa pedraria.  Quer que lhe tenha paixão,  sem que lhe custe brilhantes?  Vivamos quais dois amantes  dos tempos que já lá vão.  Pr’algum romance ou comédia  terão assunto depois!  Carvalho! sejamos dois  amantes da Idade Média!  Lá, numa ilha deserta,  longe da vista mundana,  vivamos numa choupana  de verdes folhas coberta!  Deixa tudo quanto tens,  esposa, filha, fortuna!  Nada disso se coaduna  coa vida que viver vens.  Sim ou não? Responde, enfim! (Erguendo-se)  Mas nos teus olhos eu leio  a hesitação, o receio...  É que só me amas assim!  Se por acaso me visses  magra, suja, maltrapilha... 
 
CARVALHO (levantando-se)  Onde, meu Deus?... 
 
VALENTINA Na tal ilha...  ...duvido que tu sentisses  a caridade vulgar,  sequer, por esta a quem hoje  o dinheiro foge, foge,  porque quer decente andar. 
 
Se me amas porque sou bela,  mais bela faze-me ainda:  verás como fico linda  com os tais brilhantes! 
 
CARVALHO (à parte)  Cautela!  (Conduz Valentina para o sofá e sentam-se)  Agora atenção me presta?  Pois não me interrompa, e ouça!  Arre! que nunca vi moça  mais exaltada que esta!  Eu quero dar-te as tais bichas:  tomo o céu por testemunha!  Mas tomas o pião à unha  e desejas que haja rixas  onde amor só deve haver!  É um refinado tratante,  (acredita!) o meliante  que as tais bichas quer vender.  Conheço aquele menino!  e juro, por Quem nos ouve,  que até esta data, não houve  quem me enganasse... sou fino. 
 
VALENTINA Muito fino! És um portento! 
 
CARVALHO As bichas são muito belas;  mas ele pede por elas  mais cinquenta por cento  do que deve! O maganão  quer roubar duma assentada  dois contos! Que vá pra estrada,  de bacamarte na mão!  Já fiz ver ao tal sujeito:  por quatro co’as bichas fico. 
 
E não abro mais o bico  a semelhante respeito.  (Ergue-se e passeia pela sala, com as mãos nas costas. Pausa) 
 
VALENTINA (à parte) Que ideia! (Levanta-se. Alto)  Bem pouco entendo  de joias. 
 
CARVALHO Entendo eu!  Por isso o preço ao judeu  fui logo, logo dizendo. 
 
VALENTINA Não sei se estás a iludir-me;  se as bichas valem somente  o preço que dás... 
 
CARVALHO Ó gente!  Outro ouvires que o confirme! (À parte)  Se ela indaga, estou perdido! 
 
VALENTINA Pode bem ser que não queiras  dar-me os seis contos e... 
 
CARVALHO Asneiras!  Não quero é ser iludido!  Faze-me mais um discurso!  vem-me com outras cantigas!...  mas olha que não me obrigas  a fazer figura de urso! 
 
VALENTINA Não queres gastar, mau, feio!  Tens um meio extraordinário  para provar-me o contrário. 
 
CARVALHO Vamos lá ver esse meio. 
 
VALENTINA Vou falar já com o ouvires,  se o valor a joia tem  que dás, ele cede... 
 
CARVALHO Bem! 
 
VALENTINA Mas, para que não te prives  do gosto de me of’recer  os seis contos por inteiro... 
 
CARVALHO (à parte)  Aí! que aí volta o pampeiro! (Alto)  Mais eu não posso entender... 
 
VALENTINA (afagando-o) Não te contrario: assim  bem mostro que te idolatro:  se a joia compras por quatro  dar-me-ás os dois para mim. 
 
CARVALHO (à parte)  Ai, ela agora filou-me! 
 
VALENTINA (largando-o)  Hesitas? Eu logo vi! 
 
CARVALHO (titubeando) 
 
É que... tu sabes... mas... se... (À parte)  ‘Stou arranjado! apanhou-me! 
 
VALENTINA Senhor, supus... 
 
CARVALHO Não te excites;  eu vou buscar o dinheiro...  manda chamar o joalheiro. (Tomando o chapéu)  Mas ouve, e não te arrebites:  se ele der por quatro, é tua  e tens mais dois. Se não der  por isso, não hás de ter  nem joia nem... (Sinal de dinheiro) 
 
VALENTINA Anda! Rua! 
 
(Carvalho sai) 
 
 
CENA VI  Valentina, depois o Joalheiro.
 
VALENTINA (dirigindo-se à porta por onde saiu Carvalho)  Tu queres fazer-te de esperto...  Oh! mais esperta sou eu! 
 
O JOALHEIRO (pondo a cabeça fora da porta)  Entrar já posso? 
 
VALENTINA Decerto. 
 
