Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A JOVEM CHARITY / Georgette Heyer
A JOVEM CHARITY / Georgette Heyer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando o destino... e um impulso cavalheiresco... convergem para colocar no caminho do visconde Ashley Desford a graciosa e encantadora Cherry Steane, uma jovem abandonada que vive da caridade de parentes, a quem mais ele poderia recorrer em busca de ajuda senão sua amiga de infância, Henrietta Silverdale? Afinal, embora tenham rompido o noivado anos atrás, Ashley e Henrietta nunca deixaram de ser amigos.
Contudo, enquanto Ashley sai à procura do avô sovina de Cherry e de seu irresponsável pai, visitando lugares não muito bem frequentados, Henrietta se pergunta se ele, finalmente, se deixou atingir pela flecha do amor. No entknto, sem a oportuna intervenção de seu irmão Simon e do honrado pretendente de Henrietta, Ashley,pode estar prestes a cometer a maior tolice de sua vida...

 

 

 


 

 

 


Capítulo I

Para um homem de idade avançada, sofrendo de dispepsia e violentas crises de gota, obtendo algum prazer P somente quando suas dores eram aliviadas, o conde de Wroxton se divertia na medida do possível. Ultimamente estava concentrado na agradável tarefa de desenvolver uma diatribe sobre os defeitos do seu herdeiro. Para uma pessoa sem experiência na arte da crítica, a tarefa certamente parecia injusta, pois o visconde Ashley Desford possuía todos os atributos de um filho que seria motivo de orgulho para qualquer pai. Somando-se ao belo semblante, e uma figura ágil e atlética, ele tinha modos afáveis provenientes tanto de uma amabilidade inata, quanto da criação.

Tinha também um considerável histórico de paciência e senso de humor que transparecia em um sorriso, que brotava dos olhos, considerado por muitos, irresistível. Seu pai não fazia parte deste grupo. Aliás, considerava o status irritante.

Era mês de julho, mas o tempo estava tão distante do abafamento esperado para a estação, que o conde mandou

acender a lareira da biblioteca. Sentados um de cada lado da lareira, estavam o conde, com um pé enfaixado sobre um banquinho, e seu filho, após ter discretamente afastado a cadeira do calor emitido pelas brasas. Ashley usava paletó, calça de camurça e botas de cano alto, um perfeito traje matutino para qualquer cavalheiro em estada no campo. A elegância derivada do corte do paletó e do arranjo do lenço de pescoço deu ao pai uma desculpa para classificá-lo como um desprezível almofadinha. Ao que ele reagiu com um protesto moderado:

__ Não, não, Um verdadeiro dândi ficaria chocado ao ouvir isso!

__ Concluo , então que você se considere um coríntio.

P a r a s e r h o n e s t o , s i r n ã o m e c o n s i d e r o n a d a discordou Ashley. Esperou por um momento, observando tanto com empatia quanto com divertimento o ranger de dentes do pai, antes de completar em tom bajulador: __ Agora diga, o que fiz para merecer uma repreensão sua?

- Não seria melhor indagar o que fez para merecer um elogio meu? Nada! Você é um cabeça de vento! Um falastrão, que se importa com o próprio nome tanto quanto um plebeu qualquer! Um perdulário. Não precisa me lembrar que não depende de mim para gastar com os cavalos, apostas e bocados de musselina, pois não me esqueci que aquela maluca da sua tia-avó deixou toda a sua fortuna para você, por meio de uma carta branca para que você possa cometer todo tipo de extravagância tola. Não posso dizer mais nada, uma vez que ela era tia de sua mãe.

— Wroxton fez uma pausa, lançando um olhar desafiador ao filho.

—Certamente, papai!

—Se ela tivesse estipulado que a fortuna deveria ser usada apenas para o sustento de sua esposa e família, eu consideraria o legado adequado - anunciou Wroxton. — Não que na época, ou neste exalo momento, eu não possa aumentar a sua mesada para que você tivesse condições de arcar com as despesas de um homem casado.

Outra pausa se seguiu. Pressentindo que o pai esperava algum comentário, disse educadamente que lhe era muito grato.

— Ah, não é não! -- retrucou Wroxton. -- E quer saber mais? Só acreditarei na sua gratidão quando me der

um neto, não importa o quanto a fortuna da sua tia queime no seu bolso. Belo bando de filhos eu tenho! -- De repente o alvo da revolta foi ampliado. -- Nenhum de vocês se importa com a linhagem da família. Na minha idade, eu esperava ter um bom número de netos para alegrar meus últimos dias. Mas eu tenho algum? Não! Nenhum!

—Na verdade o senhor tem três — respondeu Ashley, desconcertado. — Não que do meu ponto de vista elas o

tenham alegrado, mas não se pode deixar de considerar a prole de Griselda.

—Meninas! - - crispou Wroxton, fazendo um gesto de desdém com a mão. — Elas não contam! O que eu quero são varões, Ashley! Carrington, para sucederem o nosso nome, honra e tradição!

—Para isso, não precisa ter muitos netos! Um deve bastar, sir, e mesmo que eu tivesse me casado quando tinha vinte anos,e minha infeliz esposa tivesse dado à luz um par de gémeos a cada ano, o senhor ainda estaria insatisfeito, desconsiderando a probabilidade de que poderiam vir várias meninas em meio ao bando de netos.

A tentativa de melhorar o humor do pai devia ter funcionado, pois Wroxton pareceu se dar conta do ridículo; não fosse por uma pontada no seu pé enfaixado que o fez franzir a testa e proferir em um tom ameaçador:

-Não seja impertinente! Não preciso lembrá-lo de que, graças a Deus, você não é meu único filho!

— Não — concordou Ashley, com toda a cordialidade. -E apesar de crer que Simon ainda seja muito jovem

para a paternidade, tenho esperanças de que Horace possa lhe conceder esta alegria, quando terminar sua ocupação.

- Horace! Vou me considerar um sujeito de sorte se ele não voltar para casa de braço dado com uma francesa

sem raízes!

—Acho pouco provável. Ele nunca apreciou muito as estrangeiras, e é tão preocupado no que diz respeito à família quanto o senhor.

—Acho que não viverei para comprovar isso - - resmungou Wroxton, buscando refúgio na decrepitude, mas estragando levemente o efeito ao adicionar com amargor: __Como se qualquer um de vocês se importasse...

—Não, papai! __ Ashley riu, mas em um tom afetivo.


- Não tente me alfinetar! Além do mais, o senhor é forte erobusto, tirando a gota, que irá superar facilmente se não beber a metade de uma garrafa de Porto por vez. Ainda vai viver muito. Eu também quero viver o suficiente para passar um sermão em um filho meu assim como o que está passando em mim hoje.

Wroxton ficou feliz em saber que seu filho o considerava em boas condições de saúde. Por um momento teve vontade de dizer que se quisesse opinião sobre os seus hábitos etílicos, o procuraria. Mas descartou a ideia e preferiu não embarcar em uma discussão num terreno onde estava vulnerável.

— Um filho seu? Dispenso bastardos.

- Não se preocupe. Que eu saiba não tenho nenhum, sir.

- Fico feliz em saber. Se tivesse aceitado o casamento que planejei para você, eu poderia estar com um neto

sentado sobre o meu colo neste exato momento.


—Hesito em contrariá-lo, mas creio que qualquer criança que tentasse, neste momento, sentar-se sobre o seu colo só iria lhe causar repulsa e dor.

—Oh, muito bem, não leve as minhas palavras ao pé da letra. — Wroxton admitiu a provocação com uma gargalhada.

- O ponto é que você se comportou muito mal quando se recusou a pedir a mão de l lenrietta Silverdale. Eu não esperava tamanha ingratidão, Ashlcy. Qualquer um poderia supor que eu tivesse escolhido uma noiva que não era do seu agrado, mas não, optei por uma moça que sempre foi muito próxima a você, por quem imaginei que tivesse uma afeição sincera. Eu deveria ter pensado além da sua felicidade. E o que ganhei em troca? Diga-me.

-Ora, pelo amor de Deus, papai! -- exclamou Ashley, pela primeira vez demonstrando impaciência. — O senhor

precisa lembrar na minha cara o que aconteceu nove anos atrás? l l e l l a desejava se casar comigo tanto quanto eu com ela.

__Se fo r me dizer que não sentia afeição por ela, poupe o seu fôlego.

__Eu nutria por ela um carinho fraternal, e só. Ainda somos bons amigos. Mas um homem não tem vontade de

se casar com sua irmã, por mais que goste dela. A verdade, papai, é que o senhor e sir John armaram o esquema entre vocês, e não imagino como os dois puderam ser tão tolos a ponto de supor, depois de nos criarem como irmãos, que esse fabuloso plano pudesse dar certo. Não, não me repreenda por tê-lo chamado de tolo.

- Você tem lábia, e pensa que vai me amolecer com isso.

— Sei muito bem que não conseguirei. Mas gostaria de perguntar, sir, por que o senhor, que não me prendeu antes dos trinta anos, estava tão determinado em me ver agrilhoado antes mesmo que eu tivesse completado a maioridade?

- Para mante-lo distante de confusões — afirmou Wroxton, mais por presteza do que por sabedoria.

—Ah! Então foi por isso? Eu bem que suspeitava que no seu tempo o senhor não fosse o exemplo de retidão como quis que acreditássemos!

—É claro que nunca fui nada disso.


- Eu já imaginava — concordou Ashley, rindo.

- Tive as minhas aventuras como qualquer outro rapaz, mas nunca me envolvi em situações embaraçosas.

A declaração final fez o sorriso de Ashley desaparecer. Ele lançou um olhar questionador ao pai com as sobrancelhas cerradas.

— O que significa isso? Se foi uma indireta para mim,permita-me dizer que o senhor está mal informado.

- Não, não. Estou falando de Simon.

- Simon?! O que diabos ele fez desta vez?

— Não diga que não sabe que ele anda envolvido com um grupo da pior ralé, calhordas, cometendo todo tipo de

extravagâncias, criando confusão e balbúrdia...

- Não fale assim, sir — Ashley interrompeu, sem cerimónia, a acusação exagerada. - - Não o vejo com muita frequência, mas acredite, eu já teria ouvido falar se ele estivesse andando em tais más companhias. Por Deus, qualquer um que o ouvisse agora iria supor que Simon entrou para o clube

dos cafajestes, ou que termina as noites na sarjeta ou em uma casa suspeita. Suponho que o senhor não deva apreciar muito as companhias do meu irmão. A mim não são simpáticas apenas porque não sou mais tão jovem, e já superei os meus dias de inquietações. Mas os amigos de Simon não são "ralé", e muito menos "calhordas"! O senhor usou termos muito fortes, papai. li uma pena que você não o veja muito. Eu já deveria saber que você não considera seu irmão um problema.

- Concordo — respondeu Ashley com toda a franqueza.

Imagino que seria um desperdício de tempo e fôlego

se lhe pedisse o favor de avaliar a situação mais de perto — solicitou o conde, visivelmente controlando o temperamento.

-De fato, papai! Além do mais, o senhor acha mesmo que ele me daria ouvidos?

— Bem, apesar de todos os seus defeitos, você é um bom cidadão, e isso graças à educação que lhe dei.

Disseram que os jovens tendem a seguir o seu exemplo, por isso não duvido que seja mais fácil para você influenciar seu irmão, e não eu.

- Se o senhor tivesse tido um irmão, papai, saberia que os mais jovens são muito mais propensos a ir contra os conselhos dos irmãos mais velhos do que seguir a liderança. Sinto muito desapontá-lo, mas não vou me intrometer na vida de Simon. E não creio que haja necessidade de que qualquer pessoa o faça. Mas se acha mesmo necessário, então digo que é função sua controlar as atividades dele, e não minha.

— E como eu poderia controlar?! -- interpelou o pai em uma explosão. — Ele é um perdido, e apesar de você

me considerar um tolo, prometo que não hesitarei em cortar a mesada do safado. O bom seria se ele se metesse em unia enrascada e eu tivesse de resgatá-lo de uma prisão para devedores. Faria bem a ele passar uns dias na cadeia.

- Sabe de uma coisa? O senhor está vendo um futuro muito obscuro para o Simon. Gostaria que o senhor

não se preocupasse tanto por ele, por mais que isso o incomode.

- Eu deveria ter imaginado essa sua reação — apontou o lorde, assaltado por outra pontada de dor. — Vocês são todos

iguais. Por que acabei no comando de um bando de egoístas, inúteis e ingratos eu não sei. Sua mãe mimou vocês, é claro, e eu fui tolo o bastante para permitir. E você é o pior de todos. Lavo as minhas mãos, e quanto antes partir, mais feliz ficarei. Não sei o que o trouxe aqui, mas se foi para me ver, não deveria nem ter se dado o trabalho.

- Bem, neste caso, sir, eu me retiro — anunciou Ashley.

- Nem mesmo ofereço um aperto de mão, para me poupar de uma recusa fria.

— Arrogante — exaltou o pai, estendendo a mão.

- Cuide-se, papai. Adeus. — Ashley beijou-lhe a mão em sinal de respeito.

— Suponho que tenha vindo para casa porque queria algo __

Wroxton comentou, antes que o filho saísse

da sala.

-É verdade... -- observou Ashley em tom de malícia, lançando um olhar por cima do ombro. — Gostaria ver minha mãe.

Então se retirou, fechando a porta com firmeza para a explosão de ira que se seguiu.

Quando chegou ao vestíbulo, deparou-se com o olhar triste do criado, que ouvira parte da discussão.

- É a última vez que olha para mim, Pedmore. Meu pai me expulsou de casa. Segundo ele, sou um desmiolado

inútil, e um arrogante, além de uma porção de outras coisas que não consigo me lembrar no momento. Você tinha ideia de que ele pudesse ser tão cruel?

- É a gota, milorde. A dor sempre o deixa irritado. — O mordomo estalou a língua em sinal de desaprovação e meneou a cabeça.


—Irritado? — ecoou Ashley. — A verdade é que ele fica lançando adagas contra os desavisados que cruzam seu

caminho, usando a doença como desculpa.

—Não cabe a mim concordar ou discordar do senhor __ observou Pedmore, muito sério. -- E, se me permite

dar-lhe um conselho, conhecendo seu honrado pai há muito mais tempo do que o senhor, eu respeitosamente sugiro que não leve em consideração nada do que ele lhe disser quando estiver sofrendo de uma crise de gota, pois não é o que sente de fato; não com relação ao senhor. Não se ofenda com o que ele disse, milorde, seja lá o que tenha sido.

— Pensa que não sei disso, Pedmore? Diga-me, onde encontro minha mãe?

- Na sala de estar, milorde.

Ashley assentiu e subiu a escadaria larga. A mãe o recebeu em seu santuário com um sorriso caloroso e uma mão estendida.

—Entre, meu querido! Posso apostar que acabou de ouvir um daqueles sermões...

—Oh, sim — disse, brincalhão, beijando-lhe a mão. — Ele ralhou comigo no seu famoso estilo. Na verdade, informou que não quer me ver tão cedo.

—Céus! Você sabe que ele não quis dizer isso. Sim, claro que sabe, você sempre entende as coisas sem precisar de explicações, não é mesmo?


- Será que entendo? Já não tenho mais tanta certeza.

- Oh, não se importe com o que ele disse — assegurou ela, numa voz confortante. — É tudo culpa da gota. Depois que a crise passa, seu pai em geral é uma pessoa muito gentil, e tenta-se desculpar por ter se comportado de modo pouco moderado. Creio que hoje à noite ele não estará para muito gracejo, mas tenho esperança de que amanhã

se contente com um mingau de pão, ou um caldo de galinha, e melhore o humor.

— Estou preocupado com a senhora, minha mãe. Não sei como suporta a sua vida. Eu não aguentaria.

__ Suponho que não — ela respondeu, olhando para o filho com um sorriso nos lábios. — Mas você não o conheceu quando jovem, e naturalmente nunca se apaixonou. Mas eu sim, e me lembro de quão alegre, belo e espirituoso ele era, e de como fomos felizes. E ainda nos amamos.

—Ele a trata mal? — Ashley indagou com ar preocupado.

Oh, não, nunca! Às vezes ralha comigo, mas nunca atirou nada contra mim, nem mesmo quando ouso sugerir que ele deveria adicionar um pouco de ruibarbo ou água no vinho, o que é um excelente remédio para indisposição de estômago, mas ele nunca aceita. Na verdade, a sugestão o aborrece muito.

—Não me surpreende. Não sei como ele não atirou a bebida na senhora.

—Sim, foi o que ele disse, mas não o fez. Só riu como você. Mas me conte o que se passou entre vocês dois que aborreceu tanto seu pai?

—Não consigo imaginar o motivo de tanto aborrecimento. Certamente não foi nada que eu disse, pois nenhuma

palavra insensata escapou dos meus lábios. — Ashley fez uma pausa, recapitulando o que tinha se passado na biblioteca, então uma ruga voltou à sua testa. — A senhora não vai acreditar, mas ele se lembrou da tentativa frustrada de me casar com Hetta.

—É mesmo? Muito inapropriado.


- Mas por que será que ele foi se lembrar dessa história depois de tanto tempo? Faz anos que não ouço esse assunto.

- É exatamente isso que torna seu pai uma pessoa tolerável. Ele tem um temperamento explosivo, mas nunca fica se lastimando, ou remoendo o passado. Acho que isso voltou à tona porque ele soube que a doce Henrietta encontrou um pretendente.

- É mesmo? Quem é o noivo?

— Acho que você não o conhece, pois o rapaz chegou recentemente de Hertfordshire, e creio que raramente vá a Londres. Ele é primo do sr. Bourne, de quem herdou a Mansão Marley. De acordo com lady Draycott, o rapaz é uma pessoa excelente, muito respeitável, possui múltiplos talentos e modos distintos. Ainda não o conheci pessoalmente, mas espero que tudo dê certo, pois tenho muita estima por Henrietta, e sempre desejei ve-la bem estabelecida. E se lady Draycott merece algum crédio, este sr. Nethersorle... não, acho que é Nethersole, ou algo assim, parece ser o homem certo para ela.

__Pelo que disse, parece ser um sujeito muito enfadonho, isso sim.

__ Talvez. As pessoas que possuem tais virtudes sempre um pouco entediantes, Ashley. A situação toda me parece curiosa. No entanto, não podemos nos esquecer de que lady Draycott não é de todo confiável, e acho até que pode ter exagerado. Ela costuma considerar santos todos os que lhe agradam, e mau-caráter todos de quem não gosta.

Bem, ela diz que você é um homem de caráter, e muito educado.

- Muita gentileza da parte dela. Fico aliviado em saber que lady Draycott pensa assim de mim. Ela riu.

— Sim, é verdade. Você tem carisma, meu filho. E que triste seria ver tais poderes de atração sendo desperdiçados.

— Ela se inclinou para a frente para dar um beliscão no queixo do filho, seus olhos refletindo o gracejo. — Você não me engana, meu filho. Sei que é um bon vivant, e aprendeu direitinho comigo como persuadir seu pai. Mas eu gostaria muito que você conhecesse uma boa moça, e se acertasse com ela. Por favor, não me leve a mal. Não é minha intenção aborrecê-lo.

—Não mesmo? Peço que diga a verdade, minha mãe. Nove anos atrás a senhora de fato desejou que eu pedisse a

mão de Hetta? Gostaria mesmo de tê-la como nora?

—Que mau juizo você faz de mim, meu querido! Chegou a pensar que meu desejo fosse que você se cassasse com uma moça por quem não sentia amor. Pode ter certeza de que tenho uma grande estima por Hetta. Em todo caso, isso já é passado, e não existe nada mais cansativo do que ficar lembrando o que já passou. Prometo receber muito bem a noiva que você escolher com o mesmo prazer que irei ao casamento de Hetta com o homem que ela escolheu.

—Aquele, cujo nome a senhora não se lembra? Os Silverdale estão em Inglehurst? Há dias que não vejo Hetta na

cidade Pelo que ela me contou, da última vez que nos encontramos no baile dos Castleagh, suponho que elas já tenham ido p a r a Worthing.

— Lady Silverdale — disse ela, num tom indiferente depois de descobrir que a única casa de aluguel que ela

poderia tolerar em Worthing não estava disponível para este verão, afirmou que os ares marítimos sempre lhe

causaram doença biliar, e por isso preferiu ir descansar em inglehurst.

__ Ela tem um genio terrivel, não é? __ observou Ashley. __ Suponho que a mudança de planos tenha sido melhor para Hetta, agora que tem umnovo pretendente. Amanhã, quando estiver a caminho de Londres, passarei em Inglehurst para tentar descobrir quem é esse tal de Nether-sei-lá-o-quê!

—Meu querido, tem certeza de que não será inadequado abordar tal assunto com Hetta? — indagou lady Wroxton em tom de censura.

—Claro que não. Não existem segredos entre mim e Hetta, mamãe!

Ashley deixou a casa dos pais na manhã seguinte, sem solicitar por outro encontro com o pai. E uma vez que o conde raramente deixava o quarto antes do meio-dia, não haveria mesmo chances de vê-lo. Ele tomou um excelente desjejum sozinho, subiu para se despedir da mãe, deu algumas instruções finais ao seu valete, que seguiria com ele e a bagagem até Hampshire, e subiu em sua carruagem quando o relógio marcava onze horas em ponto. Quando ouviu-se o som da última chicotada, ele já estava fora de vista, descendo em disparada a longa avenida que conduzia aos portões de entrada da luxuosa propriedade de campo.

A velocidade com que conduzia os cavalos poderia assustar pessoas que não tivessem o controle de nervos do criado de meia-idade que estava a seu lado; mas Stebbing, que o servia desde a adolescência, tinha uma disposição que fazia jus ao seu semblante severo e anguloso. Estava sentado de braços cruzados sobre o peito, com uma fisionomia despreocupada.

A carruagem que Ashley conduzia não era exatamente um veículo de corrida, mas tinha sido feita a partir de um proje-to seu por Hatchett, de Longacre, e sua leveza era tanta que não pesava para os cavalos. Se puxada pelos animais certos, era capaz de cobrir longas distâncias em um curto espaço de

tempo. Em geral, Ashley costumava usar apenas uma parelha de cavalos, mas quando saía para longas viagens adicionava mais dois batedores. Nessa ocasião, estava seguindo com uma bela dupla de cavalos cinzentos, e se eles mantivessem os dezesseis quilómetros por hora frequentemente anunciados nos cadernos de vendas do Morning Post, o visconde alcançaria seu destino antes do meio-dia.

Inglehurst era uma bela propriedade, que pertencera ao velho amigo de Wroxton. O atual proprietário, sir Charles Silverdale, a herdara de seu pai quando ainda se encontrava em Harrow e não tinha atingido a maioridade, ou, de acordo com os que torciam o nariz para seus modos dissolutos, ainda não demonstrara interesse em assumir as responsabilidades ligadas à herança. Sua fortuna era controlada por tutores, cavalheiros cujas vidas tinham sido dedicadas à lei e não tinham nada além um mero conhecimento de como administrar a propriedade, razão pela qual compartilhavam os cuidados das terras com o administrador de Charles e sua irmã, a srta. Henrietta Silverdale.

O mordomo, uma figura muito distinta, recebeu Ashley com uma reverência, e disse que sentia informar que a patroa, depois de uma noite maldormida, ainda não tinha descido, e assim não poderia recebê-lo.

— Baixe as expectativas, Grimshaw — Ashley o repreendeu. — Você sabe muito bem que não vim visitar sua patroa. A srta. Silverdale está em casa?

Grimshaw se endireitou o suficiente para dizer que achava que a senhorita poderia ser encontrada no jardim, mas sua expressão, enquanto observava Ashley contornando a casa, era de pura censura.

O visconde encontrou Henrietta no canteiro de rosas, acompanhada de dois cavalheiros; um era conhecido, o outro, um estranho.

— Ash! — ela o saudou, estendendo-lhe as mãos. — Pensei que estivesse em Brighton! O que o trouxe até Hertfordshire?

Ashley segurou as mãos delicadas, mas beijou-a no rosto.

— Devoção filial, Hetta! Como tem passado, minhaí querida? Não que eu precise perguntar. Por sua fisionomia, vejo que está muito bem. - - Meneou a cabeça, sorrindo para os dois cavalheiros presentes, e lançou um olhar questionador para o desconhecido.

— Não creio que conheça o sr. Nethercott, conhece, Ash? - indagou Henrietta. — Sr. Nethercott, permita-me

apresentar-lhe lorde Ashley... Ele é como um irmão adotivo para mim! Os dois homens trocaram apertos de mão, medindo-se discretamente. Cary Nethercott era um pouco mais velho que Ashley, mas não possuía a mesma segurança do visconde. Seus modos, apesar de refinados, tinham uma boa dose de timidez. He era alto e mais encorpado que Ashley, e apesar de estar mijado com distinção, dava para notar que se tratava de um homem que não andava de acordo com a moda vigente. Com tiin corpo bem-proporcionado e um semblante agradável, sua i-pressão habitual era grave, mas quando sorria sua fisionomia loniava-se mais gentil.

Creio que nunca nos encontramos — garantiu Ashley. O senhor se mudou há pouco tempo para cá, não é

mesmo? Minha mãe me contou que o senhor é o herdeiro do sr. Bourne.

- Sim, eu sou — confirmou Cary. — O que parece muito i .n unho, pois mal o conheci!

__ Sorte a sua! — Ashley exclamou. — Aquele foi o velho excêntrico que já conheci! Lembra-se da carreira que ele leu quando nos perdemos nas suas terras, Hetta?

__ E como me lembro! Isso porque não estávamos fazendo n a d a de errado. Espero, sr. Nethercott, que não me coloque para correr caso eu ultrapasse os limites da propriedade Marley.

__ Pode estar certa de que não farei isso — assegurou o o u t r o , com um sorriso caloroso.

Nesse ponto, o génio forte de Beckenham o impulsionou a entrar na conversa.

__ De minha parte, posso garantir, srta. Silverdale, que se um dia por acaso vier a se perder nas minhas terras, elas passarão a ser consideradas solo sagrado. Pelo menos, serão um dia, quando a propriedade for minha. Como eu queria que Foxshot fosse um pouco mais perto de Inglehurst!

Então, ao perceber que Cary sustentava um sorriso ameaçador, Beckenham se calou, ruborizado.

- Muito bem — aprovou Ashley, dando um tapa no ombro do outro. — Você deveria estar muito grata ao sr.

Beckenham, Hetta!

— É claro que estou — disse ela, sorrindo gentilmente para seu jovem admirador. -- E se Foxshot não ficasse a quinze quilómetros daqui, eu certamente vagaria a esmo por lá!

- Bem, creio que já é hora de partimos, e permitir que a srta. Silverdale converse em paz com o visconde —

Cary Nethercott sugeriu calmante.

O sr. Beckenham beijou-lhe a mão com reverência, mas seu rival mais velho simplesmente trocou um aperto de mão, pedindo que ela transmitisse seus cumprimentos à mãe. Em seguida despediu-se de Ashley, dizendo que esperava ter o prazer de encontrá-lo novamente, e partiu em seguida.

— Ele é melhor do que eu esperava - - notou Ashley, observando com olhos críticos a partida do outro. —

Mas não acho que servirá, Hetta. Ele não é o homem certo para você!

Na opinião da maioria das pessoas, Henrietta era dona de um semblante bonito devido aos olhos claros e expressivos, uma vez que suas feições eram marcantes demais. Se ela estivesse aborrecida, os olhos clareavam, mas assim que se acalmava eles escureciam e brilhavam; podiam soltar faíscas de raiva; ou, mais frequentemente, de alegria. Quando encarou Ashley eles brilhavam com um misto de surpresa e bom humor.

- Você acha mesmo? Bem, se estiver certo, acho que é uma sorte ele não ter pedido a minha mão ainda, pois

eu teria aceitado. Quem sabe, na minha idade, quanto pedidos ainda receberei?

— Não esconda o jogo de mim, Hetta. Está claro como água que logo ele pedirá a sua mão. Parecer ser um homem de bem, e pude perceber que tem boas maneiras, mas mesmo assim não combina com você. Acredite no que estou

dizendo.

—Que desmancha-prazeres é você, Ashley! —exclamou, entre a indignação e o divertimento. — Você não me quer, mas não suporta a ideia de que eu me case com outro homem.

—Não é nada disso — defendeu-se o visconde. — Posso não desejar me casar com você, e não tente me

enganar insinuando que algum dia sentiu algo por mim, pois minha memória é ótima. Lembro-me como se fosse

ontem o quanto você implorou para que eu não a pedisse em casamento, quando

aquele plano abominável traçado por nossos pais veio à tona. Mas sempre gostei muito de você, e ficaria muito feliz em vê-la casada com um homem à sua altura. O problema é que Nethercott não serve. Você iria se cansar dele antes do final da lua de mel, Hetta.

- Você não imagina o quanto lhe sou grata, Ash, por se preocupar tanto comigo — disse Henrietta, com falso ardor. - Mas é bem provável que eu saiba melhor do que você quem combina comigo ou não. E uma vez que tem uma memória tão prodigiosa, não preciso lembrá-lo de que não sou uma menina ingénua, mas que já tenho quase vinte e seis anos.

— De fato não precisa — ele a interrompeu, com um sorriso irresistível. — Você completará vinte e seis no dia quinze de janeiro, e já sei o que lhe darei de presente. Eu jamais me esqueceria do aniversário da minha melhor amiga.

__Você é cruel — acusou ela, num tom de voz resignado. No entanto, confesso que sentiria a sua falta, caso

não fossemos mais amigos, pois não há como negar que seus conselhos me são bastante reconfortantes quando me vejo em uma cnrascada, o que, justiça seja feita, você nunca me negou. Por isso peco-lhe para não discutirmos mais sobre o pobre s r. Nethercott. Você disse que foi por causa dos seus pais que voltou para casa.

Espero que isso não signifique que lorde Wroxton esteja doente.

__ Não, a menos que a ira tenha feito que ele recaísse em um estado de apoplexia. Despedimo-nos da pior maneira possível, ontem à noite. Na verdade, ele disse que não quer me ver nunca mais. Segundo minha mãe, ele só disse isso por causa dor de gota, e eu acreditei. É claro, foi tolice minha ter permitido que ele me visse dxias vezes em dois meses.

Foi muito curto o espaço de tempo. Henrietta riu.

- Pobre lorde Wroxton... Mas o que o fez romper com você? Algum mexeriqueiro contou algo para ele?

— Certamente que não. Não fiz nada que pudesse aborrecê-lo.

- Você já dispensou a dama que vi em sua companhia em Vauxhall no mês passado?

—Não, ela me dispensou - - retorquiu Ashley. - - Umadorável bibelô, não era? Mas infelizmente, muito caro.

—Oh, que pena! E você ainda não encontrou outra para substituí-la? Acho que não vai demorar muito.

—Um dia desses você ainda perderá o fôlego, e será por mim. Confesse, o que sabe uma senhorita de boa família sobre tais coisas?

—Ah, essa é uma das vantagens de se ter ultrapassado a adolescência. Não preciso mais fingir inocência.

Ashley estava sentado descontraído ao lado dela em um banco rústico, mas a declaração o assustou de tal modo que ele se endireitou de súbito.

— Pelo amor de Deus, Hetta! É com essa intimidade que você fala com as pessoas?

_Não, apenas com você, Ash. __ Os olhos atraentes reluziram, maliciosos. — Esse é outro ponto que me faz sentir bem a seu lado. É claro que converso livremente com Charles, mas ele é apenas meu irmão mais novo. Griselda nunca conversou francamente com você?

— Nem me lembro de ter conversado com ela. Eu tinha acabado de voltar de Oxford quando ela se casou,

e desdeentão não a vejo com muita frequência. — Ashley soltou uma risada. — Você não vai acreditar, Hetta, mas meu pai de repente trouxe à tona uma desavença que imaginei já estar enterrada há anos, e jogou na minha cara que eu não a convenci a se casar comigo.

—Oh, Senhor! Ainda essa história? Por que você não disse a ele que não queríamos nos casar?

—Eu disse, mas ele não acreditou. Para ser honesto, não contei a ele que nós sabíamos sobre o plano que ele e seu pai tinham arquitetado, e que já tínhamos decidido o que íamos fazer. Acredite, minha querida, não adiantaria dizer nada em nossa defesa.

—Com certeza. Nem com minha mãe. Falei com meu pai, na época, e ele entendeu perfeitamente o que sentíamos, e nunca me reprovou por isso. Mas mamãe nunca cansou de fazê-lo, forçando meu pai a entrar nessa

negociação maluca. Eu gostaria que você fizesse algo que ela realmente detestasse, em vez de ser sempre tão agradável. Todas as vezes que se encontra com você, ela reclama da minha ingratidão. De acordo com ela, você é tudo com que uma mulher pode sonhar, e eu devo estar louca por não ter percebido ainda. Fico imaginando o que ela diria se você não fosse herdeiro de um conde.

O mau humor repentino se abrandou, e Ashley riu.

—Oh, céus, que feio de minha parte falar assim da minha mãe! Posso garantir que só falo essas coisas com você, e mais ninguém. Não imagina como estou feliz em saber que ela não está muito disposta hoje, e que ainda não saiu do quarto. Espero que Grimshaw não conte nada a ela sobre a sua visita.

—Bem, não vou esconder que também fiquei feliz quando soube que ela não estava recebendo visitas. Ela faz com que eu me sinta um desmiolado sem coração, com seu modo de sorrir tristemente e me fitar com um olhar de reprovação todas as vezes que concordo com ela sobre qualquer assunto rotineiro.

- Ele consultou o relógio de bolso. - - Preciso ir embora, Hetta. Estou a caminho de Hazelfield, e minha tia não vai gostar se eu chegar à meia-noite.

- Você vai visitar sua tia em Emborough? Mande minhas lembranças a ela. -- Henrietta se levantou e o acompanhou até as portas-balcão que davam para o terraço.

— Mandarei, fique tranquila. E você, se Grimshaw tiver a indiscrição de contar sobre minha visita, envie minhas lembranças à sua mãe. E diga ainda que sinto muito pela indisposição. — Ashley deu-lhe um abraço fraternal e a beijou no rosto. — Adeus, minha querida. Promete que não vai cometer nenhuma tolice?

—Prometo, e veja se também faça o mesmo.

— Sob o olhar atento de minha tia Sephora? Eu não ousaria. - Ele passou um braço sobre seus ombros enquanto seguiam para o estábulo.

Lady Sephora Emborough era a única irmã viva de lorde Wroxton. Os dois eram muito parecidos fisicamente, mas as semelhanças iam além disso. Algumas pessoas ficavam em dúvida porque Sephora era mais persuasiva, pois usava de artifícios como o tom de voz e as boas maneiras . Ela adorava se intrometer na vida daqueles que se submetiam à sua autocracia. Acreditava que estas pessoas eram incapazes de lidar com os próprios problemas, ao contrário dela, que era autossu-ficiente. Era considerada dominadora por alguns, mas não por aqueles que buscavam sua ajuda num momento de necessidade. Por trás do jeito franco, ela possuía um coração bom e era uma fonte inesgotável de gentileza.

Lorde Emborough era um homem calmo e de poucas palavras, que na maioria das vezes permitia que ela cuidasse

da casa como bem entendesse, atitude esta que levava muitos à avaliação errada de que ele era um marido submisso.

Os mais próximos, contudo, sabiam que ela obedecia uma ordem do marido mesmo que fosse dada por meio de um

simples olhar.

Ela recebeu o sobrinho como sempre:

—Finalmente, Ashley! Você está atrasado, e não venha me dizer que um dos seus cavalos perdeu a ferradura,

ou que se perdeu no caminho. Não vou acreditar nas suas desculpas esfarrapadas.

— Não repreenda o pobre Ash, mamãe — brincou seu filho mais velho, um jovem robusto que tinha a aparência de

um fazendeiro.

- Como se ele se importasse! — Sephora riu, dando um tapinha nas costas do sobrinho.

— É claro que não ligo para tudo o que minha querida tia diz — retrucou Ashley, beijando-lhe a mão. — E

confesso que nenhum dos meus cavalos perdeu uma ferradura, nem me perdi pelo caminho. A verdade é que fiz

uma parada em Inglehurst, e fiquei conversando com Hetta por mais tempo do que pretendia. A propósito, ela me pediu que lhe mandasse lembranças.

— Inglehurst. Então você estava vindo de Wolversham? — perguntou Sephora. — Pensei que ainda estivesse em Londres. Como está seu pai?

— Foi acometido por mais uma crise de gota.

