Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A JOVEM HERDEIRA / Hector Malot
A JOVEM HERDEIRA / Hector Malot

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                   O Sr. de Mussidan

O Sr. de Mussidan, quer tivesse a algibeira cheia, quer a tivesse vazia, só se preocupava com o dia de hoje; o amanhã não existia; mais tarde, era mais tarde: ver-se-ia; até lá, sucediam tantas coisas!

No dia 1 de Janeiro achou-se sem um soldo. Embora já estivesse habituado, a situação nesse dia tornava-se embaraçosa porque tinha de sair com os dois filhos, levá-los a passear e dar-lhes de jantar.

Outro, no seu lugar, teria resolvido o problema expondo as dificuldades à vizinha, que, certamente, se daria por muito feliz emprestando-lhe o necessário; ela tinha economias; não o deixaria, portanto, em apuros. Mas ele era ele e não qualquer outro. Tinha a sua dignidade, o seu orgulho: era o conde de Mussidan.

Estava um dia de Inverno seco e claro e até dava prazer passear nas ruas. Sem pensar nos bolsos vazios, avançava com um passo regular, a cabeça levantada, a bengala ao ombro, a mão esquerda na anca direita, atirando o sobretudo para trás, de maneira a mostrar o forro. E diante deste belo homem de porte distinto, os numerosos transeuntes davam- lhe passagem - o que achava muito natural e próprio. Um homem como ele!

O colégio do abade Quentin só admitia um grupo seleccionado de alunos; nem toda a gente era recebida, e certamente teria recusado os filhos do conde de Mussidan, o boémio arruinado, se não fossem sobrinhos da piedosa Sr. a de Puylaurens. Apesar de saber perfeitamente que aquele abade Quentin não tinha por ele a estima a que se julgava com direito, testemunhava-lhe a maior deferência.

 

 

 

 

- Está satisfeito com os meus filhos, senhor abade?

- Cada vez menos, senhor conde.

- É bem triste para um pai ouvir tais palavras, e, no entanto, da última vez que os vi, fiz-lhes uma prelecção que devia produzir efeito; se o senhor abade a tivesse ouvido, teria ficado contente.

- Sebastião só pensa em vaidades; Frederico tem sempre cartas ou dados nas algibeiras, por mais vigilância que se exerça. Tão cábula é um como o outro; não fazem nada, absolutamente nada.

- É uma coisa extraordinária.

- Se não fosse a minha consideração e o meu respeito pela senhora de Puylaurens, mandava-os embora. Mas ela também os amima de mais, apesar do que lhe digo.

- É preciso que isso não aconteça, senhor abade; eu, como pai deles, encarrego-me de o impedir; mande-os chamar, se faz favor.

Não tardaram a entrar; eram dois belos rapazes, um de catorze e outro de treze anos, ambos muito parecidos com o pai.

- Acabo de saber boas coisas - disse o Sr. de Mussidan depois de lhes ter estendido a mão. Não trabalham, não aprendem nada e, em vez de se prepararem para honrar o nome que usam, só pensam, tu, Sebastião, em futilidades; tu, Frederico, no jogo. Teria Guilherme de Puylaurens, um dos vossos antepassados, sido embaixador de Raimundo VII na corte de Roma, em 1245, se não tivesse uma cultura que poucos homens naquela época possuíam? Teria Sebastião de Mussidan bispo de Albi, sido um luminar da cristandade se não se tivesse dedicado inteiramente ao estudo?

Os dois rapazes cochicharam algumas palavras que o Sr. de Mussidan não compreendeu.

- O que estão a dizer? - perguntou. - Vá, repitam, que mando eu.

- Não quero ser bispo - disse Sebastião.

- Pretendo que os dois se façam homens e é meu dever fazer com que assim seja. A vossa tia amima-os e não vê que os estraga enchendo-os de presentes que os distraem. Vamos tomar um trem e iremos ao Bosque de Bolonha. Depois iremos jantar ao café Anglais, à Maison d'Or, ao Vachette, ou onde quiserem.

- À Maison d'Or - disse Sebastião. - É mais elegante.

- Aqui temos um trem - disse Frederico.

- Uma tipóia. Ah! não - respondeu Sebastião. - Serás estúpido?

Foi um trabalhão encontrar um carro digno deles.

O passeio ao bosque fez esquecer o mau humor aos rapazes; o jantar copioso e fino alegrou-os completamente.

- Divertiram-se bastante? - perguntou-lhes o Sr. de Mussidan quando os levou nessa noite ao colégio.

 

                   A menina Angélica

Sem que tivessem falado nisso, sem que tivesse havido qualquer convite ou aceitação, o Sr. de Mussidan habituara-se a almoçar e a jantar todos os dias em casa da vizinha.

Ele tinha a pretensão de, quanto a isso, levar a discrição ao máximo; não seria ele quem faria com que aquela pequena fizesse gastos inúteis. A comida simples e mais que primitiva que ela fazia não era, sem dúvida, de molde a agradar-lhe, mas nunca lho dizia: isso não seria dum homem delicado.

E era sempre de bom humor que comia o que havia, mesmo quando achava detestável. Não é nestas pequenas coisas que melhor se afirma o homem superior?

Procurava alegrar as refeições e temperá-las de amável animação. Dava-se com a conversa da rapariga o mesmo que com a comida: simples e primitiva. Tinha de falar de maneira que ela o compreendesse. Não era culpa dela; nada tinha aprendido nem visto; felizmente, o terreno era bom; só faltava ser cultivado. Tinha bom senso, inteligência, e fazia tudo o que podia por compreender, por sorrir, por aplaudir, por mostrar quanto estava sensibilizada e reconhecida por tudo o que fazia por ela.

Bem via que era por delicadeza, por generosi dade, que ele achava a costeleta tenra e o vinho excelente; compreendia também que era por ela que ele falava assim, variando os assuntos e escolhendo-os sempre de maneira a interessá-la. E enquanto ele falava, esquecia-se muitas vezes de comer, olhando-o, admirando-o, tão comovida pelo que ele dizia como pelo modo como o fazia.

Ficava de boca aberta, não só de admiração, mas ainda por prudência, não ousando falar, com receio de dizer qualquer tolice ou de mostrar a sua ignorância.

E, no entanto, parecia-lhe muitas vezes que poderia responder, como se compreendesse, como se o seu espírito se abrisse a novas ideias.

Mas não devia fiar-se na sua inteligência; era porque ele falava bem, porque descia até ela, e não porque ela se elevava até ele, que o compreendia:

Como eram bem preenchidas aquelas horas da refeições! Como lhe sugeriam pensamentos sonhos, recordações, quando ficava só durante o dia, enquanto ele dava o seu passeio habitual, ou à noite, quando ele se ia deitar e ela continuava a trabalhar.

Que modificação na sua vida! Como o presente se parecia pouco com o passado.

Desde a morte da mãe, vivia só, não tendo ninguém com quem conversar, a quem confiar as suas tristezas ou as suas alegrias. Certamente que os seus velhos amigos tinham bom coração. Gostava de os ir ver; sabia que podia contar com eles, com o seu afecto, com a sua dedicação. Mas a sua conversa era sempre igual e as ideias giravam num pequeno circulo, absolutamente pessoal. Para eles só existiam as pessoas que conheciam.

Não era curioso que o que se tinha passado no Egipto ou na Turquia há bastantes anos a impressionasse mais do que o que acabava de acontecer na Rua des Abesses? Não era extraordinário que assuntos de ordem geral lhe merecessem mais interesse que as coisas que lhe eram familiares? Havia como que uma iniciação em novos pensamentos e novas situações, uma entrada num mundo desconhecido.

Não era só o espírito que acordava nela às ideias

novas; era também a mulher que entrava numa ordem de sentimentos ignorados até ali.

Nunca o Sr. de Mussidan se lhe dirigia que não lhe dedicasse uma palavra amável e graciosa; cada dia era um novo cumprimento, e tão bem dito que ela só se podia sensibilizar e nunca perturbar-se: ou era a propósito do cabelo, cuja finura elogiava, ou a respeito do seu olhar, de que admirava a doce expressão, ou sobre o vestido, que lhe ficava tão bem. Algumas vezes trazia-lhe violetas. Era apenas um ramo sem valor, mas tinha uma tal maneira de lho oferecer que o tornava o mais belo ramo do mundo.

Não trataria de outro modo, certamente, as belas senhoras, essas lindas senhoras da sociedade de que tantas vezes falava; não seria mais amável, mais gentil, com elas; não as trataria com mais galantaria.

De todos os assuntos que ele abordava durante as suas conversas era esse o que mais a perturbava.

E enquanto ele falava, olhava-o, esquecendo o trabalho, baixando os olhos logo que ele levantava os seus.

Entretanto, aquela intimidade do senhor do terceiro andar com a costureira fazia murmurar os outros inquilinos do prédio, sobretudo as mulheres, que, algumas vezes, quando Angélica passava, lhe dirigiam piadas.

Aquelas mulheres eram tão estúpidas como más, ou talvez só fossem estúpidas; não sabiam o que se passava. Julgavam-na por elas.

Certamente nunca tinham olhado para ele, nunca o tinham visto! Era lá possível, com aquele ar nobre, as suas maneiras distintas, pensar numa mulher como ela, uma pobre rapariga, uma operária, ele, um homem que tinha vivido entre grandes senhores!

Que ela pensasse nele, que dissesse a si mesma que uma mulher devia ser feliz amando-o e sendo amada por ele, que o achasse belo, inteligente, instruído, amável, espirituoso, jovial, que o admirasse, tudo isso era natural. Conhecia-o e tinha a certeza de que era um homem superior; não era necessário saber a vida dele para estar convencida disso. Essa superioridade era notável; impunha-se; bastava olhar para ele e ouvi-lo.

Se lhe dava conselhos para a tornar mais agradável, se experimentava elevá-la até ele, se se preocupava com o que ela podia vir a ser, era então porque via nela uma mulher? E porque não? Outras que não valiam mais do que ela tinham feito bons casamentos. Conhecia diversos casos de homens com boas situações haverem casado com raparigas que não eram mais do que ela. Não era orgulhosa, mas parecia-lhe que, no tocante a sentimentos, dedicação, ternura, era igual às outras. Sentia-o; tinha a certeza. Mais do que qualquer outra, poderia tornar feliz aquele a quem amasse e que a amasse. Tal como o via e como julgava conhecê-lo, devia apreciar essas qualidades de coração. Não podia esperar encontrar na vida um marido como aquele. Quem viria procurá-la naquele quarto onde trabalharia até à morte? Não tinha relações, não conhecia ninguém. Não era com o seu feitio, os seus hábitos e a sua timidez que iria à caça dum marido. Se aparecesse um por acaso, seria provavelmente um homem da sua condição, talvez um operário que se embriagasse, como havia alguns no prédio, que lhe batesse, que gastasse em vinho tudo o que ela ganhasse, que a deixasse morrer de miséria, a ela e aos filhos; ou, na melhor das hipóteses, que a associaria a uma existência rude e banal. Enquanto que, se casasse com ele, elevar-se-ia. Não tinha ela já outras ideias e outras esperanças desde que o conhecia? E elevar-se, subir mais, tornar-se melhor, não é o fim que se deve ambicionar? Graças a ele, já se tinha elevado, bem pouco, na verdade, mas, enfim, já era alguma coisa.

Não era para deixar de trabalhar que acalentava aquela esperança; pelo contrário: continuaria a trabalhar e sentir-se-ia feliz trabalhando para ele.

Se algum dia, mais tarde, recebesse aquela herança de que já diversas vezes falara vagamente, ele, generoso como era, teria prazer em reparti-la consigo.

Assim pensava quando estava só e por muito tempo ia seguindo o fio dos seus sonhos. Por outro lado, perguntava a si mesma se não seria loucura uma rapariga da sua condição pensar em semelhante casamento. Que fazer então? Se tivesse os pais, consultava-os. Mas só tinha os amigos Limonnier. Pois bem, iria falar- lhes.

Angélica ia todos os domingos, entre o almoço e o jantar, visitar esses amigos; aproveitaria a sua próxima visita para os consultar e falar-lhes das suas preocupações.

O Sr. Limonnier era bom conselheiro, sério, reflectido, prudente, não fazendo nem dizendo nada sem primeiro pesar bem os prós e os contras. Quanto à Sr. a Limonnier, muito expedita de espírito e de língua, era esperta e sabia ver bem as coisas que passavam despercebidas ao marido, ocupado a reflectir e a pensar o que não devia dizer.

Tomada essa resolução, levou toda a semana a pensar na maneira de a executar; estudou frases, recitou-as e, no domingo seguinte, partiu decidida. Ela diria isto, responderia aquilo; em suma, nada era mais fácil. Mas, uma vez em Asnières, faltou-lhe a coragem e regressou sem ter dito nada, furiosa consigo mesma, envergonhada da sua timidez.

No domingo seguinte foi mais corajosa, mas não conseguia explicar-se claramente. Por isso foi preciso muito tempo para que o Sr. Limonnier a compreendesse, e, ainda assim, com a ajuda da mulher.

- Pensa em casar? - perguntou-lhe a Sr. a Limonnier.

- A menina Angélica? - exclamou o marido.

- Não se sente então feliz como está, na sua casa, fazendo todas as suas vontades sem depender de ninguém?

Depois calou-se de repente e ela viu-o mexer o queixo sem pronunciar uma única palavra.

Angélica explicou-lhes que as coisas ainda não tinham chegado a esse ponto, mas que um senhor de certa posição parecia ter intenções a seu respeito, e, no caso de a pedir em casamento, o que poderia acontecer ou não, desejava conhecer a opinião deles para não ser único juiz em assunto tão grave.

- Como é ele? - perguntou a Sr. a Limonnier.

- Viu os seus documentos? - inquiriu por sua vez o Sr. Limonnier, que era mais sensível aos negócios que aos sentimentos.

- Ainda não chegámos a tanto.

- Minha menina, permita-me que lhe diga que neste assunto é preciso evitar a pressa; o melhor é começar pelos papéis. Aliás, foi assim que as coisas se passaram entre Ágata e eu; ela preparava amostras de tapeçarias para o Sajon e eu era desenhador na casa Brassac. Dávamo-nos bem, não é verdade? Tínhamos sido talhados um para o outro. Pois bem! Começámos pelos papéis e, como vê, estamos satisfeitos.

Mais prática e menos convencida da utilidade dos papéis, a Sr. a Limonnier disse que antes de dar uma resposta era necessário conhecê-lo. Nunca o tinham visto. Que fazia ele? Que idade tinha? Ganhava bem?

Angélica respondeu vagamente a todas aquelas perguntas, concordando, contudo, que era justo que desejassem vê-lo primeiro.

- Costuma sair com ele? - perguntou a Sr. a Limonnier.

- Nunca saímos juntos.

- E não podia sair? Vinham de passeio até cá e entravam.

Ficou combinado que ela faria o possível para que essa visita se realizasse no domingo seguinte.

- Venham um pouco para a tarde - disse o Sr. Limonnier. - Ficarão para jantar.

- Mas é que.

- Os amigos dos amigos nossos amigos são.

- Nunca me atreverei.

- Mas porque não?

Foi difícil a Angélica falar ao Sr. de Mussidan naquele passeio.

- O tempo está maravilhoso: contrariá-lo-ia muito dar amanhã o seu passeio para os lados de Asnières? Acompanhá-lo-ia, se assim quisesse, e de passagem poderíamos entrar em casa dos meus amigos Limonnier.

Que ideia tão singular! Evidentemente que o contrariava ir dar um passeio para os lados de Asnières; pelo menos aborrecia-o. Como se um homem como ele fosse passear a Asnières! Contudo, não a querendo desgostar, aceitou. Certamente não encontraria lá ninguém conhecido que o embaraçasse.

No dia seguinte partiram, portanto, para Asnières. Foi uma preocupação para ele saber como ela iria vestida. Menos mal, na verdade: um chapéu de veludo preto e um casaco de fazenda; não tinha muito o aspecto duma operária.

Desagradável de aspecto era a Sr.a Limonnier, com a sua touca de flores, o vestido de seda preta e o cordão de ouro em volta do pescoço.

Mais desagradável ainda o Sr. Limonnier, que, com grande desgosto seu, não se pôde levantar para apresentar os seus cumprimentos à sociedade, porque dera uma pancada.

Foi preciso algum tempo para que o Sr. de Mussidan voltasse a si da indignação sentida. Assim, quando o Sr. Limonnier lhe pediu para ficar para jantar sem cerimónia, recusou. Foi só quando a Sr. a Limonnier falou duma galinha de Mans, que a cunhada lhe mandara, que aceitou. A galinha, que estava bem assada, no espeto e não no forno, pô-lo de bom humor.

Angélica estava radiante e por duas vezes, com o pretexto de ajudar a Sr. a Limonnier, foi ter com ela à cozinha para lhe perguntar que tal o achava.

- Mas muito bem.

- Não é verdade?

- Somente, já não é novo.

- Que importa?

Angélica desejaria interrogar o Sr. Limonnier como tinha interrogado a mulher, mas não lhe foi possível. O Sr. Limonnier só largou o seu conviva à porta, depois de lhe ter dito: Muitos cumprimentos.

- Como vê - disse Angélica, quando iam a caminho da estação -, são muito meus amigos.

- Oh! sem dúvida. Entretanto, muitos cumprimentos é de mais.

 

                     Um passeio ao campo

Angélica não pôde esperar oito dias para voltar a Asnières e conhecer a opinião dos seus amigos; logo no dia seguinte, assim que o Sr. de Mussidan foi para Paris, pôs-se a caminho.

Encontrou-os em casa. O Sr. Limonnier estava com a perna estendida numa cadeira por causa da pancada que dera.

- O quê, está cá?

- Como não pude falar-lhe ontem, venho saber qual é a sua opinião.

- Justamente, Ágata e eu não temos feito outra coisa desde ontem senão falar de vocês.

- Então? Diga-me a sua impressão, com toda a franqueza; ficar-lhe-ia muito agradecida. O que pensa?

Todavia, apesar daquele apelo à franqueza, tremia de ansiedade.

- Acho-o bem.

- Acha?

- Muito bem; vê-se imediatamente que é um homem às direitas; pela maneira como me dirigiu a palavra, vi que era competente para julgar os homens e que tinha os hábitos da sociedade. Não nos enganamos nisso. Bela aparência, distinção de maneiras, belo garfo.

A cada palavra, levantava a cabeça, radiante.

- Já é um pouco idoso.

-Não é.

- É, sim; mas para si, que é séria, que nunca teve mocidade, refiro-me ao carácter, bem entendido, isso não é um defeito. Sob todos os aspectos, a nossa impressão é boa; mas, por outro lado, receio. Devo dizê-lo?

- Diga, peço-lhe.

- Vai dizer-me que isso não tem importância. Eu, porém, sou de parecer que, para que um casal se dê bem, é preciso que o marido tenha entusiasmo, alegria, espírito; numa palavra, que seja um homem da sociedade. É possível que ele seja isso tudo e que ontem estivesse intimidado. A fim, porém, de fazer um juízo mais completo, necessito de o tornar a ver, de o estudar, de o interrogar, sem que ele dê por isso, já se sabe. O mesmo se dá com as suas capacidades de trabalho, que não vejo. Para que serve ele? O que sabe fazer? Qual é a sua posi ção? Quais são os seus haveres? Virá, sem dúvida, fazer-nos outra visita. Então veremos.

Angélica foi-se embora, encantada; mas, no caminho, pensou que uma simples visita não seria suficiente; e depois de muito procurar, resolveu o que lhe pareceu ser melhor.

- Julgo que desejará retribuir aos meus amigos Limonnier as suas atenções.

- Mas, sem dúvida, num destes dias.

- Eu também; porém, como isso aqui não é fácil, pensei que poderíamos ambos organizar um passeio ao campo, para o qual os convidaríamos; o tempo está bom, já se pode ir passar o dia ao campo; não iríamos jantar, mas almoçar. Desagradar-lhe-ia?

- Oh!

- Gosto tanto do campo.

- Mas onde diabo quer ir?

- A qualquer sítio: a Robinson, a Joinville ou à ilha de Saint-Denis.

- Não conheço essas terras.

- São muito bonitas.

Era sincero quando dizia que as não conhecia; foi justamente por essa razão que escolheu Joinville. Se ele nunca lá tinha ido, é porque ninguém lá ia.

Aceitou a ideia de muito má vontade, principalmente porque não lhe agradava um passeio com aquela gente; depois, porque ela o punha em embaraços. Por mais modesto que fosse um divertimento, custava sempre alguma coisa, e, naquele momento, qualquer despesa lhe era interdita. Verdade seja que a questão da despesa nunca o fazia parar. Ver-se-ia. Além disso, seria um assunto a regular com ela mais tarde, visto o convite ser a meias.

O que ele viu chegar no domingo, ao meio-dia, à estação de Vincennes, local de reunião fixado para a partida, foi uma bolsa que Angélica lhe estendia timidamente.

- Permita-me que lhe peça o favor de organizar o nosso passeio - disse ela -, de dirigir tudo e de pagar; eu não percebo nada disso: só desejo que tudo seja bom.

A bolsa pesava bastante; quando a abriu para pagar os bilhetes, viu que continha quatro moedas de prata e cerca de uma dúzia de francos em moedas miúdas.

Trinta francos para um passeio que devia ser bom era pouco; contudo, manobrando com habi lidade, seria talvez suficiente; um almoço não devia custar caro em Joinville. Em todo o caso, a satisfação de se ver livre de apuros era bastante grande para vencer esse aborrecimento. Em suma, tinha trinta francos na algibeira e era ele quem encomendava e quem pagava.

Isso pô-lo de bom humor e fê-lo mostrar cara alegre aos Limonnier. Em vez de os tratar como pessoas inferiores, podia olhá-los como pessoas divertidas, cómicas; era simplesmente um outro ponto de vista.

Mas, ao sentar-se a uma mesa do Tête-Noire tornou-se sério; era preciso estar atento à ementa e não se deixar arrastar para despesas perigosas. A cada prato indicado pelo criado, que parecia querer prolongar a refeição, Angélica fazia sinais afirmativos, desejosa, evidentemente, de oferecer aos seus convidados tudo o que lhe propunham.

Uma boa fritada de peixe, linguiça assada, uma fatia de presunto, cabeça de vitela, rins salteados, lombo grelhado com batatas, um bom vinho e, para terminar, uma omoleta e uma salada; para sobremesa.

Mas o Sr. de Mussidan interrompeu aquela longa enumeração e, no tom dum homem habituado a dar ordens, encomendou um almoço muito simples, sem ter em conta os sinais que Angélica lhe fazia com os olhos e os ares de piedade do pobre criado.

Certamente aquela ementa devia deixar-lhe uma certa quantia para o regresso.

Estava um lindo dia de Primavera e das janelas da sala onde almoçavam viam-se ao longe os prados e as margens verdejantes do Marne, cheios de sol. No rio passavam os barcos que se treinavam para as próximas regatas.

- Vamos dar um passeio de barco - disse Angélica.

- Dar um passeio no rio! - exclamou ele. Mas estamos tão bem aqui! Dominamos a paisagem e não temos frio.

Mas como a ideia foi acolhida com entusiasmo, teve de se resignar: além disso, uma hora de barco não devia custar caro.

Uma hora, porém, não chegou; as senhoras quiseram remar; tendo avistado o viaduto de Nogent, quiseram ir até lá para ouvirem o eco debaixo da abóbada; depois foi preciso dar a volta à ilha. Quando voltaram ao ponto de partida, já lá iam três horas. Foi preciso pagar. O Sr. de Mussidan tirara o dinheiro da bolsa e metera-o na algibeira; assim foi-lhe fácil contá-lo com as pontas dos dedos; restavam-lhe três francos e alguns soldos; chegava e sobejava para pagar os bilhetes do comboio; estava salvo.

Não contou, porém, com a frescura da noite; Angélica não quis que a Sr. a Limonnier, que tinha apanhado frio, voltasse para Paris sem se ter aquecido.

- O Sr. de Mussidan vai oferecer-nos um grogue.

Era impossível dizer que não, e, no entanto, era preciso guardar dois francos e quarenta cêntimos para os bilhetes. Se fosse só a Sr. a Limonnier a aceitar um grogue, ainda as coisas se arranjavam. Mas o Sr. Limonnier não era um homem para ceder a sua parte aos outros. Angélica também tinha frio. Estava tudo perdido.

- Rapaz, traga quatro grogues - disse ele, corajosamente.

A resolução estava tomada.

- Acho - disse ele, quando saíram do caféque não vale a pena irmos de comboio. Vejam como a noite está linda. A Lua nasce. Lá adiante há arvoredo. É um prazer andar.

Aquela proposta desesperada foi aceite.

- Além disso - disse Angélica -, se a Sr. a Limonnier estiver cansada tomamos o comboio em Nogent ou em Fontenay.

Mas tanto em Nogent como em Fontenay, o Sr. de Mussidan elogiou com tal entusiasmo o prazer do passeio através do bosque que não se pensou em comboio. Estava ruidoso, falava, ria e fazia rir, contava histórias e dava o braço à Sr. a Limonnier e a Angélica.

Em Vincennes, Angélica propôs muito seriamente tomarem o ónibus.

- Estragar tão belo dia terminando em ónibus! - exclamou ele -, nunca!

E arrastou, rebocou as duas mulheres.

- Porque teve tanto empenho em nos fazer regressar a pé? - perguntou Angélica quando ficaram sós.

Como resposta, ele procurou na algibeira e mostrou os vinte e dois soldos que lhe restavam.

- E a bolsa? - perguntou ela.

- Está vazia; pode ver.

Ela agarrou-a e, abrindo o fecho dum pequeno compartimento, mostrou-lhe uma moeda de vinte francos.

Levando as mãos à cabeça, o Sr. de Mussidan exclamou:

- Ah, as minhas pobres pernas! Agora é que eu as sinto.

Num domingo de manhã, dia de saída dos filhos, o Sr. de Mussidan perguntou a Angélica como é que ela contava passar o dia: o tempo estava mau e a chuva, que desde a véspera caía, não parecia querer parar.

- Irei a Asnières visitar os meus amigos.

- Voltará cedo?

- Voltarei quando o senhor quiser; posso mesmo deixar de sair se assim o desejar.

- Deixar de sair, não; não lhe peço tanto; mas, enfim, ser-lhe-ia possível regressar pelas quatro horas?

- Muito facilmente, se isso lhe agrada.

- O que me agradaria seria jantar consigo; custa-me muito, mesmo muito, ser privado desse prazer todos os meses, por causa de ter de passar o dia com os meus filhos.

Eram palavras tocantes para ela; preferia-a aos filhos; mas nada podia responder.

- Muitas vezes - continuou ele - tinha pensado em hos trazer; podia fazer isso hoje, depois de passarmos a tarde a visitar o Louvre, visto o tempo estar tão mau. Que tem para o jantar?

- O que o senhor quiser.

- Qualquer coisa substancial: uma perna de carneiro com um prato de legumes; os rapazes têm bom apetite.

- Estarei em casa quando voltar; às seis horas o jantar estará pronto.

- Muito bem. Há muito já que os teria trazido para lhos apresentar se não estivesse embaraçado com a maneira miserável como o meu quarto estava mobilado e que era inútil mostrar-lhes; mas agora que, graças aos móveis que lá pôs, está mais decente, já não há razão para os manter afastados. Até logo.