O JOALHEIRO (descendo à cena)  Tolo! chamar-me de judeu  e tratante! Eu tudo ouvi  por trás daquela cortina! 
 
VALENTINA Viu que o maldito sovina  diz que não valem... 
 
O JOALHEIRO Vi... vi...  Quem lhe dera que valesse  tanto quanto os meus brilhantes!  Mas olhem que estes amantes... 
 
VALENTINA Todos eles são como esse!  Já homens eu não descubro.  Ora, imagine que há meses,  e isso se dá muitas vezes,  em que as despesas não cubro! 
 
O JOALHEIRO Também me queixo um bocado,  pois o negócio vai mal,  tudo o que vendo é fiado  e não recebo um real!  Mas vamos; em que ficamos?  Olhe: tentá-la não quero... 
 
VALENTINA Uma ideia tenho; espero  que há de aprová-la. 
 
O JOALHEIRO Vejamos... 
 
VALENTINA Disse ele que, se comprar  por quatro contos a joia,  dá-me dois contos, e foi à  casa o dinheiro buscar. 
 
O JOALHEIRO Sei tudo e não peço bis,  graças àquela cortina.  Saiba, Dona Valentina,  que é uma primorosa atriz!  Sei o que quer: que lhe entregue  a joia por quatro agora,  para receber da senhora  os outros dois: pois sossegue:  estou por tudo, na ‘sprança  de que os seis contos receba. 
 
VALENTINA Mas ele que não conceba  a menor desconfiança! 
 
O JOALHEIRO E os dois contos? Onde estão? 
 
VALENTINA Dar-lho-ei quando os tiver. 
 
O JOALHEIRO Como assim? 
 
VALENTINA Quando mos der  o fazendeiro. 
 
O JOALHEIRO Isso não! 
 
VALENTINA Dúvida de mim? 
 
O JOALHEIRO De tudo!  Ai, minha rica senhora,  não me dizia inda agora  que este tempo anda bicudo?  Desculpe... que quer? Sou franco... 
 
VALENTINA ‘Stá bem. ‘Stá bem! Não insisto:  é justo. (Tirando papéis do bolso)  Sabe o que é isto? 
 
O JOALHEIRO Olé! São cheques do banco! 
 
VALENTINA Que horas tem? 
 
O JOALHEIRO (vendo o relógio)  É meia hora. 
 
VALENTINA Pois vou buscar o dinheiro.  Quando vier o fazendeiro... 
 
O JOALHEIRO Vá descansada a senhora:  julguei que só mo daria  quando lho desse o sujeito.  Há de encontrar tudo feito,  quando voltar co’a quantia. 
 
VALENTINA (pondo o chapéu)  Posso fazer um bom gancho... 
 
O JOALHEIRO Quatro contos arrecada;  mas se está contrariada,  todo o negócio desmancho:  não tento... 
 
VALENTINA Espere-o. Adeus (Sai) 
 
O JOALHEIRO Vá descansada.   
 
CENA VII  O Joalheiro, só.
 
O JOALHEIRO É barato;  mas o lucro imediato  é bem bom, graças a deus!  Daqui a dez dias talvez  a joia não seja dela:  por cinco me há de vendê-la;  por sete a vendo outra vez.  (Desembrulha a caixa da joia, que tira da algibeira, abre-a, e contempla-a com ar compassivo) 
 
Alvos brilhantes, peregrina joia,  vou brevemente me ausentar de vós!  De vendedor não julgueis ser tramoia  este elogio que vos teço a sós! 
 
Ninguém nos ouve nem nos vê; portanto  não é suspeito o cândido louvor.  Sinto nos olhos da saudade o pranto,  sinto no peito a languidez do amor! 
 
Durante o tempo em que tu foste minha,  prenda formosa, prenda sem rival,  todos os dias à minh’alma vinha  lástima prévia... Adivinhava o mal! 
 
Adivinhava enfeitarias breve  o corpo impuro que te apeteceu;  foi rara joia de valor que teve  melhor destino que o destino teu. 
 
Ai, se eu te visse envelhecida, gasta...  toda arranhada... não fazia mal...  Mas nas orelhas de uma esposa casta...  prenda formosa, prenda sem rival!   
 
CENA VIII  O Joalheiro, Carvalho.
 
CARVALHO (entrando)  Ora viva! (À parte)  Ele por cá!  É mau sinal... (Vendo a joia)  E os brilhantes... 
 
O JOALHEIRO ‘Stava aqui há alguns instantes  a sua espera. 
 
CARVALHO Onde está  Valentina? 
 
O JOALHEIRO Saiu; tinha  algumas voltas que dar. 
 
CARVALHO E o senhor vem cá buscar  o quê? 
 
O JOALHEIRO Eu lhe digo... eu vinha... 
 
CARVALHO Para que voltou aqui? 
 
O JOALHEIRO Saiba vossa senhoria... 
 