— Naturalmente. — Ela suspirou, impaciente. — Mas ele é o único culpado. Seria ótimo se ele morasse em Wolversham... Sua mãe é muito tolerante.

A desavença que acontecera entre Wroxton e a irmã na última vez em que se viram ainda estava viva na memória

de Ashley. Ele mal conseguiu disfarçar o tremor só de imaginar aqueles dois juntos sob o mesmo teto. Felizmente, não teve de fazer nenhum comentário a respeito, pois a tia subitamente mudou de assunto:

— Gostaria de lhe informar, Ashley, que não sou uma dessas anfitriãs modernas que dizem aos seus hóspedes que não têm espaço extra na casa para hospedar os criados. Discordo desse tipo de mesquinhez. Seu criado pode dormir junto com os nossos, e não se discute mais isto.

— Muito bem, senhora, não se fala mais no assunto —Ashley concordou, obediente.

— É isso que aprecio tanto em você — Sephora ressaltou, lançando um olhar de aprovação. — Você nunca me aborrece com discussões inúteis. A propósito, se esperava encontrar a casa cheia de gente da sociedade, ficará desapontado, pois apenas os Montsale estão hospedados conosco. No entanto, suponho que você vá apreciar o

passeio pelo rio que Ned prometeu. Em seguida haverá uma corrida em Winchester, e...

Sophora foi interrompida pelo marido, que entrara na sala no meio da conversa.

— - Não assuste o rapaz com as ameaças que tem em estoque, meu amor — repreendeu lorde Emborough. —

Como tem passado, Ashley? O que acha de se livrar de sua tia amanhã e vir conhecer meu novo cavalo? É o filhote da minha égua, Polly Whiffler, e não me surpreenderei se aquele animal não for um futuro campeão.

— A declaração imediatamente atraiu os cinco cavalheiros presentes para uma conversa exclusivamente sobre cavalos. Ao longo do diálogo, Edward Emborough reafirmou o que o pai havia dito; Gilbert Emborough, um ano mais novo que o irmão, disse que apesar de o potrinho ter uma boa estrutura óssea, tinha o flanco um pouco estreito; Mortimer Redgrave, que entrara na sala logo depois de lorde Emborough e era o mais velho de seus dois genros, disse que nunca tinha visto um animal tão promissor; Christian Emborough, que estava cursando o primeiro ano em Oxford, e que até então observara com reverência o elegante corte do paletó do primo, disse que gostaria de ouvir sua opinião.

— Pois Ash conhece muito mais sobre cavalos do que Ned e Gil, apesar de não ficar se gabando disso.

Depois de ter lançado sua crítica contra os mais velhos, ele recaiu em um rubor silencioso. Ashley, que ainda não tinha visto o animal, achou melhor não opinar, e em vez disso começou a falar sobre cavalos em geral. Sephora permitiu que os cavalheiros se divertissem por mais quinze minutos antes de interferir, lembrando os filhos e o sobrinho que se eles não se vestissem logo perderiam o jantar, pois ela não tinha intenção de esperar.

Quando Ashley retornou para a sala de estar, encontrou um grupo bem maior do que a tia havia anunciado. Além

das pessoas mencionadas, ainda havia a srta. Montsale, as duas filhas casadas de Sephora e os respectivos maridos, uma desconhecida

de idade indeterminada, que ele reconheceu vagamente como sendo uma das primas pobres de Sephora, e a bondosa Rachel Emborough, a filha mais velha, destinada a ser a confidente de Iodos, companheira dos pais, a irmã inteligente e confiável para seus irmãos e irmãs. Não era muito vaidosa, mas seus modos não afetados, a alegria e a gentileza que emanavam de seu coração a tornavam a favorita de todos.

— Que moça meiga é Rachel, minha tia!

- Sim, ela é muito boazinha — concordou Sephora, num tom de voz um tanto sombrio. — Mas já não é mais uma menina, Ashley; ela é mais velha que você. E nunca recebeu um pedido de casamento. Deus sabe que eu não saberia o que fazer sem ela, mas não posso ficar feliz em vê-la se transformando numa solteirona. Não que os homens não gostem dela: eles gostam, mas não se apaixonam. É como Hetta Silverdale, com a diferença que Hetta é uma moça muito bonita, vistosa, e minha Rachel é um tipo comum. Mas as duas dariam ótimas esposas, muito mais do que a minha Theresa ali, que é tão cheia de caprichos e fricotes que nunca esperei que um dia fosse se apaixonar por alguém, muito menos se casar com um partido como John Thimbleby.

Ciente de que John Thimbleby estava próximo o suficien-k- para ouvi-los, Ashley olhou de soslaio para ele e fez um gesto com a cabeça.

A senhora tem toda a razão. No entanto, a senhora não está totalmente correta quando diz que Hetta não tem pretendentes. Eu poderia citar quatro no mínimo que iriam correndo se ela erguesse um só dedo. Na verdade, quando a vi esta manhã, ela estava acompanhada de dois cavalheiros. Talvez ela e minha prima Rachel simplesmente não queiram se casar.

__Não creio. — Lady Emborough balançou a cabeça.__Diga o nome de uma mulher que não deseje se casar, e

eu lhe direi pelo menos vinte de moças louquinhas para agarrar um marido. E se quer saber, acho que você foi um tolo em não p e d i r a mão de Hetta, quando isso era o esperado.

Ashley contraiu as sobrancelhas, mas respondeu com cuidadosa civilidade:

— A senhora está enganada, minha querida tia. Hetta nunca esperou que eu a pedisse em casamento. Nenhum de

nós ansiou um dia por um relacionamento mais íntimo do que a amizade que temos. E que sempre espero ter.

Sephora percebeu o discreto olhar de censura que o marido lhe lançou, mas como sempre não se ressentiu.

- De fato, não é da minha conta o que você faz da sua vida, meu querido. Emborough tem toda a razão em me repreender pela minha mania de me intrometer. Mas, deixando as brincadeiras de lado, Ashley, já não está na hora de você começar a pensar em se casar e ter uma família? Não com Hetta, claro, já que vocês mesmos chegaram à conclusão de que não desejam se casar um com o outro... mas com Horace ainda na França, e Simon aproveitando a vida e fazendo ainda mais loucuras do que seu pai fez nos tempos de juventude, suponho que caiba a você dar a seu pai um ou dois netos... legítimos, é claro.

Ashley teve um ataque de riso, que abrandou seu aborrecimento.

- Tia Sephora, a senhora é terrível! Alguém já lhe disse isso? Mas a senhora tem razão, em tudo o que disse.

Recentemente cheguei à conclusão de que já é tempo de eu colocar um fim à minha vida de solteiro. O problema é que ainda não conheci nenhuma moça que agrade a meu pai e me inspire o desejo de viver com ela para sempre.

O jantar, como sempre eram as refeições na casa de Sephora Emborough, estava maravilhoso. Ashley permaneceu

uma semana em Hampshire, e foram dias muito agradáveis. Após, todos os compromissos da temporada, com os incontaveis , cafés da manhã, bailes, reuniões e corridas, a vida pacata e sem muita excitação em Hazelfield veio a calhar.

Apesar do que se dizia, quando se passava uma temporada com os Emborough não era todo dia que havia um evento.

Sephora nunca fazia programas elaborados para entreter seus hóspedes. As refeições eram fartas, e ela cuidava para que tivessem à disposição tudo que fosse necessário para a prática de esportes ou para os exercícios que mais lhes agradassem. Se houvesse algum divertimento, como uma corrida, por exemplo, ela colocava as carruagens da casa à disposição. No entanto, se ninguém estivesse com disposição para participar, bastava dizer, sem temer que ela pudesse se ofender com isso.

Sephora foi muito fiel ao seu estilo quando revelou a Ashley que tinha prometido comparecer a uma festa. Segundo ela, levaria consigo os dois filhos mais velhos, quantas filhas julgasse apropriado levar, e todos aquele que estivessem hospedados em sua casa e que não desprezassem um baile simples no campo.

- Terei de ir ao baile — disse ela, num tom de voz resignado de alguém que não esperava muito da festividade. -

Emma e Mortimer também irão. Theresa não quer ir, mas isso não surpreenderá lady Bugie, pois ela sabe muito bem que Theresa está grávida. Os Montsale também não querem ir, e de fato eles não precisam ir, já que eu vou e posso acompanhar Mary para eles. E se você não estiver com vontade, Ashley, pode ficar em casa, jogando whist com os Montsale e com John. Na verdade, eu o aconselho a fazer isso, pois creio que você se sentirá entediado na festa dos Bugie.

—Como um baile pode ser entediante quando aquela criatura gloriosa estará presente? - - exaltou-se Gilbert, que tinha acabado de entrar na sala a tempo de ouvir a última parte da conversa. - - Nada pode ser entediante quando ela está presente!

—Ora, isso me parece promissor... — comentou Ashley. —

Quem é essa moça tão gloriosa? Eu a conheço?

—Não, você não a conhece, mas já a viu – respondeu Gilbert. — E aliás, ficou embevecido, permita-me lembrá-lo. Mas também, quem não ficaria? Você até perguntou a Ned quem ela era.

—Está falando daquela beldade que vi nas corridas? —

indagou Ashley. — Minha querida tia, é claro que irei a

esse baile, pois a mais bela criatura que já vi na minha vida estará presente! Espero que Ned me apresente a ela, e será muita indelicadeza dele se não o fizer. Gilbert riu.

— Está é com medo que Ned lhe passe a perna! Confesse, Ashley...

— Mas quem é ela, afinal? — indagou o visconde, curioso.

— O nome da moça é Lucasta — informou Sephora. —Ela é a filha mais velha de sir Thomas Bugie; ele tem cinco filhas e quatro filhos. Sem dúvida, é uma moça muito bonita, e suponho que acabará fazendo um bom casamento, porque os rapazes em geral ficam alucinados por ela. Mas não acredito que o dote dela seja maior que cinco mil libras. A fortuna de sir Thomas é modesta, e ele nunca foi muito ambicioso.

— Pobre Lucasta — murmurou Ashley.

— É o que pode se dizer. A mãe a apresentou à sociedade na primavera, e não poderia ter sido mais lastimável.

Imagine que, três dias depois de ela debutar, sir Thomas recebeu uma carta urgente do dr. Cromer, informando que a mãe dele tinha adoecido. É claro que toda a família teve de voltar para casa às pressas. Nunca se sabe, nessa idade, o que pode acontecer... Mas a senhora ainda resistiu por mais dois meses, antes de falecer. Com isso, lady Bugie ficou impossibilitada de levar Lucasta aos bailes e festas enquanto a família estivesse de luto. Este baile que ela vai oferecer agora é um evento simples, para comemorar o noivado de Stonor Bugie com a srta. Windle. Uma boa moça, mas não uma que eu gostaria de ter como nora, confesso.

— Eu é que não seria o candidato! — exclamou Gilbert. — Ela tem a cara achatada...

Sephora repreendeu o filho por se referir com tanta indelicadeza à aparência da moça. Mas ao ser apresentado à moça no dia seguinte, Ashley não pôde deixar de concordar com o primo. No entanto, reconheceu que a sem-gracice da garota não teria causado o mesmo impacto se lady Bugie não a tivesse colocado ao lado de Lucasta para receber os convidados.

Lucasta certamente era uma moça fora do comum, dona de uma beleza clássica. Quando sorria, o rosto era iluminado pelo brilho dos dentes muito brancos; os cabelos eram loiros e ondulados, e ela parecia ter se adaptado bem à vida social, apesar dos percalços da primeira temporada. Seus modos eram seguros; a conversa franca e divertida, e ela era toda delicadeza e cordialidade para com a mãe e os convidados.

Ashley teve a honra de dançar com a moça, quando a família Emborough chegou, enquanto seu primo Edward observava indignado, fazendo reflexões cínicas sobre as vantagens de ser o herdeiro de um condado. Os progressos do visconde com a bela, e os olhares e sorrisos que trocavam deixavam claro que estavam se divertindo.

A valsa ainda era considerada pelos mais tradicionais uma dança imprópria, e raramente era tocada nos bailes do campo. Uma ou duas anfitriãs mais ousadas tinham mandado tocar em seus bailes, mas Ned, depois de dolorosamente ter perdido o passo ao ter a sua oportunidade de dançar com Lucasta, concluiu que tinha perdido seu tempo também, pois ela nunca aprenderia a valsar.

Por isso ele não contava com a valsa, mas lady Bugie esperava que Sephora trouxesse o elegante sobrinho para a festa. Havia avisado os músicos para que se preparassem quando Ashley despontasse no salão. Tinha também dito para Lucasta que, se o visconde a tirasse para dançar, ela deveria aceitar.

Ashley a convidou, dizendo, enquanto a conduzia para fora da pista de dança ao final da quadrilha, que esperava poder dançar com ela novamente, e acrescentou, com seu sorriso atraente:

—Posso ousar convidá-la para valsar comigo? Ou vocês aqui de Hampshire torcem o nariz para a valsa?

Lamento, que estupidez de minha parte não ter perguntado à minha tia se haveria a dança! Por isso, imploro, srta. Bugie, que me diga com honestidade se não acabei de cometer uma gafe.

—Certamente que não. Eu danço a valsa, mas o consentimento de minha mãe é outra questão — ela riu ao responder.

- Então pedirei permissão à sua mãe imediatamente.

O pedido foi concedido, e ele foi visto rodopiando em torno do salão com um braço enlaçado ao redor da cintura de Lucasta. Era um espetáculo que Sephora observava com satisfação, ao contrário dos dois primos de Ashley e de outros cavalheiros também enamorados da moça.

Depois disso, o visconde cumpriu sua obrigação para com a srta. Windle, e em seguida tirou a prima Emma para

dançar.

—Pelo amor de Deus, não me convide para dançar, mas me tire deste salão insuportável!

—Com imenso prazer — respondeu Ashley, oferecendo o braço. — Estou achando que o colarinho da minha camisa está dobrando. Vamos seguir rumo à porta, como se estivéssemos indo conversar com seu marido, e depois escapamos enquanto os pares se preparam para a próxima dança. Tenho certeza de que ninguém perceberá a nossa

ausência.

- Não me importo se notarem. As pessoas não deveriam oferecer bailes em uma noite quente como esta.

Deveriam ao menos abrir uma janela.

— Ah, eles não fariam isso... Com certeza você sabe, Emma, que não é prudente abrir as janelas, até mesmo nas noites mais quentes. Expor os mais velhos a correntes de ar pode ser muito prejudicial à saúde.

Mortimer Redgrave adorou a ideia de tomar um pouco de ar fresco e fez questão de acompanhar a esposa e o

primo até o jardim. Era noite de lua cheia, mas de vez em quando algumas nuvens cruzavam o céu, e os relâmpagos anunciavam que uma tempestade se aproximava.

Mas o agradável momento de descanso durou pouco, pois não tardou muito e Stonor Bugie saiu do salão para avis;n Emma que a srta. Barling estava à sua procura.

Stonor seguiu com o casal, mas Ashley permaneceu no vestíbulo para ajustar o colarinho, verificando a aparência em um espelho sobre um aparador. Lembrou de ter sido chamado de dândi pouco tempo antes; continuaria a repudiar a ideia, mas isso não mudava em nada o fato de que era muito elegante.

Procurou firmar melhor as pontas do colarinho, mas a goma estava perdendo o efeito.

De repente teve a sensação de estar sendo observado. Continuou parado, fingindo se aprumar, espreitando o ambiente pelo espelho. E foi então que se deparou com um par de olhos inocentes em um rosto encantador, emoldurado pela balaustrada de onde o observava. Ele sorriu, supondo que se tratava de uma das filhas mais novas da família.

- Não fuja, prometo que não contarei à sua mãe que a vi! - disse ele, quando percebeu que a menina estava prestes a correr, assustada.

Os olhos da mocinha se arregalaram, num misto de medo e dúvida.

—O senhor nem teria como fazer isso. Eu não tenho mãe, ela já faleceu há anos. Acho que também não tenho

pai. Oh, por favor, não suba! Imploro que não o faça, sir. Eu levaria uma bronca, se...

—Não tem pai nem mãe? - - perguntou Ashley, parando com um pé no primeiro degrau. -- Mas você não é uma das filhas de sir Thomas?

—Õh, não! -- ela respondeu, ainda com a voz assusta da. - - Não sou nem parente dele, ele é apenas o marido de minha tia.

—Ah... entendo. Mas mesmo assim, não acredito que ele ficasse aborrecido com você apenas por estar observando entre o balaústre as damas em seus belos vestidos de baile, e os cavalheiros tentando ajeitar o colarinho.

—Eu não estava me referindo a ele - - disse a garota, olhando preocupada na direção do salão de baile. - -

Estou falando de minha tia e de Lucasta. Oh, eu lhe peço que vá embora, sir, antes que alguém o veja aqui!

A surpresa de Ashley aumentou, assim como a curiosidade.

— Bem, ninguém me verá ao pé da escada, pois estou subindo para conhecê-la, sua pequena duende sedutora. Não precisa se assustar, eu não mordo... Por falar nisso, eu posso pegar algumas tortinhas que vi no aparador e dizer que as estou levando para minha prima, assim você não terá nada a temer.

A jovem, que parecia estar quase tropeçando nos próprios pés enquanto recuava, foi tomada de assalto pela oferta. Ela o fitou por um momento e sorriu.

— Não, obrigada, sir. Eu jantei há pouco, com Oenone e Corinna... e a srta. Mudford, claro... Minha tia mandou a cozinheira separar algumas tortas e bolos para nós. Sou-lhe grata por se mostrar tão gentil, o que imaginei mesmo que fosse, no instante em que olhou para cima e sorriu para m i m.

— Ainda acho que lhe devo um pedido de desculpas por tê-la tornado por uma menina — disse ele, terminando

de subir os degraus. Ao vê-la em pé, notou que havia se enganado mais ainda do que pensara; embora a única fonte de luz que iluminava a cena fosse proveniente das velas do candelabro no vestíbulo abaixo, havia claridade suficiente para ele ver que se tratava de uma moça adulta, se bem que bastante jovem.

— As pessoas sempre me tomam por mais nova do que sou —

justificou ela, timidamente.


Isso acontece

porque sou baixinha, algo que me aborrece imensamente. Quando estou perto de minhas primas, sinto-me ainda

menor, porque elas são muito altas. Pelo menos Lucasta, Oenone e Corinna são altas, e Dianeme é bem desenvolvida, por isso acho que ela ainda vai crescer muito. Perenna ainda é muito criança, então não dá para ter certeza.

— Tem certeza de que disse os nomes das suas primas corretamente? Você falou "Dianeme" e "Perenna"? —

Ashley quis saber, um tanto atordoado.

— Sim — respondeu ela, depois de emitir um riso abafado. —

A razão é que quando minha tia era mocinha, ela

adorava poesia, e meu avô tinha uma biblioteca abarrotada de livros antigos. Foi lá que ela descobriu os poemas de Robert Herrick. Ela tem o livro até hoje, e um dia me mostrou, quando perguntei por que minhas primas tinham nomes tão diferentes. Disse que os achava bonitos, não comuns como Maria, Elisa, Jane... Ela me contou que gostaria de ter colocado Lucasta Electra, mas achou mais prudente homenagear a madrinha dela, de quem ela esperava algum

reconhecimento. Apesar de eu achar que não deu resultado, porque a tal madrinha é maU humorada como a falecida lady Bugie, e não parece gostar muito de Lucasta, nem admirar sua beleza, o que é muito injusto, porque Lucasta sempre foi boazinha para ela, e é linda...

— É verdade — concordou o visconde, sério, mas com um sorriso no olhar. — E Oenone e Corinna também são

bonitas como a irmã?

__ Bem, a falecida lady Bugie costumava dizer para minha tia que nenhuma delas era bonita o suficiente para brilhar em Londres - - observou ela com moderação. - - Eu acho que as duas são bem bonitas, apesar de não se compararem a Lucasta...

Enquanto ela falava, Ashley reparava que o vestido que ela usava certamente fora feito para alguém bem maior, e ajustado para servir-lhe; o que não maculava a elegância da moça. Percebeu também sua desenvoltura e facilidade com as palavras, o que era um dom especial, e que os cachos castanho-claros não tinham passado pelos cuidados de uma cabeleireira. A moda ditava cachos bem aparados, ou presos em um coque ao estilo grego, de onde pendiam cuidadosamente emoldurando o rosto. Os cabelos daquela moça pendiam soltos de uma fita amarrada em

torno da cabeça, com várias mechas escapando, indomáveis, o que lhe conferia certa rebeldia.

- Quantos anos você tem? Dezesseis? Dezessete?

- Oh, não, sou muito mais velha que isso! Tenho a mesma idade de Lucasta, com uma diferença de semanas apenas.

— Então por que não está lá embaixo, dançando? – ele indagou. - - Você já deve ter sido apresentada à sociedade, não?

- Não, senhor. E acho que nunca serei. A menos que meu pai não esteja morto e volte para casa a fim de tomar conta de inim. O que não adiantaria muito, porque ele nunca foi muito apegado a mim. Acho que meu pai não foi uma pessoa muito respeitável. Segundo minha tia, ele foi obrigado a fugir do país por conta de uma dívida monstruosa. — Ela soltou um longo

suspiro. — Sei que não é certo criticar o próprio pai, mas não posso deixar de pensar que foi um tanto insensível da parte dele ter me abandonado.

— Você quer dizer, deixá-la aos cuidados de sua tia? — perguntou o visconde, franzindo as sobrancelhas.

— Não acredito que ele a tenha abandonado.

— Bem, mas foi o que aconteceu. E foi muito desagradável, sir. Eu estava no colégio, em Bath, cujas mensalidades meu pai só pagava quando tinha dinheiro. A srta. Fletching foi muito gentil em só me contar sobre isso depois de um ano de inadimplência. Ela explicou que esperava receber uma carta, ou até mesmo uma visita, o que acontecia muito raramente. Acho também que ela nutria um carinho especial por ele, pois costumava dizer que meu pai era um homem muito bonito, amável e distinto. Ela gostava de mim também, talvez porque eu morasse

com ela desde a morte de minha mãe, quando eu tinha oito anos.

— Eu lamento muito...

— Oh, não! — exclamou ela. — Nas datas comemorativas, minhas amigas me convidavam para festas, ou me levavam para viajar com elas. Fui ao teatro algumas vezes com a srta. Fletching. Eu era muito feliz de um jeito que acho que nunca mais serei. Naturalmente, eu não poderia morar lá para sempre, por isso a srta. Fletching se viu obrigada a escrever uma carta ao meu avô. Mas o problema era que ele, já tinha deserdado meu pai anos antes, e enviou uma resposta muito grosseria à srta. Fletching, informando que não queria saber de nada relativo ao imprestável do filho, e recomendou a ela que procurasse os parentes de minha mãe. E foi assim que vim parar aqui.

— Mas você não é feliz aqui, é? —Ashley quis ser delicado, percebendo a melancolia da moça.

— Não muito feliz, sir, mas tento ser. — Ela balançou a cabeça e respondeu com um valente arremedo de sorriso: — Sou muito grata à minha tia por ter me dado um lar, apesar de ela não gostar do meu pai, e ter tido uma briga terrível com a minha mãe quando eles se casaram, e nunca a ter perdoado por isso. Por todos esses motivos, tenho obrigação de ser grata, não acha?

—Quem era o seu pai? — indagou Ashley, sem responder à pergunta que ela lhe fizera. — Qual é o seu sobrenome?

—Steane. Meu pai era Wilfred Steane, e eu sou Cherry Steane.

- Tem um nome muito bonito, srta. Steane - - elogiou Ashley. — Mas, Steane? Você é parente de lorde Nettlecombe?

—Sim, ele é meu avô. O senhor o conhece?

—Não tive a honra. Mas conheci seu tio Jonas. De acordo com as informações que recebi, ele se parece muito com seu pai. Sendo assim, creio que a senhorita está muito melhor aqui com sua tia do que se estivesse com seu avô.

Mas por que estamos perdendo tempo falando sobre eles? Você me disse o seu nome, mas me ocorreu que ainda não sabe o meu.

—Oh, eu sei o seu nome. O senhor é o visconde de Desford. Eu soube quando o vi valsando com Lucasta. Aliás, era por isso que eu estava espiando pelo balaústre, é possível ver uma parte do salão de baile daqui. Eu o vi pela primeira vez quando estavam dançando a quadrilha, mas só tive certeza de quem e rã na hora da valsa.

- Por que o interesse?

— Ah, ouvi minha tia dizendo para Lucasta que ela deveria

valsar com o senhor, caso a convidasse — respondeu Cherry,

jovial. Então sua expressão mudou quando um som distante

atingiu seus ouvidos, e a fisionomia assustada retornou ao

seu rosto. Ela sussurrou: — Preciso ir para o meu quarto. Por

favor, vá embora, e rogo que tome cuidado para quem

ninguém o veja descendo a escada!

Logo em seguida ela desapareceu, silenciosa como um fantasma. Depois de se assegurar de que não vinha ninguém, Ashley desceu os degraus calmamente e voltou para o salão de baile.


Capítulo II

proveitando-se da desculpa de que a filha estava com receio de não retornarem para Hazelfield, por causa da A tempestade que se aproximava, Sephora reuniu a família logo após o jantar. Lady Bugie lamentou, mas uma vez que tinha mais medo de relâmpagos do que Emma, acabou concordando com os receios da moça, e não fez nenhum

esforço para atrasar a partida, profetizando que logo os outros convidados também iriam embora. O que se concretizou meia hora depois.

Os Redgrave levaram Edward e Gilbert em sua carruagem, e Ashley ocupou a carruagem de quatro lugares de lorde Emborough, sentando-se ao lado do tio e de frente para a tia e Mary Montsale.

Durante os primeiros minutos, as senhoras comentavam sobre o baile. Mary Montsale disse que, apesar de Ned e

Gil terem descrito a beleza de Lucasta como no mínimo esplendorosa, ela achou que foram poucos os elogios feitos à moça.

— Que olhos lindos! Que pele lustrosa e que cabelo glorioso! Acho que ela é uma das mulheres mais linda que já conheci. O que acha, lorde Desford?

Ele não estava dormindo como o tio, mas estava perdido em pensamentos; tanto que a pergunta foi repetida para chamar sua atenção.

— Desculpem-me, eu estava distraído. Vocês falavam da srta. Lucasta, não é? Sim, claro, ela é muito linda.

— E não faz o tipo comum.

— De jeito nenhum.

— Digam-me, quem conhece a sobrinha de lady Bugle? Alguém a viu? — Ashley perguntou às senhoras.

— Ora, você a encontrou? — Sephora quis saber, curiosa.

—Sim, eu a encontrei quando arrumava a gravata diante do espelho do vestíbulo. Por favor, não comentem com lady Bugle, mas ela estava espiando o baile por entre as grades da balaustrada. Em um primeiro momento achei que fosse uma das crianças, mas quando a vi em pé, percebi que deve ter a idade de Lucasta. É uma moça

bonita, com olhos grandes e amedrontados, cabelos castanhos e um vestido fora de moda.

—Acho que já a vi uma vez. — Sephora tentou ver o semblante do sobrinho, mas estava escuro demais para distinguir muito além do contorno do rosto. — Fico espantada em saber que ela e a prima têrn a mesma idade.

Pensei que ela estivesse em idade escolar. Bem, ela é filha da única irmã de lady Bugle, que fugiu com o filho do velho Nettlecombe. Na época foi um escândalo. Lady Bugie teve de amparar essa moça há um ano, mais ou menos. Eu achei que foi uma atitude caridosa.

—Ah, então a história foi assim - - comentou Ashley, indiferente.

- Caridosa? — espantou-se Mary. — Isso se não for usada como um manto para encobrir objetivos mercenários.

— Minha nossa, Mary, o que quer dizer com isso? - indagou Sephora, surpresa.

- Nada contra lady Bugle, senhora. Aliás, como poderia, se só a conheci hoje? Mas tenho visto com frequência, como acredito que a senhora também, casos de meninas que foram acolhidas na casa de parentes bem de vida, como um ato de caridade, e que acabaram se tornando um estorvo.

— E ela ainda tem de ser grata! — acrescentou Ashley.

- Se esses comentários se referem à minha prima Cordelia, em Hazelfield...

— Oh, não, claro que não! — garantiu Mary, rindo. — Lorde Desford, o senhor acha que a srta. Pembury pode ser considerada um estorvo?

__ Ora é claro quer não – respondeu Ashley de imediato. __ Mas, a senhora tem razão srta. Montsale. Acho que a moça que vi hoje pode muito bem se encaixar nesse tipo de caridade a que a senhorita se refere.

Nada mais foi comentado a respeito, mesmo porque a carruagem já ultrapassava os imponentes portões da Mansão Hazelfield. Os cavalheiros ajudaram as damas a descer; Ashley acordou o tio, e a outra carruagem com o resto da família não demorou a chegar.

Lorde Emborough ainda estava sonolento quando a família entrou em casa. Ao entrarem no quarto, Sephora dispensou a criada, para tecer comentários particulares sobre a festa.

— O engraçado é que o baile prometia ser uma festa elegante, e acabou sendo uma noite insossa, não acha?

— De fato — concordou Emborough, sentando-se numa poltrona e bocejando. — Nunca entendi, meu amor, por

que o meu velho amigo, que era um dos rapazes mais inteligentes de Oxford, escolheu se casar com uma moça tão...

simplória.

— Bem, lady Buglie pode não ser muito inteligente, mas é preciso reconhecer que sempre foi uma boa esposa

para sir Thomas, e uma excelente mãe. E até mesmo você, Emborough, precisa reconhecer que sir Thomas nunca teve grandes ambições.

— Não - - ele concordou com um suspiro melancólico, acrescentando em um tom ácido logo em seguida: —

Você não imagina, minha querida, como estou feliz por nunca ter visto'minha esposa expor minha filha tão acintosamente diante de um pretendente como vimos esta noite. Isso é embaraçoso, em todos os sentidos.

— Ainda bem! — desabafou Sephora, com uma calma inabalável. — Espero nunca chegar a fazer algo tão estúpido. Mas isso me lembra, milorde, que não tive o azar de me casar com um marido incauto, e ter cinco filhas.

Confesso que entendo a posição de lady Bugie e o motivo de sua ansiedade em querer arrumar um bom casamento

para Lucasta o mais rápido possível.

— Você achou que Ashley mostrou algum interesse por aquela moça? — Emborough lançou um olhar

preocupado a esposa.

- Nem um pouco.

—Bem, espero que esteja certa. Parece-me que ele a tratou com muita distinção. E isso pode indicar algo...

—Claro que não! Meu querido, como pode supor que um homem atraente, bem-nascido e rico, que já frequenta a sociedade há anos e já escapou de inúmeras moçoilas ansiosas para se casarem, não saiba reconhecer uma armadilha com apenas um olhar?

- Pode ser. Mas ele parecia bem enamorado pela mocinha em questão.

—Para ser honesta, eu também achei. Mas pela conversa que tivemos na carruagem, ele me pareceu muito mais interessado na prima de Lucasta.

—Não é possível! — exclamou Emborough. -- Você está se referindo à filha daquele calhorda? De Wilfred Stcane?

Sephora começou a rir diante da expressão de desânimo do marido.

— Sim, mas acho que não há motivos para se preocupar. Lembre-se de que Ashley partirá amanhã. As chances de ele voltar a vê-la são mínimas. Aposto que quando estiver chegando a Londres, já terá se esquecido dela.

Se foi de algum modo uma afirmação exagerada, foi porque possivelmente não havia nenhuma chance de Cherry Steane permanecer por muito tempo na memória do visconde. Mas o acaso interveio, no dia seguinte.

Uma vez que Hazelfield ficava a poucos quilómetros de Alton, e Ashley estava a caminho de Londres, decidiu se apressar no desjejum. A ameaçadora tempestade de fato caíra durante a noite, mas depois do violento aguaceiro o dia amanhecera limpo, e Ashley saiu para viajar com a certeza de que iria cobrir a distância sob a luz do sol, e que chegaria a seu destino, sua casa na Rua Arlington, a tempo de se trocar para ir ao White's, onde pretendia jantar.

Em Alton, ele seguiu pela estrada que levava a Southampton, e estava passando por Farnham quando o destino resolveu intervir no curso dos acontecimentos.

Uma figura feminina, usando uma touca redonda e uma capa cinza, caminhando com dificuldade e segurando uma

mala desgastada, a princípio não chamou a atenção de Ashley. No entanto, quando a carruagem se aproximou um pouco mais e moça ergueu a cabeça, fitando-o e revelando o rosto delicado Cherry Steane, Ashley puxou as rédeas, freando bruscamente.

— Por que a parada, milorde? — inquiriu Stebbing, ainda mais surpreso do que o patrão.

Ashley girou o tronco para trás para obter uma segunda visão da moça, apenas para constatar que era mesmo Cherry. Ele entregou as rédeas ao criado e desceu da carruagem, pedindo que o esperasse.

— Pensei mesmo que fosse o senhor. Ah, fico feliz por tê-lo encontrado. Se estiver indo para Londres, poderia...

poderia fazer a gentileza de me dar uma carona? — pediu ela, saudando-o com alegria.

— Por que está indo para Londres? — Ashley pegou a mala dela, colocando-a no chão em seguida.

— Fugi de casa — explicou Cherry, com um sorriso confiante.

— Isso eu já percebi, mocinha. Assim como está claro que não vai dar certo. Como eu poderia apoiá-la e encorajá-la a deixar a proteção de sua tia?

O rosto de Cherry ainda guardava um resquício de sorriso, mas no instante seguinte ficou evidente que ela irromperia em lágrimas. Aprumando-se em seguida, resolveu enfrentá-lo:

— O senhor não poderia? Queira me desculpar, então. Pensei que... Não tem importância.

— Não vai me dizer por que está fugindo?

— Porque não suporto mais. O senhor não imagina...

— Não, mas gostaria que me contasse — ele a interrompeu. — Creio que algo deve ter acontecido desde que nos

falamos ontem à noite. Alguém nos ouviu e contou à sua tia?

Cherry assentiu, mordendo o lábio.

— E ela lhe deu uma bronca?

— Oh, sim. Mas não foi apenas isso. Não me importo que me chamem a atenção, mas ela disse coisas, e Lucasta também, e tudo na frente de Corinna, que depois contou aos outros... — A voz de Cherry sumiu sob um

soluço, e ela não pôde continuar.

Ashley esperou até que ela recuperasse a compostura, comovendo-se com a situação. Não apenas o semblante da

pobre moça estava abatido, mas os sapatos e a barra da capa grosseira que usava estavam sujos de lama; várias mechas dos cabelos rebeldes tinham escapado da touca redonda e caíam sobre o rosto corado. Gotas de suor brilhavam em sua testa. Ela parecia estar com calor, cansada e desesperada.

— Peço desculpas, sir. Só pedi sua ajuda porque me pareceu ser muito gentil quando conversou comigo ontem à

noite. Errei pedindo carona, por favor, desconsidere meu pedido. O senhor não tem nada a ver com os meus problemas, e posso me arranjar sozinha.

Ashley ignorou a mão que ela estendia e não a deixou pegar a mala de volta.

— Não podemos ficar parados aqui no meio da estrada. Não prometo levá-la para Londres, mas posso deixá-la em Farnborough. Pelo que me lembro, tem uma hospedaria decente lá, onde poderemos continuar esta conversa com mais tranquilidade. Venha comigo.

Cherry permaneceu parada, observando-o com os olhos arregalados e assustados.

— O senhor não vai me obrigar a voltar para Maplewood, vai?

- Eu não faria isso. Que direito tenho de obrigá-la a fazer algo? Apesar de que mandá-la de volta talvez seja a melhor solução.

Cherry pareceu satisfeita com a resposta, pois não disse mais nada e seguiu-o obediente até a carruagem. A expressão de Stebbing, quando percebeu que seu patrão ia levar na carruagem uma jovem desacompanhada, foi de pura desaprovação; mas ele limitou-se a passar as rédeas ao visconde, sem emitir uma palavra.

Cherry se acomodou no assento de trás e soltou um longo suspiro de alívio.

Pouco tempo depois, já estavam chegando a Farnborough. A hospedaria não estava muito movimentada, e foi o próprio dono quem veio recebê-los à porta.

- Tem alguém no salão de chá? — perguntou Ashley, depois das devidas saudações.

— Não tem ninguém, sir. Mas se o senhor preferir tomar algo em uma saleta particular...

— Não, o salão de chá nos servirá muito bem. Traga uma limonada para a senhorita, carne fria, bolo, frutas, o que mais tiver. E uma caneca de cerveja para mim, por favor. Em seguida, olhou para Cherry. -- Vá na frente, minha querida. Estarei com você em um momento.