Angélica ficou muito contente. Não lhe veio à ideia que aquele pai só lhe trazia os filhos porque não sabia como havia de passar a noite com eles, e também porque os rapazes tinham, de facto, um apetite devorador, não sendo, pois, agradável levá-los ao restaurante quando não tinha a bolsa bem cheia. Só viu uma coisa: trazia-lhe os filhos como os teria levado à madrasta; era uma prova de estima que lhe dava, englobava-a na família. Dali ao casamento não havia muitos passos a dar. Far-se-ia amar pelas crianças; seria meiga com eles; substituir-lhes-ia a mãe, e mais tarde não deixariam de amar o irmãozinho ou a irmãzinha que lhes desse.

Se não se fez amar desde aquela noite, não foi por culpa sua. Não só havia uma perna de carneiro acompanhada de legumes, como ainda sardinhas, chouriço, salada, pudim, doce, bolos, frutas secas e café: um verdadeiro banquete.

A sobremesa que não comeram, meteu-lha nas algibeiras.

A Sebastião ofereceu, para um laço, uma fita que lhe tinha agradado.

A Frederico deu um jogo de dominó, fechado numa bonita caixa de madeira, que conservava como recordação da mãe.

O Sr. de Mussidan quis opor-se a esse presente.

- Não deve encorajar os vícios desse rapaz - disse - porque ele é tão jogador como um baralho de cartas; fará com que seja castigado.

- Não jogarei com este dominó - disse Frederico, que se apressou a guardá-lo na algibeira.

Foram-se embora, encantados, e declararam unanimemente que ela era uma boa rapariga.

 

                           Proposta de casamento

Sebastião e Frederico costumavam ir todos os anos passar as férias grandes a Cordes, em casa da tia.

Gozavam seis ou sete semanas de vida ao ar livre e de prazeres e divertimentos que a tia se esforçava por variar, nada descurando para lhes ser agradável, provando-lhes a sua ternura de mil maneiras, bem como o seu afecto e a sua solicitude verdadeiramente maternais.

O Sr. de Mussidan ficava muito satisfeito com aquelas viagens.

Primeiro, porque se via livre dos filhos, dos quais não saberia o que fazer durante aqueles dois meses. Como distraí-los? Onde alojá-los?

Depois, quando regressavam, davam-lhe notícias certas acerca da saúde da tia, de quem não perdia as esperanças de ser o herdeiro.

Ficou o Sr. de Mussidan muito surpreendido quando um dia recebeu uma carta anunciando-lhe que a Sr. a de Puylaurens acabava de partir para Paris, acompanhada pelo seu criado, o fiel Buvat.

Por que razão empreendia ela aquela viagem? Ninguém o sabia em Cordes. Mas supunha-se que era para consultar um médico parisiense, devido a estar cada vez mais fraca.

Aquela suposição alimentava as esperanças do Sr. de Mussidan para a aceitar sem procurar outra explicação para aquela viagem. Uma consulta que vinha fazer aos médicos de Paris! Que tolice! Mesmo que consultasse a França inteira, isso não prolongaria a sua vida mais uma hora.

Não se inquietou, pois, com aquela viagem da tia e, só lamentando não a ver para julgar por si mesmo do seu estado, o que lhe permitiria fixar uma data mais ou menos aproximada para o seu luto - porque poria luto pela sua querida tia, e com que prazer!

Tinha recebido aquela carta havia quatro dias, quando Angélica lhe contou que durante a sua ausência viera um cliente de aspecto singular trazer-lhe um vestido para arranjar. O tecido era muito bonito e o trabalho render-lhe-ia bem uns cem francos.

- Ainda bem! - disse ele, com ar aborrecido. O que surpreendeu Angélica não foi a visita do cliente desconhecido, que não quis revelar quem o mandava, mas a sua curiosidade, as suas perguntas sobre o que ela ganhava, o que fazia, a sua vida, a sua família.

O Sr. de Mussidan nunca recebia correio na Avenida des Tilleuls. Dois dias depois daquela conversa, chamou-o o taberneiro para lhe entregar uma carta endereçada ao Sr. de Mussidan.

Abriu-a muito admirado.

A Sr. a de Puylaurens deseja falar com o Sr. conde de Mussidan. Estará no Hotel du Bon La Fontaine, sexta feira, das quatro às seis horas da tarde. Que lhe quereria ela?

Reconciliar-se com ele, talvez!

Se assim era, sua tia teria de começar por lhe apresentar desculpas: desculpas sinceras.

Quando o Sr. de Mussidan se apresentou no hotel, na sexta-feira, às quatro horas, a bengala ao ombro, a mão na anca, o chapéu caído sobre a orelha, com os seus ares de vencedor, fez sensação entre a criadagem.

Os aposentos da Sr. a de Puylaurens eram no primeiro andar. Na antecâmara estava um homenzinho baixo e gordo, meio corcunda, de cara rapada, cabelos lisos, que vestia uma comprida sobrecasaca castanha: era o Sr. Buvat, há trinta anos ao serviço da Sr. a de Puylaurens e que, pelo seu zelo, honradez e dedicação, se tinha tornado uma personagem importante.

- A senhora está? - perguntou o Sr. de Mussidan com altivez.

- A senhora espera o senhor conde. E Buvat, abrindo a porta, anunciou:

- O senhor conde de Mussidan!

Uma senhora muito alta, muito magra, muito pálida, embrulhada num xaile e em rendas, uma botija debaixo dos pés, estava sentada ao canto da lareira, quase em cima do lume; a cara, de faces encovadas e olhos brilhantes, exprimia sofrimento, mas sobretudo um ar de orgulho inato, unido a uma bondade extrema.

Com a mão fez sinal ao Sr. de Mussidan para se sentar em frente dela no outro canto da lareira.

Avançou nobremente, de cabeça erguida, até ficar a três passos dela; então parou e, os calcanhares unidos e a ponta dos pés para fora, inclinou-se cerimoniosamente, levando o chapéu ao coração, numa curva cheia de majestade.

- Como está, minha tia?

- O nosso parentesco - começou a Sr. a de Puylaurens -, a minha qualidade de irmã de sua mãe, permitir-me-iam invocar certos direitos; no entanto, não o farei, e na nossa conversa procurarei só falar do assunto que tenho a tratar consigo.

O Sr. de Mussidan inclinou- se com uma polidez levemente irónica, como homem que diz: Tudo isso me é indiferente; vejamos esse assunto.

Ela continuou:

- Apesar de termos cortado relações, não é um estranho para mim. Nunca o perdi de vista, e uma pessoa da minha confiança tem estado encarregada de me pôr ao corrente do que fazia, do que lhe sucedia. Foi assim que soube que tinha ido morar para a Avenida des Tilleuls e foi assim também que soube que não tinha vergonha de viver do dinheiro que ganha, a ponto de envelhecer à força de trabalhar, uma operária que, digamos a verdade, o recolheu.

O Sr. de Mussidan estava bastante surpreendido, mas não respondeu nada: não era um rapazinho que comparecia diante da sua velha tia; tinha o direito de fazer o que lhe apetecesse.

- Informei-me sobre essa pessoa - continuou a Sr. a de Puylaurens. - Antes de o conhecer, ela era uma rapariga honesta. Toda a gente é unânime nesse ponto e creio que também o admite.

- Mais do que toda a gente. Mas que tem isso que ver com o assunto para que me chamou e de seja tratar comigo?

- Já vai ver. Antes de mais nada era preciso assegurar-me de que essa rapariga era honesta, o que está feito; agora vamos entrar no assunto, mas primeiro vou dizer- lhe porque lhe falo nisto. Sabe como amei ternamente a minha irmã, sua mãe. Esse amor transferi-o para si, e durante muitos anos considerei-o como filho. Esses sentimentos mudaram e é inútil voltarmos às causas dessa mudança. Mas o afecto maternal que tinha sentido por si não morreu: passou para os seus filhos, que também eram do sangue de minha irmã e não deviam sofrer por causa de. Não lhe quero dizer nada desagradável.

- Fale livremente, peço- lhe - disse, com perfeita indiferença.

- Enfim, essas crianças não deviam sofrer por causa das nossas desinteligências. Fiz tudo o que estava na minha mão para que não sofressem e creio ter sido uma avó para eles. E o senhor, como é que compreendeu e praticou a paternidade?

- Permita-me dizer-lhe que só dependo da minha consciêcia.

- Engana-se. Depende também de Deus, que o vê e o julga.

Ela prosseguiu:

- Além disso, admira-me que invoque a sua consciência. Não foi ela certamente que lhe inspirou a ideia de levar os seus filhos a casa dessa rapariga.

Fez uma pausa e, como ele não respondesse, continuou:

- Estou preocupada. E foi por isso que, depois de ter mandado tirar informações dessa rapariga e de ter a certeza de que era uma pessoa honesta, o que o senhor, aliás, confirmou, o mandei chamar para lhe dizer que deve casar com ela.

O Sr. de Mussidan ficou um momento atordoado, como homem que não compreendesse nada do que lhe acabavam de dizer e que pergunta a si mesmo se ouviu bem; depois, de repente, recostando-se na cadeira, pôs-se a rir às gargalhadas.

- Eu - exclamou ele -, conde de Mussidan, casar com Angélica!

- Perfeitamente.

- Ah, que engraçado! Deixe-me rir.

A Sr. a de Puylaurens assistiu impassível àquele acesso de hilaridade e quando viu que ele começava a acalmar-se prosseguiu:

- Nunca imaginei que um simples negócio pudesse ser tão engraçado.

- Um simples negócio!

- Pensou então que lhe pedia para casar com essa pequena em nome da moral e da nossa santa religião? Talvez achasse graça a isso, mas não o fiz: evitei mesmo apoiar-me em ideias e crenças que já não são as suas. Limitei-me apenas ao negócio propriamente dito, e eis a razão por que não compreendo essa hilaridade.

- Em que é que o meu casamento com uma pessoa que não possui nada seria um negócio?

- Em que, tendo em consideração esse casamento, lhe asseguraria certas regalias que, para um homem que nada tem, seriam justamente um negócio.

Ao ouvir aquelas palavras, o Sr. de Mussidan, que havia tomado os seus grandes ares de indiferença e de escárnio, tornou-se atento.

- Escuto-a - disse.

A Sr. a de Puylaurens continuou:

- Na situação precária em que se encontra, não me pode passar pela cabeça a ideia de lhe pedir que case, sem pensar ao mesmo tempo em assegurar a vida material de sua mulher e dos filhos que possam vir a ter. Mas, por outro lado, com os hábitos que lhe conheço e as experiências que por diversas vezes tive ocasião de fazer, também não me podia passar pela cabeça pôr à sua disposição um capital qualquer, que dissiparia nalguns meses, talvez mesmo nalguns dias. Oiça, pois, o que lhe proponho para a realização desse casamento: alugará uma casa decente, cuja renda será paga por mim; escolherá um mobiliário, que também pagarei; entregar-lhe-ei uma determinada quantia para as primeiras necessidades e todos os meses ajudá-lo-ei com uma pensão, que receberá às quinzenas; enfim, mais tarde, encarregar-me-ei de colocar os seus filhos, se os tiver.

- E supôs que eu estaria pelos ajustes?

- E porque não? Se recusa o contrato que lhe proponho, faz mal. Nunca, ouça-me bem, nunca herdará de mim.

- A senhora fará o que quiser.

- Porque lhe havia de deixar a minha fortuna? Para que a gastasse loucamente como desperdiçou a de seu pai e a de sua mãe? Porquê, pergunto-lhe?

- Simplesmente porque sou o chefe da família.

- Chefe da familia, o senhor! Nunca o foi, pelo menos para nada de bom, nem de útil; também o não será agora para receber a minha herança. Pode riscar isso das suas esperanças: ficará para os seus filhos, para todos os seus filhos.

E tocou a campainha.

- Acompanhe o senhor conde - disse ela ao criado.

O Sr. de Mussidan cumprimentou sem dizer uma palavra e saiu de cabeça baixa, com ar menos arrogante do que quando entrara.

Não estava nos seus hábitos deixar-se perturbar ou confundir, mas tinha ficado tão surpreendido com aquela proposta, e sobretudo com as razões apresentadas pela Sr. a de Puylaurens, que não atinava com o caminho para sair. Foi preciso que um criado lho indicasse.

Só na rua é que levantou a cabeça, pensando que alguém o podia ver. Abatido, ele? Nunca.

Contudo, o golpe fora rude bastante para esmagar o mais forte. Deserdado! Privado daquela fortuna que já considerava sua, a que já tinha dado destino!

Que mulher! Como era possível que uma Puylaurens pudesse pensar tão mesquinhamente, tão burguêsmente! A Sr. a de Puylaurens só merecia o desprezo.

Começou a andar devagar e, em vez de ir directamente para casa, voltou para a Rua Notre-Dame-de- Lorette; era preciso reflectir e não se deixar levar por um primeiro impulso que podia ser prejudicial.

Alguns meses de usufruto, na melhor das hipóteses! Não se podia habituar àquela ideia que nunca lhe tinha passado pela cabeça. E, no entanto, era muito possível, forçoso era reconhecê-lo. Não só aquela fortuna lhe escapava, o que jamais admitira, como ainda podia perder o usufruto legal.

Permitiria ele que se realizasse semelhante roubo?

Havia um único meio de o impedir: o casamento.

Tinha chegado à Rua Pigalle, mas não seguiu; não podia ainda voltar para casa; era preciso que se habituasse àquela ideia, que, à primeira vista, o enfurecia: casar com Angélica.

No fim de contas seria uma boa acção; a rapariga amava-o tão ternamente, tão apaixonadamente!

Durante meia hora passeou pelo boulevard, indo da Praça Moncey à Praça Pigalle; por fim decidiu-se a ir para casa; a sua resolução estava tomada.

A mesa estava posta e havia perto de uma hora que Angélica o esperava para jantar.

- Sabe donde venho? - perguntou ele, tirando o chapéu e o sobretudo.

Ela olhou-o sem responder.

- Venho de ver minha tia, a Sr. a de Puylaurens. E sabe o que fiz? Zanguei-me com ela.

- Meu Deus!

- Zangado para sempre; tão zangado que ela me deserda.

Ela não o compreendeu.

- Sabe que era precisamente essa fortuna que me impedia de ceder ao seu desejo. e ao meu; se ainda não lhe dei o meu nome, foi porque isso me era impossível por causa dessa herança que não podia nem devia sacrificar.

Angélica ergueu-se um pouco, trémula, começando a compreender, mas não ousando acreditar no que ouvia: um sonho, uma loucura!

- Porque não acredita no que lhe digo? Não sabe que sou um homem de bem? Não era livre; agora já o sou; nada, agora, me pode impedir de cumprir o meu dever: dentro de um mês será condessa de Mussidan.

 

             Os filhos do Sr. de Mussidan

O Sr. de Mussidan, em casa, não encontrava a felicidade, isto é, a ternura, a dedicação a que tinha direito, e aquela mulher que havia feito sua, aquela operária que tirara da sua humilde condição, não lhe pagava com gratidão a grande honra de ter sido elevada até ele. Fazia, sem dúvida, o possível por lhe agradar, era delicada, obsequiosa e dócil; tudo o que sabia poder ser-lhe agradável fazia-o. Mas já não era a mesma do primeiro ano de casados. Com o nascimento da filha operara-se nela uma modificação, em que, logo de início, não tinha reparado, mas que, por fim, se tornara evidente. Já não se ocupava exclusivamente dele, já não tinha só olhos para ele; agora estava sempre ocupada com a filha, contemplando-a, acariciando-a, beijando-a, embonecando-a. E eram admirações e adulações sem fim!

Como és linda, minha pequenina! Que bonequinha tão bonita! Como a tua pele é macia! Como os teus olhos são meigos! E as tuas mãozinhas! E os teus pezinhos rosados!

Que ladainha! Se havia necessidade de falar assim à pequena! Ela não compreendia nada. Porque não lhe dizia aquelas coisas a ele? Não pretendia certamente que lhe dissessem que tinha isto ou aquilo bonito; sabia como era e o que valia melhor do que ninguém; mas, enfim, embora não quisesse que o enchessem de cumprimentos, desejava que não parecessem desdenhá-lo. Não havia nisso ciúme, porque um homem como ele não é ciumento, mas simplesmente o sentimento e a dignidade do que lhe era devido.

Sabia de mulheres que, antes da maternidade, adoravam o marido, mas que, depois, preferiam os filhos ao marido. A partir daquele momento, o marido não era nada e a criança era tudo.

Pois bem! Não queria que sucedesse a mesma coisa em sua casa: ele e a filha, e não a filha e ele. Aquilo era justo, sem dúvida; mas mais justo para ele do que para qualquer outro, tendo em conta a situação a que a elevara: fizera dela condessa de Mussidan!

Não sabia contar os degraus que lhe tinha feito subir - de Godard a Mussidan!

Em todo o caso, se tinha consciência disso, não o demonstrava, não só na intimidade como nas suas relações.

Pois não tivera a fantasia de se dar com a família que morava ao lado, aqueles músicos, aqueles Gueswiller, cuja porta ficava mesmo em frente da sua!

Com o pretexto de que Genoveva não podia viver sempre só e precisava brincar com meninas da sua idade, travara a condessa, durante a sua ausência e sem previamente lhe ter pedido licença, relações com os alsacianos, esquecendo o seu título e a sua categoria.

Sempre que o tempo o permitia, Genoveva ia para a varanda, que era comum aos dois vizinhos, o mesmo fazendo a mais nova dos Gueswiller, uma pequenita chamada Odília, da mesma idade dela, e ali, em frente uma da outra, apenas separadas por uma grade, entretinham-se, conversavam e brincavam, vestindo as bonecas, enfeitando-as e fazendo-as beijar-se através da grade quando se zangavam.

À mesa, Genoveva dividia em duas partes o que lhe dessem de melhor: uma para ela, outra para a sua amiga, e, acabada a refeição, corria à varanda para chamar Odília, quando não era esta que, chegando primeiro, a chamava para repartir com ela o que também tinha posto de parte.

Era uma verdadeira caixa de música a casa daqueles alsacianos; tanto as raparigas - Sofia, Augusta, Salomé - como os rapazes - Luciano e Fausto - passavam os dias a tocar. Logo pela manhã começavam as escalas; cada um, no seu quarto, começava a estudar, e, com excepção das horas das aulas do Conservatório, todos os instrumentos se enfureciam até uma hora adiantada da noite.

O chão tremia, os vidros vibravam nos caixilhos das janelas; era de endoidecer e de tomar horror à música.

E, no entanto, não era isso que acontecia a Genoveva; mesmo quando não era para estar em companhia da sua pequena amiga, ficava na varanda a ouvir o que tocavam e muitas vezes à noite experimentava trautear as melodias que ouvira durante o dia.

Isso era indiferente ao Sr. de Mussidan, embora não lhe desagradasse que a filha mostrasse gosto pela música; era bem dotada, eis tudo. Mas o que não lhe era indiferente e mesmo lhe desagradava eram as relações com aqueles reles músicos e sentia-se humilhado quando a Sr. a Gueswiller o fazia parar na rua quando o encontrava. Voltava do Conservatório com as filhas e, para evitar passos inúteis, fazia as compras para a casa: couves, alfaces, cenouras, um coelho; enfim, o cesto vinha cheio a rebentar; e ainda por cima com o cabelo mal penteado, o xaile vermelho posto de esguelha, os sapatos muito usados, o vestido cheio de poeira ou de lama. Em suma, não era mulher que um homem como ele abordasse na rua.

Ao fastio daquela existência vazia e monótona que se arrastava mês a mês vieram juntar-se aborrecimentos de outra espécie: aqueles que os filhos lhe causavam.

Ao sair do colégio do abade Quentin, Frederico dera entrada no seminário de Albi, e Sebastião, que tinha ficado mal no exame do liceu, fora posto pela Sr. a de Puylaurens sob a direcção dum professor particular que lhe devia fazer recuperar o tempo perdido. Tudo isso, porém, não tinha sido feito sem dificuldades: Frederico não queria ir para o seminário; não tinha vocação alguma para o sacerdócio. Por seu lado, Sebastião não queria o professor; não era preciso; ele trabalharia melhor sozinho; fizessem-no admitir primeiro no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que os diplomas viriam depois.

Mas o Sr. de Mussidan não tolerara aquelas ideias de resistência; interviera, e energicamente, como o obrigava o seu dever de pai.

Fizera compreender a Sebastião que, quando se foi cábula durante os primeiros anos de estudos, se deve, custe o que custar, pensar no futuro; não era pela porta das traseiras que devia entrar no Ministério, mas pela porta principal; e, finalmente, um preceptor é uma coisa que coloca bem um jovem aos olhos da sociedade.

Com Frederico empregara argumentos do mesmo género. Seria bispo, cardeal, papa talvez, porque não?

E os rapazes haviam cedido.

Experimentara, por aquele lado, um momento de tranquilidade e mesmo uma certa satisfação.

Mas essa satisfação não fora de longa duração. Um dia escreveram-lhe de Cordes dizendo que se contavam coisas terríveis acerca de Frederico, que fugira do seminário de Albi, sem que se soubesse ao certo o que era feito dele.

O fiel Buvat ia-lhe no encalço, mas até àquela data ainda não tinha conseguido apanhá-lo. Por causa disso estava a Sr. a de Puylaurens num violento estado de desespero: pusera tantas esperanças naquele rapaz! Contudo, não dizia nada, não se queixava dele e dissimulava mesmo o agravamento do seu estado de saúde para que não pudessem suspeitar do motivo. Esperava esconder aquela fuga e reintegrar o sobrinho no seminário logo que Buvat o encontrasse.

Não foi ao seminário de Albi que Frederico foi reconduzido, mas ao de Saint-Nicolas, em Paris, onde a sua fuga era ignorada e foi ali que o Sr. de Mussidan o foi repreender asperamente.

Mas a intervenção paterna não produziu qualquer efeito: Frederico fugiu de Saint-Nicolas como tinha fugido de Albi. Novamente Buvat se pôs à sua procura por toda a parte onde se joga, não para o trazer para o seminário - a Sr. a de Puylaurens era uma devota demasiado sincera para querer fazer padre um rapaz daquele carácter -, mas para lhe pagar as dívidas e tirá-lo das situações vergonhosas ou miseráveis em que se encontrasse.

Ao mesmo tempo que Frederico perdia ao jogo o dinheiro da tia, Sebastião gastava-o em cavalos, trens e objectos de luxo de toda a espécie. Também ele contava com a herança da tia de Cordes, também ele tinha fixado a data em que devia entrar na posse da sua fortuna, e, ao findar aquele prazo, achava-se cheio de dívidas. Buvat veio uma vez liquidar aquelas dívidas enormes, depois uma segunda, uma terceira e uma quarta vez, e a quantia que devia trazer aumentava a cada viagem.

Chegou assim o momento em que Sebastião não ficava atrás de Frederico e em que Frederico não ficava atrás de Sebastião: eram iguais, perante o desespero de sua tia, que, cansada de ver sumirem-se somas consideráveis sem proveito para ninguém, resolveu tomar a seu respeito as mesmas medidas que tomara com o pai: encarregou o Dr. Le Genest de la Crochardière de lhes pagar, de quinze em quinze dias, uma pequena pensão, exactamente o que lhes era necessário para não morrerem de fome.

Vendo o caminho que os filhos levavam, pensara o Sr. de Mussidan que a Sr. a de Puylaurens, amando-os tão ternamente, morreria de desgosto. Com a sua idade, fraca como era, excitada pela cólera, desesperada pelas decepções e ferida pela perda do seu dinheiro, parecia que devia morrer. Era uma coisa natural. Era mesmo uma coisa obrigatória. E para ele seria uma consolação para as desilusões que os filhos lhe causavam. Contudo, a Sr. a de Puylaurens não tinha morrido. Todos julgavam que não viveria mais que alguns dias ou algumas horas; o médico não a abandonava, o cura tinha-a sacramentado, e voltava sempre à vida.

Das primeiras vezes, o Sr. de Mussidan não compreendera nada daquela resistência extraordinária; pouco a pouco, porém, fez-se luz no seu espírito: aquela solteirona não tinha coração, nem orgulho, nem dignidade. Se tivesse coração, não estaria esmagada sob a responsabilidade que lhe cabia no caso? Se fosse verdadeiramente piedosa, não teria sentido a mão de Deus pesar sobre ela? De quem era a culpa do que acontecia? Dela, só dela. Se não tivesse amimado louca e estupidamente aquelas crianças, se não as tivesse pervertido com desastradas liberalidades, sucederia o que se estava a passar? Educados por ele, teriam recebido uma educação viril; junto dele, teriam recebido lições práticas e ter-se-iam feito uns homens.

Que dor para um pai assistir à queda dos seus desgraçados filhos! Como estava longe da realidade o futuro que lhes tinha desejado: a embaixada para Sebastião e o bispado para Frederico!

Não era com a miserável pensão que lhes dava aquela velhaca que podiam viver; e, na situação em que ele se encontrava, também não os podia ajudar.

Para uma embaixada, para um bispado, poderia auxiliá-los, envidando todos os esforços da melhor vontade; mas para as posições subalternas a que estavam condenados não podia apoiá-los, e, com grande mágoa sua, teve de os abandonar.

Foi assim que Sebastião, sempre elegante, cheio de distinção, nobre dos pés à cabeça, apesar da sua queda, se empregou num costureiro da alta roda parisiense. Não era introdutor de embaixadores, mas apenas introdutor das belas mundanas junto do patrão, que tinha a vileza de lhe chamar meu caro visconde e a baixeza de só lhe pagar por aquela familiaridade cento e cinquenta francos por mês.

Por aquela miserável soma devia Sebastião estar no primeiro salão do costureiro, recebendo, com os seus modos elegantes, as senhoras que vinham encomendar ou provar os vestidos, entretê-las e acalmá-las quando se zangavam. Que vida, meu Deus!

Por seu lado, Frederico não era mais feliz. Como seu irmão, teve de procurar no trabalho o complemento necessário à pensão e entrara como croupier ao serviço dum homem que mantinha casas de jogo, no Verão, nos Pirenéus, e no Inverno, em Nice, um antigo lutador célebre na sua mocidade em todas as arenas do Midi, que se contentava agora em fazer cair no seu cesto o dinheiro dos jogadores ingénuos. Orgulhoso aquele, também, de ter um visconde ao seu serviço, apesar de a sua ambição ser ter naquele lugar um antigo ministro.

- E terei um - dizia ele. - O Grémio dos estrangeiros tem um ex-embaixador; eu terei o meu ministro. É questão de preço; não terá necessidade de dar as cartas; basta que passeie nobremente nos salões.

 

                   Desespero de Genoveva

Genoveva crescera.

Era agora uma menina de dez anos, graciosa, bonita, concentrada, com qualquer coisa de reservado e melancólico.

Do pai, tinha a pureza dos traços, a delicadeza e a elegância das formas; da mãe, a doçura da fisionomia, a ternura do olhar, a simplicidade das maneiras. Era, no conjunto, uma criança encantadora, de faces mimosas, nariz direito, boca pequena de lábios bem recortados, olhos profundos, uma fronte pura coroada por uma farta e anelada cabeleira loira.

Adorada pela mãe só fazia o que lhe apetecia desde que começou a ter vontade própria, e o que mais lhe agradava era brincar com a vizinha, a pequena Odília, ou ficar junto da mãe, muito quieta, vendo-a trabalhar.

O que sobretudo penalizava Angélica era não poder ensinar música a Genoveva, que, nesse particular, era verdadeiramente bem dotada.

- Ah! se eu tivesse uma filha como a sua! dizia muitas vezes a Sr. a Gueswiller, que se entretinha a fazer a pequenita cantar as músicas que ouvia da varanda.