CARVALHO Uma ridicularia  pela joia ofereci.  Não quer decerto vendê-la  por quatro contos... 
 
O JOALHEIRO A instâncias  das minhas circunstâncias,  sou obrigado a cedê-la. (Dando-lhe a joia)  Aqui tem. Tudo isto é seu.  De não vendê-la com medo  a qualquer outro, é que a cedo  pelo que me ofereceu. 
 
CARVALHO (sem aceitar a joia)  O quê? Pois por quatro contos  quer ma ceder?... Vale seis! 
 
O JOALHEIRO De quatro contos de réis  nós precisamos de pronto.  Se inda agora não cedi,  foi porque tinha contado com eles por outro lado...  É sua joia: ei-la aqui! (Entrega-lha)  É pechincha! Mas... que quer?  Tenho uma letra a vencer-se... (Vendo o relógio) E não me dá que converse  vinte minutos sequer. 
 
CARVALHO Se Valentina tivesse  dinheiro acaso, diria  que entre o senhor e ela havia  combinação. 
 
O JOALHEIRO (a meia voz)  Mas, se houvesse,  eu, muito em particular,  Tudo diria. 
 
CARVALHO Acredito (à parte)  Outro remédio — bonito — não tenho senão pagar! 
 
O JOALHEIRO Veja que esplêndidos são!  Veja que são opulentos! 
 
CARVALHO (deita a caixa da joia sobre o sofá, tira do bolso a carteira e dá notas do banco ao Joalheiro)  Oito notas de quinhentos! 
 
O JOALHEIRO (depois de conferir e guardar o dinheiro)  Da nossa casa o cartão  aqui tem. 
 
CARVALHO Faça favor... 
 
Traz estampilha? 
 
O JOALHEIRO Sim, trago... 
 
CARVALHO (apontando para a secretária)  Diga-me ali que está pago. 
 
O JOALHEIRO Pois não; é pouco trabalho.  (Senta-se à secretária, toma papel e pena)  Seu nome? — Que bom papel! 
 
CARVALHO O Tenente-coronel  Joaquim dos Santos Carvalho. 
 
(O Joalheiro escreve. À porta da esquerda, segundo plano, aparece João de Sousa) 
 
 
CENA IX  O Joalheiro, escrevendo, Carvalho, João de Sousa.
 
CARVALHO (admirado, vendo Sousa)  Ó compadre João de Sousa! 
 
SOUSA (também admirado)  Ó compadre! 
 
(Correm um para o outro e abraçam-se com efusão) 
 
O JOALHEIRO (parando de escrever, consigo)  Me enternecem!  (Aproximando-se dos dois, que novamente se abraçam em silêncio)  Uma vez que se conhecem,  mandem vir alguma coisa. 
 
ATO III A mesma decoração.
 
CENA I  João de Sousa, Joaquim Carvalho.
  (Este sentado na poltrona, aquele de pé) 
 
SOUSA  Agora, caro compadre,  que boas novas te dei  dos pequenos, da comadre,  que de saúde deixei,  explica a tua presença  aqui 
 
CARVALHO É bem natural. 
 
SOUSA  Se me concedes licença,  direi que começa mal:  meter aqui o bedelho  homem casado não vem!  E além de casado, velho!  De natural nada tem... 
 
CARVALHO E você? como é que explica  sua presença? Ande lá!... 
 
SOUSA  A minha só significa  que sou bom pai: aqui está!  Na casa em que estou agora  não era capaz de entrar,  me pagassem muito embora! 
 
CARVALHO (à parte)  E eu entro para pagar... 
 
SOUSA  Fui obrigado a fazê-lo...  Hei de contar-te depois.  Mas, tu, compadre! Um modelo! 
 
CARVALHO Ouve, e fique entre nós dois...  Porém, agora reparo  que não te queres sentar! 
 
SOUSA  Eu tenho um caráter raro,  tenho uma alma singular!  Sentar-me nestas cadeiras!  Livre-me Nosso Senhor! (Escarra e cospe)  Cuspir nas escarradeiras  farei... por muito favor.  Da morte embora nas ânsias,  sentar-me... Oh! Não sou capaz!  Eu não venço as repugnâncias  que esta miséria me faz!  Este luxo deslumbrante  é vil, é mais do que vil:  produto negro, infamante,  do falso amor mercantil!  Não sei que nome lhe quadre,  não sei seu nome qual é... (Outro tom) Você desculpe, compadre,  mas hei de ouvi-lo de pé. 
 
CARVALHO És rigoroso, contudo... 
 
SOUSA  Eu penso assim... 
 
CARVALHO Pensas bem. (Erguendo-se)  E para dizer-te tudo,  eu me levanto também. (Depois de alguma pausa)  Como sabes, compadre, vim à corte  vender uma partida de café;  era gênero de primeira sorte;  nos comissários não fazia fé.  Fiz bom negócio. Efetuada a venda,  as malas a arrumar me decidi.  Os deveres chamavam-me à fazenda...  Infelizmente Valentina vi... 
 