Ashley observou-a sentar-se a urna mesa para depois sair e dar algumas instruções a Stebbing. Quando voltou, soube que a senhora da casa tinha levado Cherry para cima. Ao voltar, estava com o rosto lavado, os cabelos presos, e trazia a capa no braço. Estava bem mais apresentável, mas o vestido rosa descorado, além de estar com a barra suja de lama, mostrava que não tinha sido feito para ela. Seu olhar era sério, mas quando viu o frango, a carne e as frutas sobre a mesa, seus olhos brilharam.

— Oh, muito obrigada, sir! Sou muito grata ao senhor. Fugi antes do desjejum, e o senhor não pode imaginar como estou com fome...

Em seguida sentou-se e começou preparar um prato com entusiasmo. Ashley, que estava sem fome, apenas a observou, a caneca de cerveja na mão. Concluiu que para os dezenove anos que dissera ter, Cherry era bem amadurecida. Enquanto ela comia, Ashley elaborou várias perguntas, mas quando ela terminou e disse que se sentia muito melhor, ele disse apenas:

—Agora se sente bem o suficiente para me contar o que está acontecendo?

—Se eu lhe contar por que fugi, o senhor me levará para Londres? — Os olhos reluzentes se anuviaram.

Ele riu.

- Não farei nenhuma promessa precipitada, exceto que a levarei de volta para Maplewood se não me contar.

-Não acredito que o senhor faria algo tão... indelicado - - disse Cherry, com uma dignidade singular, embora

parecesse haver um nó em sua garganta.

—Creio que não, mas você precisa levar em consideração a minha posição — argumentou ele. — De acordo com

o que me contou na noite passada, você não estava muito feliz, mas não senti nenhum indício de que pretendia fugir.

Mesmo assim, hoje a encontro nervosa depois de ter tomado uma decisão, provavelmente precipitada, de deixar

a casa de sua tia. Por acaso discutiu com alguém e preferiu fugir em vez de avaliar a situação? Ou será que sua tia também perdeu a calma e disse mais do que realmente sentia?

—Nós não brigamos. -- Ela fitou-o, desolada, e meneou a cabeça. - - Não discuti nem mesmo com Corinna.

Nem com Lucasta. E esta não foi uma decisão precipitada. Venho desejando desesperadamente, quase desde o momento em que minha tia me levou para Maplewood, escapar de lá. A questão é que, todas as vezes que tentei pedir à minha tia para me ajudar a arrumar um lugar onde eu pudesse trabalhar e ganhar o meu sustento, eu era acusada de ingratidão. Como se não bastasse, disse que eu voltaria a Maplewood depois do primeiro dia de trabalho, pois não sirvo para nada além de uma simples criada.

Cherry fez uma pausa e, depois de um minuto, disse em um tom esperançoso:

- Talvez o senhor não me entenda. Imagino que nunca tenha sido pobre a ponto de ficar grato por viver sob

um teto que não é seu, e agradecer todas as vezes que ganha uma fita usada, ou uma renda rasgada que uma de suas primas, em vez de jogar fora, resolve lhe dar.

- Tem razão. No entanto, engana-se quando diz que eu não entenderia. Já vi muitos casos como o seu e senti pena das vítimas de uma suposta caridade, de quem esperam incansáveis

serviços em sinal de gratidão pela... — Ashley parou de falar porque Cherry virou o rosto. -- Eu disse alguma coisa que a aborreceu? Acredite, não era essa a minha intenção.

— Oh, não — ela respondeu em um tom suave. – Peço desculpas. Foi tolice de minha parte, mas as palavras que disse trouxeram tudo à tona, senti como se tivesse levado uma apunhalada. Lucasta disse que eu nunca devo me esquecer de que sou uma menina que sempre viveu da caridade alheia.

— Que desagradáveis!

— Corinna ouviu a nossa conversa, ontem à noite — prosseguiu Cherry. — Ela é a garota mais ardilosa e mexeriqueira que se pode imaginar, e se pensa que eu não deveria dizertais coisas sobre a minha prima, sinto muito, mas é a mais pura verdade. Sempre imaginei que ela fosse a mais amável das minhas primas, e... que fosse minha amiga. Nunca a vi como uma mentirosa, nem achei que fosse capaz de inventar histórias que colocassem Oenone contra a minha tia. E tampouco sonhei que poderia fazer o mesmo comigo. Bem, ela teve uma desculpa

para se vingar de Oenone, pois esta sim, é uma garota muito desagradável, e está sempre armando intrigas.

Mas... — Seus olhos se encheram de lágrimas. — Ela não tinha motivos para ter feito aquilo comigo. Mesmo assim, distorceu tudo o que eu disse ao senhor. Disse até mesmo que o senhor não teria subido se eu não tivesse insistido.

O que não fiz, de forma alguma.

— E pensar que foi justamente o contrário.

— Sim, foi o que eu disse a elas, mas nem minha tia, nem Lucasta acreditaram. Elas... elas me chamaram de

"oferecida". Minha tia contou uma história sobre uma garota parecida comigo que acabou como Maria Madalena.

Quando perguntei o que significava isso, ela disse que se eu continuasse lançando olhares para todos os homens que cruzassem o meu caminho, eu logo descobriria. Mas eu não faço isso — Cherry afirmou com veemência. — Não foi

minha culpa se o senhor veio falarcomigo ontem à noite, e também não foi por falta minha que sir Jphn Thorleu fez a gentileza de me dar uma carona até

Maplewood em seu cabriole, no dia em que ele me encontrou voltando da vila embaixo de chuva. Assim como não foi minha culpa que o sr. Rainham veio falar comigo quando acompatihei Dianeme e Tom até a sala de estar numa tarde destas. Não me insinuei em momento algum. Apenas me sentei na cadeira encostada à parede, assim como minha tia disse para fazer, e não fiz absolutamente nada para que ele se aproximasse de mim. Juro que não fiz, sir.

As lágrimas desceram, mas ela as enxugou rapidamente.

- Tudo não passou de gentileza da parte desses cavalheiros, c dizer que tentei roubá-los de Lucasta é muito injusto.

Uma vez que ele já tinha sucumbindo ao inconsciente apelo daqueles olhos grandes, e estava comovido com a

triste história de abandono que a cercava, entendia muito bem os sentimentos que tinham acometido os dois cavalheiros; supôs quantos admiradores de Lucasta não teriam desviado as atenções para Cherry se esta estivesse bem-trajada, e se recebesse da tia as mesmas atenções e carinho demonstrados para Lucasta. Talvez não muitos, pois apesar de ter um encanto inocente, sua beleza não se comparava a de Lucasta. Se estivesse feliz, certamente não despertaria sentimentos de cavalheirismo nos homens. Estas conclusões, no entanto, serviram para acalmá-lo e ajudá-

lo a enxergar com mais clareza que a maior prioridade era convencê-la a retornar para casa.

Com um objetivo em mente, ele a encorajou a desabafar suas dores, imaginando que com isso ela se acalmasse e

colocasse a cabeça no lugar. Mas à medida que Cherry ia descrevendo a vida que levara em Maplewood, não havia nenhum sinal de alegria em seus olhos, e era impossível não acreditar nu suas palavras. Era de se admirar que, apesar de tantos maus-tratos, Cherry tinha uma desculpa para cada crueldade recebida em Maplewood. Não demonstrava ressentimentos, nem mesmo para com as obrigações que lhe foram atribuídas. l';ira ela, era seu dever prestar todos os tipos de trabalhos :nlicitados a fim de retribuir a generosidade da tia.

— Eu seria capaz de fazer qualquer coisa para que ela me amasse pelo menos um pouquinho, e apenas uma vez dissesse "obrigada".

Ashley se comoveu, não se lembrando de nunca ter ouvido nada tão triste.

Estava claro que lady Bugle não via a sobrinha como uma órfã que precisava de cuidados, mas sim como uma escrava doméstica, pronta para obedecer às ordens o dia todo e ajudar a cuidar das primas mais novas, quando solicitada.

O que mais o surpreendeu foi saber que seu breve encontro com Cherry tinha trazido tanto rancor ao coração de lady Bugie. Quanto mais observava o rosto suave à sua frente, mais compreendia por que a ambiciosa mãe e a filha tinham ficado tão furiosas quando souberam que ele se interessara por Cherry a ponto de subir os degraus para falar com ela. Lucasta era muito bela, mas Cherry era de longe muito mais falante.

Enquanto ela contava sua história, uma parte do cérebro de Ashley prestava atenção na história, enquanto a outra estava ocupada, tentando pensar no que iria fazer. Não demorou muito para que abandonasse a ideia original de mandá-la de volta para a tia. Por uma fração de segundo, chegou a considerar a possibilidade de deixá-la aos cuidados de Sephora, mas logo descartou a ideia. Quando sugeriu que ela deveria retornar para a escola da srta. Fletching, Cherry balançou a cabeça, dizendo que não poderia abusar mais da generosidade da gentil senhorita.

— Quem sabe você não possa trabalhar como professora?

— Não — ela respondeu. De repente seus olhos perderam todo a expressão de desespero e adquiriram um brilho misterioso. — Não vejo como poderia ser útil à srta. Eletching, muito menos como professora. Nunca fui de ler muito, e também não sei tocar piano. Não tenho talento para línguas, nem para pintura, e minha aritmética é péssima. Como pode ver....

Era de fato desanimador. A Ashley só restou rir.

— Bem, agora que me contou tudo que não sabe fazer, conte-me quais são as suas habilidades.

Mais uma vez, uma névoa desceu sobre os olhos doces.

- Nada. Minha tia costuma dizer que só sirvo para trabalhos domésticos, e acho que é verdade. Enquanto estive em Maplewood aprendi muito sobre como cuidar de uma casa, e sei tomar conta de senhoras doentes, pois

quando a falecida lady Bugie adoeceu a ponto de não sair mais da cama, havia dias em que ela não permitia que ninguém, além de mim, entrasse em seu quarto. Acho que ela gostava de mim, pois nunca ralhou comigo como

costumava fazer com minha tia, com Lucasta e Oenone. Por isso imaginei que eu seria um consolo para meu avô.

Creio que ele seja um homem muito solitário, exceto pelos criados, o que deve ser muito melancólico. O senhor não acha?

— Certamente seria, para mim, mas dizem que seu avô sempre foi um recluso. Não o conheci pessoalmente,

mas se for verdade o que dizem, ele não é uma pessoa muito amável. Afinal, você mesma disse que ele escreveu uma carta para a srta. Fletching se eximindo das obrigações de pagamento, não foi isso?

- Sim, mas não acho que ela tenha pedido a ele para tomar conta de mim. A srta. Fletching queria que ele pagasse a dívida do meu pai, e pelo que eu soube, meu avô sempre foi sovina.

— Sua tia saldou a dívida?

- Não. Ela disse que não era responsável, mas que aliviaria o fardo da srta. Fletching tirando-me da escola.

Sendo assim, ninguém pagou nada ainda. Pretendo guardar cada moeda que ganhar, e um dia pagarei tudo. —

Cherry ergueu o queixo, orgulhosa, antes de prosseguir: — Tenho certeza de que se meu avô me der uma chance de explicar, ele não irá se recusar a me oferecer abrigo até que eu encontre uma solução para a a minha situação.

Ashley não tinha tanta certeza. No entanto, não importava o

quão doente estivesse ou por mais

excêntrico que fosse, lorde Nettlecombe não poderia dar as costas para a neta desamparada, que não tinha

outro teto para se abrigar em Lonfres. A probabilidade era de que ele se afeiçoasse a ela, e se isso acontecesse, seu futuro estaria garantido. Se acontecesse o contrário, no entanto, Ashley trataria do assunto diretamente com lorde Nettlecombe.

— Muito bem. Eu a levarei para Londres.

Cherry ficou em pé subitamente, tomou as duas mãos dele e beijou-as antes que ele pudesse impedi-la.

— Oh, obrigada, sir! — ela exultou, com gratidão na voz e os olhos brilhando de alívio. — Muito obrigada!

-Deixe de tolice. -- Ashley deu um tapinha afável no ombro delicado. -- Vamos esperar até que seu avô a receba antes de ficar tão agradecida. Se ele não recebê-la, então não terá por que me agradecer.

Em seguida, Ashley se retirou para pagar a conta, avisando a ela que em minutos a carruagem estaria na porta, cortando quaisquer agradecimentos adicionais.

Duas horas e meia mais tarde, Ashley entrava com sua carruagem pela Rua Albermarle, depois de ter guiado seus cavalos em um ritmo rápido e vigoroso. Até mesmo Stebbing se segurou no assento por três vezes. O criado só respirou aliviado quando chegaram às cercanias de Londres.

Cherry, cujo espírito tinha se alegrado no instante em que Ashley dissera que a levaria para Londres, adorou a viagem. Ela confiava nele, o que ele considerou um tanto ingénuo, pois era a primeira vez que o via conduzindo uma carruagem.

Um cabriole tinha sido sua única experiência em carro aberto, e apesar de seu primo Stonor ter uma carruagem, esta era bem mais simples se comparada com o veículo leve e gracioso de Ashley. Cherry gostou dos cavalos também, e disse isso a ele, que agradeceu com certa gravidade, quebrada apenas pelo leve tom de riso na voz.

— O senhor não imagina como estou me divertindo -anunciou Cherry, alegremente. - - Tudo é novidade.

Depois que meu pai me levou para Bath, eu nunca mais viajei, e não me lembro muito da nossa última vez. Além do mais, viajamos

cm uma carruagem fechada, o que me impediu de admirar a paisagem a contento.

Cherry continuou falando no mesmo tom sincero, interessada em tudo que seus olhos viam, a todo momento virando a cabeça para obter uma visão melhor de um campo florido, ou de uma cabana pitoresca, conforme passavam ao longo da csirada. Entretanto, à medida que foram se aproximando de Londres, ela foi se calando, uma circunstância que chamou a iilenção de Ashley.

— Cansou de falar, gaita de foles? Falta pouco, agora.

- Nem um pouco. — Ela sorriu e meneou a cabeça. — Peço desculpas por minha língua ter disparado como uma matraca. Por que o senhor não me mandou ficar calada? Devo tê-lo cansado.

- Pelo contrário. Adorei nossa conversa. Por que se calou de repente? Está preocupada com a reação de seu avô?

-- Um pouco — confessou ela. — Eu não sabia que Londres e r a t ão grande, e... e tão barulhenta. Não consigo imaginar o que Farei se meu avô não quiser me receber. Gostaria de ter algum conhecido aqui.

__ Não se preocupe. A probabilidade de ele não querer recebê-la é mínima. E se isso acontecer, prometo que não a abandonarei.

Ashley estava confiante, pois quanto mais pensava sobre o assunto, mais descartava a ideia de que lorde Nettlecombe teria coragem de dar as costas à neta.

Entretanto, quando puxou as rédeas em frente à casa de lorde Nettlecombe, na Rua Albermarle, seu otimismo sofreu um tremendo baque. Todas as janelas da casa estavam fechadas; a excentricidade do lorde não permitira que ele permanecesse em Londres durante o verão.

O senhor gostaria que eu tocasse a sineta? — indagou Stebbing. .

__Sim, por favor — disse Ashley.

Nesse ponto Cherry já tinha se dado conta da gravidade da situacão, e estava em pânico. Contraiu as mãos sobre colo, em uma corajosa tentativa de se manter calma.

— Pelo visto a casa está vazia, não acha, sir?

- — É o que parece. Mas deve ter algum criado que possa nos informar sobre o destino de seu avô. Tente dar a volta pelos fundos, Stebbing.

— Sinto muito, milorde, mas o portão está trancado —

observou o criado, com certo tom de

satisfação.

- Veja se algum vizinho tem alguma notícia.

A casa à esquerda tinha sido alugada para o verão, portanto os novos vizinhos não conheciam lorde Nettlecombe; e a da direita pertencia a um casal de idosos, cujo porteiro informou que tinha visto o velho ranzinza deixando a casa na semana anterior, mas que não que fazia ideia de para onde ele tinha ido.

Quando Stebbing retornou à carruagem para dar essas informações, Cherry reagiu com um suspiro angustiado.

—Oh, o que farei agora?

—Devo perguntar nas outras casas, milorde?

—Não. Já perdemos tempo suficiente, e seja lá onde estiver lorde Nettlecombe, não o alcançaremos ainda hoje. Vamos embora. — Ashley, então voltou suas atenções para a passageira agitada, e disse com uma alegria que estava longe de estar sentindo: — Agora, diga por que está tremendo como um manjar branco? O

desencontro não foi o melhor que poderia ter acontecido, mas garanto que não há motivos para desespero. --

Colocou os cavalos em movimento, fazendo meia-volta e acrescentando com uma risada rouca: - - É claro

que, se descobrirmos que ele está bebendo água em Bath, aí sim devemos nos preocupar, não acha?

Cherry não deu atenção à insinuação de que o avô poderia estar gravemente doente, buscando a cura nas águas de Bath, e simplesmente repetiu:

— O que farei agora? Sir, eu... não tenho muito dinheiro. —A revelação saiu em um ímpeto e terminou em um

soluço.

A primeira coisa que tem de fazer é se acalmar e deixar que eu me encarregue de encontrar uma solução.

Prometo que revolverei tudo, num piscar de olhos.

—O senhor não entende. Aposto que nunca se viu nesta cidade apavorante com apenas alguns xelins na bolsa, e sem saber para onde ir, ou... Para onde pretende me levar? O senhor sabe onde fica o cartório de registro civil? Preciso legalizar a minha situação o quanto antes. Serei obrigada a me hospedar em algum lugar por uma noite, ou talvez por alguns dias, pois mesmo que consiga um emprego, suponho que não possa me mudar imediatamente.

—A senhorita está se esquecendo de que vai precisar de uma carta de recomendação.


- Bem, posso pedir uma à srta. Fletching.

- Tenho certeza de que ela não negará, mas devo lembrá-la de que levará tempo até que consiga entrar em

contato com ela.

Cherry desanimou, mas se recuperou logo.

- É verdade. Mas o senhor poderia me recomendar, não poderia?

- Não — respondeu ele, convicto.

- Nunca imaginei que pudesse ser tão indelicado.

Ele sorriu.

- Não estou sendo indelicado. Creia em mim, nada poderia atrapalhar mais as suas chances de conseguir um emprego do que uma carta de recomendação minha, ou de qualquer outro homem solteiro da minha idade.

— Oh! - - ela exclamou, assimilando a implicação. A buzina de uma carruagem a assustou, fazendo-a saltar sobre o assento. — Como pode suportar viver em uma cidade odiosa, barulhenta e confusa como esta, onde as ruas são tão cheias de carruagens e charretes que... Tome cuidado! Tenho certeza de que vamos trombar contra algo...

Preste atenção naquela carruagem vindo em nossa direção!

- Feche os olhos - - aconselhou Ashley, divertindo-se com a inusitada falta de confiança que a acometera.

— De jeito nenhum. Preciso me acostumar. Londres é sempre tão movimentada assim?


- Sinto informar que costuma ser bem mais agitada. Na verdade, neste momento até que está vazia.

— Não entendo a razão de as pessoas escolherem morar aqui.

Eles tinham abacado de deixar Piccadilly Circus para trás, e agora entravam na Rua Arlington, seguindo para a casa de Ashley.

—Bem, eu sou uma dessas pessoas estranhas, e a estou levando para minha casa, onde poderá descansar e se

refrescar antes de continuarmos a nossa jornada.

—Acho que não é uma boa ideia eu ir para a sua casa. Posso ser uma tola, como disse, mas sei que não é certo uma moça entrar na casa de um cavalheiro, e...

- Tem toda a razão. Mas preciso acertar alguns negócios particulares, e acredito que você não iria gostar de ter de esperar na rua, não é? Portanto, o melhor que posso fazer é entregá-la aos cuidados de minha governanta por meia hora. Direi a ela que minha tia Sephora a deixou sob meus cuidados, e que a estou levando para Hertfordshire.

— Para aonde está me levando? - - Cherry perguntou, nervosa.

- Para Hertfordshire. Vou pedir a uma antiga e querida amiga que tome conta de você enquanto procuro por seu avô. O nome dela é Henrietta Silverdale, e ela mora com a mãe em um lugar chamado Inglehurst. Não fique tão assustada. Tenho certeza de que você irá gostar dela, e mais ainda de que ela a receberá com muita gentileza.

O veículo foi diminuindo a velocidade até parar diante de um sobrado, e Stebbing descer.

- Fiz mal em fugir, não é mesmo? — comentou Cherry em um sussurro. — Agora percebi, pois tudo deu errado,

e... só posso contar com o senhor para me ajudar a sair desta enrascada. Mas na verdade, sir, eu nunca teria lhe pedido para me dar uma carona até Londres se tivesse imaginado tudo isso.

Você está cansada, e tudo lhe parece sombrio agora, não é mesmo? — Ashley pousou a mão sobre a dela, procurando transmitir algum conforto. — Confie em mim. Já não lhe disse que não a abandonarei?

— Acredite, não era minha intenção me tornar um fardo para o senhor.

— Sei disso. O que você não sabe é que não considero esta aventura como um fardo e sim como um desafio.

Estou determinado a procurar seu avô por toda a face da Terra, se for preciso. — Ashley viu que o mordomo tinha aberto a porta e vinha na direcão da carruagem, e por isso soltou a mão de Cherry, ao dizer: — Bom dia, Aldham.

Tain já chegou?

— Há uma hora, milorde — respondeu Aldham, sorrindo para o visconde, mas lançando um olhar

desconfiado para Cherry.

O mordomo conhecia Ashley desde que este era um bebé, quando fora contratado como pajem em Wolversham, onde progredira a lacaio, e anos depois ao honrado posto de mordomo. Conhecia-o tão bem quanto Stebbing e muito mais do que Tain, o fiel valete do visconde, que era o único membro da criadagem da casa que não tinha nascido e crescido em Wolversham. Ele podia se lembrar do nome, se não fosse tão discreto, de cada uma das formosas cipriotas com que seu volúvel senhor já havia se envolvido, desde a primeira rapariga que o introduzira na arte do amor até a sublime aventureira que quase acabara com ele. Além do mais, sempre cuidara das festas oficiais oferecidas na Rua Arlington.

Apesar de toda a sua experiência, aquela era a primeira vez que via Ashley trazer para casa uma moça desacompanhada em plena luz do dia. A primeira impressão foi que o visconde tinha trazido do campo uma rapariga.

Depois de avaliar Cherry melhor, Aldham decidiu que ela não se parecia com uma qualquer. Além do mais, sabia

que Ashley nunca apreciara moças tão novas. E de acordo com seus olhos experientes, Cherry não passava de uma menina que tinha acabado de sair da adolescência. Entretanto, aceitou a explicação superficial da presença dela, conduzindo-a até o vestíbulo com um meio sorriso nos lábios, saindo em seguida para chamar a sra. Aldham.

Ashley se afastou para trocar algumas palavras com seu segundo mentor e conselheiro, cuja fisionomia de censura o levou a dizer:

— Não olhe assim para mim, Stebbing, como se eu não soubesse que entrei em uma enrascada.

— Milorde, quando o ouvi dizendo para a senhorita que iria levá-la para Hertfordshire, mal pude acreditar, pois me parece que a melhor opção seria levá-la para Wolversham.

— Pensei nessa possibilidade, mas a descartei.

— Vou tomar a liberdade de lhe dizer algo, milorde, mesmo que me demita por isso. Mas eu não poderia dormir

em paz se não o alertasse.

— É claro que não vou despedi-lo. E mesmo que o fizesse, sei que você não iria embora — assegurou Ashley.

Um dos cantos da boca de Stebbing se ergueu em um sorriso involuntário, mas ele se recusou a ceder.

— Milorde, eu o conheço desde criança, mas o senhor nunca fez nada tão maluco a ponto de eu imaginar que tenha perdido o juízo. Não acho que seja uma boa ideia o senhor levar a srta. Cherry para a casa da srta.

Henrietta.

— Claro que levarei. A menos que tenha uma sugestão melhor? — Ashley fez uma pausa, fitando o criado com um olhar zombeteiro. — Não tem nenhuma, tem?

— O senhor não deveria tê-la trazido para Londres — resmungou Stebbing.

— Acho que não, mas é perda de tempo chorar sobre o leite derramado. Eu a trouxe para cá, e agora terei de arcar com as consequências. Você deve saber que abandoná-la aqui seria uma atitude irresponsável e cruel. Não farei isso, por mais maluco que pense que eu esteja. — Ashley percebeu então que Stebbing estava muito preocupado, e sorriu, pousando a mão sobre o ombro do criado. — Não se preocupe, seu velho rabugento. A quem

mais eu poderia recorrer para me ajudar, senão a srta. Hetta? Ela nunca falhou comigo. Você sabe muito bem

quantas vezes ela me ajudou a escapar de outras enrascadas.


— Isso aconteceu quando vocês eram crianças. Hoje a situação é bem diferente, milorde.

- Nem um pouco. Troque os cavalos, que pretendo partir para Inglehurst daqui a uma hora.

Dito isso, Ashley não deu a Stebbing a oportunidade de protestar, pois seguiu apressado em direção à casa.

Já passava das sete horas quando a elegante carruagem de Ashley cruzou os portões de Inglehurst, após uma

viagem de três horas. Reanimada tanto pela gentileza quanto pelo tratamento neutro da sra. Aldham e pelo chá que tinha sido servido, Cherry estava de ótimo humor; suprimira da melhor maneira a timidez e a vergonha de uma moça, que, depois de perceber tarde demais a sua imprudência, viu-se sem outra opção senão se submeter às determinações do seu protetor e permitir que ele a levasse para a casa de uma viúva que morava com a filha e totalmente desconhecidas a ela. Só lhe restava esperar que as duas não se ofendessem com a sua intrusão, ou a olhassem com desaprovação pelo seu comportamento. Ela mesma já se recriminava por ter cometido um ato impróprio e imperdoável.

Se tivesse conseguido pensar em uma alternativa melhor ao plano do visconde, ela a teria adotado com alegria, mesmo que se tratasse de uma oferta para auxiliar de cozinha. Contudo, não lhe ocorreu nenhuma alternativa. Além do mais, a ideia de se ver sozinha em Londres, com apenas alguns xelins na bolsa e nenhum conhecido a quem pudesse recorrer naquela cidade assustadora, era algo que ela não podia encarar.

No caminho, Ashley achou prudente contar a Cherry que lady Silverdale, mãe de Henrietta, não contava com uma

saúde perfeita, e consequentemente tinha várias alterações de humor, o que a tornava uma pessoa um tanto difícil e inconstante.

Cherry ouviu tudo com atenção, e, para sua surpresa, pareceu encontrar um encorajamento na terrível descrição da futura anfitriã.

— Então, acho que talvez eu possa ser útil na casa. Até mesmo minha tia costuma dizer que tenho jeito para cuidar de idosos doentes e inválidos, e, sem querer ser convencida, acho que é verdade.

Ashley guardou para si um comentário que ia fazer, e preferiu dizer simplesmente que lady Silverdale não era velha e não estava à beira da morte, e apesar de achar que Cherry tinha uma paciência de santa, seria injusto desanimá-la com mais comentários sobre as mudanças de humores da senhora em questão.

Eles foram recebidos por Grimshaw, que não demonstrou nenhum sinal de prazer ao rever aquele que tinha corrido livremente por Inglehurst quando atingira idade suficiente para montar um pónei, e informou em tom monótono que se a senhora tivesse sido avisada com antecedência sobre a chegada do visconde, ela sem dúvida teria mandado esperar um pouco mais para servirem o jantar. Como isso não ocorrera, ele lamentava em informar que lady Silverdale e a srta. Henrietta já se encontravam na sala de estar.

- Sim, eu compreendo, mas acho que lady Silverdale irá me perdoar. — Ashley já estava habituado ao costumeiro ar de desprezo do mordomo para se sentir ofendido. — Por favor, avise a srta. Hetta que quero falar com ela em particular. Estarei esperando na biblioteca.

Grimshaw podia ser insensível ao sorriso de Ashley, mas não resistiu ao brilho dourado da moeda que deslizou em sua mão. Nem foi preciso se rebaixar para verificar o valor, pois seus dedos experientes informaram que se trava de um guinéu. Sendo assim, ele se curvou do modo habitual e saiu para cumprir com seu dever, relanceando o olhar para Cherry em uma demonstração de ultraje.

Ashley conduziu Cherry a uma pequena sala, indicando uma poltrona para ela se sentar e esperar até que ele trouxesse Henrietta para apresentar-lhe. Depois disso seguiu para a biblioteca, onde após alguns minutos foi agraciado com

a companhia da amiga.

— O que significa tudo isso, Ash? Por que a visita inesperada? E por que tanto mistério?

Ele tomou-lhe as mãos e as segurou com firmeza.

—Hetta, estou em uma enrascada.

—Eu já deveria ter imaginado — disse ela, rindo. — E sou eu que vou ajudá-lo?

—Era essa a minha esperança - - ele confirmou com um sorriso matreiro.

- Você é um irresponsável — disse Henrietta, livrando as mãos e sentando-se no sofá. — Antes de mais nada, sente-se e conte tudo, depois verei como poderei ajudá-lo.

Ashley contou toda a história, sem esconder nem um único detalhe. Henrietta arregalou os olhos, mas ouviu tudo calada até o fim.

— Eu poderia tê-la levado para Wolversham, mas você conhece meu pai, Hetta. Portanto só me restou trazê-la

para cá.

— Não sei se posso ajudar, Ashley — declarou ela por fim.

— Mas, Hetta....

— Não imagino como pôde considerar essa hipótese. Sei muito bem como é o seu pai, assim como você conhece

bem a minha mãe. A opinião dela sobre a situação de Cherry não será diferente da que seu pai teria.

— Sei disso, mas não contarei a ela a história verdadeira. Tudo que tenho a fazer é dizer que minha tia Sephora me encarregou de acompanhar a sobrinha até a casa de lorde Nettlecombe. O imprevisto ocorreu porque

o avô da srta. Cherry não estava em casa, ou por ter confundido a data da chegada da neta, ou porque a correspondência com a informação se extraviou. Como fiquei sem saber o que fazer com a moça, trouxe-a para cá.

— E o que dirá quando minha mãe perguntar por que não a entregou aos cuidados de sua mãe?

Ashley levou mais de dois minutos para encontrar a resposta para a embaraçosa pergunta, mas finalmente respondeu,

com considerável desembaraço:

— Quando estive em Wolversham, há menos de duas semanas, meu pai não estava nada bem, e minha mãe estava

muito preocupada com ele para ser incomodada com uma visitanteinesperada.

Henrietta exalou um longo suspiro.

— Você não vale nada, Ash.

Ele riu.

— Como pode dizer isso? Há uma boa parcela de verdade na história. Você não espera que eu diga à sua mãe que se eu chegasse em Wolversham de braço dado com a srta. Cherry, meu pai não apenas iria imaginar que estou apaixonado por ela, mas que a levei para casa com a esperança de cativá-lo e assim conseguir a bênção para um tipo de casamento que ele abominaria. Até acho que a srta. Cherry teria chances de conquistá-lo, pois é um encanto de moça, mas essa não é a questão.

— Ela é bonita?

— Sim, muito. Apesar do vestido, que não foi feito para o seu tamanho, e dos cabelos desarrumados. Tem olhos

grandes e o rosto em formato de coração, lábios benfeitos e uma boa dose de charme inocente. É muito diferente do seu estilo, mas você verá por si mesma quando forem apresentadas. Quando a vi pela primeira vez, ela parecia assustada, com medo até da própria sombra, o que, na maior parte do tempo, é verdade, em decorrência do modo

como foi tratada na casa da tia. Hoje não está mais tão tensa. É uma moça muito falante e tem um

brilho alegre no olhar. Acho que você vai gostar dela, Hetta, e tenho certeza de que sua mãe também. Pelo que me contou, ela tem paciência para cuidar de pessoas idosas. — Ashley fez uma pausa, buscando algo na fisionomia indecifrável da amiga. — Vamos, Hetta. Você não pode falhar comigo. Sempre contei com você para tudo. Quando você precisou de mini, estive presente, não é mesmo?

Um brilho bem-humorado reluziu nos belos olhos de Henrietta.

— Você pode até ter me ajudado uma ou duas vezes quando éramos crianças, mas não me meto em uma enrascada

há anos.

— Você não, mas Charles sim — ele retorquiu.-'— Você não pode negar que sempre ajudei seu irmão todas as vezes que me pediu.

— Bem, não posso — ela reconheceu. — Assim como também não posso negar que várias vezes você

aconselhou meu irmão na administração da propriedade. O que me coloca em uma situação desconfortável de fazer o que me pede é que o próprio Charles está em casa. E se a srta. Cherry for de fato tão bela como você diz, e tão encantadora, é provável que ele se apaixone por ela. Você o conhece o suficiente para saber que falo a verdade.

— Sim, assim como sei da facilidade que ele tem para se cansar de um novo amor. Da última vez em que o vi,

Charles estava enrolado com uma dama de aproximadamente trinta anos, viúva havia menos de um ano.

— Foi a sra. Cumberttress. Essa já ficou no passado, Ash.

— Isso quer dizer que ele já deve estar à procura de outra senhorita mais velha do que ele. Acredite no que eu digo, Hetta, não há motivos para preocupação. A srta. Cherry é muito novinha para os padrões do seu irmão.

Além do mais, ela não ficará o suficiente por aqui para que Charles tenha tempo de se apegar a ela. Por falar nisso, o que ele está fazendo em casa? Ele não ia para a Irlanda, acompanhado de dois amigos a fim de procurar cavalos de raça?


— Ele foi, mas teve a infelicidade de capotar sua nova carruagem três dias atrás. Machucou a cabeça, os braços e quebrou duas costelas — contou ela, em tom de lamento.

— Acha que ele ia atrás de mulher?

__ É provável, apesar de ele não confessar. Charles ainda tá acamado, mas não acredito que minha mãe conseguirá lantê-lo em repouso por muito mais tempo. Creio que a visita ;ie Simon servirá para acalmá-lo... Oh, céus!

Quase me esqueci contar. Seu irmão veio jantar conosco, e agora está conver-indo com Charles no quarto. Pelo menos estava, até agora hápouco, embora eu ache que minha mãe já deva tê-lo tirado de lá, pois havia estipulado o tempo de visita de no máximo vinte minutos.

— Era só o que faltava! — exclamou Ashley, desanimado.

Henrietta não conseguiu conter o riso.

— Se um estranho o ouvisse falando assim, iria imaginar que você não gosta muito do seu irmão caçula.

— Bem, ele não é nenhum estranho aqui. Mas sabe como é, talvez eu tenha de me desfazer de uma boa quantia para garantir que ele não conte a ninguém sobre o meu problema. Se ele não falar nada e nem pedir dinheiro pelo segredo, então já não o conheço tão bem.

Henrietta ralhou com Ashley por falar do irmão daquela forma. Os temores do visconde, no entanto, provaram—

se verdadeiros quando, ao voltarem para a sala depararam com a figura inconveniente de Simon grecejando para

Cherry. A confirmação veio com o brilho malicioso no olhar com que Simon cumprimentou o irrnão. Ashley fingiu não ter visto a cena, apresentando Henrietta a Cherry.

— Devo alertá-la, Hetta, que esta pobre moça veio para cá contrariada. Suspeito que ela imagine que eu a esteja entregando a um ninho de cobras.

Cherry levantou-se rapidamente, corou e vacilou ao se abaixar para uma cortesia.

— Oh, não. Não... não pensei nada disso, madame.

— Bem, se foi esse o caso, a culpa é toda sua, Ash — acusou Henrietta, aproximando-se, com as mãos estendidas para a convidada e um sorriso nos lábios. _ Que belo retrato meu você deve ter pintado, Ash. Como Vai, srta.

Cherry? Soube de suas desventuras, e como ficou abalada ao descobrir que seu avô não estava na cidade. Espero que Ash o encontre logo, e nesse meio tempo, gostaria que se sentisse à vontade em Inglehurst.

— Obrigada. Sinto muito pelo incómodo, madame. — Cherry ergueu os olhos, que reluziam copm lágrimas de agradecimento.

Satisfeito com as apresentações, Ashley transferiu sua atenção ao irmão.


—Pelo amor de Deus, Simon, que tipo de traje é esse?

—Não falei que seu irmão não iria gostar, Simon? — Henrietta disse, rindo.

Simon era um rapaz muito elegante, mas estava usando um traje incomum. O fato de ter a altura e corpo para adotar quaisquer extravagâncias, sem parecer ridículo, não abrandou em nada a opinião de seu irmão mais velho quanto ao novo estilo. Simon era um rapaz bonito, cheio de vida e divertido.