Precisamente por não ter aprendido nada, gostaria a Sr. a de Mussidan que a filha aprendesse tudo: línguas, pintura e música. Pensava que, quantas mais coisas uma mulher souber, mais perfeita é. Era preciso que a filha, quando casasse, não sofresse perante o marido o que ela sofria; era necessário que fosse digna dele, que o compreendesse, que lhe agradasse, que se fizesse amar, que fossem um só espírito e um só coração.

Não podendo brincar com a sua amiga, Odília chamava Genoveva para vir assistir à sua lição, que lhe era dada pela irmã mais velha; e, enquanto durava a lição, Genoveva ficava de pé ao lado do piano, imóvel, silenciosa, recolhida, olhando ora para a música, ora para os dedos da sua amiga correndo sobre o teclado, a maior parte das vezes não vendo nada, absorvida em si mesma. Depois, quando acabava a lição, em vez de se pôr a correr com Odília, que só desejava esticar as pernas entorpecidas, dizia a Sofia:

- Toca qualquer coisa para eu ouvir.

- Que queres que eu toque?

Então indicava a música que queria ouvir; mas, em vez de dizer o título, que não sabia, cantava a passagem que mais a impressionara.

Quando o Sr. de Mussidan mobilou a casa, comprou um piano, mas apenas com o fim de completar a decoração. Ao voltar para casa, Genoveva abria o piano e procurava reproduzir o que tinha visto fazer e o que tinha ouvido, ou procurava simplesmente as combinações de sons que lhe agradavam ao ouvido.

Por assistir às lições de Odília, por escutar da varanda as outras crianças estudarem, havia exercitado tão bem o ouvido que sabia reconhecer o tom em que elas tocavam e por que tons passavam.

Era isso que fazia com que a Sr. a Gueswiller dissesse:

- Se eu tivesse uma filha como a sua! E era isso também que fazia Sofia dizer, quando dava a lição a Odília:

- Se fosses tão bem dotada como a Genoveva, como seria agradável ensinar-te!

Daí o querer dar lições a Genoveva, na esperança de que Odília, incitada por esta, se aplicasse mais ao estudo. E assim passaram as duas amiguinhas a trabalhar juntas.

À medida que Genoveva se aproximava dos dez anos, uma grande preocupação começava a dominar a Sr. a de Mussidan.

De facto, era aos dez anos que a Sr. a de Puylaurens se queria encarregar da sobrinha para a mandar educar num convento, e nada indicava que tivesse renunciado a esse projecto.

Não cessara de testemunhar o interesse por Genoveva, provando que pensava nela. No dia 1 de Janeiro mandava-lhe de presente um objecto de prata para uso de criança ou uma jóia; no dia do seu santo, outra prenda, apesar de essa data ser logo a seguir ao dia de Ano Novo; pelo seu aniversário natalício, nova prenda; finalmente, de tempos a tempos e sem data fixa, mandava-lhe toda a espécie de presentes: um cordeiro pela Páscoa; no Verão, ameixas e uvas; no Inverno, castanhas.

Visto a Sr. a de Puylaurens pensar tanto em Genoveva, não era de supor que se esquecesse do seu compromisso.

Muitas vezes a Sr. a de Mussidan, pesando bem os prós e os contras, pensava se haveria interesse para Genoveva em que aquele compromisso se realizasse.

Um dia, ao voltar do passeio habitual, o Sr. de Mussidan entrou em casa trazendo uma carta na mão.

- Sabe de quem é esta carta? - perguntou num tom furioso.

Angélica não lhe respondeu.

- Da Sr. a de Puylaurens. E sabe o que ela me diz?

Sem esperar pela resposta, que sabia não poder ser dada, o Sr. de Mussidan continuou:

- Pede-me Genoveva. Além disso, a carta é por de mais curiosa para que não a leia.

E começou a lê-la.

A Sr. a de Puylaurens lembra ao Sr. de Mussidan que tomou o compromisso de mandar educar a pequena Genoveva quando ela atingisse os dez anos. É chegado o momento de cumprir a sua promessa. Por consequência, a Sr. a de Puylaurens irá a Paris no fim do próximo mês, a fim de ir buscar a sua sobrinha e levá-la para Cordes. A sua intenção é mandá-la educar em sua casa por uma preceptora.

- Que pensa disto? - exclamou ele. Mas ela estava muito emocionada para lhe poder responder. Tirar-lhe a filha! Levá-la para Cordes! Só tinha ouvido aquilo. Só aquilo a tinha impressionado e também o abraço nervoso de Genoveva, que, ao ouvir a leitura daquela carta, viera para junto da mãe e, tendo-lhe agarrado a mão, apertava-a apaixonadamente, como que a dizer-lhe: Pertenço-te; tu não me abandonarás; não me levarão.

- É prodigioso! - prosseguiu ele. - Nem uma palavra a meu respeito. Aquela velha solteirona é um monstro de egoísmo. Imagina talvez que a minha filha lhe pertence. A minha filha é minha. E depois, o que vem a ser isso de preceptora? Nada sei. Nem uma palavra para mim!

No meio dos berros do Sr. de Mussidan, o que se podia ouvir mais distintamente era eu, sempre eu, nada mais do que eu.

Mas elas não o ouviam; de mãos dadas, fortemente apertadas, só um pensamento havia no seu espírito e no seu coração: a partida.

- Promete-me que não partirei - dizia a criança. - Promete-me, mamã.

E, repetindo sem cessar aquela palavra mamã, não parava de chorar e de soluçar, não querendo largar o pescoço da mãe.

- Preciso de falar com teu pai - dizia esta.

- Promete-me primeiro, e depois falarás; tu bem vês que ele está zangado com a tia.

Que o Sr. de Mussidan estivesse hoje zangado com a tia, isso não queria dizer que no dia seguinte não cedesse ao seu pedido. Nele a questão da herança dominava tudo, e o problema era ele vir a considerar a ida da filha favorável às suas pretensões.

Contudo, por pouco sossegada que estivesse perante tal situação, viu-se obrigada a prometer à filha o que ela tão desesperadamente lhe implorava:

- Promete-me, mamã.

Mas como manter a sua promessa, como reter Genoveva, no caso de o Sr. de Mussidan querer que ela partisse?

Era preciso encontrar um meio de evitar isso; era necessário, não só por ela, como sobretudo pela criança.

À noite, em vez de se deitar à hora do costume, pretextou um trabalho urgente e ficou só, para reflectir. Era um hábito seu, quando estava preocupada, pensar enquanto puxava pela agulha; à luz do candeeiro, no silêncio da noite, era mais livre e podia entregar-se melhor aos seus pensamentos.

Na manhã seguinte, enquanto seu marido se vestia, atreveu-se a falar- lhe da carta da Sr. a de Puylaurens procurando captar antes de tudo a benevolência do Sr. de Mussidan.

- Quanto mais penso naquela carta da Sr. a de Puylaurens mais a acho inexplicável.

- Diga antes abominável! Imperdoável!

- A Sr. a de Puylaurens é sua tia.

- Sem dúvida, sem dúvida.

- Como pode ela dispor de sua filha - prosseguiu a Sr. a de Mussidan - sem saber se tem tenção de lha confiar?

- Aquela velhaca imagina que tudo lhe é permitido.

- É certo que a estada no campo seria favorável a Genoveva.

- Se procura influenciar-me para que a mande para Cordes, aviso-a de que pode economizar o seu tempo; eu sei bem o que convém a minha filha.

- Desejo tão pouco que a mande para Cordes que até penso que a sua permanência junto da Sr. a de Puylaurens poderá ser perigosa.

- Em quê, se faz favor?

- Espera que Genoveva seja a herdeira de sua tia, não é verdade?

- Certamente.

- O senhor também foi herdeiro dela e, contudo, já o não é.

- Porque ela me deserdou.

- Deserdou-o porque a fez zangar.

- Não creio que levasse a maldade ao ponto de fazer isso à criança; não deixa de ter uma certa bondade; a maneira como se porta comigo não a impedirá de lhe fazer justiça.

- Não quero dizer que fizesse sofrer Genoveva, mas simplesmente que pode antipatizar com ela.

- Genoveva sabe fazer-se amar.

- Digo que, se decidisse mandá-la para Cordes, chegaria lá mal disposta. Bem sabe como gosta de si; ficaria desesperada por ter de o deixar, e nessa disposição podia suceder que ela acusasse a tia de ser a causa da separação.

- E então?

- Isso poderia ser perigoso, porque, se não for amável com a tia, esta pode embirrar com ela. Bem sabe como Genoveva é impressionável; se não se sente amada, se não se é meigo e terno com ela, em vez de se expandir, retrai-se e a Sr. a de Puylaurens, que naturalmente é exigente.

- E se, em vez de lhe tomar aversão, se lhe afeiçoa?

- Também é possível, embora não pareça provável, tendo em conta o carácter da Sr. a de Puylaurens por um lado, exigente e severa, e o de Genoveva por outro, tímida e meiga. Mas se o que diz sucedesse, isso em nada mudaria a situação de Genoveva, que não seria mais herdeira de sua tia do que o é neste momento.

- Isso parece-me provável, para não dizer certo.

- A situação de Genoveva é, pois, a seguinte: se consegue a afeição de sua tia, a herança fica tal qual está presentemente; se, pelo contrário, não consegue essa afeição, a herança pode ficar completamente perdida para ela. Nestas condições parece-me que é arriscado mandá-la para Cordes; vejo o que ela pode perder e não vejo o que tenha a ganhar. Tem muitas probabilidades contra ela e nenhuma a seu favor.

Fixou-a um momento.

- Sabe que não é nada mal raciocinado? disse ele.

- Uma mãe tem destes raciocínios.

Umas palavras que ele ainda disse mais lhe aumentaram a esperança:

- Estou verdadeiramente surpreendido que neste assunto se tenha preocupado tanto com o interesse e tão pouco com a dignidade; isso não a perturba a si, a dignidade.

Desde que a partida de Genoveva para Cordes era uma questão de dignidade, a Sr. a de Mussidan ficou tranquila: a sua filha não partiria.

 

             Morte da pobre Odília

Fora por simpatia e por amizade que a Sr. a Gueswiller tinha insistido com a Sr. a Raphélis para que desse lições a Genoveva; mas fora também, até certo ponto, por interesse pessoal, na esperança de que os progressos de Genoveva apressariam os de Odília.

A princípio, quando Genoveva começara a aprender música, fora Odília quem, meio a brincar, meio a sério, lhe dera as primeiras lições; mas a aluna depressa ultrapassou a professora, e foi Sofia, a irmã mais velha, quem tomou o lugar de Odília.

Odília era uma criança inteligente, mas só se sentava ao piano contra vontade. Gostava de música? Não gostava? Ninguém o sabia, pois nunca a interrogaram sobre esse assunto, que, para os Gueswiller, não podia ser discutido. Para eles, toda a gente gostava de música, como toda a gente respira.

Justamente, estudar com Genoveva, tão ricamente dotada, far-lhe-ia bem; e quando as duas crianças começaram a trabalhar juntas, o resultado foi excelente: Odília, conforme pôde, foi seguindo a sua amiguinha até ao dia em que esta, mais forte, a deixou para trás, cada vez a maior distância.

Fazer com que Genoveva recebesse lições da Sr. a Raphélis não era precisamente o melhor meio de encurtar aquela distância, visto que as faculdades naturais de Genoveva depressa, graças a essas lições, se transformaram em talento adquirido. Não era isso o que a Sr. a Gueswiller tivera em mente mas sim que a rivalidade estimulasse a filha.

Vendo donde a amiga partira e onde chegara, Odília seria atingida no seu amor-próprio e andaria para a frente.

- Repara em Genoveva.

Aquele repara em Genoveva era-lhe dito e repetido dez, vinte vezes por dia, durante as doze horas de trabalho que lhe impunham sem descanso, sem interrupção, das sete da manhã às oito da noite. Àquela frase, sempre a mesma, respondia invariavelmente:

- No que eu reparo é que Genoveva não estuda doze horas como eu.

- Porque estuda melhor do que tu; estuda como ela e não trabalharás tanto tempo.

Repara em Genoveva era o estribilho ao qual a Sr. a Gueswiller voltava sempre a propósito de tudo.

A maior parte das vezes Odília não respondia; porém, no seu rosto pálido, emoldurado de cabelos claros entrançados, passava um sorriso.

Mas outras vezes respondia:

- Genoveva, oh! Genoveva, essa, faz o que quer; e depois, ela não está cansada e eu estou! Tu não me queres acreditar quando digo que estou fatigada; acusas-me de ser preguiçosa; asseguro-te que não sou preguiçosa. Estou cansada! Tão cansada mesmo!

Não era porque não gostasse da filha que a Sr. a Gueswiller não queria acreditar naquela fadiga, mas porque não podia admitir que com boa vontade se não pudesse dominá-la. Se alguém estava cansada em casa, era ela. Se alguém tinha vontade de dormir a manhã na cama, era ela. Contudo, nunca cedera à fadiga. Desde que casara, só ficava na cama quando tinha os filhos; só nessa altura repousava, e não por muito tempo. Para ela o trabalho era uma lei natural, e só sentia antipatia ou desdém por aqueles que não trabalhavam; achava-os cobardes ou miseráveis.

- Vejam o Sr. de Mussidan - dizia ela aos filhos quando se queixavam. - Vejam ao que se chega quando se não trabalha.

Assim, tanto a filha como o pai lhe serviam de exemplos vivos: façam como aquela e não como este. Se o Sr. de Mussidan sentia por aquela vizinha mal penteada um perfeito desdém, ela sentia por aquele homem, sempre tão cuidado, um profundo desprezo.

- Essa megera acabará por matar os filhos com trabalho! - dizia o Sr. de Mussidan.

- Esse velho mandrião matará primeiro a mulher com trabalho - dizia a Sr. a Gueswillere depois a filha.

Desse modo, quando tentavam fazer-lhe ver que a pequena Odília estava bastante fraca e pálida, contentava-se em encolher os ombros.

- As suas irmãs eram assim - respondia ela

- e melhoraram; come pouco, quando comer melhor, ficará boa.

E acabava a conversa como mulher que nada quer ouvir ou acreditar; bem sabia como se educavam crianças; nunca suportaria que os seus criassem hábitos de preguiça: vejam o Sr. de Mussidan.

Todavia, por mais firme que fosse nos seus princípios, por mais dura que se mostrasse na sua estrita aplicação, acabou por ser obrigada a permitir a Odília, cada vez mais cansada, que repousasse.

A criança, que fora sempre alegre e brincalhona, tornara-se melancólica, procurando a solidão e os cantos sombrios, só pensando em descansar. Oh! mamã, estou tão fatigada, tão fatigada! Quando os irmãos, para a distrair, tentavam brincar com ela, começava a gritar, mal lhe tocavam. Durante semanas não queria comer; depois, de repente, devorava tudo o que lhe davam, o que logo tranquilizava a mãe: Quando se come, trabalha-se. Mas para trabalhar era preciso ter forças, e ela não as tinha, nem tão-pouco vivacidade nem boa cara. A pele descorada, terrosa, tão depressa estava seca como coberta de suores, que lhe inundavam os cabelos e o rosto.

A acrescentar a isso, um olhar brilhante a iluminar faces emagrecidas, que ainda pareciam mais definhadas por a cabeça ser volumosa.

Não tendo o descanso sido suficiente para a repousar, decidiu-se a Sr. a Gueswiller a chamar o médico, que aconselhou completo repouso, num quarto exposto ao sol.      

Odília estava tão habituada ao trabalho que, passados os primeiros momentos de repouso, caiu numa tristeza rabugenta.

- Vês como uma pessoa se aborrece quando não trabalha? - dizia-lhe a mãe constantemente.   

- Mas se eu não posso trabalhar! Não era trabalhar o que me aborrecia; era trabalhar sempre, sempre.

Agora, o que a aborrecia era, do quarto em que a instalaram, só ver os telhados da cidade imensa misturados abaixo dela numa confusão monótona, onde nada se destacava, a não ser de vez em quando os efeitos da luz e os rolos de fumo.

A fim de a distrair, a mãe pedira à Sr. a de Mussidan que deixasse ir Genoveva para junto dela quando esta não tivesse que estudar, e mesmo, quando fosse possível, deixá-la trabalhar junto de Odília. Seria fácil, sem dúvida, pôr um dos filhos junto da doente; mas isso far-lhes-ia perder tempo, e Odília, sobretudo, só estava contente quando tinha a amiguinha a seu lado.

- Estuda o teu piano ou não faças nada, pouco me importa, mas fica comigo - dizia ela muitas vezes.

Na verdade, não era absolutamente sincera. O que desejava, o que queria mesmo era que Geno veva não fizesse nada; uma vez, na ausência da mãe, disse-o expressamente.

- Aborrece-te? - perguntou Genoveva. Há muito tempo já que ela quase não se mexia na cama; ouvindo aquela pergunta, pôs-se a bater com os pés, a espernear debaixo da roupa.

- Aborrece-me! Aborrece-me! Aborrece-me!

- exclamou. - Faz-me chorar! Faz-me ranger os dentes! Pensas que não é exasperante ouvir todo o dia o piano, o violino, a harpa, o violoncelo? É de chorar! É de morrer!

E dizia aquilo com raiva, como se estivesse a desfiar um rosário de pragas, batendo ao mesmo tempo na cama.

Depois, acalmando-se um pouco, chamou a amiga:

- Vem cá.

E quando Genoveva se aproximou, disse-lhe, agarrando-lhe a mão e inclinando-se para ela:

- Se tu soubesses como ficaria contente se nunca mais estudasse piano, nunca mais!

- Gostas mais de harpa? - perguntou Genoveva.

- És estúpida! Nem harpa, nem piano, nem violino, nem nada.

Então, baixando a voz:

- Queria ir para o campo, para a Alsácia, e guardar vacas.

Genoveva ficou estupefacta.

- Se tu soubesses o que é guardar vacas! Há

dois anos fui à Alsácia e, enquanto lá estive, andei

a guardar vacas com a minha prima Aurélia. Íamos    

de manhã atrás das vacas, levando a comida num

cesto. Enquanto as vacas pastavam, brincávamos     

nos bosques; havia sebes, prados, ribeiros que    

faziam gluglu em cima dos seixos vermelhos.

Aquilo é que era uma música bonita!   

A alegria voltou-lhe; mas não as forças, nem a saúde; a magreza acentuara-se e a respiração era  curta; o mais pequeno esforço provocava-lhe sufocações.  

Um dia, quando Genoveva entrava em casa com a mãe, ouviu o médico dizer à Sr. a Gueswiller, no      patamar, que receava a asfixia causada por assistolia. Fixou aquelas duas palavras e procurou no dicionário; não conseguiu encontrar assistolia, mas achou asfixia: morte por estrangulação. Ficou aterrada. Odília estava então em perigo de morte?

Aquilo tornou-lhe o sono leve. Uma noite acordou com o ruído duma porta que se abria, e no vestíbulo ouviu a voz chorosa da Sr. a Gueswiller.

- Morreu a minha pobre Odília! Oh! meu    Deus!

 

                   Genoveva vai ao médico

A morte de Odília trouxe grandes modificações à vida de Genoveva. Não só modificações pelo desgosto que lhe causou, mas ainda modificações nos seus hábitos e no seu trabalho.

Apesar de o Sr. de Mussidan saber pouco do que se passava em casa dos vizinhos, ouvira, no entanto, falar do duro trabalho a que aquela pequena estava condenada.

- Oh mamã, se tu soubesses como Odília está hoje cansada - dizia muitas vezes Genoveva durante a refeição.

Àquilo respondia sempre:

- É porque ela não tem coragem; as crianças têm de trabalhar.

Nele, aquela resposta era apenas teórica, uma opinião sobre o trabalho e os deveres das crianças que exprimia, porque no fundo era-lhe completamente indiferente que aquela pequena estivesse ou não condenada a um trabalho duro.

Mas no enterro, a que foi para dar uma honra àquela gente, ouviu certas conversas que o fizeram pensar sobre o método de trabalho imposto pela Sr. a Gueswiller aos filhos.

- Dá pena ver o desgosto daquela pobre mãe.

- Deve ter um desgosto tanto maior quanto se pode censurar de ter causado a morte da filha.

- É, pois, verdade que a obrigava a trabalhar muito?

- Doze horas por dia sem descansar, sem nunca sair; uma criança sempre fechada em casa, sem apanhar ar, enclausurada num quarto e amarrada ao piano de manhã à noite; morreu esfalfada.

- Foi uma lição para ela.

- Demasiado tarde.

Não foi só para a Sr. a Gueswiller que aquela morte serviu de lição; ouvindo aquelas conversas, o Sr. de Mussidan inquietou-se, e quando, ao sair do cemitério de Saint-Ouen, alcançou os Campos Elíseos para dar o seu costumado passeio, repetiu mais de uma vez uma frase que o tinha impressionado: Não é só obrigando as crianças a transportar cargas pesadas de mais para as suas forças que as matam.

Não tinha por hábito, quando passeava, entregar-se aos seus pensamentos; passeava por passear, para se distrair, para ver o que havia de novo, para se mostrar e colher, ao passar, os olhares aprovadores, os murmúrios lisonjeiros que acreditava provocar por onde quer que passasse, e nisso tudo havia de sobejo com que se ocupar. Mas nesse dia nada observava nem ouvia à sua volta.

Se tinham matado a pequena do lado, também podiam matar-lhe a sua filha.

Matar-lhe a filha! Mas ele amava a filha! Tinha baseado a sua vida na dela! Além das suas quali dades morais, além da sua gentileza, do seu encanto, aquela criança valia três milhões!

Não estaria já a filha doente?

Aquela ideia angustiou-o de tal maneira que interrompeu o passeio - o que não lhe sucedia há mais de dez anos - para voltar a Montmartre. Tinha pressa de ver, de saber.

Ao subir a escada ouviu um piano, o seu, e reconheceu o exercício que a filha andava a estudar há alguns dias.

Como? Ela estava ao piano? Mas aquilo era absurdo!

Abriu a porta impetuosamente e correu para a sala:

- Porque estás a tocar?

Surpreendida com aquela pergunta, olhou-o sem responder.

- Porque estás a tocar? - voltou a perguntar.

- Porque é a hora de estudar. Não faz mal. Não é por isso que esqueço ou penso menos em Odília.

Disse aquilo tristemente, com as lágrimas nos olhos.

- Não se trata de Odília, mas de ti; anda cá. Deixou o piano e dirigiu- se ao pai.

- Olha para mim.

Olhou-o, um pouco inquieta. Que teria feito que fosse digno de censura?

- Não estás mais pálida do que habitualmente? Não respondeu.

- Pergunto-te se não estás mais pálida.

- Mas... não sei.

- Não estás doente?

- Não.

- Responde-me francamente. Não é para te ralhar que estou a interrogar-te. Se estivesses doente a culpa não era tua.

- Não estou doente.

- Almoçaste bem esta manhã?

- O pai viu.

- Não, não vi... Estava preocupado e não reparei no que comeste. Tinhas apetite?

- Não.

- Ah! não tinhas apetite. Porquê?

- Porque. porque pensava em Odília; havia salsichas com couve lombarda. e salsichas com couve lombarda era justamente o prato preferido de Odília.

- É parvoíce pensar nos outros quando se está a comer; sobretudo pensar nos mortos. De que lhes serve?

- Não o fiz de propósito.

- Deves pensar em ti; comer coisas substanciais que te alimentem. Deixa ver a mão.

Apalpou-a demoradamente; depois os braços:

- Não te doem?

- Não.

- Nem os ossos?

- Absolutamente nada.

- Tens a certeza?

- Tenho.

- E o peito? E as pernas?

- Nem o peito nem as pernas.

- Ainda bem; mas, se te sentires mal, diz-mo imediatamente, ouviste?

- Sim, papá.

Depois de esperar um momento e vendo que não lhe perguntava mais nada, foi para o piano, a fim de continuar a estudar; mas o pai reteve-a:

- Basta de trabalho por hoje; não quero que te canses.

Foi só à noite, quando Genoveva estava deitada e não podia ouvir o que os pais diziam, que a Sr. a de Mussidan teve a explicação daquela intervenção extraordinária.

- Fique sabendo, minha senhora, que a acho muito imprudente - disse ele, severamente.

Era então a culpada? Porquê?

- Quando desejou que a sua filha estudasse com essa Sr. a Raphélis para concorrer ao Conservatório, não lhe fiz objecções. Estava tão entusiasmada com essa ideia que não a quis contrariar. Mas pensei que a sua ternura maternal soubesse manter a sua ambição dentro de certos limites. Foi assim que fez?

- Não o compreendo.

- Diga antes que não lhe convém compreender-me. Explico-me. A sua filha não tem trabalhado      de mais? Aquela morte deve servir-nos de exemplo, porque a pequena foi morta pela mãe... pelo trabalho forçado a que a mãe a condenou, se assim     prefere. Não condenou também a sua a um trabalho demasiado duro?

- Meu Deus! O que é que lhe faz crer...

- A minha prudência, a minha ternura paternal. Lá por ter deixado a educação de Genoveva a seu cuidado, não quer dizer que a abandonei; velo por ela. Enquanto se deixa seduzir por essa Sr. a

Raphélis, eu, que estou de parte, julgo as coisas e peso-as. Pois bem! Declaro-lhe que não deixarei explorar a minha filha.

- Mas afianço-lhe que Genoveva não trabalha de mais! - exclamou ela, assustada.

- A senhora não o sabe.

- Ela não está doente.

- A senhora não o sabe. Além disso, já seria   tarde se por acaso estivesse doente. Devo velar por que não adoeça, e é por isso que lhe digo que, amanhã, a levarei a casa de Carbonneau que é um bom médico e a quem pedirei que a examine. Não quero que, por ignorância, a senhora exponha a saúde de minha filha. Não quero que matem a minha filha, como mataram essa pequena dos vizinhos.    

Apesar da maneira como aquelas observações lhe foram feitas, a Sr. a de Mussidan sentiu-se satisfeita: vinham dum pai que ama a filha, que se inquieta e se assusta por sua causa.

Não era natural que, devido à comoção provocada pela morte de Odília, aquela inquietação se tivesse traduzido duma forma tão violenta?

E depois, talvez merecesse um pouco as suas censuras; talvez tivesse sido imprudente. Era com o coração que via a filha, não com os olhos, e achava-lhe todos os méritos, todas as qualidades: a beleza, a inteligência, a bondade, a generosidade, a saúde. Pode ser que neste ponto, mas só neste ponto, se enganasse: talvez aquela saúde não fosse tão boa como pensara.

Se havia motivo para Genoveva estar orgulhosa de sair com o seu papá, não o havia para estar alegre, visto não terem trocado duas palavras de Montmartre à Praça Vendôme, onde morava o médico; não se atrevia a fazer perguntas àquele papá que não pensava em conversar com ela e que só quando chegaram à esquina da Rua de la Paix lhe dirigiu a palavra:

- Põe-te direita; estão a olhar para mim. Importava-lhe bem que olhassem para eles! Ela só pensava em olhar à sua volta.

- Não digas nada ao médico - recomendou-lhe ao subir a escada de Carbonneau. - Deixa-me ser eu a falar. Responderás apenas quando te interrogarem.

Depois de duas horas de espera foram introduzidos no gabinete de Carbonneau, a quem o Sr. De Mussidan declinou o seu nome, sem que isso produzisse qualquer impressão ao médico.

- É por causa desta criança que vem ao meu consultório?

- Sim, senhor, e pela seguinte razão: a saúde desta criança é preciosa, extremamente preciosa.