Encontrei-a no Prado Fluminense;  ela, a sorrir, mandou-me o seu cartão...  Um pecador que se já não pertence  tornei-me desde aquela ocasião. 
 
Vivemos sós. Aqui ninguém mais entra.  Neste retiro sinto-me feliz.  E a minha felicidade se concentra  no que ela pensa, ordena e diz! 
 
Forçoso é dar um paradeiro a isto!  Lá na fazenda espera-me o dever!  É grande a sedução, mas eu resisto:  e posso me ausentar quando entender! 
 
Com parcimônia me regrado tenho;  só um conto gastei; nem mais um vintém.  Só hoje é que quatro gastar venho  co’estes brilhantes que lhe dei. 
 
SOUSA (pega na joia; depois de examiná-la com indiferença)  Pois bem. (Deixa a joia onde estava. Pausa)  Compadre, vou expor-te:  apareceu lá na roça,  em minha casa... na nossa...  um rapaz aqui da corte.  Foi há seis dias... e meio.  Como pelo meu cunhado  me fora recomendado,  em minha casa hospedei-o.  Era muito divertido;  conversa muito bem;  finalmente, que haja alguém  mais simpático duvido.  Descobri (sabes, meu rico,  que não há quem me embarrele)  que entre minha filha e ele  havia seu namorico.  Tu sabes: eu sou pão-pão.  queijo-queijo; sabes? 
 
CARVALHO Sei. 
 
SOUSA  Por isso lhe perguntei  qual era sua intenção.  Era casar. Ela quer...  Eu não sou dos mais incautos,  pois não estive pelos autos...  e disse à tua mulher:  “Vamos ver se ele a merece.  Não é seguir boa trilha  entregar um pai a filha  a um homem que não conhece.”  — Portanto, a missão que trago  é indagar; tu bem compreendes que, se a filha me pretendes  e eu não te conheço, indago. 
 
CARVALHO Ele é só? 
 
SOUSA  Tem uma irmã  viúva e muito bonita,  que nesta cidade habita. 
 
CARVALHO Tu viste-a? 
 
SOUSA  Certa manhã  vi-lhe o retrato: é bonita  Ele ficou de voltar  para saber da resposta;  minha filha está disposta  a se esquecer, ou casar.  Minha medida acertada  não achas? 
 
CARVALHO Acho. 
 
SOUSA (inflamando-se)  Pois bem;  sabes, compadre, com quem  casava a tua afilhada,  se eu não fizesse este exame? 
 
CARVALHO (intrigado)  Com quem? 
 
SOUSA (indignado) 
 
Com um homem nojento,  um tipo asqueroso, odiento,  maroto, velhaco, infame! 
 
CARVALHO (benzendo-se)  Valha-me Nossa Senhora! 
 
SOUSA  Esse covarde, esse réu  de polícia, é chichisbéu  da sujeita que aqui mora!... 
 
CARVALHO De Valentina?! Não!... Qual!...  Enganaram-te compadre...  Pintaram contigo o padre...  Aqui não entra um mortal! 
 
SOUSA  Não entra! Digo-te mais:  esse miserável homem.  qual outros que à custa comem  destas harpias sensuais,  pelas famílias malditas,  é quem às compra lhe vai,  quem com ela às vezes sai...  É quem lhe traz as visitas!... 
 
CARVALHO E tu, por mais que me digas,  compadre, estás enganado. 
 
SOUSA  ‘Stou muito bem informado:  é seu chichisbéu! 
 
CARVALHO Cantigas! 
 
SOUSA  Tens uma venda nos olhos,  pois deixa que hei de arrancar-ta  enquanto é tempo, te aparte  destes ásperos abrolhos.  Não seja o tipo eterno  do ridículo matuto,  o lorpa, o simples, o bruto,  sem juízo, sem governo!  a quem já nem mesmo importa  mulher ou filha, se topa  um desses demos que a Europa  todo os dias exporta!  Como vês, compadre, aqui,  a este lupanar lascivo,  me trouxe melhor motivo  que o mau que te trouxe a ti.  Meu espírito recua  em frente desta desonra:  mas venho salvar a honra...  e tu vens perder a tua...  — Que mal vos fazem, serpentes — víboras vis, — não direi  homens assim (Aponta para Carvalho)  que bem sei  vos procuram imprudentes;  porém a esposa, que vive  da confiança do esposo,  e perde da alma o repouso  ao mais ligeiro declive  da sua felicidade?!  É o filho, cujo futuro  ‘stá no respeito seguro  do pai pela sociedade?...  Tua mulher nunca teve brilhantes. Nunca lhos deste,  e contudo os dá a peste  que na corte te reteve,  enquanto lá na fazenda  o obrigação te esperava  e ao deus-dará tudo andava!...  — Que o que digo não te ofenda;  mas o teu procedimento,  compadre, não tem desculpa!  Não lava tão grande culpa  sincero arrependimento!  — Vamos! nem mais estejamos  em casa desta mulher!  Amanhã, se Deus quiser,  o trem de ferro tomamos. (Pegando na joia)  A joia! ninguém a pilha!...  Sou eu que a quero guardar. (Abrindo a caixa)  Olha, isto fica a matar  na orelha de tua filha... (Guarda a joia na algibeira)  Como hás de ficar contente  — parece-me estar a ver — quando Laura agradecer  um tão bonito presente.  Ouve os meus conselhos sábios:  de Laura os beijos na testa,  certo valem mais que o que esta  mendiga te dá nos lábios.  Vamos! Anda! (Dá-lhe o chapéu e o sobretudo) 
 