— Isto, Ash, está na última moda. Você saberia se fosse mesmo tão elegante quanto imagina ser. __ Ele colocou um pé à frente enquanto falava, e indicou com um floreio de mão seu traje novo. — Estou usando uma calça Petersham.

- Estou vendo — assentiu Ash.

Em seguida sacou seu monóculo e, através da lente, avaliou o irmão, dos pés até as extravagantes pontas do colarinho. Estas competiam com a altura da gola do paletó, que se erguia entre as ombreiras exageradas. Sobre as mangas havia vários botões pregados, e os que ficavam mais próximos aos punhos estavam abertos. Em torno do pescoço ele usava um lenço largo.

-Você teve a coragem de se sentar à mesa de jantar com lady Silverdale nesse traje? - - indagou Ashley, depois de avaliar todo o exagero e deixar o monóculo cair.

- Mas, Ash, ela insistiu para que eu ficasse. - - Simon fingiu-se ofendido. -- Ela gostou da minha roupa nova, não é mesmo, Hetta?

—Acho que mamãe ficou atordoada - - Henrietta respondeu. — E quando estava se recuperando do choque,

você já a tinha induzido a convidá-lo para o jantar, bancando o bajulador.

—O que é isso? — protestou Simon. — Ela ficou contente quando me viu!

Henrietta riu e voltou suas atenções para Cherry, que estivera ouvido a brincadeira com um brilho apreciativo nos olhos. Foi então que ela percebeu que Ashley tinha sido fiel à verdade quando descrevera Cherry, e se perguntou, com uma inexplicável pontada no coração, se ele não estava mais encantado com ela do que imaginava. Reconhecendo vivenciar um sentimento tolo, respirou fundo, recuperando-se da pontada de ciúme que sentiu de Cherry, c lomou-lhe a mão, dizendo:

-Vou apresentá-la à minha mãe, mas tenho certeza de que você deve estar com vontade de tirar a touca e a capa antes. Vou levá-la até meu quarto, enquanto Asliley explica para minha mãe todo o acontecido. Ash, mamãe está na sala de estar.

Ele assentiu, e teria saído logo atrás das damas se Simon não o tivesse detido para perguntar se ele pretendia ou não passar a noite em Wolversham, na casa do pai de ambos.

-Não, volto ainda hoje para Londres. Mas quero falar com você antes de partir, portanto não vá embora antes

de conversarmos.

— Mal posso esperar -- disse Simon, com um sorriso travesso.

Ashley lançou um olhar significativo ao irmão e saiu para falar com lady Silverdale.

— Meu querido Ashley! - lady Silverdale o saudou com um sorriso largo.

Ele beijou-lhe a mão, segurou-a ainda por um minuto e se empenhou com afinco na tarefa de bajulá-la, fazendo elogios.

— Minha querida lady Silverdale! Não considere como atrevimento o que vou lhe dizer, mas como é possível apresentar-se ainda mais jovem e bela do que da última vez em que a vi?

Se estivesse com um leque nas mãos, cia sem dúvida teria batido com o objeto na mão dele. Com a falta do mesmo, contentou-se em revidar com um tapinha de brincadeira.

— Bajulador.

Ashley negou, e ela aceitou com uma complacência advinda dos tempos de juventude, quando fora uma moça de beleza esplendorosa e alvo de inúmeros galanteios. O tempo e uma vida de indolência resoluta tinham cobrado seu preço, mas em geral muito da beleza de outrora ainda restava naquele rosto marcado.


Viúva havia anos, lady Silverdale levava uma vida discreta e, aos olhos de todos, totalmente dedicada aos filhos.

Ashley, amigo da família desde sempre, sabia da preferênciaíque a senhora tinha pelo filho, e assim iniciou a conversa, perguntando sobre o estado de saúde de Charles.

Aos poucos e com muita habilidade, ele foi introduzindo a história de sua protegida e sobre o favor que viera pedir encarecidamente a ela. Tudo estava indo muito bem até ele revelar que Cherry era neta de lorde Nettlecombe. Lady Silverdale explicou que não desejava ter seu nome ligado a nenhum membro daquela família.

- Não posso culpá-la, madame. Quem gostaria de se relacionar com eles? Mas tenho certeza de que seu coração

irá se condoer quando eu terminar de lhe contar a comovente história desta moça.

Depois de ter ouvido todo o triste relato, lady Silverdale ninda não sabia como dizer a Ashley que não pretendia acolher ninguém. E antes mesmo que se pronunciasse, a porta se abriu e Henrietta entrou, acompanhada de Cherry.

— Mamãe, esta é Cherry. Ashley já deve ter contado como ela tem passado por momentos difíceis. Ela está exausta depois de tudo o que aconteceu, mas assim mesmo insistiu para que a trouxesse até a senhora, antes de levá-la para o quarto.

- Henrietta se voltou para Cherry. — Agora, minha querida, você poderá ver por si mesma que minha mãe, assim como eu, não é nenhuma cobra.

- Encantada... - cumprimentou lady Silverdale com voz fraca e um leve inclinar de cabeça para Cherry. —

Hetta, minha querida, providencie o meu chá calmante.

Sem jeito, Cherry sussurrou:

— Eu não deveria ter vindo. Oh, eu sabia que não deveria! Peço desculpas, senhora...

Lady Silverdale era egoísta, mas não era uma mulher insensível, e a fala doce, combinada com o rosto pálido de Cherry, ;i a lotou consideravelmente. Era impossível que alguém tivesse coragem de atirar à rua a pobre moça. Desse modo, apesar de manter a encenação de que estava prestes a desmaiar, e prosseguir com a fala ofegante, ela disse:

— Oh, de forma alguma. Perdoe se deixarei para a minha filha a missão de encaminhá-la até o quarto. Não tenho me sentido muito bem, e meu médico aconselhou-me a fazer o mínimo esforço. Mas, por favor, diga se estiver precisando de algo. Um copo de leite, talvez, antes de se deitar.

— Acho que ela precisa de algo mais substancial do que um copo de leite, senhora — sugeriu Ashley, percebendo que Cherry estava fazendo cerimónia.

— Sim, é claro — concordou Henrietta. — Vou mandar servir uma refeição para ela no quarto.

— Oh, obrigada! — exultou Cherry. — Não sou merecedora de tanta gentileza, mas aceito a oferta. Tia Bugle nunca permitiu que eu...

— Que nome você falou?! — indagou lady Silverdale,abandonando a pose de moribunda e sentando-se ereta.

— Minha tia B-Bugle — Cherry hesitou.

— Aquela mulher! — Lady Silverdale exclamou com rancor. — Está me dizendo que ela é sua tia, mocinha?

— Sim, senhora.

— A senhora a conhece, mamãe?

— Fomos apresentadas à sociedade na mesma temporada — lady Silverdale revelou em tom dramático. — Peço

que não fale mais uma palavra sobre Amélia Bugle. Era uma moça exuberante e desdenhosa, que se insinuava para todos os homens que cruzassem seu caminho. Achava-se lindíssima, o que não era, pois sua figura era deplorável, especialmente o nariz. E não posso nem me lembrar de como ficou convencida quando agarrou lorde Bugle. Desse dia em diante, ela passou a se considerar parte da alta sociedade. Isso me faz rir só de lembrar.

Mas riso não parecia ser a emoção predominante, apesar de lady Silverdale ter soltado um som de desdém, que mais soou como uma risada sarcástica. Em seguida, deu um tapinha no assento vago a seu lado, num claro convite a Cherry.

— Venha aqui, minha cara, e me conte tudo sobre sua tia.

Estou convencida de que ela tenha abusado de você, pois pelo que me lembro, Amélia nunca foi gentil para com as pessoas menos favorecidas. Você fez muito bem em deixá-la.

Percebendo que a mãe agora estava mais interessada em saber sobre o destino de sua antiga rival, Henrietta aproveitou a oportunidade para trocar algumas palavras com Ashley.

— Que coincidência oportuna, não acha? — indagou, em voz baixa. — Gostaria de saber o que a tal mulher deve ter feito para despertar tanto rancor em mamãe...

- Eu também. Dependo de você para descobrir a resposta.

- Talvez as duas tenham sido rivais no quesito beleza - especulou Henrietta. — Mas isso não vem ao caso agora. Cherry ficará conosco até que você encontre o avô dela, mas o que você quer que eu diga a ela para fazer?

Não seria melhor que ela escrevesse uma carta para a tia, informando que está em Inglehurst? Não acho correto que ela tenha partido sem deixar uma palavra. Lady Bugie não pode ser tão monstruosa a ponto de não se preocupar com o desaparecimento da sobrinha.

- Concordo — ele assentiu com certa relutância. — Mas acho melhor, Hetta, dizer a ela para escrever uma carta informando que foi visitar o avô. Espero descobrir o paradeiro dele em poucos dias, pois se ela mencionar ínglehurst, isso levará ao meu nome, e consequentemente lady Bugie fará perguntas à minha tia Sephora, e então estarei em maus lençóis.

—O que acha de escrever uma carta à sua tia, explicando tudo?

—Não, Hetta, eu não poderia. Minha tia não gosta de lady Bugle, mas isso não significa que queira arrumar uma briga, assim como sei que ela não iria ficar nada contente comigo por tê-la envolvido nesta confusão.

- Tem toda a razão. Eu não tinha considerado essa hipótese. Você pretende passar a noite aqui, ou vai com Simon para Wolversham?

— Nenhum dos dois, voltarei para Londres. Você me conhece, sabe que amanhã cedo estarei andando pela


cidade

em busca de alguém que me dê alguma informação sobre Nettlecombe. Ah, é claro. Isso tudo servirá de lição para mim.

Não se deve resgatar uma donzela em perigo.

Henrietta sorriu, e Ashley tomou-lhe a mão e beijou-a.

— Obrigado. Você é minha melhor amiga, e sempre lhe serei grato por isso.

— Oh, pare com isso! Se pretende voltar ainda hoje para Londres, então é melhor ir andando, pois pretendo levar Cherry para o quarto imediatamente. Ela parece tão cansada que mal consegue manter os olhos abertos. Vou pedir a Grimshaw para providenciar um jantar para você e pedir que Simon o espere na sala de jantar.

— Muito obrigado — Ashley agradeceu mais uma vez e se despediu de sua protegida.

Cherry se levantou quando viu que o visconde vinha em sua direção. Ashley, então, constatou que de fato parecia muito cansada. Foi com esforço que ela sorriu e agradeceu por toda a gentileza. Ele a interrompeu e fez um afago na mão delicada. Em seguida prometeu a lady Silverdale que viria se despedir assim que tivesse terminado de comer e saiu rumo à sala de jantar.

Lá, encontrou o irmão sentado de lado diante da mesa, com um cotovelo apoiado sobre o tampo, as longas pernas, na chamativa calça Petersham, esticadas à frente, e uma garrafa de conhaque a seu lado. Grimshaw, com uma expressão de ultraje e ofensa, puxou a cadeira para Ashley e se desculpou pela falta de fartura, dizendo que lagosta e frango era o que tinha sobrado do jantar.

Durante a refeição, Ashley explicou ao curioso irmão como ele tinha se metido em toda aquela confusão, e com a ajuda de uma generosa quantia, conseguiu convencer o rapaz de como era importante que seu pai não ficasse sabendo de nada do que tinha se passado.


Capítulo III

Naquela noite, antes de os irmãos se despedirem, Simon guardou a quantia de dinheiro no bolso e perguntou em um tom de voz suave e malicioso se Ashley pretendia comparecer ao evento de Newmarket, em julho. Este respondeu que pretendia ir, mas que ainda não podia dar certeza.

Aposto dez a um que ainda estarei à caça de Nettlecombe - ele disse. -- Mas se pretende ir, devo lhe dar uma dica: aposte no Triturador. Jerry Tawton me falou no Tatfs na semana passada, e em geral ele não erra uma.

— Obrigado, Ash. Você é um ótimo sujeito. — Simon trocou com ele um aperto de mão, sorrindo.

- Por ter passado a dica de Jerry? - - Ashley indagou, surpreso.

- Não por isso, e nem por isto — disse, dando um tapinha no bolso. — Por não ter me passado um sermão de

irmão mais velho.

- De que adiantaria se eu o fizesse?

— Bem, nunca se sabe -- comentou Simon, ligeiro. Em seguida apanhou o chapéu, e o colocou de lado sobre os

belos cachos. Hesitou por um momento, e então informou: -- Vou para Londres amanhã, e ficarei por lá até o dia do evento em Newmarket. Portanto, se precisar de ajuda, pode me procurar e farei o que estiver ao meu alcance.

__Então acrescentou, voltando ao tom insinuante: — Adeus, querido irmão.

Ashley partiu de Inglehurst vinte minutos depois, aliviado com pelo menos uma de suas preocupações. Lady Silverdale, graças à repulsa que sentia por lady Bugle, e de certo modo devido ao comportamento contido de Cherry, pareceu inclinada a cuidar com carinho da hóspede inesperada.

— Pobre mocinha! — lastimou lady Silverdale. — É uma judiação o modo como tem sido tratada, e ainda por cima se veste tão mal... Hetta, meu amor, você não acha que seria uma gentileza se a vestíssemos melhor? O que acha de mandarmos fazer um vestido daquela cambraia verde, cuja cor não lhe cai bem? E é preciso dar um jeito naqueles cabelos, pois não suporto cabelos despenteados.

Henrietta foi esperta o suficiente para encorajar a mãe no esquema de caridade que tanto lhe agradava, e seguiu sentindo que, pelo menos por enquanto, a hóspede seria tratada com toda a gentileza.

Quando Ashley partiu, Cherry já estava dormindo. Nem o barulho das rodas sobre o cascalho, nem o tropel dos cascos dos cavalos perturbou seus sonhos. Estava tão cansada, depois de todo o esforço e agitação do dia, que nem se mexeu quando a criada veio abrir o cortinado em torno de sua cama na manhã seguinte.

Sonolenta, Cherry abriu os olhos e se espreguiçou como uma gata. A criada quis saber se ela dormira bem, e informou que estava um belo dia. A prova veio quando as cortinas se abriram e os raios de sol aqueceram o quarto.

Cherry se sentou, lembrando-se de todos os acontecimentos do dia anterior, e perguntou que horas eram.

— Oh, céus! Então dormi mais de doze horas. Como pude? — perguntou, aflita, quando soube que já eram oito horas.

A criada, percebendo que Cherry estava quase caindo da cama, disse que não era preciso se apressar, uma vez que lady Silverdale nunca descia para o desjejum e a srta. Henrietta tinha dado ordens para não acordá-la antes das oito.

Quando entrou na sala do desjejum, conduzida por Grimshaw, Cherry encontrou Henrietta preparando um chá, e foi saudada de um modo tão gentil e alegre que até perdeu o medo que Grimshaw lhe havia inspirado.

—Ontem à noite não me lembrei de agradecer a você e à sua mãe por toda a gentileza. A verdade é que nem

sei como agradecer.

—Bobagem — disse Henrietta, sorrindo. — Perdi a conta de quantas vezes você me agradeceu ontem à noite.

Acho até que foi a última coisa que me disse, quando assoprei a vela.

Quando as duas deixaram a mesa, Henrietta já tinha conseguido encantar Cherry, que já havia recuperado toda a sua confiança. Estava claro que ela não tinha sido encorajada a confiar em sua tia; e apesar de ter falado carinhosamente da srta. Fletching, Henrietta concluiu que o relacionamento das duas era bom, mas que era mais proveniente de uma aluna agradecida, nada mais do que isso. Cherry respondeu a todas as perguntas com certa reserva. Mesmo tratando de assuntos mais delicados, ela foi se tornando mais natural, e tagarelou com a mesma facilidade que tivera durante a viagem para Londres.

Foi preciso uma boa dose de persuasão para convencê-la a aceitar o corte de cambraia. Só concordou depois de prometer que pagaria pelo vestido, não com dinheiro, mas com serviço. Ao que Henrietta se opôs, dizendo que ela era uma hóspede e não uma criada contratada.

Felizmente, para a paz de espírito de Cherry, os olhares atravessados de Grimshaw passavam despercebidos diante da gentileza e carinho que vinha recebendo de Henrietta e de lady Silverdale.

Três dias depois da sua chegada, toda a apreensão já tinha se dissipado, pois ser saudada com um sorriso ao entrar em uma sala ou ser tratada por "minha querida menina" por lady Silverdale era algo de estimada valia. Havia sido, inclusive, encorajada pela própria dona da casa a explorar a propriedade como se fosse uma hóspede convidada, e não um fardo indesejado. Cherry estava tão encantada que se dispôs a retribuir a gentileza de sua anfitriã com o que estivesse ao seu alcance.

Não foi preciso mais de um dia para perceber que havia pouco que pudesse fazer por Henrietta; mas por lady Silverdale, sim. Em momento algum ela suspeitou que a voz doce e os modos gentis de lady Silverdale não passavam de puro egoísmo e desejo de mostrar a todos o quanto era superior a Amélia Bugie. Enquanto lady Bugie a teria mandado procurar por algo perdido e retribuído, depois de o objeto ter sido encontrado, com uma reclamação pela demora, lady Silverdale iniciava a abordagem dizendo:

— Oh, querida, que tolice a minha! Acho que perdi minha tesoura de bordar. Onde será que a esqueci? Não, não, minha querida menina. Por que você deveria pagar pelo meu descuido?

- E quando Cherry, depois de uma exaustiva busca, encontrava a tesoura perdida e a apresentava, lady Silverdale dizia: — Oh, Cherry, você não precisava ter se dado ao trabalho!

Não era para menos que estivesse tão encantada com tal tratamento, e não media esforços para retribuir a amabilidade de sua benfeitora. Cherry nunca fora tão feliz em toda a sua vida, e Henristta, percebendo isso, achou melhor preveni-la, avisando que a disposição de sua mãe costumava mudar da água para o vinho, ou mais especificamente, de acordo com o tempo ou a lua. E não era preciso muito para que ela simplesmente deixasse de gostar de uma pessoa com quem pouco antes simpatizara; e enquanto tais mudanças de humor duravam, a vida da

vítima se tornava insuportável.

Cherry ouviu com atenção e assentiu, dizendo que lady Bugle não era muito diferente.

— Só que os seus chiliques eram bem piores, pois ela nunca era gentil, ou amável, mesmo quando estava bem, ao contrário da querida lady Silverdale. Na verdade, acho que ela e você são as pessoas mais gentis que já conheci —

elogiou Cherry, ruborizada.

Henrietta desejou que o bom humor de sua mãe durasse enquanto Cherry estivesse em casa.

A chegada de Cherry acontecera três antes de Charles Silverdale ter recebido permissão para deixar o quarto. Ficou claro para sua mãe e para a irmã que o acidente o abalara bem

mais do que ele admitira. Mesmo assim, ele insistiu em descer, amparado por seu valete. Quando chegou à biblioteca, sua maior felicidade foi poder se largar sobre o sofá.

Charles era um rapaz bonito, mas suas belas feições eram sempre estragadas pela expressão, que tendia à petulância, quando contrariado ou frustrado. Era muito parecido com a mãe, tanto no temperamento quanto na aparência. Por ter perdido o pai muito cedo, e por contar com uma mãe super protetora, seus defeitos só se agravavam.

Por outro lado, ele possuía uma boa dose de charme e modos elegantes que em geral o tornavam aceitável em quaisquer rodas sociais. Os criados gostavam dele, pois apesar de ser muito parecido com a mãe, e muito mais egoísta, ele tinha herdado o talento de lady Silverdale de transformar a ordem mais ultrajante em um simples pedido. Por causa de seus gestos gentis e sorrisos dóceis, por expressar arrependimento depois que perdia a calma e dispensar os criados, quando sabia que não ia mais precisar de nada, ele era considerado uma pessoa de boa índole. Somente sua irmã, cujo afeto fraternal não a impedia de enxergar seus defeitos, dissera uma vez, quando incomodada por uma grosseria, que o fato de ele ter uma porção de amigos levava a concluir que o mau humor era reservado apenas para os familiares. Como se arrependera do comentário cáustico assim que o momento de ira passara, e devido às reprimendas da mãe, ela nunca mais repetira a ofensa.

Henrietta viu com suspeita a ansiedade do irmão em deixar o quarto, ciente das suscetibilidades do rapaz. Se ele demonstrasse o mínimo interesse por Cherry, poderia transformar lady Silverdale de protetora benevolente em inimiga para todo o sempre. Contudo, acabou descobrindo que Ashley estava certo; a elegante sra. Cumbertrees podia ser coisa do passado, mas Charles ainda preferia damas mais opulentas e experientes. Não tinha nenhum interesse em moças ingénuas. O único comentário que teceu, ao conhecer Cherry, não despertou nenhum sinal de alerta em sua mãe.

— Que simplória ela é, mamãe... Uma mocinha comum. Não entendo por que Ash foi se envolver em um problema que não era seu.

Enquanto isso, Ashley enfrentava motivos suficientes para se arrepender do seu ato de cavalheirismo. Ele retornava à Rua Arlington depois de inúmeras tentativas frustradas de descobrir algo sobre o paradeiro de lorde Nettlecombe.

Depois de muito relutar, foi à casa de Jonas Steane, que, assim como o pai, também não se encontrava na cidade. A casa ficara aos cuidados de um velho criado, que informou apenas que Jonas tinha viajado com a família para Scarborough. Por fim, com uma louvável intenção de ajudar Ashley, o criado informou que talvez o advogado de Jonas soubesse o endereço. Uma vez que o visconde não obteve o endereço do tal advogado, a dica não ajudou muito.

Era o final de um dia nada gratificante. Ashley sentou-se à mesa de jantar muito abatido. Solidário, o mordomo, preocupado com a falta de apetite do patrão, apresentou uma sugestão plausível.

— Não lhe ocorreu, milorde, que lorde Nettlecombe possa ter ido para a sua casa de campo para passar o verão? —indagou o criado, enquanto servia mais vinho ao visconde.

— Minha nossa, que tolo eu fui! Nem pensei nessa hipótese— Ashley considerou.

— Sim, milorde — disse Aldham, servindo uma fatia de torta. — Pensei sobre isso minutos atrás. Por isso, enquanto o senhor degustava o prato de entrada, tomei a liberdade de consultar a Lista de Endereços de Londres.

Apesar de o volume já ter uns dez anos, creio que ainda se pode confiar nas informações contidas. Lá consta que a residência de campo de lorde Nettlecombe fica no condado de Kent, não muito distante de Staplehurts. Não deve ser muito difícil de encontrar, pois é conhecida como Solar Nettlecombe.

— Muito obrigado, Aldham. Não imagina o quanto lhe

— sou grato. Na verdade, não sei o que seria de mim sem você. Partirei amanhã cedo para Staplehurts.

— Ashley tomou o café da manhã bem cedo. Quando sua carruagem passou pelas ruas da cidade, não havia nenhum membro da sociedade londrina acordado.

— Não foi difícil localizar o Solar Nettlecombe, pois alguns quilómetros antes de Staplehurts havia uma placa, apontando a direção da propriedade. A estrada que levava à casa era estreita, ladeada por cercas vivas. Tudo indicava que a residência de Nettlecombe não merecia o título de "solar". Mas apesar de não ser uma mansão, era uma casa grande, próxima um pequeno bosque, e mostrava sinais de estar passando por reforma, indício suficiente de que lorde Nettlecombe não estava residindo ali.

— Esse fato logo se comprovou. Nettlecombe tinha alugado a casa a um negociante aposentado, o sr. Tugsley.

Este, depois de muito insistir, convenceu Ashley a entrar e tomar algo. Durante a conversa, informou que não sabia do paradeiro de Nettlecombe, mas que se fosse de alguma serventia, poderia lhe dar o endereço do advogado dele.

— Foi com grande alívio que Ashley partiu da casa dos Tugley, embora não tivesse demonstrado nenhum desconforto durante a visita. Ansiava por chegar a Londres antes que o sr. Crick fechasse o escritório, caso contrário teria de esperar o fim de semana inteiro para falar com o advogado. Suspirou desanimado quando não conseguiu chegar a tempo.

— Na segunda-feira cedo, Ashley foi informado no escritório de advocacia que só encontraria Crick no final da tarde, pois este estava em visita durante o período da manhã. Assim, não lhe restou alternativa senão deixar seu cartão e dizer que voltaria mais tarde.

— Ao cair da tarde, o escriturário o conduziu à sala do advogado, onde ele foi recebido com toda a cortesia. Crick indicou o assento, pediu desculpas pela ausência durante a manhã,

mas não deu o endereço de Nettlecombe. Disse que estava a par de todos os assuntos que diziam respeito a Nettlecombe e insistiu para que Ashley lhe revelasse a natureza do assunto que desejava discutir com seu cliente.

—O que tenho para falar com ele não é da sua alçada. É particular e pessoal, e somente ele pode me responder

— informou Ashley, com toda a educação, mas com uma entonação determinada que não escapou ao sr. Crick, e

aparentemente o desarmou.

—Entendo. Asseguro-lhe, no entanto, que não precisa hesitar em me contar nada. Trata-se de um assunto delicado, foi isso que disse? O senhor talvez não saiba que meu cliente deposita toda a confiança em mim. — Crick mexeu em um mata-borrão e ajeitou uma pilha de papéis, para só depois continuar:

— Ele é... um tanto excêntrico, milorde, como o senhor deve saber.

— Na verdade, não o conheço pessoalmente, mas pelo que me disseram ele não é nada fácil — concordou Ashley.

Crick inclinou de leve a cabeça e disse que não era função sua julgar, mas que lorde Nettlecombe já tinha passado por muitos percalços.

—Isso fez com que se tomasse um recluso. Ele quase não recebe visitas, com exceção do sr. Jonas Steane. E

ultimamente, nem ele. — Suspirou e meneou a cabeça. — Sinto dizer que os dois tiveram uma discussão há algumas semanas, que resultou na ida de lorde Nettlecombe para Harrowgate, deixando-me encarregado de lidar com tudo

que acontecesse durante sua ausência. Ficou claro que ele não deseja ver o sr. Steane, ou, na verdade, ninguém, nem receber uma carta; nem mesmo de mim.

—Ele deve ter perdido o juízo — Ashley observou.

- Não, milorde. Não se trata disso. Ele tem um génio difícil, e muda de humor com facilidade, mas é muito astuto, enxerga longe — Crick apressou-se a explicar, e se remexeu no assento. Como o visconde não demonstrou sinais de que iria fazer algum comentário, ele disfarçou, tossindo antes de dizer

em um tom confidencial: —Acho que ele se tornou excêntrico em consequência de tudo que aconteceu no passado;

nunca teve uma vida alegre. Não seria certo de minha parte falar sobije esse assunto, mas creio que posso abrir mão de quaisquer escrúpulos, pois é notório que o casamento dele não foi nada feliz. A razão vem do caráter instável do filho mais novo, motivo de grande desgosto para ele. Esperava-se que fosse encontrar algum consolo no sr. Jonas Steane, mas infelizmente lorde Nettlecombe não gosta da nora, por isso seu relacionamento com o filho sofreu um grande desgaste, apesar de nunca ter acontecido nada de mais sério entre eles, isso até... Acho melhor parar por aqui.

— Meu caro senhor — interrompeu Ashley, que tinha ficado visivelmente impaciente durante o monólogo —, gostaria de esclarecer que não tenho nenhum interesse no que diz respeito aos problemas conjugais de lorde

Nettlecombe, e também não quero saber sobre as desavenças que ele tem com os filhos. Tudo que gostaria de saber é onde posso encontrá-lo em Harrowgate.

— Oh, minha nossa, eu disse que ele está em Harrowgate?

— Disse, portanto basta me dar o endereço completo. Isso irá me poupar do trabalho de sair perguntando por

ele em todos os hotéis da cidade, o que prometo fazer se insistir em não me fornecer o endereço.

— Milorde, confesso que não sei onde ele está.

— Não sabe? Mas como isso é possível? O senhor disse que é o homem de confiança dele. — Ashley contraiu as sobrancelhas, incrédulo.

— Sim, eu sou — assegurou Crick, aparentemente na iminência de um ataque de nervos. — Em outras palavras, sei por que Nettlecombe resolveu sair de Londres, mas ele não me contou para onde ia; isso porque não queria ser incomodado com assuntos de negócios enquanto estivesse ausente. E me honrou dizendo que confiava em mim para resolver quaisquer problemas durante a sua ausência. Permita que eu sugira, milorde, que espere até que ele volte para Londres, o que, de acordo com as informações que recebi, será no próximo mês...

— Pode fazer o que quiser, sr. Crick — disse Ashley, muito amável, levanto-se e apanhando as luvas e o chapéu. — Sinto que não tenha podido me dar o endereço de onde lorde Nettlecombe se encontra. Não tomarei mais o seu tempo. E não precisa se dar o trabalho de me acompanhar até a porta. Sei onde fica a saída.

Entretanto, Crick saiu correndo para abrir a porta para o distinto visitante, acompanhando-o até a escadaria empoeirada, implorando que compreendesse sua posição delicada como homem de confiança de seu nobre cliente.

Ashley o assegurou em ambos os quesitos. Antes de o visconde embarcar na carruagem, o advogado lhe passou uma última informação: lorde Nettlecombe tinha ido para as termas de Harrowgate para tratar da gota.

— Não se preocupe — assegurou Ashley. — Não vou contar a ele que foi o senhor que me contou sobre o paradeiro dele.

Ashley não conseguiu encontrar um guia de Harrowgate na livraria Hatchards, mas lhe ofereceram um volume pomposo, que se anunciava como o Guia de Todas as Termas e Praias. Ali continha, além de vistas maravilhosas, vários mapas, sugestões de divertimentos nas cidades e itinerários. Ele comprou o livro e passou a noite lendo sobre as atrações e atividades que havia em Harrowgate, que em comparação às outras termas não parecia ter nada de muito especial, e nem mesmo era qualificada como um local da moda, frequentado por gente elegante e famosa.

Ashley ficou intrigado com a razão de alguém como Nettlecombe, um homem que estava longe de apreciar a companhia de seus filhos e esposa, e que por anos afugentara os amigos, ter de repente resolvido passar o verão onde, de acordo com o autor do guia, as refeições, servidas nos imensos salões dos vários hotéis, eram "temperadas por divertidos encontros socais", e onde "ambos os sexos dividiam os espaços sem restrições". Era possível, é claro, que depois de ter levado uma vida moderada e infeliz, ele tivesse resolvido se distrair

um pouco.

— Certamente, milorde. Quantos dias o senhor, pretende passar em Harrowgate? — Tain, o fiel valete do visconde, quis saber assim que soube que o patrão partiria ao amanhecer.

- Não mais do que dois ou três dias — respondeu Ashley. Não pretendo comparecer a nenhum evento noturno, portanto não precisa colocar traje de noite na bagagem.

Antes de ir para a cama, Ashley escreveu uma carta breve para Henrietta, informando sobre sua ida para Harrowgate, e que esperava estar de volta em dois dias, quando imediatamente partiria para Inglehurst, para contar a ela sobre os resultados de sua missão.

Ou para informar que ainda não sei o que fazer com essa moça infeliz. Eu deveria me considerar o ser mais desumano por tê-la obrigado cuidar da menina, se não tivesse certeza de que ela acabaria conquistando a sua simpatia.

Ele entregou a carta a Aldham na manhã seguinte, com o pedido de enviá-la o mais rápido possível para Inglehurst. Em seguida subiu na carruagem e seguiu viagem.

A viagem de Ashley não sofreu nenhum tipo de atraso, e ele poderia ter alcançado Harrowgate ao final do segundo dia, se não tivesse lhe ocorrido que chegar sem reservas em uma estação termal no auge da temporada provavelmente iria requerer uma longa busca por acomodação, e àquela hora da noite não seria o momento oportuno para fazê-lo. Por isso resolveu passar a segunda noite no King's, em Leeds, deixando para o dia seguinte os vinte quilómetros finais.

Ashley era um homem jovem e saudável, e como procurava se manter em boa forma, dificilmente se cansava, mas os dois dias de viagem o deixaram extremamente entediado. A carruagem contava com um bom sistema de molas amortecedoras, mas era também muito leve, o que era uma vantagem cm questão de velocidade; por outro lado, significava que chacoalhava muito devido às imperfeições da estrada.

Chegaram a Harrowgate quase na hora do almoço do dia seguinte. Era um belo dia ensolarado, com uma brisa

que soprava suave e revigorante, e sob tais condições ele só viu o melhor de Harrowgate. Ficou propenso a pensar que o autor do seu guia tinha descrito as maravilhas locais com má vontade.

— O que me diz? — indagou Ashley alegremente, quando parou a carruagem em frente ao Dragon. — Não me parece um lugar tão monótono, não acha, Tain?

— O senhor ainda não viu em um dia de mau tempo —respondeu o criado de modo desencorajador. — Eu não

ficaria aqui em um dia nublado, quando a expectativa seria, sem dúvida, de muita neblina.

Depois de uma busca exaustiva pelos hotéis da região, Ashley finalmente teve sorte em encontrar um aposento

vago no Queen, mediante uma opulenta gorjeta, evidentemente.

Na verdade, o quarto era um dos melhores do hotel, com vista para as montanhas. Deixando Tain encarregado

de desfazer a mala, Ashley saiu com o ímpeto de continuar sua busca por Nettlecombe. Já tinha perguntado por ele nos hotéis Dragon e Granby, sem resultados, obtendo apenas olhares vazios e acenos de cabeça; o mesmo se deu no Chalybete.

Se Nettlecombe tinha vindo para Harrowgate para tratar da saúde, era bem provável que já tivesse se tornado uma figura conhecida. No entanto, nenhum dos atendentes parecia ter ouvido falar dele, o mais solícito entre eles sugeriu uma visita à Fonte Tewit, que era o segundo local mais procurado do balneário, e ficava a apenas quinhentos metros da fonte principal.

Ashley seguiu a pé, feliz por poder esticar as pernas depois do confinamento de tantas horas, mas apesar de ter apreciado a breve caminhada, ela acabou em outro malogro, e com a indicação de tentar a Fonte Sulforosa, que

ficava na baixa Harrowgate.

Logo descobriu que, apesar de Harrowgate ser descrita no guia como sendo uma pequena estação termal composta por duas vilas, isso se revelou outro engano do autor. Ashley nunca tinha estado em um vilarejo que tivesse tantos hotéis e

hospedarias como a alta Harrowgate. E em nenhum dos estabelecimentos visitados conseguiu obter uma única informação sequer. Quando o sino da igreja bateu seis horas, hora em que o jantar era servido nos hotéis locais, ele estava cansado, faminto e irritado, e assim deu por encerrada a sua busca infrutífera naquele dia.

Quando chegou ao Queen, ficou surpreso com a recepção calorosa. O porteiro se curvou assim que o viu, o garçom se aproximou para perguntar se ele gostaria de beber uma taça de xerez antes do jantar, e o proprietário interrompeu uma conversa com dois outros hóspedes especialmente para acompanhá-lo até a escadaria, informando no caminho que o jantar seria servido imediatamente, e que ele mesmo tinha escolhido na adega um garrafa do seu melhor borgonha, e um bordeaux, caso ele preferisse algo mais suave.

Depois de um banho rápido, Ashley desceu para o jantar, que Tain tinha se encarregado de mandar preparar.

Enquanto comia, Ashley aproveitou para planejar o próximo passo. Decidiu que a melhor opção seria visitar primeiro a Fonte Sulforosa e depois, se não encontrasse nada por lá, poderia tentar descobrir os nomes e endereços dos médicos que atendiam em Harrowgate.

A experiência exaustiva do primeiro dia de busca serviu para impedir que ele se surpreendesse ou ficasse desapontado ao receber mais uma negativa na Fonte Sulforosa. Animou-se, contudo, quando conseguiu a lista dos médicos de Harrowgate. E depois de duas visitas infrutíferas, na terceira acabou conseguindo a primeira pista sobre o paradeiro de lorde Nettlecombe.

Nettlecombe estava hospedado em uma das maiores pensões da cidade baixa. O local tinha uma atmosfera sombriamente respeitosa, e era administrado por uma senhora cuja aparência sugeria que ela provavelmente guardava luto por uma perda recente. A touca era de cambraia engomada, amarrado apertado logo abaixo do queixo; os cabelos eram grisalhos e encaracolados, emoldurando tírna fisionomia severa.