Aquelas palavras, embora ditas com grande gravidade, também não impressionaram o médico, que achava preciosa a saúde de todas as crianças.

- Desde pequenina que esta criança mostra aptidões excepcionais para a música, de modo que a mãe teve a ideia de lhe fazer obter o primeiro prémio do Conservatório.

- Que idade tem ela?

- Onze anos.

- E tem probabilidades?

- A professora tem todas as esperanças. Mas as aptidões não chegam para obter o primeiro prémio nesta idade; por isso a fazem trabalhar, e trabalhar bastante. Trouxe-a para que a examine e me diga se está em estado de suportar esse trabalho.

- A que chama trabalhar muito? Quantas horas por dia?

- Sete ou oito horas.

- Que exercício físico faz ela?

- Vai ao Conservatório e volta.

- Que doenças já teve?

- Nunca teve qualquer doença grave.

- Teria pena, minha filha, de deixar de estudar piano?

- Oh sim, senhor, e, depois, a Sr. a Raphélis também teria.

- E não deseja desgostar a Sr. a Raphélis, não é verdade?

- É tão boa!

- Fique descansada; não desgostarei nem uma nem outra.

Dirigindo-se ao Sr. de Mussidan:

- A sua casa tem boas condições?

- A situação da minha casa é admirável; ar, luz, sol, e está exposta ao norte e ao sul.

- Tem jardim?

- Não. Mas nestas condições de bom ar e extensão. de vista, um jardim não teria para mim qualquer atractivo.

- Serviria de lugar de recreio a esta criança; mas, visto que não o tem, podemos facilmente substituí-lo. Escute o que lhe aconselho: duas a três horas de exercício a pé todos os dias, qualquer que seja o estado do tempo. É preciso caminhar ao ar livre. Só confie, pois, esta criança a alguém que tenha a certeza de não se entreter a vaguear.

- Não a confiarei a ninguém; serei eu que a acompanharei nessas três horas de exercício; a sua vida é preciosa de mais para que a confie a qualquer outra pessoa.

 

                 Genoveva conhece Ernesto

Quando o Sr. de Mussidan respondeu altivamente ao médico que não confiaria a sua filha a ninguém e que a acompanharia durante as três horas de exercício, não pensou que era preciso andar a passos largos. Só tivera a ideia de levar a filha com ele quando saísse, e como a pequena andava bem vestida, como era bonita, nada havia nisso de desagradável.

Mas depois de começar as saídas com a filha é que sentiu as dificuldades. Um homem como ele, habituado a mostrar-se nos boulevards onde era conhecido, não anda depressa; passeia por passear e não se expõe, andando rapidamente, a que pensem que vai a qualquer parte ou que faz compras. Por nada deste mundo se exporia a isso. Consentindo em mudar de andamento, era já dar uma grande prova de ternura paternal, mas punha como condição àquele sacrifício não se comprometer perante a sociedade.

Todos os dias, pois, ao soar o meio-dia, levantava-se da mesa para sair. Era preciso que Genoveva estivesse vestida e calçada com antecedência e que só lhe faltasse pôr o chapéu e o casaco; durante esse tempo, preparava-se ele diante do espelho da sala, que era todo para ele, evidentemente, como convém ao chefe da família, envolvendo-se no seu capote, inclinando cuidadosamente o chapéu sobre a orelha, de maneira a ficar distinto e não vulgar, ajeitando sobre as fontes as grossas madeixas dos seus cabelos brancos.

- Partamos - dizia.

E, quer ela estivesse pronta quer não, tivesse ou não beijado a mãe, descia a escada sem se preocupar em ver se ela o seguia.

Só ao domingo é que não acompanhava a filha; nesse dia a Avenida de Clichy estava cheia de gente endomingada, de mulheres em cabelo e de grupos cantando, o que o aborrecia.

Fazia-se substituir pela condessa e ia muito tranquilamente retemperar-se nos Campos Elíseos ou no Bosque.

- Já sabe - dizia ele à mulher - três horas de marcha; confio-lha; arranje-se de maneira que ela não sinta a minha falta.

E a Sr. a de Mussidan tinha, de facto, esse cuidado.

Quando o tempo o permitia iam a Asnières a casa dos velhos amigos, e Genoveva tinha a liberdade de brincar.

Quando chovia, iam simplesmente até ao alto de Montmartre, a casa dos amigos dos Gueswiller que Genoveva conhecera quando ia brincar com Odília.

Aqueles amigos dos Gueswiller eram pessoas simples e isso fizera com que a Sr. a de Mussidan se relacionasse imediatamente com eles.

Uma mãe viúva e seu filho; a mãe, a Sr. Faré, uma camponesa borgonhesa que devia ter sido soberba aos vinte anos e que ainda era linda aos quarenta, alta, bem feita, o rosto regular, com meigos olhos castanhos, mas cuja expressão, móvel e inquieta, evidenciava ser surda-muda; o filho, Ernesto Faré, um rapaz de vinte anos, que herdara a beleza da mãe, mas não a sua enfermidade, pois era dotado dum tom de voz encantador; além disso, sólido como um camponês e altivo como se os seus antepassados tivessem brilhado na corte; bom rapaz, alegre, mais criança que um parisiense da sua idade.

Contudo, aquela criança já ganhava a sua vida e a de sua mãe. Aos quinze anos ficou órfão e, com algumas poucas centenas de francos. Viver como? A mãe pouco podia trabalhar: para que serve uma surda-muda na luta pela existência? Ele era praticante no cartório do escrivão da sua aldeia natal, onde ganhava trinta francos por mês, sem comida nem dormida. Falecido seu pai, era preciso, para se sustentar e a sua mãe, acrescentar alguma coisa, pouco que fosse, aquela quantia. Depois de muito procurar, resolveu mandar uma novela ao jornal da terra, imaginando, na sua ingénua ignorância, que os jornais pagam o que lhes mandam daquele modo. Essa novela copiou- a ele com a sua melhor letra e quase a tornou um modelo de çaligrafia; depois, com uma angústia terrível, pô-la no correio. Três dias mais tarde recebia uma resposta na qual lhe pediam para passar pelo escritório do jornal para falarem e ali encontrou o redactor-chefe, que era ao mesmo tempo compositor, impressor, revisor e livreiro.

- Sou o redactor-chefe do Esperança. Que deseja?

- Sou a pessoa a quem escreveu em resposta ao envio da minha novela.

- Como? Você? Um garoto? Devia ter desconfiado disso pelos erros de ortografia. Donde copiou aquilo, meu rapaz?

- Não o copiei, inventei-o.

- Tem invenção, imaginação e estilo, mas a sua ortografia não vale dois soldos; a letra, no entanto, é bonita. Posso admiti-lo ao meu serviço: durante a semana ensinar-lhe-ei o ofício; às quartas e aos sábados, escreverá os artigos do jornal que lhe pedir e eu corrigirei a sua ortografia. Dar-lhe-ei oitenta francos por mês no primeiro ano e cem francos no segundo.

Era a fortuna para ele; durante quatro anos foi impressor no Esperança, a cem francos por mês.

Ao cabo desses quatro anos, o jornal, a tipografia, a livraria e a papelaria faliram, e o pobre redactor-chefe separou-se do seu garoto.

- Deves ir para Paris, Faré - dissera-lhe ele.

- É lá o teu lugar. Tens talento, bastante talento. Perdoa-me por não to ter dito mais cedo. Mas escuta o meu conselho: livra-te dos cafés e de certas companhias; perderias o teu estilo e só farias o que fizessem os que te rodeassem; passarias para o nível da sua mediocridade.

Foi então que viera com a mãe para Montmartre, para aquela casinha da Rua Girardon.

Em Paris, porém, os seus cuidados com a mãe transformaram-se em pesada responsabilidade. Na aldeia, em casa, onde ela vivia rodeada de pessoas conhecidas, a Sr. a Faré podia suportar a triste solidão a que a votava a sua enfermidade; tinha os seus hábitos, a companhia que nos fazem os objectos amados, o sorriso dum vizinho, a alegria do campo, o movimento das nuvens, o abanar das árvores, o fumo que sobe por cima do telhado do lado. Mas que faria ela em Paris entre quatro paredes, ela que não podia ouvir o rumor da grande cidade e que se teria perdido nela mais facilmente do que num bosque? Era preciso, pois, que lhe desse o equivalente da sua aldeia.

Fora por isso que escolhera a casa da Rua Girardon, donde desfrutaria duma vista ampla, dum jardim para cultivar, de erva, de árvores; onde poderia ter galinhas, uma cabra.

Com os cem francos que ganhava no Esperança conseguira arranjar algumas economias e, sobretudo, graças a algumas novelas publicadas em diversos jornais de Paris; de sorte que, para a mudança, dispunha de algumas centenas de francos que lhe permitiram comprar os móveis estritamente indispensáveis à sua instalação, bem como as galinhas e a cabra que desejava.

Se as novelas não lhe tinham rendido muito dinheiro, davam-lhe pelo menos a possibilidade de se apresentar nos jornais que as publicaram sem ter de responder aos contínuos que lhe perguntavam o nome a terrível frase: Não me conhecem. Mas nem por isso o receberam melhor: Não precisamos de ninguém neste momento, mas conte comigo para a primeira oportunidade.

Só num jornal é que lhe deram uma resposta afirmativa:

- Que sabe fazer?

- Mas.

- Quero dizer, tem alguma especialidade?

- Não.

- Algum curso?

- Não.

- Com a breca! Que sabe fazer então?

- Julgo ter imaginação.

- Vejamos. Desejava fazer qualquer coisa por si. Foi criado no campo, não é verdade?

- Sim.

- Sabe como cresce o trigo?

- Sim.

- Não o confunde com a aveia?

- Nunca.

- Conhece o feijão, as batatas, as cenouras e as cebolas?

Perguntava a si mesmo se não estavam a zombar dele. Contudo, respondeu afirmativamente.

- Então tenho o que lhe convém: fará a reportagem dos mercados e feiras e o boletim comercial.

Acostumou-se depressa, mas isso não bastava à sua ambição; não era para isso que desejava uma pena. Viveu então a vida dos principiantes, procurando colocar onde podia um artigo, uma novela, versos, uma peça, e foi correndo os jornais e os teatros que encontrou o mais velho dos Gueswiller, Luciano, que fazia com a música o mesmo que ele com a prosa.

Daquelas relações entre dois jovens confiantes e entusiastas resultou uma sólida amizade. Faré tinha ido a casa dos Gueswiller, e Luciano, com o irmão e as irmãs, fora a casa da Sr. a Faré; não se envergonhava dela, nem por ser uma camponesa, nem por ser surda-muda; pelo contrário, gostava que vissem como era bondosa, meiga, e como eles se amavam.

Fora esse sentimento que o levara a convidar a Sr. a de Mussidan a ir algumas vezes, ao domingo, à Rua Girardon, com a sua linda filha, a qual, sem dúvida, se sentiria contente de correr à vontade num jardim, beber leite de cabra que ela mesma ordenharia se pudesse.

E, de facto, Genoveva sentiu-se contente com as horas que lá passou e que, pelo exercício, valiam bem aquelas em que trotava atrás do pai na lama da Avenida Clichy.

À medida que a Primavera se aproximava, as visitas à Rua Girardon tornavam-se cada vez mais agradáveis para Genoveva. O jardim animava-se, alegrava-se, transformando-se de semana para semana. Um domingo, no sítio onde oito dias antes deixara a terra nua, encontrou um canteiro de açafrão florido, animando aquele canto do jardim com as suas flores amarelas. No domingo seguinte, foi uma cercadura de prímulas que estavam floridas e de que Ernesto lhe ofereceu um ramo, que conservou frescas durante oito dias em cima do piano, mudando-lhes cuidadosamente a água todos os dias. Depois foram as árvores de fruto que começaram sucessivamente a florir: primeiro, o damasqueiro, cujas pétalas esvoaçavam como pequenas borboletas, quando a brisa as separava das corolas e as semeava sobre a erva verdejante ou sobre as folhas novas, mal abertas, dos lilases seguiram-se as cerejeiras, as pereiras, as macieiras, de tal modo que num dado momento aquele jardinzinho estava todo branco, numa moldura verde formada pela sebe de lilases.

Quando se cansava de brincar, sentava-se no alto do jardim para ver o Sol pôr-se num fundo de ouro ou no meio dum incêndio que parecia devorar o monte Valérien e de lá atingir Paris; sentava-se em companhia de Ernesto, pois os Gueswiller pouco se preocupavam com o pôr do Sol. Que lhes importava que houvesse no céu nuvens vermelhas ou acobreadas? Gostavam mais de entrar em casa e beber uma chávena de leite de cabra; mas aquelas nuvens interessavam Ernesto, e, a ela, aquilo divertia-a, encantava- a ouvi-lo, quando lhe falava assim, afectuosamente, com a sua voz harmoniosa; nunca lhe respondia, mas escutava-o, e mais tarde, sozinha, pensava no que ele lhe dissera; era como se lhe tivesse aberto as portas dum mundo novo e desconhecido. Como se assemelhava pouco a Luciano e a Fausto, que nunca se ocupavam dela ou que a repeliam quando lhes pedia qualquer explicação! Ele, pelo contrário, estava sempre disposto, sempre atento, e, além disso, tão meigo, tão afectuoso, um irmão, e mesmo mais do que um irmão, porque nem Luciano nem Fausto eram assim com as irmãs.

Falavam muitas vezes do concurso.

- Verá como farei publicar lindos artigos nos jornais quando receber o prémio - dizia ele. Talvez os possa fazer mesmo, porque espero não ficar sempre nos mercados e feiras.

- Como isso o deve aborrecer!

- Sim, mas faz-me viver, é o principal; antes de pensar em mim, no que me agrada, devo pensar em minha mãe.

- É bom ganhar-se para aqueles a quem amamos, não é verdade?

- É agradável e, ao mesmo tempo, dá-nos um sentimento de orgulho; mas espero sair em breve disto, sem comprometer por causa disso o nosso pão quotidiano.

- Conta com as suas melodias que Luciano musicou?

- Um pouco, mas, verdade seja, não muito; conto que se aperceberão que posso fazer mais e melhor do que o artigo dos mercados; conto também com a minha peça, que acabará talvez por ser aceite em qualquer parte. Mas que o que espero se realize ou não, isso não impedirá que tenha uma boa crítica.

- Para isso é preciso que eu obtenha o prémio. Obtê-lo-ei?

Faré não tinha dúvidas, porque sentia pelo talento de Genoveva uma verdadeira admiração. Como a sua maneira de tocar era diferente da de Sofia Gueswiller! Era um encanto ouvi-la e vê-la. Assim, quando voltava de Paris, em vez de seguir o caminho mais curto, passava muitas vezes pela Praça Dancourt e pedia licença à Sr. a de Mussidan para ouvir Genoveva. E essa licença era-lhe sempre concedida, porque a Sr. a de Mussidan sentia uma grande simpatia por aquele filho tão bom e afectuoso, por aquele rapaz de vinte anos, forte e corajoso como um pai de família, por aquele enérgico trabalhador que, depois dos seus dias de fadiga, passava a maior parte das noites sentado a uma mesa a escrever, onde a mãe, que se levantava cedo, como verdadeira camponesa que era, o surpreendera mais de uma vez. E, apesar disso, mantendo-se criança, jovem de carácter e de maneiras, brincalhão como um garoto, sendo o primeiro a divertir-se nos jogos que os pequenos Gueswiller e Genoveva organizavam, apesar dos gracejos de Luciano.

Era com prazer que ela tocava para ele, não os seus estudos monótonos, que abandonava imediatamente, mas qualquer trecho que sabia agradar-lhe: um rondó, uma sonata, variações de Mozart, que para ele era o próprio génio da música e de que algumas vezes, ao domingo, lhe contava a vida tão tocante e tão poética.

Era a única pessoa diante da qual gostava de tocar; diante dos Gueswiller não se sentia à vontade, porque nos seus aplausos havia sempre observações que traíam um pouco de inveja; seu pai não se interessava por aquelas coisas e sua mãe admirava tudo, mesmo os seus erros.

Uma das suas qualidades era uma memória rara, que lhe permitia tocar tudo de ouvido. Um dia tocou assim um nocturno, que ele aplaudiu.

- Acha bem? - perguntou ela.

- Encantador, original, emocionante. De quem é?

- Adivinhe.

- Do jovem Chopin.

- Oh! não; não é tão bom que mereça tal honra!

- Torne a tocar. Tocou-o pela segunda vez.

- Prometa-me não dizer nada a ninguém, sobretudo aos Gueswiller, e dir-lhe-ia de quem é.

- Então é de.

- Pois bem! sim, isto é, pode ser que seja meu, mas não tenho a certeza: tenho tantas músicas na cabeça! Por isso deve calar-se, senão fariam troça de mim; só à mamã e a si é que me atrevo a dizer isto.

Nunca a Sr. a de Mussidan e Genoveva jantavam na Rua Girardon, pois deviam regressar a casa a tempo de o jantar do Sr. de Mussidan não sofrer qualquer atraso por causa do passeio.

 

             Genoveva vence o concurso

A grande preocupação de Genoveva era saber qual seria o trecho do concurso. Se fosse Chopin, Mendelssohn ou Hummel, estaria perdida; as dificuldades duns e o sentimento doutro não eram para a sua idade, segundo dizia a Sr. a Raphélis.

Felizmente, estes foram afastados, e foi o allegro do 5. o concerto de Herz o trecho escolhido, isto é, um trecho que Genoveva podia executar bem e sem qualquer dificuldade.

- Agora, minha filha - disse-lhe a Sr. a Raphélis ao dar-lhe a notícia -, é de si que depende receber ou não o prémio.

Conhecia aquele concerto, porque a Sr. a Raphélis já lho havia feito estudar; mas isso não era suficiente para o concurso.

- Sempre que tiver ocasião de tocar o trecho

- dissera-lhe a Sr. a Raphélis - toque-o. Se tiver pessoas cultas para ouvir, tanto melhor; se só tiver ignorantes, toque-o, apesar de tudo.

Os únicos músicos que ela conhecia eram os Gueswiller; mas todos eles, rapazes e raparigas, estavam na febre dos concursos; cada um tinha o seu concerto ou o equivalente na cabeça; assim, pouco a escutavam; escutavam-se a eles mesmos.

- Sim, está bem; mas o meu é que é difícil! Também tinha os irmãos, mas esses não estavam na categoria daqueles a quem a Sr. a Raphélis chamava cultos, pois só lhes interessavam as consequências do concurso.

O único ouvinte que a escutava seriamente era Ernesto.

- Se fosse músico - dizia ele muitas vezes -, far-lhe-ia observações úteis; mas, embora esteja na categoria dos ignorantes, há, no entanto, um aspecto de que posso falar: é a maneira como toca. Pode crer que, quando o júri vir chegar uma bela pequenita que possui toda a graciosidade, toda a gentileza, a simplicidade, a ingenuidade, o encanto duma criança e que a isso alia já o talento duma mulher, ficará maravilhado. Pode tocar bem, que ele achará muito bem.

Chegou um momento em que a Sr. a Raphélis não se contentou com o público que a sua aluna podia reunir e levou-a a casa de grandes pianistas. Entre eles encontrava-se o autor do concerto. Que grande emoção isso causou a Genoveva.

Mas também que alegria, quando o mestre, depois de a ter escutado, lhe pegou ao colo e, beijando-a, lhe disse:

- Quando me pedirem para tocar o meu concerto, será a menina que o tocará; é um anjinho.

Aquela frase, quando a recordava, dava-lhe confiança e não voltou a acusar-se de ser demasiado orgulhosa ao murmurar baixinho, antes de adormecer: Talvez receba o prémio. Aliás, o que ela dizia a si mesma repetia-lho a Sr. a Raphélis a cada instante. Receberá o prémio.

Contudo, no dia decisivo, chegou ao Conservatório toda trémula, acompanhada da mãe, ainda mais perturbada do que ela. Desejaria ter o pai junto de si e teve mesmo a coragem de lho dizer na véspera; mas ele respondeu-lhe nobremente que um homem como ele não se mostra naqueles sítios.

Faré estava no pátio, passeando dum lado para o outro; veio ter com ela.

- Está cá?

- Pensava realmente que não viria?

- E o seu jornal?

- Abandonei os mercados.

Depois, voltando-se para a Sr. a de Mussidan:

- Como ela está bonita!

Aquelas palavras tiveram tanto valor para Genoveva como as do autor do concerto, e foi com coragem que enfrentou as suas rivais ao entrar na sala onde deviam esperar, fechadas à chave, o momento de aparecer perante o júri.

A espera foi longa para Genoveva. O seu número era um dos últimos, e, embora não dirigissem a palavra nem a ela nem à mãe, as observações que ouviam não eram de molde a tranquilizá-las.

Finalmente, foi chamada. A Sr. a de Mussidan desejaria beijá-la, mas não ousou fazê-lo e contentou-se em apertar-lhe a mão quando a deixou.

Por mais habituada que Genoveva estivesse a tocar em público, teve um momento de hesitação e deu um passo atrás quando se viu num palco de teatro, com o público diante dela a mirá-la; se a Sr. a Raphélis não a tivesse seguido, teria certamente voltado para os bastidores.

Vendo aparecer aquela garota e ouvindo o seu nome, um murmúrio se elevou na sala:

- É o pequeno prodígio da Sr. a Raphélis. Muito gentil.

O próprio júri parecia ter acordado: era evidente que a iam escutar; inclinando-se ao ouvido uns dos outros cochichavam entre si. Felizmente para ela, Genoveva não via nada, não ouvia nada; sentada ao piano, escutava a Sr. a Raphélis, colocada à sua esquerda, que a animava.

De facto, assim aconteceu e por diversas vezes estalaram os aplausos, que redobraram quando terminou o último acorde.

- O prémio é seu - disse-lhe a Sr. a Raphélis. A seguir ao concerto vinha o trecho a ler à primeira vista; contudo, não começou logo que lho puseram diante dos olhos.

- Limpe o teclado - murmurou-lhe ao ouvido a Sr. a Raphélis - e as mãos tão devagar quanto possa.

E enquanto Genoveva assim procedia, a Sr. a Raphélis solfejava baixinho ao ouvido dela a primeira linha do trecho e sobretudo a passagem que devia enganar a aluna.

- Pode transportá-la?

- Julgo que sim.

- Então comece.

Não foram os aplausos que tinham acolhido a execução brilhante do concerto, mas algumas exclamações de admiração que mostravam que faziam justiça ao saber da pianista. Genoveva voltou para os bastidores, onde esperou, com a mãe, que as outras alunas terminassem as provas e que o júri desse a conhecer a sua decisão.

Finalmente, chamaram as premiadas: ela fazia parte destas, e com elas, em bicha, voltou ao palco.

- Menina de Mussidan - disse o presidente do concurso -, o júri atribui-lhe o primeiro prémio.

O êxito de Genoveva fora bastante grande, bastante estrondoso, para corresponder às esperanças.

Pediram-lhe para ir tocar em diversos salões e, graças à publicidade que Faré lhe fazia, indo a todos os jornais, dizendo uma palavra aqui, insinuando um pequeno artigo acolá, recomendando-a a uns, gabando-a a outros, achou-se na moda. Teremos a pequena Mussidan.

E quando a pequena Mussidan tocava em qualquer parte, Faré fazia no dia seguinte novas diligências no sentido de os seus triunfos serem conhecidos.

Mas as esperanças de Genoveva é que não se realizaram: não houve necessidade de mandar fazer bonitos vestidos para a Sr. a de Mussidan, porque não era a mãe quem acompanhava a filha, mas o pai.

O lugar da condessa não era na sociedade; não saberia apresentar-se, nem, sobretudo, exibir-se; com ela, o nome de Mussidan seria comprometido, e depois, consideração não menos importante, perderia tempo. Visto ser a ela que competia pro ver às despesas da casa, não ia alterar os hábitos adquiridos. Continuar a trabalhar não custa; o que é penoso é começar. Valia mais deixá-la entregue ao seu trabalho.

Cada um com a sua tarefa: enquanto a mãe trabalhava em casa para as necessidades da família, o pai roubaria algumas horas ao seu repouso para acompanhar a filha na sociedade, onde se apresentava, não como pai da artista, mas como gentil-homem, o que era útil à criança.

A primeira casa onde Genoveva tocou foi na da marquesa de Lucillière, e aquela estreia fora habilmente escolhida para a tornar conhecida, porque a marquesa, sempre à espreita das curiosidades e das personalidades em destaque que podiam até certo ponto substituir o entusiasmo, a mocidade e a beleza que a idade lhe fizera perder, possuía um dos salões mais em evidência do Paris elegante e era de bom-tom ser-se recebido em sua casa.

Quando o Sr. de Mussidan, acompanhado de Genoveva, chegou ao palácio de Lucillière, não se apresentou como pai da artista; tomando o seu ar arrogante, disse aos criados que se encontravam na antecâmara que anunciassem o conde de Mussidan e fez a sua entrada de cabeça erguida, lentamente, nobremente, para ir cumprimentar a marquesa, bastante estupefacta com aqueles modos, mas demasiado indulgente e desdenhosa para se zangar por causa disso.

Contudo, houve pessoas menos indulgentes e menos desdenhosas que não podiam aceitar que o pai da pianista que contratavam e a quem pagavam tomasse aqueles ares em suas casas. Esses sentiam-se ofendidos por ele se conduzir como um convidado, tomando o primeiro lugar no salão, sentando-se às mesas de jogo, assim como às da ceia, e sempre com as suas maneiras altivas, só se ocupando da filha para receber os cumprimentos que a ela eram dirigidos, mas que fazia seus, exactamente como os francos que embolsava. Nessas casas tinham-se contentado em ter a pequena Mussidan uma vez, e, para se verem livres do pai, não lhe pediam para voltar.

A surpresa foi grande para o Sr. de Mussidan.

- Já reparou - disse ele à mulher - que nunca reclamam a presença de Genoveva duas vezes na mesma casa? A mim nada me escapa.

Era uma das suas pretensões: ver tudo e tudo saber; contudo, no caso presente, declarou não compreender por que motivo, tendo contratado uma vez Genoveva, não o faziam mais vezes.

- Talvez não toque tão bem como imaginamos. Os pais são uns tolos em tudo o que diz respeito aos filhos! Estamos cegos, sem dúvida.

- Se tivesse assistido ao seu triunfo, não falaria assim.

- Nada é mais enganador do que esses triunfos; foi para não me associar a essas mentiras que não fui ao Conservatório, e não porque não me ocupe dessa pequena. Quem é que a preparou para isso a que chama triunfo? Fui eu, parece-me. Não pode contestar que deixei tudo - as minhas ocupações e os meus afazeres - e que tudo sacrifiquei para a levar todos os dias a passear durante duas ou três horas, e isso com risco de comprometer a minha saúde. A senhora condessa ficava em casa, muito tranquila, e eu, durante esse tempo, fizesse vento, calor ou frio, nevasse ou geasse, percorria a passos largos a Avenida Clichy. Quem sacrifica agora o seu sono, as suas noites, enquanto a senhora condessa fica em casa muito sossegada? Eu, sempre eu. Quem é que percorre constantemente as casas de músicas para ver se o retrato de Genoveva está exposto nas vitrinas? Linda ocupação para mim. E quem é que entra nessas lojas, quem é que se faz amável com essa gente para pedir que exponham essa fotografia? Eu, e ainda eu. Quem vai aos jornais agradecer, quando publicam qualquer notícia acerca de Genoveva? Não é a senhora, pois não? Belos lugares esses também: ninguém que nos atenda; contínuos tão vulgares e apressados como os patrões. E, no entanto, faço tudo isso pela sua filha.

A Sr. a de Mussidan ficou preocupada com aquelas censuras, não por causa dos sacrifícios que o marido se impunha, mas porque o fim que desejava atingir ao mandar Genoveva para o Conservatório estava ameaçado. Confiou a sua inquietação à Sr. a Gueswiller, que, com o seu conhecimento do mundo musical e dos seus hábitos, lhe respondeu que não fazia tudo o que era necessário para lançar Genoveva.

- Que é preciso então fazer?

- É necessário que dê concertos, ou, se não querem ter trabalho com a sua organização, fazer com que toque num dos grandes concertos de domingo.

O êxito de Genoveva foi enorme, e de novo o Sr. de Mussidan teve a satisfação de embolsar algumas centenas de francos.

 

                     Primeiros desgostos de Genoveva

Desde que o Sr. de Mussidan mostrara interesse em que os jornais falassem de Genoveva mudara de atitude para com Faré, que não era ffaré, mas esse valente Faré, esse caro rapaz, esse jovem amigo, só voltando a ser Ffaré quando não podia desempenhar rapidamente as tarefas de que o incumbia.

E mesmo assim era só em casa, durante as refeições, que o Sr. de Mussidan falava à vontade do seu jovem amigo:

- O vosso faré é gentil, não haja dúvida. Pedi- lhe anteontem para pôr no jornal uma pequena crítica sobre o teu último concerto, e ainda não publicou nada.

Mas Genoveva não permitia que acusassem Faré.

- É porque não pôde; se há alguém que tenha prazer em nos ser prestável, é ele.

- E só o honra prestar-nos algum serviço; quando se apresenta nalgum sítio em meu nome, isso mostra que tem boas relações; se nos presta pequenos serviços, os que recebe de mim, enfeitando-se com o meu nome, são doutra espécie; ele bem o sabe, o espertalhão; é isso que o estimula às vezes; porque, enfim, devem compreender que não é pelos vossos bonitos olhos que ele se ocupa da nossa publicidade.

Era o momento em que alguns jornais, para prazer dos seus leitores ou no interesse dos costureiros, dos perfumistas, das depiladoras, dos sapateiros, acabavam de inaugurar as crónicas mundanas, nas quais, contando o que se passa ou, de preferência, inventando o que não se passa na alta roda, se podem introduzir todos os anúncios muito bem pagos para figurar naquele lugar de honra. Um dia, quando Faré estava a escrever o boletim comercial, o redactor-chefe mandou-o chamar.

- Você está farto dos mercados e das feiras. Não diga que não. Há melhor do que isso para si. Tiro-o do arroz e vou metê-lo no pó-de- arroz. A partir de hoje passará a fazer as crónicas mundanas.

- Mas não percebo nada disso.

- Também não percebia nada do boletim comercial e depressa se habituou; acostumar-se-á rapidamente. Não é mais difícil e não há necessidade da mesma exactidão.

Mas.

- Não se inquiete; falará de tudo o que se passa na sociedade: recepções, bailes, jantares, casamentos, separações, baptizados e enterros. Citará uma enfiada de nomes. Dará as ementas dos jantares e pormenores dos vestidos. Falará de todos os desportos, mas apenas do ponto de vista mundano. Da mesma maneira, das deslocações em desporto neurótico. Se a palavra não existe, inventá-la-á; fará bom efeito.

Faré estava inquieto. Que singular ideia mandá-lo fazer a crónica da alta sociedade, a ele, que vivia no alto das colinas de Montmartre e que era um camponês. Apesar da vontade que tinha de abandonar o arroz, o pó-de-arroz metia-lhe medo; quis defender-se:

- Receio não ser competente para fazer isso. Visto achar que posso fazer coisa diferente dos mercados, gostava mais de escrever crónicas vulgares.

- Não se trata das suas preferências, mas do que é útil ao jornal, e do que precisa agora é duma crónica mundana; se não aceita, dá-la-ei a outro. Há um lugar a preencher; aceite-o. Brevemente me agradecerá. O tempo da discrição passou. As pessoas que se divertem querem que se saiba como se divertiram, e os que não se divertem querem saber como se divertem os felizes deste mundo. Isso cria-lhes belas relações... em imaginação. É preciso dar notícia das estreias na sociedade, como se dá das estreias no teatro. Apenas o aconselho a não fazer essas críticas num estilo simples e natural. Quanto mais afectado, amaneirado, pretensioso for, maior êxito terá. Se conseguir ser ridículo com talento, tem a sua fortuna assegurada.

As exigências daquela nova profissão e sobretudo a inexperiência de Faré fizeram com que se aproximasse do Sr. de Mussidan, que se tornara para ele uma espécie de oráculo, que consultava nos seus momentos de embaraço - que eram frequentes.

Põe-se uma corrente no colete quando se está de casaca? Quando se passeia a cavalo com uma senhora deve-se ir do seu lado direito ou do esquerdo? Pode-se usar gravata preta com casaca?

Interrogações terríveis para ele, que se apresentavam a cada instante e a propósito de tudo e que o Sr. de Mussidan resolvia prontamente, citando as leis da etiqueta como um mestre-escola enuncia uma regra gramatical.

E para as genealogias, esse quebra-cabeças que lhe valia tantas cartas de reclamações, ainda lhe era mais útil!

Mas o Sr. de Mussidan fazia pagar os conselhos e as lições que dava, ao menos pelo tom em que os dizia. Que piedade, que desprezo, não propriamente nas suas palavras, mas no ar com que eram proferidas!

Para o adoçar, e quando se sentia muito envergonhado, Faré começava por lhe mostrar o princípio dum artigo sobre Genoveva. Infelizmente, era obrigado a adoptar um estilo empolado e mesmo ridículo, quando apenas desejaria ser simples e sincero. A encantadora menina de Mussidan, da nobre família dos Mussidan e dos Puylaurens, descendentes dos últimos condes de Toulouse, encantou ontem o auditório de escol da duquesa de. Não é uma artista, é a própria Santa Cecília. As suas mãos infantis desfiam pérolas, enquanto a sua alma magnetiza o teclado, que se torna uma moita primaveril através da qual perpassam gorjeios de amor de rouxinóis.

Contudo, apesar da colaboração do Sr. de Mussidan, havia dias em que quase se arrependia de ter deixado os mercados; ao menos esses não tinham genealogia.

A exposição dos retratos de Genoveva nas montras das casas de música, os concertos públicos, os artigos de Faré a propósito da menina de Mussidan, da ilustre família dos Mussidan e dos Puylaurens, enfim, tudo o que se combinou e experimentou não fez com que a herdeira dos Mussidan e dos Puylaurens recebesse mais pedidos para ir tocar nos salões.

Dava-se mesmo o contrário: à medida que o talento aumentava, diminuíam os convites.

- Um verdadeiro talento, a pequena Mussidan.

- E, no entanto, já não toca em parte alguma.

- A culpa é do pai. Como quer que se meta em casa uma pequena que só pode vir acompanhada do pai, um boneco que imagina dar-nos uma grande honra em entrar em nossa casa e que se porta como um soberano de visita a um dos seus súbditos, aprovando isto, censurando aquilo, dando conselhos, quando não lições. É insuportável.

E que cerimónias, que salamaleques, para aceitar o dinheiro da filha!

Aquilo causava um grande desgosto a Genoveva; não servia para nada; as belas esperanças que a tinham amparado no trabalho para ser útil à mãe e ao pai não passavam então de sonhos infantis?

Que responder ao pai quando a censurava por não continuar a ser convidada para tocar?

- Gostava que me explicasses, duma vez para sempre, porque é que te contratavam aos onze anos e não te contratam aos catorze. Tinhas mais talento     nessa idade do que tens agora? Não estudas? Não      te aperfeiçoas?      

- Não acha natural que não seja aos catorze anos o que era aos onze? Já não sou uma curiosidade, um pequeno prodígio, se alguma vez o fui.

Quantas pianistas há com mais talento do que eu.

- Se não eras mais talentosa do que todas as tuas rivais, não valia a pena começar.

Mas se Genoveva não respondia ao pai, não mantinha a mesma reserva com Faré, seu confidente.      

Fora um hábito que se estabelecera pouco a pouco, para a mãe e para a filha, subirem todos os domingos a Rua Girardon, excepto uma vez por mês, em que iam a Asnières, a cada dos Limonnier.

E, no entanto, Genoveva já não era a criança brincalhona que fora aos onze anos, quando só pensava em correr, saltar subir às árvores. Ainda brincava quando chegava, mas já não era a mesma fúria de  movimento, de agitação. Ao cabo dalguns instantes, a necessidade de se expandir acalmava-se, e, tranquilamente, começava a passear e a conversar com Faré, enquanto as duas mães ficavam sentadas calmamente à porta de casa, seguindo-os com a vista.

Era o momento em que Genoveva contava os seus desgostos e inquietações ao seu amigo. A precocidade que mostrara para a música tinha-a para tudo. Assim, era sensível a ideias e a preocupações pouco vulgares em crianças da sua idade: a incerteza do futuro, a noção do dever, o sentido da responsabilidade.

Era isso que, nas suas confidências, a maior parte das vezes exprimia a Faré, falando grave mente, afirmando as suas opiniões e as suas ideias, mas sempre com aquela doce modéstia própria da sua natureza e com um sorriso resignado que lhe iluminava a fisionomia um pouco séria.

- Má semana; não saí uma única vez.

- Mas tocou no concerto da Sr. a Bobelli.

- Para meu prazer e glória, e fiquei bastante contente por tocar em semelhante ambiente. O que quero dizer é que posso tocar assim todas as noites sem que isso mude em casa a situação. Seria tão feliz se ganhasse o suficiente para que minha mãe não trabalhasse mais e para que meu pai não se aborrecesse com as pequenas economias que se vê obrigado a fazer! É terrível, para um homem como ele, não poder servir-se duma carruagem quando chove. Se soubesse como o contraria sentir-se molhado, como o humilha estar enlameado!

- Também a mim me aborrece estar molhado.

- Pois bem! A mim também: mas a nós, que nos importa? Enquanto que o papá! Acalentara sonhos tão lindos, preparara tão bem as coisas quando estudava para alcançar o primeiro prémio! Era isso que me amparava, que me dava coragem. E nada!

- Esse dia chegará.

- Quando? Não é só o presente que me atormenta. É o futuro, sobretudo o futuro. Porque não acredito absolutamente nada na herança da tia de Cordes. Porque havia ela de morrer? Tem apenas setenta anos; e por que razão me havia de deixar a sua fortuna, se não me conhece? Dá-se àqueles a quem se ama, não é verdade?

- É curioso que, com a sua idade, se preocupe mais do que eu me preocupo, e, contudo, também tenho minha mãe, que não pode passar sem mim, que não pode trabalhar como trabalha a sua.

- Oh! O senhor, um homem!

- A que chegou esse homem? À bela situação de contar todas as manhãs duma maneira cómica o que se passa na alta sociedade, onde nunca pôs os pés!

- Mas quando as suas peças forem representadas.

- Sê-lo-ão? Há dois anos que o meu drama espera, no teatro da Porte- Saint-Martin, a sua vez, que talvez nunca chegue. O mesmo se dá com a minha opereta, para que Luciano fez a música. Também eu afaguei lindos sonhos, que, como vê, não estão em vias de se realizarem.

Fitou-a durante muito tempo sem falar, como se estivesse irresoluto, querendo e não querendo; depois, fazendo um esforço para rir:

- Mas por que razão em todos os seus cálculos do futuro não prevê que um dia casará?

Ela teve um momento de embaraço e tentou também sorrir.

- Casar-me? Nunca me casarei.

- Por que motivo me diz: Nunca me casarei?

- Ah! Porquê? Porquê?

Pensou durante alguns segundos; depois, prosseguiu:

- Porque devo trabalhar para a mamã. Como quer que a mamã viva, se a abandonar? A mamã não pode passar sem mim.

- Será o seu marido quem trabalhará para si e para a sua mãe.

Ela pôs-se a rir:

- Mas os homens não trabalham, não foram feitos para isso.

- E eu, não trabalho? Julga que não trabalharia?

- Oh! O senhor é um bom filho.

- São os bons filhos que fazem os bons maridos.

 

                 Ernesto confessa o seu amor

Embora tivesse deixado de ir ao domingo à Rua Girardon, Luciano não cortara as relações com Faré; pelo contrário, o tempo tornara-os mais íntimos, mais amigos: eram os dois quase da mesma idade, sustentavam a mesma luta, tinham as mesmas esperanças, sofriam as mesmas decepções; tudo isso eram aspectos que os deviam aproximar e que, de facto, os tinham unido mais estreitamente.

Quase todas as noites voltavam juntos para Montmartre, Faré saindo do jornal, Luciano do teatro, e era preciso que o tempo estivesse muito mau para não esperarem um pelo outro. Então, lado a lado, pelas ruas onde os transeuntes eram cada vez mais raros à medida que se afastavam do centro de Paris, caminhavam devagar e conversavam.

- Que há de novo desde ontem?

Era a hora das confidências, em que se confessavam, contando um ao outro as novidades, não tanto para falarem de si como para procurarem a confirmação das suas esperanças numa aprovação amigável. O contacto das realidades da vida fazia-os muitas vezes duvidar.

Mas algumas vezes também abordavam assuntos que, embora não tão profundos, não os apaixonavam menos: a sua vida íntima.

Nesse ponto, Luciano era mais fácil de contentar do que Faré: só pedia à mulher beleza ou esplendor.

Para Faré, pelo contrário, a mulher era tudo, mas a mulher capaz de ternura, que amava e se fazia amar, que receberia a sua vida e lhe daria felicidade, que o inspiraria e o ampararia.

Ouvindo-o falar assim, Luciano encolhia os ombros e respondia-lhe:

- Quando a tiveres encontrado, diz-me. Como lhe repetisse aquilo, talvez pela vigésima vez, no dia seguinte àquele em que Genoveva lhe contara as suas inquietações, respondeu a Luciano:

- Já a encontrei.

- Conheço-a?

- Perfeitamente.

- Ora essa!

- E sabes como isto nasceu? Vendo-a tão gentil, tão bonita, tão boa, tão simples, tão inteligente, tão ricamente dotada. E, depois, tão terna, tão afectuosa para a mãe.

- É de toda a justiça.

- Sim, mas tão meiga, tão indulgente para o pai.

- Indulgente como?

- Não é preciso ser dotada duma dose excepcional de indulgência para aceitar o Sr. de Mussidan com as suas ideias e as suas exigências?

Luciano levou alguns instantes a recompor-se da sua surpresa, quando compreendeu de quem se tratava.

- Mas é uma garota! - exclamou ele.

- É isso que torna a minha situação embaraçosa. Ela não sabe que a amo. Deves calcular que não lho disse e que me sentiria envergonhado se ela o adivinhasse. Não desejaria perturbar aquela inocência infantil com uma palavra ou mesmo um olhar. Quase que não me atrevo a brincar com ela, nem a balouçá-la. Quando olha para mim, abaixo os olhos. Ontem, passou a tarde connosco.

- E o pai? O Sr. conde de Mussidan, que conta entre os seus antepassados Sebastião de Mussidan e Guilherme de Puylaurens? Julgas que, orgulhoso do seu nome como é, aceitará para genro o Sr. Ernesto Faré, um ffaré, como ele diz nos seus dias de desdém, quando não precisa de ti?

- O pai não me assusta tanto como a filha. Põe-te no meu lugar e vê como a minha situação é difícil. Não lhe quero dizer que a amo e, contudo, não quero que perca os sentimentos de terna afeição que mostra por mim desde que me conhece.

- Sabes o que penso? Que essa situação se vai prolongar ainda bastante tempo; isso inspirar-te-á alguns versos para que eu farei a música.

Dias depois, Faré, saiu do jornal e dirigiu-se rapidamente à Praça Dancourt.

Ao toque de campainha, foi Genoveva quem apareceu.

- O senhor?

- Incomodo-a?

- Como pode pensar isso? Entre; a mamã saiu, mas não tarda.

Seguiu-a até à sala, para onde o levou.

- Estava a estudar a Aurore, de Beethoven

- disse ela mostrando a música aberta no piano.

- Quer que lha toque?

- Não. Preciso de lhe falar.

- Ah!

No caminho tinha pensado: Contando que esteja só! Se estivesse sozinha! >> Afinal, estava só e ele tinha medo. Olhava preocupadamente em sua volta, como se os móveis oferecessem um interesse extraordinário à sua curiosidade.

- Vi hoje seu irmão Frederico - disse Faré finalmente. - Tinha um favor a pedir-me e, para que não hesitasse em fazer-lho, deu-me uma novidade. uma novidade.

Repetia as palavras para demorar o momento decisivo.

- uma novidade que me deixou cruelmente emocionado... porque lhe diz respeito.

- A mim?

- O projecto de casamento formado pelo marquês de Arlanzon.

- Mas eu já lhe tinha falado do marquês.

- Sim, mas nessa ocasião não quis, não pude acreditar. Se pudesse admitir que a queriam casar, não teria falado? Não deve a primeira palavra de ternura que entrar no seu coração ser dita por mim? Calei-me enquanto a julguei uma criança, uma menina; porém, visto que para os outros já é uma mulher, já posso falar, e o que só contava dizer-lhe daqui a algum tempo vou dizer-lho já hoje.

Genoveva baixara os olhos, e ele só via que estava comovida pelos movimentos da respiração. Finalmente ergueu os olhos, o rosto animado e o olhar triunfante.

- Oh! Que felicidade! Serei sua mulher!

- Compreende agora porque me calava? Ouviu-se o ruído da chave na fechadura.

- É a mamã! - disse Genoveva.

Faré levantou-se, dizendo a meia-voz:

- Que vamos fazer?

- Vai pedir-lhe a minha mão, como é conveniente.

Não estava muito convencido de que a Sr. a de Mussidan sentisse um grande prazer se ele lhe dissesse: Minha senhora, peço-lhe a mão de sua filha. Ficaria talvez mais admirada e zangada do que sensibilizada.

A Sr. a de Mussidan entrou.

- O Sr. Ernesto a esta hora? - disse ela surpreendida.

Foi Genoveva quem respondeu:

- O Sr. Ernesto tinha uma coisa muito importante e agradável para me dizer; agradável e importante para ti também; foi por isso que veio.

- Uma coisa importante? - disse a Sr. a de Mussidan com certo receio.

- E agradável! - exclamou Genoveva. - Bem vês que é uma coisa agradável.

- A senhora sabe - começou Faré - o afecto que sinto por Genoveva desde que a conheço e também a amizade respeitosa que tenho por si, minha senhora.

- Isso é verdade - interrompeu Genoveva.

- Durante muito tempo esse afecto foi uma simpatia inconciente - prosseguiu Faré. - Mas pouco a pouco, à medida que Genoveva crescia, tomou um carácter mais acentuado, encheu-me o coração. Contudo, nunca disse uma palavra que lhe revelasse a si, minha senhora, ou a Genoveva o que se passava em mim, e as coisas teriam continuado assim sem um facto muito grave, sem um perigo que me obrigou a falar.

Genoveva achou que devia intervir.

- Se não te falei nele até hoje foi para não te atormentar, para não te meteres numa luta que te faria infeliz.

- Um perigo, uma luta! - interrompeu a Sr. a de Mussidan, estupefacta.

- Querem que eu case com o marquês de Arlazon.

- Que cases.

- Sim - continuou Genoveva. - não sei quem teve a ideia, mas foi Frederico quem me falou do marquês de Arlanzon.

- Foi quando tive conhecimento desse projecto de casamento que vim - disse Faré - para lhe pedir que me desse Genoveva, a quem amo.

Genoveva fitou-o reconhecida.

Não se inquietava com o efeito que aquela grande novidade devia produzir: a mãe certamente só podia sentir-se feliz, muito feliz. Ficou, portanto, surpreendida por ver a mãe entristecer-se e por ouvi-la dizer desoladamente:

- Oh! Meu pobre rapaz!

- E porque o lamentas, mamã? Ele é tão feliz como eu.

A mãe voltou-se para ela e, com uma cara ainda mais triste, com um acento desesperado:

- Minha pobre filha!

- Mas porquê? Porquê? - perguntou Genoveva.

E, dirigindo-se à mãe, agarrou-lhe as duas mãos, sacudindo-as com uma ternura despeitada.

- Porque nos lamentas? Não me disseste tu mesma, vinte, cem vezes, que gostarias de ter um filho como o Ernesto?

- Exactamente.

- Não tens confiança na sua coragem para trabalhar, na sua inteligência superior? Não crês que terá um dia o sucesso que merece e que se cobrirá de glória? Conheces algum homem que seja mais recto, mais delicado, mais...

A mãe interrompeu-a com um sorriso triste:

- Tudo o que ela diz de si, meu caro Ernesto, penso-o eu, e melhor do que ela; com a minha experiência da vida sei o que vale.

- E então? - perguntou Genoveva.

- Se eu tivesse a liberdade de escolher um marido para a minha filha - prosseguiu a Sr. a de Mussidan - seria o senhor a quem escolheria. Não seria franca consigo, Ernesto, se não lhe dissesse que, vendo o seu afecto por minha filha e a ternura de Genoveva por si, pensei, mais de uma vez, quanto seria feliz se um dia os viesse a ver casados.

- Vê? - exclamou Genoveva, voltando-se para Faré.

Em seguida, chegando ao pé da mãe e passando-lhe o braço em volta do pescoço para a beijar:

- Foi gentil o que disseste.

- Mas esse dia - continuou a Sr. a de Mussidan - estava distante. Como imaginar que casarias aos quinze anos? Certamente não te quero guardar para mim, como uma mãe egoísta: mas não compreendes como a ideia de casar aos quinze anos é desconcertante? Não é uma ideia de mãe. Admitindo a possibilidade deste casamento, achava melhor esperares até à maioridade, até à idade em que, justamente porque podias fazer o que quisesses, menos exigiriam de ti. Bem sabes que ainda estás longe dessa maioridade e que dependes, portanto, de teu pai.

- Mas tu estás pelo nosso lado - disse Genoveva.

- Que posso eu fazer? Que esteja do vosso lado, que aceite este casamento, isso é natural porque o conheço, meu filho, e porque o que eu exijo ao marido da minha filha são precisamente as qualidades que lhe encontro. Mas o Sr. de Mussidan, como sabem, tem exigências diferentes das minhas. O senhor não é titular; julga que o meu marido aceitará para genro o que ele chama um homem do povo?

- O seu nome será glorioso! - exclamou Genoveva.

- Será, talvez. De certeza, se assim o queres. E terá uma óptima posição, também quero crer. Mas não se trata da opinião da mãe, mas sim da do pai. Eis a razão por que há pouco me viram triste, quando tão satisfeitos, tão confiantes, tão crianças ambos, só davam ouvidos à esperança. Não vêem que lutas vão ter que sustentar?

- Não receio lutar - disse Faré.

- Nem eu tão-pouco - declarou Genoveva.

- O que fez com que teu pai aceitasse esse projecto de casamento com o marquês - disse a Sr. a de Mussidan - foi ter-se convencido, não sei como, de que tu não serias a herdeira de tua tia de Cordes, como esperava e acreditava até há pouco tempo. E é isso, minha filha, que deve tornar respeitável para ti o desejo de teu pai, que nesse casamento só vê uma coisa: o teu futuro assegurado por uma boa situação, um belo nome e uma grande fortuna. Não há, a meu ver, senão um único meio de o fazer renunciar a esse projecto: é dar-lhe de novo a esperança de que a Sr. a de Puylaurens te nomeará sua herdeira.

- Oh! essa herança! - exclamou Genoveva com desespero.

- Tem sido o tormento de toda a nossa vida, mas pode agora ser a nossa salvação.

- Como? - perguntaram os dois ao mesmo tempo.

- Acredite o teu pai que tu herdarás de tua tia, e estou certa que nada teremos a recear do Sr. de Arlanzon.

- Mas é a tia que lhe pode dar essa esperança e não nós.

- Sem dúvida. Somente, isso não acontecerá por si, porque a Sr. a de Puylaurens, que ignora o que se passa, não terá a ideia de dizer a teu pai: Não case a sua filha com o marquês de Arlanzon porque a minha fortuna será para Genoveva. É preciso que alguém lho sugira.

- Não compreendo - disse Genoveva.

- Pensa mandar Genoveva para casa da Sr. a de Puylaurens? - exclamou Faré, incapaz de se conter.

- Deixar-te, mamã? Separar-me de si, Ernesto?

- exclamou Genoveva.

- Só vejo esse meio de resistir ao Sr. de Arlanzon - respondeu a Sr. a de Mussidan. - Contudo, se vêem outro estou pronta a aceitá-lo; o meu é bastante cruel para que deseje empregá-lo.

- Mas a minha tia quererá receber-me? - perguntou Genoveva, agarrando- se àquela esperança.

- Não duvido: ficaria bastante contente por te ter, para não aproveitar a mais leve ocasião de aproximação que se lhe apresentasse. Tome ela conhecimento do que se passa, e tudo fará, tenho a certeza, mesmo os primeiros passos ao encontro de teu pai, para que tu não sejas a mulher dum homem tal como o marquês de Arlanzon. Uma vez em Cordes, o marquês não te seguirá, nem será aliás recebido por tua tia. Esquecer- te-á e esse casamento será desmanchado. O resto pouco importa, mesmo que não venhas a herdar a fortuna de tua tia.

Durante muito tempo falaram sobre a provável duração desta separação e, por fim, decidiram que Faré prepararia o modelo da carta que a Sr. a de Mussidan devia escrever à Sr. a de Puylaurens e que traria no dia seguinte.

 

                       Genoveva parte para Cordes

Faré chegou à Praça Dancourt logo após a saída do Sr. de Mussidan.

- Traz a carta? - perguntou-lhe Genoveva antes de mais nada.

- Ei-la.

- Leia - disse a Sr. a de Mussidan. Mas, antes de a ler, Faré achou dever explicar como a tinha concebido.

- Foi a carta de uma mãe que tentei escrever

- disse ele. - Espero ter evitado frases feitas; peço-lhes, pois, que me corrijam quando acharem que me afasto da simplicidade que deveria conservar.

- Leia, leia então - disse Genoveva.

Exm. a Senhora

Venho pedir-lhe que salve a minha filha duma grande infelicidade, a maior que lhe podia suceder. Querem casá-la com um homem que poderia ser seu avô: o marquês de Arlanzon. Esse nome e esse titulo nem sempre lhe pertenceram, e antes de a protecção e a intriga o terem feito marquês e grande de Espanha chamava-se apenas Ramon Sapira.

Não foram os predicados do marquês que inspiraram este projecto de casamento, visto já ter ultrapassado os cinquenta anos. Nãoforam, tão pouco, questões de nascimento, visto ser, como já disse, apenas Ramon Sapira, filho de pequenos burgueses da Estremadura. Foi unicamente a sua fortuna.

O que levou o Sr. de Mussidan a consentir nesse casamentofoi o receio de deixar afilha na miséria; e isso é um sentimento respeitável, que explica a sua resolução. Depois de ter acreditado muito tempo que Genoveva seria um dia a sua herdeira, imaginou, ou disseram-lhe, que devia renunciar a essa esperança, e então deu atenção às propostas do Sr. de A rlanzon.

É nestas condições que lhe peço para salvar a minha filha, sem recear que veja neste meu pedido motivos de interesse. Genoveva inocente, simples e generosa como é, nunca soube o que era esse sentimento e, se não quer casar com o Sr. de Arlanzon, é porque não o ama nem o poderá vir a amar.

Manifestou sempre uma grande solicitude por minhafilha e, se Genoveva tivesse ido para junto de si aos dez anos, como a senhora desejava, ter- se-ia afeiçoado a ela, tê-la-ia amado. Se não me é possível invocar esse amor, apelo ao menos para aquela solicitude de que nos tem dado tantas provas.

Não é certamente porque Genoveva lhe foi recusada quando desejava encarregar- se da sua educação que não lhe concederá agora a sua poderosa protecção. Assim, não hesito em lha pedir, crente em que o rancor não atinge uma alma como a sua. Houve, aliás, razões para essa recusa: a pouca idade da criança, o seu estado de saúde nesse momento, os cuidados de que necessitava; e depois, forçoso é dizê-lo, a ternura egoísta dos pais.

Se, para me ajudar a salvá-la do Sr. de Arlanzon, consentisse em pedi-la novamente, ser-lhe- ia confiada prontamente pois julgar-se-ia que ela teria assim ocasião de reconquistar o seu afecto e também a parte da herança que pensam ter-lhe retirado.

Não saberei dizer-lhe como me é desagradável empregar semelhante linguagem e falar-lhe da herança, quando essa palavra é, há quinze anos, o tormento da minha vida. Mas devo salvar a minhafilha, e utilizo os meios que estão ao meu alcance. Só penso nela, no seu futuro, na suafelicidade. E, no meu egoísmo materno, corro até o risco de a magoar, à senhora, por quem nutro o maior respeito. Do mesmo modo, exponho-me a que pense que ando atrás da herança; eu, que temo tanto afortuna como outros a miséria.

Entrego a minha filha nas suas mãos; a senhora poderá ser uma mãe para ela, que lhe ficará devendo o que eu não lhe posso dar: a felicidade.

- Mais nada - disse Faré.

- Vou copiar imediatamente a sua carta - disse a Sr. a de Mussidan.

E quando começava a escrevê-la, Genoveva observou:

- Pobre mamã! Que carta tão cruel para ela!

- E eu? - disse Faré. - Julga que me foi fácil escrevê-la? Procurando as palavras, só pensava na nossa separação, e, quando encontrava uma palavra adequada que podia sensibilizar a Sr. a de Puylaurens, dizia para comigo: És tu que a tiras a ti mesmo.

- Falará de mim com a mamã; mas eu. com quem poderei falar de si?

E as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Três dias depois de ter escrito aquela carta, ainda a Sr. a de Mussidan não tinha recebido qualquer resposta, e como o porteiro era uma personagem que só se dignava levar- lhe a correspondência uma vez por dia, Genoveva descia a todo o momento para ver se o carteiro deixara alguma coisa.

Foi só no quarto dia que chegou uma carta endereçada ao Sr. de Mussidan, mas tinha o carimbo de Paris e não o de Cordes.

Genoveva entregou-a ao pai. Quando este a abriu viu que era do Dr. Le Genest de la Crochardière, que era o notário da Sr. a de Puylaurens; fora ele, pois, que tinha sido encarregado de comunicar a resposta da tia de Cordes.

Lida a carta, o Sr. de Mussidan guardou-a na algibeira, sem dizer nada, e como nem a mulher nem a filha ousavam jamais interrogá-lo, tiveram de esperar. Falaria, sem dúvida. Mas depois de almoçar saiu sem ter dito uma palavra.

Ficaram cheias de inquietação, perguntando a si mesmas se, como pensavam, o Sr. de Mussidan teria ido realmente a casa do notário para conhecer a resposta da Sr. a de Puylaurens.

Foi essa a opinião de Faré e de Genoveva; mas a Sr. a de Mussidan não ficou muito tranquila com isso: eles podiam enganar-se.

O Sr. de Mussidan só voltou, como todos os dias, à hora do jantar; parecia de bom humor, e, ao ouvir o seu boa tarde, pequerrucha, Genoveva tranquilizou-se.

Sentou-se à mesa alegremente, sem dizer uma palavra do que tinha feito durante o dia, comendo, bebendo bem, como homem que se sente feliz.

Durante todo esse tempo, fitavam-se elas, atormentadas, dizendo para consigo que ele não devia ter ido ao cartório do notário visto estar tão calmo, ou que se tratava de alguma coisa insignificante.

Mas quando acabou de jantar, fez-lhe uma pergunta que as tornou atentas:

- Em que estado está o guarda-roupa de Genoveva?

- Está em bom estado, ou quase - disse a Sr. a de Mussidan.

- Talvez para aqui; mas para uma viagem? Atreveram- se a fitá-lo francamente.

- Gostarias de ir viajar, pequerrucha?

- Conforme.

- Para ires a casa de tua tia, a Cordes? Tiveram um movimento de alegria, apesar de sentirem um aperto no coração.

- A tua tia - continuou o Sr. de Mussidandeseja que vás passar algum tempo com ela, e, como acho que isso é útil aos teus interesses, decidi que partirias depois de amanhã.

E foi até ao café, encantado com a sua atitude. Ficando sós, a Sr. a de Mussidan e a filha fitaram-se um momento. Depois sentiram, ao mesmo tempo, que as lágrimas lhes corriam pela cara.

- Esperava esta resposta e, no entanto, sentia-me infeliz por não a ver chegar - disse a Sr. a de Mussidan.

- Eis que ela chega - concluiu Genoveva - e ainda nos sentimos mais infelizes.

Logo a seguir soou a campainha: era Faré, que, há uma hora, passeava na rua, espreitando a saída do Sr. de Mussidan.

- Chegou a resposta. Parto para Cordes depois de amanhã.

Foi uma nova desolação. Em vez de se entregarem à alegria de se verem ao abrigo das perseguições do Sr. de Arlanzon, só pensavam no desgosto da separação.

- Quando voltará? - perguntou Faré. Ela só pôde repetir o que o Sr. de Mussidan lhe dissera: partia. Não sabia mais nada.

Mas à noite, depois de Genoveva estar deitada, o Sr. de Mussidan deu à mulher pormenores que tinha calado diante da filha.

- Recebi esta manhã uma carta do notário Le Genest de la Crochardière prevenindo-me que tinha uma comunicação importante a fazer- me. Não era difícil adivinhar que era da parte da Sr. a de Puylaurens e não me enganei. Bastante embaraçado, o notário apresentou-me as desculpas daquela velha maluca, que, sentindo-se prestes a morrer, não quer estar só, como merecia, e deseja rodear-se dos seus. Embora não me tenha dito que ela está muito mal, só assim se compreende esta sua atitude. O meu primeiro impulso foi responder que não podia haver nada de comum entre essa velhaca e eu. Contudo, pensei que, por mais legítimo que seja o meu rancor, não tinha o direito de sacrificar os interesses de minha filha à minha vingança, e consenti no que ele me pedia, isto é, que Genoveva vá passar algum tempo a Cordes. Julgo que não se deve tratar duma longa separação. Como se sente moribunda, quer obter o perdão da família. Não se atormente, pois, com a ausência de sua filha. Não será longa. Em todo o caso, espero que o seu egoísmo materno não dirá que a fortuna da Sr. a de Puylaurens não vale algumas semanas, ou mesmo alguns meses, de separação.

A Sr. a de Mussidan não respondeu, porque, se o fizesse, tinha muito que dizer sobre o assunto. O que importava, era que o marquês já não era perigoso. O essencial era que aquele casamento estivesse desmanchado, e estava-o; não havia a temer que seu marido, agora que se via em vésperas de gozar a fortuna da filha, consentisse num casamento que lhe retiraria o usufruto. Eram três anos de tranquilidade. Até que Genoveva atingisse os dezoito anos, não lhe falariam mais em casamento.

Deu um suspiro de alívio, teve quase um movimento de triunfo. Fora, pois, bem sucedida! Ainda servia, afinal, para alguma coisa! Salvara a filha!

                       Notícias de Cordes

À Sr. de Mussidan

Querida mamã

Só hoje me é possivel completar o telegrama que te enviei ontem assim que cheguei. Não tive um minuto livre durante o dia; e à noite caía de fadiga e de sono.

Como sabes, a estação que serve Cordes é liindrac; mas o nosso comboio expresso não parava lá, pelo que tivemos de descer na estação anterior.

Eram 9 horas da manhã, e o sol, batendo na estrada branca, quase cegava; fazia tanto calor como em Paris às duas horas da tarde, tanto calor que acabei por adormecer. Quando acordei, vi diante de mim, a uma grande distância, no meio dumaplanície amarelada e recortando-se no céu azul, uma pequena montanha isolada, coroada pelos telhados duma cidade fechada numa cintura de muralhas e de torres.

Cordes, de longe, é muito bonita, muito curiosa; dir-te-ei mais adiante como é deperto, porque não entrámos lá imediatamente. Chegadas ao sopé do monte, ladeámo-lo até à grade dum lindo jardim, dentro do qual se eleva um castelo.

Ao descer do carro, procurei com os olhos minha tia, mas não a vi deparou-se-me apenas um velho baixo, corcunda, com um casaco cor-de-rosa às riscas azuis e umas calças pretas caindo em cima de sapatos defivela. Só podia ser o Sr. Buvat, o criado grave de minha tia.

Buvat ia à minhafrente; abriu-me a porta do salão pequeno e encontrei-me em presença da minha tia. Dei alguns passos para a ir beijar. Durante aquele tempo examinou-me da cabeça aos pés. De repente, exclamou:

- Oh! Como é bonita, a infeliz. Fizeste boa viagem?

Depois de lhe ter respondido agradecendo-lhe, disse-me que me iam levar aos meus aposentos, pedindo-me que descesse logo que me fosse possivel porque tinha esperado por mim para almoçar.

Obedeci à recomendação de minha tia efoi à pressa que me arranjei no meu quarto de vestir forrado de fustão branco e guarnecido de belas porcelanas com flores cor-de-rosa; parecem-me muito valiosas; devem ser antigas, sem dúvida.

Assim que desci, minha tia fez-me sentar à mesa em frente dela e começaram a servir o almoço em baixela deprata, esta também muito antiga, posso assegurar-to.

Eu tinha umafome terrivel, mas tudo aquilo era tão imponente que me esquecia de comer.

Contudo, não vás pensar que minha tia é apenas imponente; ainda a conheço pouco, mas tenho a certeza de que é muito boa: basta ver os seus olhos escuros, ardentes e meigos ao mesmo tempo, e ouvir a sua voz.

Quando acabámos de almoçar, a tia propôs mostrar-me a casa, ao que respondi que lhe agradecia, mas que não desejava que apanhasse frio.

- Mas eu não vou sair - respondeu-me a tia. - Darás sozinha a volta ao jardim; no resto da casa é como aqui; asjanelas estãofechadas, não há correntes de ar. Não me posso expor ao frio, porque é preciso que esteja capaz de ir amanhã à missa. Queres ir comigo?

A casa da tia é muito grande: tem três salões

- um branco, um verde e um azul -, uma sala de bilhar e uma biblioteca. Tem também o que eu nunca tinha visto: um oratório, que comunica com o quarto de minha tia; nele um altar muito bem enfeitado com flores e candelabros de prata, um grande quadro representando Cristo na cruz e uma estátua da Virgem, de mármore branco.

A nossa visita terminou no salão azul, onde o que logo me chamou a atenção foi um magnífico cravo, com pinturas sobre um fundo dourado representando Amores tocando violoncelo e outros instrumentos de música e macacos que olham para eles balouçando-se em grinaldas de flores.

Gostaria de te contar o quefiz hoje, masjá te escrevi tanto que não tenho mais tempo disponivel. Tenho de ir preparar-me para jantar com o Sr. Cabrol, cura de Cordes. Amanhã contar-te-ei o que se passou hoje e a minha entrada nafamosa casa de Guilherme de Puylaurens. Para conhecer minha tia, é lá que épreciso vê-la. Até amanhã.

Vou continuar a minha narrativa, querida mamã, no ponto em que fui obrigada a interrompê-la ontem.

Como sabes, devia ir com a tia à missa, às sete e meia; cheguei ao vestibulo no momento em que parava diante da escadaria um carrinho baixo, atrelado a uma mula.

Quando eu estava a admirá-lo, apareceu Buvat, de sobrecasaca, o que me fez compreender que nos acompanharia.

Nesse momento chegou minha tia, trazendo côdeas depão num cestinho de vime; tiraram o freio à Gloriette e minha tia deu-lhe as côdeas a comer, segurando ela mesma o cestinho com uma das mãos, enquanto com a outra afagava a mula, que afixava com os seus olhos meigos e reconhecidos.

Minha tia mandou-me subir. Buvat trepou para o assento detrás, tomou as rédeas e partimos ao som alegre dos guizos.

Pelo meu nariz no ar e pela direcção do meu olhar, adivinhou a tia a minha curiosidade.

- Vejo com prazer que o berço da tua família te interessa; vais encontrar- te daqui apouco no meio da cidade mais curiosa da França, uma cidade do século XIII, que se conserva, graças a Deus, quase como saiu das mãos de Raimundo VII, o benfeitor da nossa casa, pois espero que te tenham dito que descendes de Guilherme de Puylaurens, quefoi embaixador do último dos condes de Toulousejunto do Santo Padre.

- Sim, minha tia.

- Vais ver as ruínas do castelo que Raimundo VII mandou construir e vai também ver de pé e intacta, graças ao Senhor, para atestar a glória da nossa família, a casa que o nosso antepassado Guilherme de Puylaurens mandou construir.

O primeiro toque para a missa acabava de soar na torre da igreja; com aponta do chicote, minha tia tocou Gloriette, que apressou o trote e nosfez entrar nas ruas estreitas e tortuosas, calcetadas de grandes lajes sobre as quais o nosso carro passava com um ruido profundo como se por baixo houvesse caves e subterrâneos; mulheres quefiavam nas suas rocas, sentadas às portas de suas casas, levantavam-se para cumprimentar minha tia, que lhes respondia com um sinal de cabeça.

Não sei se esperavam por minha tia, mas, assim que chegou ao seu lugar, começou a missa.

Ao sairmos da igreja, minha tia deu-me o braço.

- Tenho por hábito - disse ela - ir todos os dias, depois da missa, passar uma hora na casa de Guilherme de Puylaurens; é ali que recebo as pessoas que me querem falar, os meus rendeiros e os meus pobres.

Foi um pouco antes de chegarmos ao antigo castelo de Raimundo VII, agora transformado em passeio público, que um estremecimento do braço da minha tia me deu a entender que devia estar atenta: comovia-a a ideia de me mostrar a casa do antepassado de que era tão orgulhosa.

- Aquela casa em estilo gótico, com dois andares de cantaria, é a de Guilherme de Puylaurens - disse-me a tia. - Limitei-me a mandar fazer trabalhos de consolidação e de conservação; tudo é autêntico; aquelas rosáceas, as colunetas, as quatro arcadas ogivais do rés-do-chão, as duas grandesjanelas geminadas do primeiro andar, o ático com aquelas janelas de abóbada tribolada, os baixos-relevos representando caçadas, com figuras grotescas de homens e de animais, tudo aquilo é da época. Quando fores crescida e que viajes, não encontrarás uma casa semelhante.

A tiaficou sensibilizada com a minha atenção e com a minha admiração.

- Vamos. És bem uma Puylaurens - disse ela.

Abriu-nos aporta um rapagão sólido e impo nente.

- Se um dia alguém tivesse vontade de me roubar - disse-me a tia mostrando-me o seu guardião - os ladrões teriam, como vês, com quem se haver; Papaillau tem pulsos vigorosos.

O gigante sorriu, baloiçando-se, muito orgulhoso daquele elogio; mas não tive tempo de o examinar. Na casa da entrada, que é uma espécie de vestíbulo, de locutório, não sei como lhe chamar, tendo por única mobília bancos negros encostados àsparedes, lanças, espadas e elmos pendurados aqui e ali, encontravam-se cinco ou seispessoas que, à nossa entrada, se levantaram para cumprimentar minha tia.

- Senta-te, passeia - disse ela -, faz o que quiseres. Quando tiver recebido as pessoas que estão à minha espera, ficarei inteiramente ao teu dispor.

Mas a conversa que ela teve com a mulher que Papaillau acabava de mandar entrar, far-te-á conhecê-la muito melhor para que deixe de ta repetir.

Era uma mulher bastante nova, com uma criança recém-nascida ao colo e outrapela mão; pela saia cheia de poeira, pelos sapatos esbranquiçados, adivinhava-se que tinha andado muito e que vinha de longe.

- Em que lhe posso ser útil, minha filha? perguntou a minha tia com uma voz animadora, examinando-a.

A mulher hesitou efoi preciso que a tia insistisse para ela se decidir.

- Vem de longe?

- De Castenet, a três léguas daqui. Foi o meu homem que quis que viesse; porque devo dizer-lhe que tenho estes doisfilhos que aqui estão e que vou ter um terceiro e gostava que a senhora fosse a madrinha.

- Como se chama o seu marido?

- Péchaudier.

- Não o conheço, como também não a conheço a si.

- Oh! Mas a gente conhece-a bem. Sabemos quefoi madrinha de crianças de Saint-Servin, de Bastide, de Virac. Então pensámos na senhora, e o senhor cura disse que a senhora não nos recusaria isso.

A minha tia pôs-se a rir.

- Visto quefoi o senhor cura que o disse. Contudo, não serei madrinha do seu filho.

- Oh! Minha senhora!

- Aqui está a madrinha.

E apontou-me, mas a mulher pareciapouco disposta a aceitar a troca.

- Tinhamos pensado que fosse a senhora - disse ela.

- A minha sobrinha é preferivel a mimdisse a tia - visto ter apenas quinze anos e poder assim ocupar- se do seufilho durante mui tos mais anos do que eu.

Depois da mulher que vinha pedir uma madrinha, foi a vez dum caseiro que vinha pedir prorrogação do prazo para pagar. A mulher tinha estado doente; um dos cavalos que contava vender tinha morrido.

- Mas a última vez que mepediste um adiamento - interrompeu a minha tia - era o teu filho mais novo que estava doente e era a vaca que tinha morrido.

O caseiro curvou-se ainda mais e parecia não compreender; com a manga do casaco polia conscienciosamente o braço da cadeira em que estava sentado; a tia não insistiu mais.

Depois seguiu-se uma mulher velha que necessitava dum auxílio para o filho que estava doente no hospital; depois veio outra mulher que precisava de ajuda para ela; de todas as vezes minha tia abriu a gaveta e escreveu algumas palavras numa folha de cartão, que lhes deu. Durante esse tempo andava eu à volta da casa, olhando curiosamente os diversos móveis que a guarneciam, mas sem compreender muito bem para que poderiam ter servido.

À entrada doutra pessoa minha tia chamou-me:

- Vem cá, minha querida, desejo apresentar-te ao Dr. Azéma.

E imediatamenteperguntou ao médico, que parece um bom homem, alegre e bondoso, como me achava.

- Mas. encantadora - disse o médico.

- Não é isso que lhe pergunto; é forte? O médico, depois de me examinar, declarou que, quando tivesse vivido alguns meses no campo, seria robusta como uma camponesa, e começou a ralhar com a tia por ter ido à missa, mas ela respondeu-lhe que o consultava para tudo, excepto no que se referia à sua consciência, e, não lhe dando tempo para responder, entregou-lhe uma lista de doentes que lhe pedia para visitar.

Enquanto falava, ia minha tia assinando alguns daqueles cartões que já lhe vira dar; entregou dez ao médico.

- Aqui estão vales em branco para os seus doentes; o senhor os preencherá.

O médico então veio ter comigo.

- É assim que todas as manhãs, na casa do seu antepassado, sua tia começa o dia - disse-me ele. - O duma santa.

Mas minha tia não gosta que a elogiem e interrompeu o Dr. Azéma.

Quando o médico se foi embora, Papaillau veio dizer que não havia mais ninguém. Minha tia fechou a gaveta da mesa à chave e levantou-se.

- Agora estou ao teu dispor. O que é que viste?

- Tudo e nada, pois não suspeito mesmo para que pode ter servido a maior parte destas belas coisas.

Agarrou-me na mão e, levando-me diante dum cofrezinho de carvalho esculpido cujaface representava guerreiros metidos em nichos e a tampa medalhões:

- Aqui está uma arca que data autenticamente do começo do século XIII e que é a peça mais curiosa da casa, porque os móveis daquela época são extremamente raros.

Depois da arca foi um retábulo, depois um aparador com trêsprateleiras, encimado por um remate rendilhado, depois uma credência cujas portas são ornadas de ferragens e de fechaduras trabalhadas reproduzindo ramos e folhagem; depois, bancos encimados por dosséis e, finalmente, as tapeçarias e os vitrais de que minha tia me explicou as figuras.

Do rés-do-chão subimos ao primeiro andar por uma linda escada de pedra cujas paredes estão inteiramente guarnecidas de armas e pendões. É neste andar o quarto de Guilherme de Puylaurens, mobilado como a sala do rés-do-chão, só tendo a mais um leito e uma credência, na qual se encontra o que minha tia estima acima de tudo as obras de Guilherme de Puylaurens e um manuscrito encadernado em veludo desbotado intitulado: Chronica magistri Guillelmi de Podio, o que quer dizer, segundo a tradução de minha tia: Crónica de mestre Guilherme de Puylaurens.

Como vês, tive uma manhã muito ocupada. Quando saimos, a Gloriette estava defronte da porta, e minha tia permitiu-me conduzi- la para descermos a encosta.

 

                   Os convidados da Sr. a de Puylaurens

A simpatia que Genoveva começou por sentir pela tia depressa se transformou em afeição.

Ouvira tantas vezes o pai tratá-la por velha maluca e velhaca que ao ir para Cordes imaginara ir encontrar uma espécie de fada má.

E, afinal, a fada má era uma fada muito boa, cuja única preocupação era tornar felizes todos os que a rodeavam e ir procurar, para os consolar, os que sofriam longe dela.

Daí a sua precaução em insistir, na sua carta, naquela simpatia, a fim de sossegar a mãe, que, também ela, devia acreditar na prisão e na feiticeira má e desolar-se ao pensar no que a filha teria que suportar.

Daí, ainda, o cuidado com que havia estudado a tia e fixado os traços do seu carácter, os seus hábitos, a sua maneira de ser que podiam desfazer os receios que deviam atormentar a mãe.

Na realidade, aqueles detalhes estavam em contradição com o que seu pai lhe tinha sempre dito; e por esse motivo podiam talvez desagradar-lhe; por outro lado, porém, não ficaria ele contente por ver que se havia enganado, ou que a Sr. a de Puylaurens já não era o que fora outrora, no tempo em que ele a julgava uma maluca e uma velhaca?

Apesar de a vida que levava junto de sua tia em nada se parecer com a que tinha imaginado ao sair de Paris e de a feiticeira só ter ternura por ela, não deixava por isso de haver horas em que a separação lhe pesava imenso e a esmagava. À noite, quando se encontrava sozinha no quarto, estava livre, livre de pensamento, de espírito, de coração, e usava dessa liberdade para voltar a Paris. Onde estavam naquele momento? Que fazia sua mãe? Que fazia Ernesto?

Assim que chegava ao quarto, despia-se depressa; então, depois de ter apagado as luzes, abria uma janela com precaução e, sentada numa cadeirinha, encostada ao parapeito, ali ficava, os olhos perdidos nas profundezas azuladas da noite e nas sombras que enchiam o jardim.

Ouvia a voz da mãe e a de Faré, e em pensamento revivia a sua antiga vida, as longas horas de trabalho, as brincadeiras, as conversas com a pequena Odília, os serões com a mãe, à luz do candeeiro, enquanto o pai não chegava, os domingos passados no jardim da Rua Girardon, as conversas, os devaneios silenciosos com Faré, as suas esperanças quando chegava e as suas decepções quando partia sem que lhe tivesse dito o que realmente esperava.

Que fatalidade no encadeamento das coisas! Enquanto não podia falar do seu amor estavam juntos; agora que podiam dizer e repetir um ao outro que se amavam, estavam separados, e separados talvez por muito tempo, pelo menos sem saberem quando aquela separação terminaria.

O tempo passava, o silêncio fazia-se mais profundo, e só se ouvia o barulho da ribeira que corria ao fim do jardim. Era preciso dormir para estar pronta a horas no dia seguinte para ir à missa. Fechava a janela devagar e metia-se na cama. Mas o sono nem sempre lhe obedecia; e o que a maior parte das vezes vinha era uma grande tristeza e um grande desânimo. A janela fechada, a luz apagada, na escuridão e no silêncio do quarto, abandonava-se ao desalento e chorava: Ó mamã, mamã!

Alguns dias mais tarde Genoveva reparou que faziam-se limpezas nas salas de recepção e na cozi nha havia um movimento desusado que anunciava os preparativos dum grande jantar.

Contudo, a tia não lhe dizia nada; mas uma terça-feira preveniu-a que esperava pessoas amigas para jantar: a condessa de Javerlhac e o filho, um rapaz de quem o padre Eliseu, um franciscano, seu preceptor, fizera um modelo perfeito sob todos os aspectos: piedade, instrução, docilidade, juntas às qualidades natas herdadas de seus pais, a distinção de maneiras e a beleza física, numa palavra, um rapaz encantador. Pediu-lhe que se preparasse bem para o jantar.

Enquanto se vestia, ouviu rodar uma carruagem no saibro do jardim e parar diante da escadaria. Por pouco curiosa que fosse habitualmente, não pôde resistir à vontade de ver quais eram na verdade a distinção de maneiras e a beleza física do rapaz que a tia tanto gabava. Correu à janela e, como as persianas estavam fechadas, pôde ver, através das tabuinhas, sem medo de ser vista.

Era realmente um bonito rapaz de vinte e dois a vinte e três anos que descia da carruagem, alto, forte, com olhos escuros, vestido com cuidado, tendo em toda a sua pessoa uma atitude e um ar de timidez ou de constrangimento.

Genoveva deixou-se ficar no quarto até ao momento em que a tia lhe mandou dizer para descer. Entrou desembaraçadamente no salão onde toda a gente estava reunida. Era como se aparecesse diante do seu antigo público, num concerto que desse. Aliás, mesmo que estivesse perturbada, ter-se-ia dominado, de maneira a mostrar-se amável. Embora não lhe interessasse aquele rapaz, não devia desgostar a tia.

Se não era ridículo, era, pelo menos, esquisito. Por exemplo: só falava depois de a mãe ter começado. Então parecia que era um verso que ele acabava e que devia recitar, com os olhos fixos no padre Eliseu, como se aquele fosse o regente da orquestra. E aquilo era tanto mais visível quanto, em certos momentos, o franciscano punha um dedo nos lábios, e então o conde de Javerlhac calava-se bruscamente, sem mesmo acabar a frase, que a mãe terminava, mas para chegar a uma conclusão diferente daquela que ele parecia querer dar.

Livre de qualquer receio quanto ao futuro, Genoveva teve a gaiatice de querer ver o que havia dentro daquele rapaz encantador, como se fosse um bebé mecânico a que se desse ou parasse a corda para o fazer falar e calar à nossa vontade. Mas não lhe foi fácil, como imaginara, falar-lhe em particular. Era a mãe quem lhe dava a fala e era o padre Eliseu quem lha tirava; os outros não estavam no segredo.

Além disso, a Sr. a de Javerlhac parecia também, por seu lado, querer ver o que havia dentro dela, fazendo-a falar ora sobre um ponto, ora sobre outro; um autêntico interrogatório conduzido por uma mulher de sociedade, que punha tão boa vontade como amabilidade nas perguntas feitas com uma voz doce e com sorrisos meigos, o que não a impedia de obter as respostas que desejava e de saber o que lhe interessava.

Assim ocupada e distraída, não pôde dirigir-se ao jovem conde tantas vezes quantas quisera, nem travar com ele conversas que o teriam obrigado a mostrar onde se escondia a mola real.

Durante o serão mostrou-se, no entanto, diferente do que estivera ao jantar. Genoveva sentou-se ao cravo e depois tocou também no órgão alguns trechos de música religiosa, especialmente o coro de Judas Macchabée, de Haendel. A Sr. A de Javerlhac começou a elogiá-la, mas bruscamente o filho tomou a palavra e, sem olhar para a mãe nem para o padre Eliseu, falou corajosamente, dizendo o que tinha a dizer, com ardor, como homem que sente e a quem a emoção arrasta, felicitando-a com um entusiasmo inteligente, e não com palavras de banal delicadeza. Foi em vão que o franciscano levantou o dedo por mais de uma vez: foi até ao fim.

Os convidados da Sr. a de Puylaurens só ficaram um dia em Cordes; partiram no dia imediato depois do almoço.

Genoveva esperava que a tia lhe falasse neles. De facto, quando, como de costume, ia sentar-se ao cravo, a tia chamou-a para junto de si.

- Vem cá, temos de conversar.

Genoveva aproximou-se.

- Fecha a porta - disse a Sr. a de Puylaurens, que se instalara na sua poltrona. - É inútil que oiçam o que vamos dizer.

Fechada a porta, Genoveva veio sentar-se ao pé da tia.

Não era costume da Sr. a de Puylaurens estar com rodeios; tendo tido sempre liberdade e fortuna, seguia para a frente, importando-se apenas com o que queria dizer ou saber.

- Como achas o conde de Javerlhac? - perguntou ela.

Genoveva tinha tanto a certeza de não ter nada a temer da Sr. a de Javerlhac e do filho que não achou necessário falar com rudeza do efeito cómico que este último lhe havia produzido. Para que desgostar a tia, que, certamente, os estimava?

- É um bonito rapaz - respondeu.

- Não é? Mas a beleza física é pouca coisa; a da alma é que é tudo. O padre Eliseu, a quem esteve confiado, fez dele um modelo de todas as virtudes. Era para a Sr. a de Javerlhac uma grande responsabilidade educar o filho quando ficou viúva. A Divina Providência permitiu que ela encontrasse o padre Eliseu e que reconhecesse os seus grandes méritos. Entregou-lhe o filho, e entre os dois, a mãe e o preceptor, fizeram o rapaz perfeito que acabas de ver. Nunca se separou da mãe.

- Vê-se logo - disse Genoveva sorrindo.

- Acha-lo um pouco tímido? Não te lastimes, minha filha. Digo-te que não te lastimes, porque és muito fina para não teres visto nele um futuro marido. Aliás, há motivos que tornam o teu casamento necessário, que o impõem mesmo.

Não podia desagradar a Genoveva que houvesse motivos que tornassem o seu casamento necessário.

- Que motivos, minha tia? - perguntou ela.

- Sabes que desejo que conserves a minha fortuna e que a mesma não se derreta nas tuas mãos, quer por má administração, quer por generosidade. Pois bem! Só há para isso, parece, um meio seguro: é dar-te essa fortuna em forma de dote. É preciso não julgar, minha filhinha, que tomo medidas contra ti, pondo essas condições à doação da minha fortuna. Tomo-as contra teu pai e teus irmãos, que te arruinariam rapidamente se tivesses a liberdade de lhes dar o que te pedissem. São esses os motivos que me decidiram a casar-te. Foram eles também que me levaram a pensar no jovem conde de Javerlhac. Tive antigamente relações de amizade com sua mãe, que é uma santa e digna mulher. Conhecia também o padre Eliseu, os seus méritos e virtudes. E a recordação que guardava do rapaz lembrava-me precisamente o que me disseste: que era um bonito rapaz, e parece que, para uma rapariga da tua idade, esse aspecto é importante, visto ter sido esse o primeiro ponto a que te referiste.

Enquanto a tia falava, Genoveva ouvia-a distraidamente. Pouco sensível ao que eram ou ao que tinham sido os Javerlhac, só pensava em Ernesto. Visto a tia desejar tanto o seu casamento não seria ocasião de confessar o seu amor? Era preciso um marido? Pois bem! Ela tinha um, um a quem amava e que a amava, o mais belo, o mais meigo, o mais terno, o mais inteligente, o melhor. Contudo, convinha deixar a tia acabar o elogio do seu jovem encantador.

- Se foste sensível ao seu mérito de bonito rapaz - continuou a Sr. a de Puylaurens - isso não é o bastante, como deves compreender, para me decidir. É alguma coisa, sem dúvida, e admito mesmo que possa ser muito para uma rapariga. Mas, para mim, possui outras qualidades: a sua educação religiosa, a sua piedade e, finalmente, o que para mim é uma condição essencial, o seu nascimento. Era necessário um nome digno do teu, e se os Javerlhac não remontam tão longe como os Mussidan e os Puylaurens, a tua nobreza, todavia, pode aliar-se à dele.

Aquilo fechou a boca a Genoveva. Como falar de Faré no próprio momento em que a tia lhe dizia que o descendente de Javerlhac, não era suficiente para uma Mussidan? Não seria correr um grande risco? Não valeria mais dizer simplesmente que aquele futuro marido não lhe agradava e que nunca o aceitaria? Quando a tia visse que estava decidida a recusar, apesar de tudo, o Sr. de Javerlhac, poder-se-ia então falar de Ernesto. Ver-se-ia o que prevaleceria na tia: se o seu desejo de a casar, se as suas exigências nobiliárquicas.

- É bom que saibas - continuou a Sr. a de Puylaurens - o que é já talvez do teu conhecimento: que lhe causaste uma impressão fulminante. Disse-me que eras uma criatura encantadora. Quanto à mãe, está maravilhada, gosta de ti, considera- te já sua filha.

Genoveva não podia deixar sua tia ir mais longe e, por muito que lhe custasse infligir uma decepção às suas esperanças e à sua alegria, era necessário dizer que não queria o Sr. de Javerlhac.

- Mas ele não me agrada, minha tia - disse ela com doce firmeza.

- Mas acabas de me dizer que o achas um bonito rapaz.

- Que importância tem isso? Não o conheço.

- Conhecê-lo-ás.

- Não me agrada.

- Agradar-te-á.

- Nunca!

- Nunca! Porquê?

- Porque é uma criança, um rapazinho. A mãe e o preceptor é que o governam.

- Querias que fosse um hussard?

Era preciso dizer qualquer coisa e apresentar razões para justificar a sua recusa.

- Queria que fosse um homem. Se soubesse, minha querida tia, como me desola ter de a desgostar; mas não lhe posso dizer que o Sr. de Javerlhac me agrada quando assim não é.

 

                   Reencontro tão esperado

Genoveva não imaginara que fosse tão difícil ver-se livre do conde; não lhe agradava, dizia-o à tia e estava tudo acabado.

Mas quando a Sr. a de Puylaurens lhe explicou as razões por que desejava casá-la e por que motivo escolhera o Sr. de Javerlhac, compreendeu que as coisas não se passariam tão facilmente; era preciso defender-se contra a tia, tão boa e afectuosa. Qual seria o resultado daquela luta?

Outro motivo de preocupação era saber se devia falar nas cartas daquele projecto de casamento.

Não queria dizer nada à mãe. Mas isso não evitava que o Sr. de Javerlhac voltasse ao castelo e Ernesto podia vir a saber daquelas visitas.

Falaria, pois, mas a ele somente; escrever-lhe-ia. Há muito tempo já que o queria fazer e muitas vezes sentia remorsos de ainda o não haver tentado. Agora não podia adiar, era preciso escrever.

Ernesto, meu querido Ernesto, a minha tia quer casar-me. Não é realmente uma fatalidade?

Toda a gente me arranja maridos. Depois do velho marquês, um jovem conde.

Estou desolada, humilhada, porque não queria que nenhum outro homem pensasse em mim e acho abominável que, nestas combinações de familia, me unam a alguém que não seja o Ernesto. Agora, que penso que pode vir a conhecer as intenções de minha tia e saber que um rapaz é recebido aqui e a que título, nada me pode deter; sou eu, a sua noiva, que lhe devo dizer o que o ameaça e ao mesmo tempo tranquilizá-lo. Não se aflija, portanto, meu querido Ernesto. A minha tia é uma santa e não prosseguirá numa ideia quefaria a minha infe licidade. Não digo que me seja fácil levá-la a abandonar o seu projecto. Empregarei, para a converter aos nossos desejos, toda a perseverança, toda a vontade, toda a tenacidade possiveis.

Já compreendeu certamente que o desejo ver. Sim, aqui, dez, cinco minutos que sejam; mas vê-lo-ei e terei retomado coragem para outro tanto tempo. Pense que, desde que estou aqui, ignoro tudo a seu respeito; nem jornais de Paris, nem cartas, excepto as da mamã. Então, à noite, quando estou sozinha, fico durante horas a sonhar, a imaginar o possível e o impossivel.

Mas vou vê-lo, não é verdade? É necessário que combinemos o que devo fazer, para resistir a minha tia sem a desgostar e de maneira a poder levá-la a consentir no nosso casamento. Seria tão feliz se ela lhe viesse a ter amizade e se o Ernesto a amasse como ela merece!

Tenho reflectido bastante nos meios que poderiamos empregar para passarmos alguns instantesjuntos e só achei um, não porque ofereça completa segurança, mas enfim, parece-me possivel.

Épreciso que saiba que não tenho nenhuma liberdade. Só saio para acompanhar minha tia; quandofico no castelo, estou rodeada de criados e especialmente vigiada por uma criada de quarto. Contudo, posso passear no jardim, e nas horas de maior calor tenho probabilidades de aí estar só. Da uma às três horas estou pouco mais ou menos livre e muitas vezes aproveito para ir sentar-me num bosquezinho de magnólias na margem do ribeiro, onde fico a sonhar. Com quem? É necessário que Lho diga? Não, não é verdade? Bem o sabe, bem o sente.

É, pois, nesse momento que podemos trocar algumas palavras. Para isso é preciso que se dirija ao prado que confina com o castelo. Pode instalar-se ali sem chamar a atenção dos curiosos, quer pescando à linha, quer desenhando. Quando me vir aparecer debaixo das magnólias só tem que descer ao leito do ribeiro, cujas águas estão baixas, epoderá assim chegar ao muro do jardim de minha tia.

Quatro dias depois de esta carta partir começarei a estar nojardim, à uma hora, à sua espera.

A té breve.

Na manhã seguinte, enquanto a tia recebia as suas habituais visitas na casa de Guilherme de Puylaurens, instalou-se a uma mesa e pôs-se ostensivamente a escrever.

- Que fazes tu, pequena? - perguntou a Sr. a de Puylaurens.

- Escrevo à mamã.

Era verdade. Assim que acabou a carta, aproveitou um momento em que a tia estava em conferência com um camponês e saiu, com a carta na mão.

Dias depois, a Sr. a de Javerlhac e o filho deviam vir a Cordes. Chegaram, como da primeira vez, acompanhados do franciscano, sem o qual, decididamente, não podiam dar dois passos.

Ao chegar, a Sr. a de Javerlhac beijou Geno veva, e o jovem conde, depois de ficar um momento a admirá-la, avançou de mão estendida como se lha fosse dar, o que não ousou fazer, contudo, perante um olhar do seu preceptor, que o fez parar imediatamente.

Tanto o jantar como o serão se passaram do mesmo modo que da primeira visita. Como dessa vez, colocaram-na entre mãe e filho, e como dessa vez também, a Sr. a de Javerlhac fez-lhe toda a sorte de perguntas sem que o jovem conde pudesse falar; mas se lhe disse poucas coisas, em contrapartida olhou bastante para ela, apesar dos sinais que o franciscano, vendo a sua atitude inconveniente, lhe fazia a cada instante.

Genoveva pensara que, como da primeira vez, partiriam no dia seguinte; mas ouvindo falar dum passeio à Commanderie de Vaour, viu que se enganara e que teria ainda de suportar as conversas da mãe e os olhares do filho durante mais um dia pelo menos. De começo ficou despeitada; em seguida, depois de reflectir, achou que melhor era que assim fosse: se deixasse aquele mudo continuar a fitá-la com olhares apaixonados, acabaria por imaginar que ela se deixaria impressionar com a sua admiração, e ela não queria que tal sucedesse. Isso era uma espécie de traição para com Ernesto; durante aquele dia, nesse passeio, teria certamente ocasião de estar só com ele alguns instantes e de lhe dar a conhecer a sua maneira de pensar.

Não teve de esperar pelo passeio; de manhã, antes do almoço, viu-o no jardim e então desceu para se encontrar com ele.

Quando a viu vir ao seu encontro, parou estupefacto; Genoveva apressou o passo, porque ele achava-se justamente a curta distância do sítio em que ela dissera a Ernesto que o esperaria, e agradava-lhe que fosse ali que ficasse resolvida a questão daquele casamento, como se, ao falar, tivesse diante dos olhos aquele a quem amava.

Corajosamente dirigiu-se a ele, enquanto que não menos resolutamente ele se dirigia a ela, e os dois ao mesmo tempo começaram a falar:

- Estou realmente contente por o encontrar aqui.

- É para mim uma felicidade inesperada encontrá- la sozinha no jardim.

Ouvindo aquilo, Genoveva calou-se, pensando que, visto ele ter principiado, valia mais ouvi-lo do que antecipar-se-lhe.

- Já é muito que minha mãe e a Sr. a de Puy laurens estejam de acordo com o nosso. casamento; mas não acho bastante; é preciso que nós próprios estejamos de acordo.

- Esse casamento é impossível - respondeu ela, resolutamente.

- Impossível? - exclamou ele.

Em vez de ver o desespero que havia naquela exclamação, só viu nela uma dúvida.

- Impossível! - repetiu ela em tom afirmativo. Ele levou algum tempo a reanimar-se.

- Certamente - disse ele por fim - não tenho a pretensão de ter produzido em si uma impressão comparável à que produziu em mim. Isso seria absurdo e dum orgulho que não está no meu carácter.

- Muito bem! E então? - interrompeu ela secamente.

- Meu Deus, menina, perdoe-me se a irrito...

- Não me irrita; surpreende-me.

- Se soubesse como fui educado, compreenderia esta reserva, ou, se a palavra não lhe parece justa, esta timidez. É o efeito dum hábito tomado, não do carácter. Várias vezes tentei escapar a esta tutela, mas não consegui. Porém, se tivesse uma mulher que me ajudasse, teria força para resistir. Apoiar-me-ia nela, que me defenderia contra a minha própria fraqueza, que, numa certa medida, é feita de ternura por minha mãe e de respeito pelo meu preceptor. E, além disso, se receia ter de suportar essa influência e essa autoridade, tranquilize-se.

Como ela não respondesse, escutando curiosamente aquelas explicações que eram uma revelação daquele carácter, julgou tê-la impressionado e tornou-se quase alegre.

Ela abanou a cabeça.

- Não me acredita? Dou-lhe a minha palavra.

- Acredito; mas já lhe disse que este casamento é impossível e só lhe posso repetir: nunca o aceitarei.

Era apenas meio-dia e meia hora; tinha, pois, muito tempo para se instalar no bosque de magnólias, visto ter fixado o encontro para a uma hora somente.

Apressou o passo, apesar de ter a certeza de estar adiantada; mas, ao chegar debaixo das magnólias, viu-o no prado, no próprio sítio que lhe havia indicado, desenhando ou, pelo menos fingindo desenhar; rodeavam-no três garotos, com as mãos atrás das costas, vendo o que ele fazia.

Por um movimento que ele fez, levantando o álbum no ar, compreendeu que a tinha visto e que só esperava que os garotos se fossem embora.

Finalmente, viu-o aparecer: estava só; desceu ao leito do ribeiro e, seguindo a margem seca, chegou ao pé dela.

- Genoveva! Querida Genoveva!

- Finalmente!

E, separados há três meses, preparados para se verem, ficaram interditos durante alguns instantes, não achando palavras para exprimir o que lhes vinha na alma.

De repente ela abanou a cabeça.

- Tem de me falar - disse ela. - Diga-me o que devo fazer.

- Não foi para isso que vim.

- Contudo.

- Foi então para isso que me chamou?

- Para o ver.

- E foi para a ver, para a contemplar, para a ouvir, para estar junto de si que vim logo que me escreveu.

- Para o ver, é verdade, porque morria por estar separada de si; mas também para lhe pedir que me aconselhe. Apressemo- nos. Pode vir alguém interromper-nos e obrigá-lo a partir.

- Mas que quer que lhe diga se não sei nada da sua tia nem das pessoas que a rodeiam? E, além disso, tenho inteira confiança em si. Desde que partiu tenho sofrido cruelmente por estarmos separados, mas nunca tive um minuto de inquietação. Não foi só por ser linda que a amei, minha querida Genoveva, mas porque é superior às outras mulheres pelo seu talento, pela sua inteligência e porque tem uma alma honesta, um coração bom, terno e corajoso.

- A minha carta - disse ela - falemos dela. Ah! Se tivesse podido receber uma sua contando-me o que fazia, porque as da mamã são quase mudas a seu respeito! O que me atormentava não era pensar: Amar-me-á ainda? , mas não saber o que havia sobre a sua comédia e o seu drama.

- Vão ser representados daqui a quinze dias: Chatelard, no Odeón, Sylvie, no Gymnase. Agora é certo. Os ensaios já estão adiantados e foi preciso a sua carta para não assistir aos de hoje, e por causa deles vejo-me obrigado a partir hoje mesmo.

- Se tivesse sabido.

- Felizmente não sabia! Chamou-me, vim.

- Como vou tremer agora! Em que aflição vou passar estes quinze dias! Gostaria tanto de estar lá! de poder partilhar da sua emoção, do seu triunfo, porque será um triunfo! E isso decidirá meu pai e também minha tia. sem dúvida. Se soubesse como é piedosa e como será difícil fazer-lhe aceitar um homem de teatro! É preciso que a sua glória vença tudo. Por isso lhe peço que, no dia imediato àquele em que as suas peças forem representadas, seja o próprio Ernesto a anunciar-me o seu sucesso. E volte, para que veja nos seus olhos o brilho do triunfo.

- Prometo-lhe.

- Até lá, nada receie. Já disse ao conde de Javerlhac que nunca seria mulher dele; se voltar, tornar-lhe-ei a dizer, e repeti-lo-ei até que o compreenda. Agora, parta; encheu-me o coração de força, de coragem e de alegria.

 

                     Triunfo de Ernesto

Genoveva perguntava todos os dias a si mesma se as estreias que esperava com tanta impaciência e angústia não seriam adiadas. Em todo o caso não se realizariam as duas na mesma noite, de maneira que teria depois de esperar pela segunda para saber, por ele, como decorrera a primeira. Não era exasperante? Recomendava à mãe que lhe falasse nas peças de Faré e lhe contasse tudo o que se dizia sobre elas. Aquela insistência podia, sem dúvida, surpreender o pai, que lia sempre as cartas; mas o tempo das cautelas tinha passado. Se tivesse agora desconfianças, não havia perigo; habituá-lo-iam à ideia de que ela podia amar Ernesto, e era mesmo melhor que admitisse aquela ideia de maneira a não cair das nuvens quando ele a pedisse em casamento.

Porque, daquele lado também, haveria dificuldades a vencer: o orgulho do nome, a ambição dum grande casamento. Mas não se inquietava muito, imaginando que, quando pudessem apoiar-se na fortuna que a Sr. a de Puylaurens lhes daria em dote, isso dominaria tudo.

Se a Sr. a de Mussidan tivesse a liberdade de escrever o que queria, teria dado à filha todos os pormenores que esta lhe pedia; mas como era obrigada a mostrar as cartas ao marido, só podia falar de Faré com uma certa reserva. Contudo, informou-a das datas das estreias assim que as conheceu. A de Chatelard, no Odeón, devia ter lugar no sábado, e a de Sylvie, no Gymnase, na segunda-feira seguinte.

Na melhor das hipóteses, Ernesto não podia chegar a Cordes antes de quarta-feira de manhã.

Qual não foi a sua emoção quando, no domingo de manhã, ao voltar da missa, viu em cima do seu guardanapo um telegrama.

- Um telegrama - disse a Sr. a de Puylaurens. - Lê depressa, minha filha.

Ela já tinha rasgado o envelope e lia: Enorme sucesso ontem à noite. Um triunfo. Mussidan.

A Sr. a de Puylaurens, que a olhava com inquietação, não teve necessidade de a interrogar para ser tranquilizada; não era certamente uma má notícia que acabava de receber: a felicidade iluminava-lhe o rosto; a alegria fazia-lhe tremer as mãos.

- Que tens tu? - perguntou a Sr. a de Puylaurens.

Estendeu o telegrama à tia.

- Muito bem! E então? - perguntou esta depois de ter lido. - Um triunfo? É teu pai que triunfa?

- É o amigo de que já lhe falei algumas vezes, o Sr. Faré, que estreou ontem, com grande êxito, no Odéon uma peça.

- Quem vem a ser afinal esse Sr. Faré, cujo sucesso te emociona tanto?

- É o nosso melhor amigo.

- Há muito tempo que o conhecem?

- Há quatro anos.

- Como é que o conheceram?

- Era amigo dos nossos vizinhos, os Gueswiller; foi em casa deles que o conheci. Se fiz algum sucesso, a ele o devo. Não só fez críticas a meu respeito, como as fez publicar em todos os jornais.

- Ah! É jornalista?

- Começou por ser jornalista para viver e para sustentar sua mãe, com quem vive.

- Que idade tem ele?

- Vinte e seis anos.

- É um bonito rapaz? - perguntou a Sr. a de Puylaurens num tom um pouco trocista.

- Oh! Sim - respondeu Genoveva com entusiasmo.

Desejaria que a tia continuasse a interrogá-la, porque não era só felicidade para ela poder finalmente falar dele, era ainda um dever que cumpria; mas quando preparava o que devia dizer para mostrar tal como ela desejava que o vissem:

- Muito bem! Já se falou bastante desse Faré

- disse a Sr. a de Puylaurens.

E foi necessário calar-se.

Era evidente que a Sr. a de Puylaurens não sim patizava com aquele jornalista que escrevia dramas e comédias. Gostava pouco de tal espécie de gente. Pelo tom das suas perguntas podia-se julgar quais eram os seus sentimentos por esse rapaz. Mas não o conhecia, não sabia o que ele valia, e a sua opinião era, em grande parte, feita de preconceitos. Quando soubesse a verdade, quando o conhecesse, quando pudesse apreciar o que havia nele de bondade e de ternura, de elevação de espírito, de nobreza de carácter, os seus preconceitos desapareceriam.

Finalmente, chegou a quarta-feira.

Ao meio-dia e meia hora pôde deixar a tia e correu ao bosque de magnólias. Ernesto ainda não chegara.

Estava ali apenas havia cinco minutos, de ouvido à escuta, os olhos postos no prado, quando viu aparecer Ernesto.

Levantou-se; mas ele já a tinha visto e com a mão fez-lhe um sinal sobre a significação do qual não havia dúvida: não era apenas a alegria de a ver, mas uma alegria completa.

Em poucos segundos estava ao pé dela.

- Um triunfo? - exclamou ela antes de ele chegar junto do muro.

- Um sucesso - respondeu ele.

- Oh! Como me sinto orgulhosa!

- E eu; como sou feliz, visto que vou ser seu marido.

- Trouxe-me os jornais?

- A sua mãe deve ter-lhos enviado.

- Que dizem eles?

- Bem sabe o que é o sucesso no teatro: uma loucura contagiosa; levam-me todos à glória.

- Como pode gracejar!

- Queria que me deixasse também enlouquecer? Se estou satisfeito por esta unanimidade nos aplausos, é por si, porque irá forçar, assim o espero, as rsistências que se opõem ao nosso casamento.

- Oh! Certamente. Já preparei minha tia com o telegrama de domingo.

- E que disse ela?

- Está pouco disposta a favor dum jornalista e dum homem de teatro; mas Sylvie vai acabar o que Chatelard começou. Conte comigo. A minha tia ama-me com bastante ternura para não desejar a minha felicidade. Quanto a si, enquanto eu agirei aqui, obtenha o consentimento de meu pai, e dentro de dois meses serei sua mulher, porque minha tia deseja casar-me imediatamente.

Falava olhando-o, inclinada para ele, ao passo que ele se alçava para se aproximar dela; no nomento em que Genoveva lhe dizia aquelas últimas palavras, teve a sensação de que alguém andava ao longe no prado.

- Fomos apanhados - disse ela a meia-voz. - Vem aí Adelaide, a criada de quarto de minha tia, que nos espia.

- Que deseja que faça?

- Não sei.

- Para que nos havemos de esconder?

- Porque queria ser eu a primeira a falar a minha tia.

- Acha que é o melhor meio?

- Acho.

- Como sempre, farei o que quiser. Falavam precipitadamente, mas Adelaide aproximava-se.

- Parta - disse ela resolutamente. - Volte para Paris e convença meu pai. Eu me encarregarei de convencer minha tia.

A sua resolução estava tomada: dirigiu-se para o castelo, onde chegaria certamente antes de Adelaide, obrigada a dar uma grande volta.

No momento de pôr a mão na maçaneta da porta, parou, comovida, ao pensar na responsabilidade que assumia e no desgosto que ia causar à tia; mas o amor deu-lhe coragem.

Entrou.

- Já de volta? - disse a Sr. a de Puylaurens, que não saíra da sua poltrona.

Como ela não respondesse, a tia olhou para ela e viu-a pálida, os lábios trémulos.

- Que sucedeu, minha filha?

- Uma coisa muito importante, minha tia, a mais importante da minha vida: acabo de ver o Sr. Faré.

- Onde?

- Na margem do ribeiro.

- Como é possível?

Genoveva hesitou um momento, o coração apertado; depois decidiu-se:

- Minha tia, devo confessar-lhe que quando vim para a sua casa estava noiva do Sr. Faré...

- Noiva? Noiva como? Por quem?

- Pelas nossas mães.

-E oteupai?

- Esperávamos, para lhe falar do nosso amor, como esperava para lhe falar a si, minha tia, que as peças do Sr. Faré fossem estreadas. Sylvie, a sua segunda peça, acaba de obter um sucesso idêntico ao de Chatelard; é aclamado por todos, e com esta dupla estreia colocou-se entre os mestres do teatro. Foi para me anunciar esse sucesso que ele veio, e é para me pedir a meu pai que volta imediatamente a Paris.

A Sr. a de Puylaurens estava estupefacta e de tal maneira atordoada que não compreendia bem.

- Sabias então que ele devia vir? - perguntou ela.

- Já cá esteve há quinze dias.

- Foi ele que te levou a recusar o Sr. de Javerlhac?

- Sim.

- E a tua mãe? - perguntou ela. - Como é que a tua mãe aceitou esse casamento?

- Aceitou quando viu o nosso amor.

- Não tem então consciência da vossa posição?

- A minha posição era ser um primeiro prémio do Conservatório e ganhar algum dinheiro tocando pelos salões. Parece-me que não era superior à do Sr. Faré.

Em seguida, sentindo que enveredava por terreno favorável, continuou com mais firmeza:

- E se tivesse ficado onde estava, se não tivesse vindo aqui, se continuasse a ser a pequena pianista de Montmartre, a posição do Sr. Faré seria hoje muito superior à minha.

A Sr. a de Puylaurens era suficientemente razoável e muito justa para não se impressionar com aquele argumento que a atingia: era certo que aquela a quem esse Faré tinha amado não era a herdeira da fortuna dos Puylaurens, mas sim a pequena pianista. Porém, a ideia daquele casamento feria-a de mais nos seus princípios e nas suas esperanças para que se rendesse.

- Não sei o que teu pai - disse ela - respon derá ao Sr. Faré; por mim, nunca aceitarei esse casamento.

- Oh, minha tia...

Mas a Sr. a de Puylaurens interrompeu-a:

- Não experimentes enternecer-me, minha filha; isso provocaria entre nós uma luta de que nada resultaria. Conheces-me bem e és bastante inteligente para compreender que tudo em mim protesta contra semelhante casamento.

 

                 Recusa do Sr. de Mussidan

Faré tomara o primeiro comboio para Paris e ia reflectindo nas dificuldades da sua situação. Não se convencia que, por ser o autor aplaudido de Chatelard e de Sylvie, o Sr. de Mussidan tivesse grande prazer em lhe dar a filha. E, por outro lado, parecia que, precisamente porque era o autor de peças de teatro, a Sr. a de Puylaurens não estava disposta a dar-lhe a sobrinha.

Eles podiam, na verdade, passar sem o consentimento da tia, desde que tivessem o do pai; mas, nesse caso, haveria um rompimento com a Sr. a de Puylaurens, o que desgostaria Genoveva.

Quanto a ele, achava-se em condições tais que devia desejar, mais que temer, aquele rompimento, porque, zangando-se com a sobrinha, a Sr. a de Puylaurens deserdá-la-ia, e então seria mais fácil para ele casar com Genoveva pobre do que com ela rica. E o que ele desejava naquele casamento não era a fortuna, mas sim a sua querida Genoveva.

O papel que Genoveva lhe tinha reservado não era tão simples de desempenhar como ela parecia acreditar. Era preciso abordá-lo com a maior prudência.

Decidiu que o melhor era falar primeiro com a Sr. a de Mussidan. Com esse fim dirigiu-se à Praça Dancourt, mas teve a pouca sorte de encontrar o conde na escada.

- Ainda bem que o vejo! Preciso de um serviço seu - disse o Sr. de Mussidan.

E enquanto o Sr. de Mussidan lhe explicava o que precisava, o que foi bastante longo, Faré perguntava a si mesmo se não devia aproveitar as boas disposições em que se encontrava o conde para arriscar o seu pedido. Que ganharia esperando? A sorte parecia-lhe favorável. Devia, portanto, aproveitá-la. Estavam no boulevard, onde podiam conversar relativamente à vontade.

- Não saberei dizer-lhe - começou ele - como me torna feliz a amizade que me testemunha.

- É sincera.

- Essa amizade - disse Ernesto - e a confiança que ela lhe inspira no meu futuro.

- Que será soberbo.

-. decidem-me a fazer-lhe uma confissão que não devo adiar mais.

- Uma confissão?

- Há muito tempo que amo a menina Genoveva.

- Genoveva?

- E peço-lha para minha mulher.

- O senhor ama a minha filha!

- Amo-a!

- E pede-ma em casamento!

- Já tem idade para se casar.

- E faz-me esse pedido aqui, na rua?

- Fui arrastado pela amizade que me demonstrou.

- Ora essa! Será possível que o sucesso lhe tenha subido à cabeça?

E o Sr. de Mussidan examinou-o com um ar de piedade.

- Vejamos, meu rapaz, não foi certamente a sério que imaginou que eu, conde de Mussidan, podia dar a minha filha a. Ernesto Faré?

A uma pergunta como aquela, Faré só podia responder ferindo o Sr. de Mussidan no seu orgulho e na sua vaidade. Calou- se.

- Não desejo humilhá-lo - continuou o Sr. de Mussidan num tom mais suave. - Deixo pois de parte essa consideração que a sua consciência pesará; mas há ainda outra que, sem dúvida, não se lhe apresentou ao espírito; aquela com quem deseja casar não só é a filha do conde de Mussidan, mas também a sobrinha e herdeira da Sr. a de Puylaurens, uma solteirona que lhe deixará uma bela fortuna.

Sobre aquele ponto podia Faré responder-lhe:

- É por ela que a amo e não pela sua fortuna. Não lhe peço dote, pois espero ganhar o bastante para lhe assegurar uma posição decente que, confio, irá melhorando.

- Decididamente - exclamou o Sr. de Mussidan - é mais criança do que eu pensava e, contudo, tem talento. Fiquemos por aqui, peço-lhe. Procurarei esquecer o seu pedido; por seu lado, esqueça o seu sonho. Adeus.

Enquanto isto se passava, em Cordes Genoveva mantinha-se no quarto, junto duma janela, imóvel, silenciosa na sua cadeira, atenta e pronta a aproximar-se da tia ao menor sinal.

- Minha filha - disse a Sr. a de Puylaurens. Genoveva levantou-se rapidamente e abeirou-se da cama.

- Precisa dalguma coisa, minha tia?

- Senta-te ali e escuta-me. Ama-lo assim tanto?

- Oh! Se o amo - exclamou ela.

- Pois bem! Telegrafa-lhe para que venha.

- Consente?

- Não posso fazer a tua infelicidade.

- Vou mandar Buvat - disse Genoveva. - É mais seguro.

- Antes, é preciso preparar o telegrama; escreve; vou ditar-to:

A tia consente; venha depressa; mas antes peça meu pai que lhe dê consentimento perante notário.

- Mas já deve ter esse consentimento - disse Genoveva. - Voltou para Paris para lho pedir.

Ao toque de campainha de Genoveva, Adelaide entrou.

- Manda-me Buvat - disse a Sr. a de Puylaurens.

O velho criado grave veio quase imediatamente.

- Leve este telegrama ao telégrafo - disse a Sr. a de Puylaurens. - Não fale a ninguém do seu conteúdo.

Eram três horas quando Buvat entregou o telegrama na estação de Cordes; às quatro chegava às mãos de Faré, no momento em que ia para Paris. Correu à Praça Dancourt, onde, como esperava, encontrou a Sr. a de Mussidan sozinha, trabalhando, enquanto o conde passeava nobremente debaixo das árvores amareladas dos Campos Elíseos.

- Oiça o telegrama que acabo de receber de Genoveva.

E leu-o.

- Ai de mim! - disse a Sr. a de Mussidan com desespero.

- Julga que isto não decidirá o Sr. de Mussidan?

Faré já tinha reflectido bastante para não partilhar da preocupação da Sr. a de Mussidan, e começava também a conhecer bem o Sr. de Mussidan para se persuadir de que considerações de sentimento e de família não teriam influência sobre ele; e, no entanto, devia conformar-se com o telegrama de Genoveva.

- Devo arriscar um novo pedido? - perguntou ele.

- Certamente; o Sr. de Mussidan deve voltar às seis horas aproximadamente. Espere por ele.

O Sr. de Mussidan chegou um pouco antes das seis horas e, ao ver Faré, mostrou mais satisfação do que descontentamento.

- Boa tarde, meu amigo - disse ele, estendendo- lhe a mão. - Como vai a bilheteira?

- Muito bem.

- Folgo imenso. Bem lhe disse, meu amigo: um grande sucesso.

Mas não era para ouvir falar do sucesso das suas peças que Faré esperara pelo Sr. de Mussidan. Tirou da algibeira o telegrama de Genoveva:

- Veja o telegrama que acabo de receber - disse ele.

- De quem?

- Da menina Genoveva.

- Vejamos lá esse telegrama - disse ele ao fim dalgum tempo.

Leu-o; depois, em silêncio, olhou para a mulher e para Faré como dois cúmplices que queria confundir.

- Foi então para me levar ao notário, onde darei o meu consentimento para esse casamento, que me veio buscar?

- Mas.

O Sr. de Mussidan interrompeu-o:

- Pois bem! Repito-lhe o que já lhe disse: É uma criança, mais do que uma criança. Toma-me então por um catavento, para imaginar que mudei depois da nossa última conversa?

- As circunstâncias é que mudaram.

- Não gosto que estejam sempre a falar das circunstâncias; mas, enfim, se lhe agrada a palavra, responder-lhe-ei que, se elas mudaram para si, também mudaram para mim. Quando me pediu a mão de minha filha, dirigiu-se a mim ingenuamente, sob a influência dum sentimento sincero, sem reflectir; e respondi-lhe, apesar da minha surpresa, tomando isso em consideração. Mas hoje já não se trata de ingenuidade nem de sinceridade. Este telegrama é um ultraje, um ultraje propositado, premeditado.

- É de Genoveva! - exclamou Faré, interrompendo-o contra sua vontade.

- É possível que seja de Genoveva, mas foi ditado por aquela velhaca, sua tia, a Sr. a de Puylaurens.

- Compreendo apenas uma coisa - disse ele. - A Sr. a de Puylaurens, na sua ternura por Genoveva, deixou-se comover e, apesar do seu orgulho, apesar da ambição que a sua fortuna podia precisamente inspirar-lhe, consentiu em aceitar-me, a mim, que não conhece.

- É justamente isso que prova que esse consentimento é dirigido contra mim; se o conhecesse, compreenderia, até certo ponto, que fosse levada.

- Foi-o pela sua afeição pela sobrinha.

- Foi-o pelo seu ódio pelo sobrinho. Sei o que digo, eu, que a conheço há cinquenta anos. Quis desonrar-me, rebaixar- me, e seria um cobarde, não seria um pai digno desse nome, se me inclinasse diante de semelhante vontade. Terá o meu consentimento hoje como o teve no outro dia. E ainda o terá menos, porque, para que lho recuse, há hoje razões que então não existiam.

Na rua, Faré pensou se devia responder imedia tamente a Genoveva ou esperar pelo dia seguinte para lhe dizer ao mesmo tempo o que a Sr. a de Mussidan conseguira; mas, depois de reflectir, achou que as vantagens que havia em não esperar pelo dia seguinte estavam acima dos inconvenientes e entrou numa estação de telégrafo onde entregou o seguinte telegrama:

Seu pai acaba de recusar; sua mãe faz nova ten tativa. Esperemos o dia de amanhã.

 

                   Intervenção da Sr. a de Puylaurens

O telegrama posto por Faré à noite em Paris chegou a Cordes no dia seguinte de manhã e só foi entregue a Genoveva às nove horas.

Ao acordar, a Sr. a de Puylaurens perguntou se o telegrama já havia chegado e, como Genoveva respondesse negativamente, manifestou uma certa impaciência.

- Desejaria tanto ter uma certeza o mais depressa possível!

Por aquelas palavras podia-se avaliar quais eram os seus receios.

Finalmente, Buvat entregou o telegrama a Genoveva, que não saía do quarto da tia.

- Lê depressa.

Ambas ficaram caladas, sem se olharem, Genoveva voltada para a janela a fim de esconder as lágrimas.

Estiveram assim bastante tempo; foi a Sr. a de Puylaurens a primeira a reanimar-se.

- É preciso não desesperar - disse ela. - Se fosse sensata, devia prever o que acontece.

- Conta com a mamã?

- Não, minha filha, porque tua mãe, receio-o bem, não poderá fazer grande coisa; conto comigo. Vais escrever uma palavra ao deão, ao doutor e ao notário Lacaze pedindo-lhes que venham imediatamente e mandarás Buvat buscá-los.

Foi o Dr. Azéma, que Buvat encontrou nos arredores do castelo, quem chegou primeiro; logo que ele entrou no quarto, Genoveva saiu.

- Sente-se pior? - perguntou ele, acercando- se da cama.

- Melhor, muito melhor; curada - respondeu a Sr. a de Puylaurens, mostrando-lhe o telegrama de Faré.

- Então o Sr. de Mussidan perde a cabeça? disse o doutor depois de ter lido.

- Pelo contrário; calcula, e muito bem. Há certamente alguém aqui que o põe ao corrente do meu estado de saúde e esse alguém - prosseguiu a Sr. a de Puylaurens - comunicou-lhe que eu estava doente, moribunda talvez, e o Sr. de Mussidan, vendo-se em vésperas de deitar a mão à minha fortuna, nega consentir num casamento que arruinaria as suas esperanças. Saiba ele agora que estou melhor e que, por consequência, a realização das suas esperanças se encontra indefinidamente adiada, e talvez consinta em dar-nos, ou antes, em vender-nos o seu consentimento para o casamento.

- Sem dúvida alguma.

- Quem me diria que teria tanto trabalho para conseguir realizar um casamento que ainda há alguns dias não queria. Mas para que ele se realize é preciso tempo e é por isso que o mandei chamar. Quanto tempo me dá de vida?

- Juro-lhe que, se não sobreviver qualquer complicação, o que aliás não parece provável, não há preocupação; somente o que lhe peço, o que lhe exijo, é que não se canse; isso poderia ser grave.

- Ainda algumas palavras ao deão e ao Sr. Lacaze e obedecer-lhe-ei.

- Enfim, fale o menos possível; voltarei cedo para ver como suportou essa fadiga.

A conferência que teve lugar entre a Sr. a de Puylaurens e o deão não foi longa, e quando o notário Lacaze chegou, foi recebido imediatamente.

- Julgava então que o chamava para fazer o meu testamento? - disse a Sr. a de Puylaurens. É dum casamento que se trata; o senhor deão explicar-lhe-á o que espero da sua intervenção.

E o cura deu-lhe essas explicações.

- Tem de escrever uma carta ao seu colega Dr. Le Genest de la Crochardière, notário em Paris. A Sr. a de Puylaurens deseja casar a sua segunda-sobrinha, a menina de Mussidan, com um jovem de grande futuro de quem certamente viu o nome nos jornais nestes últimos tempos: o Sr. Ernesto Faré.

- O autor daquelas duas peças que acabam de obter tão grande sucesso?

- Exactamente. Para isso necessitamos do consentimento do Sr. conde de Mussidan, consentimento que a Sr. a de Puylaurens, em virtude de ter cortado as relações com seu sobrinho, não pode pedir directamente mas que solicita ao Dr. Le Genest de la Crochardière para obter. Para esse efeito deverá comunicar ao Sr. de Mussidan que, em vista desse casamento, e por contrato, isto é, duma maneira irrevogável, a Sr. a de Puylaurens faz doação de toda a sua fortuna a sua sobrinha, mas com o encargo para a menina de Mussidan, que passará a ser a Sr. a Faré, de pagar a seu pai e a seus dois irmãos uma renda vitalícia a cada um deles. Além disso, o Dr. Le Genest de la Crochardière entregará ao Sr. de Mussidan, no próprio dia em que ele assinar a sua autorização, a quantia de vinte mil francos. São estas as suas intenções, não é verdade, minha senhora?

- Perfeitamente - respondeu a Sr. a de Puylaurens. - Contudo, peço-lhe o favor de acrescentar ainda as considerações morais que o notário de Paris deverá empregar junto do Sr. de Mussidan para acabar com as suas hesitações, se por acaso as tiver.

- É o que vou fazer agora. Depois, dirigindo- se ao cura:

- Escuto-o, senhor deão.

Este continuou:

- O ponto sobre o qual o Dr. Le Genest de la Crochardière deverá insistir, porque é decisivo, é o seguinte: nunca a Sr. a de Puylaurens consentirá em que o Sr. de Mussidan ponha a mão na sua fortuna, de modo que, se este casamento não se realizar como o deseja, deserdaria a sobrinha com receio de ser surpreendida pela morte e só a nomearia sua legatária universal no dia em que a menina de Mussidan estivesse em idade de escapar à autoridade paterna. Acentuará bem isto, não é verdade?

- Perfeitamente; o Sr. de Mussidan consente no casamento e, nesse caso, a Sr. a de Puylaurens nomeia a sobrinha sua legatária universal; o Sr. de Mussidan recusa, e então a Sr. a de Puylaurens, por precaução e por meio dum testamento provisório, nomeia outro legatário.

- Muito bem - disse o deão.

- Vou assinar-lhe um cheque de vinte mil francos - disse ela.

- Não se apresse, minha senhora - respondeu o notário. - Vou, se mo permite, escrever a carta ao Dr. Le Genest de la Crochardière aqui mesmo, a fim de lha submeter.

- O senhor cura vai acompanhá-lo ao meu escritório. Muito me obsequiaria dizendo ao Dr. Le Genest de la Crochardière que lhe peço, em vez de chamar o Sr. de Mussidan ao seu escritório, para ir a casa dele e para não descurar nada no intuito de obter esse consentimento.

 

                     O Sr. de Mussidan reconsidera

Eram dez horas da manhã quando bateram à porta. A Sr. a de Mussidan foi abrir e achou-se em frente dum homem todo vestido de preto, gravata branca, cara rapada, que a cumprimentou cerimoniosamente.

- O Sr. conde de Mussidan está?

- Sim, senhor.

- Quer fazer o favor de o prevenir de que o notário Dr. Le Genest de la Crochardière lhe pede alguns minutos de atenção para um assunto importante?

Não era a primeira vez que se viam; conheciam- se bem: o Sr. de Mussidan detestava o notário, e o notário desprezava o Sr. de Mussidan; deste modo, o seu encontro foi destruído de cordialidade.

- É da parte da Sr. a de Puylaurens que tenho a honra de lhe fazer esta visita - disse o notárioa fim de lhe dar conhecimento duma carta que o meu colega de Cordes me escreveu, ditada por ela.

- A Sr. a de Puylaurens já não pode escrever?

- perguntou o Sr. de Mussidan.

- Como se trata dum negócio, encarrega os seus procuradores de se ocuparem dele; não se inquiete portanto com o seu estado de saúde, que é excelente nesta ocasião, segundo me diz o meu colega. Além disso, aqui está a carta.

E leu-a.

Ouvindo falar do consentimento que lhe pediam, o Sr. de Mussidan abanou a cabeça, mas sem interromper; à proposta da renda vitalícia fez uma careta desdenhosa e o seu olhar só se iluminou quando a carta aludia aos vinte mil francos que deviam ser-lhe entregues contra a assinatura da acta de consentimento.

Como o notário lia devagar, fazendo uma pausa depois de cada palavra importante, via o efeito que a leitura produzia. Foi assim que, na passagem em que era dito que se o consentimento não fosse dado a Sr. a de Puylaurens deserdaria a sobrinha com receio de morrer de repente, viu o Sr. de Mussidan levantar-se arrebatadamente, exclamando:

- A velhaca! A doida!

Mas o notário interrompeu-o friamente:

- Faço-lhe notar, senhor conde, que represento aqui a Sr. a de Puylaurens, minha cliente, por quem nutro o maior respeito. Qualquer injúria que lhe dirijam é-me dirigida a mim. Tratamos de um negócio, e dos mais simples. Se assinar a acta de consentimento que mandei preparar e que está aqui, entrego-lhe já os vinte mil francos que trouxe comigo.

Tirou-os da algibeira e mostrou-os, amarrotando-os, de maneira que a vista e o ruído agissem ao mesmo tempo, porque o notário conhecia aquele duplo poder, e não era homem para o desprezar tratando-se duma personagem como o conde de Mussidan.

Pelo tremor de mãos do Sr. de Mussidan, que traía uma impaciência incontestável, viu que o efeito esperado se produzira; então, vagarosamente, voltou a pôr o maço de notas na algibeira e abotoou a sobrecasaca com cuidado.

Manteve-se calado durante algum tempo; depois, vendo os sentimentos contraditórios que agitavam o Sr. de Mussidan, como velho notário que era, habituado às hipocrisias da consciência, ajudou-o habilmente:

- Não me compete dar conselhos - disse ele.

- E porque não?

- Como não sou o seu notário.

- O senhor é notário, isto é, homem honesto e de bom conselho. Isso basta.

- Se o exige.

- Peço-lhe.

- Pois bem! O conselho que lhe daria era que aceitasse esta combinação, e isso não só no seu interesse, mas ainda no dos seus filhos, que é preciso não esquecer.

- Penso neles; penso até muito.

- Sem dúvida, se a Sr. a de Puylaurens estivesse moribunda, a situação mudaria; mas ela está como tem estado nestes últimos trinta anos e como estará durante talvez outros trinta.

- É nos meus filhos que penso; a fortuna foi-lhes adversa.

- Essa renda vitalícia permitir-lhe-á recomporem-se.

- Vamos; essa consideração prevalece. O negócio depressa ficou concluído e a assinatura dada. O maço de notas desapareceu logo na algibeira do Sr. de Mussidan.

Logo que o notário saiu, o Sr. de Mussidan foi ao quarto acabar de se preparar; depois, em vez de se sentar à mesa para almoçar, anunciou à mulher que ia sair.

Na rua entregou a um moço de recados um cartão seu no qual havia escrito a lápis: Venha imediatamente almoçar comigo ao Café Anglais e recomendou que o levasse a correr à Rua Girardon e o entregasse pessoalmente ao Sr. Ernesto Faré.

Feito isso, desceu o boulevard, altivo, soberbo, só pensando nas notas que estalavam na algibeira da sobrecasaca quando se empertigava. O presente era tudo; o passado e o futuro, nada; e o presente eram vinte mil francos na algibeira.

Enquanto esperava a chegada de Faré empregou o tempo a compor a ementa.

Aquilo ocupou-o tão agradavelmente que Faré o surpreendeu ao entrar no pequeno salão onde ele se instalara.

- Já?

Faré tinha acorrido ao chamamento para falar e não para comer, compreendendo bem que, se o Sr. de Mussidan o convidava, era para lhe anunciar alguma coisa de decisivo. Mas foi necessário que, antes de mais nada, fizesse as honras ao almoço, e foi somente depois da sobremesa que o Sr. de Mussidan, pondo o cotovelo na mesa, abordou o que tinha a dizer.

- Pois bem! Meu querido filho, sim. venceu-me.

Apesar de aquelas palavras serem claras, Faré não ousou entregar-se à esperança.

- O meu amor pela minha filha - continuou o Sr. de Mussidan -, a minha estima, o meu afecto por si, prevaleceram... Dou-lha.

Levantando-se dum salto, Faré agarrou as duas mãos do Sr. de Mussidan e apertou-lhas longamente.

- Agora, meu caro filho, venha anunciar o seu casamento a sua sogra e esta noite parta para Cordes.

Em seguida, com as lágrimas nos olhos:

- Vai ver a minha filha. É bem feliz; invejo- o.

 

             Casamento de Genoveva

A Sr. a de Puylaurens exigira que para se fixar a data do casamento se tomassem apenas em conta os prazos impostos pela lei e não a sua doença. Se estivesse boa, assistiria à cerimónia; se não estivesse, ficaria no quarto.

Apesar de Faré ter chegado em condições difíceis, ou talvez por ter chegado nessas condições, agradara-lhe e inspirara- lhe logo confiança e simpatia: por isso explicara-se francamente com ele a respeito do conde de Mussidan.

- Tem tudo a temer dele e nada a esperar. Se eu morresse antes do casamento, seria homem para recusar o consentimento já dado ou para lho vender bem caro.

- A satisfação moral é um famoso medicamento - dizia o Dr. Azéma ao verificar as melhoras que se produziam no intervalo das suas visitas.

Contudo, aquela satisfação não era completa para a Sr. a de Puylaurens.

Sentia-se feliz, sem dúvida, por poder arrancar Genoveva das garras do pai. E visto que era obrigada a aceitar um marido diferente daquele que escolhera, estava contente que esse marido imposto tivesse as qualidades que reconhecia em Faré.

Mas, por outro lado, a celebração daquele casamento seria para ela uma fonte de contrariedades que, desde já, muito a afectavam. Assim, ia ser obrigada não só a encontrar-se com o Sr. de Mussidan, mas ainda a recebê-lo em sua casa. Ao mesmo tempo seria necessário receber também a Sr. a de Mussidan e a Sr. a Faré, porque não podia impor àquelas crianças o sacrifício de se casarem sem a presença de suas mães. Não havia, sem dúvida nenhuma, comparação possível entre o horror que lhe inspirava o Sr. de Mussidan e o aborrecimento que lhe causariam as duas mães.

Aquilo era, para ela, um verdadeiro tormento de que se queixava sem cessar, não a Genoveva nem a Faré, mas aos seus confidentes habituais, o médico e o cura.

- Porque não aloja os seus hóspedes na casa de Guilherme de Puylaurens como alojou o noivo? - disse o cura. - O Sr. de Mussidan só poderia, quero crer, sentir-se honrado por habitar a casa do seu antepassado, e se, no dia do casamento, não se sentisse com disposição para o receber, ficaria dispensada da sua visita.

- Salvou-me, meu caro deão.

Expedidos os convites para o Sr. e Sr. a de Mussidan, bem como para a Sr. a Faré, não teve a Sr. a de Puylaurens qualquer outro aborrecimento senão a propósito dos convites que Genoveva desejava que se mandassem aos irmãos; mas nesse ponto não cedeu.

- Deixe-os eu voltar aqui - disse ela com uma franqueza que não podia mostrar quando se tratava do Sr. de Mussidan - e nunca mais se irão embora; perseguir-me-ão de manhã à noite e acabarão por me matar.

Perante aquela recusa formal, Genoveva só pôde escrever aos irmãos para se desculpar, o que fez afectuosamente.

Estando tudo assim preparado, a Sr. a de Puylaurens só tinha que se ocupar com o vestido de Genoveva e com o almoço a oferecer aos convidados.

Como parecia quase certo que não poderia sair do quarto no dia do casamento e que, além disso, o meio de evitar o Sr. de Mussidan, conforme lhe havia proposto o cura, pesava inconscientemente nas suas resoluções, decidira-se que seria na grande sala da casa de Guilherme de Puylaurens que o almoço seria servido, obstando assim a esses inconvenientes.

Aproximava-se o dia do casamento; o Sr. e a Sr. a de Mussidan deviam chegar somente na véspera, com a Sr. a Faré mas na manhã daquele dia receberam um telegrama desta última dizendo que tinha muita pena, mas não estava em estado de fazer a viagem; mas que, à hora da cerimónia, assistiria à missa na igreja de Montmartre e rezaria pelos seus filhos. Aquilo foi um alívio para a Sr. a de Puylaurens, mas ao mesmo tempo comoveu-a:

Pobre mãe corajosa, pensou ela e censurou o seu orgulho.

Quando o Sr. de Mussidan chegou à noite com a mulher e Luciano, que devia ser um dos padrinhos de Faré, dignou-se tomar por uma atenção a combinação que o fazia habitar a casa de Guilherme de Puylaurens.

No dia seguinte, durante a cerimónia, estava soberbo no elegante fato que mandara fazer para aquela circunstância; nunca se vira em Cordes um pai tão decorativo. Depois do casamento fez as honras da casa aos convidados com perfeita gentileza.

Entusiasmado com as histórias da sua glória que estava contando, não se apercebeu sequer de que a mulher, a filha e o genro se levantavam da mesa, porque a Sr. a de Puylaurens, não desejando que à sua felicidade se misturasse um remorso, pedira a Genoveva que lhe levasse a mãe.

Encontrando-se por fim só na carruagem nos braços do marido, Genoveva perguntou-lhe sorridente:

- Aonde vamos então?

- A Toulouse.

No momento de subir para o comboio, Faré comprou um jornal, o que fez com que Genoveva fizesse uma careta.

- É simplesmente para ver o tempo que faz em Paris - disse ele - e se os teatros estão cheios ou vazios.

Mas aqueles cujo nome é muitas vezes citado nos jornais têm uma vista especial para o encontrar onde quer que seja. Mal Faré abriu o jornal:

- Olha - disse ele, mostrando um artigo à mulher. - Falam do nosso casamento e, como tudo se paga neste mundo, anunciam-no na forma ridícula que eu empregava para anunciar o dos outros.

   

                                                                                Hector Malot 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"