CARVALHO (vestindo o sobretudo e pondo o chapéu)  Não discuto  sobre a verdade dos fatos,  que não sei se são exatos,  nem mentirosos reputo.  Vamos embora, mas quero  que, antes de irmos, te convenças  desses boatos que ofensas  me parecem. 
 
SOUSA  Pois espero  Nós aqui, com alguma arte,  tudo havemos de descobrir;  tomara que eu possa rir  de maneira que me farte. (Dispondo-se a sair)  Espera-me alguns instantes,  Em casa desta jiboia  não há de ficar a joia.  Confia-me os teus brilhantes. (Sai)   
 
CENA II  Carvalho, só.
 
CARVALHO Zombaram do compadre! Aquele coração  não pode alimentar tamanha perversão!  Valentina é um anjo: as lágrimas que chora  não se podem fingir. Não digo que me adora,  mas ama-me, decerto. Um anjo, que me diz:  “Se tu não fosses rico, eu era mais feliz!”  Eu não lhe pago o amor; apenas eu lhe pago  as cadeiras, o leito, o canapé que estrago  e os quadro que desfruto. O mal, o grande mal  foi vê-la e gostar dela. É muito natural  que um velho feio, achando uma mulher que o ame  que, sem saber se é rico, o seu amor reclame,  sinta que lhe desperta o morto coração. (Pausa)  Mas o compadre... Não! Não é possível! não!  O compadre... Ora adeus! Até causou-me tédio!  Vamos, Joaquim Carvalho: o que não tem remédio  remediado está. É preciso sair!  Mas não como ele quer; sair e não fugir!  A ingratidão não está na minha natureza.  As bichas hão de ser a última despesa...   
 
CENA III  Carvalho, Gustavo.
 
GUSTAVO (entrando sem cerimônia, sem reparar em Carvalho, pela esquerda, segundo plano) 
 
VALENTINA (Vê Carvalho e tira o chapéu atrapalhado)  Perdão... perdão... 
 
CARVALHO Quem é? 
 
GUSTAVO Senhor,  eu vinha procurar... o doutor... o doutor... 
 
CARVALHO O senhor, ao entrar, exclamou: — Valentina!  Pois é quem mora aqui. Que quer dessa menina? 
 
GUSTAVO Não! Vossa senhoria enganou-se... 
 
CARVALHO Ora qual!  Ouvi distintamente o seu nome. 
 
GUSTAVO Ouviu mal. 
 
CARVALHO Pior é essa! Ouvi — Valentina! 
 
GUSTAVO Eu procuro  o doutor... Perdigão... 
 
CARVALHO Ai, mau! 
 
GUSTAVO (à parte) Não acho furo! (Alto)  Julguei que aqui morasse o Doutor Perdigão:  É vossa senhoria? 
 
CARVALHO Ai, mau! 
 
GUSTAVO (à parte)  Que entalação! 
 
CARVALHO Antes de entrar aqui, devia bater palmas!  Nesta população de quinhentas mil almas  só o senhor assim procede! 
 
GUSTAVO Mas, senhor,  eu vinha procurar o doutor... 
 
CARVALHO Que doutor!  A senhora que aqui reside não é dessas...  Vá lá! Não continue! Sai-lhe o trunfo às avessas! 
 
GUSTAVO Pois bem, adeus; perdoe um desalmado! 
 
CARVALHO Bem! (Enquanto Gustavo sai por onde entrou)  Aqui não se costuma a desmentir ninguém. 
 
CENA IV Carvalho, só.
 