Ela conversava com um casal de idosos, cujo comportamento decoroso e tom de voz suave combinavam com a atmosfera do local, quando Ashley entrou na casa. Assim que o viu, ela interrompeu a conversa para lançar-lhe um olhar penetrante, que o fez sentir que a qualquer momento ela iria lhe dizer que seu colarinho estava torto, ou perguntar se ele tinha lavado as mãos antes de entrar ali. Ashley contorceu os lábios e arregalou os olhos, enquanto a fisionomia da mulher relaxava. - Pois não, sir? Em que posso lhe ser útil? Se estiver à procura de quarto, sinto informar que não temos vagas. Minha casa sempre fica cheia durante a alta temporada.

—Não estou à procura de acomodação. Creio que lorde Nettlecombe esteja hospedado aqui. Estou certo?

—Sim, está, sir — respondeu ela, assumindo uma expressão severa.

Aparentemente, a presença de Nettlecornbe no estabelecimento não era motivo de alegria, e se ela havia criado alguma boa impressão de Ashley, esta tinha acabado de se morrer. Quando Ashley pediu a ela que entregasse seu cartão a Nettlecombe, a senhora soltou um leve suspiro. Sem dizer nada, virou-se para chamar pelo camareiro, que acabara de entrar no vestíbulo.

— George... Conduza este cavalheiro aos aposentos de lorde Nettlecombe.

Em seguida inclinou com altivez a cabeça para Ashley e retomou a conversa com o casal de idosos.

Espantado, mas ao mesmo tempo achando engraçado o tratamento soberbo, Ashley estava prestes a dizer que, quando entregara o cartão, na verdade sua intenção era que fosse levado a Nettlecombe, e não que fosse deixado sobre o balcão.

Ashley seguiu o camareiro por um lance de escada e depois por um longo corredor, até que o rapaz parou diante da última porta e perguntou a quem deveria anunciar, abrindo a porta logo em seguida e repetindo o nome em um tom de voz indiferente.

— O que é isso? - - interpelou Nettlecombe, furioso. - Não quero vê-lo. Que ideia é essa de trazer alguém aqui sem me consultar antes? Diga a ele que vá emboía.

__ Creio que o senhor será obrigado a me receber, sir —

disse Ashley, terminando de abrir a porta. —

Aceite minhas desculpas por não ter enviado meu cartão antes. Essa era a minha intenção, mas a formidável dama lá de baixo pensou o contrário.

—Aquela bruxa maldita! — esbravejou o lorde. — Mulher impertinente... Não perde a oportunidade de me provocar. O que você quer?

—Gostaria de trocar algumas palavrinhas com o senhor

respondeu Ashley friamente.

—Bem, mas eu não quero falar com você. Não quero falar com ninguém. Se o seu sobrenome é Desford, então você deve ser filho do velho Wroxton, e ele não é meu amigo, se quer saber.

—Eu sei disso -- disse Ashley, colocando o chapéu, as luvas e a bengala sobre a mesa.

O indício de que o visconde pretendia prolongar a visita enfureceu Nettlecombe.

—Não faça isso. Vá embora. Você quer me tirar do sério? Sou um homem enfermo. Mereço repousar depois de

todas as preocupações e desgostos que passei. Não quero ser incomodado por estranhos.

—Sinto muito pelo seu estado de saúde. Tentarei ser breve, mas tenho um assunto sério para tratar com o senhor e creio...

—Se veio falar em nome do meu filho Jonas, está perdendo seu tempo — interrompeu Nettlecombe.

__ Não, senhor, venho falar em nome de sua neta.

—Jonas que tome conta dos filhos dele, pois eu lavo as minhas mãos.

—Não estou falando da filha do sr. Jonas Steane, sir,mas da filha de seu filho mais novo.

As mãos ossudas de Nettlecombe apertaram os braços da poltrona com força.

— Não tenho outro filho!

- Pelo que eu soube, isso pode ser verdade.

—Ah! Ele morreu, é isso? Acho bom mesmo, pois para mim ele já está morto há anos, e se pensa que farei alguma coisa pela filha dele, está totalmente enganado!

—Na verdade penso, e creio que não esteja enganado, sir. Depois que ouvir sobre a situação desesperadora

em que ela se encontra, não posso acreditar que não vá ajudá-la. A mãe morreu quando ela era criança, e o pai a colocou em um colégio ern Bath. Pagou as mensalidades até alguns anos atrás, e de tempos em tempos visitava a filha. Mas os pagamentos e a visitas cessaram...

— Já sei de tudo isso - - interrompeu Nettlecombe. – a dona da escola escreveu uma carta para mim, cobrando de mim as mensalidades atrasadas. Uma carta insolente, diga-se de passagem. Eu respondi a ela que

procurasse os parentes maternos da garota, pois ela não iria ver a cor do meu dinheiro.

— Foi o que ela fez, sir. A dona da escola recorreu a lady Bugie, que também não quis saldar a dívida. Lady Bugle, percebendo a oportunidade de ter uma criada de graça, acolheu a srta. Cherry na sua casa em Hampshire, sob o odioso pretexto de estar fazendo caridade, quando na verdade, exigiu em troca serviço escravo e trabalhos incessantes, prestados não apenas para ela, mas para todos os membros da família. Cherry tem uma natureza dócil e submissa; tudo que mais desejava era oferecer algo em troca para a tia que a acolhera, e assim cumpria todas as tarefas que lhe eram atribuídas, que iam desde fazer bainhas nos lençóis até cuidar das primas mais novas, entre outras atribuições. Acredito que ainda estaria fazendo a mesma coisa, feliz da vida, se a tia a tivesse tratado com gentileza. Não foi esse o caso, a pobre moça ficou tão infeliz que fugiu, com a intenção de apelar para a sua proteção.

Nettlecombe, que tinha ouvido tudo com as sobrancelhas contraídas, remexeu-se no assento.

__ Isso não é problema meu. Avisei o safado do meu filho para que tomasse jeito. Ele fez a sua cama, e agora

deve se jeitar nela.

— Mas não é ele quem está pagando pelos erros do passado, e sim a filha, que não passa de uma vítima inocente.

- Você deveria ler mais a Bíblia, meu jovem. Lá está escrito que os filhos pagarão pelos pecados dos pais.

Ashley já tinha uma resposta mordaz na ponta da língua, guando naquele exato momento a porta se abriu, e uma senhora de meia-idade irrompeu no quarto.

— Fiquei surpresa quando a dona do hotel falou que milorde tinha visitas. Mal pude acreditar, pois em geral você não costuma receber ninguém, e nem está em condições de fazè-lo — disse ela, com um sotaque refinado.

Nettlecombe respondeu à animada profecia com um rosnado. Quanto a Ashley, a chegada da senhora o surpreendeu ainda mais. Seus modos para com Nettlecombe sugeriam que ela poderia ser uma enfermeira, contratada para cuidar dele durante sua convalescença, mas os trajes chamativos logo afastaram a ideia.

O espanto de Ashley devia ter ficado estampado em seu rosto, pois ela sorriu e dirigiu-se a ele:

—Estou em situação de vantagem com relação ao senhor, não é mesmo? O senhor não sabe quem eu sou, mas

eu sei o seu nome, pois vi seu cartão sobre o balcão.

—Lorde Desford, lady Nettlecombe

apresentou Nettlecombe, cumprindo a praxe social. — E você não

precisa me olhar desse jeito. Não preciso da sua aprovação para o meu casamento.

—Certamente que não, milorde — ponderou Ashley, recuperando-se do espanto. -__Aceite minhas felicitações, sir.

— Como o senhor nos encontrou, milorde? — ela indagou. __ Tomamos todo o cuidado de não contar a ninguém onde passaríamos nossa lua de mel. Não que eu não esteja feliz cm conhecê-lo, pois estou certa de que não poderia receber visitante mais elegante.

— Não precisa ser tão amigável, Maria -- Nettlecombe,

disse irritado —, pois não se trata de uma visita. Ele só veio empurrar aquela filha do Wilfred para mim, mas eu não vou aceitar.

— O senhor está enganado — Ashley se defendeu. — Não tenho o menor desejo de ver a srta. Cherry em uma casa onde não seja bem-vinda. O propósito da minha visita é informar que sua neta está totalmente desamparada.

Se eu não estivesse junto quando ela deparou com a sua casa vazia, ela estaria em uma situação desesperadora, pois não tem nenhum conhecido em Londres, e ninguém no mundo a quem possa recorrer, exceto o senhor.

— Ela não tinha nada que fugir da casa da tia — resmungou Nettlecombe. — Comportamento reprovável. Não que eu esperasse muito mais de uma filha da daquele salafrário, que me recuso a chamar de filho. __ Ele se voltou para a esposa. — Estamos falando da filha de Wilfred, Maria. Você selembra como fiquei aborrecido quando recebi aquela carta de cobrança? Bem, agora, se nos der licença... — Parou, então, de repente, e seu olhar se voltou para o xale que a esposa usava.

— Isso é novo. De onde veio isso?

— Acabei de comprar — ela respondeu com audácia. — E não pense que vai me convencer de que não tenho o

direito de comprar um xale novo, pois você me deu permissão esta manhã.

— Não para comprar um de seda.

— Seda de Norwich — emendou ela, alisando o tecido. — Não precisa se zangar por isso, milorde. Na certa não

quer que me vejam usando um xale barato.

Não havia nada na expressão de Nettlecombe que pudesse encorajá-la a acreditar naquilo; e enquanto ele resmungava, dizendo que ela não deveria gastar dinheiro com bobagens, Ashley se viu testemunhando uma discussão de casal.

Por tudo que tinha ouvido e visto até então, concluiu que Nettlecombe tinha se casado com a governanta. Por

um momento, Ashley imaginou que pudesse conseguir ali uma aliada, mas foi apenas um laivo de esperança, pois Maria

estava mais preocupada em garantir sua própria segurança. Não havia nenhum traço de compaixão em seus olhos, e nenhuma candura sob aquele sorriso determinado.

— Oh, lorde Desford deve estar pensando que somos duas crianças discutindo por causa de um canudo de palha!

— Maria parou a discussão, lembrando-se da presença do visconde.

- Peço desculpas, milorde. Bem, dizem que o primeiro ano do casamento é o mais difícil, mas isto tudo não passou de uma discussão amorosa. — Ela tocou na mão do marido e implorou com palavras doces que ele não se aborrecesse por causa de um simples xale.

- Não dou a mínima para o que Ashley pensa de mim — declarou Nettlecombe. — Moço intrometido.

- Nada disso, estou simplesmente lhe informando sobre um problema seu, sir — Ashley interpôs.

— A filha de Wilfred não é problema meu. — Nettlecombe o encarou. — A mim parece que ela é problema seu, meu jovem. O que ela estava fazendo em sua companhia quando bateram à minha porta? Explique isso. Creio que o senhor a tenha ajudado a fugir da casa da tia, e agora está tentando se livrar dela. Bem, saiba que está soprando em carvão apagado.

Ashley ficou lívido de raiva, e por um instante seu olhar ficou tão intenso que Nettlecombe se encolheu na poltrona. Maria intercedeu, exigindo que Ashley se lembrasse da idade do marido e da saúde debilitada.

- Não me esqueci, senhora — disse Ashley, recuperando o controle. -- A enfermidade de lorde Nettlecombe parece ter afetado seu cérebro. Não sei onde estava com a cabeça quando pensei que podia contar com um lunático. Por mim, eu deixaria este lugar agora mesmo, mas não estou aqui em causa própria, e sim pelo bem de uma moça infeliz, que não pode contar com ninguém neste mundo além do avô, que acaba de me insultar.

Nettlecombe, que estava assustado e imensamente aborrecido, murmurou algo parecido com um pedido de desculpas, e então acrescentou, em tom queixoso:

__ Bem, me pareceu que algo duvidoso estava acontecendo.

— Mas não está. Não ajudei Cherry a fugir da casa de lady Bugle. Mesmo que eu fosse um maluco capaz de fugir

com qualquer garota, o senhor não pode supor que eu poderia convencê-la a fazer isso depois de ter conversado meia hora apenascom ela. Eu a encontrei no dia seguinte ao que nos conhecemos, caminhando sozinha na estrada rumo a Londres, carregando uma mala pesada. Puxei as rédeas do cavalo, é claro, e tentei descobrir o que a levara a agir de modo tão imprudente. Depois de ouvi-la, concluí que era uma moça muito inexperiente e que não fazia a menor ideia das consequências desastrosas que seu ato poderia acarretar. Seu único intuito era se encontrar com o senhor, acreditando em toda a sua inocência que receberia a sua ajuda. Uma vez que o senhor não teve o menor escrúpulo de atirar os piores insultos contra a minha pessoa, não preciso esconder que eu não partilhava da mesma crença dela. Fiz o que pude para tentar convencê-la a voltar para a casa da tia, mas falhei. E assim seguimos para Londres, onde descobrimos que o senhor não se encontrava na cidade. Diante de tais circunstâncias, pensei que a melhor opção seria levá-la para a casa de uma amiga minha, enquanto eu tentava descobrir o seu paradeiro.

Espero ter esclarecido tudo, agora.

- Só tem uma coisa que ela pode fazer: voltar para a casa da tia — decidiu Nettlecombe. — Ela tirou a menina da escola, por isso é a responsável por ela, não eu.

— A srta. Cherry não vai aceitar isso. Não tenho dúvidas de que ela prefira arrumar um emprego como ajudante de cozinha a voltar para lá.

- E que mal há nisso? - - Maria perguntou. - - Tenho certeza de que é um trabalho honrado, onde ela terá

muitas chances de crescer, se tiver juízo, e cumprir com o dever.

— O que tem a dizer sobre isso, sir? — interrogou Ashley. - O senhor suportaria a ideia de saber que sua neta está trabalhando como criada para se sustentar?

— Por que não? Eu me casei com uma. - - Nettlecombe soltou uma risada sonora.

A declaração deixou Ashley sem palavras. Em Maria, no entanto, teve um efeito totalmente diferente.

—Nunca fui sua criada, e você sabe muito bemJdisso — ela se defendeu com a voz trémula. — Eu era a sua governanta, e ficarei grata se não se esquecer disso. Não ouse se referir a mim como sua criada, Nettle, ou nunca mais ouvirá falar de mim.

—Não precisa ficar brava, Maria. — Nettlecombe pareceu um pouco envergonhado, e um tanto apreensivo. --

Não quis dizer isso. O problema é que Ashley me deixou em um estado tal de nervosismo que não sei mais o que

estou dizendo. Eu lhe darei um chapéu novo, o que acha?

A oferta teve efeito imediato, e Maria se abaixou para abraçá-lo.

__ Obrigada, Nettle!

—Sim, mas vou com você para escolher - - afirmou Nettlecombe, preocupado com a despesa. — Quanto à

filha de Wilfred, se pensa que vai me convencer a levá-la para a minha casa, pode esquecer.

—Não imaginei isso. O que eu gostaria de sugerir é que o senhor desse uma mesada para ela, o suficiente para se manter de modo respeitável.

Mas essa proposta fez os olhos de Nettlecombe saltar, alarmados.

—Quer que esbanje o meu dinheiro com aquela ciganinha? Pensa que sou tonto?

—Muito bem, sir. Se dinheiro significa mais para o senhor do que a sua própria reputação, então não tenho mais nada a dizer. Passar bem. — Ashley apanhou o chapéu e as luvas, preparando-se para sair.

—Significa, sim - - retrucou Nettlecombe. - - Não me importo com o que dizem de mim, nunca me importei. E

quanto mais cedo for embora, melhor.

Mais uma vez as palavras de Ashley fizeram com que Maria lançasse um olhar penetrante para ele.

- Tenho certeza de que não há motivos para falarem

mal de você. Ninguém nunca o culpou por ter deserdado o pai da garota, e ele era seu filho — ponderou ela, com uma sombra de inquietação no semblante.

Ashley notou o sutil desconforto de Maria.

—Isso não é bem verdade, senhora. Vamos dizer que o filho em questão tenha dado motivos suficientes, mas

várias pessoas acham que o lorde agiu de um modo, digamos, não condizente com um pai ou com um homem de posição.

—Bobagem — disse Nettlecombe. — Como pode saber o que pensaram na época? Você não passava de um garoto.

- O senhor deve ter se esquecido, sir, de que meu pai foi um dos que o culpou. E não fez nenhum segredo

de sua desaprovação.

— Como se eu me importasse com a opinião de Wroxton!

Mas seus dedos tinham se curvado como garras na poltrona.

—De qualquer forma, ninguém vai ficar sabendo de nada disso - - interveio Maria. - - Você não costuma sair muito, por isso... — Ela parou, encarando Ashley, que sorria de um modo inquietante.

—Ah, vai sim, senhora — Ashley ameaçou. — Eu lhe dou a minha palavra de que a história estará circulando por

toda a sociedade daqui a uma semana no máximo.

—Sujeito arrogante! Chantagista!

Esbravejou Nettlecombe.

—isso não lhe fará bem. — Maria abaixou-se e colocou a mão no peito do marido, preocupada com sua saúde. —

Você pode não se importar com o que as pessoas dizem a seu respeito, mas creio que eu serei acusada por tudo.

Até mesmo os seus amigos me tratam com distanciamento, e não tenho dúvidas de que dirão que é por minha culpa que você não quis acolher a menina, o que não é justo.

- Ninguém irá me convencer a gastar o meu dinheiro com aquela garota! Daqui a pouco, Maria, você vai tentar me convencer de que é minha obrigação pagar uma renda anual para ela.

—Não, de forma alguma. Não estou pensando em sugerir que pague mesada, tenho algo melhor em mente.

Tudo o que a pobre menina quer é um lar, e é isso que você dará a ela, e sem ter de gastar nada. Por que não escreve uma carta, concordando em aceitá-la na família? Cuidarei para que ela não o perturbe, e tampouco a mim. Na verdade, quanto mais penso nisso, mais imagino o quanto gostaria de tê-la em casa. Ela será uma companhia para mim.

—Aceitar a filha de Wilfred na família?

- Bem, lorde Desford tem razão quando diz que ela não tem culpa dos erros do pai. Confesso que tenho pena da

moça. E quanto aos gastos extras, Nettle, creio que ela será uma economia para nós. Como deve se lembrar, demiti Betty antes de partimos de Londres, pois achava um desperdício pagar a menina só para cuidar dos lençóis e limpar os lustres e porcelanas, e ajudar o velho mordomo Lattiford com a prataria.

— Não! Não a quero na minha casa! - - Nettlecombe explodiu.

— Quanto a isso, pode ficar tranquilo - - disse Ashley. __ Com certeza ela não irá para a sua casa, sir. Não a ajudei a escapar da escravidão para cair em outra.

Em seguida caminhou em direção à porta, ignorando o apelo de Maria para que esperasse. Ela o seguiu pelo

corredor, implorando para que não levasse a mal a irritabilidade de Nettlecombe, assegurando que ele poderia confiar nela para contornar a situação.

— Quanto a fazer da menina uma criada, o senhor interpretou mal as minhas palavras, milorde. Tenho certeza

de que meu pobre pai teria morrido antes da hora se tivesse vivido o suficiente para ver a situação de apuro a que fui reduzida. Meu pai foi passado para trás e perdeu toda a nossa herança, e meu primeiro marido faliu e me deixou sem uma moeda no bolso, por isso fui obrigada a trabalhar para ganhar meu sustento. Ninguém sabe melhor do que

eu como é duro descer vários degraus na escala social. Portanto, se imagina que eu tinha a intenção de tratar a srta. Cherry como uma criada na casado próprio avô, o senhor está totalmente enganado, milorde. Ela terá um bom lar, e não precisará fazer nada além do que uma moça da sociedade faria para ajudar a sua mãe.

—A senhora está perdendo o seu tempo — Ashley respondeu, removendo implacável a mão que insistia em segurar a manga do seu paletó, e prosseguiu rumo à escada.

—De qualquer maneira, o senhor não pode me acusar de não ter oferecido um lar à menina — ela ainda

insistiu, atordoada.

Minutos depois de ter deixado os aposentos de Nettlecombe, Ashley ainda estava enfurecido, mas enquanto caminhava de volta à cidade alta, a raiva foi se dissipando, e a faceta cómica do encontro foi ganhando destaque de maneira tão intensa que o brilho colérico que havia em seus olhos desapareceu por completo, e as linhas enrijecidas ao redor dos lábios suavizaram. À medida que se lembrava das coisas que ouvira, começou rir. Quando imaginou os motivos que levaram Nettlecombe a se casar com a governanta, provavelmente unindo o útil ao agradável, ele já estava quase simpatizando com a criatura.

Ashley queria muito que alguém estivesse a seu lado naquele momento para compartilhar a anedota. Henrietta,

por exemplo, cujo senso de ridículo era tão aguçado quanto o dele. Poderia contar tudo a ela, mas é claro que relatar a experiência não seria o mesmo que a terem vivenciado juntos. Torceu para que ela não tivesse cometido o erro de aceitar a proposta de casamento daquele sujeito prosaico que a estava rodeando em Inglehurst, pois os dois não combinavam de forma alguma. O sujeito provavelmente era do tipo lento, capaz de perguntar em um tom de voz surpreso o que ela quisera dizer com uma determinada piada, por exemplo.

Pensando melhor, do seu ponto de vista, nenhum dos pretendentes de Henrietta, que por sinal não eram poucos,

estava à altura dela. Era estranho que uma moça tão inteligente não fosse capaz de perceber com um olhar apenas que nenhumdaqueles homens lhe servia. Repassando a longa lista, ele não se lembrou de nenhum que tivesse lhe agradado.

Tais reflexões afastaram de sua mente o problema mais imediato, mas logo a lembrança veio à tona e pôs um fim §

qualquer desejo de rir da situação.

Um homem menos determinado teria se sentido em uma encruzilhada, e acabaria desistindo, mas Ashley tinha uma fagulha de forte determinação que corria junto com sua natureza tranquila, por isso não tinha intenção de se deixar abater.

Claro que tinha sofrido um revés, portanto o que precisava fazer agora era pensar em outro meio de garantir um bom futuro para Cherry. De imediato, nada lhe ocorreu. De repente viu-se imaginando o que ela estaria fazendo naquele minuto; se estava feliz em Inglehurst, ou se estava apenas muito ansiosa para ser feliz. Foi então que se deu conta, com certo espanto, que já fazia nove dias que a deixara na casa de Henrietta.

Para completar, o retorno demorou bem mais do que o previsto, pois durante a viagem de volta aconteceu uma

série de imprevistos que atrasaram seu avanço. O mais sério foi a perda de uma roda, que acabou empatando-o por um dia e meio. O acidente aconteceu no primeiro dia de viagem, em um sábado, na estrada entre Chesterfield e Mansfield. Quando chegaram em Mansfield, já era muito tarde para dar tempo de consertar, e no domingo todos

os estabelecimentos fechavam. Desse modo, somente na segunda-feira o problema foi resolvido, e assim Ashley pôde retomar a viagem.

Não demorou muito para que um de seus cavalos ficasse manco, como que para provar que a sorte definitivamente o abandonara, fazendo com que seu progresso até a próxima parada se parecesse mais com um cortejo fúnebre.

Por tudo isso, demoraram quatro dias para chegar em Dunstable, onde decidiu passar a noite, uma vez que ainda faltavam trinta quilómetros para chegar a Inglehurst, e não seria educado bater à porta depois do jantar.

Desse modo, foi somente depois de ter completado duas semanas que Cherry tinha sido deixada em Inglehurst,

que Henrietta, um pouco antes do meio-dia, finalmente foi agraciada com a chegada de Ashley, avisada por Grimshaw em seu tom de voz sepulcral.

—Oh, Ash, estou tão feliz em finalmente vê-lo! — exclamou Henrietta, saltando da cadeira diante da escrivaninha.

—Meu Deus, Hetta, o que aconteceu de errado?

- Nada. Quero dizer, espero que nada, mas temo que as coisas possam se complicar a qualquer momento. —

Ashley tinha lhe tomado as mãos e beijado-as, e ainda as segurava quando ela gentilmente as puxou e disse, fitando-o nos olhos:

— Seu plano não deu certo, não é mesmo?

- Não. Nettlecombe se casou. — Ele meneou a cabeça.

Os encantadores olhos ficaram arregalados, e ela ecoou, incrédula:

- Casou?

—Exatamente, juntou-se à governanta. Oh, perdão. Com a lady governanta.

—Ah! -- Ela se surpreendeu, dando uma piscadela. - Não tenho dúvida de que ela fez questão de lhe dizer isso.

Ashley sorriu.

- Não, na verdade ela disse a Nettlecombe, quando ele mencionou que tinha se casado com uma criada. Ela

ficou furiosa. Ah, Hetta, você não imagina como eu queria que você estivesse lá para ter visto a cena! Você teria morrido de rir.

Ela se moveu em direção ao sofá e se sentou, dando um tapinha no assento a seu lado.

- Conte-me tudo.

Ashley obedeceu, e ela se divertiu tanto quanto ele imaginara.

—Hetta, não posso levar essa moça infeliz para aquela casa — finalizou ele em tom sóbrio.

— Não — ela concordou, com a testa franzida. — O que irá acontecer com ela agora, Ash? Minha mãe disse,

há umasemana, que se Nettlecombe rejeitasse a neta, ela tinha a intenção de mante-la aqui, mas sei que isso não daria certo. A história é sempre a mesma, quando mamãe se apega muito a

— alguém. A princípio ela acha o novo tesouro perfeito, e então começa a perceber os defeitos; até mesmo as menores falhas se tornam exageradas aos seus olhos.

— - Meu Deus, isso já aconteceu? Pobre Cherry...

— —

Ainda não. Mas ela já começou a criticá-la. Não com indelicadeza. Simplesmente apontando

pequenos hábitos inocentes, ou cacoetes da fala, dizendo que gostaria que Cherry se livrasse deles. E aquela odiosa criada de minha mãe tem tanta inveja de Cherry que não perde a oportunidade de soltar o seu veneno. Até agora, ela não conseguiu virar mamãe contra Cherry, mas confesso que acho que não vai demorar para isso acontecer...

— - Não se preocupe - - ele a interrompeu. - - Está fora de questão Cherry permanecer aqui. Nunca, nem por um momento, considerei tal solução para o problema. Pensei que a deixaria aos seus cuidados por alguns dias apenas, mas só consegui descobrir o paradeiro de Nettlecombe na segunda-feira passada. Mesmo depois de saber que ele se encontrava em Harrowgate, não consegui convencer seu advogado a me dar o endereço exato. Por isso fui obrigado a percorrer a cidade, de hotel em hotel, durante dois dias, à procura dele.

— —

Oh, pobre Ash! Não é para menos que esteja com essa aparência de cansaço...

—— Verdade? Bem, a viagem de volta não foi das melhores. __ Ocorreu uma sucessão de imprevistos. Foi por isso que me atrasei para me apresentar à frente de batalha, como diria Horace. Por outro lado, tive tempo para pensar no que será melhor para Cherry e sobre outras questões pendentes. A porta se abriu nesse instante.

— — Sr. Nethercott — anunciou Grimshaw.

— —

Desculpe-me. Grimshaw deve ter entendido errado. Pedi

para falar com lady Silverdale, e ele me trouxe para esta sala,

onde... onde espero não ter atrapalhado nada, srta. Hetta -

disse Cary, olhando para Ashley de soslaio.

— - De forma alguma - - ela respondeu, levantando-se e trocando um aperto de mão com o visitante. — O

senhor já

foi apresentado a lorde Desford, não é mesmo?

Os cavalheiros trocaram acenos de cabeça. Cary educadamente disse que já tinha tido o prazer, e Ashley não disse nada. Cary explicou então que tinha vindo trazer um exemplar do último número da revista New Monthly para lady Silverdale, que continha um interessante artigo que ele tinha mencionado a ela, durante sua última visita.

—Que gentileza a sua! - - Henrietta agradeceu. - - Ela saiu em companhia da srta. Cherry para um passeio no jardim.

—Então entregarei a ela pessoalmente -- disse o cavalheiro, com as faces levemente ruborizadas. -- Espero vê-la novamente antes de ir embora, srta. Hetta. -- Voltou-se para Ashley. — A seu dispor, sir. — Inclinou-se antes de deixar a sala.

—Esse sujeito está morando em Inglehurst, Hetta? - Ashley perguntou, mal esperando a porta se fechar.


- Não. Ele mora em Marley.

- Digo isso porque ele está sempre aqui quando venho visitá-la.


—Mas você não o conheceu quando estava de passagem para Hazelfield? - - indagou Henrietta,

contraindo as sobrancelhas.

—Gostaria de saber a quem ele pensa que enganou com aquela história da New Monthly... Que sujeito maçante!

— Ashley não respondeu a Henrietta, mas fitou-a, prosseguindo com uma aspereza incomum: -- Não consigo entender o que você... Não, esqueça. O que estávamos dizendo, quando fomos interrompidos pelo sujeitinho?

- Você ia me contar o que decidiu fazer com Cherry. E sobre outras questões pendentes.

- Sim. Tem outro assunto que eu gostaria de conversar com você, mas antes preciso resolver a questão de Cherry.


—Como assim?

— Sim, é claro. Não era problema meu quando ela fugiu de Maplewood, mas quando a levei para Londres me

tornei responsável por ela. Não posso fugir disso, Hetta. Eu seria um canalha se a abandonasse agora.

—— Tem toda a razão. Mas o que tem em mente? Pensei que... que o casamento fosse a única solução para o caso. O problema é que o parentesco e a falta de dote podem atrapalhar, não acha?

— - Não para um homem que se apaixone verdadeiramente por ela, alguém que não precise de uma esposa rica. Mas isso é coisa para o futuro; minha preocupação é com o presente. Vou para Bath, para tentar persuadir a srta. Fletching a ajudá-la. Ela comentou sobre esta senhorita com você? Cherry estudou na escola dela, e me contou sobre ela quando estávamos a caminho de Londres. Falou maravilhas sobre a gentileza da dama.

—— Sim, contou, e com muito carinho, mas quando sugeri que voltasse para a escola como professora, em vez

de arrumar um emprego de dama de companhia, Cherry disse que a srta. Fletching só poderia lhe oferecer tal posição se ela tivesse conhecimento suficiente de alguma disciplina, ou algum talento para ensinar música. O problema é que ela não tem uma coisa nem outra. E acho que isso é verdade, Ash. O único talento de Cherry é para a costura. Ela tem o melhor génio do mundo, mas não é nem um pouco culta. Se a srta. Fletching a aceitasse, tenho certeza de que ela recusaria a oferta, pois já se sente suficiente em dívida para com ela.

——

Sei disso. Mas se seu pagar a dívida que ela tem com a srta. Fletching...

—-Não, Ashley -- Henrietta o interrompeu. -- Você não pode fazer isso. Ela é orgulhosa demais para aceitar.

——

Certamente, mas e se ela pensar que consegui convencer Nettlecombe a saldar a dívida?

— - Se acreditar, ela vai querer escrever uma carta de agradecimento ao avô.

——

Então eu diria que o avô pagou à srta. Fletching com a condição de que ela não escrevesse para ele e

nem o procurasse nunca mais. Aliás, isso é exatamente o que ele diria de fato.

— - Não iria funcionar. - - Henrietta sorriu, mas meneou a cabeça. __ Imagine a situação desconfortável em que ela ficaria se um dia descobrisse que foi você quem pagou tudo à stra. Fletching. Além do mais, você precisa levar em conta a sua própria situação. Quero dizer, estaria tão comprometido quanto Cherry. Sabe muito bem o que as fofoqueiras de plantão iriam dizer se ficassem sabendo.

— Já pensei nisso. -- O belo sorriso se refletiu em seus olhos, porém ele falou com pesar: — Mas eu esperava que você fosse me dizer que eu estava exagerando, apesar de quase ter certeza de que não iria ouvir o que queria. E

claro que tem toda a razão. Por isso vou esclarecer toda a situação para a srta. Fletching e perguntar a ela se por acaso não conhece alguém que more em Bath e que eventualmente pudesse empregar Cherry. Deve existir uma

porção de velhinhas por lá. Todas as vezes em que visitei a cidade, sempre me pareceu que era o centro das senhoras convalescentes.

A pequena ruga entre as sobrancelhas de Henrietta desapareceu.

—Sim, seria muito bom para Cherry.

—Nesse caso, partirei para Bath amanhã. Não posso perder nem um minuto do precioso tempo. Acho que será

melhor eu ir embora antes de Cherry chegar. Caso contrário, eu seria obrigado a contar o que pretendo fazer. Se ela não tentar me impedir e gostar do plano, não desejo alimentar o que pode acabar em falsas esperanças.

—Mas ela vai acabar sabendo que você esteve aqui - protestou Henrietta. — O que direi a ela?

—Diga que passei rapidamente e que não pude esperar, pois tenho um compromisso importante em

Londres. Só me desviei do caminho para contar que apesar de não ter conseguido muito com o velho Nettlecombe, eu não a abandonei, mas... mas que tenho um novo plano. E não revelei a você por temer que não dê certo.

— Mentiroso.

— Não. De fato temo que possa não dar em nada. A propósito, lady Bugle tentou fazer com que Cherry

voltasse para Maplewood?

— Não, isso me lembrou de algo que preciso lhe contar. Lady Bugle não sabe que ela está aqui, pois quando sugeri a Cherry que talvez fosse melhor escrever uma carta para a tia, ela ficou tão agitada que resolvi encerrar o assunto. Devo alertá-lo de que, apesar de lady Bugie não saber sobre o paradeiro da sobrinha, ela imagina que você esteja envolvido na fuga. E por isso ainda tenho outra coisa para lhe contar. Seus pais sabem que Cherry está aqui.

-Minha nossa! -- exclamou Ashley. -- Como se eu já não tivesse problemas suficientes. Quem foi o linguarudo que levou a história para Wolversham?

- Meu querido Ashley, você certamente sabe como as notícias voam com facilidade. Bem, mas o leva-e-traz desta vez foi uma de nossas criadas, que é prima de uma criada que trabalha na casa dos seus pais.

- Não para por aí, não é mesmo? - - Ashley a fitava, incrédulo.

- Na verdade, não. Seus pais vierem nos visitar há dois dias.


—Meu pai só pode ter se dado o trabalho de sair de casa, com gota e tudo, porque deve estar imaginado que estou prestes a contrariá-lo.

—Bem, ele estava caminhando apoiado em uma bengala, mas acho que seu estado melhorou muito. Eles vieram com a desculpa de visitar Charles. Pelo menos, foi isso que lorde Wroxton disse à minha mãe, mas o verdadeiro motivo, tenho certeza, era descobrir a verdade sobre a história que tinham ouvido. Não conversei muito com seu pai, mas sua mãe arrumou uma desculpa para falar em particular comigo. Ela me pediu para contar sem rodeios se Cherry estava aqui, e, se fosse verdade, por que você a trouxe para cá.

- E o que você disse?

— Contei a verdade, exatamente como você me contou. Ela revelou então que tinha recebido uma carta de sua tia Sephora, contando que lady Bugie tinha ido falar com ela e que queria

saber o que você tinha feito com Cherry. Parece-me que uma das filhas de lady Bugie... não consigo me lembrar o nome da moça, mas sei que é um nome diferente...

- Todas elas têm nomes diferentes, as cinco.

—Bem, parece que uma delas ouviu a sua conversa com Cherry, na noite do baile. Quando descobriram que

Cherry tinha partido, ela colocou na cabeça da mãe que Cherry tinha fugido com você. Não sei como lady Bugle acreditou em uma história tão sem sentido, mas aparentemente foi o que aconteceu, e por isso ela foi até Hazelfield para perguntar à sua tia sobre as suas intenções. Lady Emborough escreveu então para a sua mãe, contando que ela rira só de imaginar que você estivesse de alguma maneira envolvido com a fuga de Cherry.

Contou que disse a lady Bugie que você tomou o café da manhã em Hazelfield às dez da manhã e que assim não poderia ter roubado a moça ao alvorecer. Disse ainda que tinha dúvidas quanto ao seu envolvimento, pois ela se lembrava de que você parecia bem mais interessado em Cherry do que na prima dela, que é uma moça de beleza singular.

—Lucasta — ele assentiu. — Isso não vem ao caso agora. Você disse que minha tia escreveu para minha mãe.

Ela contou sobre a carta para o meu pai?

—Não. Mas foi ele quem primeiro ouviu a fofoca local. Tive a impressão de que foi ele próprio que insistiu para vir nos visitar, para descobrir a verdade. Você sabe como ele é, Ash.

— Melhor do que ninguém.

— A sorte é que a visita aconteceu em um dia em que mamãe estava particularmente satisfeita com Cherry,

por ter encontrado um lenço de renda que ela imaginava ter sido jogado fora há anos. Por isso quase tenho certeza de que ela só deve ter tecido elogios a Cherry quando falou sobre ela com lorde Wroxton.

- Ele viu Cherry?

- Sim, certamente, mas se gostou ou não, eu não sei. Em todo caso, foi muito educado.

- — Isso não quer dizer nada. Ele teria sido, mesmo que não tivesse gostado. Bem, agora terei de passar a noite em Wolversham, o que significa mais atraso. Sinto muito por tudo isso, Hetta. Não vou nem lhe perguntar se pode ficar com Cherry por mais alguns dias, porque tenho certeza de que irá me dizer que sim. Deus a abençoe, minha querida. -- Mais uma vez Ashley tomou as mãos da amiga, beijou-as e, sem mais uma palavra, partiu.


Capítulo IV

A recepção que Ashley recebeu em Wolversham foi muito mais calorosa do que o imaginado. Não foi surpresa para ele que Pedmore o saudasse com um sorriso radiante, pois sempre soubera que o mordomo tinha por ele, e por seus irmãos, um grande afeto.

—Que surpresa agradável, milorde! — O sorriso de Pedmore ficou estranho ao dizer: - - Lorde Wroxton ficará satisfeito em vê-lo, sir. Milady está repousando, mas seu pai se encontra na biblioteca. O senhor ficará aqui por muitos dias?

—Não, somente uma noite.

Depois de verificar a aparência no espelho do vestíbulo, Ashley caminhou resoluto em direção à porta dupla da biblioteca. Parou por um momento antes de entrar, preparando-se para enfrentar o que, tinha certeza, apesar das palavras encoraja-doras de Pedmore, seria uma recepção ácida. Contrariando as expectativas, quando Wroxton ergueu os olhos do jornal para ver quem tinha chegado, abriu um sorriso.

— Ah. É você, Ashley? Estou feliz em vê-lo, garoto.

Dominando a surpresa, Ashley cruzou a sala até a poltrona

onde o pai se encontrava e beijou respeitosamente a mão que estava estendida.

— Obrigado, sir. De minha parte, estou muito feliz em ver que não está mais com o pé enfaixado. O senhor está se sentindo tão bem quanto aparenta?

—Ah, estou ótimo! Ainda vai demorar muito tempo para você assumir o meu lugar.

—Era isso o que eu esperava. Não pense que vai me fazer

pensar que está velho e que está prestes a bater as botas, porque sei muito bem quantos anos o senhor tem.

O conde ralhou por causa do linguajar e disse que se Ashley pensava que podia falar com o próprio pai em tais termos, então estava totalmente enganado.

Contudo, no fundo Wroxton estava feliz, como sempre ficava... exceto quando seu humor era alterado por uma

crise lê gota... quando um de seus filhos demonstrava vivacidade, ^ssim, como era de seu feitio, depois de dar uma bronca, ele convidou o filho para se sentar e pediu que lhe contasse tudo que tinha feito desde a última vez em que se viram.

- Foi exatamente isso que me trouxe até aqui — salientou Ashley. — E uma vez que, como o senhor, não gosto de me esconder na moita, irei direto ao ponto. Acabo de vir de Inglehurst, onde soube de sua visita.

- Imaginei que isso iria acontecer. Veio implorar que eu o ajude a sair de enrascada em que se meteu, não é mesmo?

- De forma alguma. Pretendo apenas lhe dar a minha versão da história, que, de acordo com o que me contaram e m Inglehurst, o senhor soube por fontes secundárias sobre a presença da srta. Cherry naquela casa.

— Exatamente. E antes que diga mais alguma coisa, Ashley, deixe-me informar que não costumo dar crédito a fofocas de criados, pelo menos não quando dizem respeito qualquer um dos meus filhos. Ashley sorriu.

— É claro que não, sir. Mas o senhor não foi até Inglehurst sara descobrir o que eu tinha feito para ser alvo de tal fofoca? Não o culpo, pois deve ter lhe parecido que eu tinha aprontado algo suspeito. Hetta me disse que lhe contou a razão de eu ter deixado Cherry aos cuidados dela. Disse também que o senhor não fez nenhuma pergunta a respeito.

- Você acha que eu faria perguntas a ela, ou a qualquer outra pessoa, com a intenção de espionar a vida de um dos meus filhos? Ouça uma coisa, Ashley, se é essa a opinião que tem ie mim, então saiba que passou dos limites.

- Eu o conheço muito bem, papai, para pensar tal coisa — Ashley afirmou, imperturbável. — Por isso mesmo resolvi que o melhor seria abrir o jogo pessoalmente.

- Então vá logo ao assunto.

Ashley revelou sem rodeios tudo que tinha lhe acontecido durante as últimas duas semanas. Wroxton ouviu em silêncio, com uma ruga entre as sobrancelhas contraídas e um olhar penetrante.

- Meteu-se em uma tremenda encrenca, não foi?

- De fato — respondeu Ashley —, mas não estou a ponto de me desesperar, acredite.

O conde grunhiu.

—O que pretende fazer se a moça em questão não conseguir um emprego?

—Buscarei outra alternativa.

O conde resmungou, franzindo o cenho ainda mais. Após uma longa pausa, tempo em que pareceu lutar consigo mesmo, ele disse, apesar de as palavras saírem a contragosto:

- Você já é maior de idade, financeiramente independente, mas eu lhe peço, Ashley, que não se sinta obrigado a se casar com aquela garota por uma questão de honra.

— Não se preocupe com isso, pai, pois não a comprometi em nenhum sentido. Entretanto, acho que é meu

dever não abandoná-la neste momento.

- Como eu gostaria que você tivesse deixado a casa de Sephora uma hora depois!... — Wroxton lamentou.

—Bem — disse Ashley com um sorriso —, cá entre nós, eu também. Pensando melhor, não, pois não gosto nem de

imaginar o que teria acontecido àquela pobre moça inocente se eu não a tivesse encontrado na estrada.

—Não adianta chorar sobre o leite derramado. Você de fato se meteu em uma tremenda enrascada, mas poderia

ter sido pior. -- Wroxton tirou a caixinha de rapé do bolso e cheirou uma pitada. — Eu conheci a menina. Não vou esconder que fui até Inglehurst com essa intenção, e estou aliviado por ter ido, pois logo vi que ela não faz o seu tipo.

— E como o senhor sabe qual é o meu tipo de mulher?__Ashley riu.

— Sei muito mais a seu respeito do que você imagina rapaz. Quando ouvi falar do acontecido, primeiro pensei

você tivesse perdido a cabeça pela moça, e que pretendi juntar a ela. Por outro lado, sei que você não teria levado aventura sua para a casa de Henrietta. E se pretendia mesmo se casar com ela, tenho certeza de que não ousou

trazê-la para cá porque sabia que eu não iria permitir que se unisse alguém daquela família. Outra possibilidade era que ela tivesse armado uma cilada para você. Sim, sei que possui forte presença de espírito, mas homens mais experientes já caíram armadilhas femininas. Para dizer a verdade, eu estava prepapara fazer uma oferta à garota.

Contudo, assim que a vi, percebi que se tratava de uma mocinha ingénua. Bonitinha, mas não o seu tipo de mulher, e tímida demais. Agora, tenha a bondade de me informar por que não a trouxe para cá em de deixá-la aos cuidados de lady Silverdale?

Ashley, que já esperava por essa pergunta mais cedo mais tarde, ergueu a mão, como se tivesse sido golpeado

por uma espada.

—Confesso minha culpa, papai. Não ousei enfrentá-lo como o senhor bem disse.

—Devo reconhecer que, apesar dos seus defeitos, você é honesto. - - Wroxton soltou uma gargalhada. - -

Reconheço que se a tivesse trazido para cá, eu teria ficado tão bravo seria capaz de colocar os dois para correr.

Agradeço por ter feito isso, meu filho.

— Papai, como pôde pensar isso de mim? Não o fiz simplesmente porque imaginei que o senhor pudesse se aborrecer caso eu trouxesse a filha de Wilfred Steane para cá. Se me d i s s e r que eu estava errado, não tenho outra opção senão lhe pedir perdão.

Wroxton o fitou em silêncio durante alguns minutos

—Não — respondeu, secamente.

— Se sou franco — disse Ashley, sorrindo —, é por que herdei esta virtude do senhor.

—— Balela! Deixe de lisonjas — repreendeu Wroxton, escondendo no palavreado xucro a gratidão. Em seguida recuperou o tom severo, dizendo, depois de um momento de reflexão:

— - Bem, não é minha intenção repreendê-lo, portanto não se fala mais sobre o assunto. Só vou lhe dizer que caso se sinta com a corda no pescoço, pode contar comigo. Posso ser um velho ultrapassado e doente, mas tenho muito mais experiência do que você.

— —

Muito mais, sir. Pode ter certeza de que o procurarei, se necessário.

—Wroxton assentiu, aparentemente satisfeito. Meia hora depois, quando lady Wroxton entrou na biblioteca, encontrou pai e filho em bons termos.

—Na verdade, o primeiro som que ouviu ao abrir a porta foi o de uma gargalhada de Ashley, para quem o pai

estava contando, em tom de pilhéria, sobre a impressão que tivera de Harrowgate quando buscara as águas da cidade na esperança de cura. Ela não ficou muito surpresa, pois tinha fé na habilidade do filho em lidar com o génio difícil do pai, e sabia que, por mais que o marido negasse, Ashley era seu filho preferido.

——

Ah, finalmente — saudou Wroxton. Agora, venha aqui, e conte para Ashley se não sofri intoxicação por causa daquelas águas fedorentas de Harrowgate.

—— De fato, elas não lhe fizeram muito bem — disse a dama. — Mas você só bebeu um pouquinho, e não

se pode prever se teriam feito bem se tivesse insistido um pouco mais no tratamento. — Enquanto falava, ela abraçou carinhosamente o filho, que tinha se levantado e cruzado a sala para recebê-la. Lady Wroxton o beijou, mas beliscou o queixo também, dizendo, enquanto fitava o belo rosto: — Então agora, você resolveu virar um cavaleiro andante. O que vai aprontar depois, meu querido?

— E a conversa em família prosseguiu em um tom alegre. Ashley se preparou para partir para Londres após uma

refeição rápida, com a recomendação do pai de que partisse

para Bath na primeira hora do dia, pois quanto mais cedo aquela história chegasse ao fim, melhor seria para todps os envolvidos.

—Pela primeira vez, estou totalmente de acordo com o senhor, meu pai -- respondeu Ashley, com um brilho nos olhos. — Tanto que passarei a noite em Speenhamland, hoje.

—No Pelican, certamente...

—É claro! Onde mais alguém poderia parar no caminho de Bath?

- Imaginei que você fosse se hospedar em um estabelecimento mais caro para fazer jus à sua fama de perdulário

— provocou o conde. — Quando eu tinha a sua idade, Ashley, não podia me dar o luxo de fazer extravagâncias. Mas eu não tive uma tia-avó desmiolada para me deixar uma fortuna. Ah, sei que não é da minha conta o modo como você gasta o seu dinheiro, mas não venha me procurar quando estiver atolado em dívidas.

- De forma alguma, pois sei que o senhor iria me negar, não é? Eu não ousaria.

- Vá embora, seu inútil - - ordenou o pai, em tom de brincadeira.

Quando a carruagem de Ashley desapareceu de vista, Wroxton virou-se para a esposa.

— Essa confusão toda fez bem para ele. Confesso que fiquei enfurecido quando soube, mas em momento algum imaginei que ele tivesse caído na armadilha de uma golpista.

- Tem toda a razão, meu querido.

—O fato é que pela primeira vez na vida ele se viu encrencado, e mesmo assim não fugiu. Isso mostra que está

pronto para enfrentar a vida. Estou muito orgulhoso do meu filho. Se ao menos ele se acertasse, se casasse com uma moça de boa família, eu daria Hartleigh para ele morar.

—Ótima ideia! Seria uma maravilha ver Ashley vivendo onde você e eu moramos antes de seu pai falecer.

—Ah, mas quando será? Essa é a questão, Maria.

—Acho que vai demorar menos do que imaginamos...

Enquanto Ashley corria contra o tempo a caminho de Bath, Simon recebia em Londres uma visita inusitada.

- Tem um cavalheiro lá embaixo que veio falar com o senhor — anunciou o criado, entregando urn cartão de

visita, escrito em uma letra floreada: Barão Monte Toscaria.

Simon deu uma olhada e apanhou o cartão da bandeja.

- Nunca ouvi falar dessa pessoa. Diga a ele que não estou em casa.

— Peço mil desculpas — disse uma voz amena, vinda do corredor. - - Mas percebi tarde demais que tinha entregado o cartão errado a este bom homem. Por acaso estou tendo a honra de falar com o sr. Simon Carrington? Vejo que nem precisava ter perguntado. — Ele surgiu atrás do criado. — O senhor se parece muito com seu pai, que, espero, esteja gozandode boa saúde.

— Sim, sou Simon Carrington, sir, mas ainda não sei quem é o senhor — disse Simon, pego de surpresa.

— Suponho que o senhor nunca tenha me visto em toda a sua vida — disse o visitante, com um sorriso afável.

— Fez uma pausa para dispensar o criado. — Muito obrigado, meu bom homem.

Apesar do olhar relutante de Simon, o criado não teve alternativa senão se retirar.

— Agora cabe a mim reparar o meu tolo engano e me apresentar corretamente. — Sacou do bolso um estojinho de

couro e procurou entre diversos cartões, enquanto Simon o fitava, espantado.

O estranho era um homem de meia-idade, trajando roupas rosadas como o seu rosto arredondado. Enquanto a moda vigente banira de todos os armários os paletós floridos e as camisas com frufrus havia mais de seis meses, bem como jóias, com exceção de um anel ou um alfinete de gravata, quando muito, aquele senhor usava um paletó apertado e brilhante, uma camisa cuja goma o fazia parecer um pombo e um colete ricamente bordado.

Na juventude, provavelmente fora um homem bonito, pois as feições ainda guardavam um resquício da beleza, mas os inconfundíveis sinais de uma vida devassa tinham deixado marcas em seu rosto, assim como no corpo fora de forma.

—Ah, aqui está - - anunciou ele, selecionando um dos cartões. __ Não é este. Será que eu me esqueci...

não. Aqui está, finalmente.

—O senhor tem vários cartões diferentes? — Simon quis saber.


__Certamente. Acho conveniente usar um cartão aqui e outro acolá, pois tenho várias residências no exterior

e passo a maior parte do tempo viajando. Mas este cartão... — ele o entregou a Simon com um floreio — ...tem o meu verdadeironome, e sem dúvida esclarecerá o motivo da minha visita.

- Wilfred Steane? Então não está morto? – questionou Simon, quase sem fôlego pelo susto.


—Não, sr. Carrington, não estou morto - - respondeu Wilfred, puxando uma cadeira. — Estou bem vivo. Não entendo por que alguém iria imaginar que eu tivesse passado desta para melhor.

—O que mais alguém poderia pensar? O senhor desapareceu há anos, sem deixar endereço.

—O que o faz pensar que eu teria feito tal coisa sem avisar a minha pobre criança ou a criatura que ficou encarregada de cuidar dela?

—Não faço a menor ideia, sir.

—Confesso que tentei entrar em contato com elas. Masdeixemos isso de lado e vamos ao que interessa.

Estou aqui para descobrir onde seu irmão se escondeu.

__ Tenho dois irmãos, sir, e nenhum dos dois está escondido.

— Estou me referindo a lorde Ashley. Minha real preocupação não é com ele, cuja existência eu ignorava. —

Wilfred soltou um longo suspiro e meneou a cabeça com pesar. __ Ai de mim, homens fugazes! Correm os anos, e não podemos retardar as rugas da velhice... Sem dúvida, o senhor sabe o restante da comovente passagem do filósofo grego, Horácio.

—Claro que sim. Todo mundo sabe.

— A morte é inevitável... Essa é a mais pura verdade. Do alto de sua juventude, o senhor não deve fazer ideia do que estou dizendo. Como ainda me lembro muito bem dos meus dias alegres e despreocupados, quando...

—Perdoe-me, sir -- Simon interrompeu a digressão —,mas está se desviando do assunto. Pelo que me lembro, o senhor gostaria de saber sobre o paradeiro de meu irmão. Eu lhe diria, se soubesse, pois tenho certeza de que ele ficaria ainda mais feliz em vê-lo. A verdade é que não faço ideia de onde meu irmão esteja. O que sei é que Ashley não está escondido, e muito menos tem motivos para fazer tal coisa. E peço que não continue com a falsa acusação.

__ Todos os Carrington são iguais — resmungou Wilfred. - Lembro-me muito bem dos modos de seu pai.

Sempre arrogante, dono da razão.

—Bem, vamos deixar meu pai fora desta conversa. Mais uma vez lhe peço que me informe o motivo de sua visita.

Já lhe disse que não sei onde Ashley se encontra, e o único conselho que posso lhe dar é que espere até que ele volte para Londres. Ele mora na Rua Arlington, onde poderá encontrá-lo.

—Que ele mora na Rua Arlington, eu já sei. Assim que cheguei de Bath, fiz de tudo para descobrir o endereço

dele, uma tarefa fácil, sendo o seu irmão um membro tão distinto da alta sociedade.

—E claro que deve ter sido fácil. Tudo que teve de fazer foi consultar o guia de endereços.

—Que seja — disse Wilfred com ares de dignidade, fazendo um aceno de mão displicente. — Depois de ter descoberto o endereço, deparei com a falta de hospitalidade na casa de seu irmão. A porta foi aberta por um indivíduo, que imagino ser o mordomo da casa. Ele, como o senhor, afirmou não saber nada sobre o paradeiro de lorde Ashley. E disse tudo de um modo vago e distante. Não sou nenhum tolo ou ingénuo para não perceber quando estou sendo indesejado. Percebi muíto bem que o criado tinha recebido instruções para me despistar.

— Bem, creio que o senhor tenha se enganado. Pois como Ashley poderia ter dado tais ordens quando imaginou que o senhor estivesse morto? Se soubesse que estava vivo, por que faria isso? Mas se me deixar seu endereço, prometo que o entregarei ao meu irmão assim que nos encontrarmos. No momento, tudo que sei é que ele foi para Harrowgate.

Wilfred considerou a informação por um momento.

__ Dói em mim desconfiar das suas palavras. E lhe asseguro, meu jovem, que louvo a sua tentativa de proteger seu irmão, por mais que ele não mereça. E digo mais. Não fosse pelo trágico envolvimento da minha querida criança, eu aplaudiria a sua atitude agora. Eu me pergunto o que teria levado o visconde Desford a Harrowgate? Um recanto saudável, e, de acordo com o que me lembro, muito procurado por pessoas que sofrem de gota, escorbuto e todos os tipos de doenças.

— De fato, meu irmão não sofre de nenhum desses males. Na verdade ele foi para Harrowgate para falar com o

seu pai.

— Basta, meu jovem! - - exclamou Wilfred com desaprovação. — Nada disso faz sentido. Não tenho nada em Harrowgate. Na verdade, aquele lugar nem combina comigo. Quanto a meu pai, há muitos anos cortamos relações. Ele está morto para mim.

— Ashley procurou seu pai para pedir que ele acolhesse a neta, sua filha, que foi abandonada. Ou ela também está morta para o senhor?

- Eu preferia estar morto a ouvir tais palavras sendo proferidas contra mim. — Wilfred levou a mão ao peito, em um gesto dramático. — Minha única filha, o único parente que me sobrou no mundo. Eu lhe pergunto, meu jovem, se a minha presença em Londres não é prova suficiente da devoção que tenho por aquela

criança?

__Não é, não. O senhor sumiu, sem deixar endereço.

— Os motivos que me levaram a buscar o exílio não vêm ao caso, agora — afirmou Wilfred, erguendo a mão.

O fato é que deixei minha filha aos cuidados de uma pessoa, que imaginei fosse digna de toda a minha confiança. — Sacou uni lenço e seu rosto desapareceu por um momento atrás do tecido delicado. — Bem, mas aqui estou eu. E só voltei para a minli.i terra natal em consideração à minha filha. Pois não tinha oulio motivo para voltar senão o de socorrê-la. Peço que se colo que no meu lugar, e imagine a situação em que fiquei quando cheguei em Bath e descobri que a criatura em quem tanto confiei a tinha jogado na rua. Que entregara a menina, na verdade, nas mãos de minha pior inimiga. E por quê? Porque em meio à minha luta pela sobrevivência, fiquei sem recurso para saldar minha dívida. Será que a senhorita em questão não poderia ter confiado em mim como confiei nela? Sem que duvidou que assim que eu pudesse iria pagar tudo? Mas .a única resposta que a criatura me deu a todas estas perguntas foi em forma de lágrimas.

Wilfred fez uma pausa, lançando um olhar desafiador pai Simon, mas como Ashley só tinha revelado superficialmeni< sobre o seu envolvimento com Cherry, Simon não comenloi nada. Assim Wilfred prosseguiu com sua narrativa:

- Meu próximo passo foi seguir para a residência de campo de Amélia Bugle. Custou-me muito ter de fazer isso, mas contive a raiva em nome do meu amor de pai. E para quê? Para ser informado que a minha inocente criança tinha sido arrancada dos braços da tia por ninguém menos que o visconde Desford!

- Se foi isso que lady Bugle disse, ela mentiu — afirmou Simon. — Meu irmão não fez tal coisa. Lady Bugle tratou tão mal a srta. Cherry que a pobrezinha acabou fugindo com intenção de buscar refúgio com o avô. Tudo que Ashley fez foi dar uma carona a ela, quando a encontrou sozinha na estrada para Londres.


— Essa é a versão do seu irmão? -- perguntou Wilfred com um sorriso amargo. -- Meu pobre garoto, dói

em mim ser obrigado a destruir a fé que tem no seu irmão, mas...

— Não é necessário, pois não conseguirá – interrompeu Simon. — E agradeceria se não me chamasse mais de

"garoto”.

- Meu jovem, lembre-se de que está falando com um homem que tem idade para ser seu pai.

—E o senhor lembre-se de que está falando do meu irmão.

—Creia, entendo os seus sentimentos. Quem me dera que meu irmão me defendesse com o mesmo afinco!

Mas o ponto, sr. Simon, é que a minha inocente criança sucumbiu ao engodo de um libertino dono de um rosto belo e palavras doces. Sem mencionar as vantagens do berço e da fortuna. Estou enganado, ou lorde Ashley não

conta com todos estes atributos?

Revoltado pela descrição de seu irmão mais velho, Simon repudiou o que acabara de ouvir.

— Não! Meu irmão é um cavalheiro. Além do mais, sua filha não caiu nos braços de Ashley, simplesmente porque ele nunca os estendeu para ela. E se o senhor não tivesse idade para ser meu pai, eu lhe daria uma bofetada por ter chamado meu irmão de libertino. Posso lhe garantir que Ashley nunca fez nada que não fosse digno de um cavalheiro. E se tivesse tentado seduzir sua filha, por que então estaria tentando entregá-la ao avô? Responda-me isso, se puder.

- Talvez tenha se cansado dela e agora queira se livrar da pobrezinha — declarou Wilfred, encolhendo os ombros.

- Em menos de dois dias? Que história absurda!


— Meu jovem, é possível descobrir que uma mulher é cansativa em menos de duas horas. Não que eu tenha acreditado nessa história de que seu irmão foi para Harrowgate atrás do meu pai. Isso não faz sentido. E quanto mais penso a respeito, mais acredito que ele seduziu minha filha inocente. Não duvido q u e ela estivesse infeliz na casa de minha cunhada, mas se o seu precioso irmão pensou que ela seria mais feliz com meu pai, então deve ser um tolo, e isso sei muito bem que não é. O senhor pode até ter engolido esse conto do vigário, mas não espere isso de mim. A pura verdade é que seu irmão quis se aproveitar da minha pobre Cherry, porque imaginou que ela não tinha ninguém para protegê-la. Em breve ele irá descobrir que se enganou. Ela tem pai, e ele está aqui para lutar por sua honra.

Mesmo que para isso eu seja obrigado a divulgar a todos a vergonhosa história. Se lorde Ashley tiver a mínima honra, ele não poderá tomar outra atitude senão casar-se com ela.

— O senhor não faz ideia do que está falando - - disse Simon, sob as pálpebras semicerradas. -- Tenho a satisfação de lhe informar que a reputação de sua filha continua intacta. Longe de ter a intenção de acabar com ela, meu irmão tomou uma atitude para garantir que nenhum escândalo envolvesse o nome de sua filha. E para isso, Ashley a colocou sob os cuidados de uma senhorita de respeito.

Teria sido muito afirmar que o semblante de Wilfred mostrou desapontamento, mas o sorriso confiante certamente desapareceu de seus lábios, e embora sua voz continuasse macia, havia certa aspereza quando ele respondeu a Simon que aquela informação não mudava muito as coisas.

Simon começou a ficar preocupado, e o que mais queria naquele momento era saber onde seu irmão se encontrava. Afinal, era problema de Ashley lidar com Wilfred, e não seu.

- E onde fica este respeitoso lar da tal senhorita? - indagou Wilfred.

— Em Hertfordshire.

- Hertfordshire — ecoou o homem, admirado. — Será que me enganei tanto a respeito de lorde Ashley? Ele fez uma oferta à minha filha? Não tenha receio de me contar. Para ser honesto, ele deveria ter pedido minha permissão antes de falar sobre casamento com Cherry, mas estou pronto a perdoar a falha, uma vez que todos imaginavam que

eu estivesse morto. -__Sorriu maliciosamente. — Não precisa ser tão discreto, meu rapaz. Posso lhe assegurar que não tenho nada contra a união, contanto que lorde Ashley e eu entremos em um acordo. Ah, o senhor deve estar se perguntando como adivinhei que a casa respeitável da qual falou não pode ser outra senão Wolversham. Nunca tive o prazer de visitar pessoalmente a propriedade, mas tenho uma ótima memória, e assim que mencionou Hertfordshire eu me lembrei que Wolversham fica naquele condado. Um belo lugar, eu creio, não vejo a hora de conhecer. Momentaneamente atordoado, Simon se recuperou, e não perdeu tempo em desfazer as ilusões que obviamente cresciam na mente de Wilfred.

__ É claro que ele não a levou para Wolversham. Ele não ousaria. O senhor deve saber muito bem o que meu

pai pensa sobre a sua pessoa, portanto não preciso de rodeios para dizer que ele nunca permitiria que Ashley se casasse com a srta. Cherry. Não que meu irmão tenha feito tal proposta, pois, em primeiro lugar, ele não a ama; em segundo, não há motivos; e em terceiro... bem, isso não vem ao caso.

Simon teve a satisfação de ver o sorriso radiante de Wilfred se desfazer, mas foi por pouco tempo. Um olhar calculista surgiu nos olhos do homem, e as palavras seguintes quase fizeram os cabelos de Simon se arrepiar.

— Creio que esteja tremendamente enganado, meu jovem. O senhor seu pai não iria quebrar uma promessa feita pelo seu herdeiro.

—Quebrar uma promessa?!

exclamou Simon. — Ashley nunca pediu sua filha em casamento.

—Como sabe disso? Você estava presente quando ele a roubou da casa da tia?

— Não. Mas ele me contou como tudo aconteceu... Então parou, pois um sorriso largo se espalhara no rosto de

Wilfred, que balançava a cabeça.

- É fácil perceber que pouco sabe sobre as leis, meu jovem. O que seu irmão lhe contou não servirá como prova em um tribunal.

— Não creio que o senhor leve essa história aos tribunais, pois a sua filha, como já disse, encontra-se na casa de uma senhora de muito respeito, que, posso lhe garantir, está cuidando muito bem dela.

— Lamento duvidar de sua veracidade, meu jovem. Creio que você mente com a mesma velocidade com que

um cão pode correr, ou, quem sabe, até mais rápido. Que triste deve ser para o seu pai, um homem sempre tão severo, ter um filho devasso e outro tão enganador. E o pior, nem é um especialista na arte.

Simon caminhou rumo à porta, e a abriu.

— Fora daqui! — ordenou.

— Certamente, se insiste — concordou Wilfred, sorrindo. - Como não me revelou o endereço onde se encontra

minha filha, serei obrigado a sair daqui e seguir diretamente para Wolversham. O que imagino não seja o seu desejo.

Wilfred estava certo. Simon viu-se obrigado a engolir a raiva e buscar urna saída para o dilema. Não poderia permitir de forma alguma que o chantagista fosse perturbar o sossego de seu pai, que certamente não iria gostar nada de ver a cara do sujeito em sua casa.

- Bem, meu jovem?

O problema parecia não ter solução, quando Simon teve uma ideia brilhante.

— Está bem, se o senhor não acredita na minha palavra, serei obrigado a revelar o paradeiro de sua filha.

Não que me oponha que visite meu pai, mas o problema é que o estado de saúde dele não é dos melhores. Ele

não tem recebido ninguém além dos mais íntimos. E mesmo que permitisse a sua entrada, o que duvido, estou certo de que não acreditaria em uma só palavra do que lhe dissesse.

-- Foi a vez de Simon sorrir. — Quando Ashley descobriu que o seu pai não estava em Londres, ele levou a srta. Cherry para Inglehurst, onde fica a casa de campo de lady Silverdale, uma senhora que circula no mesmo

meio social do meu pai. Portanto, não há motivos para ansiedade, sr. Wilfred.

Ele finalizou com um tom confiante, pois percebeu que a fisionomia de Wilfred tinha se alterado, o que indicava que seu plano de afastá-lo de Wolversham estava dando certo.

— O que foi que eu disse para que imaginasse que sou bobo, sr. Simon? Posso lhe assegurar que se enganou

quanto a isso, rapaz ingénuo. Você acaba de se contradizer, pois quando mencionou sobre o paradeiro de minha filha, disse que ela se encontrava sob os cuidados de uma senhorita, e agora me fala de uma senhora.

- De fato, falei

Simon respondeu friamente. - A senhorita em questão é a srta. Henrietta, filha de

lady Silverdale. Foi a primeira pessoa que veio à mente do meu irmão quando ele não sabia o que fazer com a srta. Cherry. Ele e a srta. Henrietta estão noivos.

—Como? — ofegou Wilfred, pela primeira vez realmente abalado. — Não acredito nisso!

—Por que não? — Simon ergueu as sobrancelhas.

—Não confio em você, meu rapaz, e não estou nem um pouco satisfeito com essa história. — Wilfred se levantou, com uma atitude arrogante. — Está mais do que claro para mim que você não passa de um cúmplice nisso tudo. Só posso lhe dizer que é meu dever, como pai, ouvir toda a verdade da boca da srta. Henrietta. Sem mencionar, é claro, meu ardente desejo de abraçar minha filha. Se fizer a gentileza de me dar o endereço

de lady Silverdale, prometo poupá-lo da minha presença.

—Ora, ela mora em Hertfordshire -- respondeu Simon, displicente. — Pergunte a qualquer morador do condado, que saberão lhe mostrar a direção que deve seguir — acrescentou, enquanto Wilfred pegava seu chapéu. —

Ainda assim, acho que seria melhor se esperasse pelo retorno do meu irmão, pois não creio que lady Silverdale irá recebê-lo tão facilmente.


- Você é muito insolente, rapaz. E um tanto tolo. Agora me diga, como uma senhora que é um modelo de conduta, como afirma, acolheu minha filha em seu distinto lar?

- Porque ela sentiu pena da garota, é claro. Como qualquer um sentiria por uma menina abandonada pelo pai e

largada no mundo mundo.

Wilfred, lançando um olhar de desdém por cima do ombro, deixou o cómodo sem dizer mais nenhuma palavra.

Sem perder tempo, Simon saiu logo em seguida com o intuito de chegar primeiro em Inglehurst, para alertar

Hetta sobre a história e informar que ele tinha promovido o noivado dela com Ashley. Estava confiante de que, apesar do ar de esperteza de Wilfred, este não dispunha de muitos recursos financeiros como queria ostentar.

Portanto, era pouco provável que pudesse contratar uma carruagem de aluguel para viajar até Inglehurst. Isso queria dizer que certamente acabaria tendo de buscar por uma opção mais económica, o que atrasaria a sua viagem.

Simon viu nisso um convite para uma grande aventura, e o aceitou com entusiasmo. Em menos de meia hora,

tinha trocado a calça e o paletó elegantes por um traje de montaria. Tirou do armário um chapéu adequado, calçou as botas e desceu apressado as escadas.

Seu destino era a Rua Arlington, com a intenção de deixar um bilhete para o irmão, informando sobre as novidades e a necessidade de Ashley de partir para Inglehurst assim que colocasse os pés em Londres.

Simon, conhecendo a região onde nascera como a palma de sua mão, chegou em Inglehurst pouco antes das três da tarde. Cruzou os portões da propriedade no encalço de uma pequena carruagem conversível, com o brasão da proclamada viúva do proprietário, mas diminuiu o passo. Incerto sobre a identidade da ocupante solitária, pois ela segurava uma sombrinha para proteger o rosto do sol forte, preferiu mantei uma distância discreta, até que o veículo se aproximasse do terraço da residência. Só então ele pôde ver, quando ela fechou a sombrinha e desceu da carruagem, que a dama desconhecida não era, como temia, lady Silverdale, e sim sua filha.

Simon apressou o cavalo e chamou, quando Henrieli:i estava prestes a subir os degraus da frente da casa:

- Hetta, Hetta! Espere um minuto. Preciso falar com você.

Ela parou e virou-se para trás.

— Simon, o que está fazendo aqui? Pensei que estivesse em Brighton. Você estava em Wolversham?

- Não. Estou vindo de Londres — ele respondeu, desceu do do cavalo e entregando as rédeas para o criado, que tinha acabado de descer da carruagem. Depois de pedir ao rapaz que cuidasse do animal, ele se virou e segurou a mão que Hetta lhe estendia.

— Tenho algo muito importante para lhe contar. Mas precisa ser em particular — confessou ele.

— O que aconteceu, Simon? Se forem más notícias, peço que conte logo. Aconteceu algo com seus pais?

Ashley? Foi um acidente?

- Não é nada disso. Vim alertá-la sobre algo que está por acontecer. Algo muito desagradável. Wilfred Steane está vindo para cá.

-Wilfred Steane?! -- ela exclamou. -- Pensei que ele estivesse morto.

— Bem, não está. Na verdade, está bem vivo. Veio me visitar esta manhã.

—Que criatura terrível você é. Tentando me assustar com essa conversa de más notícias. Não acho que isto tenha classificação.

—Achará quando o conhecer — afirmou Simon. - - Ele é um sujeito repugnante.

—Que pena.

- Nem imagina o quanto. Vou lhe contar tudo que se passou durante a tal visita, mas não aqui. Não quero que nenhum criado nos escute.

— De fato não seria bom. Vamos entrar em casa. Espere por mim no salão verde. Prometo não demorar mais do que uns quatro minutos, mas primeiro preciso ir ver minha mãe. Passei a manhã toda em companhia da

sra. Mitcham, e sei muito bem como é a minha mãe. Se me demoro mais do que cinco minutos fora de casa, ela

logo pensa que algo terrível aconteceu comigo. Que fui assaltada por um salteador, ou que a minha carruagem sofreu algum acidente no qual me machuquei seriamente. É absurdo, mas não adianta discutir com ela.

Espero encontrá-la de bom humor, pois estou ausente há quase cico horas.

Henrietta subiu os degraus correndo, segurando a saia do delicado vestido de musselina que usava. Quando chegou ao terraço, ela viu que Grimshaw a esperava com a porta aberta.

— Graças a Deus que a senhorita voltou para casa!

- Bem, é claro que voltei para casa — ela respondeu, com um toque de impaciência. — Como se tivesse ido para o Pólo Norte... Estive, como bem sabe, a uma distância de não mais do que doze quilómetros de casa. Para completar, estava com o cocheiro de minha mãe e dois valetes para me protegerem das garras de qualquer salteador excêntrico, que pudesse tentar investir contra a minha carruagem; ou ainda para me socorrerem se algum acidente terrível acontecesse.

- Não estava preocupado com nada disso, senhorita. É o estado de milady que me fez agradecer a sua chegada. Ela sofreu um choque tremendo, e, sinto informar, está muito aflita.

— Céus, minha mãe está doente? Aconteceu algum acidente?

- Não foi exatamente um acidente, srta. Henrietta - respondeu Grimshaw, respirando fundo e lançando—

lhe um olhar de desaprovação. — Mas quando milady recebeu a terrível notícia, ela teve um acesso violento e entrou em estado de choque.

- Que notícia foi essa? — Henrietta quis saber, consideravelmente alarmada.