CARVALHO Que grandíssimo idiota!  Talvez que também suponha...  É muito pouca vergonha...  (Depois de dar alguns passos pela sala, para, como ferido por uma ideia súbita)  Esperem! Este janota  será o tal chichisbéu  de quem falou inda há pouco  o meu compadre?... Estou louco!  Não pode ser. Deus do céu!  Porém verdade, verdade,  não deve entrar um estranho  assim com tanto arreganho,  com tamanha liberdade  em casa e uma pessoa  que não conhece! Ele entrou,  e “Valentina” gritou!  Havia de entrar à toa  sem que por ela estivesse  autorizado? Não vê!  Ah! compadre, que você,  se não tem razão, parece...  (Fica pensativo. Senta-se no sofá) 
 
 
CENA V  Carvalho, Sousa.
 
SOUSA (entrando pela esquerda, segundo plano, e indo a Carvalho)  Donde estão os teus brilhantes  nem mil mulheres os tiram! (À parte)  Do bolso meu não saíram;  é bom que os julgues distantes pelas dúvidas... (Alto)  Então?  Que tens, que estás pensativo?...  dessa tristeza o motivo  ou motivos quais são?  Dar-se-á caso que o remorso  dos teus negros pecadilhos  contra a esposa e contra os filhos  se te escarranchasse ao dorso?  Serão saudades pungentes  daqueles que tanto adoras?  Como eles choram, já choras?  O que eles sentem já sentes?  Ou simplesmente suspeitas  são de que verdade era  quanto disse da megera  por quem a perder te deitas? 
 
CARVALHO (erguendo a cabeça)  Não é nada. 
 
SOUSA  Dentro em pouco  sucede à melancolia,  que o teu semblante anuvia  um contentamento louco!  (Aproximando-se de uma das janelas e entreabrindo a cortina com a bengala)  A recrudescer começa  o movimento das ruas. (Consultando o relógio)  Já passa um quarto das duas. (Olhando para a rua)  Compadre, vem cá depressa! 
 
CARVALHO (erguendo-se e aproximando-se de Sousa)  O que é? 
 
SOUSA (apontando para a rua) 
 
Vês ali parado  aquele sujeito... Aquele...?  Pois é o chichisbéu! 
 
CARVALHO (como reconhecendo)  É ele!... 
 
SOUSA  Vais ver se estou enganado,  ou se é certo o que te disse!  Há de ficar c'uma cara... 
 
CARVALHO (olhando para a rua)  Lá vem Valentina; para;  conversa com ele; ri-se!  Parece que ele lhe conta  a aventura de inda há pouco... 
 
SOUSA  Que aventura?... 
 
CARVALHO Que descoco!  Para este lado ele aponta. 
 
SOUSA (que tem observado;) Espera! Se não me engano  é a senhora do retrato! 
 
CARVALHO Quem? Aquela? (Aponta) 
 
SOUSA  Exato! Exato! 
 
CARVALHO Que é Valentina te digo! 
 
SOUSA  Valentina! Valentina!  Ela chama-se Joaquina  e é mana do tal amigo.  (Tirando Carvalho pelo braço)  Depressa! Esconde-te cá  Por detrás desta cortina,  se é Joaquina ou Valentina,  verás!  (Faz com que Carvalho se coloque atrás da cortina da outra janela. Olhando para a rua)  Eles aí vem já! (Indo para a outra janela)  Eu aqui também me escondo.  Não faças rumor! 
 
CARVALHO (escondido)  Descansa. 
 
SOUSA  Deixa, que a nossa vingança  há de aqui fazer estrondo! 
 
CARVALHO (pondo a cabeça para fora)  Mas que queres tu que eu faça? 
 
SOUSA  Se ver tudo não puderes,  ao menos ouve! 
 
CARVALHO Ah! mulheres!... 
 
SOUSA (abrindo a cortina com repugnância)  Pegar nisto! Que desgraça! 
 
CARVALHO É preciso ser malvada,  para que esta moça me iluda:  tantas provas dei... 
 
SOUSA  Caluda!  que sinto passo na escada. 
 
(Desaparecem ambos)   
 
CENA VI  Carvalho, Sousa, escondidos, Valentina, depois Gustavo.
 
VALENTINA (entra pela esquerda, segundo plano, e começa a procurar Carvalho)  Carvalho! Joaquim Carvalho!  Quincas! Quincas! Carvalhinho!  (Entra, procurando sempre, na direita, primeiro plano) 
 
CARVALHO (a meia voz, pondo a cabeça para fora)  Que diz a isto, ó vizinho? 
 
SOUSA (no mesmo)  É preciso tempo; dá-lho. 
 
(Escondem-se) 
 
VALENTINA (volta e convencida que está só, vai à porta da esquerda, segundo plano, e diz para fora)  Podes vir, que foi-se embora. (Vem sentar-se)  Fecha a porta à chave. (Gustavo entra) 
 
CARVALHO (à parte)  É ele. 
 
GUSTAVO Então foi-se embora aquele  ‘stúpido? 
 
CARVALHO (na janela, à parte)  Hein? 
 
VALENTINA Foi-se. 
 
GUSTAVO Inda agora  estava ele aqui. 
 
VALENTINA Já sei...  já me disseste... Mas vamos... 
 
GUSTAVO Lá vou. 
 
VALENTINA Tempo não percamos. 
 
GUSTAVO (sentando-se em uma cadeira)  Numa vila em que eu andei,  hospedou-me um fazendeiro  que se chama João de Sousa;  tipo que deve ter coisa  de cem contos em dinheiro.  Tem uma filha bem boa;  tivemos logo um derriço  pequeno... 
 
VALENTINA Não passou disso? 
 
GUSTAVO Nada! Há coisa que mais doa que uma carga de pau?  — O pai, que não é simplório,  deu-me a entender que o casório  não tinha nada de mau.  Não refleti um momento... 
 
SOUSA (à parte)  Mas eu é que refleti. 
 
GUSTAVO Sem mais nem menos, lhe pedi  a pequena em casamento... 
 
VALENTINA Mas isso não vem ao caso... 
 
GUSTAVO Do resto vou pôr-te ao fato:  eu levava o teu retrato  comigo, por mero acaso.  O velhote estava um dia  a meu lado, e viu nas malas...  (Eu estava a desarrumá-las..)  ...a tua fotografia.  Quis saber logo quem era!  Imagina o que lhe disse  — fora de certo tolice  falar verdade. 
 
VALENTINA Pudera!  Na tua situação! 
 
GUSTAVO Que eras minha irmão viúva... 
 
VALENTINA Tira o cavalo da chuva!  Pois lhe disseste isso?... 
 
SOUSA (à parte)  Cão! 
 
GUSTAVO O velho achou-te uma flor!  Muitos elogios fez-te!  Enfim, nunca tiveste  mais sincero admirador! 
 
VALENTINA Finalmente... o que concluis? 
 
GUSTAVO Que concluo? Ora essa é boa?  Que do velho na pessoa  raro tesouro possuis!  Armamo-lhe um forte logro!  Ele supõe que és honesta:  casa-se contigo. 
 
CARVALHO (à parte)  E esta?... 
 
GUSTAVO Por esse tempo é meu sogro.  Liquidamos o que houver (ação de furtar)  e fugimos para a América!  — Que tal esta ideia? 
 
VALENTINA Homérica! 
 
GUSTAVO É um país, como se quer, a América! De lá passamos  à Itália, à França, à Alemanha,  à Suíça, à Áustria, à Espanha!  Todo mundo visitamos!  quando voltarmos, ninguém  de nós se lembra, descansa... 
 
VALENTINA Só de ser rica a lembrança,  não sei por quê, faz-me bem. 
 
CARVALHO (à parte)  Custa-me a crer! 
 
GUSTAVO Mas que dizes?  Se tomas conta do pai  e a filha nas mãos me cai,  seremos muito felizes!  Eu, que desveladamente  faço a tua felicidade,  batendo toda a cidade,  buscando quem te frequente,  venho trazer-te a ventura,  a independência talvez! 
 
VALENTINA Mas trata-se desta vez  de uma arriscada aventura! 
 
GUSTAVO Que tem que seja arriscada?  Somos alguns trapalhões?  Já pensei nas precauções  que exige a empresa arrojada.  Minha irmã viúva morreu:  podes bem passar por ela, e o marido que foi dela  passa por marido teu.  Mudas de nome, isso sim!  Em lugar de Valentina,  tu ficas sendo Joaquina.  Ela chamava-se assim. 
 
(Batem à porta da esquerda, segundo plano) 
 
VALENTINA Quem bate? (A Gustavo)  Vai para a sala  de jantar. Já lá vou ter.  (Gustavo saí pela direita, segundo plano. Valentina abre a porta. Entra o Joalheiro)  Ah! é o senhor! 
 
 
CENA VII  Carvalho, Sousa, escondidos, Valentina, o Joalheiro.
 
O JOALHEIRO Vim trazer  o seu recibo. Esperá-la  não pude, que o fazendeiro  estava aqui. 
 
VALENTINA Bem, dê cá. 
 
(O Joalheiro dá-lhe o recibo, que ela lê) 
 
O JOALHEIRO ‘Stá tudo conforme? 
 
VALENTINA Está! (Tirando um maço de notas da bolsa e dando-lhas) 
 
Aqui tem o seu dinheiro. 
 
O JOALHEIRO (depois de contar as notas)  Dois contos. Está exato. (Guardando-as)  Muito obrigado. — A menina  fez um negócio da china!  Por um preço tão barato  nunca brilhantes daqueles  ninguém possuiu! 
 
VALENTINA Lamento  que aquele tolo e avarento  não pagasse tudo. 
 
O JOALHEIRO E eles.  Os brilhantes? Já lhos deu.  o fazendeiro? 
 
VALENTINA Inda não;  mas não tarda aí. 
 
SOUSA (à parte)  Ladrão! 
 
O JOALHEIRO Pois aproveite-o. 
 