- Sinto informá-la, senhorita — disse Grimshaw, em um tom de satisfação —, que tenho todos os motivos para crer que sir Charles fugiu com a srta. Cherry.

- Oh, meu Deus! — murmurou Simon, por sobre o ombro de Henrietta. — Agora estamos realmente enrascados.

— Como ousa dizer uma bobagem dessas, Grimshaw? Quem teve a maldade de contar tal história ridícula para minha mãe? Foi você ou Cardle? Só pode ter sido Cardle, pois desde que Cherry colocou os pés nesta casa que ela tem tentado convencer minha mãe de que a pobre moça está envolvida em um esquema odioso. Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre isso, pois posso garantir que o senhor ira ouvir poucas e boas de Charles quando eu contar a ele sobre essa história. Agora vou falar com minha mãe, mas estou esperando a visita do pai de Cherry, o sr.

Wilfred Steane. Quando ele chegar, acompanhe-o até a biblioteca, e depois me avise.

— Pois não, senhorita respondeu apressado o mordomo. __ Milady está descansando na sala de estar, depois de tertomado algumas gotas de láudano. A propósito, não fui eu quem contou a ela que sir Charles tinha fugido com a srta. Cherry. Eu não teria dito nada sobre isso antes de a senhorita chegar...

— Basta — interrompeu Menrietta.

— Pois não, senhorita, lincaminharei o sr. Steane à biblioteca, como a senhorita instruiu.

— Ou o barão Monte Toscano interferiu Simon.

Henrietta já tinha saido em direção à sala de estar, mas deu uma olhada sobre o ombro ao ouvir a observação.

— Não, Simon. Não posso receber estranhos neste momento.

— É o mesmo homem ele explicou, em voz baixa. - Mais tarde eu lhe conto. Mas pelo amor de Deus, Hetta, não o receba antes de falar primeiro comigo. Tenho algo muito importante para lhe d izer.

Ela pareceu confusa, mas prometeu que iria para o salão verde assim que possível.

A cena com que Ilenriella deparou ao entrar na sala de estar era um testemunho eloquente do ataque de nervos

de lady Silverdale. Ela estava largada sobre o sofá; Cardle passava sais de cheiro sob o nariz dela com uma mão, e com a outra umedecia a testa com um lenço molhado em vinagre. Sobre a mesa ao lado do sofá estava uma coleção de garrafas, que iam desde láudano e tintura de raiz de valeriana até água húngara e xarope Godfrey.

— Graças a Deus, a senhorita chegou, finalmente! — saudou Cardle em um tom dramático. — Veja o que aquela

ingrata fez à senhora sua mãe.

—Oh, Hetta... -- sussurrou lady Silverdale, abrindo os olhos e erguendo uma mão lânguida.

— Sim, mamãe, estou aqui — disse Henrietta, acalmando-a. Em seguida virou-se para a criada: — Pode sair, Cardle.

— Ninguém irá me convencer a deixar a minha amada senhora — anunciou Cardle.

—A sua senhora não precisa de você enquanto eu estiver aqui — repreendeu Henrietta. — Esta demonstração

de devoção teria sido muito mais útil se você não a tivesse deliberadamente colocado neste estado de agitação.

Falarei com você mais tarde. Por enquanto, peço que saia para que eu possa ter uma conversa em particular com a minha mãe.

—E pensar que eu vivi para ouvir tais palavras sendo endereçadas à minha pessoa... — protestou Cardle, espalmando as mãos sobre o busto farto e erguendo os olhos para o alto. — Tenho servido fielmente milady há anos!

— Sim, sim, mas agora nos dê licença - - disse lady Silverdale, recuperando forças suficientes para empurrar o lenço encharcado de vinagre. - - Não quero mais esta coisa fedorenta. Você sabe que não suporto isso, Cardle. Oh, Hetta, obrigada, minha querida... —- agradeceu ao receber da filha um lenço umedecido em água de lavanda.

Cardle não teve escolha senão se retirar, o que fez com certa relutância e várias caras e bocas, deixando clara a sua indignação.

— Bem, agora podemos conversar mais à vontade, mamãe.

— Nunca mais terei um momento de sossego — lady Silverdale lamentou. — Oh, Hetta, você não imagina

o que aconteceu!

— Não faço ideia — assentiu Hetta, sentando-se ao lado da mãe e colocando o chapéu de fita de cetim sobre uma cadeira próxima. — Grimshaw me contou uma história absurda, e não pude acreditar em nenhuma palavra. Por isso eu lhe peço, mamãe, que me conte o que realmente aconteceu.

— Quem me dera a história fosse absurda... Charlie fugiu com aquela garota danadinha que Ashley me convenceu a acolher no seio de minha família. Nunca o perdoarei, nunca! Deus sabe que o fiz contra a minha vontade, pois não gostei do jeito da tal moça assim que olhei para ela. Sempre vi alguns

sinais nela que indicavam que havia algo de estranho. Aquele jeito sonso me incomodava. Você deve se lembrar que várias vezes comentei sobre a respeito.

— Na verdade, não me lembro. Mas isso não vem ao caso agora. O que não encaixa é essa história de Charles de fugido com Cherry. Isso é um absurdo, mamãe. Cherry não gosta dele mais do que gosta de qualquer outro rapaz.

—Ela disfarçou bem. Exatamente o que se podia esperar da filha de Wilfred Steane. Agora percebo que o tempo todo ela estava determinada a arrumar um marido. Não há dúvidas de que primeiro ela colocou os olhos em Ashley, só que ele, pressentindo a confusão, assim que percebeu a armadilha a empurrou para mim. Hetta, foi uma sorte você não ter aceitado se casar com ele. Reconheço que fiquei desapontada na época, mas como eu iria imaginar que ele seria capaz disso? Se fosse hoje, eu jamais daria permissão para esse casamento!

—Mamãe, precisamos mesmo perder tempo discutindo a moral de Ashley?

—Certamente que não. Não quero falar sobre ele. Nunca mais quero vê-lo, nem perder o meu tempo pensando nele. Na verdade, se Ashley tiver o desplante de aparecer aqui, Grimshaw receberá ordens para não

permitir que ele entre. Empurrou aquela garota para mim. Colocou-a no caminho do

pobre Charlie. Fez com que você acreditasse nele....

Sabendo que não adiantaria discutir com a mãe naquele momento, Henrietta manteve-se calada até que lady Silverdale terminasse o desabafo.

— O que a faz pensar que Charlie tenha fugido com Cherry?

- Ele fez isso em um momento de furor, é claro. Henrietta ficou surpresa.

— Nunca imaginei que nem mesmo um desmiolado como Charlie acabasse se envolvendo com uma garota em um momento de furor, e com uma garota por quem nunca demonstrou nenhum sinal de estar atraído.

__Ele não é um desmiolado — defendeu a mãe. — E quanto a não demonstrar sinais de que estava atraído, isso eu vi com meus próprios olhos, mais ou menos uma hora depois que você tinha saído, Hetta. Eles estavam se beijando e se abraçando.

—Abraçando? Como ele poderia fazer isso com um braço na tipóia e duas costelas quebradas?

—Ele estava com o braço esquerdo ao redor da cintura da assanhada. Quando entrei na sala, eles estavam se beijando. E quer saber o pior, Hetta? Ela não fez nenhum esforço para empurrá-lo.

—A senhora deveria estar grata por ela não ter feito isso, mamãe. Considerando que na semana passada o dr.

Foston recomendou que Charlie deveria tomar muito cuidado e conter os impulsos enquanto as costelas estão colando, acho que Cherry foi prudente ao não empurrá-lo. Não duvido de que ela tenha ficado apavorada ao imaginar o que poderia ter acontecido se o fizesse.

—Como pode ser tão cega e se deixar enganar assim, Henrietta?! Há dias venho percebendo que ela estava flertando. Na verdade, cheguei a alertá-la sobre isso. E Cardle me contou que...

—Não quero ouvir nada do que Cardle tenha lhe contado. Ela não gostou de Cherry desde o princípio, e não parou de tentar jogar a senhora contra a pobre menina.

—Cardle é leal a mim. Tudo que faz é pensando no meu bem.

__ O que aconteceu exatamente quando a senhora surpreendeu Charlie beijando Cherry?

— Ele a soltou no mesmo instante, e a culpa estava estampada no rosto dela. Cherry ficou atrapalhada demais para conseguir falar. Tentou balbuciar algo, mas ficou vermelha como fogo e saiu correndo da sala. É claro que dei uma bronca em Charlie. Fui bastante severa, e por mais que você diga, não ignoro os defeitos do meu filho. Não que desta vez eu ache que a culpa foi dele, mas não deveria ter se deixado levar pelos impulsos.

—Já imagino o que aconteceu em seguida... Ele teve um de seus ridículos ataques de fúria, e provavelmente foi rude com a senhora.

—Sim, ele foi — lady Silverdale admitiu com ressentimento. — Ele até me mandou calar a boca. E quando perguntei se a intenção dele era me magoar, ele saiu da sala e bateu a porta só porque sabe o quanto eu odeio essa atitude.


- Bem, acho que isso foi mais impróprio do que ter beijado Cherry - - comentou Henrietta, com um discreto brilho no olhar. - - Tenho certeza de que ele deve estar arrependido e pronto para lhe pedir perdão, portanto não fique nervosa por isso, mamãe.

- Ele se foi...


—Bobagem. Creio que ele tenha saído de casa em um ato impulsivo, mas assim que se acalmar irá voltar.

—O pior é que Cherry também se foi, Hetta. Se pensa que eu disse algo para ela ter feito isso, está enganada.

Naturalmente fui obrigada a lhe passar um sermão, assim como teria feito com você, se a apanhasse em semelhante situação, o que, graças a Deus, nunca aconteceu.

- E o que ela disse, mamãe, depois de ouvir o gentil sermão?

—Oh, ela disse que não tinha culpa, e que Charlie a apanhara de surpresa. Então eu disse a ela, com todo o jeitinho, que nenhum cavalheiro beija uma moça a menos que receba algum tipo de encorajamento. Depois a alertei, dizendo o que poderá acontecer se ela não aprender a se comportar com mais decência. Como ela começou a chorar, eu disse que não estava brava com ela e que estava disposta a fazer o possível para esquecer o incidente, e então aconselhei que se recolhesse no quarto e que só saísse de lá quando estivesse mais calma.

—Pobre garota! -- exclamou Henrietta. -- Como pôde, mamãe? Ela sempre foi tão gentil com a senhora, e tão

grata. Como pôde dizer tais coisas? Cherry deve ser tola e ingénua a ponto de ter acreditado que nenhum homem beija uma moça a menos que tenha sido encorajado, que saiu correndo para chorar em algum canto.

Agora terei de sair para procurar por ela.

- Você é tão insensível quanto o seu irmão - - lady Silverdale exasperou-se, erguendo-se da posição de moribunda em um rompante. — Não se importa que sua mãe tenha passado o dia em agonia na cama? Oh, não! Você

só se importa com aquela garota levada que acolheu com tanto carinho. Não adianta sair para procurá-la, pois isso já foi feito, e nem ela nem Charlie foram encontrados. E quer saber mais, Cardle a viu descendo a escadaria dos fundos, menos de vinte minutos depois que a mandei ir para o quarto, e ela estava usando o gorro e um xale, e as bolinhas de nanquim que comprei para ela. Você chama isso de gratidão?

Henrietta franziu a testa discretamente.

—Então ela deve ter saído para dar uma volta pela propriedade. Creio que teve ter ido buscar por um refúgio

onde não tivesse de ficar trancafiada. Ou quem sabe foi caminhar para espairecer um pouco... Seria o que eu faria em tais circunstâncias.

—Espere, ainda não contei tudo - interrompeu lady Silverdale. — Um pouco depois, uma carruagem fechada foi vista próxima ao portão de entrada, e um dos criados viu Charles entrando nela, com o chapéu encobrindo os olhos, para que não fosse reconhecido, é claro, mas James o reconheceu, por causa do paletó verde, que eu detesto. James ficou sem saber o que fazer, pois todos os criados sabiam que o dr. Foster tinha proibido Charlie de cavalgar e sair de casa por mais uma semana pelo menos. Por isso veio correndo até a casa para contar o que tinha visto. James procurou por Pyworthty, mas não o encontrou, e então contou a Grimshaw tudo o que vira. Oh, sou grata por Charlie ser tão querido pelo valete, pois não sei o que seria...

—Mamãe, Simon está esperando por mim no salão verde, com uma mensagem urgente, por isso peço que me

conte logo...

__ Estou contando, mas se continuar me interrompendo nunca poderei terminar. Quanto a Simon Carrington, eu a proíbo de convidá-lo para jantar aqui. Não o estou acusando de ter ajudado ou encorajado Ashley, apesar de não me surpreender se descobrisse isso, mas não quero pôr os olhos nele, nem em Carrington nenhum!

— Está bem, mamãe. James por acaso contou se Cherry estava na carruagem?

- Não, mas ele sabia que havia alguém mais lá dentro, pois quando a porta se abriu ele viu que Charlie sorriu ao entrar, e disse alguma coisa. Quem mais poderia ser senão...

- E diante disso, a senhora, Cardle e Grimshaw tiraram todas as conclusões. Os romances que tanto gosta de

ler nem se comparam à história que vocês inventaram.

- Hetta, não é assim tão absurdo. Para onde mais Charlie poderia ir em segredo senão...


—Por favor, mamãe, não diga Gretna Green. — implorou Henrietta. — Para mim, Charlie saiu para alguma aventura que sabia que a senhora iria desaprovar, e se sofrer algum acidente, acho benfeito. O mais importante agora é descobrirmos o paradeiro de Cherry. Há quanto tempo ela está desaparecida?

—Faz horas. Os dois. Mas como você pode ser tão sem coração a ponto de dizer que Cherry é mais importante

do que o seu próprio irmão...

—Não acho que Charlie irá se machucar - - Henrietta constatou, impaciente. - - O dr. Foster só disse aquilo

por que ele sabe muito bem que Charlie só iria fazer repouso se ficasse assustado. Temo que Cherry possa ter sofrido algum acidente, por isso vou enviar um grupo para procurar por ela.

Henrietta se levantou em seguida, mas se assustou com um grito da mãe.

— Charlie! - - berrou lady Silverdale, deixando-se cair sobre as almofadas do sofá com as duas mãos sobre o peito.

Charlie entrou impetuosamente na sala. Era evidente pela expressão que tinha no rosto e pelos passos firmes, que estava um pouco mais calmo.

__ Eu gostaria de saber, mamãe, por que a senhora mandou os criados ir atrás de mim? Isso é o cúmulo! Não me olhe assim, Hetta. Vou dizer tudo que estou pensando e sentindo. Chegamos a um ponto em que não posso dar dois passos fora de casa sem ser seguido e espionado pelos criados, ou sem levar bronca do mordomo, por ter ousado sair sem informar local e hora de chegada. Não aguento mais isso.

-Pobre menino...

murmurou lady Silverdale, dramaticamente. — Onde está Cherry?

—Como vou saber? Se pretende me dar mais um sermão, já estou de saída. Todo aquele barulho só por causa

de um beijo... Quem não soubesse iria imaginar que tentei abusar da menina.

—Charles, se não tem respeito pelo meu estado, respeite pelo menos a sua irmã.

- Está bem, me desculpe. Mas é difícil manter a calma diante de tanto barulho por nada.

—Sei muito bem que você não teve culpa — disse lady Silverdale, revirando os olhos. -- Mas não deveria ter

feito o que fez, pois já tem idade suficiente para saber que não deveria. Por outro lado, tenho certeza de que não teria agido assim se ela não o tivesse encorajado. Portanto não se toca mais no assunto.

—Ah, vamos falar, sim — ele disse, furioso, com o rosto vermelho. — Cherry não me encorajou a beijá-la. Por

sinal, ela ameaçou gritar se eu não a soltasse, a garota tonta. Portanto não precisa dar bronca nela, pois não permitirei que ela seja acusada de algo que não teve culpa.

- Charlie - - Henrietta interpôs calmamente —, Cardle e Grimshaw colocaram na cabeça de mamãe que você tinha fugido com Cherry, por isso não estranhe o estado de nervos em que ela se encontra. E, por favor, modere o linguajar.

— Fugido com Cherry? -- repetiu ele. — Agora só falta dizer que pensaram que eu estava a caminho da fronteira em uma carruagem de aluguel, acompanhado por uma garota de quem eu nem gosto. Se vai me dizer que

pensou tal absurdo, então você deve estar maluca, Hetta, e isso é tudo que posso dizer.

— Oh, não pensei tal coisa. Mas se não sabe onde Cherry está, então preciso enviar os criados e os jardineiros à procura dela imediatamente.

— Se ela não estava na carruagem, então onde estava? - inquiriu de repente lady Silverdale. - - Não venha me dizer que era um de seus amigos, pois não posso acreditar que nenhum precisasse visitá-lo às escondidas. Tem algo de misterioso nisso tudo, estou sentindo. Minha palpitação já está voltando. Charlie, não tenha medo de me contar. Você se meteu em uma enrascada?

—Que chances eu teria de me meter em uma encrencase o tempo todo estive preso aqui? — reclamou ele,

em um tom de quem já não suportava mais. — Se quer mesmo saber, era Pyworthy que estava na carruagem, e saí

com ele para assistirmos a uma luta de boxe. Fui eu quem o mandou alugar uma carruagem, e pedi que a trouxesse até o portão. Eu sabia a confusão que aconteceria se tivesse contado para onde eu estava indo.

—Acho que tem toda a razão — disse Henrietta, apanhando o chapéu e seguindo rumo à porta. — Vou deixá-los

a sós para que façam as pazes.

—Sim, mas se pretende mandar os homens sair à procurada fugitiva, talvez seja melhor não fazê-lo — disse Charlie, inquieto. — Não deve ter acontecido nada com ela. É melhor evitarmos comentários.

—Infelizmente, encontrar Cherry é uma questão de considerável urgência — observou Henrietta, docemente. —

Tenho bons motivos para crer que o pai dela esteja vindo para cá, e deve chegar a qualquer momento. Talvez você queira assumir a missão de contar a ele que a filha desapareceu?

—Acho melhor que você se encarregue disso. Hetta, você está mentindo para mim? Como sabe que ele está vindo para cá? Eu pensei que ele estivesse morto.

- Bem, não está. E sei que está vindo para cá, pois Simon veio diretamente de Londres para me avisar.

— Não ouse trazê-lo até mim, Hetta — recomendou lady Silverdale, recuperando-se do estado de espanto que a

deixara boquiaberta. — Eu não posso e não quero me encontrar com aquele homem. Cherry é problema seu, e não

meu.

— Não precisa se preocupar, mamãe. Não tinha a menor intenção de trazer o sr. Wilfred para falar com a senhora.


Capítulo V

enrietta encontrou Grimshaw vagando pelo amplo corredor que ligava o vestíbulo à porta da sala de estar, e Haproveitou a oportunidade para dar a ele as ordens para que uma busca por Cherry fosse iniciada o mais rápido possível.

Grimshaw recebeu a ordem de um jeito que indicou a ela que os efeitos cumulativos da bronca que levara, provavelmente sem rodeios, do jovem patrão, tinham servido para fazer com que se tornasse uma pessoa, pelo menos temporariamente, mais solícita. Ele até tentou detê-la para se desculpar por sua parcela de culpa nos terríveis acontecimentos do dia, mas acabou se limitando a jogar toda a culpa em Cardle, fazendo com que Henrietta não demorasse a cortar a conversa.

Em seguida, ela correu para o salão verde, onde encontrou Simon impaciente andando de um lado para o outro.

— Meu Deus, Hetta, pensei que não voltaria nunca mais! Estou me sentindo como um gato num forno quente.

- Vim o mais rápido que pude, pois minha mãe não parava de falar.

— Charlie fugiu mesmo com a srta. Cherry? - - Simon perguntou, incrédulo. — Que maluquice!

- É claro que não. Meu irmão chegou há alguns minutos e contou que saiu para assistir a uma luta de boxe. Ele foi sem avisar, para evitar que minha mãe o impedisse, mas isso não vem ao caso. O mais grave é que Cherry já está desaparecida há horas, e como minha mãe, induzida por Cardle e Grimshaw, concluiu que Cherry tinha fugido com Charlie, ninguém saiu à procura dela. Mandei que Grimshaw enviasse uma equipe de busca imediatamente, e só posso esperar que a encontrem antes da chegada do sr. Wilfred. Simon se mostrou surpreso.

—Sim, mas... então ela também saiu às escondidas? Atitude estranha, não acha? Sair sem dizer a ninguém onde

estava indo. Pensando bem, não é normal uma menina daquela idade sair para um passeio sem avisar. Sei que Griselda nunca fez isso. Na verdade, tenho certeza de que minha mãe nunca permitiu que minha irmã andasse desacompanhada.

—Nem a minha. Mas o caso é um pouco diferente, Simon. Não conte a ninguém, mas parece que houve um

pequeno rebuliço esta manhã, depois que minha mãe encontrou Charlie tentando beijar Cherry, e... houve muito barulho por isso. Temo que Cherry tenha se ofendido com o que minha mãe disse a tal ponto que ela saiu de casa para acalmar os nervos, e pode ter se perdido, ou... ou sofrido algum acidente.

—Acalme-se, Hetta, nossa região não é selvagem como Yorkshire. Se ela se perdeu, qualquer um pode indicar o caminho de volta. Não consigo imaginar que tipo de acidente poderia ter acontecido. Talvez ela tenha fugido mesmo. Parece que se tornou um hábito.

—Oh, Simon, será que Cherry faria algo tão estúpido?

—Bem, não sei. Não conversei com ela por mais do que vinte minutos, mas não me pareceu que fosse uma desmiolada.

—Não é, mesmo. Cherry é uma criatura doce, mas infeliz mente é um tanto tola.

—Seria bom se pudesse se livrar dessa preocupação. Faria bem a Ash também. Não fosse pelo pai, eu diria para deixá-la partir. Se bem que se ele chegar na esperança de vê-la e você for obrigada a informar que ela fugiu e não foi encontrada, estaremos em maus lençóis.

— Eu certamente estarei, mas você não. De qualquer maneira, não seria bom que ela fugisse. Ash a entregou aos meus cuidados, e eu não me sentiria bem por ter traído a confiança do seu irmão.

—Não, não foi isso que eu quis dizer — Simon se apressou em emendar. — A verdade é que o tal sr. Wilfred é uma criatura muito desagradável, e está claro que ele pretende obrigar Ash a se casar com a garota, ou, se não conseguir isso, arrancar então algum dinheiro pelo dano causado à reputação da moça.

—Ash não não fez nada disso.

—Eu sei, e foi o que disse ao velhaco. Mas o fato é que não pude provar nada, pois tudo que sei a respeito desta história é o pouco que Ash me contou. E isso não serve de prova, como o sr. Wilfred teve o cuidado de me informar.

Para completar, Ash foi para não sei onde, e me deixou para lidar sozinho com a confusão. Aposto dez contra um que vou acabar em apuros. Hetta, peço desculpas, mas como ninguém sabe onde Ash está, só me restou...

—Ash está em Bath — ela o interrompeu. — Ele passou por aqui na volta de Harrowgate, e contou sobre a intenção de visitar a dona da escola em Bath, onde Cherry estudou, jara pedir que ela ajude Cherry a encontrar um trabalho, uma vez que o avô não quis acolher a neta.

__ Em Bath? Mas o sr. Wilfred esteve lá antes de vir para Londres... não, acho que antes ele passou na residência dos Bugle. Ele deve ter se desencontrado de Ash, pois certamente não o tinha visto antes de vir falar comigo. Na verdade, ele veio tentar descobrir onde Ash estava. Sim, e isso me faz pensar em algo que não tinha me ocorrido ainda. Esqueci de perguntar a Aldham onde ele estava com a cabeça ao mandar o sr. Wilfred falar comigo.

Imagino que ele tenha sido tão pressionado para saber do paradeiro de Ash que acabou por empurrar o sujeito

para mim. Céus, vou dar uma bronca nele quando voltar para Londres. - - Fez uma pausa e então disse em um tom mais brando: - - Bem, acho que até foi melhor. Pelo menos, tive tempo de chegar aqui primeiro. Agora me escute, Hetta. Eu não teria mandado para a sua casa se pudesse ter evitado.

- Simon, você fez a coisa certa. O sr. Wilfred pode ser uma

pessoa mal-afamada, mas é o pai de Cherry, e nenhum de nós tem o direito de escondê-la do próprio pai.

— Bem, eu não faria isso. Mas a moça não faz o meu tipo.

— Ele soltou um sorriso maroto. —Acredito que Ash fará tudo

que estiver a seu alcance para mante-la afastada das garras do sr. Wilfred, quando ele conhecer o sujeito pessoalmente, o que acontecerá em breve. O problema é que Ash é muito cavalheiro.

—Acho que todo pai gostaria de garantir um bom futuro para uma filha. Ainda mais porque, pelo que sei, o sr.

Wilfred não está em boas condições financeiras. Se por um lado acho ambicioso o plano de conquistar um genro

rico e com título de nobreza, por outro, o fato de ele ter vindo procurar a filha é um forte indício de carinho por ela. — Henrietta franziu o cenho. — Apesar de parecer estranho que ele a tenha abandonado por tanto tempo sem dar notícias. Mas creio que deve haver um motivo para isso.

—Quem sabe, estava preso... Ao que tudo indica, ele pratica todo tipo de patifaria, se bem que a sua especialidade é trapacear na mesa de jogo.

-Você acha que ele é viciado em jogo? r-Henrietta indagou, surpresa. — Não pode ser, Simon.

- O que mais se pode pensar de um sujeito que carrega no bolso mais de uma dúzia de cartões de visita diferentes, e diz que locais como Bath e Harrowgate não combinam com o seu temperamento?

—Mas se o sr. Wilfred é mesmo esse tipo de pessoa que você imagina, ele não deve ter planos de levar Cherry para viver com ele.

—Isso eu não sei, e não vou perder o meu tempo pensando. O importante é que entenda, Hetta, que ele é um

enganador muito perigoso. Quando percebi qual era o jogo, e o escândalo desagradável que poderia armar se acusasse Ash de ter seduzido a garota, prometendo se casar com ela, eu disse que além de não ter feito nada disso, Ash tinha colocado Cherry

IKI casa de uma amiga antes de sair para procurar o avô da garota. O sr. Wilfred fingiu não acreditar. Então fui forçado a contar que a menina estava aos cuidados de lady Sílverdale, uma distinta viúva que circula nas melhores rodas sociais, e que é tão respeitável quanto o meu pai. — Simon parou de falar de repente, e virou a cabeça para ouvir o som de uma carruagem que se aproximava. —Ah, meu Deus, ele chegou!

Com dois passos largos o ágil rapaz já estava na janela, e enquanto Henrietta esperava ansiosa, ele observava a movimentação.

—Ah, é ele mesmo. O sr. Wilfred em pessoa.

—Nunca gostei de brincar de esconde-esconde — confes

sou Henrietta. — O que direi a ele, Simon? Confesso que não sei mentir.

__-Não será preciso... Quero dizer, há algo que ainda não lhe contei, foi por isso que vim para cá o mais rápido que pude. O sr. Wilfred pensa que você está noiva de Ash.

Henrietta estava diante do espelho, tentando prender algumas mechas que escapavam de seu penteado, mas ao

ouvir o disparate, virou-se para Simon, espantada.

— Ele pensa que estou noiva de Ash? Como assim?

- Bem, eu disse isso a ele.

Henrietta ficou furiosa.

—Simon, como pôde inventar uma coisa dessas?

—Foi a única coisa que consegui pensar que pudesse justificar o fato de lady Sílverdale ter acolhido Cherry, sob uma circunstância tão incomum. Foi o único jeito de desarmá-lo. Bem, isso prova que, se Ash estava noivo de você, ele não poderia ter pedido a mão de outra dama.

—Acho que foi a pior coisa que poderia ter feito — ela considerou, com os olhos flamejando.

—Foi a única coisa que me ocorreu. Garanto que Ash não vai se importar.

—Ashley não vai se importar? E quanto a mim?

- Ora, por que você iria se importar? Pode ficar tranquila que ninguém ficará sabendo de nada, pois a menos que eu esteja enganado, não pretende permanecer muito tempo na Inglaterra.

—Como pôde fazer isso? Nunca o perdoarei, Simon.

—Bem, agora já foi - - disse, consolando-se. - - Se eu soubesse que você iria ficar tão brava, não teria dito.

Agora não posso fazer nada para voltar atrás. Você precisa entender isso, Hetta.

—Não entendo...

- Você quer dizer que vai contar ao sr. Wilfred que não está noiva de Ash? Eu não esperava isso de você. Pensei que não teria coragem de abandonar Ash neste momento difícil. Isso é o mesmo que apunhalá-lo pelas costas. Bela amiga!

—Ah, basta! Se aquela criatura horrível tiver a coragem de perguntar isso para mim, não vou negar.

—Eu sabia que poderia contar com você. Agora, dê uma olhada na cara do safado e tome cuidado para não deixar escapar que estou aqui.

Em seguida, Simon deu um tapinha no ombro de Henrietta e abriu a porta para ela, percebendo o sorriso ligeiro que ela lançou antes de sair.

Ele correu então rumo à janela, para esperar a chegada do irmão. Simon tinha certeza de que não iria demorar; a única dúvida era se ele chegaria em Inglehurst antes que a pobre Hetta tivesse perdido a paciência com o sr. Wilfred.

E a sua confiança se justificou. Vinte minutos depois de Henrietta ter se juntado ao sr. Wilfred na biblioteca, mais uma carruagem chegou na propriedade, e fez com que Simon se levantasse apressado. Ele tinha tanta certeza de que o passageiro era Ashley que nem esperou para ver mais de perto e saiu apressado rumo ao vestíbulo, onde interceptou Grimshaw, que estava indo atender à porta.

— Não precisa se dar o trabalho — ele disse. — E só o meu irmão. Eu o atenderei.

Grimshaw olhou surpreso e com desaprovação, mas se curvou e recuou, pensando que Simon era um rapaz

sem modos, sempre propenso a passar por cima das normas de etiqueta.

Simon desceu os degraus da frente correndo assim que Ashley desceu da carruagem.

- Deus do céu, estou tão feliz em vê-lo, Ash!

- Estou vendo que está -- disse Ashley ao receber um soco de brincadeira no estômago. — Só posso lhe agradecer por tudo que fez. Você não precisava ter se envolvido nesta confusão.

- Belo irmão eu seria se o abandonasse em um momento como este. — Simon baixou o tom de voz. — As coisas estão piores do que você pode imaginar, Ash.


—É mesmo? — Ashley voltou-se para o cocheiro, dizendo rapidamente: — Não sei quanto tempo vou me demorar... provavelmente uma ou duas horas. Devemos passar a noite em Wolversham. — Em seguida olhou para

Simon, enquanto a carruagem era levada para os estábulos. — O sr. Wilfred já chegou?

—Sim, há aproximadamente vinte minutos. Ele está com Hetta, na biblioteca.

—Então é melhor não perder tempo e me juntar a eles.

—Certamente. Mas primeiro é melhor ouvir o que tenho para lhe contar antes que complique a situação ainda

mais.

—Se vai me dizer que o sr. Wilfred é um canalha, já sei disso. Estive com a srta. Fletching um dia depois de ele a ter visitado e perturbado até que a pobre senhorita tivesse um ataque de nervos. Pelo que ela me disse, não teve dificuldade em concluir que o sujeito não mudou nada desde que deixou o país. Qual é a ocupação do safado?

Carteado?

- Sem dúvida. Mas a presente ocupação do sr. Wilfred é dar um jeito para que você se case com a sua preciosa filha.

—Bem, ele vai ter muito trabalho, então. — Ashley caiu na risada.

—Se eu fosse você, Ash, não estaria tão confiante.

— Ora, mas não há por que pensar diferente. A primeira vez que vi Cherry foi no baile de lady Bugie, quando

então conversei com ela. No dia seguinte a encontrei seguindo sozinha para Londres, e dei-lhe uma carona na minha carruagem. Primeiro levei-a para a casa do avô e depois a trouxe para cá. Desde então, nunca mais a vi. Portanto, o sr. Wilfred não tem motivo algum para me acusar de nada. — Percebeu então que Simon estava sério, e disse, com certo espanto: -- Não estou inventando nada disso. É a mais pura verdade.

—Eu sei. Mas o sujeito é o rei da enganação. E se ele resolver dizer que você roubou Cherry da casa da tia,

sob a promessa de se casar com ela?

— Será que ele chegaria a esse ponto?

Simon assentiu.

— E ainda ameaça acusá-lo de ter se cansado da moça e de querer se livrar dela.

- Tudo isso em um dia apenas? Que absurdo, Simon...

— Mesmo assim não seria agradável que tal história se espalhasse pela sociedade. Você sabe que as fofoqueiras de plantão provavelmente diriam que onde há fumaça há fogo.

Ashley se calou por um momento, cabisbaixo.

— De fato não seria nada agradável - - finalmente respondeu com um leve sorriso. — Mas não creio que ele

possa fazer tal coisa. Primeiro, isso poderia lhe acarretar uma represália; e segundo, ele deve saber que não tem bom nome na praça. E ninguém cuja opinião me interessa iria acreditar em uma palavra do que ele dissesse.

- E quanto aos seus inimigos?

— Não tenho nenhum. E além do mais, a própria Cherry pode testemunhar a meu favor.

— Bem, se você não se importa com o falatório que esse sujeito está disposto a causar, o que acha que papai iria dizer de tudo isso? Esse seria outro problema e tanto. Foi pensando nisso que mandei o velho embusteiro para cá, pois ele ameaçou ir a Wolversham para tirar saitisfação com nosso

pai. Em seguida teve o desplante de me perguntar como lady Silverdale concordou em receber Cherry das mãos de um libertino como você. Por isso tive a ideia de dizer que você estava noivo de Hetta.

-Você disse... o quê?! — Ashley inquiriu, apanhado de surpresa.

- Bem, pareceu-me a melhor coisa que eu poderia dizer, pois isso atrapalhou o plano que ele tinha de acusá-lo de sedução. Funcionou bem, nunca vi um homem tão azul em toda a minha vida. Se não gostou, sinto muito, mas considerando que você e Hetta são velhos amigos, não imaginei que fosse se importar.

- Não me importo — disse Ashley, um dos cantos da boca se curvando em um sorriso. — Quer dizer que veio até aqui para avisar Hetta sob o falso noivado?

— Sim, é claro. Tive de fazê-lo.

- E qual foi a reação dela?

—A princípio ficou furiosa, mas depois de eu garantir que a história não vazaria, ela se acalmou e prometeu cooperar. Hetta é uma pessoa de bom coração e não teria coragem de dar as costas a um amigo em apuros.

—Sim, é verdade — assentiu Ashley, recuperando-se do baque. — E quanto mais cedo eu a socorrer...

- Espere um momento, Ash. Ainda tem mais um detalhe. Tudo indica que a garota problema resolveu fugir.

—Cherry? Mas por quê?

—Hetta acha que foi porque lady Silverdale encontrou Charlie beijando-a, e deu uma bronca nela. Pela demora,

Hetta está achando que Cherry pode ter sofrido algum acidente, e por isso enviou alguns homens para procurarem por ela. O problema é que, se não a encontrarem, o sr. Wilfred vai fazer um escândalo. Provavelmente acusará lady Silverdale de maus-tratos, ou algo assim.

—Oh, meu Deus, como se já não estivéssemos encrencados o suficiente! resmungou Ashley, seguindo em

direção à porta.

— Espere! — Simon chamou. De repente levou a mão ao bolso, tirou um pacote e o entregou ao irmão. —

Aqui está — disse, com um sorriso tímido. — Muito obrigado.

- Mas de quê?

— Pela dica que me deu.

__ Quer dizer que o Triturador venceu?

—Para a minha alegria, sim. E para completar, ainda teve um cavalo que entrou na última corrida, chamado

Irmão Benfeitor, e então apostei tudo nele, e ele chegou em primeiro.

—Que ousadia a sua... Mas não vou aceitar isso. —Ashley riu, depois pousou a mão sobre o ombro de Simon e deu um apertão. — Foi você que apostou.

—Só estou devolvendo o dinheiro que tinha me dado. Além do mais, estou nadando em dinheiro.

—Mas não estará mais quando chegar a hora de voltar para Brighton — Ashley considerou.

Quando Henrietta entrou na biblioteca, nada em seu semblante ou no seu modo de andar denunciava o que de

fato sentia. Aproximou-se com passos graciosos e lentos e buscou pelo visitante na sala, as sobrancelhas levemente erguidas, portando-se com a melhor educação que recebera.