CARVALHO (à parte)  Judeu! 
 
O JOALHEIRO (apertando-lhe a mão como para retirar-se)  Se os brilhantes quer vender... 
 
VALENTINA Por quanto? 
 
O JOALHEIRO Por cinco contos... 
 
VALENTINA (pensando)  Ganho três 
 
O JOALHEIRO (deixando de apertar-lhe a mão e batendo no bolso)  Já cá estão prontos;  se quiser, é só dizer... 
 
VALENTINA (pensando) Não é má ideia, não... (Resoluta)  Vou consultar com Gustavo...  Espere um pouco... 
 
(Sai pela direita, segundo plano) 
 
 
CENA VIII  Sousa, o Joalheiro, Carvalho.
 
O JOALHEIRO (que se julga só)  Bravo!  Um conto de pé pra mão! 
 
SOUSA (saindo do seu esconderijo e tomando o braço do Joalheiro)  Passe já para cá os cinco contos. Já!  Não pense! Não reflita! A joia, ei-la aqui está!  (Tira a joia da algibeira e arremessa-a aos pés do Joalheiro) 
 
O JOALHEIRO (atônito, apanhando a joia) Mas, senhor... 
 
CARVALHO (da cortina)  Não recuse! Em flagrante delito por crime preso está de estelionato!  (Puxando um apito, a Sousa)  Apito? 
 
SOUSA  Não apites! não! — Já cinco contos de réis!  E dê-se por feliz que eu não lhe peça os seis! 
 
O JOALHEIRO (a Carvalho)  Mas vossa senhoria há de passar recibo!  (Dá o dinheiro a Sousa)  Carvalho eu dou-lhe o seu, cá está! (Dá-lho) 
 
SOUSA (tendo verificado o dinheiro)  E saiba que o proíbo de estar  mais tempo aqui! Já! Rua! 
 
(O Joalheiro sai pela esquerda, segundo plano) 
 
CARVALHO Muito bem! 
 
SOUSA  Esconda-se, compadre: os ladrões aí vêm. 
 
 
CENA IX  Carvalho, Sousa, escondidos, Valentina, Gustavo.
 
VALENTINA (entrando pela direita, segundo plano, acompanhada por Gustavo)  Já cá não está, 
 
GUSTAVO Foi-se embora? 
 
VALENTINA Arrependeu-se talvez... 
 
GUSTAVO Pois olha: mesmo por três  é negócio. 
 
SOUSA  Nós agora!  (Salta do esconderijo e agarra Gustavo pelo pulso)  Ai, grandíssimo cachorro! 
 
CARVALHO (o mesmo com Valentina)  Canalha! corja! canalha! 
 
SOUSA (agitando a bengala)  Vais ver como isto trabalha! 
 
CARVALHO Pede já perdão! 
 
VALENTINA (caindo de joelhos)  Socorro!... 
 
CARVALHO (cruzando os braços)  Pois lucrei com a minha vinda aqui! 
 
SOUSA  Com que tua irmã  é uma torpe barregã,  e tu és mais torpe ainda!  Apanha! (Dá-lhe com a bengala) 
 
GUSTAVO (esquivando-se)  Senhor! 
 
SOUSA (perseguindo-o e dando-lhe)  Apanha! 
 
Toma! Toma! 
 
GUSTAVO (no mesmo)  Ai! Quem me acode? 
 
SOUSA  Toma, patife! 
 
GUSTAVO Não pode! 
 
(O Joalheiro entra pela esquerda, segundo plano e interpõe-se) 
 
CARVALHO Pouca vergonha tamanha  nunca se viu! 
 
O JOALHEIRO (apartando Sousa e Gustavo) Mas que é isto? 
 
SOUSA  Deixe matar este cão! 
 
CARVALHO (a Gustavo)  Que é do doutor Perdigão? 
 
O JOALHEIRO Que fez o pobre de Cristo? 
 
VALENTINA (como ferida por uma ideia súbita)  E a joia? 
 
(Cai desmaiada em uma cadeira; Sousa e Carvalho dão-se o braço e descem à cena. Gustavo corre para Valentina, e vendo que está desmaiada, sai pela direita, primeiro plano. Saída falsa. O Joalheiro fica ao fundo como que apreciando) 
 
SOUSA (a Carvalho)  ‘Stá satisfeita  de todo a nossa vingança!  Partamos sem mais tardança! 
 
CARVALHO É compadre, a conta feita,  saio com o cobre que trouxe. 
 
SOUSA  Eu sinto um prazer estranho;  mas hei de tomar um banho  quando sair deste alcouce. 
 
GUSTAVO (volta com um frasquinho, que faz aspirar Valentina) Valentina! 
 
SOUSA (ao público) O exemplo importa  da estranha aventura nossa,  não só aos tolos da roça  como aos espertos da corte.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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