— Sr. Wilfred Steane? — Ela viu o senhor se curvar com um floreio e moveu-se na direção de uma cadeira próxima à mesa de centro, convidando-o a fazer o mesmo, enquanto se sentava: — Estou certa em supor que o senhor seja o pai de Cherry?

-Sim, senhora, está certa -- ele assentiu em tom dramático. — O único parente vivo, separado de minha filhinha pelo destino cruel, e torturado pela saudade.

Ela ergueu ainda mais as sobrancelhas e disse, em um tom de desalento:

- É mesmo? - Percebendo, satisfeita, que sua reação causara certo desconforto nele, continuou, segura: - -


Sinto

muito, sir, que minha mãe não se encontre em condiçõfes de recebê-lo. Mas ela está muito indisposta hoje.

-Nem sonho em atrapalhar o descanso dela — ele disse, graciosamente. — Meu único desejo é poder abraçar novamente minha amada criança. Pois foi por ela que retornei à minha terra natal, lugar onde as mais tristes lembranças de minha l;ilccida companheira me fazem sofrer terrivelmente. Creio que tenho a honra de estar diante da srta. Henrietta?

— Sim, sou eu mesma. É uma pena que o senhor não tenha nos avisado com antecedência sobre sua intenção de nos visitar hoje, pois infelizmente Cherry não está em casa no momento. Ela saiu para caminhar e

ainda não retornou. No entanto, creio que não demore muito para que o senhor se reencontre com ela.

- Cada segundo longe da minha filhinha para mim é uma hora. Perdoe a impaciência natural de pai. Mal posso

esperar cinco minutos para ver com meus próprios olhos que ela está sã e salva.

— Sua filha estava perfeitamente bem da última vez em que a vi -- assegurou Henrietta calmamente —, mas como saiu há algumas horas, confesso que estou um pouco preocupada, e por isso mandei alguns criados sair à procura dela, para o caso de ter acontecido algum acidente, ou de ela ter se perdido.

No mesmo instante, o homem assumiu uma expressão de horror e exigiu, em um tom chocado:

- Não me diga que a senhorita permitiu que ela saísse sozinha?

—Certamente foi uma imprudência. Se estivesse em casa, eu a teria aconselhado a levar um lacaio junto, ou uma das criadas, mas saí cedo, para visitar uma senhora doente. Só fiquei sabendo do que tinha acontecido depois que voltei, há uma hora.

—Se eu soubesse a que perigos e negligências a minha doce e inocente criança estava sendo exposta... Mas


como

eu poderia saber? Como poderia adivinhar que a mulher com quem deixei minha filha acabasse demonstrando que não era merecedora de toda a minha confiança, e que seria capaz de quebrar a palavra dada, jogando a criança no mundo?

- Bem, a história não foi bem essa. A srta. Fletching entregou sua filha aos cuidados da tia. E imagino, sir, que se o senhor a tivesse mantido informada sobre o seu paradeiro, ela teria escrito uma carta antes, para informar que lady Bugie tinha levado Cherry para morar com ela.

—Não vou incomodá-la, senhorita, contando os motivos que me levaram a guardar segredo sobre o meu paradeiro —ele disse com soberba. — Sou um homem envolvido em muitos negócios, que me forçam a viajar por

toda a Europa. Na verdade, raramente sei onde estarei no dia de amanhã, ou por quanto tempo ficarei fora.

Acreditei que a minha criança estivesse feliz e segura, aos cuidados da srta. Fletching. Nunca, em momento algum, sequer passou pela minha cabeça que ela seria capaz de colocar minha filha nas mãos daquela que, depois de meu pai e de meu irmão, é a minha pior inimiga. A srta. Fletching terá de responder por tudo que fez.

—Perdoe-me. Mas o senhor não tem mais explicações a dar do que a srta. Fletching? Parece-me muito estranho

que um pai, especialmente alguém tão afetuoso como o senhor, tenha abandonado a filha por tanto tempo sem uma palavra, a ponto de ela imaginar que o senhor estivesse morto.

—Se eu estivesse morto, minha filha teria sido informada. E digo mais, teria sido uma tolice escrever para Cherry, pois quem sabe se ela não iria querer abandonar a escola para ir morar comigo no exterior? Na época eu não estava em condições de oferecer um lar adequado.

—Ah, entendo. Agora o senhor está em condições de oferecer? — Henrietta provocou.

—Certamente. Estou bem estabelecido. Mas de que adianta ficar discorrendo sobre o que poderia ter acontecido, se sou forçado a ignorar a tentação de levar a pobre criança comigo? Ogrigado a me acostumar com a solidão... Meu dever como pai c que minha filha seja bem-vista aos olhos do mundo.

— Senhor, mas ela já foi vista de outra maneira? Se está falando sobre o fato de ela ter fugido da casa da

tia, permita que eu lhe diga que está se preocupando por nada, sr. Wilfred. Para ser franca, de fato creio que tenha sido uma atitude precipitada, que a poderia ter colocado em perigo. Por sorte, lorde Ashley a encontrou na estrada e a trouxe para cá em segurança.

Ele soltou um longo suspiro, que quase beirou um murmúrio, e cobriu os olhos com uma das mãos gordas.

—Quem me dera não destruir a confiança que a senhorita tem na integridade de lorde Ashley.

—Oh, mas o senhor não conseguirá fazer tal coisa. Não precisa se abater por isso.

—A senhorita ouviu a versão dos fatos que lorde Ashley lhe contou, mas... — Wilfred baixou a mão e a encarou com olhos semicerrados.


- E é a mesma versão que Cherry me contou — interrompeu Henrietta.

- Instruída por lorde Ashley, não tenho a menor dúvida. Mas não é a mesma versão que ouvi de Amélia Bugle, que por sinal foi muito diferente. Ela me disse que tem quase certeza de que os dois se conheceram antes do baile. Uma de suas filhas testemunhou o encontro secreto dos dois, quando devem ter combinado a fuga.

— Que história mais sem sentido... Espanta-me que o senhor tenha se deixado enganar por uma história tão absurda. É fácil perceber por que lady Bugle disse isso. Pois ela estava morrendo de medo que o senhor descobrisse sobre os maus-tratos que ela infringiu a Cherry e que acabaram acarretando na fuga. Quando ao envolvimento de Ashley nos acontecimentos, o senhor deveria era agradecer-lhe por tudo que fez, pois não fosse pela carona que ofereceu, Deus sabe o que poderia ter acontecido com Cherry. Ashley ainda foi pessoalmente até Harrowgate, quando qualquer outro homem em seu lugar teria abandonado a busca ao descobrir que seria obrigado a viajar mais de duzentos quilómetros para encontrar o avô da moça.

— Essa é a mesma história que o irmão mais novo de lorde Ashley quis que eu engolisse. - - Wilfred meneou a

cabeça, com um sorriso compassivo nos lábios. — Não estou sugerindo que a senhorita esteja tentando me enrolar, pois para mim está claro que foi enganada. Como seria possível que um homem como lorde Ashley, que está há

tanto tempo na cidade, poderia supor que meu pai gastaria seu precioso dinheiro com tal viagem? A senhorita pode até desconhecer o fato de que o velho é um sovina inveterado, mas lorde Ashley certamente sabe. Meu pai sai de casa muito raramente. E se achasse que precisava de novos ares para melhorar a saúde, o mais longe que teria se afastado de Londres seria para as Fontes de Tunbridge. Apesar de crer que ele poderia se recolher em Nettlecombe.

Hospedar-se em estações climáticas nunca foi barato. E ainda tem o custo da viagem. Não posso acreditar nessa história.

- Mesmo assim, seu pai foi para Harrowgate, e ainda está lá. Talvez a noiva o tenha convencido a fazer a custosa viagem — Henrietta comentou com ar de inocência.

—Quem? - - interpelou Wilfred, inquieto no assento, e fitando-a profundamente.

—Oh, o senhor não sabia que seu pai se casou recentemente? Ashley também não, até ser apresentando à nova lady Nettlecombe. Pelo que entendi, ela era a governanta do seu pai. Acho que foi uma decisão genial, não concorda? Casar-se com uma pessoa que certamente irá cuidar bem da casa e dele.

Henrietta introduzira o novo fato na esperança de distrair o sr. Wilfred do real propósito de sua visita, e o truque funcionou, apesar de não ter sido exatamente do modo esperado. Pois, em vez de ficar nervoso, Wilfred caiu na risada.

— Essa foi a melhor piada que já ouvi. O velhaco foi apanhado em uma armadilha? Vou escrever uma carta de

felicitações. Ele me rejeitou quando casei com Jane Wisset, e apesar de não poder dizer que ela fosse uma moça de origem nobre, pelo menos não era uma governanta.

Ele soltou outra gargalhada, que terminou em um acesso de tosse. Assim que recuperou o fôlego, pediu a Henrietta que descrevesse a madrasta. Missão impossível, uma vez que Ashley não tinha fornecido detalhes suficientes a esse respei-(o. Mas Wilfred se divertiu muito com a história da compra do xale de seda, comentando que era benfeito para o velho sovina. E então disse, ansioso, que adoraria ver a cara do irmão quando recebera a notícia. Ele ainda ria muito quando algo lhe ocorreu, fazendo com que seu semblante enrijecesse.

- O pior de tudo é que ele não pode deserdar Jonas — disse tristemente. — Mesmo assim, não duvido que a

governanta queira pôr as mãos em parte da fortuna do muquirana, estragando deste modo as chances de Jonas receber a imensa herança que espera. É preciso olhar sempre para o lado bom das coisas. Esse sempre foi o meu lema. A senhorita ficaria espantada em descobrir como os maiores desastres sempre têm um lado bom.

Henrietta estava tão chocada com a revelação de mais uma faceta do caráter de Wilfred que foi incapaz de soltar mais do que um murmúrio em concordância.

As esperanças de que pudesse continuar distraindo-o à custa da infelicidade de seu irmão dissiparam-se com as palavras que se seguiram:

— Não imaginei que fosse ouvir algo tão engraçado hoje. Mas agora basta, srta. Henrietta. Este não é um momento para brincadeiras, quando meu peito está apertado de ansiedade. Aceito que lorde Ashley tenha ido para Harrowgate, mas só um tolo imaginaria que meu pai fosse receber uma filha minha. Se a minha memória não falha, de tolo o lorde não tem nada.

Antes que Henrietta respondesse, Ashley entrou na sala. Apesar da situação tensa, ela não deixou de reparar em quão

distintos eram os dois homens. A diferença de idade não passava de vinte anos, e era fácil perceber que Wilford tinha sido um rapaz bem-apessoado na juventude, mas a beleza fora levada pela vida devassa. A figura rotunda, assim como o semblante, mostravam uma vida pregressa indolente e descuidada. Aos olhos de Henrietta, nenhum desses defeitos era atenuado pelos modos ou pelos trajes do sujeito. Ambos eram cheios de floreios, que lhe conferiam a aparência desastrosa de um homem sem classe tentando parecer charmoso. Ashley, por outro lado, era perfeito.

Tinha um belo rosto, um corpo atlético e usava um paletó azul-marinho muito elegante e bem-cortado. A postura era distinta, os modos calmos, sem afetamento e de uma elegância nobre.

—Ashley! - cumprimentou Henrietta, assim que ele fechou a porta.

—Hetta, meu amor. - - Ele sorriu e beijou-lhe a mão. Ainda a segurou por um minuto, enquanto dizia: — Por

acaso estava muito ansiosa pela minha volta? Acho que sim, e peço desculpas pela demora. Esperava ter voltado antes.

Ela retribuiu o afago na mão, e então retirou-a, dizendo com certo pesar:

— Bem, apesar de tudo, você chegou a tempo de conhecer o pai de Cherry, que não está morto, afinal.

Permita-me apresentá-los: sr. Wilfred Steane, lorde Ashley Desford.

Ashley se virou, sacou os óculos e, através das lentes, fitou Wilfred, não por muito tempo, mas com um efeito intimidador. Henrietta mordeu o lábio para conter a risada que insistia em lhe escapar.

— É um prazer conhecê-lo, sir.

— Gostaria de poder dizer o mesmo — retornou Wilfred. __ Quem me dera ter sido apresentado ao senhor

em outras circunstâncias.

— Como? — Ashley mostrou-se surpreso.

— Lorde Ashley, precisamos conversar, mas acho que seria melhor que o fizéssemos em particular.

Não tenho segredos com a srta. Henrietta.


O meu respeito pela delicada sensibilidade da dama sela meus lábios. Longe de mim dizer algo que pudesse ruborizar a senhorita. Contudo, tenho perguntas a lhe fazer, senhor, que poderão causar tal reação.

—Então diga de uma vez por todas. Não se importe com a sensibilidade dela. Você deseja se retirar, Hetta?

—Certamente que não. Não tenho a menor intenção de fazê-lo. Sou uma mulher adulta, sr. Wilfred, e estou certa de que poderei ouvir tudo que tem a dizer. Portanto, sinta-se à vontade para falar sobre qualquer assunto.

- Modernidades. As coisas não eram assim no meu tempo. Mas que seja. Lorde Ashley, o senhor está mesmo

noivoda srta. Henrietta? - - Wilfred mostrou-se aflito, mas logo relaxou com um suspiro.

— Espero que sim - - Ashley informou, sorrindo para Henrietta. -- Mas por que a pergunta? Ou melhor, o

que o senhor tem a ver com isso?

Wilfred já esperava pela resposta, pois percebeu que assim que Ashley entrou na sala e trocou sorrisos com Henrietta, ficou claro que um sentimento muito forte os unia.

- Então considero uma vergonha o fato de o senhor ter ludibriado a minha criança e arrancado-a da proteção da tia com a falsa promessa de casamento. Quanto ao descaramento de tê-la trazido para a casa de sua noiva...

— O senhor não acha que "prudência" seria uma palavra melhor? — sugeriu Ashley. — Não sei o que o senhor pretende com tais calúnias, pois não posso crer que realmente acredite que sou culpado de nenhuma das acusações que fez. O simples fato de ter colocado Cherry aos cuidados de srta. Henrietta já serve para me absolver, mas se deseja continuar negando, não poderei fazer nada. Quanto a ter arrancado Cherry de Mapplewood, saiba que a

encontrei seguindo para Londres a pé. Fiz o possível para convencê-la a voltar para a casa da tia. Ela não quis, e depois de descobrirmos que o senhor seu

pai não se encontrava em Londres, eu a entreguei aos cuidados da srta. Henrietta. Meu pai teria se oposto à presença de sua filha, por razões que ambos conhecemos bem.

- Diga o que quiser. Mas o senhor não pode negar que foi o responsável por ter colocado minha filha nesta situação delicada.

- Posso negar, sim. E um homem honrado a teria levado de volta para a tia, milorde.

— Acho que temos uma noção de honra bem diferente. Pois para mim, forçá-la a subir na minha carruagem e levá-la de volta para um lugar de onde ela fugira, cansada dos maus-tratos, teria sido um ato de extrema crueldade. Apesar de tudo, sei que não tinha o direito de fazer o que fiz. Ela me implorou para que a levasse para a casa do avô em Londres, na esperança de que ele fosse ampará-la, convencida de que se ele se recusasse, quem sabe, não poderia pelo menos oferecer um teto até que ela conseguisse arrumar um trabalho.

- Bem, se o senhor imaginou que meu pai pudesse fazer tal coisa, ou não conhece o velho rabugento, ou é

um tolo - Wilfred afirmou. — E pelo que estou vendo, o senhor está longe de ser um tolo. Por sinal, o senhor me lembra muito seu pai.

—Obrigado. — Ashley inclinou a cabeça.

—Parece muito com seu irmão também. São dois insolentes. Não respeitam os mais velhos. Uma dupla de fanfarrões convencidos e arrogantes. Não pense que pode me enganar com suas lorotas.


- Eu não sonharia em fazer uma coisa dessas. Não poderia competir com um especialista nessa arte.

- Com licença, mas os senhores não estão se desviando do assunto? Se Ashley foi ingénuo ao pensar que lorde Nettlecombe pudesse ter recebido Cherry não vem ao caso agora. O fato é que ele a levou para Londres

e os dois se depararam com a casa de lorde Nettlecombe vazia — declarou Henrietta. -- Em seguida ele a trouxe para mim. O que o senhor acha que ele deveria ter feito em vez disso, sr. Wilford?

- Não vou iniciar uma discussão com a senhorita — respondeu Wilfred com falsa dignidade. - - Nunca discuti

com uma dama. Só posso dizer que abordar minha filha na estrada, convencê-la a subir na sua carruagem e levá-la para Londres foi uma atitude muito inapropriada para um visconde, para não dizer coisa pior. E uma vez que ele a abandonou aqui, isso se ela estiver aqui, o que já estou começando a duvidar, o que ele fez para reparar o dano que causou à reputação de minha filha? Só posso concluir que lorde Ashley procuroumeu pai para tentar se livrar da menina...

-De forma alguma -- interrompeu Ashley. --Eu tinha esperança de conseguir que o senhor seu pai pagasse uma

mesada para a neta, só isso.

— Bem, se era isso que esperava, então é mesmo um parvo — contra-atacou Wilfred com toda a franqueza. —

O que queria mesmo era se livrar de minha filha, nem se importou que o velho a colocasse para trabalhar como cozinheira, contanto que se livrasse da pobre.

- Tal oferta de fato foi feita — disse Ashley. — Não pelo seu pai, mas pela sua madrasta. Mas eu recusei.

- Sim, é o que parece, mas como eu poderia imaginar que estava dizendo a verdade? Tudo que sei é que retornei para a Inglaterra para descobrir que minha pobre criança estava nas mãos de pessoas inescrupulosas, jogada no mundo...

— Espere um minuto —Ashley interveio. — O senhor sabe muito bem que nada disso é verdade. A pessoa inescrupulosa que a jogou no mundo foi o senhor mesmo, portanto vamos deixar de encenação. Fique sabendo

que não causei dano algum à reputação de sua filha. Como não encontrei seu pai em Londres, já sabendo que Cherry não tinha para onde ir ou algum conhecido na cidade, contando apenas com algumas poucas moedas na bolsa, percebi que por menos que gostasse da ideia, eu era responsável por ela. Com a sua chegada, minha responsabilidade termina aqui. Antes de saber que o senhor não estava morto, fui até Bath, para falar com a srta.

Fletching. Isso foi um dia depois da sua visita, sr. Wilfred. A srta. Fletching estava com muita pena de Cherry, e mostrou ter muito carinho por sua filha. Ela ofereceu um lar para Cherry, até que ela possa arrumar um trabalho. Além do mais, ela até já tem um em vista, como dama de companhia de uma senhora gentil e encantadora.

—Oh, Ash, isso será muito bom para Cherry! — Henrietta exultou.

—O quê? Não posso permitir que minha única filha trabalhe para se sustentar! Somente passando por cima do meu cadáver! -- Wilfred esbravejou, enterrando o rosto num lenço, mas em seguida emergiu com um olhar de

desaprovação para Ashley. - - Eu preferia ter morrido a ouvir tal insulto. Vergonhoso, lorde Ashley, é tudo que posso dizer.

Os lábios de Ashley se curvaram em um sorriso, e seus olhos se encontraram com os de Henrietta, que também estava se divertindo muito.

— E onde está a minha pequena Cherry?

- Bem, isso acho que não podemos responder no momento - - informou Henrietta, sentindo-se culpada. - -

Ashley, você pensará que sou uma descuidada, mas enquanto estive fora, visitando uma amiga doente, Cherry saiu para um passeio e ainda não voltou.

-— Grimshaw me contou que ela está desaparecida. Mas tenho certeza de que nada de mau aconteceu a Cherry.

Ela deve ter se perdido apenas.

— Estou tão preocupado! Temo nunca mais ver a minha querida filhinha.

— O senhor a verá, e agora mesmo — avisou Henrietta, cruzando a sala, rumo à porta. — Acabei de ouvir a voz

dela. Céus, que alívio!

Ela abriu a porta enquanto falava.

— Oh, Cherry, criança levada! Onde você... — Parou de repente o que estava dizendo ao deparar com a cena surpreendente.

Cherry estava sendo carregada por Cary Nethercott, com o gorro amarrado pelas fitas em um dos braços, uma bota estragada em uma das mãos, e a outra em torno do pescoço de Cary.

__ Não fique brava comigo, minha querida srta. Henrietta__ Cherry implorou. __ Sei que fiz uma bobagem ao sair desacompanhada, mas não era minha intenção causar preocupação. O problema é que me perdi, e não conseguia encontrar o caminho de volta. Fiquei tão cansada que acabei perguntando para a primeira pessoa que cruzou o meu caminho se poderia mo indicar a direção de Inglehurst. Ainda assim, fiquei perdida por mais de uma hora. Foi então que o homem malvado que estava na carruagem olhou para mim de um modo muito csiranho. Saí correndo assustada

e sem olhar para trás. Ele ainda chamou, e começou descer da carruagem, mas então corri mais ainda e entrei na floresta, e... oh, srta. Henrietta, rasguei meu vestido em uns galhos, além de ter torcido o tornozelo ao tropeçar em uma raiz, e acabei caindo no chão! Quando lentei me levantar não consegui, pois doía tanto que pensei que fosse desmaiar.

—Que acidente terrível! Pobre criança

Henrietta comentou ao ver o tornozelo enfaixado de Cherry.

Depois sorriu para Nethercott . -- Ela estava na suas terras, então? Quanta gentileza a sua em trazê-la para casa!

Muito obrigada.

—Sim, foi onde a encontrei. Eu estava caçando, na esperança de apanhar um pato, mas em vez disso encontrei esta ave rara. Infelizmente não tinha uma faca comigo, por isso achei melhor levar Cherry para a minha casa para que pudesse cortar a bota e pedir à minha governanta que aplicasse uma compressa no ferimento para

que não inchasse tanto. Mandei buscar o dr. Foston, temendo que pudesse haver algum osso quebrado, mas ele me assegurou que se tratava de uma torção apenas. A senhorita irá dizer que eu deveria ter trazido Cherry imediatamente para cá, mas ela estava tão cansada que achei melhor que descansasse um pouco até que a dor atenuasse.

—A senhorita não imagina o quanto isto dói... Cary segurou a minha mão o tempo todo, e só assim pude suportar.

—Que dia terrível, querida - - concordou Henrietta. __Sinto muito, minha querida, nada disso teria acontecido se eu não tivesse saído.

—Oh, não! — Foi o dia mais feliz da minha vida! — exclamou Cherry, com os olhos reluzentes e as faces ruborizadas.

- Oh, srta. Henrietta, Cary me pediu em casamento. Porfavor, diga que posso aceitar.

— Deus meu! Quero dizer, você não precisa da minhapermissão, querida. Só posso dizer que estou muito feliz pelosdois. Tem alguém aqui que veio de longe especialmente paravê-la, e tenho certeza de que você ficará muito feliz em ver.Traga-a até a biblioteca, sr. Nethercott, e a coloque no sofá,para que ela fique com os pés para cima.

- Quem é esse sujeito que está segurando a minha filha?- Wilfred perguntou a Ashley.

— Cary Nethercott. Um homem muito decente — Ashleyrespondeu, entusiasmado.

Ashley correu até o sofá e ajeitou as almofadas enquanto Nethercott acomodava Cherry.

— Lorde Ashley! Não leve minha alegria a mal, srta.Henrietta, estou mesmo muito feliz em vê-lo novamente, pois devo tudo isso a ele. Como vai? Queria tanto lhe agradecer por ter me trazido para cá, mas ainda não tinha tido oportunidade.

Ele sorriu, mas disse:

— A srta. Henrietta entende a sua alegria, srta. Cherry __agradeceu Ashley. __ Agora, olhe ali. Reconhece

aquele cavalheiro?

Cherry virou a cabeça, e só então viu Wilfred. Ela o fitou, pálida por um instante.

__ Papai?

— Minha criança! Finalmente posso abraçá-la...

__Pensei que o senhor tivesse morrido -- disse Cherry, admirada. -- Estou muito feliz que não esteja, mas por que nunca me escreveu, ou para a srta. Fletching?

__Nem me fale sobre aquela mulher — pediu ele, esquivando-se da pergunta. — Nunca a teria deixado aos

cuidados dela se soubesse que ela acabaria traindo a minha confiança, minha pobre criança.

__Oh, não, papai! Como pode dizer isso quanto tudo que a srta. Fletching fez foi ser gentil comigo e me manteve na escola sem pagar nada?

- Ela a entregou a Amélia BugLe, e isso nunca poderei perdoar.

— Mas, papai, isso faz parecer que eu não queria ir para a casa de minha tia, o que não é verdade. Sempre

sonhei em Ter um lar. O senhor não imagina quanto. -- Nethercott, que estava parado atrás do sofá, enxugou as lágrimas que molhavam o rosto meigo da menina. Ela prosseguiu com bravura:

__ Eu lhe peço, papai, que não vá embora sem saldar a sua dívida.

— Se eu a tivesse encontrado feliz como deixei, eu pagaria em dobro, mas esse não foi o caso. Descobri, depois de muito procurar, que você estava solta no mundo com apenas algumas moedas na bolsa.

__ ...que agora podem ser pagas em dobro, não é? – Alfinetou Ashley.

—Papai, o senhor não pode se comportar de modo tão vergonhoso — Cherry advertiu, agitada.

—Acho melhor, meu amor, que permita que eu lide com esta situação — Nethercott exigiu.

—Mas não é certo que o senhor faça isso - - Cherry reprovou, indignada. — A dívida não é sua, e sim do meu pai.

__A srta. Fletching pode se considerar uma pessoa de sorte por eu não ter resolvido mover uma ação por negligência proferiu Wilfred. — Esta é a minha palavra final.

__ Nesse caso, vou levar minha noiva para o quarto. Como o senhor já deve ter percebido, ela está muito casada depois de tudo que aconteceu - - Nethercott anunciou e voltou-se para Henrietta. — A senhorita poderia me mostrar o caminho, por favor?

— É claro que sim — antecipou-se Henrietta. — Não discuta, Cherry. O sr. Nethercott tem toda a razão, e vou

colocá-la na cama agora mesmo, onde deverá receber o jantar. O seu pai poderá vir visitá-la amanhã, se quiser.

- Quanta gentileza a sua, srta. Henrietta! — Cherry suspirou. — De fato estou exausta, portanto, se não se incomodar, papai, acho que vou me recolher. Oh, lorde Ashley, caso não o veja novamente, adeus, e muitíssimo obrigada por tudo o que fez por mim!

Ashley pegou a mão estendida de Cherry e beijou-a, dizendo brincalhão:

—Mas vamos nos ver constantemente. Seremos vizinhos.

—Alto lá! — intercedeu Wilfred. — Ainda não decidi se darei o meu consentimento a este casamento. Preciso de

todas as garantias de que o sr. Nethercott tem condições de sustentar minha filha à altura da criação que ela recebeu.

Nethercott parou para dizer, com toda a serenidade, que teria a honra de expor pessoalmente para o futuro sogro os detalhes que diziam respeito à sua origem, fortuna e situação financeira assim que tivesse levado Cherry para o quarto. Em seguida se foi, seguido por Henrietta, e dizendo à sua noiva, com muita gentileza, que não se preocupasse, quando ela ainda tentou discutir com o pai, dizendo que ele não tinha nada a ver com o seu casamento.

Ashley fechou a porta e tornou a se sentar, fitando Wilfred com um brilho de prazer nos olhos.

- Meus parabéns, senhor. Sua filha fará um ótimo casamento, e o senhor nunca mais terá de se preocupar com

ela.

-Minha única filha... Estou tão desapontado! Eu tinha tantas esperanças quando ela era criança... Tudo indicava que seria uma garota brilhante. Ela poderia ter sido muito

útil para mim.

—Em que sentido? — Ashley indagou, curioso.

—Oh, em muitos. Eu esperava que ela pudesse atuar como anfitriã do estabelecimento que vou abrir em Paris, mas percebi que ela saiu à mãe. Muito bonita, mas sem grandes aspirações. É uma pena. Foi uma perda de tempo ter vindo até a Inglaterra.

Ashley ficou aliviado ao ver Henrietta e Nethercott voltando para a sala. Ficou claro para Ashley que fora ela quem tinha sugerido a Nethercott para convidar o futuro sogro para terminarem a conversa na Mansão Marley.

—Acho uma ótima ideia — disse calorosamente. — Creio que o senhor deve estar curioso para ver o futuro lar de Cherry, sr. Wilfred. E se quiser visitá-la amanhã, tenho certeza de que o sr. Nethercott fará a gentileza de lhe oferecer acomodação para passar a noite.

—Muito obrigado pelo convite, sir -- Wilfred declarou, cheio de boas maneiras. __ Será um prazer me beneficiar da sua hospitalidade. Se não for incómodo, é claro.

Em seguida despediu-se de Henrietta e, com toda a formalidade, inclinou a cabeça para Ashley, para em seguida permitir que Nethercott o conduzisse.

-Você é uma mulher sem princípios -- brincou Ashley assim que a porta se fechou atrás dos visitantes. __Você

deveria se envergonhar do que fez, Hetta. Empurrando o velho embusteiro para o pobre sr. Nethercott.

—Oh, você adivinhou que eu tive um dedo nisso? — ela indagou, rompendo em risos.

—Claro que sim. Assim que você entrou aqui com aquele seu olhar único...

__Oh, é mesmo? Mas eu precisava me livrar do sr. Wilfred, ou minha mãe teria mais um ataque. Depois de ter pensado que Charlie tinha fugido com Cherry e ter ouvido que o pai dela estava a caminho de nossa casa, ela sentiu todos os tipos de dores e enfermidades, e ainda está de péssimo humor. Preciso

ir falar com ela agora, ou não sei o que pode acontecer. Mas antes de ir, diga o que achou deste surpreendente noivado. Será que vai dar certo, ou Nethercott é muito velho para ela? Percebi que Cherry tem preferência por homens mais velhos, mas...

—Isso não vem ao caso. Diga-me o que você achou.

—Como posso dizer? Ela é muito amável e doce, e será feliz, enquanto ele for gentil. Quanto a ele, pareceu—

me que está apaixonado.

__Só apaixonado? Depois de ter conhecido o futuro sogro, ele deve estar mesmo louco de amores para ainda querer se casar com ela.

Henrietta riu.

— Sabe de uma coisa, Ash, quando me falaram o quanto o sr. Wilfred era ruim, eu não acreditei, mas agora vi

que ele é ainda pior. Se ele não fosse tão engraçado eu não teria aguentado escutar por tanto tempo todas aquelas tolices.

— Hetta, não fuja do assunto e diga a verdade. O fato de o sr. Nethercott ter ficado noivo de Cherry não a magoou?

—Céus, não! Eu já tinha percebido algo. Não fui tola de imaginar que ele estivesse vindo aqui com tanta frequência só para me visitar, e não a Cherry.

—Quando o vi pela primeira vez, ele estava aqui por você, nenhum de nós tinha ouvido falar de Cherry ainda.

__ Eu deveria ter imaginado que você iria zombar de mim por ter sido passada para trás por Cherry. Que criatura terrível você é, Ash — ela disse com um sorriso. — A propósito, você e Simon irão passar a noite em Wolversham?

Gostaria de poder convidá-los para jantarem conosco, mas não vai ser possível. Mamãe está muito aborrecida com você, por ter trazido Cherry para cá. Segundo ela, deseja nunca mais ver o rosto de um Carrington. Por isso, pelo menos por enquanto terei de dizer adeus para você.

— Só um momento antes de nos despedirmos __ pediu ele. __ Ainda temos uma coisa que precisamos

discutir, minha querida.

Ashley falou calmamente, mas o sorriso tinha desaparecido de seus olhos, que agora estavam fixos no rosto de Henrietta com um olhar que a fez se sentir, pela primeira vez, intimidada como uma adolescente.

__ Oh, você está se referindo àquela história sem sentido que Simon inventou sobre nós. Confesso que fiquei brava com ele, mas não acho que causará nenhum dano. Simon disse que se a história do noivado se espalhar, basta negarmos, ou dizer que rompemos.

Ashley não disse nada, e quando ela se aventurou a fitá-lo, percebeu que ele ainda a encarava. Em uma tentativa de aliviar o que, por alguma razão inexplicável, lhe pareceu uma situação embaraçosa, ela disse, com uma demonstração de vivacidade:

__ Bem se for o caso de dizer que rompemos, acho então que caberá a mim levar a culpa. Nunca entendi por que sempre foi considerado inapropriado um cavalheiro romper um noivado.

— Eu também não. Mas de qualquer forma, quero deixar bem claro que se for para dizer que rompemos, caberá a você a missão de dizer, Hetta, pois não tenho a menor intenção, ou desejo, de romper nosso noivado.

Fez uma pausa por um instante, tentando desvendar a expressão dela, mas quando Henrietta ergueu os olhos, com se tivesse sido compelida, ele sorriu, e disse em um tom que ela nunca tinha ouvido antes:

— Mas você não dirá isso. Hetta, minha querida, fui tão tolo... Sempre a amei, e nunca soube quanto, até o dia em que imaginei que iria perdê-la. Não diga que é tarde demais.

__ Claro que não, Ash. Não se estiver mesmo sendo sincero. —Um leve sorriso surgiu nos lábios delicados.

— Nunca, em toda a minha vida, desejei tanto alguma coisa.

Ashley se aproximou e estendeu os braços. Henrietta caminhou diretamente ao encontro dele e foi envolvida em

um forte abraço.

— Minha melhor amiga... __ ele disse com voz rouca, e beijou-a em seguida.

O momento idílico foi interrompido por lady Silverdale, que entrou na sala, dizendo em um tom de voz de alguém que já tinha perdido a paciência:

— Hetta, você não acha que já deveria ter vindo me contar... — Ela parou e exclamou, escandalizada:

— Hen-ri-et-ta!

Ashley olhou rapidamente, e só então lady Silverdale percebeu quem estava abraçando sua filha.

—Oh, meu querido... Ah, como isso me faz feliz! Hetta, minha querida...

—Mas... mamãe — Hetta indagou, confusa —, a senhora me disse que nunca iria permitir que eu me casasse com Ash. E agora diz que está feliz?

__ Bobagem, Hetta. Esse sempre foi o meu maior desejo. Sempre gostei muito de Ashley, e se quer saber, nunca

deixei de achar que ele era o homem certo para você.

—Obrigado, senhora — disse Ashley, levando a mão dela aos lábios. — Espero mesmo ser o homem certo para sua

filha, mas tudo que sei é que ela é a mulher ideal para mim.

—Meu querido Ashley... Belas palavras! — lady Silverdale aprovou. — Sempre apreciei isso em você. Para ser honesta, não fiquei muito feliz quando trouxe para cá a filha de Wilfred Steane, mas isso não vem mais ao caso agora.

Porém preciso confessar que me surpreendi quando Cherry me contou que há pouco aceitou o pedido de casamento do sr. Nethercott. Parece que a garota adora roubar os seus pretendentes, Hetta. Primeiro foi Ashley, depois Charlie, não que ele fosse um dos seus pretendentes, mas o princípio é o mesmo... e agora o sr. Nethercott.

Bem, acho que formarão um belo par, pois nunca o considerei um homem à sua altura. Ashley, você ficará para

jantar conosco, é claro. Hetta, vá avisar Ufford. Não, pode deixar que cuidarei disso, e Charlie deve pedir que Grimshaw separe um champanhe. Deus os abençoe, meus queridos.

—Dito isso, ela se retirou para tomar as devidas providências para o jantar.

—Ashley e Henrietta retomaram a ocupação anterior, para serem interrompidos logo em seguida por Simon, que

parou surpreso na soleira da porta ao deparar com a cena, mas acabou irrompendo em risos. Mesmo depois do olhar de desaprovação do irmão mais velho, ele não demonstrou nenhum arrependimento.

—— Ah, entendi, a situação não é engraçada __ Simon comentou, dando um beijo rápido no rosto da futura cunhada e torcendo a mão do irmão. __ Vocês sempre se gostaram, mas foi preciso que eu colocasse isso na cabeça de vocês para que enxergassem o que sempre esteve evidente. Bem, aposto que não imaginava que eu fosse tão esperto, não é mesmo, Ash?

—Em seguida ele se despediu do casal, agradecendo o convite para jantar, mas explicando que precisava estar em Londres antes do anoitecer.

—- Estou de partida para Brighton, amanhã de manhã. Mas caso se meta em outra encrenca, Ash, basta mandar me chamar, e virei salvá-lo o mais rápido possível...

 

 

                                                                  Georgette Heyer

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades