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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LÃ E A NEVE / Ferreira de Castro
A LÃ E A NEVE / Ferreira de Castro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem. A solidão enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa sombra. A serra, porque só a pé ou a cavalo a podiam vencer, parecia incomensurável, muito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refegos brotavam superstições e lendas — histórias que os pegureiros contavam, ao lume, a encher de terror as noites infindas.

O homem viera para ali há muitos séculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda os que levantavam o seu abrigo de granito nos sítios mais propícios; e, quando o faziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circundante. Os génios da montanha e as fúrias do céu possuíam, assim, quase toda a majestosa extensão da serrania, ermáticos domínios onde podiam transitar com passos de fantasmas ou bramir livremente.

No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada depois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.

Pouco a pouco, porém, foi sendo tradição no reino que os homens da Covilhã e suas redondezas eram mestres, como nenhuns outros, em tecer bifas, almafegas e buréis. Então, os monarcas e seus acólitos acabaram atentando nesses tecelões dispersos pelas abadas da serra; e com ordenações, pragmáticas, alvarás e regimentos, ora os estimulavam em seu solitário labor, ora os constrangiam sob pesadas sisas. Da Flandres vinham panos concorrentes, que exibiam mais esmerada tessitura; apesar disso, os humildes teares continuavam a mover-se, alimentados pelos rebanhos da Estrela.

Depois, Portugal descobriu longínquas terras e também a rota marítima da índia; e houve que vestir a muitas gentes exóticas, a troco do que elas, forçadas ou voluntariamente, entregavam aos descobridores. E os teares da serra multiplicaram-se. Cada, tecelão trabalhava, ainda, no seu casebre, de lume aceso no Inverno e porta escancarada no Estio. A maior casa pertencia, então, ao deus do povoado. Mas, um dia, na Covilhã, ergueu-se uma casa maior do que a do deus. Era a primeira fábrica de tecidos. Muitos tecelões deixavam a faina individual e iam trabalhar em conjunto. Da Inglaterra e da Irlanda chegavam outros homens para lhes ensinar os últimos progressos da sua arte. A lã da serra já não bastava; ia-se mercá-la ao Alentejo e a outras terras do país. E os teares começaram a vestir os exércitos reais. Cada século aportava novos aperfeiçoamentos à tecelagem e levantava novas fábricas nas margens das duas ribeiras que desciam da serra, cantando, a um lado e outro da cidade.

Um dia, tudo se revolucionou. Já não se tratava de melhores debuxos, de mais gratas cores, mas de coisa mais profunda da produção automática. Lá nas nevoentas terras inglesas o padre Cartwright inventara o tear mecânico. A água, fazendo girar grandes rodas, começara a produzir o movimento dado, até aí, pelos pés do homem. Mas continuam a ser precisos os homens junto das novas máquinas.

Os serranos, que, nas solidões da Estrela, ora pastoreavam as suas ovelhas, ora teciam a lã que elas forneciam, tornaram-se cada vez mais raros. A maioria entrara nas fábricas. Eles tinham de regrar, agora, a sua vida por um salário fixo, chegasse ou não chegasse para as exigências de cada dia. Isso, porém, carecia de importância; ninguém pensava em aumentar-lhes os ganhos, pois havia de se ter sempre em conta o preço da mão-de-obra para a concorrência dos tecidos nos mercados.

Os homens passavam os dias e as noites dentro das fábricas, só saindo aos domingos, para esquecer o cárcere. Já não viam as ovelhas, nem ouviam o melancólico tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepúsculo; viam apenas a sua lã, lã que eles desenrugavam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, lã por toda a parte.

A indústria ia crescendo sempre. Agora não eram grandes apenas a casa do deus dos homens e as casas das fábricas; ao lado destas, outras casas grandes tinham surgido. as residências dos industriais. E todo o país falava da prosperidade da Covilhã.

Mais tarde, operou-se nova revolução. As enormes rodas que giravam nas ribeiras detiveram-se: o poder da água fora substituído pelo da electricidade.

E fábricas existiam onde já laboravam pais, filhos e netos. Os centos de tecelões que, outrora, viviam nos lugarejos da serra, tinham-se multiplicado e constituíam, agora, milhares. Lâneas personagens, que, de magros dinheiros dispondo, compravam o fio a uns, mandavam-no tecer a outros e a terceiros vendiam os panos, acabaram desaparecendo também, devoradas pelos industriais poderosos. E só ficavam as grandes fábricas, com seus milhares de operários.

A lã do país já não chegava; tinha-se de a procurar em terras estrangeiras. Da Austrália, da Nova Zelândia, da África do Sul, passaram a vir grandes carregamentos. Rebanhos distantes alimentavam, através dos mares, as fábricas quase escondidas nas ribeiras da Estrela.

A indústria sofria, porém, constantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria-prima ou parco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que a normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa.

A sujeição ao destino comum criara, todavia, alguns vínculos entre os descendentes dos primeiros tecelões. No século XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales, lubiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores dos homens que, às vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais de pão.

 

 

 

 

 

 

LOGO que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o “Piloto” deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo ’entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar -algo que lhe era conhecido. A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí amortecidos. “Piloto” estugou o passo. O caminho estava cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães que passiaram ali desde que Manteigas ’existia, desde há muitos séculos. Forçado a deter-se, até regava, à esquerda e à direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e com o visível modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o seu alvoroço. Por fim, lobrigou-o. Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de “Piloto”; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cimo da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão. Vendo-o assim, “Piloto” hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume quando este o chamava, à hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastoreando o gado, lá nos picarotos da serra. Só então o amo deu por aquela presença. Ele regressara nessa tarde do serviço militar e, no entusiasmo de ver pai e mãe, os vizinhos e, sobretudo, Idalina, não se havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Agora, porém, afagava-lhe a cabeça e metia, enternecido, um parêntesis na narrativa que estava fazendo:

— Olha o “Piloto”! O meu “Piloto”!

Idalina desviou ligeiramente os olhos para o cão e voltou a fixá-los na rocha, com aquele mesmo ar preocupado que tinha quando o bicho chegara. Houve um pequeno silêncio e Horácio volveu ao ton de voz anterior:

— Como eu ia a dizer, o quartel de artilharia antiaérea prantava-se mesmo à beira do mar. Viam-se passar os navios, que iam para Lisboa. As vezes, era cada um, tão grandalhão, que dentro dele ninguém podia ter medo de afundar-se. Ali perto ficava o Estoril. Tu já ouviste falar no Estoril? Aquilo é que é uma terra bonita! É como um jardim a perder de vista. Só te digo que lá até os pinheiros parecem árvores mansas! Nalguns, as roseiras trepam por eles arriba até chegar mesmo aos galhos. E todas as estradas são mais limpinhas do que o chão de uma igreja! Nas horas de dispensa, eu nunca me fartava de ver aquilo. Há lá automóveis por toda a parte e pessoas que falam o raio de umas línguas que a gente não percebe nada...

De súbito, Horácio pôs freio à sua loquacidade. Pela atitude e teimoso silêncio de Idalina, compreendeu que ela, desinteressada de quanto ouvia, pensava noutra coisa, aguardando que ele voltasse ao caminho de onde se desviara. Com a mão, Horácio afastou da sua perna a cabeça do “Piloto” e justificou-se:

— Eu estava a falar disto só por mor das casas... Tu não podes imaginar! As dos industriais daqui nada são comparadas com as que lá se vêem! Há-as de todos os feitios e lindas a valer! Todas estão no meio de jardins e, mesmo no pino do Inverno, têm flores. Eu passava horas a andar em frente delas e a olhar para dentro. Então eu ia pensando que ali é que se podia viver bem e ter muitos filhos e não aqui, na nossa terra. Depois, eu via que não gostava muito daquelas casas grandes. Parecia-me que, se uma delas fosse minha, me perderia lá dentro. Aquilo estava bem para gente com outros costumes, gente rica, que gosta de se deitar em quartos separados e de ter muitas salas. Não para mim, que quero dormir sempre agarrado a ti...

Horácio riu, contemplandoHa e desejando contagiá-la com o seu fervor. Mas o sorriso dela foi tão melancólico, coisa tão a despegar-se dos lábios, tanto de deitar fora, que ele protestou:

— Não ponhas essa cara de enjoo, que até me dás raiva! O que eu pensei não é nada contra ti. Vais ver! —Tornou a mudar de tom:— Um dia, fui além do Estoril, a um lugar chamado Parede, que fica ali perto. É de menos luxo, mas também muito limpo. Foi lá que eu encontrei uma casa pequenina, mas engraçada a valer. Se a visses! —A sua mão indicou o fim da congosta: — Olha: pouco mais ou menos do tamanho daquela ali, da tia Luciana, mas, em vez de ser assim negra, era toda branquinha e com as janelas pintadas de verde. E, em volta, muitas plantas. Eu pensei logo que uma casita assim é que estava mesmo a calhar para nós, não lá, já se vê, mas aqui. Podia ter outro feitio, para ficar ainda mais barata. O que eu queria era ter uma casa asseada e alegre e não com burros por baixo, como se vêem por aí. Foi por isso que eu te disse que devíamos deixar para mais tarde o nosso casamento... Pela primeira vez, depois que ele alvitrara aquilo, Idalina pronunciava-se:

— Estás muito mudado... Se ainda gostasses de mim, não me dirias isso...

Ele olhou-a com olhos sorridentes e glutões:

— Ora essa! Se estivéssemos num lugar em que ninguém nos visse, havia de te morder tanto a boca que já não falavas assim! Se é também por ti, minha tola, e pelos nossos filhos! Pois eu quero que me dês muitos filhos, que se pareçam contigo. Percebes? Ainda esta manhã eu vinha no comboio a pensar como serei feliz quando tivermos crianças. Mas eu não quero que elas vivam num chiqueiro, como vivem muitas daqui. Se tu visses como lá, no Estoril, se tratam as crianças! Aquilo, sim, é que é saber criar filhos! Eles andam em carrinhos quando têm poucos meses e, depois, quando são mais crescidos e vem o Verão, brincam na praia e nos jardins das casas, que é mesmo um regalo vê-los. Tu sabes que eu sempre gostei de crianças. E, até por causa disso, uma vez apanhei lá um susto. Eu estava a ver uns petizes a brincarem num jardim, quando o dono da casa, que ia a entrar, me disse com maus modos: “Se você continua aqui a desinquietar a minha criada, eu faço queixa ao seu comandante!” Eu nem vira nenhuma criada, mas não pude explicar-lhe, porque ele voltou-me logo as costas. Parece que o homem tinha adivinhado que eu estava há pouco na tropa e que ainda era lorpa. Durante alguns dias andei com medo de vir a ser castigado... Bom! Está bem de ver que os nossos filhos não podem ser criados como os de lá, porque nós somos pobres, mas podemos ter uma casinha limpa para eles e para nós. Demais a mais, não foi só no Estoril que eu vi casas assim; em muitas partes as há. Eu, antigamente, é que não reparava nelas...

Idalina interrompeu:

— E onde tens tu o dinheiro ?

Optimista e confiiante naquele poder de adaptação e de trabalho que ele sentia, instintivamente, em si próprio, Horácio não vacilou:

— Arranjo-o! Não o tenho, mas arranjo-o! Por quatro ou cinco notas compro ao tio Bernardo um pedaço de monte, ali em cima, que é lugar soalheiro. E se não for ali, será noutra parte. Eu não desejo grande coisa. Com meia dúzia de contos devemos pôr a casa em pé. Basta que ela tenha dois quartos, um para nós, outro para quando as crianças forem crescidas, uma sala de jantar, a cozinha e uma latrina pegada. Se adregar haver perto uma pedreira, já faremos uma economia. Eu mesmo, aos domingos e em todas as horas que puder, arrancarei a pedra. Mas, é claro, sempre são precisos pedreiros e carpinteiros. E, para isso, tenho de arranjar maneira de poder forrar algum dinheiro. Já pensei muito no caso, que julgas? A guardar ovelhas é que eu não morro! Hei-de arranjar outro trabalho, onde ganhe mais. —Baixou a voz, como numa confidência: — Quando me licenciaram e antes de vir para aqui, eu procurei em Lisboa... A ver se me empregava... Enquanto estive no quartel, ensinaram-me alguma coisa de ler e de escrever, pois eu, quando fui para a tropa, era uma desgraça: pouco mais sabia do que as primeiras letras. Assim, sempre posso governar-me melhor. Ainda ontem, de manhã, fui a duas casas, a dois armazéns de vinhos, no Poço do Bispo. Não arranjei emprego porque não tinha ninguém de peso que me recomendasse. O pai de um soldado que se tornou meu amigo acompanhou-me, mas como é gente pobre, quando ele falava eu percebia que os patrões ligavam-lhe pouca importância. Foi por isso...

Mas eu tenho outras pessoas. Não garanto que possa forrar num ano ou dois todo o dinheiro preciso para a casa; mas estando a ganhar bem, logo arranjo quem me empreste o resto, para eu pagar, depois, aos poucos. Mas... que tens tu?

Duas lágrimas desciam pelas faces de Idalina. Ele repetiu, surpreendido:

— O que tens? Por que choras? Ela começou a soluçar:

— Se tivesses muito amor por mim, não tinhas querido ficar em Lisboa, depois de saíres da vida militar... Quando começou a guerra, eu nem podia dormir. Como tu eras soldado e muitos diziam que Portugal, mais dia, menos dia, também havia de entrar na guerra, até se me partia o coração por tua causa. Bem tola eu era! Eu, aqui, a padecer e tu, agora, sem nenhuma pressa de vires. Porque mentiste há pouco, dizendo que estavas mortinho por me ver?

Horácio exaltou-se:

— E estava! Deixa-te de tolices, anda! Uma coisa não tem nada com a outra! Eu estava doido por vir, por te ver... Mas era por tua causa que eu ficava se tivesse arranjado alguma coisa de jeito...

— Cada vez te vejo mais mudado... choramingou ela ainda. — Essas terras por onde andaste fizeram-te mal...

Horácio tentou sorrir:

— O que diriam os outros recrutas se te ouvissem falar! Eles que ficaram cheios de inveja quando eu fui mandado para a artilharia antiaérea! Todos eles gostavam de ir, porque assim podiam ver Lisboa, que ficava a dois passos... Mas vá; deixa-te disso! Limpa-me essa cara! Se eu mudei, foi para melhor. Pegou-lhe numa das mãos, apertou-lha e olhou os olhos dela: —Compreendes?

Com as costas da outra mão, Idalina enxugou o rosto de faces largas, morenas, e boca de lábios grossos — lábios que a ele apeteciam veementemente, embora preferisse ver o de cima sem essa penugem que anunciava um futuro bigodito, semelhante ao da mãe dela...

— Bem... Porque não nos casamos e, depois, vamos fazendo a casa, pouco a pouco?

Ele acorreu em defesa do seu critério:

— Não é a mesma coisa! Também já pensei nisso, mas vi que não era a mesma coisa. Vêm os filhos, há mais responsabilidade e não se pode pôr vintém de lado. Pensei muito nisso. Ou julgas que só tu tens pressa? —A sua mão apertou mais a mão dela:— Se soubesses!

— Alugávamos uma casa, como se tinha combinado... — teimou Idalina.— É o que todos fazem. Poucos são os que têm casa sua. Por que havemos de querer ser mais do que os outros?

— Eu não quero ser mais do que os outros. Mas quero ter uma casa que me dê alegria. A gente aluga um destes poleiros aqui, acostuma-se, vai-se desmazelando e deixando ficar. Quando menos nos precatamos, a família cresceu e —pronto! — já não se pode fazer nada. Não quero isso! Quando fizermos a boda, o quarto e toda a casa hão-de ser novos e só nossos. E quando ficarmos sozinhos, eu hei-de atirar-me a ti, como um lobo... aos beijos. Assim... —• Ele estendeu os lábios: — Assim... Muitas vezes, eu imaginava isto, quando me deitava lá no quartel e apagava a luz. Começava a pensar em ti e era como se já tivéssemos acabado de casar. Pensava tanto que não podia dormir e até me vinham dores de cabeça...

Anoitecia. Nos topes da serra ainda havia rósea claridade, mas, cá em baixo, boiavam sombras cada vez mais densas. Com suas altivas lombas, as ramificações da montanha cercavam, de todas as bandas, a vila postada quase no fundo do grande vale, ao pé do Zêzere, que na paz crepuscular adquiria voz forte, correndo e cantando entre os penedais do seu leito. A luz parecia desprender-se, como um. véu, da imensurável cavidade, deixando ainda vermelhar a telha francesa das casas abastadas, enquanto os negros telhados dos pobres se somavam já à escuridão que avançava. Nas encostas, os pinheiros formavam mancha compacta e, nos vastos soutos, os castanheiros, de arredondadas frondes, dir-se-iam sem troncos apenas largas copas pousadas nos pendores, como um acampamento aguardando a noite.

Idalina procurou soltar a sua mão de entre as mãos de Horácio:

— Vou-me embora. Faz-se o que tu quiseres. É pena, porque eu e a minha mãe já tínhamos arranjado umas coisitas para o enxoval e todo o povo estava à espera de que o nosso casamento fosse logo depois de tu voltares da vida militar, como tínhamos dito.

A sua voz mostrava-se tão melancólica, tão passiva, que ele comoveu-se:

— Não se faz o que eu quiser, não, senhor! Só se faz o que eu quiser, se tu quiseres também. Eu acho que é uma asneira, pois somos ainda novos e podíamos esperar. Tu ainda não fizeste vinte anos e eu pouco mais tenho Dois ou três anos levaríamos a levantar a casa e podíamos começar a nossa vida em melhores condições. Mas se tu não quiseres, paciência! As vezes, até desejo que tu não queiras... Porque eu estou a dizer-te isto e, ao mesmo tempo, estou mortinho por fazer o contrário. Compreendes?

Ela não respondeu logo. O “Piloto”, que havia desaparecido, voltara a deitar-se junto da rocha, aos pés deles. A sombra da noite ia já meia encosta e lá em baixo, na ruela, a tia Joana Pucareira passava com um molho de lenha à cabeça.

No seu silêncio, Idalina transigia, lentamente. Depois das últimas palavras de Horácio, aquela Ma

acamava-se, com mais facilidade, no seu espírito. Agora, ele parecia-lhe sincero.

— Talvez seja melhor como tu dizes murmurou ela, por fim.— Pensando bem, talvez seja melhor. Custa-me muito, mas faz-se assim, como tu queres...

— Já te disse que também a mim me custa. Aliás quando penso que, ao voltar do trabalho, tu estarás à minha espera numa casinha nova ie que as crianças terão um chão limpo, sinto uma grande alegria. Havemos de ser muito felizes, verás!

Num impulso, estendeu os braços, para apertá-la. Ela afastou-o:

— Não... Não... Podem ver-nos! Vamos-nos embora, que já é tarde...

O lusco-fusco apardaçara toda a terra, desde o vale às cristas das Penhas Douradas. Dir-se-ia que uma poalha escura e flutuante envolvia tudo, as casas dos homens e os fojos dos lobos, nos declives abruptos, e se apossava do próprio céu.

Os dois levantaram-se. Depois do longo diálogo, ela voltava a olhar, direito, para ele. Parecia-lhe, na ténue obscuridade, ainda mais forte, mais másculo do que quando partira dali. Ela, agora, sentia orgulho de vir a tê-lo por marido e, ao mesmo tempo, melancolia por não o ter já.

Iam caminhando, calados, um ao lado do outro. Por vezes, os seus corpos tocavam-se. Esse roçar de ombros, que parecia casual, provocava-o Horácio, obediente a uma ideia fixa. A cada passo, os olhos dele vasculhavam os derredores. Não havia ninguém. A luz, que saía de frinchas e de postigos, projectava-se sobre as pedras e a lama da ruela e tornava-se cada vez mais viva na noite nascente. Um vulto surgiu, ao longe, mas logo entrou num dos casebres. Ao passarem sob as janelas da tia Luciana, ele ainda olhou para cima. Encontravam-se fechadas. Idalina dera pelas precauções dele, pressentia o seu intento e desejava a mesma coisa, mas fingia-se distraída.

“Ainda seria melhor —pensou— do que no penedo, que estava mais à vista.”

Horácio estendeu o braço e atraiu-a a si. Ela ainda simulou reagir, mas logo as suas bocas se colaram. E já uma das mãos dele descia para os seios dela, numa carícia, quando se ouviu algo que rangia, timidamente. Horácio levantou os olhos e adivinhou, mais do que viu, a caratula da velha Luciana à sua janela acabada de abrir.

Idalina ficara perturbadíssima. Ele, porém, sorriu, bonacheirão, e falou para cima:

— Bico calado, tia Luciana, se não quer que lhe caia um raio em casa. Entendeu?

A velha, em vez de responder, fechou estrepitosamente a janela, mas logo voltava a abri-la, curvava-se no peitoril e gritava, furiosa e escandalizada, para Idalina:

— Pouca vergonha! Andar aí pelos caminhos, como as cadelas! Não pode esperar, a princesa! Vê-se cada coisa nestes tempos!

Antes que recebesse troco, tia Luciana cerrou a janela, novamente com. violência.

Idalina começara a andar, apressada. Ele seguiu-a com dificuldade, sorrindo ainda, ocultando o seu nervosismo. Percebeu que ela chorava.

— Deixa lá! consolou.— é feitio da velha, bem sabes. Não casou, não teve quem a quisesse. Não te rales... Ora esta! Então o diabo não queria que eu passasse tanto tempo fora daqui e, ao voltar, nem ao menos te beijasse? O estupor esteve, com certeza, a espreitar-nos por detrás dos vidros toda a tarde...

— Vai encher tudo, por aí...—murmurou Idalina.

— Não vai... Mas se for, acabou-se! Não vamos nós casar?

Tinham começado a descer a congosta. Era uma rua estreitíssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em pátios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avançando para sombrios recantos, numa sugestão de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e ’aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoro do nulherengo nas horas do paleio com as vizinhas. Algumas dessas portas e janelas estavam abertas e, atrás delas, pairava a rúbida claridade do fogo que, lá dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianças, as suas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espaço doméstico, cirandavam numa confusão de movimentos humanos e de trapos dependurados.

Calcando as pedras abauladas e irregulares da rua onde, no Inverno, as enxurradas faziam correr todos os detritos, os detritos que, no Verão, secavam, cheios de moscas, ao bom sol da serra, Horácio procurava distrair Idalina:

— Vês? É isto que eu não quero. Quanto melhor é uma casinha como a que eu penso!

Ela não respondia, sempre lesta no seu passo curto, zape-zape ladeira abaixo. Por fim, deteve-se. Estavam em frente da sua casa, igual à maioria das outras, com duas portas sobre a rua, uma sempre fechada, que eles, de tão pobres, não podiam ter nem porco nem onagro na loja escura, e outra dando para a escada interna, estreitos degraus de madeira que ligavam ao primeiro piso.

— Até amanhã...

— Até amanhã... E não te apoquentes! Aquilo não tem importância. Mesmo nenhuma!

Ele falava assim, mas estava, também, enervado, sobretudo pelo mal-estar que sentia em Idalina, ao despedir-se. Decidiu de repente:

—Vou dar a salvação aos teus pais.

E, com ela adiante, temerosa do que iria acontecer, meteu às escadas. A senhora Januária, que estava para o fundo da habitação, ao pressentir a entrada da filha, admoestou de lá, com sua voz roufenha:

— Boas horas de voltar, não haja dúvida!

Ao ver, porém, a cabeça dele emergir na abertura do soalho, retraiu-se:

— Ah, tu vens também!...

— Nosso Senhor lhes dê boas-noites. Como têm passado?

— Vem com Deus. Cá vamos indo... E tu?

— Não há mal que me chegue... Vaso ruim não quebra...

A senhora Januária, cinquenta anos bem contados, pele arregoada e tão escura que nem a de uma cambojana, avançava para ele:

— O meu homem terá gosto em ver-te. Não queres subir?

O piso em que se encontravam era formado por uma divisão estreita, atravancada com duas arcas de pinho, alfaias agrícolas e roupas velhas dependuradas. Ao fundo estava um quarto — simples tapume contornando, rente, a cama, como era costume nas casas pobres. Horácio lançou-lhe um olhar, condutor de voluptuosas ideias, por saber que Idalina dormia ali. Mas já a senhora Januária fazia o gesto de lhe franquear a outra escada, como se lhe tivesse aberto uma porta. Ele começou a subir, por entre os irmãos mais novos de Idalina, que, tendo sentido presença estranha, haviam corrido de cima, aglomerando-se nos degraus.

— Estás muito crescido... E tu também... E tu também... — ia-lhes dizendo.

O segundo piso, todo negro de fuligem, era ocupado pela cozinha, sem chaminé, e um outro quarto, maior do que o de baixo, pois além da tarimba conjugal havia nele, a um dos lados, uma enxerga sobre o soalho, para as crianças. E como nas demais casas de operários, jornaleiros e pastores da vila, os dois andares, com estreitura de corredor, terminavam num meio forro, sob a telha vã, para o qual se marinhava por uns escadotes de vindimas. Ali, a uma banda, se espalhavam as batatas que a família pudesse cultivar e, na outra, dormiam, sobre palha, os filhos mais velhos.

O tio Vicente, fraco de ouvidos, só deu por Horácio quando este e a senhora Januária se puseram em frente do seu nariz. Estava deitado no quartelho, de porta aberta, esperando a hora da ceia. Saltou da cama:

— Viva! Já sabia que tinhas vindo. E, então, como te deste por lá?

Os outros irmãos de Idalina, o Romão, o Zeca, já uns homens, aproximavam-se também. Ele cumprimentou-os, inquiriu da saúde de todos, e, à medida que ia contando a sua vida na tropa, ia dobrando, dobrando cada vez mais, sob nascente covardia, a ideia que o fizera, de súbito, trepar ali. “Não, não diria nada nessa noite. Tinha de pensar primeiro como havia de dizer aquilo. Era conversa para depois, quando tivesse arranjado novo trabalho e se encontrassem sozinhos, sem o Romão e o Zeca.”

Estavam todos de pé e o tio Vicente puxou uma banca:

—’Não queres sentar-te?

— Não, muito obrigado. Hoje não posso demorar-me. Já é tarde. Vim apenas para os ver.

Começou a desandar para a escada, falando ainda. Pareceu-lhe, porém, que Januária farejava na alma dele, pois ao topar os seus olhos vira-os com uma expressão incerta, vagamente pesquisadora, que não lhe conhecia.

Idalina esperava-o no primeiro piso. Sussurrou-lhe:

— Disseste-lhes alguma coisa?

— Não. Fica para outro dia. Olha: se tiveres ocasião, diz-lhes tu...

A luz do candeeiro projectou na parede, deformando, a sombra da mão dele ao afagar, de partida, a face de Idalina.

Já na rua, de dedos nos bolsos e passo vagaroso, Horácio começou a assobiar. “Não fora grande coisa o dia da sua chegada. Pensara que Idalina acharia logo boa a resolução dele e, afinal, tivera de gastar um ror de tempo para a convencer. E, ainda assim, parecia que ela não estava lá muito convencida...”

O “Piloto” continuava a seu lado. Depois, adiantou-se e meteu a cabeça a uma porta que se encontrava apenas encostada e que, com a sua passagem, se entreabriu. Horácio entrou também e subiu os degrauzitos que davam para o primeiro andar, sobre a loja destinada ao “vivo” —aos animais domésticos— como nas outras casas.

— Que fumaceira!—protestou, ao chegar acima. Mal via a mãe acocorada sobre a pedra onde o

fogo começava a pegar. Mais adiante, sentado num cepo de carvalho, o pai cosia as solas de uns velhos sapatos. O senhor Joaquim não era sapateiro, mas sobrava-lhe jeito para aquilo. Remendos, meias solas, tacões, tudo quanto não exigisse máquina, punha-os tão bem e com maior pontualidade do que os profissionais de banca e tripeça à porta, seus inimigos de língua solta, porque ele, ’assim sentado em casa, sem pagar contribuições, trabalhava mais barato. Para o tio Joaquim aquilo constituía ocupação apenas de horas vagas, pois nas outras, a menos que fosse semana de pastorear o gadito próprio e o alheio, ele cuidava das duas áreas que possuía ao pé da encosta ou alugava os seus braços para a terra de outrem.

Horácio tirou o chapéu e, passeando os olhos desde a figura do pai até às negras paredes da cozinha, disse, como se falasse sozinho:

— Está tudo na mesma...

De tarde, ao regressar de Lisboa, nem reparara na casa, comovido como se encontrava. Agora, aquela cena lembrava-lhe todos os começos de noite que ele passara ali, na infância, até ser pastor do Valadares, e nos dias que antecederam a sua partida para a vida militar.

O velho Joaquim ergueu os olhos da sola que cosia:

—.Está na mesma o quê?

— Isto. Tudo isto. É tal qual como quando eu abalei...

— Então tu querias que estivesse diferente? —Não, não. Digo isto por dizer...

Voltou a olhar a quadra, toda negra e surja, com uma cama de ferro lá ao fundo, onde dormiam os pais, uma arca rústica, a cantareira com pratos e tigelas, sobre a lareira o caniço para as castanhas e, em frente, a porta do seu quarto. Ao lado da porta, os safões, o alforje, o capote e o seu chapéu de pastor, como se ele, durante a sua ausência, tivesse ficado, sem corpo, dependurado naquele prego.

Família pequena, a casa era também mais acanhada do que a maioria das outras: contava apenas a loja e aquele pisito por cima, onde eles cozinhavam e dormiam, onde se instalara a vida deles. Havia electricidade na vila, mas nenhuma casa pobre a tinha; a luz, à noite, dava-a um candeeiro de petróleo ou trémula candeia de ’azeite.

Horácio sentou-se em frente do pai e ficou calado, de braços sobre as coxas, as mãos soltas entre as pernas, a cabeça vergada. A ideia de se casar e de viver num casebre assim atafegado e sombrio, parecia-lhe, agora, ainda menos aceitável do que quando, momentos antes, a repelira junto de Idalina.

—porque há diferença, há —afirmou, lentamente, o tio Joaquim. — Tu é que não reparaste. Estou mais velho... Quando tu foste, ainda eu via bem e agora mal enxergo o buraco da sovela. Fazem-me falta uns óculos, mas não tenho tido dinheiro...

Horácio tornou a olhar o pai. Estava, com efeito, mais engelhadito, as costas mais dobradas. Só a mãe, abanando pachorrentamente o lume, que começava a levantar cristas sob a panela, parecia não ter sofrido alteração alguma. Há dez anos que ela dir-se-ia insensível ao tempo, com a sua tez queimada pelo sol, as faces secas, de ossos salientes, os lábios pregueados sob um nariz pequeno. O povo, ao vê-la trafegar na vida dura, fosse nas suas territas, fosse a auxiliar os demais, a troco de alguns escudos, dizia que ela, apesar dos seus sessenta anos bem contados, havia de assistir ao enterro de todos os moradores da vila. “Qual! —protestava a senhora Gertrudes.— Cada vez tenho mais brancas!” Protestava, mas, no fundo, sentia orgulho da sua resistência. “Lá feita de manteiga, como essas raparigas de agora, não era ela, isso não, louvado fosse Nosso Senhor!”

— Dê-me um tição, mãe.

A senhora Gertrudes passou-lhe um garaveto a arder.

— Resolvi adiar o casamento... Combinei, agora, com a Idalina...—’disse Horácio, acendendo o cigarro.

— Adiaste o casamento? — estranhou a velha. O pai, de sovela na mão e um sapato entre as pernas, olhava também para ele, surpreendido. —Não seria mau, não, porque isso sempre traz despesas e agora não nos fazia jeito — volveu a senhora Gertrudes. — Mas porque adiaste?

Ele narrou, então, a sua ambição — aquela casita que trazia nos olhos, o seu desejo de começar a vida de casado num lugar airoso e limpo, para eles e para os filhos. O pai, sem o interromper, ia aprovando com a cabeça. A senhora Gertrudes, de olhos fixos nele, parecia suspensa não do que ouvia, mas do que ele ainda não dissera. E quando Horácio se calou, perguntou-lhe:

— Olha lá! E como vais arranjar isso?

Era a segunda vez que, naquela tarde, ele tinha de defrontar-se com a mesma interrogação — a mesma dúvida na boca da mãe e na de Idalina. Mas a sua confiança em si próprio continuava, absoluta. Estendeu os braços com as mãos fechadas e sorriu:

— Com estes! Pois como há-de ser? Tenho cá umas ideias... ou entrar para as fábricas ou arranjar um emprego...

— Mas como?

— Depois se verá!

A senhora Gertrudes esperou, algum tempo, que ele adiantasse mais. Mas como Horácio prosseguisse nos seus modos reservados, ela ergueu-se e caminhou para a pequena mesa. Apertou algumas couves na mão esquerda e, com uma faca, começou a cortá-las.

— Então tu pensas deixar o Valadares?

— Pois! Não é guardando o rebanho dele que levantarei cabeça...

— Mas ele contava contigo. Tinha-se combinado que ele não meteria outro moço, para que tu não ficasses à boa vida quando voltasses...

— Está bem... Se eu arranjar outro trabalho, dou-lhe uma desculpa...

— O Valadares não vai ficar satisfeito e com razão. Para poder guardar o lugar para ti, ele não tem pastor. São os filhos que têm tomado conta do gado. E como os rapazes lhe faziam falta nas terras, teve de pagar a jornaleiros...

Horácio cortou:

- Eu não gosto do Valadares, mãe! Há muito tempo que não gosto dele. Nunca disse nada, porque vossemecê, sempre que eu fazia alguma queixa, não me ligava importância; dizia que eu era um fedelho e que não sabia o que era a vida. Mas vossemecê está enganada. Se ele guardou o lugar para min, não foi pelos seus bonitos olhos, nem para me fazer favor. Foi no interesse dele. Ele mesmo, às vezes, dizia que não havia ninguém como eu para saber fazer queijos e tratar bem o rebanho...

— Parece que te estragaram, lá na vida militar... Estás com uma vaidade! Se o Valadares dizia isso é porque é boa pessoa e gostava de ti. Outro, mesmo que fosse verdade, calava-se.

— É... gostava de mim! Duas vezes que lhe pedi aumento de soldada, não me deu nem mais um chavo. Acostumou-se a pagar-me como quando eu era garoto, quando comecei a acompanhar o tio Luís — e nada! Vossemecê bem sabe o trabalho que teve para ele me dar mais alguma coisa quando eu fiz dezanove anos. Foi preciso vossemecê ir lá com choradeiras...

— Eles também não são ricos —desculpou a senhora Gertrudes.— Têm aquelas terras que ’lhe tomam todos os braços e por isso não podem cuidar do gado. Mas não é que a riqueza por lá abunde...

— Vossemecê já pensou quanto eles teriam de pagar, agora, por um moço que fosse para o meu lugar? Pouco, que isto de ser pastor é uma desgraça, mas com certeza muito mais do que a mim. Se eu puder deixá-lo, deixo-o! Eu já tinha resolvido isso mesmo antes de ir para a tropa. Estava só à espera de arranjar outra coisa. Pois como é que eu poderia manter uma casa com o que ele me paga? Mesmo que arrendasse uma courela para a Idalina amanhar, não podíamos viver só com isso e a minha soldada. Não é verdade?

A senhora Gertrudes não disse nada. Pôs as couves num alguidar, lavou-as e, por fim, meteu-as na panela. O pai debruçara-se mais sobre o sapato, mostrando-se muito atento aos buracos que ia abrindo com a sovela. Horácio estranhava-os. Nunca eles haviam defendido assim o Valadares, que, embora pequeno proprietário, era um dos três únicos donos de ovelhas que fruíam alguma prosperidade em terras de Manteigas.

A senhora Gertrudes tapou a panela, tornou a espevitar o lume e, depois, foi fechar as janelas que abrira pouco antes, para saída do fumo. Quando voltou, colocou-se em frente do filho, as gretadas mãos postas sobre as ancas, os braços em forma de asas de cântaro, como era seu costume sempre que se exaltava ou tinha de falar com solenidade a alguém.

— Pode ser que tu tenhas razão... Não digo que não... Mas nós não podíamos adivinhar o que tu tinhas resolvido. O teu pai adoeceu, esteve à morte. Nunca te mandei dizer toda a verdade, para não te afligir. Mas eu pensei que tu nunca mais o verias. Até cá veio o doutor, oito vezes. E os remédios custavam uma fortuna. Foi-se tudo o que tínhamos, que bem pouco era. Vendi todas as nossas ovelhas. Ficámos reduzidos às três cabras. E eu precisava ainda de mais quinhentos mil réis. Um dia, botei-me até aí à casa desse malandro do Rufino. Pensei que ele ainda tivesse uns restos de coração, mas aquilo é pior do que um cigano. Prometi que lhe pagaríamos em dois anos. Ele respondeu-me que emprestar, não emprestava; mas que não tinha dúvida em comprar, por três contos, a nossa courela que está pegada às suas terras. Eu vi logo a intenção dele. Como não tínhamos querido vender aquilo das outras vezes, mesmo quando ele oferecera quatro contos, o maroto, ao ver-nos com a corda na garganta, queria aproveitar-se da ocasião. Eu, então, disse-lhe que guardasse para ele todo o seu dinheiro. Que eu preferia atirar-me, viva, à cova onde enterrassem o meu homem, do que ver a nossa courela nas mãos dele! E preferia!

A senhora Gertrudes fez uma pausa e deu outro tom à sua voz:

— As lágrimas que eu chorei depois, quando vim para casa! Foi, então, que me lembrei do Valadares. Mais ruim do que o Rufino não podia, ser. Fui até lá. Ele recebeu-me bem e emprestou-me os quinhentos mil réis, para descontar nas tuas soldadas...

— O quê?! Nas minhas soldadas?

— Pois foi... Eu não podia adivinhar... Se soubesse que tu não querias voltar para casa dele, eu não tinha aceitado isso...

— Então foi o Valadares quem falou em descontar?

— Eu prometi-lhe, como ao Rufino, que pagaria em dois anos. Mas ele disse-me: “Não vale a pena incomodar-se. Desconta-se nas soldadas do rapaz.”

Horácio levantou-se e caminhou até o janelo que a mãe havia fechado. Abriu-o e nele meteu a cabeça a receber o ar de fora. Tornou a cerrá-lo:

— Quer dizer que eu tenho, agora, de trabalhar para ele um ror de meses... Se eu já não tivesse resolvido adiar o casamento, tinha agora de o adiar por isto...A mãe não respondeu. Mas o pai, que até aí se conservara em silêncio, um silêncio humilde, como se ele, por haver estado doente, fosse o culpado de tudo aquilo, disse:

— Não vale a pena ralares-te. Nós tínhamos pensado, em último vender a courela, para tu casares. Se quiseres, vende-se. Não ao Rufino, claro, mas a outro qualquer... Com tempo,sempre se há-de arranjar quem fique com ela... Assim como assim, essas territas eram para ti... orácio. fez um gesto negativo. Ele sabia que os pais dificilmente poderiam viver sem aqueles dois degraus abertos na anca da montanha, alguns metros de chão onde cultivavam centeio e batatas, seu principal alimento. Com isso, os tostões da sovela, alguns jornais que ganhavam e o rendimento das onze ovelhas, se mantinham. Agora, vendidos os bichos, bem teriam de apertar a barriga, pois sem o dinheirito da lã e do queijo não poderiam mercar todas as coisas precisas numa casa, mesmo o pão, já que o das courelas mal chegava para quatro meses.

— Não quero... Foi para a sua saúde, está bem. Mais que fosse!

A mãe olhou-o, inquiridora:

— Que pensas fazer?

Não respondeu. Sentou-se e prolongou a sua mudez, um minuto atrás de outro e outro e outro, com o lume crepitando e a senhora Gertrudes a soltar, de vez em quando, um suspiro. Finalmente, ergueu a cabeça:

— Ainda demora muito a ceia?

— Está quase pronta.

Vendo-o assim preocupado, o pai, ansioso de desanuviá-lo, meteu-se a contar história avulsa. Ele mal o ouvia. Consultara o relógio e impacientara-se: “Eram quase nove horas; come e não come, não saía dali antes das nove e meia. Quando chegasse, o vigário era capaz de já estar deitado.” O pai sentia que ele pensava noutra coisa, mas continuava o seu monólogo, com aquela voz débil e afável que parecia pedir desculpa de falar.

Sentaram-se, por fim, à mesa. Ele soprou a sopa, comeu, soprando de novo, e, quando chegou ao pão e ao conduto, devorou-os mais rapidamente ainda. Com a última fula a dilatar-lhe a face esquerda, abalou.

Em breve palmilhava a estrada que dividia a vila em duas partes. Meteu a uma ruela que ali desembocava, dobrou a segunda e enfiou noutra ainda. De passagem, reconheceu, ao longe, a voz de Aníbal, que falava num grupo; tinha vontade de o ver, de o abraçar, seu amigo desde os ninhos, mas não se deteve.

A casa do padre Barradas, toda de granito bem cortado, nua de cal como parede de bastião, mas aligeirada na severidade por dois vasos de sardinheiras em cada janela, parecia adormecida na rua sossegada. Uma lâmpada de iluminação pública, que existia em frente, lavava-lhe toda a fachada e não deixava perceber, por frincha de porta ou de ventana, se lá dentro havia também luz ou se estavam todos deitados. Horácio hesitou e, depois, bateu, timidamente, com a aldrava. Aguardou, aguardou, sempre de ouvido à escuta, mas não ouviu ruído algum. Considerou que se já não era muito cedo, muito tarde não era também, tanto que o relógio de Santa Maria não dera ainda as dez; pensou que, sem saber a resposta do< padre Barradas, não podia buscar outro rumo para a sua vida e, assim impelido, bateu, de novo, com mais força. Sentiu, então, lá dentro, uns passos que se acercavam lentamente. Pouco depois, a porta abria-se e, na sua frente, recortava-se a senhora Alice, ama do abade, com gestos pesados e fofas carnes nos seus quarenta anos.

Ele salvou-a, humildemente, desejoso de colher-lhe a simpatia àquela hora que tinha por molesta.

— Eu precisava de falar ao senhor vigário... Ele já sabe o que é... Se não fosse muito incómodo...

Alice advertiu:

— O senhor vigário, com certeza, já não pode falar-lhe hoje. Mas eu vou ver...

Desandou e, pouco depois, volveu:

— É o que eu tinha dito. O senhor vigário diz que venha amanhã...

— A que horas?

— Bom... Ele não me disse. Mas o> melhor será aparecer por aí de tarde...

Horácio agradeceu, pediu de novo desculpa de haver incomodado, lançou o desejo de boa noite e partiu. Ia calcorreando as pedras, contrariado: “Assim, já não podia aproveitar a camioneta no dia seguinte, para a Covilhã, se aquilo não desse resultado. E outra camioneta só havia dali a três dias.”

Ainda não dobrara a esquina quando ouviu um “pst!”, “pst!”, “pst!”, cada vez mais forte, rasgando o sossego da rua. Voltou-se. A senhora Alice estava outra vez à porta e acenava-lhe, para que retrocedesse.

Logo que ele se aproximou, ela disse-lhe:

— O senhor vigário esteve a pensar que, amanhã, tem o dia todo tomado. Depois da missa, tem de ir às suas terras do Sameiro. E, à noite, há a novena. Que você entre agora...

Ele sentiu alma nova, embora turbada pela emoção que lhe dava o entrar, péla primeira vez, na casa do pároco. Alice ia à frente, no corredor, com as suas grandes nádegas estremecendo, à direita e à esquerda, conforme o movimento das pernas. À porta que estava iluminada, ela deteve-se:

— Entre.

Ele avançou e logo viu o padre Barradas, que procurava adaptar-se, comodamente, ao cadeirão de braços onde acabava de se sentar, com um palito nos dentes. Era homem mais forte, mais entrançado ainda do que a sua ama. Tinha na cara redonda, de faces e nariz avermelhados, uns olhitos pequenos e vivos, que contrastavam com os seus lábios grossos, descaídos e levemente austeros. Contava cinquenta e quatro anos, mas Horácio, que dele recebera a comunhão, em criança, e a ele se confessara várias vezes, sempre o tivera por um homem velho.

Agora, o padre Barradas, ouvidos os cumprimentos, perguntava, tirando o palito da boca:

— Quando chegaste?

— Saiba o senhor vigário que cheguei hoje mesmo.

O padre considerou-o de alto a baixo e afirmou, amável:

— Fez-te bem a tropa. Até parece que cresceste mais! E aprendeste a ler e a escrever bem, dizes-mo na tua carta...

— O senhor vigário desculpe o meu atrevimento. Se calhar ela está cheia de erros... — Hesitou, pôs-se a rodar a aba do chapéu entre os dedos e, como o padre fizesse um gesto de absolvição e dissesse “não, erros não dei por eles”, animou-se: —. Eu peço muita desculpa. Mas estive a pensar e vi que não tinha mais ninguém a quem fazer um pedido assim. Ainda andei vai e não vai para escrever directamente ao senhor Martins, a ver se ele me metia lá na sua fábrica... Mas depois disse, cá de mim para mim que, sem um empenho, o senhor Martins decerto não faria nada. Por isso escrevi ao senhor vigário, que é o amigo dos pobres...

Sentia-se perturbado. Desde pequeno habituara-se a respeitar o padre, que lidava com as coisas divinas, fizera estudos, pertencia a outra classe e exercia vasta influência na sua freguesia metade da vila que era como um condado. Quando ele se encontrava no quartel, esse prestígio do abade esmorecera com a distância, tanto mais que outro recruta, o Jangada, anticlerical, não passava um dia sem lhe contar histórias mariolas de frades e de curas. Agora, porém, de pé em frente do padre Barradas, que continuava sentado e com as suas mãos gordas e macias pousadas nos braços da poltrona, o antigo respeito volvia a renascer, tolhendo-lhe os gestos e dificultando-lhe as palavras. O pároco escutava-o, atentamente, mas, à medida que ele tartamudeava, ia pondo uma cara de desconsolo. Por fim, comunicou-lhe:

— Eu tratei de fazer-te a vontade, logo que recebi a tua carta. Falei ao senhor Martins, como me pedias. Também falei ao senhor Fragoso e, ainda ontem, toquei no caso ao senhor Cabral. Mas todos eles me disseram mais ou menos a mesma coisa. Têm os quadros cheios e não precisam de mais pessoal.

Antigamente, eles metiam quantos aprendizes quisessem, mas agora não podem meter mais de vinte por cento em relação ao número de operários. Tu compreendes? Se uma fábrica tem cem operários e empregados, não pode ter mais de vinte aprendizes... Percebeste?

Horácio fez um gesto afirmativo. O padre Barradas continuou, com expressão desolada:

Eu tenho muita pena de não poder ser-te útil.

Ainda pensei em falar com mais alguns industriais, mas o senhor Cabral disse-me que era tempo perdido. Como os patrões têm de pagar quatro dias de salário por semana, mesmo que não haja trabalho para os operários, ninguém quer ter gente que não seja absolutamente indispensável. Além disso, os outros industriais pertencem à outra freguesia e os da outra freguesia, como sabes, não gostam de fazer nada em favor da nossa...

O padre calou-se. Em frente dele, sempre de pé, Horácio ficou silencioso, de olhos postos no chão. Tão imóvel estava que a própria aba do seu chapéu deixara de lhe rodar entre os dedos, com aquele movimento inconsciente que ele lhe dera até ali.

Olha lá — volveu Barradas, como se houvesse

tido um súbito pensamento. — Por que queres deixar a vida de pastor? Uma vida tão bonita, que até os santos gostavam dela e os poetas antigos a cantavam! — A voz do padre tornara-se mais doce, evocativa, como se ele próprio sonhasse: — O céu por cima, o ar livre, ao nascer do sol visto lá do alto... À noite, às estrelas... Não tens visto figuras de pastorinhos, com suas flautas, nos altares e nos presépios? Não há dúvida que os poetas antigos tinham razão!

— Eu queria casar-me —disse Horácio— e, por isso, é que pensei mudar de vida. A guardar gado não ganho o suficiente. Ainda se as ovelhas fossem minhas ou os meus pais tivessem alguma coisa de seu... Mas, como o senhor vigário sabe, o que temos e nada é a mesma coisa... Vejo-me um homem, quero trabalhar e não sei o que hei-de fazer. Os meus pais não puderam dar-me estudos, mas, agora, que aprendi alguma coisa, tinha pensado...

O padre Barradas, depois de um ligeiro bocejo, interrompeu:

— Bem. Tu lá tens as tuas razões. Não quero contrariar-te. Desta vez não tiveste sorte, mas podes ir descansado que, se aparecer alguma coisa, eu não me esquecerei de ti. Não queres um copo de vinho? Ó Alice! Alice!

— Não, muito obrigado, não quero!

— Toma! Toma! Eu vou deitar-me, que amanhã tenho de me levantar cedo.

Padre Barradas bocejou de novo e levantou-se. Horácio repetiu:

— Eu agradeço muito ao senhor vigário. Se eu tivesse aqui outra pessoa, não o teria incomodado. Mas assim...

— Não incomodaste nada. Vai com Deus! —E para Alice, que aparecia à porta: — Dá aqui um copo de vinho...

Ele saiu da sala, humilde, modesto, cabeça baixa, com a sensação de se encontrar no fundo de um poço, respirando mal. No corredor, disse:

— Eu não quero vinho, senhora Alice. Muito obrigado, mas não tenho vontade.

A ama insistia, empurrando-o para a cozinha:

— Ande lá! Ande lá! Uma pinga não faz mal a ninguém.

Já com o copo na mão e enquanto Alice punha uma fatia de queijo sobre a fatia de pão que cortara, ele pensou: “Talvez aquilo fosse desejo de Nosso Senhor, para bem dele. Sempre ouvira dizer que a indústria da Covilhã era muito mais importante do que a de Manteigas. Lá os teares eram de ferro e muitos teciam fio de estambre; ali eram de pau e só havia fio cardado. Por mor disso, os tecelões da Covilhã ganhavam mais do que os de Manteigas. E talvez o Manuel Peixoto ou o padrinho lhe conseguissem alguma coisa, pois a Covilhã já era uma cidade grande.”

Mais aliviado do pesadume e com a esperança de novo a bulir-lhe na alma, olhou, enquanto bebia, as prateleiras pintadas de branco, os grandes tachos de cobre areado, para o dia do sarrabulho, as janelas e caçarolas esmaltadas, dúzias de pratos, várias malgas e, ao fundo, o grande fogão, tudo muito em ordem, tudo muito limpo, a bem dizer dos cuidados da senhora Alice. Os olhos fugiam-lhe para aquilo. “Assim é que ele gostaria de ter uma cozinha. Não precisava de ser tão grande, nem com tantas coisas, nem com tanto luxo, mas assim asseada como a do senhor vigário, que era mesmo um gosto vê-la.”

 

QUANDO desceu da camioneta, na Covilhã, voltou a olhar o seu fato. Durante o serviço militar, como andava de farda, poupara-o; apesar disso, já estava lustroso e ficava-lhe, agora, apertado. As calças, especialmente, despraziam-lhe. Formavam joelheiras e mostravam-se mais (estreitas em baixo do que as usadas nas cidades. “Era pena que ele não pudesse ir bem posto, pois quem sabia se o padrinho não lhe arranjaria um emprego no comércio?” Abotoou o casaco e ajeitou o chapéu. Não obstante o descontentamento que o fato lhe produzia, sentia-se muito mais senhor de si do que das duas outras vezes que viera à Covilhã. A cidadezita serrana, de ruas tortuosas e íngremes, não lhe impunha, agora, aquele acanhamento de homem do mato que ele tinha, perante ela, antes de conhecer Lisboa e o Estoril. A Covilhã parecia-lhe, desta feita, muito mais pequena do que antigamente.

Ao chegar às Portas do Sol, deteve-se, um instante, a ver as obras do mercado novo. Pensara tanto, durante a noite e enquanto vinha na camioneta, sobre o que diria ao padrinho Marques e o que dele poderia ouvir, que a sua vontade, agora, era não pensar no resultado — pela incómoda incerteza que este lhe dava. Novamente a andar, lembrava-se do mercado que havia ao ar livre, no dia em que ele, ainda garoto, viera ali, com o pai, trazer umas trutas que o Dr. Couto, de Manteigas, enviara ao Dr. Caetano, da Covilhã. Mas logo a outra ideia se sobrepôs. Por muito que se esforçasse, ele não conseguia dominar aquela preocupação. Ora desejava falar imediatamente com o padrinho, ora surgia-lhe o desejo de demorar um pouco mais esse momento. Por fim, decidiu-se e estugou o passo, encosta abaixo. O estabelecimento do Marques ficava perto, na rua afogada entre duas filas de velhas casas. Era uma mercearia de bairro pobre. Ao fundo, no centro da prateleira que cobria totalmente a parede, havia uma porta em arco, dando para soturna divisão que, de fora, mal se enxergava. Foi de lá que, chamado pelo marçano, surgiu o padrinho.

— Olá, rapaz! Há que tempos não te vejo! Por pouco não te conhecia!—E estendeu-lhe a mão.

O Marques era um homem baixo e gordo. Começara a vida com uma taberna em Manteigas e fora nessa época que o tio Joaquim o convidara para seu compadre. Mais tarde, tomara de trespasse aquela mercearia da Covilhã e, por sua vez, trespassara a taberna a um irmão. Nos primeiros anos, ainda voltara a Manteigas, no Estio, para tomar banhos nas caldas. Depois, deixara de o fazer. Desde então, Horácio só o vira uma vez. Mas, pelo Natal, Marques enviava-lhe sempre vinte escudos e uma carta desejando felicidades a toda a família. Ao recebê-la, a senhora Gertrudes dizia: “Tem de se pedir à Romana que lhe escreva em teu nome, a agradecer. Ele nunca se esquece de ti e tu também nunca te deves esquecer dele. O compadre não tem filhos e hoje conta muito dinheiro; à hora da morte deixa-te, com certeza, alguma coisa.” A senhora Gertrudes só renunciara a falar assim quando se soubera que o Marques, além da mulher, tinha por sua conta uma amante de pouco mais de vinte anos. Contudo, porque o padrinho era estabelecido numa cidade, Horácio creditava-lhe larga importância social.

Agora, Marques interrogava-o sobre a saúde dos pais e de outras pessoas de Manteigas e, como Horácio lhe dissesse que havia regressado na véspera de Lisboa, pôs-se a elogiar a capital, que ele tinha visitado tempos antes:

— Aquilo é que é uma cidade!

Por fim, mudou o tom de voz e lançou:

— Então o que te traz por cá?

— Queria cumprimentar o padrinho e, ao mesmo tempo, ver se me fazia um favor...

Marques ficou em inquieta expectativa, não fosse sair dali pedido de dinheiro.

— Dize lá... — murmurou.

Ele, então, falou, atabalhoadamente, da sua vontade de deixar a vida de pastor e de conseguir um emprego na Covilhã.

Pelas expressões e movimentos de cabeça que o padrinho começara a fazer, mal ele desvelara a sua ambição, Horácio compreendeu que teria fraca resposta. E ia continuar a insistir naquilo em que podia e não podia trabalhar, quando entrou uma mulher. Marques abandonou-o prestemente, feliz por essa aparição, que lhe dava tempo de raciocinar. E, adiantando-se ao marçano, pôs-se em frente da freguesa, com as mãos apoiadas no balcão:

— Bom dia, senhora Ana. Como tem passado? Então que deseja?

Do seu canto, Horácio viu-o pesar açúcar e arroz e, depois, embrulhar uma vela de estearina.

Por fim, a mulher saiu e Marques voltou para junto dele:

— É muito difícil o que tu queres, meu rapaz... Muito difícil! Vontade de te ajudar não me falta, já se vê; mas não vejo ponta por onde lhe pegue. Quem tem um emprego não o larga, mesmo que ganhe muito pouco; e ninguém quer meter mais gente. Andam por aí muitos homens ao alto. E aqui ainda é pouca coisa, porque em Lisboa e no Porto parece que é muito pior. No estrangeiro, nem se fala! Todos os dias vejo coisas nos jornais que é de se ficar pasmado. Terras ricas como a América, onde parece que havia de haver trabalho a rodos, tinham milhões de desempregados... O que lhes está a valer é a guerra, que mata uns e dá que fazer a outros... Se não fosse isso, não sei o que havia de ser. Cá no nosso Portugal, que vive em paz, é o que se vê...

Marques ficou um momento em atitude pensativa e, depois, acrescentou:

— Eu compreendo a tua situação... Compreendo muito bem... Tu o que querias era ganhar mais alguma coisa. Vês-te sem futuro, não é isso? Mas os tempos estão maus, rapaz. —Estendeu o queixo, indicando o empregadito: — Olha: vês aquele ali? Quando se soube que eu precisava de um marçano, porque o outro tinha morrido de tifo, apareceram-me mais de vinte. E com cada recomendação! Até o presidente da Câmara me recomendou um! E a alguns deles as famílias ofereciam-nos mesmo sem ordenado: só pela comida e pela roupa. Eu é que não gosto de explorar ninguém. —Olhou para o marçano com ar superior: — Fiquei com aquele e pago-lhe vinte e cinco escudos por mês. As coisas são assim. São sempre mil cães a um osso. Tu és pastor e tens o teu emprego. Queres um conselho? Deixa-te estar! Ganhas pouco e um moço de pastor nunca levanta a cabeça, é certo. Mas tem paciência! Espera melhores dias!

O humilde sorriso de Horácio desaparecera completamente. Ao ver-lhe o rosto, Marques procurou tornar mais afectuosa a sua voz:

— Eu queria ser-te agradável, lá isso queria. Mas que posso eu fazer? —Calou-se, como se estivesse a investigar na memória. — Não, não vejo nada... •—disse, depois.— Antigamente, ainda os armazenistas, quando lhes fazíamos um pedido, procuravam atender-nos. Mas, hoje, não nos ligam nenhuma. Foi o que nos trouxe esta guerra. Toda a gente ficou malcriada. Se se vai comprar alguma coisa, parece que nos fazem um favor em vendê-la. Os empregados já não dão atenção, como antigamente. Quem quer, quer; quem não quer, que vá a outra parte! — Marques voltou a olhar, com sobranceria, o seu caixeiro: — Outro dia, até aquele bisbórrias, que ainda não largou os cueiros, estava aqui a tratar uma freguesa com duas pedras na mão. Imagina, uma freguesa que gasta muito e paga sempre a pronto! Claro, obriguei-o a pedir-lhe desculpa e se ele não pedisse, eu punha-o no olho da rua! Que os outros sejam como quiserem, mas não em minha casa. Em minha casa não admito más-criações!

Preocupado consigo mesmo, Horácio mal o ouvia. Marques continuou a falar e, depois, mudou o tom:

— Se eu souber de alguma coisa, mando prevenir-te. Mas já te digo que não deves guardar muitas esperanças. Não calculas a pena que tenho, pois sou muito teu amigo e dos teus pais. Aquilo é gente de cara direita!

Horácio saiu confrangido. Tanto como a negativa, desorientavam-no as palavras que ao Marques ouvira. Parecia-lhe que todos se haviam combinado, pois em Lisboa tinham-lhe dito quase a mesma coisa. E agora ele lembrava-se de que, desde pequeno, ouvira sempre falar de pessoas que queriam trabalho e não o tinham, dos muitos passos que davam, dos pedidos que faziam, muitas vezes passando fome e sem arranjar nada. Não era, portanto, coisa só de agora; era coisa já antiga. Ele é que não dava, nesse tempo, atenção ao caso, por ser ainda garoto.

Tão aborrido ia, que, em vez de subir a rua, como lhe convinha, descera-a. Metendo a outra, passara em frente do quartel da Covilhã, depois ladeara várias fábricas, sempre a caminhar ao acaso, sempre a magicar naquilo. “Até o padrinho vira que ele estava sem futuro!” Reagiu: “Não; em moço de pastor não acabaria ele! Iria falar já ao Manuel Peixoto. Decerto o Manuel Peixoto não lhe diria que não. Era melhor, lá isso era, um emprego no comércio, do que entrar para as fábricas. No comércio, se ele estudasse de noite, podia vir a ser alguém. Mesmo um homem importante, como se tinha visto com outros. Mas já que não tinha lugar, paciência!”

Esgueirou-se entre a parede e um camião que, parado na rua estreita, lhe dificultava a passagem; voltou na primeira travessa e, pouco depois, cruzava, de novo, o centro da Covilhã. Ao chegar ao jardim da Praça da República, examinou o seu relógio. Eram onze horas e vinte cinco. Daí, à Aldeia do Carvalho mediam-se sete quilómetros e ele tinha de voltar a tempo de tomar a camioneta. Começou a descer apressadamente a estrada, com os olhos a correrem sobre as fábricas de fiação e tecelagem que se estendiam lá em baixo, nas margens da Ribeira da Carpinteira — o maior conjunto industrial da Covilhã. Ele olhava para aquilo de maneira muito diferente do que o fizera da outra vez que passara ali. Descobrira o casarão da firma Azevedo de Sousa, de que Manuel Peixoto também lhe havia falado, por nele trabalhar, como mestre, o seu irmão e diminuiu o passo para melhor o contemplar. “Se Manuel Peixoto conseguisse metê-lo na indústria, decerto seria para aquela fábrica que ele viria” pensou. E demorava-se a fixar o longo e comprido edifício, de dois pisos e muitas janelas, erguido entre outros, também compridos, mas mais velhos. Em seu redor não se via ninguém. Só um vago rumor de máquinas atestava o labor humano dentro das paredes.

A estrada salvava a ribeira e, voltejando, subia. Agora, Horácio enxergava vários homens estendendo tecidos nas râmulas, por detrás das fábricas. Ele voltou a dar pressa às suas pernas. A estrada continuava deserta. O ruído fabril ficara para trás e ali havia silêncio um silêncio de sol em terra abandonada. Logo, porém, que ele ultrapassou a Borralheira, que espairecia, com suas casitas, na encosta, a expressão da estrada modificou-se. O que era mudez e solidão enchera-se de gentes e de falas. O meio-dia estava a cair e numerosas mulheres e crianças, com cestos na cabeça ou nas mãos, corriam a levar o almoço aos operários. Essa revoada feminina em breve, porém, desapareceu. Aos grupos foram-se sucedendo figuras isoladas e, em seguida, a estrada mostrou-se novamente solitária.

Pouco depois, Horácio entrava na Aldeia do Carvalho. O lugar, de ruelas sinuosas, becos soturnos, casas a derruírem de velhice e de pobreza, assemelhava-se, no seu aspecto físico, carregado de negrume, a quase todos os povoados beirões. A Aldeia do Carvalho distinguia-se de muitas outras apenas porque, em vez de se entregar somente à vida pastoril e agrícola, a maioria dos seus habitantes trabalhava nas fábricas da Covilhã.

Horácio viera ali só uma vez; apesar disso, lembrava-se bem da casa de Manuel Peixoto, companheiro de pastoreio nos altos da serra. Justamente porque Maio ia no fim, ele temia que o amigo houvesse já abalado para as pastagens dos cimos. Mas, mal bateu à porta, a mulher, que veio abrir, tranquilizou-o:

— Ele anda aí para riba, a tratar das chaves de uns borregos que estão mal armados.

— Aonde?

A mulher saiu à rua, estendeu o braço e indicou-lhe, com bastas explicações, o caminho que ele devia seguir. Horácio agradeceu e pôs-se a atravessar a aldeia, enquanto mastigava o pão e o pedaço de queijo que havia trazido consigo.

Foi encontrar Peixoto num campo sobranceiro ao povoado. Dois dos seus filhos sopravam o lume que ele acendera debaixo de uma panela, fincada sobre três pedras e na qual se coziam as batatas destinadas a amolecer os chifres dos carneiritos. Perto dali, o rebanho aguardava o início da operação, metido dentro do bardo — uma cerca de rede de corda, segura por estacas

Reconhecendo Horácio, Peixoto caminhou ao seu encontro:

— Que novidade! Tu, por aqui? Quando chegaste? O convívio na serra, durante vários Estios, nas horas em que os seus rebanhos confluíam aos limites das áreas concedidas a Manteigas e à Aldeia do Carvalho, criara, entre os dois, grande intimidade, apesar de Peixoto ser mais velho do que Horácio quase trinta anos. Este tratava-o sempre por “senhor” ou por “vossemecê”; o outro dirigia-se-lhe, muitas vezes, com um tom paternal, mas essa diferença de tratamento não influía nos seus longos diálogos, travados nos ermos alpestres, onde Peixoto confidenciava até as volúpias que tivera com mulheres, como se ambos fossem da mesma idade. Agora, Peixoto abraçava-o:

— Que alegria! Que alegria! Deixa-me ver-te bem!

Pusera-lhe as mãos sobre os ombros, afastara-se ligeiramente e examinava-o de alto a baixo:

— Como te deste lá na tropa? Anda! Conta! Senta-te aqui.

Os dois sentaram-se no chão. E Horácio pôs-se a responder à pergunta do amigo. Os filhos do Peixoto tinham-se esquecido do lume que ardia sob a panela e seguiam todos os seus gestos. Horácio falou da vida militar e de Lisboa, do que vira e do que passara. Por fim, o palreio transitou para a vida na serra. Peixoto queixou-se do Inverno:

— Um tempo medonho! Já não sabia que dar de comer ao gado. Cheguei a arrendar, por quatro notas, um lameiro que não valia um pataco.

Sempre à espera de momento azado para expor a razão que o trouxera ali, Horácio aproveitou o primeiro silêncio que lhe pareceu propício:

— Pois é verdade... Eu queria falar a vossemecê...

Pelo seu tom de voz, Peixoto julgou ser caso para ficarem sozinhos. E fez um gesto aos filhos.

— Não é assim coisa de segredo... — interveio Horácio.

Os garotos afastaram-se. Ao Marques, não quisera ele falar do seu casamento. Agora, a Manuel Peixoto, contava tudo, a ideia que tivera, o motivo porque adiava a boda.

— Eu queria ver se vossemecê pedia ao seu irmão para me meter numa fábrica... Naquela onde ele é mestre ou noutra qualquer...

— Numa fábrica? Na tua idade? — perguntou Peixoto, admirado. Logo, ao reparar na. expressão dele, consertou:—Bom! Lá falar, falo. E podes ter a certeza de que se ele não o fizer a mim, não o fará a mais ninguém. Mas isso não é coisa que se possa arranjar assim de pé para a mão. Se dependesse só do Mateus, estava bem; mas não depende. Há sempre muitos pedidos feitos ao patrão. Depois, com os anos que já tens... O que é que tu querias ser?

— Eu queria ser tecelão...

Peixoto meditou um momento e logo volveu à sua:

— Tu já pensaste que tinhas de entrar como aprendiz?

— Já...

— Eu digo-te isto, porque um aprendiz ganha muito pouco. E, às vezes, passa muito tempo antes de chegar a operário. São coisas boas para os garotos. Em vez de andar por aí na brincadeira, vão pegar fios e aprender um ofício. Sempre recebem, alguma coisa e ajudam os pais. Mas tu és um homem, que até já foste às sortes. Não sei se pensaste bem...

— Pensei. Fiz as contas. Dinheiro, ganharei mais do que me dá o Valadares. É claro que lá não pago comida e aqui terei de a pagar. Mas é uma coisa de mais futuro. Se chego a tecelão, já serei compensado. Que isto de ser pastor, não é vida! Para vossemecê, está bem, porque o gado é seu. Mas ganhando noventa escudos, que é quanto me pagam, não se resolve nada.

Calou-se. De cara magra e negra de barba, um casaco remendado em cima da camisa suja e sem colarinho, Peixoto deixou, também, correr o silêncio.

— Tu lá sabes...—disse, por fim, o velho pastor. — Mas talvez pudesse arranjar outra coisa...

— Qual o quê! Julga que também não pensei nisso? Em Lisboa bati várias casas e, agora mesmo, antes de vir falar consigo, estive com o meu padrinho, na Covilhã. Com o Marques, aquele que tem uma mercearia abaixo do mercado novo. Todos me dizem o mesmo. Não basta um homem querer trabalhar; é preciso arranjar trabalho e aí é que está a coisa. Eu nunca imaginei que fosse tão difícil! Depois, não tenho quem me proteja. Amigo verdadeiro, só vossemecê... Não tenho outro.

— E em Manteigas? Nas fábricas de lá? Sempre ficavas com a família...

— Pois isso era o que eu queria! Até por causa da rapariga. Se eu Vier para aqui, fico muito longe dela... Mas não arranjei nada. Escrevi ao vigário, ainda eu estava em Lisboa, e ontem fui saber a resposta. Ele pediu por mim a vários industriais e todos lhe disseram que não. Também não me admirei muito. Lá todas as fábricas são pequenas e é muita gente a querer entrar.

Veio novo silêncio. Peixoto fixara os olhos no bardo e deixou-os assim fixos, como se estivessem mortos. Foi Horácio quem voltou a falar, perguntando com ansiedade:

— Diga-me, senhor Manuel: não lhe parece que é melhor ser operário do que pastor?

Peixoto respondeu:

— O meu pai entregou o gado a mim e mandou o meu irmão para as fábricas. Eu também vou mandar dois filhos para lá, assim, que eles tiverem idade. Mas eu te digo: o meu pai teve bom olho. Para o meu feitio não há como a liberdade. Lá passar os dias metido entre as quatro paredes de uma fábrica não é comigo! Claro que se eu estivesse no teu lugar já seria outra coisa...

Peixoto levantou-se e destapou a panela. O vapor da água fervente subiu até o seu rosto, mal lhe deixando ver as batatas que lá dentro se encontravam.

— Olha lá: estás com muita pressa?

— Eu tenho de tomar a camioneta às cinco menos um quarto, na Covilhã. Porquê?

— É que talvez pudesses dar-me uma ajuda, pois com os garotos não se pode contar. Só servem para atrapalhar.

— Ainda tenho tempo — disse Horácio, levantando-se também. E, apanhando os trapos e o gadanho que ali estavam, caminhou, com Peixoto, que levava a panela, para dentro do bardo. Junto do rebanho, notou:

— Vossemecê, agora, tem mais cabras do que ovelhas...

— Não me fales nisso! Não sabes a minha arrelia. .. Há pouco, não te disse nem metade do que foi o Inverno. Pasto, nenhum! Depois de arrendar dois lameiros, fiquei sem dinheiro para arrendar mais. Fiquei depenado de todo e o gado sem ter onde comer! Foi então que me resolvi... Fiz como tinham feito os outros. Vendi umas ovelhitas e comprei cabras... As cabras roem tudo, tudo lhes serve. As ovelhas querem bons pastos, como sabes... Que havia eu de fazer? O que tem acontecido em Cortes, vai acontecer também aqui. Agora, na Aldeia, só há três rebanhos de ovelhas. O resto é tudo cabras. Os pobres não podem manter ovelhas. O rendimento das cabras é mais pequeno, mas sempre lhes vai dando o leitito, até colherem o centeio e as batatas. Mas eu que não posso com cabras! — A sua voz entristeceu:—Não imaginas a ralação que tenho tido! Nunca pensei que tivesse de findar em cabreiro... Quando vi levarem as ovelhas que eu tinha vendido, parecia que me separava de pessoas de família, Deus me perdoe...

Peixoto moveu a cabeça e ergueu os ombros, como se quisesse sacudir o seu desgosto. Depois saiu atrás de feltroso carneirito que se escapava por entre as ovelhas, fura aqui, fura ali, fugindo sempre.

Horácio seguia a cena, sem a ver. Havia pensado pedir a Manuel Peixoto o dinheiro que os pais deviam ao Valadares e libertar-se do patrão, logo que disso carecesse. Agora, as dificuldades que o amigo lhe revelara aumentavam as suas próprias dificuldades. “Se, de um dia para o outro, o irmão de Peixoto lhe arranjasse um lugar nas fábricas, como poderia ele deixar o Valadares sem, antes, lhe pagar?”

— Eh, Horácio! Anda!—gritou Manuel Peixoto.

Havia filado o bicho e metera-o sob os seus joelhos. Horácio aproximou-se. De gadanho em punho, tirou da panela uma grande batata e passou-a para o trapo. O carneirito mostrava dois chifres mui petulantes, a atestar a sua juventude. Com um gesto rápido de Horácio, um desses rebentos sumiu-se, enterrado na batata escaldante. O animal teve um estremecimento e a haste amoleceu rapidamente. Horácio pôs-se, então, a retorcê-la, para que ela, ao crescer, não fosse tapar a vista do bicho ou mesmo penetrar-lhe no pescoço, como sucedia muitas vezes, quando os pastores se descuidavam de intervir.

Trouxe outra batata e repetiu o acto na ponta que ainda se arrebitava sobre a cabeça do borrego. Em breve os dois chifres pendiam, retorcidos, para o chão, como convinha a um carneiro que se prezasse, a um bom futuro padreador que quisesse bonitas e avantajadas armas, sem ser, ele próprio, ferido por elas.

Amarrados os cornos a um pedaço de pau, que assim esfriariam mantendo a forma recebida, Peixoto lançou-se a pegar segundo borrego.

Ia em meio a tarde quando Horácio se despediu, já longe da aldeia, para onde o amigo tinha vindo a caminhar com o seu rebanho. Peixoto tornava a repetir:

— Vou tratar do que me pediste. O pior é a tua idade... Mas vamos a ver o que se arranja... Eu abalo lá para cima, com o gado, depois de amanhã. Tu também vais qualquer dia destes não é verdade?— E como visse Horácio fazer um gesto incerto:— Bom! De qualquer maneira, o que eu souber mando dizer-te...

De regresso, a camioneta entrou em Manteigas ao fim do dia. No meio do vale, à beira do Zêzere, a vila, com as alvas torres das duas igrejas e o punhado de casas em derredor, parecia uma construção infantil, um burgo de Liliput, no fundo de grande concha verde. Da terra linda dir-se-ia terem saído ciclópicas figuras, pétreos vultos que haviam ficado à sculca, protegendo e vigiando o povoado, de sobre as altíssimas lombas que corriam das Penhas Douradas até os Cântaros.

Horácio desceu da camioneta e dirigiu-se a casa de Valadares, no fundo da vila.

O patrão acolheu-o afavelmente. Era um homem alto, seco, cara rústica, toda queimada pelo sol nos trabalhos dos campos. Fora também pastor de seu gadito antes de ser dono de copioso rebanho e daquelas terras que comprara com o dinheiro que, por indirectas vias, a mulher recebera do pai, um cura de Gouveia em transes de consciência à beira da morte.

— Então como tens passado? Como te deste por lá?

Perante a resposta e a expressão de Horácio, ele quedou-se a contemplá-lo, sorridente mas inquiridor:

— Pensei que estivesses zangado comigo...

— Nada, não... Por quê?

— Como chegaste há dois dias e ainda não tinhas aparecido... —Sorriu mais:— Estiveste a matar saudades da rapariga?

Horácio tomou por útil aquela justificação e fez um gesto vago.

— Eu virei amanhã. Valadares mostrou-se generoso;

— Não, não venhas. Disseram-me que te queres casar e eu sei o que isso é. Necessitas de uns dias de folga. Prepara as tuas coisas e vem no fim do mês. O meu filho, o Tónio, anda com o gado e pode andar mais um tempo.

— Eu resolvi adiar o casamento... Posso vir amanhã.

— Adiaste? Porquê? —Perante o silêncio do seu pastor, Valadares não insistiu. — Bem; tu lá sabes da tua vida... Queres começar, então, amanhã?

— Sim, senhor. Amanhã irei ter com o Tónio. Tudo aquilo fora rápido. Valadares murmurou:

— Como queiras...

Horácio ainda perguntou pela saúde da senhora Ludovina, que ele sentia andar lá por dentro, na trafega doméstica — e saiu. Atravessou a vila a passos largos, a caminho de casa. Desde que comunicara ao Valadares que voltaria a pastorear-lhe as ovelhas, aumentara a sua ternura por Idalina, o desejo de se encontrar ao seu lado. Parecia-lhe que, junto dela, agora que o casamento se tornara mais difícil, ele teria maior coragem e seria menos infeliz. “O que ele precisava era convencê-la a esperar, mas convencê-la a valer. Porque, agora, não se tratava só da casa; tratava-se mesmo do dinheiro para eles viverem. Se casassem já, com que iam passar os primeiros meses, se a soldada fora recebida adiantadamente?

E o pior é que a sua mãe não queria, decerto, que ele dissesse aquilo...”

Ao empurrar a porta da sua casa, viu, lá dentro, os pais de Idalina. Estavam sentados em frente dos pais dele e tinham uma cara severa.

Horácio soltou um “boa noite” cordial, mas a senhora Januária e o marido responderam friamente.

Foi a mãe dele quem procurou romper o mal-estar que envolvia os seres e as próprias coisas:

— Vieste tão tarde! Que aconteceu?

— Tão tarde? —estranhou ele.— A camioneta chegou ainda não há meia hora...

A senhora Gertrudes olhou-o, ansiosamente, aguardando outro esclarecimento, mas ele desviou os seus olhos e não disse mais coisa alguma. Então, a mãe preveniu-o:

— Aqui o senhor Vicente e a tia Januária há já um bocado que estão à tua espera. Querem falar contigo...

Como não’ havia mais bancos, ele encostou-se à parede, para ouvir. Mas os pais da Idalina continuavam calados. A senhora Januária, o tronco envolvido num xaile preto, tinha os braços cruzados no peito e os olhos postos nos joelhos. Sobre o seu lábio inferior, repuxando para dentro, desciam, nos cantos, os cabelos negros do lábio superior, retorcidos como miniaturas de chifres de carneiro. E na terra onde, naqueles apuros, os homens cediam sempre a iniciativa às mulheres, o senhor Vicente, além de tudo desconfiando de seus ouvidos, não desejava também antecipar-se. Foi ainda a mãe de Horácio quem tornou a afastar o silêncio:

— Eles não querem que se adie o casamento. Eu já estive a explicar-lhes, mas eles...

Só então, ao ouvir aquilo, a senhora Januária irrompeu, com a sua voz fanhosa:

— Está bera de ver que isso não tem jeito nenhum! A rapariga estava comprometida contigo, toda a gente o sabe, e, agora, se o casamento não se faz, o povo começa por aí com murmurações...

— Mas que murmurações podem fazer, se eu não falto ao prometido? Se é só uma questão de deixar para mais tarde e toda a gente pode saber porquê... Demais a mais, eu não devo nada à sua filha. Hei-de casar, porque gosto dela. Que é que podem dizer?

A senhora Januária exaltou-se:

Muita coisa! Honra, creio que não lhe deves! Mas também te digo que se lha devesses e não pagasses, quando não houvesse mais ninguém que te tirasse a vida —ela olhou, assanhada, para o marido —, estava eu aqui! Mas que tu andas a desacreditar-me a rapariga, não há dúvida! A tia Luciana já encheu os ouvidos do povo com as poucas-vergonhas que viu ontem. A minha primeira tenção foi partir-lhe a cara, mas, depois, pensei se não seria verdade o que ela andava a espalhar. E, afinal, era. Lá a rapariga já apanhou duas bofetadas, para não ser desavergonhada como tu. Mas nisto são sempre os homens que se adiantam e tu já ficas prevenido...

Os nervos da senhora Gertrudes começaram também a excitar-se, não por encontrar falta de razão nas palavras de Januária, mas porque a irritava a forma como a outra se dirigia ao seu filho. Além disso, ela já assentara que, para os seus interesses, o melhor era, efectivamente, adiar o casamento. A senhora Gertrudes conteve-se, porém, durante o pequeno silêncio que Januária fez. Tão-pouco os outros falaram. O tio Joaquim continuava, como na véspera, debruçado sobre a soda de um sapatorro, como se não ouvisse coisa alguma; e o pai de Idalina não passara de uma expressão carregada, para mostrar que apoiava a cólera da mulher.

Encontrando o campo livre, a senhora Januária voltou:

— Isso da casa estaria muito bem, se a pudesses fazer já. Mas podes?

Horácio hesitou. A sua própria mãe tornava a contemplá-lo, ansiosamente, como há pouco.

— Já, já, não posso — disse, por fim. — Tem de correr algum tempo, até ver se arranjo outro modo de vida.

— É o que eu pensava! —exclamou Januária.— É o que eu pensava! Quem sabe lá quando será isso! Pode ser daqui a muitos anos, pode não ser nunca. E a rapariga que fique aí à espera, como se fosse um traste usado.

Antes mesmo de Horácio responder, a senhora Gertrudes gritou, nervosa:

— Não posso ouvir uma coisa dessas, tia Januária! Se você e a sua filha estão assim com tanta pressa, ela que case com outro. Lá favores desses não queremos, nem precisamos...

Horácio acenou à mãe, pedindo-lhe que se calasse. Januária recuou:

— Agora não se cuida disso. Isto é falar por falar. —E voltando-se para Horácio:— Vocês podiam casar agora e, depois, com tempo, tratar lá da tua ideia...

— Eu já expliquei tudo à Idalina —defendeu-se ele.— Mas não lhe disse?

A tia Januária fez um gesto que nem afirmava nem negava, Horácio continuou:

— Vossemecê não tem mais gosto de vê-la casada do que eu de casar com ela. Acredite nisto que lhe digo! Mas mesmo sem pensar na casa, eu não poderia fazer agora a boda... —Perante o olhar da mãe, acrescentou: — Ganho muito pouco...

— Ora essa! Mas quando tu resolveste casar já sabias isso... Ganhavas a mesma coisa.

— Pois é, mas...

A senhora Gertrudes interveio, apressadamente, não fosse vir ainda à baila que ela tinha recebido, adiantado, o salário do filho:

— Está tudo cada vez mais caro... —disse.— A mim também me parece melhor esperar mais algum tempo.

— A senhora pode ter a certeza de que eu caso com a Idalina. E não há-de demorar muito. Mas deixe-me arranjar as coisas. Estou farto de dizer que isto de ser moço de pastor não é ofício! Não só se ganha uma miséria, como se vive longe da mulher. Quando eu penso que tinha de deixar a Idalina aqui e ir passar meses seguidos na serra ou lá para a Idanha, sinto logo vontade de largar aquilo. Não; quando eu casar, é para estar junto dela e dos filhos que vierem.

Tanto amor à sua filha não bastava para convencer a senhora Januária. Ela começara a pressentir que, além da casa, havia ali algo mais, que contrariava não só os desejos dela, mas os do próprio Horácio e da família.

— Bem; eu não quero nada à força. O que eu tenho medo é da língua do povo. Mas se tu continuas com tenções de casar...

Foi o pai de Horácio quem respondeu;

— Já se vê que continua, mulher! Se ele não casasse, também nós ficávamos desgostosos...

Era a primeira vez que o tio Joaquim, interrompendo o seu trabalho, intervinha na discussão. O senhor Vicente, perante aquele exemplo, decidiu também dizer alguma coisa:

— Pois era isso que nós queríamos saber. — E voltando-se para a mulher:—Não é verdade?

Pouco depois, os dois saíam. E a senhora Gertrudes, de nervos já apaziguados, comentava:

— Pressa assim nunca vi! Porem-nos a faca ao peito!...

— Coitados! — desculpou-os o tio Joaquim. — Têm uma data de filhos e estão mortos por ficar com uma boca a menos.

A senhora Gertrudes colocou um prato na mesa, para Horácio:

—Com certeza a ceia já está fria. Olha lá: sempre vais para o Valadares?

Perante o gesto do filho ela ficou tranquila.

A serra corre de Nordeste a Sudoeste, como imensurável raíz de outra cordilheira que rompesse longe do seu tronco. Belo monstro de xisto e de granito, com terra a encher-lhe os ocos do esqueleto, ondula sempre: contorce-se aqui, alteia-se acolá, abaixa-se mais adiante, para se altear de novo, num bote de serpente que quisesse morder o Sol. Ao distender-se, forma altivos promontórios, dos quais se pode interrogar o infinito, e logo se ramifica que nem centopeia de pesadelo, criando, entre as suas pernas, trágicos despenhadeiros e tortuosas ravinas, onde nascem rios e as águas rumorejam eternamente.

Vista de alto, sugere um fabuloso réptil, anfíbio e descomunal, cortando em dois o grande vale que teria surgido após haver secado o lago que aquele habitava. Examinada de banda, vêem-se-lhe inúmeras patas estendidas e, a trechos, o lombo serrilhado. Esse gume com muitas mossas é, porém, ilusório. Contemplado de perto, o dorso da serra, como o dos cetáceos, mostra largas superfícies, ora chatas, ora abauladas, umas limpas de acidentes, outras cercadas de fragões, que, com estranhos perfis e enigmáticas atitudes, parecem defender as terras solitárias. O ser humano tem volume mais mesquinho do que uma velha giesta, do que uma velha urze, nesses planaltos que se alargam entre altas vagas de terreno, entre montanhas que cresceram no cimo da montanha. E uma luz de mistério, ao clarear as chapadas e pendores, enche de temíveis sombras os silentes penedais, os rochedos majestosos, todos esses gigantescos vultos de granito que povoam a serra, como seus feros senhores.

O homem instalou-se, primeiro, nos vales, depois foi acendendo a sua lareira a quinhentos, a oitocentos, a mil metros; daqui, porém, não passou o tecto do seu abrigo permanente. Mas, mais para cima, desde que as neves se derretiam até que outras viessem, expunha-se ao sol uma efémera riqueza nos vastos plainos. E, para aproveitá-la, o homem subiu ainda, já sem casa e acompanhado apenas do seu gado. Assim, a grande serra e seus mistérios foram conquistados mais do que com fundas, lanças ou arcabuzes, com homens pastoreando ovelhas e cabras.

Desde então, em Abril, se o gelo já se sumiu, ou em Maio, se a invernia se prolongou, ouve-se tilintar, encostas arriba, as campainhas e os chocalhos dos rebanhos. É essa música matinal que anuncia a Primavera na serra. Seria grato ouvi-lo distanciar-se lentamente e continuar deitado, embrulhando-se mais na roupa, nessas manhãs ainda frígidas da montanha. Mas não pode ser. Cada pastor leva ovelhas ou cabras de três, quatro, cinco donos e cada um destes se reveza uma semana no pastoreio. Os que ficam, saltam, também, da cama, trocando o cajado de pegureiro pela enxada de cavador, que nas rampas da serra todos eles criam gado, duas ou três dúzias de cabeças, e cuidam do seu agro — duas ou três pobres courelas. E se algum raro, por ter prédios maiores, põe um moço ao seu serviço, é que zagal assalariado, que lhe substitua o filho no pascio alpestre, fica mais barato do que jornaleiro pago ao dia para substituir o segundo nos amanhos da terra.

Os rebanhos partem e só volvem em Junho, para a tosquia; partem de novo e a sua música de regresso só se torna a ouvir quando o Outono começa a acobrear as folhas dos castanheiros.

Desta feita, porém, e pela primeira vez na sua vida de pastor, Horácio não carece de levantar-se com a alba. O gado de Valadares há três semanas já que anda na serra e ele encontrá-lo-á quando, meio-dia passante, o rebanho surja na Nave de Santo António. Horácio ouve o velho relógio do pai dar seis horas; ouve, depois, dar as sete; sente a mãe lidar na cozinha e o tio Joaquim sair — e continua deitado. Já não dorme, que as preocupações da véspera voltaram, e de manhã ele vê sempre tudo mais difícil, mais triste; mas ao corpo continua a agradar a cama. Só às nove se levanta, boejante. Roupa de pastor não se gasta com lavagens, mas a mãe teve tempo de lavar a do filho durante o ano e meio em que ele esteve no quartel. Horácio esvazia os bolsos do fato futriqueiro, veste as calças e o casaco de surrobeco, mete os pés nos sapatorros ferrados de brochas e pega nos rústicos safões, feitos, por ele, de uma pele de ovelha que morreu de parto. Ao amarrá-los às pernas, parece-lhe, confusamente, que se amarra, ele próprio, não à lã ensujalhada e ainda com manchas de sangue que mudou de cor, mas a algo mais forte do que aquilo, a algo que o escraviza. A mãe tem o caldo quente e dá-lhe uma malga cheia. Ele toma-o, põe, em seguida, o chapéu de abas anchas, acomoda, sobre o ombro, o alforge e a manta, agarra no cajado e assobia ao cão.

— Bem; adeus. Até à vista — diz à mãe.

— Vai com Deus, meu filho.

Ela fica, um momento, a vê-lo afastar-se e ele, já à porta, assobia de novo — um assobio autoritário, mal-humorado.

O “Piloto” rompe, que nem flecha, de um negro boqueirão de bairro e, ao vê-lo assim vestido, festeja-o, lança-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto o seu rabo se agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar até à boca dele. Tomba, impelido pelo andamento das pernas do amo, e logo corre para a esquerda e para a direita, cheira aqui, cheira ali, tudo à pressa e sem atenção, só por fazer alguma coisa, doido de contente, como se a ruela se houvesse tornado para ele a via da felicidade. O dia está enevoado, cinzento, triste; mas “Piloto” dir-se-á haver descoberto um sol individual para sua completa volúpia.

Em casa de Valadares, a mulher veio à porta, tornou a desaparecer no corredor e tornou a voltar. E Horácio começou a encher os alforges com o pão de centeio, o pedaço de queijo e o pedaço de toucinho que ela lhe entregou.

— Batatas ainda o Tónio tem lá que bonde — disse a senhora Ludovina, depois de o haver abastecido.

Ele partiu, com o “Piloto” sempre à frente e sempre com aquela cauda erguida, aqueles passos miúdos e aquele ar de cão feliz. Quando atentava nele, Horácio odiava-o, por essa alegria. Mas o “Piloto” continuava, como se a vida tivesse começado, para ele, nesse dia perene de novidades e de encantos. Horácio vergou-se, ergueu-se e assentou-lhe uma pedrada. O cão ganiu, voltou-se e olhou-o surpreendido, percebendo que fora ele quem o agredira. Depois, a gemer de novo, deixou-se cair de lado, dobrou-se e começou a lamber a perna atingida.

Horácio volveu à sua perplexidade. Desde a véspera ele estava ansioso de tornar a falar a Idalina, de ouvi-la, de lhe dizer não sabia bem o quê, de convencê-la — de tranquilizar-se a si próprio. A ideia de que encontraria a senhora Januária fazia-o, porém, hesitar. Por fim, decidiu-se: “Não podia partir assim, sem a ver.”

Foi um dos garotos, irmão de Idalina, que veio à porta, quando ele bateu:

— Ela está para o prédio do senhor Vasco.

— Qual?

— O da beira da estrada...

Ele abalou rapidamente, satisfeito por não ter visto a senhora Januária. O “Piloto” ia, agora, atrás dele, focinho baixo e triste, rabo entre as pernas — e coxeando Horácio meteu à estrada. A propriedade do senhor Vasco ficava entre a humilde capelita da Senhora dos Verdes e as Caldas. Descia, em degraus, desde a beira da via até a margem do Zêzere e continuava para além da margem oposta. Industrial de lanifícios, Vasco da Gama Sotomayor, de ascendentes fidalgos, havia adquirido, pouco a pouco, por herança de família e por compra em momentos aflitos dos pequenos pastores e agricultores, muitas das melhores terras do vale. Ele explorava umas directamente, outras arrendava-as aos operários, aos pobres, algumas vezes até àqueles ou aos filhos daqueles que haviam sido donos delas. Entre os vários industriais, Sotomayor era um dos mais respeitados do povo, pelo muito trabalho que dava na sua fábrica e nos seus campos. Havia numerosas famílias que viviam apenas para ele. Enquanto alguns dos seus membros criavam o gado cuja lã ele comprava, outros, na fábrica, transformavam a lã em tecidos e outros, ainda, amanhavam as terras que Sotomayor adquiria com o lucro obtido nos lanifícios. Todos os industriais tinham muitos afilhados, que os pobres, ao pedirem-lhe o apadrinhamento dos seus filhos, já futuravam um lugar nas fábricas para estes, logo que chegassem a rapazes; Vasco da Gama Sotomayor contava, todavia, mais afilhados do que qualquer outro. A princípio, ainda se escusava, se não por si, pela mulher, que considerava aquilo repetida maçada; um dia, porém, já bem longínquo, tendo os operários de Manteigas esboçado um protesto contra os baixos salários, Sotomayor verificara que, na sua fábrica, os afilhados não haviam acompanhado os camaradas, não por ganharem mais, mas, decerto, com a esperança de que ele lhes deixasse alguma coisa em testamento. E, desde então, nunca se negava a apadrinhar qualquer recém-nascido.

Agora, contemplando aquele vasto prédio em socalcos, um dos muitos que Sotomayor tinha dispersos no vale, Horácio lamentava-se novamente: “Até naquilo tivera pouca sorte. Se em vez de os seus pais haverem pedido ao Marques, houvessem pedido ao senhor Vasco para ser seu padrinho, outro galo lhe cantaria. Estaria, agora, a trabalhar na fábrica e não ali, de alforge às costas, a servir o Valadares, como um criado.”

Avistou Idalina lá no fundo, entre outras mulheres e homens, cuidando de terra de milho, à beira do rio. Foi descendo lentamente. O cão seguia-o, procurando a extrema dos botaréus, para evitar saltos, pois, agora, andava apenas com três patas a quarta encolhida junto do ventre.

Idalina só os Viu quando ambos estavam perto. Largou a enxada e avançou para Horácio, os olhos postos na sua andaina de pastor. Ele sentia-a surpreendida e só soube dizer:

—Vou para o gado...

Ela continuava a contemplá-lo, intrigada, e ele, com a garganta a apertar-se-lhe, só pôde repetir:

— Vou para o gado...

— Mas, então, não podias ficar mais uns dias? Pensei...

Ele sentia uma emoção cada vez maior.

— É para acabar mais depressa...—murmurou. Queria poder dizer-lhe que era por ela que partia

já, para mais rapidamente pagar a dívida, ser livre e trabalhar apenas para os dois. Mas o desejo, que ele adivinhara na senhora Gertrudes, de que aquilo não se soubesse, detinha-o.

Idalina voltava a olhá-lo com expressão de ternura e de pena:

Desde que se adia, tanto faz uma semana a

mais ou a menos... E eu mal te vi. Estiveste tanto tempo fora e, agora, abalas de caminho!

Pois é... Mas eu quero a boda o mais depressa

que possa ser. Assim vamos ganhando tempo. Os teus pais estiveram ontem lá em casa, sabes?

Ela fez apenas um movimento com a cabeça um movimento que o sensibilizou ainda mais, porque parecia de indiferença, mesmo de desacordo, com a atitude tomada pela senhora Januária e seu marido.

Não há-de demorar muito... —volveu ele.—O vigário prometeu-me interessar-se por mim e ontem botei também à Aldeia do Carvalho, a falar com um amigo que tenho lá. Aqui ou na Covilhã, hei-de entrar para uma fábrica... — Calou-se um momento e, como ela também se conservasse silenciosa, acrescentou com outro tom de voz: —Era isto que eu queria dizer-te...

Ambos sentiam-se pletóricos de palavras a pronunciar, mas a emoção retinha-as — a emoção e aqueles golpes de enxadas na terra, ali pertinho, que pareciam marcar, sonoramente, os minutos de Idalina.

— E quando é que nos voltamos a ver? — perguntou ela.

— Para a tosquia. Para a tosquia, venho com o gado. A não ser que antes apareça lugar numa fábrica...

Idalina continuava a ouvir o ruído das enxadas — tape, tape, tape— a chamar por ela, jornaleira paga para amanhar a terra e não para estar ali de palreio, coisa de que o senhor Vasco não gostaria se o soubesse.

— Bem. Então, adeus. Tenho que ir... — E parecia seca de alma, ao despedir-se assim, já uma face voltada para ele, outra para o lugar onde os demais ganhões trabalhavam.

Horácio olhava-a, com um misto de carinho e de infelicidade, enquanto lutava com aquela pergunta que ora lhe vinha à boca, ora recuava, para vir de novo, como uma tortura. Por fim, soltou-a:

— Tu esperas, não é verdade? Ela viirou-se para ele:

— Espero o quê?

— Pormim.... — balbuciou, timidamente.

Os olhos de Idalina mostraram-se novamente surpreendidos :

— Que tolice é essa ? Pois não havia de esperar!

— Então, adeus...

Ele voltou a cortar os campos, desta vez para a estrada. Atravessou as Caldas, a ponte sobre o rio, logo o flanco da mata nacional. O dia tornara-se mais sombrio. E ele caminhava inquieto. Só agora lhe acudiam as palavras que devia ter dito a Idalina, as que deviam tê-la convencido definitivamente. Parecia-lhe que não dissera as suficientes, parecia-lhe que a despedida fora brusca, que tudo ficara em suspenso, que ela não tomara um verdadeiro compromisso.

Ia no vale estreito, profundo, sufocado, que antecede a nascente do Zêzere. Era um corredor quase recto e compridíssimo e dir-se-ia rasgado pelo casco de um navio, que ali imprimira a sua forma de U, acrescentada, na base, pela incisão da quilha, onde deslizava o rio. O Zêzere, ainda infante, mal se enxergava entre os esbranquiçados penedos que se erguiam no seu leito e as urzes que o ladeavam. Nas declivosas orlas, pacientes braços haviam semeado de centeio quantos escassos metros eram propícios e construído uns casebres de pastores, tudo metido lá em baixo, como no fundo de um abismo. Em cima, muito ao alto, as beiçorras da serra corriam quase a pique e por elas passavam, ligando-as um instante, farrapos de neblina.

Horácio trilhava, há mais já de uma hora, a estrada que acompanha a fenda gigantesca, quando sentiu que algo ’lhe faltava. Voltou-se à sua procura. Lá vinha, ao longe, arrastando-se nas três patas. Trazia o focinho roçando o chão, pensativamente. De quando em quando, deitava-se, repousava um momento e volvia à andança, a manquejar grotescamente, como se cumprisse um destino. Horácio detivera-se a seguir-lhe, com os olhos, o penoso avanço. O “Piloto” não o vira ainda a olhar para ele e só quando- o assobio lhe chegou aos ouvidos levantou a cabeça. Pôs-se, de súbito, alegre, a cauda no ar, os olhitos muito vivos a sorrirem com humildade. Quis correr, acercar-se depressa, para que o dono não tivesse de esperar. Ora punha a pata doente no cascalho, ora a levantava, dorida, e prosseguia, desequilibrado, cada vez mais caricato, nas três pernas. Por fim, deixou-se descair de novo, vencido, a dez passos, sempre a olhar para o amo, humildemente. Horácio aproximou-se, pegou nele ao colo e continuou a andar. Sentia, agora, vontade de lhe pedir perdão.

De súbito, Horácio reconheceu, ao longe, a figura de Valadares, que marchava em sentido oposto ao dele. Logo estranhou vê-lo assim de mãos livres, sem enxada, sem cajado, sem coisa alguma que indicasse jornada de trabalho. “Que andaria o patrão a fazer por ali, tão longe de casa, àquela hora? Por mor de recado para o Tónio não era, senão tinha-o encarregado a ele de o dar. Queijos também não levava...”

Valadares aproximava-se e saudava-o:

— Bom dia! Vais-te chegando, nem? O Tónio anda mesmo aí em cima. Eu vim ver o alqueive que temos no Covão da Metade... Quando a outra malhada estiver estrumada, hás-de levar as ovelhas para lá... O que tem o cão?

— Está coxo...

Parecia a Horácio que o patrão não lhe falava com a naturalidade habitual, mas já Valadares se despedia e continuava o seu caminho. Ele prosseguiu, também, estrada acima.

Da banda da Nave de Santo António surgira uma baforada de nevoaça, logo outra e outra e, em seguida, compacto nevoeiro, que descia para o vale. Pouco depois, baixavam no céu uns rumores surdos, prolongados, como se o Deus das alturas estivesse a arrastar os seus móveis. Pumba, deixara tombar um! E o silêncio, um silêncio húmido de fim de mina, volvia.

O “Piloto” começara a mostrar-se nervoso nos braços do seu dono. Estavam o homem e o cão ao pé da nascente do Zêzere e a mudez da terra era, agora, quebrada pelo som de dispersas campainhas. Horácio ouviu a voz de Tónio praguejar, irritada, contra as ovelhas, mas não via coisa alguma no meio da névoa que o cercara. Os seus olhos estavam cheios de branco, um branco espesso e frio, que se movimentava, mas que, de perto, parecia estático, como uma branca e álgida eternidade.

Horácio depôs no chão o “Piloto” e chamou:

— Tónio! Tónio!

O outro respondeu-lhe de longe:

— Estou aqui... Vem cá!

Ele arriscou alguns passos através da bruma, em direcção à voz. Mas, pouco depois, voltava a gritar:

— Tónio! Eh, Tónio! Onde estás?

— Estou à entrada do Covão da Metade...

Começou a orientar-se pela estrada, que branquejava sob os seus pés. O som das campainhas era, agora, mais nítido e, de quando em quando, ouvia-se um balido de ovelha, perdida na cerração.

Horácio divisou os sapatos e a ponta do cajado de Tónio, antes mesmo de lhe ver o rosto, que o bulcão envolvia. Estava encostado a um rochedo, na atitude de quem se resigna, impotente. Mas, ao ver Horácio, largou o varapau e abriu os braços, num alvoroço:

— Dá cá esses ossos! — E abraçou-o fortemente. — Então, como estás ? A modos que a tropa te fez bem...

Era o primeiro gosto que Horácio tinha naquele dia. De toda a família do Valadares, só por Tónio, o filho mais velho, ele lavrava quente estima. Haviam passado juntos quase toda a adolescência e começo da mocidade. Separados no Verão, quando Horácio pastoreava na serra, logo que as ovelhas eram levadas para a Idanha, os dois conviviam todos os dias, iam crescendo e trabalhando lado a lado nas mil tarefas que, com sua casa e terras, Valadares descobria sempre para os filhos e para o moço assalariado. Havia horas em que Tónio parecia mais seu amigo do que do próprio irmão e fora até por intermédio dele que Horácio, por duas vezes, pedira, inutilmente, aumento de soldada ao Valadares.

Agora Tónio dizia:

— Já sabia que tinhas voltado, mas não pensei que viesses para aqui tão cedo... Não ias casar?

Ele fez um gesto vago e Tónio ficou um momento a olhá-lo, em silêncio. Depois, Tónio considerou que ia ser-lhe mais difícil do que, a princípio, lhe parecera, dizer a Horácio aquilo de que o haviam encarregado.

Na encosta próxima, um chocalho badalou, solitário:

— Por onde aquela anda! —comentou Tónio, para afastar as suas próprias preocupações.— Há um bocadinho, o gado tresmalhou-se de repente. Nesta semana é a segunda vez que isto me acontece. Houve uns dias de muito sol e, depois, os nevoeiros vieram outra vez...

De quando em quando, passava, por eles, uma ovelha, passava como numa paisagem submarina e a sua lã branca parecia diluir-se, tornar-se também névoa. De cajado estendido, Tónio procurava desviar-lhe o rumo, metê-la na abertura que se adivinhava entre o nascimento de duas pedras, à flor da terra. Mas, com três passos, a ovelha desaparecia na fumarada, como se, numa rápida tremura, se houvesse desfeito. Junto deles via-se somente o focinho do “Lanzudo”, que parecia não ter corpo, que parecia ser apenas uma cabeça de molosso suspensa no ar.

— Diz-me uma coisa: Como te deste por lá? Horácio teve um sorriso melancólico:

— A princípio, custou-me muito, mas, depois, habituei-me, que remédio!

— Hás-de contar-me como isso é. Quando me lembro de que se o vigário não tivesse metido empenhos por mim, eu também teria de ir, até tremo!

A neblina começara a esgarçar-se para a banda do vale, batida por uma aragem mais forte. E, por cima deles, voltaram a fazer-se ouvir os tumultos celestes. Por fim, o nevoeiro rasgou-se, um momento, e Horácio examinou o céu suspeito:

— Parece-me que não posso chegar com o gado à Nave sem apanhar uma carga de água...

— É o que eu já tinha pensado — concordou Tónio. — O melhor é ficarmos cá dentro, nas cabanas, até isto passar.

Agora, a bruma desprendia-se da terra, em volta deles. E, nos acidentados derredores, cheios de urzes e de penedos, apareciam, pastando tranquilamente, várias ovelhas. Tónio chamou-as:

— Tchiá! Tchiá! Velhinhas!

Uma e outra obedecia logo e, às que faziam ouvidos moucos, ele enviava uma pedrada. O “Lanzudo”, já mostrando todo o seu enorme corpo de cão da serra, foi, de andar pesado e com o “Piloto” a cheirar-lhe o rabo, postar-se atrás das ovelhas teimosas, para as decidir à obediência.

Junto de Horácio e de Tónio viam-se, agora, dois altíssimos fragões. Mostravam uma abertura que dir-se-ia cortada a prumo por mão fabulosa e servia de porta natural para o circo onde nascia o Zêzere, porta que parecia dar para o túmulo de um deus. Através dela, as ovelhas, chamadas, enxotadas ou apedrejadas, iam passando, enquanto Tónio as contava.

— Faltam quatro, mas talvez já estejam lá dentro.

Os dois entraram. No Covão da Metade, a bruma, encarcerada por vastas massas pétreas, elevava-se mais lentamente do que cá fora. Mas já se via a terra plana, de uma banda coberta de verde cervum, que o rebanho ia devorando, da outra vários alqueives e, ao centro, o rio correndo, aos ziguezagues, sob aquela fumaceira, como se fosse a ferver.

Tónio recontou as ovelhas e tranquilizou-se: estavam todas. Depois, fez um cigarro e ofereceu o tabaco e o papel a Horácio. Esse momento pareceu-lhe próprio para lançar a ideia, mas deteve-se. “Talvez fosse melhor noutra ocasião e quando estivessem sentados. Tinha de fazer um grande rodeio, pois Horácio era esperto e ele não devia começar logo a falar daquilo.”

Em frente deles viam-se várias “cabanas” abrigos que velhos pastores tinham erguido no fundo do Covão da Metade, como no fundo de uma grande cratera. Eram formados por três paredes e pedras soltas arrumadas a uma fraga, pouco maiores do que casota de cão e onde, pela porta estreita e baixa, só como um cão se podia entrar. Tónio foi encaminhando Horácio para um dos abrigadoiros e ao seu portelho se sentaram.

A bruma subia cada vez mais, deixando a descoberto os contrafortes ásperos, medonhos, do berço do Zêzere. Uma rotunda imensa, grave, misteriosa, de contornos imprevisíveis, começava a aparecer, como se as névoas do princípio do Mundo a abandonassem pela primeira vez. Iam-se desvendando enormes moles de granito, ao fundo, à direita, à esquerda, pedra de todos os milénios, bastiões de um só bloco e rude traça, que se apresentavam com uma soberba, uma majestosa solenidade. Essa muralha ciclópica e irregular, cheia de arestas, de vincos, crescia rapidamente, atrás do nevoeiro que se retirava. Cada vez se mostrava mais alta, mais arrogante cada vez , assim tapada nos cimos, dir-se-ia não ter fim. Pouco depois, porém, tripartia-se, libertando as suas três cabeças das toucas de algodão em rama e um relâmpago recortava num fundo ígneo, lá nas alturas, as formas orgulhosas, absurdas, fantásticas, dos três Cântaros. Logo veio o trovão. O “Piloto” ergueu o focinho para o céu e desatou a uivar lugubremente, interrompendo Horácio, que, puxado por Tónio, falava da vida militar.

O anfiteatro colossal em que eles se encontravam exibia-se, agora, em toda a sua imponência. Era de uma grandiosidade severa, essa rotunda propícia para um templo de mitos alpestres. Estava metida entre assombrosas florações de granito e terminava no Cântaro Magro, que lembrava a carcaça de imensurável castelo de outrora, do qual se aproximassem fulminantes coriscos. Dir-se-ia que a Natureza quisera defender e impregnar de mistério a nascente do Zêzere fechando-a como numa fortaleza. E, contudo, parecia que o rio fora apenas um pretexto. Era uma pobre, trémula fita de água, ora muito estreita, ora mais larguita, às vezes quase invisível, que se lançava lá do alto por um sulco ou diáclase da rocha negra, aberta para lhe dar melhor caminho. Ao seu lado, porém, tudo se agigantava. Sob os frequentes relâmpagos, alguns trechos dos paredões, cheios de estrias, de saliências, de avanços e de recuos, pareciam oriundos de uma floresta petrificada. Outros, poliformes, laminados, lápides desmesuráveis coladas umas as outras, sugeriam livros de gigantes incrustados na montanha, escuros, e corroídos pelo tempo, no meio de um caos de linhas verticais, tocadas de irrealidade.

Havia um contínuo trovejar. A tempestade apix>- ximava-se e o céu ia escurecendo cada vez mais, como se a noite fosse cair sobre o meio-dia. Uma águia veio remando de longe, lentamente, e pousou nos topes do Cântaro Raso. Deu dois pulinhos, perscrutou a distância borrascosa e, depois, volveu o bico adunco para baixo, para o sítio onde Tónio e Horácio estavam. Da porta da sua lura, eles seguiam-lhe os movimentos e viram-na desaparecer numa cavidade da rocha. Mas já outras águias acorriam ali, acossadas pelo temporal.

Agora, por detrás dos Cântaros surgiam, estendendo-se sobre o circo, grandes, pesados, grávidos bandos de nuvens. Em seguida, um relâmpago, uma enfiada de trovões e ainda outra faísca rabiante, ali pertinho, ali por cima, no pico do Cântaro Magro. O ar chiava e houve um gemer de pedra, fino, cortante, que pairou, a enervar tudo, uns segundos. Horácio e Tónio voltaram, repentinamente, a cabeça para a escuridão do abrigo. Parecia-lhes que aquele golpe de luz lhes havia ferido os olhos, que o raio havia caído nas suas próprias pupilas, trespassando-as como um punhal em brasa. Logo se deu, por cima deles, uma explosão de catástrofe cósmica, que fez estremecer a terra transida e pôs tudo a vibrar, deixando errante na atmosfera um grito humano, lancinante, que vencia o ecoar longínquo do ribombo. Horácio fechou os braços em volta da cabeça, receando que as pedras da cabana se desmoronassem sobre o seu corpo. À porta, o “Piloto” ladrava para as nuvens, desesperadamente. De novo, outros relâmpagos laceraram a escuridão e de novo reboou aquele grito de desespero impotente, de alucinação, um grito de cristal, que dir-se-ia vir das entranhas da rocha e morrer em temerosos desfiladeiros. Receando pelos seus olhos, Horácio descerrou as pálpebras. Via. Quedou à escuta, no grande silêncio que se fizera no circo, com o “Piloto” subitamente calado, com o céu calado, com o grito morto. Tónio escutava também. Nada. Os dois levantaram-se e vieram à rotunda, esquadrinhar, com a vista, as redondezas. O silêncio prosseguia, tudo estava

quieto e parecia também em expectativa, como eles. Só as nuvens, por cima, se moviam, grossas, alvacentas, cada vez mais carregadas. Mas já o “Piloto”, dando gozo à ccuriosidade, arrastava a perna e ia meter a cabeça naporta do último abrigo. Horácio e Tónio caminharam para ali e, ao assomar à abertura, viram, lá dentro, estendido no chão, um garotelho de olhos vidrados, tão inchados de pavor que dir-se-iam fora das órbitas e prestes a rebentar. —.Eh, rapaz! Que fazes aí? Não respondeu. Continuava a olhá-los com aqueles seus olhos esbugalhados, como se não os visse nem os ouvisse. Mas todo ele tremia e uma baba escura sujava-lhe a boca.

— Foste tu que gritaste? Continuou calado.

— Ó alma do diabo, tu não sabes falar? Devia ter nove, dez anos, estava vestidito de

remendos e continuava a tremer. Fez um esforço, viu-se que queria dizer alguma coisa, mas ficou sem palavra. Horácio entrou e, então, deu conta de que era uma dessas crianças que os pais mandavam pastorear seu gadito por silvedos, valados e caminhos dos derredores da vila, como a ele, outrora, quando pequeno. Por detrás do garoto, na escuridade, estavam cinco ovelhas, muito juntas, de cabeças encostadas umas às outras.

Horácio levantou o corpito e conduziu-o para a beira do rio. Tónio reconheceu-o:

— É o mais novo do tio Avelino. Molharam-lhe a testa várias vezes e continuaram

a falar-lhe, no desejo de lhe colher resposta. Ele continuava mudo, mas o espanto ia-se levitando dos olhos arregalados e a excitação diminuía. Horácio sentou-o e ofereceu-lhe do seu pão. Ele não lhe pegou. As suas pupilas adquiriram outra expressão,

mas volviam-se numa consulta de medo, para o Cântaro Magro, para a gigantesca mole que atraía os

raios.

— Porque diabo vieste para aqui?

A vozita saiu-lhe difícil, ainda entrecortada de tremuras:

— As ovelhas vieram andando... Lá em baixo tinham pouco que comer... Depois veio a trovoada...

— Parece-me que também eu te conheço... Ontem, quando fui tomar a camioneta, tu não ias para a escola?

— Ia, sim, senhor.

— E então não foste hoje?

— O meu pai precisou do meu irmão para o campo e eu vim no lugar dele...

A chuva desabara, finalmente. Horácio e Tónio, com o pastorito entre eles, correram para a caseta onde haviam estado e nela se recolheram. O “Piloto” sentara-se à porta, com o focinho de fora, muito quieto, a olhar,

—’As minhas ovelhas...—murmurou o garoto.

Horácio tranquilizou-o:

— Deixa lá as ovelhas... Elas não fogem... E cá está o cão para os lobos...

O pequeno sorriu e aceitou o naco de pão.

Tónio enervava-se com aquela presença.

— Se queres ir, vai... — disse-lhe. Mas já Horácio protestava:

— Não! Isso não! Ia-se molhar todo e, daqui a pouco, estava outra vez com medo.

Cada vez mais contrariado, Tónio renunciou a insistir.

A chuva, que começara por bagos gordos e raros, transformara-se, rapidamente, em grossas cordas líquidas. E prosseguia, ininterrupta, meia hora, uma hora, num dilúvio, enquanto Tónio ia falando de coisas vagas e Horácio lhe respondia também monotonamente. Perto deles, o Zêzere, ainda tão pequenito ao atravessar a alfombra da rotunda, crescera num instante, transbordava através dos magotes de juncos e urzes das margens e regougava, adquirindo subitamente voz de adulto ao despenhar-se na saída do grande circo.

Por fim, o céu principiou a clarear. Tónio voltou-se para o garoto antes mesmo de a chuva acabar de todo:

— Já podes ir às tuas ovelhas...

O pastorito levantou-se e, timidamente, sem dizer palavra, saiu.

Tónio sentiu-se aliviado por ter vencido aquela primeira dificuldade. Deixou o silêncio correr alguns momentos e, depois, lançou:

— Há pouco não me disseste porque voltaste para o serviço do meu pai antes de casares...

— Resolvi adiar o casamento...

— Porquê?

Horácio encolheu os ombros, de novo mal-humorado.

— Foi por falta de meios? — insistiu Tónio.

— Por que havia de ser?

Tónio ficou calado, como se meditasse. Abriu o seu alforge, tirou pão e queijo e pôs-se a mastigar.

— Não comes?

— Não. Ainda não tenho vontade.

O “Piloto” voltara-se para eles, de olhos pedinchões. Em frente da casinhola, sob a aba de uma laje, estava o rebanho de Valadares, com o “Lanzudo” ao pé. Tónio chamou o seu cão. E entre este e o “Piloto” dividiu quanto pão lhe sobejava. Depois disse, olhando para a chuva rala, miudinha, que subsistia:

— Talvez eu saiba como podes arranjar dinheiro. ..

Horácio voltou-se, surpreendido, para ele:

— Como?

Tónio não respondeu logo. Olhou novamente através da chuva e pôs-se a mastigar com mais rapidez, para desimpedir a boca. Sentia, ao seu lado, a ansiedade de Horácio, mas ele próprio hesitava, agora, em falar daquilo.

— Bem... Eu não sei se deva dizer-te... Mas, enfim... tu és quase como meu irmão... Mudou o tom de voz: — Tu juras que não contarás nada a ninguém, mesmo que não queiras fazer o que eu te disser?

Horácio olhava-o, espantado. Tónio baixara a vista e aguardava.

— Homem, está bem, juro! De que se trata?

Tónio parecia vacilar ainda. Ia tirando, lentamente, as migalhas que lhe haviam ficado coladas na ponta dos dedos e contemplando os dedos, como se neles se encontrasse o seu segredo.

— Eu tenho confiança em ti... —murmurou.— Sim, eu penso que tu não eras capaz de dizer fosse o que fosse que me pudesse fazer mal... Não é verdade?

Horácio estava impaciente:

— Podes falar à vontade! E, demais a mais, para eu ganhar dinheiro!

—É uma coisa simples... A questão é tu quereres. Écom as florestas... Em volta de Manteigas já não há um único pasto, como sabes. Todas as encostas estão cheias de florestas do Governo e não se vêem senão árvores. O povo, se quer manter o seu gado, tem de andar léguas e léguas e ir para os picotos da serra, para os infernos. E se, ao passar nas canadas, as ovelhas ou as cabras entram, mesmo contra nossa vontade, numa floresta zás! vem logo uma multa. Ainda o ano passado apanhei uma sem ter nenhuma culpa. De duas notas, deram-me de volta dez mil réis. Imagina: cento e noventa mil réis sem um homem ser culpado. O meu pai ficou furioso! Ao senhor Vasco sucedeu a mesma coisa. O rebanho dele ia para as bandas do Poço do Inferno, quando apareceu um guarda e bumba!— passa para cá duzentos mil réis. O senhor Vasco meteu empenhos para não pagar, mas foi o mesmo do que nada. Então ele foi aos arames! Não por mor do dinheiro, está claro, que o dinheiro não lhe fazia falta, mas porque tomou aquilo como uma desconsideração para um homem tão importante como ele.

— Não sabia que o senhor Vasco tinha, agora, um rebanho.

— Teve, mas já não tem. Comprou-o para ajudar o Marcelino. O Marcelino estava rebentado, tinha mesmo de se desfazer das ovelhas, mas os outros pouco lhe davam por elas. Então o senhor Vasco, com pena dele, comprou-lhas e deixou-o como pastor, como se os bichos fossem ainda do Marcelino. Mas aquilo durou pouco. Quando foi da multa, o senhor Vasco ficou tão aborrecido que resolveu vender o gado e não se importar mais com aquilo. Nas outras terras, os rebanhos aumentam de dia para dia; aqui, por causa das florestas, cada vez há menos ovelhas e só aumentam os pinheiros.

Tónio fez uma pausa, para os seus olhos perscrutarem os de Horácio. Depois, continuou:

— Antigamente não era assim. O meu avô ainda se lembra de os pastos estarem mesmo ao pé da porta. Os pastores tinham queimado as árvores dos tempos antigos e havia ovelhas por toda a parte. Agora é o que se vê... Todos se queixam, mas ninguém faz nada de jeito. A princípio, ainda algum pastor ia deitando fogo onde podia... Mas depois que há a Torre de S. Lourenço, com um homem, a vigiar, lá do alto, as florestas e a telefonar cá para baixo mal vê um pouco de fumo, já não há fogo que pegue a valer...

Horácio sabia aquilo, ouvia falar daquilo, quase com as mesmas palavras, desde criança.

— Está certo —interrompeu.— Mas que tem isso que ver com eu ganhar dinheiro?

Tónio disse, lentamente:

— Se eu puser fogo em dois ou três lugares na mesma tarde, eles não podem acudir a toda a parte.

Acodem ao que virem primeiro. Mas o primeiro seria só para os chamar para lá. O segundo é que seria a sério. Três ou quatro homens lançavam fogo, de ponta a ponta, a uma floresta e, com vento de feição, aquilo ia num instante. Quando os outros voltassem do primeiro incêndio, além de estarem cansados, já seria tarde. Um fogo seguido, ninguém o podia apagar... E, no ano seguinte, já haveria pastos com fartura e tenrinhos perto da vila. Com duas ou três florestas queimadas, cada qual podia criar mais ovelhas. Até uma vez, antes da multa, o senhor Vasco tinha dito que se não fosse a falta de pastos ele teria um grande rebanho. Como ele tem de comprar lã para a fábrica, ficava-lhe tudo em casa. Os outros industriais dizem que não vale a pena para eles terem ovelhas, mas o senhor Vasco não pensa assim...

Em Horácio desaparecera o entusiasmo inicial:

— Então eu seria um dos que...

— Se quisesses. Receberias cinco notas da primeira vez. E mais cinco de cada vez, se se tornasse a fazer.

— E quem paga? Tónio titubeou:

— Bem... Alguém paga. Não importa saber agora. Eu mesmo te entregaria o dinheiro.

— É o teu pai?

— Não, que ideia!

— Então é o senhor Vasco...

— Nem o meu pai nem o senhor Vasco têm nada com isso! E não são para aqui chamados protestou Tónio.— É escusado quereres adivinhar quem é, que não acertas. E eu não posso dizer mais. O que preciso saber é se aceitas ou não.

Horácio não respondeu logo. De dentro do abrigo os seus olhos iam seguindo, abstractamente, o pastorito que, com um ramo na mão, atrás das suas cinco ovelhas, regressava a Manteigas, sob os últimos chuviscos.

— Quinhentos mil réis é quanto devo a teu pai. Não vou, por isso, arriscar-me a dar com os ossos na cadeia...

— Mas quem te disse que tu ias para a cadeia? Está tudo bem pensado. E, depois, toda a gente de Manteigas nos encobria, se fosse preciso. É uma coisa para o bem de todos. Todos têm o mesmo interesse. De vez em quando, aparece um fogo na serra e ninguém pode garantir que é fogo posto...

— Está bem... Está bem... Não digo que não. Mas eu não tenho ovelhas e por cinco notas não vou arriscar-me. E olha lá: não dizem’ que as florestas fazem bem à lavoura, que trazem mais chuvas, que prendem as terras quando há enxurradas e que ainda por cima dão quanta lenha se quer? Já uma vez ouvi que não haveria campo que se aguentasse à beira do rio, que tudo ficaria cheio de calhaus, se não fossem as florestas.

— Isso dizem os que recebem dinheiro do Governo, para as conservar. Que haviam eles de dizer, se vivem disso?

Horácio começara a sentir-se menos amigo de Tónio:

— Por que não pões tu sozinho o fogo?

— Já te disse que um homem só não faz nada de jeito! Os dos serviços florestais vêm e apagam logo. Arde meia dúzia de pinheiros — e pronto!

— E, então, quem ia connosco? Tónio voltou a tartamudear:

— São pessoas de confiança... Por ora não posso dizer o nome... Tu depois saberias... Só falta um e por isso te falei... Mas se tu não queres —acrescentou, de mau humor—, paciência!

Ficaram os dois calados. A chuva passara completamente e o rebanho voltara a desunir-se, pastando, tranquilo, sobre a relva.

— Hei-de pensar nisso... —declarou, por fim, Horácio. — Depois te direi. Como só no pino do Verão a coisa pode pegar, ainda temos muito tempo...

Também Tónio sentia esmorecer a sua amizade por Horácio.

— Está bem... Mas não tardes a resolver, porque, se não quiseres, tenho de arranjar outro...

O céu já estava quase límpido e a luz solar tornava a encher o covão. Tónio ainda se demorou a dar mais pormenores do projecto — coisa certa, que não falhava e não trazia perigo a ninguém e, finalmente, levantou-se:

— Vou-me embora! As ovelhas, agora, são cento e dezasseis. E três cabras. As ferradas e o resto estão nos penedos, ao fundo da malhada, à esquerda de quem olha para Manteigas. O sinal é uma pedra grande e uma pequena, em cima de um graveto. Eu agora por lá e levo os queijos... — Pôs aos ombros o alforge e a manta, pegou no cajado e no chapéu e, hesitante, murmurou:—Adeus...

— Adeus.

Tónio deu alguns passos fora da casota e voltou-se, ainda apreensivo:

— Se eu não tivesse a mesma fé em ti que tenho em mim, nunca te diria o que te disse. Portanto, vê lá...

— Vai descansado. Já jurei, que queres mais? Horácio viu Tónio desaparecer no fim do grande

circo e levantou-se também. Reuniu as ovelhas e, pouco depois, subia, com elas, a encosta coberta de altas urzes e adustas penedias, que dava para a nave de Santo António, principal pastagem. Pela última vez, divisou, na lonjura, à esquerda, lá no extremo do compridíssimo corredor por onde, remotamente, deslizaram tremendos glaciares e onde, agora, corria o Zêzere recém-nascido, a sua pequena vila de Manteigas. Era um trecho apenas, umas pinceladas de branco, vermelho e escuro num fundo verde de campos agricultados e de florestas. Logo ao burgozito se associou outra imagem. E rapidamente Horácio amoleceu de saudades, como se fosse para longe, muito longe. “Raio de vida! Ia estar apenas a três horas de caminho, mas com tantos dias sem ver Idalina, como se estivesse no fim do Mundo.”

O rebanho entrou, finalmente, na Nave de Santo António, vasto planalto, ao fundo do qual se levantavam espectaculosos conjuntos pétreos, arestosas lombas que corriam desde a pesada grandeza dos Cântaros até o Espinhaço do Cão, tudo serrilhado. O Sol vencera as derradeiras placentas que a tempestade deixara no céu e prateava, agora, o verde, muito fresco, da grande manta de cervum que cobria a Nave.

Quando Horácio ali chegou com as ovelhas de Valadares, já outros rebanhos iam rapando a erva, enquanto desgarradas cabras, trepando pelos alcantis próximos, buscavam, para roer, solitárias folhitas. Dispersos, sentados ou de pé, os pastores vigiavam, corrigindo com gritos e pedradas, a lenta mas constante deslocação do seu gado. Um ou outro, reconhecendo Horácio, acenava-lhe de longe. E dois deles, o Canholas e o Papagaios, deixando, por momentos, os seus rebanhos, acercaram-se. Como estava, como não estava, como era e não era aquilo da vida militar, depois destas vinham aquelas outras palavras que já começavam a irritá-lo: “Pensei que ias casar antes de voltares para a serra. Quando casas?”

Horácio respondia de boa cara, mas sentindo uma raiva surda, não sabia porquê, nem para quem. “Parecia que as pessoas não sabiam falar de outra coisa!” Os píncaros petrificados, a grande bacia relvada aberta na sua frente, os zimbros que, mais além, se lançavam sobre pedras como polvos envolventes, as ásperas encostas, toda essa brava paisagem das alturas, cheia de corcovas, de ondas, de cristas e de esbarrondadeiros, que constituíra, para ele, durante muitos anos, um mundo familiar, aparecia-lhe agora odiosa, sufocante, inimiga da ânsia que ele sentia, opressivamente, dentro do seu peito. Reconhecia tudo, até as moitas de urzes que haviam crescido durante a sua ausência, à beira do regato que cortava a Nave; mas via tudo isso com raiva, como se houvesse tido um conflito com tudo quanto o cercava, vegetal, mineral e animal, com o próprio milhano que, no céu agora limpo, traçava lentas voltas e que ele desejaria abater com um tiro de escopeta, para vingar-se de alguma coisa.

De longe, por entre o tilintar das campainhas dos rebanhos, veio um som alegre de flauta. Ele distendeu a vista, mais irritado ainda, e descobriu o tocador, mas não pôde identificá-lo àquela distância.

— Quem é?

— É o Chi-co da Levada — informou o Canholas. Horácio sentia-se afrontado com a alegria que o

outro parecia fruir e tinha, ao mesmo tempo, a sensação de que o haviam roubado. Durante anos ele fora o único que trouxera uma flauta para a montanha. Os pastores de Manteigas vinham para ali como para um presídio, sem ganas de se divertir, sempre a revezarem-se e sempre a pensar nas temtas e nos trabalhos que os aguardavam na vila. Só ele, pastor efectivo, todo o Verão na serra, se entretinha a quebrar o silêncio e a solidão dos cimos com aquela velha flauta que comprara a um homem de Nespereira e à qual, antes de ir para a tropa, estimava mais do que a um amigo. Agora, porém, a música que vinha de longe dava-lhe desejos de chorar.

— O Chico, antigamente, não tocava...

— Pois é... — concordou o Canholas. — Toca desde que lhe morreu a mulher. Diz que não pode estar sozinho sem fazer alguma coisa, senão dão-lhe muitas saudades dela...

Pouco depois, os outros dois pastores acorriam aos seus rebanhos. Horácio quedou-se sobre uma pedra a mastigar um pedaço de pão, que a garganta dificilmente deixava passar. Estava, agora, crente de que não errara ao nomear, horas antes, o Valadares e o Vasco Sotomayor. “Era um. deles, ou os dois juntos, não havia dúvida. Quando encontrara o Valadares no caminho, com ar encavacado, decerto ele vinha de falar no caso ao filho. Por isso, o Tónio, em vez de ir direito da malhada à Nave, com o gado, fora descendo para a banda do Zêzere, pois assim fazia companhia ao pai até ao começo da estrada. Mas ele é que não estava pelos ajustes. Primeiro, havia de falar com Manuel Peixoto. Não se ia arriscar a perder a sua liberdade para ser agradável ao forreta do Valadares. Depois, todas as pessoas que sabiam alguma coisa diziam que as florestas davam cabo do gado, era verdade, mas que, por outro lado, eram boas para o povo. Até o vigário Barradas, há anos quando tinha havido muitos incêndios, falara nisso, numa prática, na missa.”

As ovelhas iam avançando e ele acompanhou-as. Tudo aquilo lhe parecia monótono, lento, interminável. Nunca tarde alguma de pastoreio se lhe apresentara tão longa. Sentia o tempo como uma vontade fria contrária à sua, contrária àquela ânsia de que chegasse o dia seguinte, para ele ouvir de Manuel Peixoto a resposta ao pedido que lhe fizera. De quando em quando, a flauta do outro pastor rompia, de súbito, a quietude da montanha, com aqueles sons alegres, curtos, agudos e ele entristecia mais.

Finalmente, o rebanho atingiu o extremo da Nave e volveu. Todos os dias ocorria a mesma coisa. Quando o crepúsculo se aproximava, as ovelhas tomavam, espontaneamente, o caminho do lugar onde deviam dormir. Dir-se-ia conhecerem, com precisão de relógio, o tempo de que careciam para alcançar a malhada, antes de a noite cair.

Os rebanhos regressavam a petiscar, aqui, ali, acolá, ervita que, à ida, escapara à sua fome. Regressavam lentamente, enchendo de melancolia a serra, com a dolência das suas campainhas nas derradeiras horas do dia. E sempre, a perturbar a sua música sempre igual, arrastada e triste, os sons jocosos, saltitantes, da flauta do Chico da Levada, a quem morrera a mulher.

À luz do poente, que doirava os píncaros, os pastores seguiam atrás dos rebanhos, como guiados por eles; nos flancos marchavam os cães, uns e outros atentos a que não se tresmalhasse alguma ovelha, pois se alguma quedasse ali seria ceia de lobos. O Chico da Levada vinha atrás de todos e atrás dele estendiam-se as primeiras sombras da noite.

O rebanho de Valadares foi, pouco a pouco, afastando-se dos outros, meteu por entre grupos de fragas e chegou, por fim, à sua malhada. Era um alqueive plano, rodeado de afloramentos de pedra e coberto com excrementos de ovelhas. Por toda a parte onde as florestas do Estado não tinham fechado ao sol lombas e pendores, a crosta verdoenga da montanha apresentava numerosas malhadas semelhantes àquela. Algumas, com as formas irregulares de quanta terra fora possível aproveitar, escondiam-se entre gigantescas famílias de rochedos, enquanto outras pareciam escorregar pelas próprias declividades. Os habitantes dos povoados serranos, vivendo em acanhados vales e as melhores terras na posse de industriais, padres e outros senhores lugarenhos, haviam ido, desde remotas eras, às adustas alturas e, onde descobriram baldio propício a um punhado de centeio, cavaram-no e regaram-no com o seu suor. Mas o chão era pobre: por baixo dele, a um metro, às vezes ainda menos, jazia a rude ossatura de xisto ou de granito. Por cada ano que dava pão, a terra alta tinha de descansar, em esterilidade, um ano ou dois. Assim, perto ou longe de uma searazita, quem a semeara possuía sempre, próprio ou arrendado, outro tracto devoluto, o alqueive onde as suas ovelhas vinham dormir, adubando a terra que criaria o pão no ano vindoiro.

A malhada de Valadares não era maior do que as dos outros, mas ele contava mais duas nas redondezas.

Um bardo cercava o trecho a estrumar e nele o rebanho entrou.

O lusco-fusco apardaçara já a montanha, começando a dissolver as formas das suas quebradas e baixios. A flauta do Chico da Levada vinha aproximando-se, cada vez mais, cada vez mais e, por fim, calou-se. Um grande silêncio dominou a serra.

Horácio procurou as pedras que indicavam o esconderijo — duas aqui’, duas além, sobre um garaveto, até um dos magotes de rochedos que se erguiam na sua frente. Entre os primeiros e os últimos vultos graníticos, em estreito espaço, encontrou uma rima de batatas e os utensílios para fazer o queijo. Pegou em três grandes latas — três “ferradas” — e volveu ao bardo. Mas, ao ordenhar, não procedia com a rapidez que mostrava antes de ir para a tropa, uma dúzia de apertões em cada úbere e logo outras tetas entre os dedos. Parecia-lhe que as próprias ovelhas, tão passivas, para ele, outrora, se rebelavam agora contra as suas mãos, que haviam perdido o jeito antigo. Contudo, o leite, muito branco lá no fundo da vasilha, ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com que a noite próxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia.

Horácio avançava, de cócoras, entre as ovelhas, empurrando para trás de si as que já mungira. Por fim, ordenhou as três cabras que faziam parte do rebanho e trouxe as ferradas para entre os penedos. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando um agudo pio. Ele levantou os olhos, mas já não a viu. Aquele silêncio de terra molhada e altaneira começara a desagradar-lhe. Dir-se-ia que, em vez de ar, era esse silêncio frio que lhe descia para os pulmões, que lhe enchia a boca, o nariz, os ouvidos, que lhe penetrava a própria pele. Horácio admirava-se de como, outrora, o suportava sem pensar sequer nessa mudez das coisas, nessa solidão da noite, habituado àquilo, tão habituado que, no quartel, o que mais lhe custara, nos primeiros tempos, fora dormir com outros soldados, na grande quadra comum. Pensava, agora, que não lhe comprazia nenhuma das duas situações e que só quando ele trabalhasse numa fábrica e dormisse em sua casa a vida lhe seria apetecível.

Sentados na sua frente, o “Piloto” e o “Lanzudo” não tiravam os olhos dele. Estavam quedos, mas ansiosos, sabendo que não comeriam sem ele fazer, primeiro, o queijo e sofriam por vê-lo com gestos tão lentos. Horácio coava o leite, derramando-o das ferradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano. Os cães seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado o pedaço de cardo que devia produzir o coalhamento e ficaram mais nervosos. Era a sua hora. Mas ele continuava com uns vagares de arreliar. O “Lanzudo”, consciente de seus direitos de molosso, chegou mesmo a estender a cabeça para uma das ferradas e a cheirar o leite das cabras, que se destinava apenas a eles três.

A escuridade aumentara mais. Uma estrela, ainda pálida, surgira no céu, para as bandas das Penhas Douradas. Então Horácio começou a esfarelar pão sobre a ferrada que o “Lanzudo” e o “Piloto” contemplavam, famintos. E quando o pão ficou embebido de leite, empurrou a lata para a frente dos cães — renunciando à sua parte.

Os dois companheiros comeram, ruidosos na sua gula, e quedaram, de novo, à espera. Ele fixou a rima de batatas, mas desistiu de as cozer. Abriu o alforge, contentou os bichos com mais pão e, lascando um naco para si, cobriu-o de toucinho e pôs-se a tasquinhá-lo lentamente, de olhos vagueando no céu, agora todo estrelado. Uma voz soou na noite:

— Horácio...

Ele estremeceu. De entre os penedos não via ninguém. O “Lanzudo”, na sua importância de grande senhor sem medo, limitou-se a olhar para a banda de onde a voz saíra; o “Piloto”, mais plebeu, ladrou. A voz repetiu:

— Horácio...

Era uma voz discreta, quase tímida, como se tivesse receio de acordar a serra ou de espantar a noite. Horácio conhecia-a, mas não conseguiu identificá-la.

— Quem é?

A voz parecia encontrar-se, agora, mais perto:

— Sou eu... O Chico... Onde estás? Horácio saiu do esconderijo e encaminhou-se para

a malhada. A sombra humana esboçava-se junto do bardo e, ao divisá-lo, acercou-se. As suas palavras tremiam:

— Então como passaste por lá?

— Eu passei bem... Tu, já sei que tiveste um grande desgosto...

Não chegou a dizer mais. O Chico da Levada baixara a cabeça, cruzara, depois, as mãos sobre os olhos e pusera-se a soluçar, como se tivesse vindo ali somente para aquilo. Horácio agarrou-o e fê-lo sentar-se numa pedra, ao seu lado.

— Tem paciência, homem! Acontece a toda a gente... Quando morreu a Luísa?

— Há três semanas...—murmurou o Chico da Levada, chorando cada vez mais forte.

Horácio não sabia que dizer. Via a mulher do outro, tão nova como ele, de pés de arvéola e feições delicadas, usando sempre, mesmo depois de casada, blusas de chita multicolor, na terra em que quase todas as mulheres se vestiam de negro, como se andassem de perpétuo luto pela sua própria vida. Via-a assim, airosa, nas ruelas de Manteigas e lembrava-se de que, muitas vezes, ele mesmo desejara o seu corpo. E, agora, sentia-se sem jeito para encontrar uma palavra de consolo.

— Tu desculpa-me... —disse o Chico da Levada, procurando dominar-se. — Não tenho esta noite ninguém na malhada. Foi a irmã do Canholas que me trouxe os acinchos. Ela não podia, já se vê, dormir comigo e foi para a malhada do irmão. Assim sozinho, se eu não falasse agora com alguém, parece-me que rebentava. Por isso vim. De dia ainda me vou aguentando, mas, à noite, se estou sem companhia, é um tormento. Estou sempre a pensar na que Deus levou e parece-me que a vejo, coitadinha, andar na escuridão, sempre em meu redor, como se tivesse pena de mim. Então, julgo que endoideço!

Horácio continuava a não saber como dar conforto.

— De que morreu ela?

— Ela morreu... nem me quero lembrar! Uma coisa assim! Ela teve uma criança e parecia que tudo ia bem. Aos três dias, como era a minha vez de tomar conta do gado, vim por aí acima. Eu tinha deixado a meio cavar o campito para milho que temos arrendado. Ela, ao quarto dia, levantou-se e andou por casa. Ao quinto, pegou na enxada e foi para o campo acabar aquilo, pois estava a passar o melhor tempo. Quando voltou, tinha muita sede e bebeu água fria na fonte da Senhora dos Verdes. Logo nessa noite se sentiu mal. E, no dia seguinte, tinha febre. Lá a comadre disse que muitas mulheres, depois de dar à luz, ficavam com febre — e não lhes acontecia nada. Fizeram umas rezas e queimaram umas ervas, para ver se aquilo passava. Quando eu voltei, vi-a muito mal. Mandei de caminho chamar o doutor, mas já ela estava perdida... Coitadinha, morreu abraçada à filha e lançou-me um olhar tão triste que, só de pensar nisso, se me parte o coração...

Voltou a soluçar.

— Tu o que não devias era andar, agora, na serra, para não estares sozinho...

— Pois era... Tenho pensado muito nisso... A pequenita está com a avó e se eu estivesse junto dela talvez me consolasse mais. Mas que vou fazer? Agora só me faltam três dias para acabar a semana que me compete, mas, quando chegar de novo a minha vez, tenho de voltar. Os outros também não podem, coitados! Que o meu gado cada vez é menos. Vendi três cabeças para pagar as despesas do enterro e, na segunda-feira, um lobo deu-me cabo de mais duas...

— Onde? — perguntou Horácio, alarmado.

— Aqui mesmo, ao lado, na malhada do Pimenta. Foi uma noite como a de hoje. Para não estar sozinho, fui ter com o Canholas e a irmã dele e o diabo do cão seguiu-me... Eu não devia largar o gado, bem sei, mas que queres? Quando voltei e vi o cão atrás de mim, tive um pressentimento. Corri para o bardo e ainda vi o bicho fugir... Ainda assim, tive sorte. As ovelhas eram minhas; se fossem dos outros, seria pior, pois perdiam a confiança em mim. — Mudou o tom de voz:—Peço-te que não digas nada disto a ninguém. Só a ti e ao Canholas eu disse a verdade. Parece que, à noite, depois de falar da Luísa, se falo de como o lobo veio à malhada não posso mentir... Mas aos outros eu contei uma história que arranjei, se não ainda por cima se riam de mim...

Calou-se. Horácio olhava na direcção da malhada do Pimenta, auscultando o grande silêncio nocturnal. O Chico da Levada acabou por sentir a mesma preocupação:

— Hoje o cão ficou lá. Em todo o caso, não me posso fiar nele. Não presta para nada. Vou-me embora. .. — disse, mas continuou sentado, sem se mover. Os seus olhos ergueram-se para o céu e demoraram-se como se estivessem a contar estrelas. — Olha lá, Horácio! Tu pensas que no outro mundo a nossa alma terá a mesma cara que nós temos cá na terra? Não deixaremos de ter um corpo igual ao que temos aqui?

Horácio fez um gesto vago.

— Não sei. Como posso eu saber?

Eu queria tornar a ver a Luísa, mal tal qual

ela era antes de morrer. Com a mesma cara, com o mesmo corpo... Não como dizem que é uma alma, assim como um fantasma. Se ela estivesse igual ao que era, eu não me importava de morrer também.

— Tem juízo! — protestou Horácio. — Tens agora uma filha a criar...

Ele levantou-se vagarosamente.

Pois é... Tenho a pequenita. É isso que me

prende... senão deitava fogo às florestas e depois dava cabo de mim.

Horácio olhou para ele, surpreendido:

— Por conta de quem?

Também o Chico o olhava pasmado, vendo sarcasmo na pergunta:

— Por conta de quem, o quê? Não percebo...

—ó Homem, não dizes que deitavas fogo as florestas?

— Pois deitava... E até com quanto petróleo eu arranjasse. Se me vissem, que importava? Antes de me apanharem, já ’eu me teria morto. Se não fossem as florestas, eu andaria com o gado perto de casa e não deixaria que a Luísa fosse para o campo assim tão cedo...

— Isso parece-te a ti, agora. Quantas mulheres se levantam ao fim de três ou quatro dias e trabalham sem que os homens andem longe de casa! A questão é haver precisão.

— Eu cá não deixaria a Luísa trabalhar naquelas condições, coitadita! Podes crer que não deixaria... — A voz saíra-lhe novamente trémula, enternecida. Durante um momento ele quedou-se em silêncio e, depois, começou a afastar-se lentamente. — Até amanhã...

Enquanto o Chico da Levada se sumia na noite, Horácio dirigiu-se ao esconderijo, para acabar de fazer o queijo. O leite estava já coalhado. Com ele atestou os acinchos, os arcos de folha que, postos sobre quadrados de madeira, davam à massa láctea forma redonda e baixa e pelos seus orificiozitos deixavam o soro escorrer livremente.

Horácio respirou alívio: da sua parte, aquilo estava pronto; na casa do Valadares poriam sal nos queijos e acabariam de prepará-los.

A noite esfriara. Os dois cães ’haviam-se deitado à entrada do bardo e o céu e a terra continuavam cheios de silêncio. Horácio escolheu o sítio mais propício e deitou-se também no chão, enrolado na sua manta, junto do rebanho. Com o sono arisco, pôs-se a divagar: “O Chico da Levada até faria aquilo de graça, porque todos os pastores eram contra as florestas. A ele, ao menos, pagariam quinhentos escudos. Quinhentos escudos não resolviam a sua vida, mas chegariam para ele se ver livre do Valadares.” A humidade da terra molestava-lhe a face e Horácio meteu entre a face e a terra o seu alforge. Divagou novamente: “O vigário não era homem que mentisse. Se lhe dissera aquilo, é porque aquilo era verdade. Mas, com certeza, os pastores antigos não eram iguais aos de hoje, senão os santos e os tais poetas não iam gostar da vida deles.”

Adormeceu para acordar, de repelão, a horas altas. O seu ouvido de pegureiro, que dir-se-ia continuar desperto quando o resto do corpo dormia, acusava a quebra do silêncio alpestre. Com a ideia nos lobos, Horácio olhou, rapidamente, para o bardo. Mas antes mesmo de divisar os cães deitados, identificou a flauta do Chico da Levada, tocando na noite morta, enquanto rebanhos de nuvens erravam no céu, a pastar as estrelas. Pareceu-lhe que a alma da Luísa também andava em volta dele e quis ’mal ao Chico da Levada por tê-lo acordado. Voltou a ’adormecer com a flauta ainda a tocar e, quando tornou a si, já para o lado dos Cântaros vadiavam as primeiras claridades do dia. Ainda com o cérebro ensonado, Horácio pensou em Manuel Peixoto: “Ia, finalmente, saber a sua resposta!”

A serra continuava silente, mas, àquela hora, por todas as malhadas, nas que se expunham sobre os declives e nas que, entre fragas, só do céu se viam, começava a faina dos pastores. Horácio pegou nas ferradas e ordenhou, de novo, as ovelhas. Queijou, repetiu as operações da véspera, as operações que ele havia de repetir, de manhã e à noite, até o fim de Junho, quando os úberes secavam. E, tudo pronto, abriu o bardo. De andaina humedecida, e cajado na mão direita, no braço esquerdo uma ferrada com batatas, partiu atrás do rebanho.

As ovelhas, ao princípio de lesto e decidido passo, logo que venceram o fraguedo vizinho da malhada, abrandaram a marcha, pondo o focinho a quanto pasto lhes verdejava. E uma hora após outra, pelas dez, já ao largo dos Poisos Brancas, Horácio via surgir de todos os desvãos da serra, metendo a encostas e plainos, numerosos rebanhos.

A manhã pintara-se com as suas melhores cores. Um sol de prata a arder estadeava-se em céu azul e de tanta limpidez, que a grande redoma dir-se-ia mais espaçosa do que noutros dias; e a luz matinal, vinda do alto, desquitava a montanha das suas duras linhas, diluía as suas rudezas de outras horas, fazendo branquejar, num transparente flux, o eterno negror dos Cântaros e de quantos brutos penhascais cortavam o passo aos olhos.

Resvés à terra, a louçania era maior ainda: os humildes sargaços mostravam-se todos garridos com suas amarelas floritas, as agulhas das giestas estavam enfloradas também ao lado de moitas de urzes, sobre cujas brancas flores saltavam ledos insectos. Anónimas folhas retinham ainda lágrimas da noite, que o sol, agora, irisava; e as próprias carquejas, rasteiras e ásperas no seu verde-escuro, dir-se-iam mais verdinhas e macias sob a manhã de mil fulgores. As campainhas dos rebanhos iam enebriando com a sua música a majestade da montanha, enquanto à frente das ovelhas se levantavam, em voos rápidos, cotovias e grilos cantadores e esvoaçavam bandos de borboletas. Aqui e mais além e depois novamente, outro cântico surgia, suave, baixinho, ininterrupto, que assim cantavam as ribeiras da serra, correndo para os vales as suas águas frescas, entre grandes pedras que elas arredondavam e maciços de abetoiros em flor.

Mas nenhum dos homens que, na montanha, acompanhando rebanhos, esgotavam a melhor parte da sua vida, primariamente vestidos, sumariamente alimentados, trazia espírito vazio de ralações, alma livre para fruir o esplendor da manhã. De expressão resignada, um vago fatalismo nos olhos sombrios, mesmo quando riam, mesmo quando cantarolavam, eles dir-se-iam apartados, por uma velha maldição, dessa alegria de viver que se revelava em seu redor, no voo das aves, no voo dos insectos, no florir dos vegetais e na rítmica toadilha que as águas soltavam na montanha.

De cajado estendido, Horácio correu a deter a marcha do seu rebanho, que metera a terra que lhe era defesa. A montanha estava dividida em várias zonas de pastoreio cada uma delas reservada a um dos concelhos serranos, pois só assim se conseguira pausa nas bravas discussões ’entre pastores, nas brigas que manchavam de sangue as encumeadas. Murmúrio fio de água, um cordão de rochedos, por vezes uma torrezita de pedras soltas um “talegre” indicavam os extremos de cada área e transpô-los seria desafiar a razão, a cólera e o varapau dos pastores da outra banda.

Retidas, as ovelhas de Valadares mostravam-se inquietas e uma e outra, mais afoita e alheia aos acordos humanos, saltava a linha convencional que separava a parte da serra atribuída a Manteigas daquela onde só deviam campear os rebanhos da Aldeia do Carvalho. Com pragas e pedradas, Horácio ia obrigando a recuar as atrevidas, quando viu, finalmente, recortar-se sobre uma lomba a figura de Manuel Peixoto. Atrás do seu rebanho, o amigo acercava-se lentamente e, mesmo quando chegou à fala, parecia não ter pressa de o sossegar. Pairou sobre muitas outras coisas e só depois, ante o teimoso silêncio com que ele o ouvia, disse:

Lá falei com o meu irmão... O que tu queres não é fácil. Mas ele prometeu-me fazer o que puder. É o que eu pensava: além de haver falta de lugar, tu já passaste da idade. Só por muita precisão ou grande cunha eles metem aprendizes com mais de dezasseis anos... O Mateus diz que a lei é assim. Mas desde que ele prometeu, decerto arranja. O patrão tem respeito por ele e em ele lhe pedindo, faz-lhe a vontade...

Horácio continuava ansioso:

— E demorará muito, senhor Manuel?

— Isso é que eu não sei. Pode ser uma semana, pode ser meses. É questão de haver vaga ou aumentar muito o trabalho.

O crepúsculo, posta a um canto a enxada com que labutara o dia inteiro, pessoa da família de cada pastor, um filho, um irmão, a maioria das vezes a mulher, empreendia o caminho da serra, com um burro à frente. E, por canadas e atalhos, grimpava dez, doze, mais quilómetros, ora em silêncio fatigado, ora soltando cantiga que espairecesse o seu cansaço. Todas as encostas eram vencidas ’assim, ao sol poente, por estas isoladas figuras, subindo para as malhadas. Ao chegar, já noite fechada há muito, cada qual descarregava do onagro o pão e o conduto que o pegureiro e seus cães comeriam no dia seguinte e os acinchos vazios para os novos queijos a fazer. Depois, rendido da caminhada e do labor diúrno, o familiar recém-chegado deitava-se na terra, junto do pastor, até que o tecto celeste, que a ambos cobria, ameaçasse clarear. Então, acomodados sobre o burro os queijos feitos na véspera, os parentes dos ovelheiros abalavam de novo, agora serra abaixo, anda, anda, a toda a pressa, para casa, para a enxada — para outro trabalho.

À malhada de Valadares era um dos filhos deste o Tónio ou o Leandro — que ia lá todas as noites. Nunca mais, porém, Tónio voltara a falar a Horácio da sua proposta. Parecia até que evitava referir-se a tudo quanto pudesse recordá-la. Também Horácio não aludia ao caso, embora sentisse, muitas vezes, que os dois pensavam na mesma coisa, quando, deitados de faces para o céu, na escuridão, ficavam calados antes de adormecer. Na manhã seguinte, Tónio partia; à noite, vinha o Leandro e os dias iam fluindo e parecendo, a Horácio, sempre iguais, enervantemente iguais, densos de uma monotonia que, para ele, só Manuel Peixoto quebrava ao surgir, com suas ovelhas, na serra. O amigo, porém, dizia-lhe sempre o mesmo: “Que tivesse paciência, que desse tempo ao tempo.”

Horácio sentia-se cada vez mais desventurado. Os outros pastores, porque cada rebanho pertencia a quatro e cinco donos, revezavam-se, de sete em sete dias, no pastoreio enquanto ele ficava sempre ali. Todas as semanas chegavam uns e partiam outros, deixando-lhes a sensação de que a vida, para ele, era mais ruim, de que ele andava ali como um degredado. Os outros viam as mulheres, os filhos, os pais; ele, aparte Manuel Peixoto, não via a ninguém que estimasse, pois com Leandro não simpatizava e de Tónio era cada vez menos amigo. Começara a contar os dias, ansioso de que chegasse o período da tosquia, para ele se encontrar, de novo, com Idalina.

As ovelhas haviam já estrumado o primeiro alqueive e dormiam, agora, no segundo. O tempo aquecera. Às vezes ainda surdia uma tempestade, com nuvens brancas explodindo em raios e trovões, mas isso era coisa que se passava abaixo das cristas da serra, conflito de elementos que os pastores viam, de cima, a deitar grandes sombras sobre os vales, enquanto o céu continuava azul e o Sol a brilhar.

Vários rebanhos tinham já partido para ser tosquiados, sem que Valadares mandasse dizer que o dele partisse também. Mas, uma noite, pelo S. João, Tónio trouxe, finalmente, a ordem tão desejada: Horácio devia baixar, com as ovelhas, no dia seguinte.

Partiram, os dois ao alvorecer. Tónio conduzia o burro com os últimos queijos e ele dirigia o rebanho.

O tempo continuava quente. Tónio comentou o facto e acrescentou:

— Até a carqueja já estala debaixo dos pés! O pasto será cada vez pior...

Ao ladearem a floresta que se estendia desde a Fonte Santa té além do Poço do Inferno, Tónio começou a olhar para os pinheiros, de forma demorada, ostensiva. Horácio adivinhou-lhe o intento, mas não disse coisa alguma. Então, baixando a vista para a terra, Tónio murmurou:

— Cá em baixo está tudo seco...

Horácio continuou calado. As ovelhas haviam metido a uma canada, tortuosa, estreita, atravancada de pedregulhos, como o leito de um ribeiro; o burro ia. atrás delas e, atrás do burro, os dois homens desciam com dificuldade e em silêncio.

Subitamente, Tónio voltou-se:

—Já resolveste aquilo?

Horácio respondeu secamente:— Não resolvi nada. Arranja outro.

De novo calados, continuaram a descer o áspero caminho, fundo regueirão aberto entre a linde da floresta e a terra maninha. Mais abaixo, Tónio lembrou:

— Foi aqui que, no ano passado, me multaram. — E mudou o tom da sua voz: — Se quiseres, receberás, da primeira vez, seis notas...

As ovelhas iam muito apertadas, roçando-se os seus corpos uns pelos outros nas curvas da canada. O “Lanzudo” e o “Piloto” acompanhavam o rebanho, mas pela parte de cima, fora do caminho. Por entre os pinheiros já se divisavam o hotel das termas e outras edificações das Caldas. Horácio tardou a responder.

— Hei-de ver isso...—disse, por fim.

— Mas quando? Está-se a perder o bom tempo!

A voz de Tónio soava, pela primeira vez, a irritação. As ovelhas continuavam a descer. Via-se, agora, o balneário e a muralha que, ali, subia do Zêzere.

— Amanhã... o mais tardar depois de amanhã.

Nos arredores das Caldas, o rebanho pastou, algum tempo, num campito que Valadares possuía ali. Tónio havia partido e, ao meio-dia, Horácio meteu as ovelhas à estrada. Pouco depois via, entre a Senhora dos Verdes e o Outeiro, os dois castanheiros de que Tónio havia falado. Já lá o esperavam, à sombra das largas frondes, o tio Marrafa, a mais afamada e cara tesoura de Manteigas, e outros tosquiadores. Nas mãos de Marrafa cada ovelha dir-se-ia massa inerme, plástica, sem força nem vontade. Em dois movimentos ele “apernava-as” — amarrava-lhes as quatro patas, sentava-as entre as suas pernas e metia-lhes a tesoura à vizinhança do pescoço. A lã, cortada cerce, ia-se arregaçando suavemente e descendo em ondas fofas, sem nunca se romper em volta do corpo. De quando em quando, deixava a descoberto, agarrado à pele da ovelha, que nem verruga negra, um repugnante carrapato, outro e outro. Se algum lhe ficava a jeito, Marrafa cortava-o em dois, resoluto. Um derradeiro instinto de defesa animava o parasita, que, embora de cabeça decepada, continuava a fugir, largando sangue. Mas nem pelos mutilados, nem pelos inteiros, Marrafa desviava jamais a tesoura de seu caminho. Ele considerava que, em dia de tosquia, as ovelhas pastavam pouco e os carrapatos que elas comiam nas costas umas das outras, logo que tosquiadas, lhes serviam de alimento, pois lhes devolvia o próprio sangue delas.

O velo continuava a descer. A lã saía numa única peça e sem um só esgarce, como um vestido que não fora sequer desabotoado.

A tosquia do rebanho durou dois dias. Na primeira noite, ao pé de Idalina, Horácio esqueceu as suas agruras na serra. Tudo isso lhe parecia já mui remoto, como se o instante que ele vivia agora fosse o único da sua vida e encerrasse todos os destinos do Mundo. Dissera a Idalina que teria um lugar certo na Covilhã, mais dia, menos dia; ela mostrara-se muito alegre com aquilo e, desta vez, não lamentara ter de sair de Manteigas, logo que casassem. Idalina não lhe fizera perguntas e só abandonara a mão dele, naquele recanto do Eiró, submerso no lusco-fusco, quando sentira passos na ruela.

Na segunda noite, véspera de S. João, o povo acendera grande fogueira numa praça da vila e, em sua volta, largara a dançar, enquanto, no coreto, a banda da freguesia de S. Pedro tocava. Eles dançaram também e, depois, somaram-se aos ranchos que, em descantes, ao som de pífaros e harmónicas, iam às orvalhadas, para a banda das Caldas. A estrada enchera-se de grupos. A noite estava cálida e estrelada. De toda a parte vinham sons musicais e nas termas, em frente do balneário, haviam acendido outra fogueira.

Horácio foi retardando o passo e deixando os demais distanciarem-se. Depois, com a mão no braço de Idalina, seguiu a estrada que contornava as Caldas, pela parte de cima, em direcção à ponte. Quando se sentaram, não havia ninguém perto deles. Mas via-se, lá. em baixo, a fogueira e os pares que bailavam à sua roda. A noite estava cheia de canções de raparigas e de uma mornidão voluptuosa. A terra que sucedia à estrada era em suave declive e eles deixaram-se deslizar. Beijando Idalina e com a mão a acariciar-lhe as mais inflamáveis zonas do seu corpo, ele sentia correr, em si, toda a volúpia da noite e toda a fome que sofrera a sua carne celibatária, vagueando na soledade da serra, soledada propícia, como a de um cárcere, à constante evocação do amor. Mas continha-se. Outras vezes, como agora, ele pudera tentar aquilo, mas sempre se contivera, sob a força dos vetos tradicionais. Ela seria dele quando casassem.

Estavam deitados, um ao lado do outro, em silêncio, a ouvir a noite, as cantigas da noite, a música que chegava até ali com as canções, vindas lá de

baixo. O fulgor da grande fogueira espalhava-se para além do Zêzere e ia doirar, do outro lado, a fímbria da floresta. Ele contemplou, um momento, os pinheiros distantes, de formas mal definidas, e, depois, visionou aquele mesmo clarão a ampliar-se, a ampliar-se sempre, a iluminar toda uma encosta do vale, a iluminar a noite, não aquela mas uma outra noite, não aquelas chamas baixas da fogueira, mas outras, altas, muito altas, rompendo de entre os pinhais, com homens de pé, lutando contra elas, sudorosos, bronzeados pelo fogo, enquanto ele fugia nas trevas e se ocultava algures, como um lobo. “Seis notas... Pega lá. Para outra vez terás outras seis.” E, depois, um dia, um guarda em frente dele: “Vem comigo.” Quando os seus olhos voltaram à fogueira, estranharam, um segundo, que quem em seu redor andava não estivesse a apagá-la e sim a bailar e a cantar, rapazes e raparigas, como eles dois, enlaçados na noite de S. João. Sentia a Idalina tão sua, tão pronta a entregar-se a ele, tão pronta a esperar por ele, que mais uma vez venceu a tentação de aceitar a proposta que lhe haviam feito. Na manhã seguinte, ao tirar o gado das cortes que Valadares possuía perto dali, disse Tónio:

— Sobre aquilo, não temos nada feito. Eu não quero.

— Está bem. Ninguém te obriga — ripostou Tónio, com um sorriso pálido.

Ele voltou para a serra com o rebanho. E ia contente consigo próprio. Arrumara aquela indecisão que o moera muitos dias e, por outro lado, vira e falara à tia Januária sem que ela lhe fizesse observação alguma. Quanto a Idalina, parecia que cada vez gostava mais dele.

Só a meio da encosta, com as ovelhas subindo vagarosamente, o seu estado de espírito se alterou. Ao voltar-se para o vale, que se mostrava cheio de sol matinal e cromático no casaredo, verde na moldura das florestas, todo de uma beleza tranquila, lembrou-se de que, nesse dia de S. João, ninguém trabalhava e entristeceu de repente. “Se não fosse o raio daquele ofício que ele tinha, estaria também na vila e passaria a tarde com Idalina, em vez de andar por ali a rebentar pedras com os pés. E de agora em diante seria sempre pior, pois o Valadares, furioso por ele não lhe fazer a vontade naquilo de deitar fogo, havia de o tomar de ponta.”

Não mais lhe voltara a satisfação de há pouco. Sentia-se, agora, como antes de descer a Manteigas, com as mesmas impotências, as mesmas dúvidas, o mesmo futuro confuso. “Se Idalina se mostrara assim como se mostrara, é porque ele lhe dera muitas esperanças e pintara tudo cor-de-rosa. Mas ele sabia lá quanto tempo teria ainda de passar feito pastor! E se, depois do que dissera, se casava sem mudar de vida, ainda se iam rir à sua custa.”

Passou manhã e tarde a batalhar consigo próprio, a lutar com quanta ideia contrariava os seus desejos. Esperava topar Manuel Peixoto e desanuviar-se com ele, mas também o amigo não saíra da sua aldeia nesse dia. Na vastidão da serra, só encontrou o Chico da Levada. Já não trazia flauta. Estava mais magro e de olhos fundos, fatigados. Falava com voz triste, mas parecia resignado. Agora a sua malhada ficava muito distante da terceira de Valadares — a última a estrumar.

À noite, Horácio dormiu sozinho. Porque os úbres das ovelhas começavam a secar, sendo cada vez menos o queijo que o seu leite produzia, somente na noite seguinte Tónio apareceu. Não denunciava ressentimento algum. Ao contrário do que Horácio pensara, ele até parecia mais afável e mais falador do que tempos antes. Dir-se-ia apenas desejar que não houvesse um momento de silêncio entre eles. E, desde essa noite, Tónio voltara a alternar com Leandro nas suas vindas à serra. No último dia do mês, mal chegara, tirou do bolso algumas moedas e disse:

— Está aqui a tua soldada. O meu pai aumentou-te dez mil réis. E manda dizer que se não quiseres descontar nada, lá na dívida, não faz mal...

Horácio quedou-se a olhar para Tónio, sem pegar no dinheiro que ele lhe estendia. Depois, desviou a vista :

— Quero ! Quero descontar toda a soldada, menos vinte mil réis. E dá lá os meus agradecimentos ao teu pai. Mas se é com medo de que eu diga alguma coisa, escusava de me aumentar... Se eu não valia mais até agora, também agora não valho.

Sentira-se, subitamente, forte, ao lembrar-se de que tinha aquele segredo. Ao contrário, Tónio mostrou-se nervoso:

— Sempre tens cada ideia ! Já te disse que o meu pai não tem nada com o caso e, demais a mais, já se desistiu disso...

As ovelhas deixaram de dar leite. Uma manhã, Tónio pusera sobre o burro os utensílios, agora inúteis, para fazer queijo, e despedira-se de Horácio até à próxima semana. E porque os alqueives, já estrumados, dispensavam a presença nocturna do gado, os rebanhos de oitenta, noventa, cem cabeças, juntaram-se, como todos os anos, naquela época, para economizar pastores, em rebanhos de mil e mais ovelhas cada uma delas ostentando, no lombo, a marca do seu dono, letra ou número feito com pez e tinta, com “pesgão”. Dois pegureiros, acompanhando cada uma das multidões de ovelhuns, faziam agora o mesmo trabalho que, antes, exigia dez ou doze.

Valadares era o único que, por birra antiga com outros proprietários de gado, não queria reunir as suas ovelhas às dos demais. E, assim, o rebanho dele, que, no começo do pastoreio, se apresentava o maior de todos, tornava-se, de um momento para o outro, o mais pequeno de quantos andavam na serra.

De dia, as ovelhas deambulavam pelos pascigos e, depois, dormiam onde a noite as colhia. Estavam no período da cobrição e os carneiros, desenfreados à retaguarda das fêmeas, ao recordar a Horácio o acto reprodutivo, exaltavam-lhe os nervos e punham-lhe no cérebro e no sangue a imagem de Idalina, como uma sede permanente. A solidão tornara-se maior, pois contavam-se pelos dedos os pastores que se divisavam, durante o dia, atrás dos enormes rebanhos. Agora, Tónio só vinha ali aos sábados, trazer pão, batatas e toucinho. Entregava aquilo, quedava-se uns minutos a pairar e voltava logo para Manteigas. Horácio pedira-lhe, uma vez, que passasse por sua casa e dissesse à mãe que lhe enviasse a flauta. Mas quando, na semana seguinte, Tónio lha trouxe, ele lembrou-se da razão porque o Chico da Levada soltava aqueles sons alegres, saltitantes, meio-loucos — e não tocou. Parecia-lhe que também ele levava alguma coisa morta dentro do peito e que a flauta se tornara fúnebre e lhe daria má sorte.

O seu único prazer era encontrar-se com Manuel Peixoto. Mas este deixara de aparecer diariamente nos limites de Manteigas. Tinha, agora, mais cabras do que ovelhas e muitos dias pastoreava o seu gado nas encostas próximas da Aldeia do Carvalho. Quando vinha ali, Horácio esperava sempre ouvir-lhe a palavra desejada; muitas vezes, porém, Manuel Peixoto nem sequer se referia ao caso, por não ter novidade alguma a dar-lhe e não estar a repetir o que já lhe havia dito.

Ao morrer de Julho, a serra voltou a mostrar copiosas presenças humanas. As famílias dos pastores e os pastores que não andavam de guarda às ovelhas, haviam subido do vale à montanha, para ceifar as searas. Por todas as encostas e mesmo nos plainos cimeiros viam-se, nessa época, pequenas e isoladas manchas amarelas, contrastando, num soberbo efeito, com o verdor da serra onde elas se exibiam. Era o centeio maduro aguardando a foice dos que o semearam. Homens e mulheres chegavam, com seus burros, e lançavam-se à tarefa, em vários dias de canseiras e noites dormidas ao relento. Sega, sega, quando a messe estava por terra, transportavam as gavelas para a mais próxima rocha que brindasse lisa superfície e ali as malhavam. Existiam pobres tão pobres que mesmo esse fraco chão altaneiro, outrora baldio e à mercê de quem o quisesse ocupar, tinham de tomá-lo de arrendamento aos descendentes daqueles, mais felizes, que para si o haviam chamado a tempo. Assim, colhido o grão, eles começavam logo a medi-la, pondo de banda o que competia ao dono do terreno, consoante a quantidade obtida. Depois, o que restava era, de novo, dividido, uma parte destinada ao pão desse ano, outra à seara do ano vindoiro. A semente já não saía dali. Cavada a terra que acabava de frutificar e quedaria em descanso, a comer os seus restolhos, homens e mulheres, em fins de Agosto, antes de volver definitivamente ao vale, dobravam-se sobre as malhadas que haviam ficado um ano inteiro em poisio e semeavam-nas.

Durante essas manhãs de Verão, a serra adquiria vida diferente da habitual. Daqui, dali, de messes e alqueives ocultos entre penedos, elevavam-se vozes, ruídos do trabalho, muitas vezes cantigas que voavam para longe, quebrando o silêncio da montanha.

Desejoso de convívio que metesse pausa nas apoquentações que o roíam, Horácio encaminhava o rebanho, todas as tardes, para a vizinhança dos homens e mulheres que ceifavam ou malhavam. Era sempre perto de uma das improvisadas eiras ou de seara a abater que as ovelhas agora dormiam. E enquanto não se punham todos de ventre para o céu, derreados pela labuta diurna, ele ia parolando com um e outro, tudo gente conhecida, desde o Fataunços, com quem, em pequeno, jogava o pião, ao Serafim Caçador, amigo de seus pais.

Uma noite, noite de claridade estival, estavam já para se deitar, quando a Josefa, mulher do Canholas, descobriu que, para as bandas de Manteigas, o céu apresentava outra cor.

— É um fogo, não é?

Todos olharam na direcção apontada e nenhum deles teve dúvidas. Mas aquilo pareceu-lhes coisa de pouca monta, um desses fogaréus que, num e noutro Verão, se ateavam ninguém sabia como e para apagar os quais os guardas da floresta bastavam. Só Horácio ficara calado e atento. Pouco depois, o que era, de início, débil fulgor, alastrara e tornara-se enorme clarão, que ia aumentando mais e mais a cada instante.

— Ena, que é um grande fogo! — exclamou Serafim Caçador.

— É por riba das Caldas... Não lhes parece? — perguntou Canholas, apertando o cós das calças, que ele já havia desabotoado para se deitar.

—Deve ser... — respondeu-lhe a mulher. — E, com este ventinho, vai levar tudo a eito, até a estrada.

— Isso é que é preciso! —disse, por detrás de um dos penedos, uma voz cansada, na qual Horácio reconheceu a do velho Jerónimo Latc’eiro. — Deus queira que não fique uma só árvore!

De todas as searas e restolhos próximos surgiam outras figuras e os comentários prosseguiam. As copas da floresta que se estendia na frente deles não lhes permitiam ver senão aquele imenso clarão, sempre maior, a doirar a noite, a doirar o céu por cima do vale, do vale que mal se adivinhava ao longe. Então, uns atrás dos outros, todos correram para o píncaro que se erguia à direita. E lá se quedaram, um momento, em silêncio, a contemplar as cristas das chamas, cada vez mais numerosas e mais extensas, na vertente oposta.

— Não há dúvida, é por riba das Caldas. A mata ali não é grande, mas pode pegar à outra — admitiu alguém.

— Qual pode pegar! Já pegou, é que é!

Houve novo silêncio. Vieram mais homens e mulheres ofegantes. Quase todos sentiam desejos de intervir e mediam mentalmente a distância que os separava do incêndio e o tempo que levariam a chegar lá. Alguns, de ouvido mais sensível, captavam os sons longínquos dos sinos de S, Pedro e de Santa Maria, tocando, a rebate, em Manteigas. Para esses, aquilo era como um aguilhão, picando-os, impelindo-os para a outra encosta.

— Com- quase toda a gente na serra, não há quem lhe acuda a valer... —voltou um deles a murmurar.

Ninguém respondeu. Mas, à parte o tio Jerónimo Latoeiro, todos os outros se sentiam empuxados por esse antigo e quase instintivo sentimento de solidariedade que, ao surgir um incêndio na terra onde não havia bombeiros, levava as classes populares da vila, velhos e novos, homens e mulheres, a sair de suas casas com panelas, cântaros, ferradas e quantos outros recipientes pudessem transportar água e a dispararem para a casa que ardia — fosse ela a de um inimigo.

Agora, de todos os pendores e cumes que cercavam Manteigas, desde ali às Penhas Douradas, ao Campo Romano, à Fraga da Batalha, mais longe ainda, as famílias pobres da vila, que haviam subido à montanha para colher o seu pão, olhavam o enorme incêndio e sentiam, antes mesmo de raciocinar, a ânsia de correr a extingui-lo.

— E se nós fôssemos lá ? — propôs Serafim Caçador, mesmo ao lado de Horácio.

O velho Jerónimo bradou, indignado:

— Vocês sois uns estúpidos! Uns estúpidos chapados! Porque estamos aqui? Porque é que não temos terras de centeio e pastos junto de casa? — E voltando-se para o Serafim. Caçador: — Anda!

Responde!—Como todos se mantivessem calados, acrescentou: — O que vos falta é juízo! Juízo, juízo, é o que vos falta!

O silêncio continuava. A voz do tio Jerónimo adquirira um tom de monólogo:

— Não estava mal a coisa, não... Para termos um selamim de pão, é o que se vê! E as ovelhas, onde estão elas agora? Com tantas terras que havia mesmo ao pé da vila! Agora temos de dormir ao relento, se queremos ter alguma ovelha ou algum pão. E ainda vocês querem acudir! Que o diabo leve todas as florestas! Todas! Quando vocês forem velhos e começarem a berrar com dores de reumatismo, como eu, pelas noites que tive de passar fora de casa, já não pensam assim...

Todos pensavam como ele. Mas, ao mesmo tempo, todos se sentiam atraídos pelo incêndio. Serafim Caçador volveu:

— Vossemecê, por um lado, tem razão; mas, por outro lado...

Não concluiu a frase, não encontrou claro argumento para a completar. Mas também não era preciso. Todos sentiam que havia um “outro lado”, que nunca lhes tinha sido explicado suficientemente, até os convencer, um “outro lado” que era contra os seus interesses de pastores e de pequenos agricultores das encumeadas, mas que existia, fosse em benefício da agricultura do vale, como os doutores diziam, fossem quais fossem as razões.

— Qual por outro lado, qual carapuça! —gritou, de novo, o tio Jerónimo Latoeiro. — O que nós todos somos é uns molengos, se não há muito que as florestas tinham acabado. É ver como os pastores antigos faziam! Sempre que podiam —zás!—, pegavam-lhes fogo!

Uma outra figura apareceu. Vinha esbaforida e mal descortinou, de sobre a pétrea iminência, a área incendiada, começou a carpir-se, desesperadamente:

— Ai, meu Deus, que perco tudo! O fogo está perto das minhas courelas e vai dar cabo das videiras que tanto trabalho me custaram!

Parecia alucinado. Olhou, de novo, o incêndio, que lançava, cada vez, maior clarão no céu e abalou, a correr, por entre os penhascos. Os outros não hesitaram mais e seguiram-no, correndo também. Só ficaram ali o tio Jerónimo, o Chico da Levada, Horácio e duas mulheres.

— Súcia de burros! — exclamou, com desprezo, o velho. E, depois, ruminando a sua discordância, calou-se como os demais.

Horácio continuava a contemplar o incêndio e tinha um sorriso frio ao pensar no seu patrão: “Agora ele compreendia porque Valadares não viera ainda nem mandara os filhos ceifar o seu centeio. Não havia dúvida, estivera à espera de um dia em que o vento trabalhasse por conta dele.”

O Chico da Levada sentara-se ao lado do tio Jerónimo, pusera os cotovelos sobre os joelhos, a cara entre as mãos e parecia dormitar. As duas mulheres caminharam para a malhada mais próxima. Horácio afastou-se também e foi deitar-se junto do rebanho.

Manhã nascida, ele voltou ali. Os homens não tinham ainda regressado e lá longe havia, agora, em vez de labaredas, uns ténues rolitos de fumo. Horácio calculou a parte da floresta que fora destruída e concluiu ter sido mais pequena do que ele julgara de noite e muito menor do que, decerto, Valadares queria. Esta ideia deu-lhe súbito prazer. E, assobiando, abalou com as ovelhas para a sua andadura quotidiana.

No sábado, ao trazer-lhe os mantimentos, Tónio começou a falar, sem parança, de muitas coisas, como sempre que não desejava falar de uma coisa determinada

Depois, sentindo que, apesar disso, o silêncio se intrometia com ele, dada a teimosa mudez de Horácio, perguntou de repente:

— Viste o fogo do outro dia?

— Vi.

— Tu pensaste logo que fui eu ou mais alguém comigo... Dize lá: não pensaste?

Horácio não respondeu.

— Com certeza que pensaste — insistiu Tónilo. — Tão certinho como eu estar aqui. Pois enganas-te! Eu não tive nada com isso. Aquilo de que te falei, pôs-se de parte, como já uma vez te disse... —Ao ver em Horácio um sorriso incrédulo, ajuntou: — Não acreditas, estou mesmo a ver... Pois podes acreditar! Não ia fazer assim uma coisa tão mal feita como aquela. Não reparaste que o fogo foi só num sítio, em vez de ser em dois ou três, como eu tinha dito? Assim, o povo e os homens dos serviços florestais só tiveram de correr para uma banda e deram cabo daquilo.

Horácio objectou, matreiro:

— Ouvi dizer que o fogo pegou logo muito forte...

— Pegou. Mas cá para mim não foi fogo posto, como alguns querem crer. Com tanta gente para baixo e para cima, por mor de colher o pão, deitaram, sem dar por isso, alguma ponta de cigarro... E o vento é que fez o resto. Tem acontecido muitas vezes.

Horácio olhava-o fixamente e pensava, irritado: “És esperto, mas a mim não me enganas tu.”

Parecia que Tónio adivinhara o seu pensamento:

— Demais a mais, não valia a pena —disse.— Os serviços florestais mandavam, pela certa, semear outras árvores...

Então Horácio perguntou, de mau humor:

— Quando é que vocês vêm apanhar o centeio?

— Para a semana. Temos estado a ver se o meu irmão melhora e...

— O Leandro está doente? — interrompeu Horácio.

— Está. Há já uma porrada de dias. O doutor Couto tem andado a vê-lo. Parece que ele tem maleitas. Mas o meu pai já perdeu as esperanças de ele sarar a tempo de vir cá acima e vai mandar um jornaleiro comigo...

Efectivamente, na semana seguinte, Tónio apareceu, não com um, mas com dois auxiliares, nas searas que o pai tinha na montanha. Ceifaram, malharam, cavaram os restolhos e volveram a Manteigas. Em fins de Agosto, tornaram ali, para semear os alqueives do ano anterior. E, quando partiram definitivamente, a serra voltou ao seu silêncio. Terminara a faina agrícola nas alturas; todas as famílias haviam já regressado à terra baixa. Agora só se viam, na montanha, os ovelheiros pastoreando os grandes rebanhos.

A inquietação de Horácio tinha-se agravado. Ele desesperava-se diariamente. “Se Manuel Peixoto não lhe arranjasse lugar na fábrica, que ao menos chegasse Outubro para ele abandonar a serra, pois, lá em baixo, sempre passaria alguns dias com Idalina, enquanto não fosse levar o gado à Idanha.” Mas Outubro ainda estava longe e o tempo parecia decorrer cada vez com maior lentidão. Horácio acabara por vencer a fúnebre repugnância que lhe causava a flauta e começara a soprar-lhe nas horas de mais intenso enervamento.

Em Setembro, seguindo o velho costume, o gado foi, de novo, apartado. Vieram os donos das ovelhas que se haviam reunido em enormes rebanhos e, pelos sinais pintados nos lombos, cada qual foi separando as suas, que era a época de se lhes aproveitar outra vez o esterco.

Novamente a serra se cobriria de pequenas ovelhadas. E cada grupo, com um. só pastor, como o rebanho de Valadares, voltava a dormir em ponto certo, para deitar a primeira adubadela à terra que, esse ano, criara centeio.

Por fim, Outubro chegou. Os cimos arrefeceram, as noites tornaram-se longas e, muitas vezes, durante elas, as chuvadas molhavam os pastores sob as próprias lapas onde se abrigavam. Era o tempo de partirem, mas eles iam resistindo, porque ali sempre o gado encontrava umas folhitas, ao passo que em Manteigas e noutros povoados da montanha os pastos eram raros ou custavam rios de dinheiro. O primeiro a despedir-se de Horácio foi Manuel Peixoto: “Que ficasse tranquilo, que assim que ele soubesse alguma coisa mandava-lhe um recado a Manteigas.” Depois, foi o Canholas com o seu rebanho. Logo abalaram outros, que cada vez havia mais nevoeiros e mais chuvas na serra. Um dia, Horácio não divisou, desde que saíra da malhada, ao alvorecer, até chegar, pela tarde, à Nave de Santo António um único rebanho além do que ele conduzia. Havia, agora, um frio perene, o sol raramente rompia o céu plúmbeo e a montanha adquirira, no seu abandono, uma rude severidade, tão forte, tão áspera, que o seu próprio silêncio dir-se-ia agressivo. Só de longe a longe se via um insecto e as aves já não voavam, numerosas e álacres, como antes, por cima de sargaços e torgas. Os próprios lobos, sempre no rasto dos rebanhos, tinham-se ido acercando das povoações, onde seria mais fácil obter carniça. A vida animal abandonava a montanha, que se preparava para entrar no Inverno com uma trágica desolação, até que a neve a transfigurasse.

Horácio indignava-se porque Valadares tardava em mandar dizer que ele descesse com o gado. “O patrão não tinha nenhuma consideração por ele. Aquilo parecia mesmo de propósito. Já no tempo da tosquia fizera o mesmo. Mas se ele quisesse falar, já não seria assim...”

Um dia, porém, Tónio apareceu na Nave. Não trazia o burro desta feita e nem um cajado nas mãos.

Auxiliou Horácio a encaminhar o rebanho para Manteigas e, ao fim da tarde, as ovelhas entravam nas suas cortes, perto das Caldas, perto da erva que Valadares semeara entre o milho e, agora, cortado este, lhes servia por alguns dias de pastagem.

À noite, Horácio dizia a Idalina, vencendo as últimas indecisões que o haviam tolhido até ali:

— O lugar que me prometeram está a demorar e eu não quero empatar-te mais tempo. Se eu não o tiver até ao fim do ano, casamo-nos mesmo assim.

Fez um silêncio e, depois, perguntou:

— Ficas contente?

— O que tu quiseres, está bem. O Valadares disse à tua mãe que te aumentara a soldada. Mas se for preciso esperar mais, eu espero...

— Aumentou-me a soldada! Olha o aumento! Com dez mil réis a mais não se remedeia nada!

— Então...? — inquiriu ela, timidamente.

— Tenho de me arranjar de outra maneira... Ele falava em tomn decidido, mas, na alma, ia-lhe

grande confrangimento. Pouco antes, caminhando para ali, sentira-se vexado, ao lembrar-se de que, pela tosquia, havia dita a Idalina que entraria em breve para uma fábrica da Covilhã e não entrara. Pusera-se, então, a esmiuçar as mais pequenas possibilidades da sua vida. Concluíra que, em Dezembro, estaria quite com Valadares e, vendendo as quatro borregas a que tinha direito, lhe sobrariam alguns mil réis. “Esse dinheiro —pensou— não chegaria sequer para aquilo que o senhor vigário costumava levar por um casamento; mas ele pediria um novo empréstimo ao Valadares, um conto ou um conto e quinhentos, que, depois, pagaria quando pudesse. O Valadares não lhe ia dizer que não. Fossem ou não fossem o Tónio e o Leandro que, a mando do pai, tivessem deitado aquele fogo, o certo é que tinham querido deitar um ainda maior — sabia-o ele muito bem. Ele não diria nada, já se vê; jurara que não diria e não diria; mas o Valadares havia sempre de ter medo de que ele desse com, a língua nos dentes. E, decerto, emprestaria o dinheiro e esperaria o tempo que fosse preciso. Era claro que a vida deles, depois de casados, seria uma miséria, porque ele não era homem que ficasse a dever nada a ninguém e muito menos ao Valadares... Seria trabalhar para o pão de cada dia e para pagar a dívida. Mais nada. Mas já que tinha de ser pronto, acabara-se!”

Agora, depois de haver resolvido assim, sentia o coração oprimido ao pensar que se lhe ia a casita que ele sonhara.

Ao seu lado e alheia à sua luta íntima, Idalina estava contente. Notando a alegria que havia nos olhos dela, Horácio enervou-se:

— O que eu fizer, é por ti que o faço, compreendes? É para que não estejas mais tempo à espera... Pois eu terei de continuar com o gado...

Ela ouviu aquilo, entendeu ser aquilo natural e continuou contente:

— Não faz mal... Depois, a gente combina com o Valadares e, em vez de serem os filhos dele, sou eu que vou lá, todos os dias, buscar os queijos e ver-te... E arrendamos umas terras, para as batatas... E a casa... —Hesitou, como se voltasse a si, após ter-se distraído: — Então tu desistes da casa nova?

Horácio quis falar com a mesma decisão de há pouco, mas não pôde. As palavras saíam-lhe vacilantes e num tom de angústia:

—’Não... Quer dizer... depois veremos...

Ela contemplou-o um momento e, em seguida, baixou a vista. Perdera a sua alegria e as lágrimas vinham-lhe aos olhos.

— Assim não quero... — disse. — Se tu fazes isso só por mim, contra a tua vontade, não quero!

Ele sentia-se, agora, melhor — sentia-se melhor desde que também ela sofria. E logo lhe surgiu o desejo de consolá-la:

— Não é só por ti ; também é por mim. Mas não digas nada a ninguém por ora. Se tiveres de dizer à tua mãe, que ela guarde segredo...

No dia seguinte, Idalina comunicou-lhe:

— A minha mãe acha bem o que tu resolveste. Ela diz que vamos acabar o que falta para o enxoval, pois já estava quase todo pronto quando tu voltaste da vida militar...

Ele interrompeu-a:

— É melhor esperar mais um pouco... Eu ainda não perdi a esperança... O Manuel Peixoto prometeu-me e só se o irmão dele não puder é que não fará...

Encontrava-se com estado de espírito diferente do da véspera, sem aquela sensação de vexame que sentira ao ver Idalina após os meses que estivera ausente.

— É melhor esperarmos mais algum tempo. . . — repetiu.

Passaram-se vários dias, passaram-se semanas e Manuel Peixoto não enviara notícia alguma. Os dois pastores que haviam ido à Idanha, como todos os anos, arrendar pastagens para o Inverno, tinham regressado há muito. Novembro avançava e, com o frio, cada vez mais forte. Já caíra neve na Torre e nas Penhas e as ervagens de Manteigas estavam esgotadas. Era a época em. que, anualmente, se iniciava a transumância, levando-se o gado para longínquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia a caminhada dali até à Idanha, fora o do Oanholas, com ovelhas de mais quatro pastores. Outros partiram depois e, por fim, o de Valadares, o do velho Jerónimo Latoeiro, o do Aniceto e o da tia Lueiana largaram também, num só grupo, para poupar condutores. Eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. À frente e aos lados, mantinham guarda o “Lanzudo” e outros cães, menos o “Piloto”, que fora considerado débil para a longa jornada. Atrás marchavam Horácio, o Tónio, o Aniceto, o Libânio, filho do tio Jerónimo, e um burro por cada homem. Os onagros transportavam bardos e ferradas; e os seus alforges, com alimentos no fundo, guardavam espaço para recolha de cordeiros que dessem em nascer, como sempre acontecia, durante o trânsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muito juntas no seu passo curto, se gritos ou pedradas a isso as impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e cortavam à esquerda e à direita, à cata de pasto vizinho da estrada. Às vezes, os seus focinhos orientavam-se para folhagem que tinha dono sempre pronto a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas e até de multas policiais, outras pedras e outros berros caíam sobre as famintas, que retomavam o caminho, na esperança de serem, além, mais felizes. Por Belmonte, Caria e Capinha, elas iam seguindo o seu destino, dormindo onde a noite tombava, longe dos povoados, que nas redondezas destes a cama era-lhes proibida, e levantando-se mal clareava o céu, para continuarem a marcha, sempre com os cães à testa e nos flancos, sempre com os burros à cauda e, atrás dos burros, os homens. E brancas e negras, sem outro ruído que o marulho dos seus passos e rebeldes somente quando alguma folhita verde, tão humilde como elas, se debruçava na estrada, a desafiar-lhes o apetite, as ovelhas acumulavam gratidão no espírito de Horácio e de seus parceiros por nenhuma haver ainda parido. Ao terceiro dia, porém, a “Farrusca”, que pertencia a Aniceto e exibia barriga redonda que nem pipa, deu em balir.

— Já cá fazia falta! — exclamou Tónio.

Aniceto não gostou de que fosse sua a causadora do mau humor do companheiro; mas logo, pelo andar dos bichos, o seu olho esperto assinalou que, mesmo se a “Farrusca” não existisse, algumas ovelhas de Valadares obrigariam, em breve, o rebanho a deter-se. E sentiu-se vingado.

Estavam entre um desfiladeiro que se abria, quase a prumo, à direita da estrada, e uma vasta propriedade, com muro branco, que se erguia à esquerda. Os quatro homens começaram, então, a apressar o rebanho, enxota, grita e apedreja, para que a forçada paragem se desse ao menos em sítio de algum pascigo. Mas a “Farrusca”, já com dores, deitou-se por terra, alheia à fome das demais.

— Rais te parta! —praguejou Aniceto. E, metendo-lhe os braços por debaixo do corpo, ergueu-a e pôs-se a correr com ela na estrada. Mas adiante do muro branco havia outro prédio e outro e outro. O rebanho já ficara para trás e Aniceto continuava a correria. Contra o seu peito a ovelha pernejava e estorcia-se. “Rais te parta! Podias esperar que chegássemos à Idanha! Rais te parta a ti e aos donos destas terras! Raios vos partam!” — ia ele murmurando. Ao mesmo tempo sentia ternura por ela, ao pensar nas dores que estaria sofrendo.

Por fim, lobrigou, junto de pequena ponte, um pinhal sem vedação, com alguns sargaços e chamiças à beira da estrada. Aquilo pareceu-lhe péssimo, mas não havia tempo para escolher. Pousou a ovelha, acendeu um cigarro e sentou-se numa pedra, junto do bicho. A “Farrusca” contorcia-se, agora, violentamente. Aniceto ia tirando fumaças e lançando-lhe, de quando em quando, uma olhadela. A bexiga de água aparecera e rebentara. O sexo dilatava-se e a ovelha continuava a contorcer-se.

O rebanho aproximou-se. Horácio avançou e cortou-lhe o caminho, postando-se à entrada da ponte. As ovelhas, indiferentes à sorte da “Farrusca”, passaram junto dela e espalharam-se na linde do pinhal.

— Como vai isso? — perguntou Tónio.

— Regular.

Silenciosa, a “Farrusca” prosseguia nas suas contorções, ora de olhos fechados, ora apresentando-os cheios de névoa, como se fosse morrer. Logo, duas patitas seguidas por tenra cabecita se mostraram à vista de Aniceto. O corpo veio depois, de jacto, como se um açude de sangue se houvesse rompido. A ovelha quedou-se ainda uns momentos estendida, a respirar docemente. Também Aniceto sentia alívio e melhor respiração. Mas já a “Farrusca” se levantava, levando as páreas dependuradas do sexo, como tripas cheias de bolitas sangrentas. Num instante, ela cortara, com os dentes, o cordão umbilical e, lambe, lambe, pusera-se a assear o filho. A sua língua ia colhendo e mandando para o estômago todas as viscosas imundícies que ele trouxera da madre. E com tal afã o fazia, que o cordeirito, mal se sustendo ainda nas pernas, cambaleava frequentes vezes sob esse frenesi materno. O seu olhar morno vagueava, inocentemente, no mundo onde ele acabava de entrar. Era a estrada, eram os pinheiros à esquerda, uns sobreiros junto da ponte, umas alminhas no princípio do caminho que ali perto desembocava. Ele não fixava coisa alguma, como se tudo isso fosse indigno da pureza de seus olhos cândidos, feitos para contemplar uma paisagem celeste. Às vezes arriscava um passo e logo a “Farrusca” avançava também, sempre a lambê-lo. As outras ovelhas, dispersas ao longo das valetas e no começo do pinhal, iam devorando quanta folha propícia se lhes deparava.

Entretanto, Horácio, Tónio e Libânio conversavam e riam em grupo. Fora o Tónio quem contara a história que os fizera gargalhar e, agora, preparava-se para soltar outra.

— Ouve lá, que esta é boa!—disse ele para Aniceto, desejando obter também o prémio do seu riso.

O entremez era longo. Todos os homens estavam atentos, risonhos, gulosos do desfecho. Aniceto esquecera a “Farrusca” e o seu anho. Tónio sentia-se lisonjeado pela atenção dos companheiros e prosseguia na anedota. Antes mesmo de acabar, já todos os outros gargalhavam.

Libânio ria ainda quando os seus olhos divisaram aquilo. Perante o alarme que ele deu, Aniceto voltou-se e correu, aflitivamente, para a “Farrusca”. Já era, porém, tarde. A ovelha, na ânsia de enxugar a barriga do filho, começara a roer-lhe o cordão umbilical. Aquilo parecia-lhe a mais e quanto mais o puxava, quanto mais o roía, mais comprido ficava. O cordeirito debatia-se, tentava escapar-se, empregando as primeiras forças da sua vida para libertar-se das dores que o esmero da mãe lhe causava. Mas a “Farrusca”, obstinada no trabalho, continuava a prendê-lo, a esvaziá-lo por aquela fita quente, gomosa, sangrenta, que ligava o seu ventre à boca materna. Quando Aniceto acudiu, ainda ele estava de pé, mas pouco depois tombava, vencido. No lugar do cordão, havia, agora, tripas.

Os três homens juntaram-se em volta de Aniceto, comentando e lamentando o sucedido. Ele não dizia palavra e odiava a Tónio e à ovelha. “Se não fosse Tónio tê-lo distraído —pensou, com raiva— aquilo não se daria. Ele já sabia que a “Farrusca” era assim, pois no último ano chegara a roer o rabo do filho. Ao Valadares, borrego a mais ou a menos não fazia diferença; mas a ele, que era pobre, que tinha só aquelas trinta cabeças, aquilo fazia-lhe muita falta.”

O rebanho voltou a caminhar. Os homens iam, agora, silenciosos, a capa mui chegada ao pescoço, o chapeirão enterrado até às orelhas, sob o sol que não conseguia anular o frio.

Ao atravessar a ponte, a “Farrusca” começara a balir pelo filho — e Aniceto irritou-se ainda mais.

Pouco depois, detiveram-se de novo. Mas a paragem foi curta. A ovelha do tio Jerónímo, que se deitara na valeta, só demorara um quarto de hora a aliviar-se. E o cordeiro, logo que se vira limpo, pusera-se a seguir a mãe, com suas pernitas tontas, muito abertas para fora. Do acto não ficara ali senão um pouco de terra humedecida de sangue, porque o “Lanzudo” voltara atrás e devorara, num instante, as páreas e mais membranas que haviam acompanhado o nascimento.

A marcha do rebanho continuou. Antes do pôr do Sol, os homens começaram a inspeccionar as margens da estrada, em busca de abrigo para a noite invernal. Horácio falava de umas lapas onde dormira uma vez, mas não se lembrava se estavam muito perto, se ainda longe. Por fim, encontraram-nas. Era um grupo de rochedos com algumas cavidades naturais, ao pé de um matorral e de um fio de água. Acampados, com os burros a pastarem em derredor e as ovelhas famélicas a não quererem entrar no bardo que lhes haviam armado, Aniceto acendeu, entre três pedras, uma fogueira e sobre ela pôs a sua ferrada. Depois, sacou do alforge o filho da “Farrusca” e principiou a esfolá-lo.

Libânio, ao passar junto dele, cuspiu para o chão:

— Vais comer isso?

Aquele “isso” estava cheio de repugnância. Aniceto não respondeu. Levantou-se e, agarrando pelo pescoço o cordeiro já sem pele, foi lavá-lo no regato, Ao voltar, viu Horácio, Tónio e Libânio ajoelhados junto de uma ovelha, à entrada do bardo. Ele aproximou-se com o cadáver do filho da “Farrusca” na mão. Adivinhou o que se estava passando e soltou as suas primeiras palavras desde que a “Farrusca” havia morto o filho:

— O que há?

—O borrego está atravessado — respondeu Tónio.

Aniceto verificou que era uma ovelha do Valadares e, pela primeira vez nesse dia, sentiu-se feliz.

O sexo do bicho mostrava-se semiaberto e sangrento, abaulado e de pelecas muito retezadas. Tónio e Libânio seguravam a ovelha, que se contorcia desesperadamente, e Horácio tentava introduzir os dedos, para encarreirar o anho na direcção normal. Mestre nesses frequentes transes, Aniceto via que só a muito custo mãe e filho poderiam salvar-se — e assistia, calado e contente.

— Não é preciso que eu ajude? — perguntou, sabendo que não era preciso.

— Não — respondeu Horácio, que já tinha as mãos cheias de sangue.

A noite descia. Aniceto voltou para junto da fogueira, cortou em pedaços o cordeirito e pô-lo dentro da ferrada. Na água fervente, os tassalhos iam e vinham, mostrando-se e escondendo-se. Aniceto ora seguia essa emersão e submersão do seu prejuízo, ora olhava para os companheiros ajoelhados em redor da ovelha. Aquilo demorava. Ele conhecia todos os gestos necessários na circunstância e ia acompanhando, mentalmente, o parto tormentoso. Às vezes parecia-lhe que a ovelha já estava perdida, mas logo compreendia que ainda existiam esperanças.

Finalmente, viu os três pastores pegarem nos alforges e dirigirem-se ao regato, para lavar as mãos. Escurecera e ele só tornou a vê-los nitidamente quando se aproximaram da fogueira. Todos eles vinham já mastigando o seu pão e o seu conduto.

— Que tal?

Foi Tónio quem respondeu:

— Deu-nos um trabalhão dos diabos, mas salvámo-la.

Aniceto agarrou-se à última hipótese consoladora:

— E o borrego?

Também lá está, vivo.Os três sentaram-se em volta do fogo. Os cães estavam ao lado, engolindo o pão que Tónio e Libânio lhes atiravam. “Burro de sorte, o Valadares” — remoeu Aniceto. E desatou, então, a falar, a falar de outra coisa, para que não adivinhassem o seu despeito. Depois, afastou a ferrada do lume, escorreu-a e ofereceu o cordeiro aos demais. Ninguém queria. Aniceto principiou a mastigar. De tenra, a carne desfazia-se-lhe na boca. E estava insossa, que ele se esquecera de lhe pôr sal. Dois anos antes ele comera, com outros pastores, um borrego do Canholas, morto nas mesmas condições. Ninguém ia deitar fora o bicho e todos haviam gostado. Mas, agora, também a ele aquilo causava asco. Os cães, sentados em frente, olhavam-no com atenção. Ele esforçava-se por comer, mas a garganta fechava-se-lhe. Adivinhando o sorriso de Tónio e de Litoânio, teimou ainda. A boca repelia a carne e a garganta apertava-se mais. Subitamente, Aniceto ergueu-se e deu um pontapé na ferrada. Os cães acorreram logo, enquanto ele, levando a manta e os alforges, se dirigia, sem palavra, para um buraco dos rochedos.

Os outros seguiram-no, com a vista. Depois, Tónio pôs-se a rir:

— Como ficaria ele se, em vez do anho, tivesse morrido a ovelha?

Libânio riu também. Repentinamente, Horácio sentiu pena de Aniceto.

A fogueira morria e a noite gelava cada vez mais. Os três levantaram-se e foram deitar-se na mesma cavidade onde Aniceto se estendera.

De manhã, tudo branco, tudo coberto de geada, enrolaram o bardo e puseram-se, outra vez, a caminho. Havia um novo cordeirito, mas tão inteiriçado pelo frio, que foi preciso metê-lo num alforge. As próprias capas dos homens estavam endurecidas e o orvalho congelado, que penetrara na terra solta, estalava sob as botifarras.

Anda agora, pára logo, torna a andar, torna a parar, por mor de novas parturições, o rebanho acercava-se de Pedrógão, sempre com mais cabeças.

Algumas ovelhas caminhavam arrastando ainda as páreas, outras mostravam no sexo um globo sangrento, como uma bola de sabão vermelha. ODos anhos recém-nascidos, alguns, como o de Libânio, contavam logo com as pernas e marchavam atrás do todo, mui tímidos, desajeitados e mimosos. Outros, porém, apresentavam-se tão débeis, que os alforges dos burros se iam enchendo com os seus corpitos. E, no dia seguinte, nas redondezas de Proença-a-Nova, já só havia lugar nos alforges dos homens. Tónio resmungava:

— Alguém nos rogou uma praga! Já vamos atrasados dois dias e estes demónios não acabam de parir!

— Ora! Ora! O ano passado pariram muitas mais! Tu é que não vieste — disse Aniceto, de modo consolador. Ele, agora, estava resignado. Na véspera, três outras ovelhas suas haviam parido também, filhos e mães caminhavam sem precalço e ele habituara-se já à perda que a “Farrusca” lhe dera.

Finalmente, ao sétimo dia, vencida a estrada imensa, cruzando vales, grimpando serras, os condutores do rebanho transumante, todos sujos, cara negra de barba, corpos esgotados pela andança, viram, ao longe, as campinas da Idanha, seu último objectivo.

Horácio levava, às costas, uma ovelha doente. Libânio conduzia outra. E Tónio e Aniceto, que marchavam leveiros, em breve os revezariam no transporte dos animais. Dos alforges de todos eles saíam cabeças de borreguinhos. Iam oito ali, outros oito sobre os burros, que avançavam lentamente, cansados também. Os cães levavam a língua de fora. E todos os do desfile pastoril caminhavam esfomeados, todos menos os anhos que iam por seu pé e mamavam nas mães sempre que lhes apetecia.

As crianças, à porta das casas pobres erguidas à beira da estrada, viam passar os cordeiros em cima dos burros, com as ternas cabecitas a sair dos alforjes, como se fossem numa janela andante, e achavam aquilo bonito.

Mais adiante, outra criança, que era rica, mimada, caprichosa, e estava, com a mãe, no terraço de uma moradia nova, pediu:

— Mamã, dá-me aquele carneirinho que tem as orelhas esticadas...

— Está bem; logo to dou.

Mas ao ver que a mãe não fazia movimento algum e, entretanto, o cordeirito se ia afastando, metido no alforge, a criança começou a chorar e a bater com ’as mãozitas fechadas sobre a balaustrada do terraço:

— Eu quero o carneirinho! Eu quero o carneirinho que tem as orelhas esticadas!

Já na planície, prestes a confiarem o rebanho aos três pastores que ali guardariam, durante o Inverno inteiro, todo o gado de Manteigas, Horácio viu correr ao seu encontro o Chico da Levada. Desde longe fazia-lhe grandes gestos e, ao acercar-se, disse-lhe:

— Parece que vocês nunca mais vinham! Andei de camioneta e de comboio para chegar depressa e, afinal, estou aqui parado desde ontem, à tua espera!

— Mas o que é que há?

O Chico da Levada mal respirava:

— A tua mãe manda dizer-te que o Manuel Peixoto te arranjou um lugar na fábrica e que tu deves voltar já para casa. Ela quis escrever-te, mas como não tens aqui direcção, teve medo de não receberes a carta e mandou-me a mim. O recado do Peixoto foi já há (três dias...

Com uma expressão alvar, Horácio pousou na terra a ovelha que trazia às costas. Depois, bruscamente, atirou fora o seu cajado de pastor, deu um salto, abriu os braços e abraçou o Chico da Levada.

 

COM o seu baú, as suas saudades de Idalina e nutrida confiança no futuro, Horácio acomodou-se em casa de um fiandeiro — o Ricardo Soares. Nela não havia maior espaço, nem menor número de crianças do que nas dos outros operários a quem Manuel Peixoto em vão falara para lhe darem albergue; mas Ricardo e a mulher, considerando que podiam colher daquilo algum provento, decidiram aceitá-lo como hóspede.

A porta exterior do casebre ligava com a escada do sobrado uma só divisão com pequena janela aberta no granito. Ali dormia Antero, o filho mais velho de Ricardo, que também, já ’andava nas fábricas como apartador; e foi ao lado da sua cama que armaram outra para Horácio.

Em baixo, junto do nascimento dos degraus, havia uma porta interior e, por ela, se passava para os dois térres compartimentos. O primeiro, era cozinha e quarto do casal e de seus filhos menores; o segundo, um cubículo escuro, ocupava-o a mãe de Ricardo, octogenária de todo surda e quase cega. Quem estava em baixo ouvia os passos de quem andava em cima e quem estava em cima apreendia todos os ruídos que se produziam em baixo.

Horácio viera para ali na véspera de entrar na fábrica e logo nessa primeira noite o molestara a permeabilidade que o soalho oferecia ao som. Fora, primeiro, a voz de Júlia, berrando aos filhos que tardavam a aquietar-se; fora, depois, o ressonar da velha, ora pesado, ora estrídulo; fora, por fim, quando o silêncio se fizera longo, aquele leve ranger de cama, aqueles movimentos que ele adivinhava serem cautelosos, aqueles sussurros mal sufocados que o seu ouvido captava, trazidos pela noite, envoltos em imagens lúbricas.

Horácio percebia que Antero se encontrava também acordado, embora simulasse dormir, para que o hóspede não soubesse que ele ouvia, igualmente, o surdo rumor materno.

Muitas vezes, em sua própria casa, quando era ainda garoto, Horácio escutara essas mesmas inconfidências da noite. E ficava descontente com os pais. Agora, porém, ele sentia uma perturbação diferente. A mulher de Ricardo, que, de tarde, lhe parecera ludra e feia, apresentava-se-lhe, na escuridade, com fascinações irresistíveis. Ele via-a, em baixo, já esgotada nos braços do marido e via-a, simultaneamente, ao seu lado, a enfebrecê-lo, a dominá-lo completamente. Ele queria resistir-lhe e não podia, porque a presença de Júlia no seu cérebro era mais forte do que a vontade dele. E acabara tendo-a imaginariamente, evitando qualquer rumorejo que o denunciasse ao filho dela, que fingia dormir ao seu lado. Ao findar da noite, foi ainda a voz de Júlia a primeira que ele ouviu na casa. O marido respondia-lhe com tom sonolento, mal-humorado. Horácio sentia os passos da mulher lá em baixo, o acender do lume, a colocação da panela na cadeia e ia acompanhando, mentalmente, a figura de Júlia na tarefa doméstica, iniciada mesmo antes de o dia nascer. O soalho deixava passar uns leves fumos de carqueja e de raízes de torga, que se lhe metiam nas narinas, imcomodamente. Antero dormia agora, a todo o pano.

Ele estava também com sono, porque, ainda inadaptado ao meio e com toda a excitação da noite, mal conseguira pregar os olhos. E já ia perder de novo o entendimento, quando ouviu três fortes pancadas no soalho. Júlia devia bater com a ponta de uma vara ou cabo de vassoura e não confiava, decerto, no primeiro aviso, porque repetiu as pancadas.

Uma vaga claridade começava a entrar pelas frinchas do janelico. Antero saltou da cama, acendeu o coto de uma vela e, sem dizer palavra, vestiu-se apressadamente. Ele levantou-se também. Mas ainda não havia enfiado as calças e já o outro corria escada abaixo.

Horácio ouviu a voz de Júlia deter o filho, com um tom de estranheza, quando ele abria a porta da rua:

— Então hoje não tomas nada?

Antero resmungou uma palavra ininteligível e fechou, atrás de si, a porta.

Agora, Horácio ouvia, também, os passos e a voz de Ricardo. O fiandeiro dialogava com a mulher e, em seguida, os dois começaram a falar em surdina, como se temessem ser ouvidos por ele. Pouco depois, Júlia gritou do fundo da escada:

— Já está pronto? Pode vir comer o caldo.

Horácio desceu e entrou no quarto cozinha. Ricardo estava sentado à mesa, esperando-o. Era um homem muito magro e moreno, de quarenta anos bem puxados e melancólica expressão. Horácio saudou-o e sentou-se também. Em frente de seus olhos ficava a cama do casal, de cobertores revolvidos, e, do outro lado, a cama de quatro crianças, que dormiam ainda, com os braços fora da roupa. Num. berço encontrava-se o filho mais pequeno, de cara para baixo, deixando ver apenas a cabecita de cabelo ainda ralo. Agora, a claridade do dia nascente golfava-se pelo postigo que havia numa das paredes da casa.

Júlia pusera diante de Horácio uma tigela com sopa e outra junto do marido. Os dois principiaram a comer. Horácio sentia-se constrangido, já por falta de intimidade com o casal, já pela participação que tivera nos segredos da noite. Constantemente, procurava afastar os seus olhos da cama vazia e do corpo de Júlia, que perdera, de novo, o seu efémero interesse nocturno. A cama teimava, porém, em atrair-lhe a vista e em lembrar-lhe a brusca saída de Antero. “O rapaz tinha razão pensou Horácio. Ele, no seu lugar, também não ficaria satisfeito. É o que tinham aquelas casas. Mas a sua não seria assim.”

Ricardo engolia, apressadamente, o caldo.

— É já tarde! — disse. — Não podemos perder tempo!

Era, sobretudo, Ricardo e essa espécie de secreta e promíscua sociedade que tivera com ele, que molestavam Horácio. Mas Ricardo preocupava-se, apenas, com a hora de entrar na fábrica:

— Vamos!

Os dois saíram, cada qual levando num cesto o almoço que Júlia preparara. O sol não nascera ainda nessa manhã de Novembro. E um vento frio e seco fustigava-lhes a pele.

Na estrada, caminhavam muitos outros operários, em direcção à Covilhã: homens de faces quase ocultas nas golas erguidas de velhos sobretudos; mulheres muito embrulhadas nos xailes escuros e garotos de doze, catorze anos, vestidos com remendadas roupas e uma das mãozitas metida no bolso, enquanto a outra segurava o cesto da comida. Todos marchavam lestamente, que a entrada nas fábricas era às oito menos cinco e se chegassem um minuto depois poderia ser-lhes descontada uma hora no salário.

Há muito tempo que os cabeços e encostas dos subúrbios da Covilhã viam, de manhã, aquelas filas negras de cardadores, penteadores, fiandeiros, urdideiras e tecelões avançarem para o trabalho, houvesse sol ou chuva, poeira ou lama nos caminhos. Todos os mestres da indústria têxtil da Covilhã tinham ali, a servi-los, dinastias de operários, os pais metendo, em cada geração, os filhos nas fábricas, mal estes iniciavam o trânsito da infância para a adolescência. E os novos pareciam herdar dos velhos, por via do próprio sangue, a arte de transformar em tecidos os velos das lãs.

Companheiro de raras falas, Ricardo deixara Horácio acertar o passo pelo seu e caminhava em silêncio. O frio, a pressa e o sono que a maioria ainda tinha, faziam com que os outros pouco falassem também. Os vultos negros, isolados ou em grupos, iam avançando na estrada branca com uma única preocupação chegar! chegar!

Quando atingiram o alto de onde se avista a Carpinteira, com suas fábricas ribeirinhas, Horácio viu, no declive oposto, outras centenas de negros vultos que desciam da Covilhã para o trabalho. Nessa altura, as sereias fabris deram o primeiro sinal. Horácio ia apreensivo e simultaneamente curioso sobre a sua iniciação. A cada passo, porém, brotavam-lhe, de entre as preocupações, quentes esperanças, nessa manhã que marcava novo período da sua vida.

Em frente do casarão de Azevedo de Sousa pareceu-lhe que, de súbito, ficava desamparado. Ricardo, que trabalhava noutra fábrica, despedira-se simplesmente, como se ele já estivesse habituado àquilo:

— Até logo.

Horácio deteve-se junto do largo portão. Operários vindos da Covilhã passavam ao seu lado e entravam. Não conhecia nenhum deles. E, no meio de tanta gente, sentia-se sozinho. Decidiu avançar atrás dos outros. O portão dava para uma calçada, ao fim da qual se erguia a fábrica. Ele procurava, ansiosamente, com os olhos, o Mateus, irmão de Manuel Peixoto, mas não o via em parte alguma. Os operários desapareciam, agora, por uma das portas da fábrica e ele entrou também, timidamente. Mateus estava, lá, metido num fato-macaco, aberto em cima, para deixar ver a camisa com gravata. Tinha o tipo de soldado de cavalaria, forte, alto, espadaúdo. Era muito mais novo do que o irmão e, agora, Horácio descobria nos seus olhos uma expressão de mando que não lhe descortinara na antevéspera, quando lhe falara na companhia de Manuel Peixoto.

— Bom dia! —respondeu Mateus à sua saudação.— Venha comigo.

Atravessaram as instalações térreas e subiram uma escada para o andar superior. Lá do fundo vinham operários, uns já sem sobretudo, outros com casacos mais velhos do que aqueles com que haviam entrado. E cada qual ia-se colocando ao lado de uma das muitas máquinas que, em várias filas, enchiam a fábrica.

Mateus deteve-se junto das “self-actings” as carruagens de fiação.

— Você, como lhe disse anteontem, começa por aprendiz de pegador de fios. É por aqui que um bom operário deve principiar. —E chamando o encarregado da fiação, que passava ao lado deles: — Olha lá, ó Sampaio: este é o rapaz de quem te falei. Coloca-o aí, em qualquer carro.

Sampaio olhou para Horácio, olhou, em seguida, para as oito máquinas e pareceu hesitar. Por fim, disse:

— Está bem. Eu tenho agora que fazer, mas volto já. Pode ficar aqui. — E dirigindo-se a um dos rapazes que se encontravam junto da primeira máquina: — Ó tio Pedro, este aprendiz fica contigo.

O jovem pegador de fios olhou Horácio de alto a baixo e não disse nada. Entretanto, Mateus e Sampaio retiravam-se. Não foi grato a Horácio esse rápido exame visual que o seu novo companheiro lhe fizera, mas já a sereia soltava o último apito e, instantaneamente, as máquinas começaram a funcionar em toda a fábrica.

As carruagens de fiação eram uns maquinismos compridos e baixos, dos quais uma parte, cheia de fusos e com rodas deslizando sobre férreos trilhos, ora se acercava, ora se afastava da outra parte, num contínuo movimento de abrir e fechar. No espaço, que se alargava ou encolhia entre a secção fixa e a secção móvel, quando esta recuava ou avançava, havia sempre centenas de fios muito juntos e paralelos, que a máquina ia estirando e torcendo. Quatro rapazes acompanhavam, correndo, esse vem-e-vai da carruagem, olhos atentos e mãos lestas sobre os fios que se partiam, para ligá-los de novo, sem paragem do conjunto. A correr também com a sua máquina e como que levado por ela, Pedro deixara Horácio especado na coxia que separava as “self-actings” dos aparelhos de penteação. Assim isolado, ele sentia-se ali a mais, inepto, incerto no gesto a tomar, sem saber que fazer dos braços e onde pousar os olhos. Das penteadeiras, um robusto operário contemplava-o com sarcasmo e enviava olhares irónicos a outro companheiro, como se lhe perguntasse: “Quem é aquele grandalhão, que aparece agora aqui?” Pouco depois, Horácio verificava, também, que os garotos pegadores de fios, aprendizes como ele, que acompanhavam as correrias das máquinas, volviam, de quando em quando, as suas cabeças, miravam-no, assim quedo indeciso, e sorriam entre eles. Vexado, adivinhava que esses risos tinham por causa a sua idade, ali onde raros vinham aprender o ofício após os doze e cada vez se sentia mais deslocado no meio estranho. O próprio Pedro, já operário feito, era, sem dúvida, mais novo do que ele.

Por fim, Sampaio voltou. Chamou-o e levou-o para a secção fixa da máquina. Não era hábito de Sampaio gastar seu tempo a ensinar os garotos que entravam ali como aprendizes de pegadores de fios. Confiava-os aos operários e eles que fossem aprendendo por si próprios, um mês após outro mês, um ano a seguir a outro ano. Fora assim que ele aprendera também, no tempo em que ainda se trabalhava de sol-nado a sol-posto. E muitas bofetadas apanhara, coisa que hoje já não se dava. Mas tendo em conta a idade de Horácio e pensando que Mateus, por isso mesmo, lhe atribuíra um salário maior do que o dos outros aprendizes, decidira proceder diferentemente.

— Isto é simples —disse, pondo-se atrás da máquina, na “bancada”. — Aqui, está o desengrosso, estas bobinas cheias de mecha. Estas mechas parecem fitas de lã, mas não estão torcidas. Se lhe mexêssemos muito, desfaziam-se. Agora veja... Elas passam por acolá e a máquina vai desengrossando-as. Está vendo? O carro, quando recua, estira-as, porque as pontas estão amarradas nos fusos que o carro tem. E assim elas vão ficando cada vez mais finas. Olhe agora... Quando o carro chega ao fim, os fusos rodam e torcem o fio. Compreendeu?

Horácio não ousou responder afirmativamente. Sampaio fez um gesto de impaciência:

— Venha comigo! Aproximou-se dos carros e mandou parar um. — Está a ver como é?

A voz de Horácio soou, timidamente:

— Estou... Estou...

— Bem! O principal, por agora, é aprender a pegar fios. O resto aprende com o tempo.

Sampaio estendeu a mão e quebrou um dos fios:

— Veja. A pegadura faz-se assim: ligam-se as duas pontas do fio partido e torce-se, num instante. Depois, a máquina acaba de torcer. No fio cardado, dá-se um nó, mas neste, que é penteado, o nó não é preciso. Basta fazer como eu fiz. —E voltando-se para Pedro:— Podes seguir!

O carro tornou a andar. Nas suas idas e vindas partiam-se vários fios. Os operários e os aprendizes ligavam-nos rapidamente, mesmo com a máquina em movimento.

— Veja agora como se faz. É assim que tem de fazer. Vá! Ponha-se ao lado de Pedro! —E dirigindo-se a este, com um gesto de forçada resignação, Sampaio concluiu: — Vai-o ensinando. Tem paciência. ..

Horácio começou a correr, também, atrás do carro. Aquele “tem paciência” quedara-se-lhe nos ouvidos humilhantemente.

Três horas passadas, ele conseguia ligar o primeiro fio sem deter o carro. Pedro dissera-lhe: “Está bem, é assim mesmo. Mas é preciso fazer a pegadura ainda mais depressa.” Pouco depois, ele repetia o acto com outro fio que se partira. Pedro não fizera observação alguma. Então, o seu optimismo volvera e com ele a sua confiança no futuro, uma confiança que brotava, espontânea, não de longo raciocínio, mas de secretas, obscuras forças da sua juventude.

À hora do almoço, foi ainda junto de Pedro que ele se sentou, no refeitório, para comer o caldo, o pão e as sardinhas que Júlia havia metido no cesto. Outros operários mais idosos iam falando, enquanto mastigavam, de um companheiro que fora despedido— o Paredes. Todos se lhe referiam com simpatia, lamentando o seu destino. Mas, pelas próprias palavras que ouvia, pareceu a Horácio que eles não diziam tudo quanto pensavam, como se ali houvesse presença que os traísse. O mais impetuoso era o Tramagal, o penteador que o fixara sarcasticamente quando ele ficara isolado, de manhã, ao pé das máquinas. No meio dos seus indignados comentários, dirigia sempre a Horácio um vesgo olhar. Alguém afirmava agora:

— Isso de o despedirem por ele ter faltado, durante o ano, quatro dias sem justificação, é uma desculpa. Despediram-no porque estava velho. Já não dava grande rendimento. A mesma coisa hão-de fazer a mim...

Horácio olhou o operário que assim falava. Era um homem de cabelo já muito ralo e embranquecido, olhos encovados e dois únicos dentes rompendo de sob o lábio superior.

— A mim e a todos nós, quando não pudermos dar mais — repetiu.

Houve um pequeno silêncio. Algumas bocas deixaram de mastigar o seu pão. Mas já Tramagal garantia:

— O Paredes era, ainda, um bom operário. Ninguém conhecia uma penteadeira ou uma “Jntersecting” como ele. Nisso ninguém lhe levava a palma. Ele não fez outra coisa na sua vida senão trabalhar nas fábricas. Agora estava velho, é verdade, mas tomaram muitos novos chegar aos pés dele. — E, ao dizer isto, Tramagal volveu os olhos para Horácio e, depois, para um rapaz que se sentara à esquerda de Pedro:—Despediram-no, porque queriam dar o lugar a outros! Empenhos!... Protecções!

O rapaz que Tramagal fixara, protestou:

— Eu não meti nenhum empenho, ouviu?

— Bem sei! Mas passando tu a penteador, ficava um lugar vago na fiação. Pedro passava de aprendiz a pegador de fios e no seu lugar já se podia meter outro...

Pedro voltou-se e ia a dizer qualquer coisa, mas Tramagal atalhou: — Tu não tiveste culpa nenhuma.

Houve novo e incómodo silêncio. Horácio olhou, sombriamente, para Tramagal. E não pôde dominar-se:

— Se é comigo que vossemecê fala, está muito enganado! Não lhe admito isso, fique sabendo! Eu não meti empenhos para que despedissem fosse quem fosse. Se eu soubesse que alguém era despedido por minha causa, nunca teria pensado em vir para aqui... Compreende?

Tramagal encolheu os ombros e disse com tom depreciativo:

Cada um enfia a carapuça que lhe serve...

Horácio levantou-se num repente. Pedro agarrou-o por um braço:

— Aqui, não! Não pode haver desordens na fábrica. Seríamos todos despedidos...

Os outros seguraram, por sua vez, o Tramagal, que se erguera também e gritava:

— Pois é! Isto aqui é a casa da mãe Joana. Com certeza há, por aí, filhos de operários que precisam de entrar nas fábricas e não encontram lugar. E vem um de fora, mete uma cunha e logo se arranja! Daqui a pouco, os nossos filhos andam a pedir esmola, enquanto os matulões de outras terras enchem as fábricas daqui. Até alfaiates e sapateiros, uns tipos já à beira dos trinta, têm entrado na indústria, contra o regulamento, que diz que não se deve meter aprendizes com mais de dezasseis anos. Se é por haver agora mais trabalho, por que puseram na rua o Paredes? Sempre queria saber o que o Sindicato faz!

Horácio ia ainda a replicar, quando o operário de cabelos brancos e dois dentes insulados se adiantou, dirigindo-se a Tramagal:

— Acaba lá com isso! Todos têm direito à Vida... O Paredes foi despedido porque estava velho e cheio de achaques. Já dera o que tinha a dar. O mesmo aconteceu com o Armando, com o Telhadais, com o Vicente, com todos. Não é preciso empenhos de outros. Já viste algum patrão querer operários velhos? Antigamente, eram postos na rua sem mais aquelas... Agora, o Sindicato dá-lhes vinte escudos por semana. Sempre podem comer quatro dias por mês...

Alguns riram. Horácio não desistira de esvaziar-se das suas razões, mas Pedro, apertando-lhe mais fortemente o braço, pedia-lhe:

— Cale-se! Cale-se!

Do outro lado, alguns operários afastavam-se, levando, com eles, o Tramagal! Então, o homem de cabelo branco, olhos profundos e dois únicos dentes na boca envelhecida, acercou-se de Horácio:

- Não lhe leve a mal. Ele tem aquele feitio refilão, mas não é má pessoa. O melhor é não lhe ligar importância. Mas diga-me uma coisa: como é que diabo você, com essa idade, veio parar aqui?

Os três voltaram a sentar-se. Horácio desabafou. Havia simpatizado com aquele homem desde a sua primeira intervenção — e contou-lhe tudo. O outro ouvia-o em silêncio, sem mesmo acabar de descascar a batata cozida que tinha entre as mãos. Quando Horácio terminou, ele sorriu:

— Está tudo muito bem. É pouco mais ou menos como eu tinha imaginado. Ninguém se sujeitava a isto se não tivesse necessidade. O que me admira é que você, um homem feito, ainda acredite que... — Hesitou e o seu olhar envolveu também a Pedro: — Enfim, vocês são ainda novos e o Mundo há-de dar muitas voltas. Eu logo explico tudo ao Tramagal. E não o tome de ponta, que não vale a pena. Ficamos amigos, não é verdade? Eu chamo-me José Nogueira, mas ninguém me trata assim. Chame-me Marreta.

Horácio pronunciava também o seu nome quando a sereia da fábrica deu o sinal de recomeçar o trabalho.

— Entendidos!—exclamou o Marreta. E descascando e comendo, finalmente, a sua batata, caminhou para o outro grupo.

— Parece-me um homem às direitas! — disse Horácio. Com a cabeça, Pedro fez um sinal afirmativo.

As mulheres e as crianças da Covilhã, que tinham vindo trazer a comida aos familiares, arrumavam, agora, tigelas e pratos nos cestos e os operários transpunham, de novo, a porta da fábrica.

As máquinas voltaram a trabalhar. Nas “self-actings”, as carruagens iam e vinham, vinham1 e iam, como se nem elas, nem os pegadores de fios que atrás delas corriam, houvessem jamais parado. De manhã, aquelas correrias dele e dos seus companheiros tinham parecido a Horácio tão pitorescas como ruin castigo infantil ou exercício desportivo. Mas, agora, após o almoço, sentia as pernas fatigadas. De quando em quando, ele desviava a vista, rapidamente, para o resto da fábrica, que ainda não havia percorrido. Era um grande quadrilongo asfaltado e com vidros foscos e semiabertos à altura dos beirais, para seu arejamento. A Horácio aquilo parecia excelente. Muito mais limpo e simpático do que o quartel; e com as casas de Manteigas, a respeito de luz e de asseio, nem havia comparação. Surpreendia-o, porém, não ver por parte alguma mais operários a moverem-se, a correr a todo o minuto, como ele e seus parceiros. As outras máquinas eram diferentes e homens e mulheres estavam junto delas, quedos, como se fossem sentinelas. Raramente se movimentavam para intervir na laboração e, se o faziam, pouco tempo depois aquietavam-se de novo. “Aqueles é que têm boa vida — pensou Horácio. — As máquinas trabalham por eles. Não são como estas aqui.” Após o raciocínio, estranhou que os outros não mostrassem caras alegres. Ao contrário, sempre que, num relance, olhava para eles, via-os graves, sombrios, os mais diferentes rostos de homens e mulheres apresentando uma expressão fria, uma espécie de dignidade cristalizada ao contacto com as máquinas. Não pareciam os mesmos que ele vira no refeitório à hora do almoço. Dir-se-ia que toda aquela gente jamais tinha rido na sua vida. “Aborrecem-se, porque estar assim parados até dá sono. Se andassem aqui, a correr, estariam de outra maneira” — tornou Horácio a pensar. Mas, pouco depois, olhando para os pegadores de fios, que corriam ao seu lado, para os próprios garotos que se haviam sorrido, ironicamente, quando ele entrara de manhã, viu que também eles tinham, agora, a mesma expressão dos outros — uma seriedade precoce e cansada. Foi, então, que Horácio apreendeu que na fábrica havia mais alguma coisa do que ele enxergava, havia um ambiente dominador que lhe causava o mesmo desagrado sofrido nos seus primeiros dias de quartel, quando os oficiais se encontravam presentes. Ali, porém, a vontade que produzia esse ar carregado de obediência parecia estar ausente, porque, mesmo quando o Mateus se encafuava no seu gabinete envidraçado, ao fim da fábrica, operários e operárias continuavam de fisionomia parada, como se o trabalho fosse o único acto profundo da sua vida, a obrigação que não admitia um sorriso. Alguns deles, via-se-lhes nos olhos, estavam de espírito distante, mas, pela força do hábito, a abstracção quebrava-se logo que a máquina lhes exigia uma intervenção.

— Em todas as fábricas é assim? — perguntou Horácio a Pedro.

— Assim o quê?

— Assim... como a guardar defuntos?

Pedro seguiu-lhe o olhar e a intenção e respondeu com piedade pela sua ignorância:

— Claro que é. Você queria um baile? O Rodrigo, que esteve em França, nas fábricas de Lião, disse que lá ainda há mais disciplina.

As máquinas continuavam a laborar. E os homens e as mulheres, colocados ao seu lado, sombrios, ensimesmados, acompanhavam-lhes silenciosamente o trabalho, que ali só elas tinham voz.

Horácio sentia um imenso desejo de fumar, mas já de manhã Pedro lhe dissera que era proibido fazê-lo ali.

— Se fumássemos, que mal poderia acontecer? A lã não arde...

Desta vez, Pedro respondeu bruscamente:

— Nós estamos aqui para trabalhar e não para nos divertirmos. Parece que você nunca trabalhou... Bem se vê que vem da serra...

Ele começava a antipatizar com Pedro. Mas já este se voltava e o advertia, amigavelmente:

— Homem, você ainda não percebeu que só se pode falar aqui em coisas de serviço? Os patrões não querem que se converse enquanto se trabalha. Se você teima, ainda apanhamos algum raspanço...

— Mudou de tom: — Vá à latrina e fume lá. A latrina é a única defesa que nós temos. E parece que não é só aqui, mas em toda a parte onde se trabalha...

Ele não foi. Esperaria até sair — decidiu. “Era preciso ter força de vontade, como tinha no quartel — disse a si próprio. — Se se desacostumasse dos cigarros, até faria uma economia.”

Decidiu assim, mas logo começou a evocar Manuel Peixoto, quando este lhe dissera que não nascera para viver dentro das quatro paredes de uma fábrica. Então, parecera-lhe absurdo que o Peixoto preferisse andar sujo por montes e vales, dormindo ao relento, apanhando, no Verão, o estrume do gado, passando dias e dias longe da mulher e dos filhos, em vez de ter um horário certo numa fábrica e de se lavar e vestir de limpo ao domingo. Mas, agora, a ele próprio, a sua antiga vida de pastor, com liberdade de se sentar, de se levantar, de fumar quando quisesse, de assobiar, de cantar ou de gritar para que a sua voz ecoasse pelos esbarrondadeiros, de falar sozinho ou com o “Piloto” quando não tinha ninguém com quem falar, lhe aparecia com mais atractivos do que dias antes. Logo, porém, se lembrou de Idalina e a imagem da serra desvaneceu-se num negrume de más recordações. “É falta de costume consolou-se.— Com o tempo, habituo-me. Aquilo também era muito mau. Não há dúvida que ser operário é melhor do que ser pastor.”

Às cinco da tarde, houve um rápido trânsito de figuras na fábrica. Os que trabalhavam de dia deram o seu lugar junto das máquinas a outros que chegaram para o turno da noite e, tão apressadamente como haviam entrado de manhã, abalaram em direitura à calçada que desembocava no portão. Moído pelas incessantes correrias feitas durante as oito horas de um trabalho a que seu corpo não estava habituado, Horácio era o único que caminhava devagar entre os outros que o iam deixando para trás, como pedra que resiste à torrente. Ao seu lado passou Tramagal e, pouco depois, o Marreta, que lhe bateu no ombro, ao mesmo tempo que lhe lançava um amistoso “até amanhã”. Cá fora, muitos dos operários se separavam, uns cortando para a Covilhã, outros para a Aldeia do Carvalho. Das fábricas vizinhas saíam mais bandos, que se dividiam também, marchando em direcções opostas.

De cigarro finalmente aceso, Horácio quedou-se na estrada, a aguardar Ricardo. Da fábrica continuava a vir um surdo rumor mecânico. E lá em baixo, na grande bacia cortada pelo Zêzere, manchas verdes contrastavam com pardas extensões de Inverno. À esquerda, a meio da serra, como se quisesse vigiar dali toda a vida do imenso vale que lhe ficava aos pés, ostentava-se a Covilhã. O sol horizontal fazia rebrilhar agora os vidros das suas incontáveis janelas, tornando-a mais espectacular do que a qualquer outra hora do dia. A cidade fascinava os olhos de Horácio, que passeavam, lentamente, do velho casaredo aos edifícios novos que se exibiam nas declividades. “Poucas casas havia ali que se comparassem com algumas do Estoril, mas, enfim, tomara ele ter uma daquelas pensou. Vendia-a logo, pois não queria uma moradia grande, e mandava fazer uma mais pequena, como ele desejava.”

Quando deu por Ricardo, já este se encontrava muito perto. Subia a estrada, a coxear.

— Sucedeu-lhe alguma coisa?

— Não. É o diabo do reumatismo, por isso venho atrasado. Este ano ainda não me tinha atacado, mas esta manhã, assim que entrei na fábrica, comecei a sentir a perna tomada. Quando chega o Inverno, sempre sofro mais ou menos.

— Pois eu estava a ver aquelas casas grandes. Parece-me que elas ainda não existiam quando passei por aqui, há anos.

Ricardo olhou na direcção que ele indicava.

— Sim, são casas feitas há pouco. São de industriais.

— Todas elas?

— Quase todas as casas grandes da Covilhã são de industriais. Olhe: aquela cor-de-rosa é a do seu patrão. Mas parece que ele não gosta de viver ali. Passa a maior parte do tempo numa quinta que tem lá em baixo, à beira do rio.

Iam os dois andando, vagarosamente, por mor da perna de Ricardo. O crepúsculo caía e o ar começava a gelar mais, a tornar-se tão áspero como fora de manhã.

A certa altura, Horácio reconheceu, ao longe, numa curva da estrada, o Tramagal e o Marreta, que estavam parados, a falar com outro homem.

Ricardo tornava a queixar-se:

— Isto do reumatismo é uma grande maçada. Ainda se eu morasse perto da fábrica... Mas, assim, os sete quilómetros custam muito. O ano passado tive, alguns dias, de me levantar duas horas mais cedo do que de costume, para não chegar atrasado ao trabalho.

Ao passarem em frente do grupo que Horácio vira de longe, os três homens voltaram-se e Tramagal, depois de ligeira hesitação, avançou:

— Olá, camarada, peço-lhe desculpa do que lhe disse esta manhã. Aqui, o Marreta, já me explicou tudo e eu sei que cada um tem de ganhar a puta da vida. Vai um aperto de mão? — E, ao falar, estendia os dedos grossos, enrugados, que Horácio apertou. — Deixe vir sexta-feira, que eu hei-de oferecer-lhe um copo de vinho...

Marreta sorria, com ar paternal, e, por detrás dele, um velhote sorria também, mais docemente ainda. Horácio sentia-se comovido com a atitude do Tramagal.

— Estávamos justamente a falar de você... — disse Marreta. — Este, aqui, é o tio Paredes, o que foi despedido...

O velhote estendeu a mão. tinha uns olhos piscos e humilde expressão; mas o que mais se destacava era o sorriso inocente que pregueava e iluminava de candura todo o seu rosto.

Perturbado, Horácio agarrou a mão que Paredes lhe oferecia. Não sabia o que dizer; só lhe ocorriam frases que lhe pareciam impróprias do momento.

— Eu não tive culpa do que lhe sucedeu... Paredes continuava a sorrir, resignadamente:

— Bem sei. Eu já há muito esperava que isso acontecesse. É o fim de todos nós. Podia ser numa ocasião melhor, isso podia. Lá a patroa já não vê um palmo à frente do nariz. Não ganha um vintém. Velhice... Mas seja o que Deus quiser!...

— Você não quis ter filhos — brincou o Tramagal. — Agora auxiliavam-no.

— Ainda bem que Deus não quis que eu os tivesse. Os que os têm andam por aí na mesma. Tomaram os filhos ganhar para os filhos deles... — Paredes deixou de sorrir. A sua expressão tornou-se melancólica : — O pior é que não sei como encher o tempo. Estava tão acostumado ao trabalho, que o dia de hoje pareceu-me que nunca mais acabava. Por isso vim por aí fora... Fica a gente como parvo. Parece que até as mãos estão a mais no corpo... Se alguém me quiser, seja lá para o que for, eu vou trabalhar por qualquer coisa... Mesmo de graça...

Tramagal riu, abrutalhado:

— Você ainda é de bom tempo! O que eu gostava era de passar os dias sem fazer nada... tendo de comer e de beber, está claro! — E começou a contar o que fizera no dia em que encontrara uma nota de cem escudos junto do mercado da Covilhã.

Quando este concluiu, Ricardo despediu-se:

— É tarde. E eu tenho de ir devagar.

Os outros separaram-se, também, de Paredes.

— Não penses mais nisso, rapaz! —disse o velho a Horácio. — Se não fosses tu, seria outro...

Horácio comovia-se outra vez:

— Se eu puder fazer alguma coisa por si... conte comigo!

— Está bem... Está bem... Obrigado! — E partiu, a ’caminho da Covilhã.

Os quatro homens ficaram, um momento, a vê-lo afastar-se, estrada fora, a vê-lo diluir-se na noite que caía, ventosa e gelada. Depois, eles próprios começaram a caminhar também, silenciosos, em direcção oposta.

UM mês vencido, Pedro e Sampaio podiam atestar que Horácio se encontrava apto a ser pegador de fios. Ele já sabia tirar a mecha, levantar a montada, liar aos fusos os novos fios e, quando estes se partiam, os seus dedos hábeis faziam a pegadura com tanta presteza e perfeição como outros muito mais experimentados. Uma manhã, o próprio Sampaio comunicou esse progresso a Mateus. O mestre, que estava no seu gabinete envidraçado, lá ao fundo da fábrica, ouviu aquilo em silêncio e não disse nada.

Porque se bacorejava ser Horácio protegido de Mateus, os outros aprendizes, adolescentes de catorze, quinze anos, esperavam que ele lhes passasse à frente e ganhasse, em breve, salário de pegador de fios. Mas os dias iam decorrendo e Horácio continuava também como aprendiz.

— É que o meu irmão não tem vaga para te dar — disse-lhe, um dia, Manuel Peixoto, a quem ele pedira nova intervenção junto de Mateus. — Tens de ter paciência. Com certeza não demora muito. E mesmo que demorasse um ano, já era uma grande sorte, pois os garotos andam lá cinco anos e até mais, antes que os considerem operários. Mas como tu és um, homem feito, o meu irmão há-de ter isso em conta.

O que o Peixoto dizia parecia-lhe conforme à razão, mas deixava-o desolado. No fim do mês, quando fora pagar à Júlia os cento e cinquenta escudos ajustados pela cama e comida, ela dissera que se havia enganado nos seus cálculos e perdera dinheiro com ele. O que estava dito, estava dito, e por aquele mês não pedia mais. Mas, dali em diante, não poderia dar-lhe de comer e de dormir por menos de cinquenta escudos cada semana. Surpreendido, ele hesitara em responder. Logo fora lembrando a Júlia que ele ganhava apenas nove escudos por dia, pois este era o maior salário que o regulamento autorizava para um aprendiz. Assim, se lhe pagasse cinquenta escudos por semana, ficaria apenas com quatro para as outras despesas — e isso não chegaria sequer para os cigarros. E com que ia vestir-se e calçar-se?

— Pois é... não digo que não... — concordou Júlia. — Mas por menos não me paga a pena. Com isso da guerra, as coisas cada vez estão mais caras.

Perante o silêncio dele e a expressão que o seu rosto tomara, Júlia condoeu-se:

— Realmente, com quatro escudos você não faz nada. Mas eu não tenho culpa. O que posso é experimentar mais um mês, a quarenta e cinco por semana. Se chegar, muito bem; se não chegar, você tenha paciência...

Fora, então, que ele pedira a Manuel Peixoto para interceder junto do irmão. E, agora, o Manuel Peixoto dizia-lhe aquilo. Podia ter de esperar um ano ou ainda mais, quem sabia lá?

— E isso do quarto? — perguntou.

— Olha: falei a várias pessoas. Mas ninguém faz mais em conta do que a Júlia. Que ela não deve enriquecer contigo, isso é verdade...

Estavam os dois sob a alpendrada da capela do Espírito Santo e chovia. Peixoto adivinhava o mal - estar que as suas palavras haviam causado a Horácio e não encontrava outras para o consolar.

— E tu?

— Eu?...

— Não falaste a ninguém?

— Falei. É como vossemecê diz. Uns não têm cómodos, outros não fazem por menos — respondeu, desalentado.

Continuava a chover e a noite aproximava-se. Em frente, na igrejita paroquial, o padre entreabria a porta, deitara a cabeça de fora, olhara para o céu, mas não ousara sair.

— Bom, senhor Manuel: vou-me chegando. Estou como um pinto! Muito obrigado por tudo.

Disparou sob a chuva para casa de Ricardo. Outros operários atravessaram o adro, de regresso das fábricas, encharcados como ele.

No seu quarto, Horácio mudou de roupa, ouvindo, em baixo, a voz de Júlia, a querer dominar a chinfrineira que os filhos faziam. A chuva aumentara e batia agora, ruidosamente, no telhado.

Com o Inverno, a aldeia tomava outra fisionomia. Até aí, fosse na Primavera, fosse no Verão ou no Outono, os homens mal paravam em casa. Quando volviam das fábricas, punham-se a falaciar com os vizinhos ou a cavar algum palmo de chão, até à hora do lusco-fusco. Os que laboravam no turno da noite e possuíam um quinchoso ou leiras nas declividades da serra, empregavam o dia a amanhar essas territas. Muitos deles, ao entrar nas fábricas, às cinco da tarde, já haviam trabucado seis e oito horas, mas tinham por boa sorte consumar, num mesmo dia, esse duplo trabalho, pois sem o acrescento das couves, das batatas e, às vezes, do centeio que as courelas davam, o salário não lhes bastaria para sustentar a família.

No Inverno, porém, belgas e quintais magra assistência exigiam. Sob o céu pardo, nas ruelas cobertas de lama ou de neve, os casebres tornavam-se lúgubres e, mesmo nas horas diurnas, adquiriam feições de cavernas, com um lume a arder lá dentro. Antigamente, os homens metiam-se nas vendas e emborrachavam-se nesses dias pluviosos. Mas, com o decorrer dos anos, a propaganda contra o álcool, feita pelos próprios operários mais conscientes, fora afastando das tabernas a maioria deles. Como Ricardo, quase todos os outros, ao volver das fábricas, ficavam em casa ou se juntavam, em paleio, no casebre do Marreta. As casas eram, porém, de uma tristeza infinita, mais negras e enervantes do que o próprio Inverno. Nelas, as mães increpavam os filhos, que saíam a patinar nos lodaçais, a correr, muito contentes, sob a chuva ou a brincar na neve, se esta já caíra. Mas quando as crianças, detidas pelos ralhos maternos, estavam em casa, brigavam umas com as outras, irmãos contra irmãos, os mais velhos com os mais pequenos. Todos eles se sentiam prisioneiros e se os forçavam à quietude e à mudez, esses dias invernais pareciam-lhes eternos, como se eles vivessem numa só hora mais do que toda a sua vida.

Ao contrário dos filhos, à Júlia e a outras mães esses sombrios dias invernais pareciam curtíssimos. Elas constituíam como que o centro de cada lar, o eixo de cada família e o tempo corria-lhes mais rápido do que a chuva sobre os telhados. Elas tinham de forçar a imaginação para obter alimentos baratos, de forma que todos comessem dentro da exiguidade dos salários — e, no Inverno, isso era-lhes mais difícil. Elas tinham de vestir os filhos, cortando, adaptando, remendando velhas roupas; e à faina doméstica, todos os dias igual, juntavam, muitas vezes, trabalhos para as fábricas.

Júlia disputava cada minuto de luz diurna para esbicar um corte de fazenda. O tecido estava sobre um cavalete, a “banca”, e ela, com umas pinças, ia-lhe arrancando as impurezas, os últimos resíduos vegetais que a lã conservava, teimosamente, através de todas as outras operações que sofria. Os industriais pagavam pouco por esse labor, mas Júlia considerava que, sem esse pouco, não poderia, só com o salário do marido e o abono de família que recebia nos últimos tempos, dar governo capaz à vida de sua casa.

Em frente de Júlia, vizinhando o lume, sentava-se a mãe de Ricardo a senhora Francisca. Com seus oitenta anos, sua surdez e semicegueira, era como um traste da casa, uma estátua tosca, dramática pela expressão e grotesca pelos trapos que vestia. De cabeça descaída sobre o peito e o gato aninhado no regaço, decorriam horas em que nela se via apenas o movimento do rosário passando entre as suas engelhadas mãos. Se deixava as contas era para acariciar o gato a sua maior ’ternura. Nem aos netos ela parecia querer tanto. Os seus olhos viam-nos de contornos diluídos, quase esfumados, e esses corpos imprecisos, quando ela estendia, para eles, as mãos descarnadas, fugiam-lhe aos afagos. O gato, pelo contrário, mostrava-se passivo, nestes dias de Inverno em que o regaço da velha lhe oferecia grato calor.

A senhora Francisca trabalhara quase cinquenta anos na ultimação dos tecidos, quando era solteira, depois de casada e depois de viúva. Fora “metedeira de fios”, cerzindo orifícios e eliminando outros defeitos que os teares deixam, por vezes, nos panos. E só cessara de trabalhar quando a luz dos seus olhos estava quase extinta. Nesse dia, Ricardo e Júlia começaram a sentir a presença da velha como um peso morto, uma despesa apenas, na sua vida. Júlia passara a trabalhar mais do que até aí. Levantava-se ainda no negrume da noite e, quando o marido, o filho mais velho e Horácio acabavam de se vestir para ir para a fábrica, já ela tinha o caldo pronto e concluídas outras lidas domésticas. Agarrava-se, então, à peça de fazenda e, de pé, junto à banca, as suas pinças nervosas iam, que nem bico de ave faminta, arrancando todas as matérias estranhas à lã.

Júlia fora, como a sogra, netedeira de fios, mas, por vontade do marido, passara a esbicadeira, para defender um pouco mais a sua vista. Ricardo obtivera, também, que a fábrica onde ele trabalhava lhe confiasse tecidos para Júlia os esbicar em casa, acumulando ela, assim como outras mulheres locais, o labor industrial com a trafega do lar.

O seu esforço era, porém, constantemente interrompido pelos filhos, que traquinavam, no casebre, que berravam de quando em quando, criando conflitos e aplicando, eles próprios, castigos entre si. Júlia enervava-se e, às vezes, praguejando, esbofeteava um deles, deixando-o a carpir-se a um dos cantos. Logo, ela volvia ao seu trabalho, ciosa do tempo que perdera; mas, pouco depois, tinha novamente de intervir, tinha novamente de se interromper. Só a senhora Francisca, naqueles foscos dias de Inverno, com todas as crianças metidas em casa, continuava impassível, graças aos seus esclerosados ouvidos. Se os netos, durante as suas lutas, embatiam nos joelhos dela ou, fugindo às iras maternas, atrás do seu corpo buscavam protecção, a velha ainda abria a desdentada boca e perguntava:

— O que é? Que é que vocês estão fazendo, seus marotos?

Mas ninguém lhes respondia, por serem inúteis as palavras. Muitas vezes, essa atmosfera doméstica desagradava a Horácio e ele começava, então, a pensar no seu futuro, na casita que sonhara e entristecia. Reagia depois, porque algo dentro dele, não sabia o quê, algo confuso, obscuro, continuava a insinuar-lhe que a sua casa não seria assim. E, prendendo-se a essa esperança, desviava os olhos para o lume; desviava-os de Júlia, sempre, sempre atarefada, dos filhos de cara suja e, sobretudo, da velha Francisca, para não lhe ver a cabeça descaída, de expressão idiota, e aqueles seus dedos que iam deixando passar, incessantemente, automaticamente, as contas do rosário, tal como, na fábrica, as máquinas deixavam passar os fios de lã.

Agora, no seu quarto o corpo já com roupa enxuta, Horácio sentiu, em baixo, os passos de Ricardo, que volvia da fábrica, e, pouco depois, os de Antero, que fechava, violentamente, a porta exterior e entrava na cozinha a vociferar contra a chuva. Ouviu, depois, Júlia dirigir-se ao filho, com voz surda, refreada. Horácio não compreendia as palavras, mas adivinhava que elas eram de admoestação. Antero ripostava e a mãe ia-se encolerizando, subindo de tom, despreocupando-Se do hóspede que ela sabia estar em cima.

— O que tu queres é andar com esses valdevinos e essas perdidas da Covilhã, gastando com elas tudo quanto ganhas. Lá para o tal clube de futebol e para ceares fora de casa tens sempre dinheiro. E nós, aqui, que nos aguentemos! Os teus irmãos andam por aí rotos que é uma vergonha e tu feito um janota, que nem o filho de um ricaço!

—Eu não tenho culpa de que vocês façam muitos filhos —berrou Antero.— Vocês é que os fazem e eu é que tenho de me sacrificar? Não! Eu também tenho a minha vida!

— Cala-te, malvado! Cala-te, senão eu faço uma asneira! Um filho dizer uma coisa dessas! Onde se viu um filho falar assim? — Júlia apostrofava e chorava ao mesmo tempo.

Horácio ouviu, então, a voz de Ricardo, uma voz fria, inflexível, quase sinistra:

—’Sai já da minha frente. Já!

Antero ainda argumentou, exaltado, mas logo Horácio tornou a sentir os seus passos em direcção à porta e, de novo, a porta a abrir-se e a fechar-se com violência. Horácio alegrou-se ao pensar que o outro ia molhar-se, sob a chuva. Ele não simpatizava com Antero e a atitude de Júlia parecia-lhe justa. Aos próprios companheiros de trabalho ouvira censuras a Antero, porque, muitas vezes, ao sair da fábrica, onde era apartador, metia-se na cidade, só regressando a casa para dormir e quase sempre embriagado.

Agora, lá em baixo, havia novamente silêncio. Sentado no rebordo da cama, Horácio deixava fluir o tempo, pois adivinhava que a sua imediata presença na cozinha seria molesta para todos. Por fim, as crianças voltaram aos seus rumores e a Júlia a transitar de uma banda para outra.

Quando Horácio desceu, Ricardo encontrava-se estendido sobre a cama e ao seu “boa noite” respondeu de maneira vaga. Júlia cuidava da ceia, com gestos nervosos e carrancuda. Só a senhora Francisca continuava, como sempre, de expressão alheia ao meio, o rosário entre os dedos e o gato no regaço.

Horácio debruçou-se sobre o berço onde estava o filho mais novo do casal e acariciou-lhe as tenras facezitas. Desde que Júlia lhe aumentara o preço da hospedagem, ele tinha deixado de afagar a criança, como era seu hábito. Durante os últimos dias havia detestado a Júlia e só com dificuldade conseguia disfarçar a sua contrariedade. Mas, agora, certo de que ninguém, na aldeia, lhe daria mais económica pensão, a sua simpatia voltava.

Júlia punha a mesa. Era seu costume servir, primeiro, os homens e, só depois disso, ela, a sogra e as crianças comiam. Agora, como sempre, colocava três pratos. Da sua cama, Ricardo começara a falar do tempo, para dizer alguma coisa. Estranhava que a neve ainda não tivesse vindo, além do poucochito que caíra no princípio do mês. Com certeza, depois de tanta chuva, o tempo esfriaria e logo haveria neve.

Horácio concordou. E Ricardo inquiriu:

— Você vai hoje a casa do Marreta?

— Se a chuva passar, vou.

Passa — disse Ricardo. — Já está a chover menos. Eu também irei.

Júlia protestou:

—Q quê? Vais sair com uma noite destas? Depois queixa-te do reumatismo!

— Tenho de falar com o Marreta—declarou Ricardo, secamente.

Júlia suspirava de vez em quando e os seus ouvidos pareciam atentos à noite, à chuva e aos ruídos de lá de fora. Ela tinha o caldo pronto, mas hesitava em tirá-lo do lume, não fosse Ricardo ver o seu gesto e pedir logo a ceia. Ela tardou, assim, algum tempo, tardou mesmo depois de o marido haver estranhado a demora. Só quando a chuva cessou de todo, Júlia começou a desprender, vagarosamente, a panela da “cadeia” que a suspendia sobre o fogo.

Ricardo e Horácio sentaram-se. Ao lado deles, estavam o prato, a malga e a colher destinados a Antero. Muitas noites a malga ficava ali, assim vazia, à espera. Mas nunca, como agora, ela causara a Júlia tanto pesar.

Os homens começaram a comer a sopa. De pé, por detrás do marido, Júlia dirigiu-se a Horácio:

Disseram-me que o Manuel Peixoto tem andado por aí a ver se arranja outra casa para si... — Júlia disse isto e deteve-se. Mas logo voltou a sentir necessidade de derramar sobre alguém a amargura e o mau humor com que o filho enrugara a sua alma. — Se você acha que nós o exploramos, não se prenda.

Ricardo levantou a cabeça:

— Ó mulher! Não podias deixar isso para outra ocasião?

Júlia calou-se.

— Vossemecê não leve isso a peito —desculpou-se Horácio. — Não é que eu me sinta mal aqui ou esteja descontente. Nada disso! É que, como ganho tão pouco, estive a ver se arranjava uma coisa mais barata. Mas está tudo muito caro, eu sei... Faça de conta que não se passou nada...

Júlia e Ricardo continuaram silenciosos. Os pequenos, de olhos fixos em Horácio, escutavam atentamente as palavras deste:

—’Se eu tivesse de me ir embora, levava saudades de vossemecês... Têm sido bons para mim. Mas não vou, a não ser que não me queiram...

O casal prosseguia no seu silêncio. Por fim, Ricardo disse:

— Não se fala mais nisso. Contrariado, aqui, não o queremos, claro. Mas se você não encontrar melhor, a casa está às ordens. Também nós simpatizamos consigo.

Lá fora soaram uns passos e Júlia apurou o ouvido; mas logo os passos se distanciaram.

Mal acabaram de comer, Ricardo e Horácio saíram. Na rua, ao notarem a porta de Tramagal, Ricardo deteve-se:

— Vá andando, que eu já lá vou ter. Preciso de dizer uma coisa ao Tramagal.

Horácio continuou a caminhar para a casa de Marreta. Quase todas as noites ele fazia esse mesmo caminho. O velho tecelão havia-se tornado o seu melhor amigo na Aldeia do Carvalho. A princípio, quando viera para ali, ainda Horácio buscava a convivência de Manuel Peixoto, mas, depois, fora-a trocando, pouco a pouco, pela de Marreta. Este parecia-lhe diferente dos outros operários e com muito mais inteligência.

Marreta habitava, sozinho, um casinhoto perto da ribeira que ladeava o povoado. Era viúvo e não possuía outra família além de um filho na América, do qual falava sempre com melancolia, queixando-se de que ele deixara de lhe escrever e o esquecera.

Vegetariano e esperantista, na defesa daquela forma de sustento e a pregar as vantagens de uma só língua para a Humanidade inteira, Marreta punha tanto fervor como se de credos religiosos se tratasse. Ele próprio cozinhava os seus vegetais e, vida sóbria, despendia a maior parte da féria em brochuras e correspondência com esperantistas estrangeiros, nas semanas em que um ou outro operário não lhe demandava a casa, a tartamudear um pedido de empréstimo. Conhecedores do seu feitio, raros lhe pagavam; e, se algum o fazia, era, quase sempre, para estar apto a pedir, noutra ocasião de aperto, uma quantia maior. Marreta estimava o dinheiro em relação apenas com o preço dos selos do correio. A sua grande volúpia seria poder escrever muitas cartas e receber muitas também dos esperantistas das outras terras. Como houvesse começado a corresponder-se com uns húngaros, tanto se apaixonara pela Hungria que acabara estudando vários aspectos da vida daquele país, mesmo os que não tinham afinidade alguma com o esperanto. E, durante mais de um ano, ao falar, citava a Hungria por tudo e por nada.

Na Aldeia do Carvalho poucos adeptos arrebanhara para a língua internacional e para o vegetarianismo não conquistara um só. Debalde ele jurava que, assim, seria maior a saúde, mais longa a vida e menor a escravidão do ser humano às necessidades de cada dia. As mulheres, sobretudo, contrariavam-lhe a propaganda. Mais realistas do que os homens, afirmavam, desdenhosas, que fartas de batatas estavam elas desde que haviam nascido e que pena tinham de não poder comer carne todos os dias. Um bife! Uma perna de carneiro assada! Quem lhos dera!

Apesar dessas divergências, a quadrazita que Marreta habitava enchia-se de operários quase todas as noites. Fugindo ao ambiente de suas casas, ao ruído e movimento da filharada, os homens vinham para ali, naquele período de Inverno, jogar a bisca e cavaquear. A ausência de mulheres, de crianças e dos problemas domésticos dava-lhes uma, efémera sensação de evasão. Além disso, se as doutrinas vegetarianas não os seduziam e se lhes produzia antecipada preguiça a ideia de estudar esperanto, eram fascinados por outras aspirações que Marreta juntava aquelas, numa catequese que ele exercia há muito tempo já. Muitas vezes Horácio ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dia, um mundo onde não existiriam nem pobres, nem ricos, nem grandes, nem pequenos e onde todos teriam tudo quanto carecessem para viver sem apoquentações. Sempre a conversa ia para aquele ponto. Se se falava de alguém que fora despedido, de falta de luz nas casas e de lugares no Albergue, de pai que não tinha pão para os filhos, de pessoa que andava esfarrapada ou pedia esmola, sempre se falava desse dia em que tudo isso acabaria e os homens seriam mais felizes. Seriam todos como irmãos, uns não explorariam os outros e não haveria mais guerras.

Horácio admirava-se de que, parecendo Marreta tão inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabia muito menos, não podia crer, pois ricos e pobres houvera-os sempre e se alguém fosse tirar aos ricos o que lhes pertencia, logo viriam a guarda republicana e a polícia e poriam tudo como dantes. E mais surpreendido ficava ao verificar que todos os outros, interrompendo o jogo, iam lançando as suas palavras na mesma direcção das de Marreta. Até o Ricardo, sempre tão calado, tão metido consigo, estava, via-se logo, de acordo com aquilo. Alguns dos operários traziam jornais e liam coisas passadas em terras estrangeiras, notícias da guerra, que os outros escutavam em silêncio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras atentas. Depois, um e outro afirmavam que o dia podia chegar mais depressa do que muitos esperavam.

Durante semanas, Horácio olhava para os frequentadores da casa de Marreta como se eles tivessem um segredo que o seu entendimento não conseguia descobrir conpletamente. Tudo quanto lhes ouvia o desnorteava. Podia lá ser que as coisas viessem a ser como eles diziam! Mas, então, por que eles acreditavam naquilo, falando, às vezes, por meias palavras, como de um amor que estivesse no fundo dos seus corações e do qual não quisessem, dizer tudo? Algumas noites, no meio das ’conversas, Marreta referia-se a cartas que recebera de esperantistas de outros países e sempre dava a entender que eles esperavam também aquele dia de que todos, ali, falavam. Eram pessoas de cidades que Horácio raramente ouvia nomear Charleroi, Praga, Atenas, Buenos Aires e, porque se tratava de terras longínquas, tudo aquilo lhe parecia fabuloso, sem ligação concreta com a vida que eles viviam ali, na aldeia de rústicos casebres, de gentes pobres e de cabras e ovelhas. Cada noite, porém, ficava mais perplexo entre o que escutava e o que pensava. Quando era pastor, ouvira, algumas vezes, falar de greves, mas sempre aquelas notícias chegavam, a ele e aos outros que viviam entre os rebanhos da serra, como se fossem movimentos de homens que queriam apenas ganhar maior féria.

Marreta tinha muitos livros, quase todos sem capa, descosidos e ensebados, pois emprestava-os frequentemente. As vezes, aparecia com um novo volume e, durante semanas, cada um dos operários ia-o levando para sua casa, até todos o lerem. Pelos comentários escutados, Horácio acabou compreendendo que muitas daquelas obras eram proibidas. E, então, sentira desejo de as ler também. Mas quando o dissera a Marreta, fizera-se um súbito silêncio entre os que estavam presentes e o velho tecelão hesitara:

— É preciso escolher um que te possa interessar. Amanhã verei isso..

Na noite seguinte, quando Horácio lhe lembrara aquilo, ele desculpara-se:

Hoje não tive tempo nenhum. Vamos a ver amanhã.

Agora, porém, Horácio encontrava Marreta sozinho, a lavar o prato e a malga em que comera.

— Ainda bem que vieste cedo —disse-lhe.— Há já três dias que ando para falar contigo, mas não queria fazê-lo em frente de ninguém. E como Horácio quedasse em expectativa: É por causa dos livros que me pediste. Olha, aqueles dois, que estão ali separados, podes levá-los. Mas antes queria dizer-te uma coisa..

Horácio continuava a olhá-lo, intrigado. Ele enxugou o prato e, depois, veio sentar-se à beira do lume.

— Anda para aqui — pediu-lhe. E logo que Horácio se sentou ao seu lado, Marreta deu-lhe uma palmada na perna: —Eu sei que tu és bom rapaz, mas, às vezes, sem se querer, faz-se mal aos outros. Tu já percebeste, com certeza, que não se pode andar por aí a falar dos livros que nós lemos ou a mostrá-los a torto e a direito. Eles não têm mal nenhum, mas se se soubesse que nós os tínhamos... Tu compreendes? Já uma vez fui preso por menos...

— Já foi preso?

Marreta sorriu, admirado da surpresa de Horácio:

— Quantas vezes! No tempo em que podíamos fazer greves e eu morava na Covilhã, era o pão de cada dia. Uma vez, um guarda republicano deu-me com a espada, mesmo a matar. Ainda tenho aqui, nas costas, a cicatriz. Outra vez, prenderam-me e meteram-me num buraco escuro da cadeia e assim estive dois meses a fio incomunicável e sem ver a luz do dia. Criei umas barbas maiores do que as do Padre Eterno. Até aqui...—Levou a mão à altura do umbigo e teve, de novo, um. sorriso infantil.

Horácio ouvia aquilo com horror e perguntava a si próprio porque Marreta, para evitar repetição do que lhe acontecera, não mudara, desde então, de atitude.

— Pode estar sossegado —disse.— Da. minha boca ninguém saberá nada sobre isso dos livros.

— Não é bem por mim que te peço. Sou sozinho, não faço falta a ninguém. Mas é pelos camaradas que têm família. E alguns, por causa disso, podem não se sentir à vontade junto de ti...

— E é que, às vezes, parece que não se sentem. Já percebi isso...

— É natural — justificou Marreta. — Há muitos deles que têm sofrido. E como não sabem bem o que tu pensas...

O velho tecelão calou-se.

— Desculpe-me, tio Marreta. Mas vossemecê acredita, deveras, nessas coisas que dizem aqui?

Marreta ergueu a cabeça:

— Ora essa! Sempre acreditei e cada vez acredito mais! É a nossa única esperança! Que outra esperança podemos nós ter? Eu estou velho; já não será, talvez, na minha vida, mas estou certo de que será na tua...

Horácio contemplou-o, um momento. Viu os seus olhos a fugirem, como o brasido, mas num rosto macilento e lavrado pelas rugas.

—Pois eu não posso acreditar numa coisa dessas...

— Não me admira —declarou Marreta, com o tom de quem o desculpava de um defeito oculto.— Não me admira mesmo nada. Não nasceste em casa de operários e só agora começas a trabalhar nas fábricas. Eras pastor e isso é muito diferente. Os pastores parece que vivem no fim do mundo.

Marreta dobrou-se para o lume e acavalou mais algumas achas. Depois, demorou-se na catequese, sempre com aquelas palavras de justiça, de bem-estar comum, de igualdade entre os homens, que tornariam, os homens mais felizes. Horácio ouvia-o atentamente, mas nele ficava sempre a sua dúvida de montanhês, habituado à vida dura e a crer, excepção feita para o seu deus e almas de outro mundo, apenas naquilo que se vê. Contudo, ao escutá-lo, a sua amizade por Marreta aumentava, uma amizade feita de ternura e de respeito, mais pelo que sentia de generoso na alma do tecelão, do que pelas palavras que ele pronunciava. Parecia-lhe, além disso, que Marreta o compreendia melhor do que os outros e que a ele podia dizer-lhe o que não poderia dizer a mais ninguém.

Começaram a chegar outros operários. Primeiro veio o Belchior, depois o Rodrigo e o João Ribeiro. Marreta arrastou para o meio da casa a mesita de pinho e sobre ela colocou o velho baralho de cartas.

— Joga tu — disse a Horácio.

— Não, não. Jogue vossemecê. Marreta insistiu:

— Eu tenho um jornal para ler.

Os quatro homens sentaram-se. João Ribeiro só o fez, porém, depois de haver estado a cochichar com Marreta a um canto.

Perto das onze horas, já Belchior havia declarado que “esta é a última partida”, Ricardo e Tramagal entraram. Contudo, Ricardo não avançou muito além da porta. Marreta lia, à beira do lume, o jornal e ele chamou-o. Encostados à parede, os dois quedaram-se a falar em voz baixa. De quando em quando, João Ribeiro, levantando os olhos das cartas, contemplava-os, como se soubesse o que eles diziam, ao mesmo tempo que Tramagal, de pé por detrás de Belchior, seguia o jogo.

Há já semanas que Horácio dava conta daquelas conversaçõesm murmuradas entre vários operários e Marreta, como se se tratasse de caso em evolução, do qual ele não devia tomar conhecimento. Pela expressão que via num e noutro, Horácio adivinhava quando eles estavam contentes ou mal dispostos com o que escutavam ou diziam. Aquilo passava-se, sobretudo, nos dias em que Ricardo ia à Covilhã depois do trabalho. Nessa noite não fora à cidade, mas Horácio lembrava-se de que ele havia ido lá na noite anterior e depois do jantar não viera ali.

166

Agora, Ricardo deixava Marreta e dirigia-se a ele:

— Você ainda demora?

— Não. Vou já — respondeu Horácio. — É só acabar este jogo.

Pouco depois, saíam, deixando ainda os outros com Marreta. Ao chegarem a casa e logo que Ricardo abriu a porta, Júlia correu para ele, aos gritos. Estava desgrenhada, o rosto cheio de lágrimas e o choro mal lhe permitia falar.

— O Antero foi-se embora... O Antero foi-se ’embora...

Ricardo pôs-lhe as mãos nos ombros e sacudiu-a, obrigando-a a olhar para ele: —O quê? O que dizes?

— Foi-se embora... Veio -cá buscar as suas coisas e disse que nunca mais voltaria...

HA muito tempo já que, mercê da guerra, as fábricas trabalhavam intensamente. Tudo quanto se tecia se vendia e os industriais andavam contentes do seu destino, comprando quintas e barras de oiro e projectando novas ampliações fabris. Capitalistas com dinheiro morto nos Bancos sonhavam tornar-se industriais também, pois nunca os lanifícios haviam produzido tão grandes fortunas.

Milhares de operários laboravam’, durante o dia, nas fábricas, e, ao fim da tarde, outros milhares vinham substituí-los para trabalhar noite adentro. Ordenava a lei que não soassem sempre para os mesmos as longas horas nocturnas e, assim, em cada semana eles alternavam.

Aquela segunda-feira, quando Horácio ia a entrar na fábrica, Mateus chamou-o e disse-lhe:

— Vá-se embora e volte às cinco. O Boca Negra adoeceu e você vai substituí-lo no turno da noite.

Horácio quedou-se a olhar o mestre, desejoso de lhe fazer perguntas, mas já Mateus lhe voltava as costas, repetindo:

— Apresente-se às cinco.

Horácio saiu, vagarosamente, por entre os últimos operários que entravam. Ia perturbado e ditoso. Boca Negra era um pegador de fios, que trabalhava na máquina ao lado daquela que ele andava como aprendiz. E se ele ia substituí-lo, é porque Mateus o considerava já competente e, decerto, lhe pagaria a féria como a um operário.

Encontrou-se na estrada sem saber como ludibriar o tempo. Guardou o cesto, com a comida, numa taberna e entestou à Covilhã. Percorreu o centro da cidade, para encher o dia livre, e, por fim, sentou-se no jardim da Praça da República. Sentia cada vez maior contentamento e tinha desejo de fazer compartilhar a sua alegria, mas não avistava ninguém conhecido. À hora do almoço, voltou a descer para a Carpinteira e procurou Ricardo no pátio da fábrica onde este trabalhava. Ricardo lá estava, a comer, entre os demais. Ele deu-lhe a notícia, aquela notícia de que desejaria falar longamente, mas Ricardo disse apenas:

— Nesse caso, é preciso mandar-lhe a ceia.

— Não se incomodem. Eu me arranjo.

—Não nos incomodamos nada. Vai lá um garoto.

Ele lançou, então, a pergunta que mais lhe interessava:

— Parece-lhe que me pagarão como a um operário?

— Claro! — respondeu Ricardo, com o seu habitual laconismo.

As quatro e meia, depois de todas aquelas horas impacientes, já ele andava em frente da fábrica de Azevedo de Sousa, ansioso por entrar. Vinham chegando outros operários e, por fim, apareceu Tramagal, que nessa semana laborava, também, no turno da noite:

— Então, hoje, não trabalhaste?

Desde o segundo dia das suas relações, Tramagal tratava-o por “tu” e com aqueles modos despachados, rudes, que tinha para toda a gente. Ele contou-lhe, também, a novidade. Mas, como Ricardo, Tramagal parecia não dar àquilo valor algum, nem admitir sequer que ele pudesse estar feliz. Limitou-se a dizer:

— Coitado do Boca Negra! Que terá ele? Logo que entraram na fábrica, Sampaio apareceu

junto da “self-acting” e assistiu às primeiras pegaduras que Horácio fez. Dir-se-ia satisfeito com o exame, porque se retirou pouco depois, sem lavrar qualquer observação.

À uma hora da noite, quando, finalmente, as máquinas pararam, Horácio continuava alegre: “Agora, que já dera as suas provas, decerto o Mateus, assim que o Boca Negra voltasse, lhe arranjaria um lugar de operário ou ele poderia arranjá-lo noutra fábrica.”

Saiu com Tramagal. E andando, ao seu lado, para a Aldeia do Carvalho, Horácio lamentava, intimamente, que os tecelões nunca trabalhassem de noite, pois sentia a falta da companhia de Marreta. A este poderia ele falar daquilo e ouvi-lo sobre o seu futuro, pois Marreta era diferente de Ricardo e de Tramagal.

A noite estava fria. O mês de Dezembro acercava-se do fim e a serra arrefecera.

— Não tarda, teremos neve a valer!—vaticinou Tramagal.

Efectivamente, na manhã seguinte, quando os operários entravam para o trabalho diurno, o céu mostrava-se plúmbeo, baixo, fechado. E, ao meio da tarde, a neve principiou a cair. Mas, durante alguns dias, a neve não quis outros espaços além dos pontos mais altos da montanha. De Lisboa começaram a chegar turistas. Pedro disse, na fábrica, ter visto passar na Covilhã vários rapazes e raparigas com os seus esquis em cima dos automóveis: “Iam lá duas ”gajas” que eram de se lhe tirar O’ chapéu...” E, ao evocá-las, os olhos dele luziam de sensualidade.

O frio continuava a aumentar. Por fim, a neve estendera-se desde os topes da serra até às suas faldas. Um dia, quando os operários da Covilhã e da Aldeia do Carvalho saíram de suas casas, viram todas as encostas, todas as dobras do terreno, todos os caminhos vestidos de branco. A cidade, num esporão da serra, parecia obra de fantasmagoria, com telhados e perfis inverosímeis. E, na aldeia, tudo estava também assim extravagante, enterrando-se na neve os pés dos homens que, pela estrada, se dirigiam às fábricas.

As cinco da tarde, quando abandonaram o trabalho, continuava a nevar. Eles saíam para a obscuridade da noite que descia sobre o branco da terra e outros entravam para as fábricas, enregelados.

Pisando a neve que cobria a rampa da Covilhã, Pedro, atrás de outros operários, ia pensando nas duas raparigas de gorro negro que ele divisara dentro de um automóvel. Deviam estar, àquela mesma hora, depois de voltar do esqui, a aquecer as mãos junto da salamandra que ele vira, um dia, lá em cima, no hotel das Penhas. À gulosa mocidade de Pedro vinha o desejo de dormir, ao menos, com uma delas, se não pudesse ser com ’as duas. Mas logo ele via outras mãos tirando as luvas de lã e estendendo-as também para a salamandra as mãos de todos os rapazes que tinham passado, nos automóveis, para as Penhas da Saúde. E entristecia como se lhe roubassem alguma coisa que já era dele. Depois, pensou noutra rapariga que ele vira passar, dois meses antes, para o novo sanatório que havia lá em cima. A essa hora, ela não devia estar a aquecer as mãos e sim a tomar a sua temperatura, pois a ele haviam-lhe dito que, no sanatório, todos os tuberculosos metiam o termómetro sob o braço quando findava o dia. Parecia-lhe que aquela podia ser mais dele do que as outras, mas aquela não agradava tanto à sua imaginação como as que levavam gorro negro e esquis sobre os automóveis. E cada vez o sonho gelava mais sobre o gelo existente na declividade que ele ia vencendo entre a Ribeira da Carpinteira e a Covilhã. Por fim, quedaram, apenas, ante os seus olhos, os vultos escuros de outros operários, que, de ombros encolhidos dentro de velhas roupas, marchavam na neve, encosta acima.

Entretanto, lá em baixo, junto da ribeira, as fábricas prosseguiam no labor. Horácio e os demais pegadores de fios corriam atrás das carruagens de fiação. Em frente, Tramagal vigiava a sua penteadeira. Mais além, por todo o grande quadrilongo, os operários seguiam ou intervinham nos maquinismos.

Durante o Inverno, como o sol desaparecia logo no começo do trabalho, essas horas nocturnas tornavam-se infindáveis. O rumor das máquinas volvia-se mais nítido e, também, mais monótono, propício a um sono que não podia consumar-se. Mesmo onde a luz era forte, havia algo fúnebre, uma claridade de vigília, de atmosfera doente. Dir-se-ia que as máquinas produziam porque tinham de produzir; que a mecha corria porque tinha de correr; que as canelas se enchiam, porque tinham de encher-se; que tudo trabalhava como sob uma fatalidade inexorável, alheia ao próprio objectivo da produção. Mais do que noutras horas, os homens pareciam autómatos, simples peças das máquinas, movimentando-se sob aquela mesma vontade fria que movimentava a fábrica.

À uma hora da madrugada dava-se, enfim, pausa no ruído mecânico. A fábrica parava de repente, como se obedecesse a um encanto igual ao que comandava o seu movimento. Ouviam-se os passos apressados dos homens no cimento e viam-se as figuras que transpunham a porta, levantando a gola dos casacos. Raros falavam e se alguém o fazia era com duas ou três palavras soltas, que dispensavam réplica. Só havia neles o desejo de chegar, rapidamente, a casa e de esquecer aquilo.

Cá fora, com noite fria de transir, eles, encolhendo o pescoço, abaulando o dorso, metiam, à estrada coberta de neve. O gelo rangia sob os sapatos as figuras iam-se diluindo nas trevas, cada qual procurando caminhar mais depressa na noite branca e negra.

Horácio, Tramagal e Malheiros iam também calados e em fila. A certa altura, porém, Tramagal desalinhou os seus passos e dirigiu-se para a margem da estrada. A urze que ele fixara de tarde, estava quase transfigurada. A mão de Tramagal começou a afastar a neve e, em breve, tocava a face lisa do frasco que ele havia escondido ali. Malheiros e Horácio já iam longe.

— Eh! Esperem aí!—gritou, enquanto corria para eles.

Tramagal bebeu um trago e suspirou de satisfação. Antigamente, ele levava a aguardente para a fábrica, contra os regulamentos. Depois, para fugir à tentação de beber durante o trabalho e não ouvir as admoestações do mestre, que chegara a ameaçá-lo de despedimento, nem escutar as frequentes censuras de Marreta, decidira ocultar a aguardente na estrada, nas noites em que trabalhava. Os seus companheiros consideravam-no “dos velhos tempos” e se uns o criticavam pelo vício, outros riam-se do seu cuidado em arranjar, de cada vez, um novo esconderijo, para que ninguém lhe roubasse o frasco.

Agora, Tramagal oferecia a aguardente a Horácio e a Malheiros. Eles beberam e continuaram a marchar. Os seus pés enterravam-se na neve e do imenso vulto da serra, branquejando sob as trevas, descia um ar cortante.

— Vá uma noitinha de rachar, nem ? — comentou Malheiros.

Ninguém lhe respondeu. E Malheiros pensou, então, que se havia de dar graças a Deus por as fábricas fazerem dois turnos, pois isso era sinal de que os operários teriam trabalho para todos os dias úteis da semana.

Subitamente, os três homens viram riscos de fósforos, muitos fósforos que se acendiam e se apagavam na estrada. Logo, o jacto luminoso de uma lâmpada de algibeira, que avançava, revelando trechos de várias figuras e se fixava, por fim, no chão.

Horácio, Malheiros e Tramagal apressaram ainda mais o passo. Pouco depois, a luz da lâmpada cortava-lhes o rosto, num voo rápido. Os operários que haviam partido à frente deles estavam aglomerados em volta de um corpo que jazia na estrada. Era um homem. Um velho. Tinha as pernas muito encolhidas, de joelhos quase tocando o ventre, e os braços encostados ao tronco, como se se encontrasse numa caixa menor do que o seu corpo.

— Parece que ainda está vivo — dizia um dos operários.

Ravasco, que lhe apertava o pulso, desistiu do exame:

— Não sei nada disto...

— Deixa-me ver — interveio um terceiro. Pôs-lhe a mão sobre o coração e, depois, ergueu-se: — Está morto e bem morto.

Mas ainda continuavam as dúvidas. O homem caíra sobre o lado direito e a neve fora crescendo em seu redor e criando uma cavidade para ele. Tramagal baixou-se e voltou o corpo. À luz da lâmpada surgiram uns olhos frios, vítreos, que pareciam contemplar a todos e a ninguém. Alguns dos operários recuaram, com horror. Ouviram-se ao mesmo tempo várias vozes:

— Está morto...

Logo um dos presentes pediu:

— Torne a alumiar-lhe a cara. Parece-me que conheço este homem...

— E eu também...—disse um outro.

A luz volveu sobre aqueles olhos mui abertos e embaciados.

— E é que conheço!... Ora deixe ver... O outro adiantou-se:

— É um do Teixoso. Um que foi cardador, há uns dez anos.

— É esse mesmo. Há muito tempo que eu não o via...

— Nem eu. Depois que o despediram da fábrica, ele andava às esmolas e botava até longe...

—Mas por que o mataram? — perguntou Tramagal.

Houve um súbito silêncio.

— Se calhar... — arriscou uma voz — foi um salteador. ..

— Ora! —duvidou outro.— A um velho que andava a pedir...

— Sei lá! Há gente para tudo! E, às vezes, os mendigos têm dinheiro.

João Ribeiro, que sofria da laringe e não gostava de falar em noites assim, para que o frio não lhe irritasse a garganta, quebrou a sua mudez e pediu a lâmpada. Com a luz foi inspeccionando o cadáver: a camisa esfiapada e negra de sujidade, o casaco leveiro, cheio de remendos, as calças rotas e os pés nus.

— Não... Aposto que ninguém o matou... — disse. E volveu a despejar a luz sobre o pescoço de enrugada pele e sobre a cabeça calva, cujo velho chapéu estava caído ao lado. — Matou-o a falta de roupa. Ele morreu de frio, é o que é! Se não, depois veremos. Tanta lã na Covilhã, tantos tecidos e, afinal...

A garganta de João Ribeiro exacerbara-se. Ele começou a tossir e passou a lâmpada ao seu dono. Houve outro silêncio. Cada qual principiou a sentir, sobre o corpo, menos roupa do que na realidade tinha — e mais frio. Depois, uma voz perguntou:

— Vamos deixá-lo aqui? Surgiram hesitações:

—’Não... Isto é...

— O melhor é ir alguém à Covilhã prevenir a polícia.

Os homens consideraram os cinco quilómetros que os separavam da cidade, encararam a noite nevosa e não responderam logo ao alvitre.

— Vou eu—declarou João Ribeiro.

— Tu, não! —protestou Tramagal.— Tu vais é já para casa, que isto faz-te mal. Eu dou um salto até lá.

Então, muitos outros se ofereceram para o acompanhar.

— Basta um, que a minha aguardente não dá para mais de dois... Tu, Augusto!

Eles partiram e os outros voltaram a hesitar:

— Vamos deixá-lo aqui sozinho?

— Ora! Para que precisa de companhia, depois de morto?

Discordâncias foram pronunciadas. A lâmpada estava apagada, porque o dono entendera ser desagradável continuarem a ver o cadáver. Na escuridão mal se adivinhavam os circunstantes e somente pela sua voz se identificavam. Da noite vinham antigas superstições e uma espécie de dever para com a morte. E esse dever conflituava com o egoísmo de muitos deles, com o frio que os impelia para casa.

O outro teimou:

— Se ele tem de ficar sozinho quando for enterrado, que mal há em que fique já? Ou vocês estão resolvidos a ser enterrados também, para lhe fazer companhia na cova?

Aquela voz pareceu sacrílega aos mais timoratos: “Era o bruto do Ravasco, pior ainda do que o Tramagal. Não havia que lhe fazer caso” — pensaram.

Em volta deles a noite continuava cheia de trágicas sugestões. Algumas vozes murmuravam, nas trevas:

— Eu fico... Eu também... Ravasco tornou, sarcástico:

— Uma hora para a Covilhã, uma hora da Covilhã para aqui, uma hora para a polícia resolver-se a vir... Uma hora? Qual o quê! Se fosse para prender um vivo, a polícia vinha logo. Agora por um morto, que demais a mais não é rico! Por um pobre de pedir... Nem de manhã! Vocês pensam que a polícia é estúpida? Meus senhores, boa noite! Não quero rebentar com uma pneumonia...

Ouviu-se, então, a voz de Belchior, da Fábrica Nova, que até aí estivera calado. Era a voz mais forte e decidida de quantas haviam soado na noite:

— Ele foi cardador e eu sou cardador também. Não vou deixá-loaqui abandonado. Mas também não fico aqui com ele. O Ravasco tem razão: a noite não está para brincadeiras. vou levá-lo comigo!

Surgiram novos protestos

— E a polícia? Não se pode mexer nas pessoas encontradas mortas sem a polícia as ver primeiro. Não, isso não tem jeito nenhum!

— Ora! Fui eu que o matei? Alguém é capaz de dizer que fui eu? Aqui ele não fica! Vou levá-lo. Se ninguém quer tomar a responsabilidade comigo, tomo-a eu sozinho.

Continuavam as discordâncias. Mas já ninguém esperava convencer Belchior, que todos sabiam ser o mais teimoso de quantos trabalhavam nas margens da Carpinteira.

O vozeirão de Belchior rompeu a noite:

— Tramagal! Tramagal! — Os gritos foram ecoando por todas as quebradas da serra, até à várzea.— Tramagal! Tramagal!

— O que é que lhe queres?

— Quero que aqueles palermas não vão morrer de frio por aí fora. Quando chegarmos à aldeia, faz-se abrir a Casa do Povo e telefonamos para a polícia. Deixa-se o pobre na igreja e a polícia que venha quando lhe dê na gana.

Todos se admiraram de que nenhum deles se houvesse lembrado, até aí, do telefone. Um homem saiu a correr em direitura à Covilhã, gritando por Tramagal e Augusto.

Entretanto, Belchior pedia:

— Acende lá essa lâmpada! — E, mal a luz surgiu, dobrou-se sobre o cadáver: — É pena não haver uma padiola. Mas não faz mal... Levo-o às costas. Ele era um cardador como eu.

Alguém alvitrou:

— Abre-se um sobretudo e põe-se o corpo em riba...

— Boa ideia! —exclamou Belchior. Mas logo hesitou: — O meu não pode ser. Está tão velho que se rasgava com o peso e deixava cair o morto...

—.O meu tem buracos, senão estava às ordens... — disse João Ribeiro. Outras vozes se seguiram. Todos, menos Ravasco, diziam a mesma coisa. Alguns despiam o sobretudo, para lhe considerar a resistência, à luz da lâmpada.

— Está num fio... — concluíam.

Ravasco pressentia que os outros pensavam no seu sobretudo novo e justificou-se:

— O meu aguentava, lá isso aguentava... Mas se a minha mulher sabia que ele servira de padiola para um morto, nunca mais mo deixava vestir. E eu não tenho dinheiro para comprar outro...

Houve novo silêncio entre eles. Belchior estendeu as suas rudes manápulas e, com elas, agarrou os braços inteiriçados do cadáver. Levantou-o ligeiramente e voltou a deixá-lo pousar na neve. Os olhos do morto pareciam seguir os gestos dele.

Está leve... O pobre perdeu as carnes antes de morrer... O diabo é que não sei como hei-de ajeitá-lo nos meus ombros, assim encolhido como ele está...

Então, Ravasco aproximou-se. Tirou, lentamente, o sobretudo e ofereceu-o a Belchior.

— Pega lá...

Todos sabiam que Ravasco andava, há muito, adoentado, com aquilo de não poder reter águas e que, ultimamente, dera em emagrecer e em tomar uma cor baça. Belchior recusou:

— Não quero! Já que a tua mulher é assim, não vale a pena passares o Inverno ao frio... Eu levo-o às costas!

Ravasco insistiu. E, com voz levemente humilhada, confessou:

— Não era só pela minha mulher... Era também por mim. Pode ser lavado, não há dúvida... Mas, não sei porquê, vai custar-me a vesti-lo depois... Mas acabou-se! Agora faço questão!

Belchior continuava a recusar.

— Faço questão, já te disse! —exclamou Ravasco. — E ele próprio estendeu o sobretudo ao lado do cadáver. João Ribeiro auxiliou Belchior a colocar o morto em cima. Quatro sombras agarraram nas extremidades do casacão e com as demais sombras puseram-se em marcha.

A neve continuava a cair. Aqui e além os sapatos dos homens afundavam-se nela. O da lâmpada ia à frente e a débil luz deixava ver as pegadas que ele próprio abandonava na neve. Atrás das dele iam ficando as dos outros, metidas nas trevas, até que a neve as apagasse.

De quando em quando, Ravasco detinha-se, desabotoava a braguilha e soltava uns pingos na berma da estrada. Depois, numa ligeira corrida, alcançava os companheiros.

Todos os homens caminhavam em silêncio. Subitamente, porém, Belchior disse, com uma voz mais suave do que a habitual, uma voz quase enternecida:

— Eu conheci-o mal lhe deitei o olho. Mas, ao vê-lo, fugiu-me a fala. Ainda um dia destes tinha pensado nele. Era um bom tipo. Eu até namorisquei a filha que ele tinha... Ele fingia que não percebia nada, mas eu estava farto de saber que ele não ia contra eu ser seu genro... Nesse tempo, eles viviam na Covilhã e trabalhavam no outro lado, na Degoldra. Quando o despediram da fábrica, por estar velho, valeu-lhe o salário da rapariga, que era fiandeira. Vocês não se recordam dela? Uma magrita, que tinha sardas?

— Eu tenho uma ideia — disse uma voz. — Ela não coxeava um pouco?

— Coxeava. Era essa mesma. Era muito fraca e o seu salário não dava para os dois comerem e ela tratar da saúde. Para a aliviar, ele fazia os trabalhos da casa enquanto ela estava na fábrica. Lavava a roupa, preparava a comida, fazia tudo. Ele não via senão a dae tinha razão, porque sem aquela filha ele morreria de fome... Mas, um dia, o bicho deu nos pulmões da rapariga. Meteram-na na Misericórdia. Ainda fui vê-la várias vezes e levar-lhe algumas coisas. Mas da última vez já ela não tinha olhos para me ver. O velhote estava à porta. Chorava que nem uma criança. Atirou os braços a mim e chamou-me seu filho. Depois disse-me: “Vocês iam ser muito felizes. Eu sei que vocês iam ser muito felizes.”

A voz de Belchior embargou-se-lhe. Os homens continuavam a marchar com seu fardo e a lâmpada a riscar na neve uma trémula vereda de luz.

Eu fui ao funeral e, dias depois, fui ver o velhote. Eu levava vinte mil réis para lhe dar. Quando cheguei, encontrei uns homens a tirar da casa dele todos os trastes que lá havia. Ele disse-me que tinha vendido tudo. Que não podia continuar ali, porque estava sempre a ver a filha. Eu tirei, então, do bolso os vinte mil réis, mas ele não os quis receber. Mostrou-me uma nota de cinquenta, que lhe tinham dado pelos tarecos, e disse-me que não me preocupasse com ele...

— Cala-te lá com isso! —pediu Ravasco.— Bem basta irmos, aqui, com o corpo! Ainda por cima estares a lembrar essas coisas!

Belchior abreviou:

— Foi então que ele foi para o Teixoso...

Caiu outro grande silêncio entre os homens. De quando em quando, porque as mãos ao léu em breve enregelavam, eles revezavam-se nas pontas do sobretudo onde ia o cadáver e prosseguiam na marcha. Depois do que Belchior contara, parecia-lhes que o morto não ia bem morto, que o sobretudo ia cheio de sentimentos, que uma rapariga definhada e com muitas sardas ia também lá dentro, invisível mas sensível.

Ao entrarem no povoado, Ravasco, como se quisesse absolver-se da sua primeira atitude, adiantou-se para acordar o sacristão, que devia abrir a igreja.

Pouco depois, a porta do pequeno templo, erguido no centro do lugar, descerrava-se, rangendo. Lá dentro tremulava uma lâmpada sonolenta e, à sua luz difusa, os homens pousaram o cadáver no chão. Belchior olhou para o sobretudo de Ravasco e para a toalha branca, com bordados, que cobria o altar, lá ao fundo. Parecia-lhe, porém, sacrilégio privar os santos daquele ornamento. João Ribeiro adivinhou as hesitações dele e avançou para o altar. Levantou as jarras com flores de papel, depois as imagens e retirou a toalha. Os homens continuavam calados. Quando a toalha foi estendida no soalho, eles depuseram, sobre ela, o cadáver. João Ribeiro entregou o sobretudo a Ravasco e voltou-se para todas aquelas caras, às quais a vaga luz da lâmpada dava expressões rudes, opacas, de esculturas feitas a podão:

Eu não quis contrariar o Belchior, mas não há dúvida que ainda pode haver algum sarilho com a polícia... Acho que ele deve dizer, quando telefonar, que fomos todos nós que resolvemos trazer o morto para aqui. E, amanhã, se nos perguntarem, devemos dizer a mesma coisa. Todos nós devemos tomar a responsabilidade.

João Ribeiro contemplou os presentes. Nenhum deles articulou uma só palavra, mas o seu silêncio era aprovativo. Então, Belchior pediu a João Ribeiro:

— Telefona tu, que sabes dizer as coisas melhor do que eu.

O bando começou a dispersar-se. João Ribeiro e Belchior foram chamar a Rosalina, para que viesse abrir a Casa do Povo, de que ela era empregada e onde se encontrava o posto telefónico da aldeia. Horácio deixou-os e dirigiu-se para o casebre de Ricardo. Na viela cruzou-se ainda com Tramagal, Augusto e o outro homem que fora por eles. Depois de os informar que o morto ficara na igreja, meteu na porta de Ricardo a chave que Júlia lhe dera desde que ele andava no turno da noite e começou a subir a escada, evitando fazer ruído. Havia ali grande silêncio, que naquela semana Ricardo trabalhava de dia.

Em cima, Horácio despiu-se com rapidez, e, soprando a vela que havia acendido, meteu-se na cama. Ao envolver-se nas mantas, teve uma sensação de alívio, uma sensação que ia aumentando, em prazer, à medida que ele ia esquecendo. Cada vez aquela sensação de calor lhe era mais agradável. O corpo encolhia-se de volúpia quando ele recordava o frio que acabava de sofrer. Embrulhou-se ainda mais nos cobertores e dispôs-se a dormir. Mas a figura do morto volveu aos olhos dele, agora incomodamente. E, com ela, as palavras de João Ribeiro sobre a lã, quando descobrira que o velho tombara de frio. Horácio começou a ver, nas trevas, lã por toda a parte, lã a cair do corpo das ovelhas, na época da tosquia, lã fofa, depois lã prensada, montes de lã nas fábricas, na lavagem, na carbonização, na escarduçagem, homens a labutar sempre com a lã até ela passar às máquinas de cardar, até tornar-se em Mechá e perder o seu aspecto original. Durante muito tempo a lã fora, para ele, apenas uma coisa que se vendia, aos quilos, que dava dinheiro aos donos das ovelhas, e, depois, se comprava aos metros. Habituado a dormir ao relento no Verão, a cobrir-se com a manta quando esfriava, a abrigar-se de dia com os safões e o capote, nunca se detivera a relacionar esses elementos da sua defesa física com o próprio rebanho que ele pastoreava. Os safões eram uma pele de ovelha com a sua lã pegada, mas quando ele criara entendimento já encontrara safões em seu redor, pois os pastores costumavam usá-los, tal como usavam um cajado, certamente desde o princípio do Mundo. Agora, porém, a lã aparecia-lhe com outro aspecto. E até o rebanho do Valadares, que ele vira, durante muito tempo, como simples cabeças de gado com um valor em dinheiro, passava, agora, nos seus olhos, de maneira diferente, como se as ovelhas tivessem perdido ossos e carne, patas e cabeça, e ficassem só lã, casulos em forma de ovelhas, que depois de transformados serviam para aquecer os homens. Mas por entre toda aquela lã surgia-lhe sempre, teimosa, a lembrança do velho estendido na neve e de cada vez que a figura se apresentava, com seus olhos vítreos, mui abertos, ele sentia calafrios na quentura da cama. Voltou-se para a direita, voltou-se para a esquerda; o sono não pegava e a volúpia inicial fora substituída por mal-estar. Então, ele acendeu a vela, para matar a obsessão, para deixar de ver a lã e o morto — a lã e os homens que não podiam tê-la.

Na casa e lá fora, e parecia, até, que no Mundo inteiro, continuava a haver um grande silêncio. Horácio pegou num dos livros que Marreta lhe emprestara e começou a lê-lo. Leu-o, a princípio, para esquecer o morto e leu-o, depois, uma hora a seguir a outra, enquanto a vela durou, interessado pelo que o próprio livro lhe dizia. E só na antemanhã adormeceu.

As cinco da tarde, quando entrou na fábrica, Mateus comunicou-lhe:

- O Boca Negra já está bem e vem na segunda-feira. Você volta para o turno de dia.

Horácio hesitou, tornou ahesitar e, por fim, encorajou-se:

— Volto para aprendiz?

— Não tenho outro lugar — respondeu Mateus, entrando no seu gabinete envidraçado.

A parte aquele sábado, em que não pudera ir, por trabalhar de noite, em todos os outros, mal abandonava a fábrica, Horácio dirigia-se a Manteigas. A princípio, para utilizar a camioneta que partia da Covilhã às quatro e quarenta e cinco, ele solicitava a Mateus que lhe permitisse sair meia hora mais cedo. Desde, porém, que a Júlia lhe aumentara o preço da hospedagem, começara a minguar-lhe o dinheiro para o transporte. Por isso, e porque era sempre de mau grado que o mestre lhe consentia deixar o trabalho antes dos outros, decidira ir a pé. E, às cinco da tarde, em vez de caminhar para a Aldeia do Carvalho, metia à montanha, direito a Manteigas. Eram quatro puxadas horas quando não havia neve, cinco e até mais quando ela cobria encostas e píncaros, de onde os próprios lobos haviam fugido. Algumas vezes, durante o percurso, ele irritava-se ao lembrar-se de que ia ali, a esfalfar-se serra acima, somente pela diferença de um quarto de hora na fábrica e pela falta de alguns escudos. “Bem lhe bastava ter de calcorrear aquilo à volta, por não haver camioneta de Manteigas para a Covilhã nem ao domingo, nem à segunda-feira.” Esse enervamento durava, contudo, pouco tempo. Na semana seguinte, novamente ele desejava que chegasse o sábado e era rindo que, ao entrar em casa, ouvia a mãe amaldiçoar “aqueles caminhos do demónio” que ele tinha de percorrer sozinho.

— Rapazes na tua idade ’não têm juízo nenhum! Se fosse por nós, não virias, eu bem o sei! acrescentou a senhora Gertrudes.

Ele continuava sorrindo e, às vezes, enternecia-se, ao verificar que os pais não tinham ceado, que estavam à sua espera há muito tempo já, com a panela à beira do lume, para que não esfriasse nem fervesse. Os três comiam, ele contava histórias da Aldeia do Carvalho e, em seguida, deitava-se deitava-se com a ânsia de que a noite acabasse, de que viesse a manhã, porque, aos sábados, como arribava já tarde a Manteigas, pouco falava com Idalina quando passava à sua porta.

Assim, os domingos pareciam-lhe os dias mais felizes da sua vida, sobretudo antes de os viver. Era sempre um alvoroço a sua chegada junto de Idalina, mas, depois, com o decorrer das horas ao seu lado, a felicidade ia-se transformando em inquietação. Horácio sentia que as palavras dela estavam cheias de hesitações, de reservas, que ela evitava falar-lhe do futuro, como se não acreditasse nos projectos dele, nem mesmo nessa casita que fora a razão de terem adiado o casamento. Uma tarde, tendo ele admitido que poderiam casar-se no ano seguinte, ela desatara a chorar — e, muito instada embora, não quisera explicar o motivo das suas lágrimas. As vezes, por uma e outra palavra, Horácio adivinhava disputas entre ela e os pais e enfurecia-se contra os velhos. Logo, começava a valorizar as suas possibilidades vindouras a valorizá-las muito mais do que ele próprio nelas acreditava. Idalina ouvia-o em silêncio, parecia mesmo tornar-se confiante, como da vez em que ele lhe dissera ter substituído, durante alguns dias, o Boca Negra. Pouco depois, porém, os seus olhos voltavam a entristecer. Horácio, então, amargurava-se perante a dificuldade de dar imediata solução à vida deles. E esse mal-estar crescia quando topava os pais de Idalina, que respondiam friamente às suas saudações e pareciam querer evitar qualquer outra fala.

Na sua própria casa, Horácio pressentia que a mãe lhe ocultava alguma coisa. Ela mostrava-se interessada pela maneira como ele vivia na Aldeia do Carvalho, pela situação da família de Ricardo, pela sua convivência com Marreta e Manuel Peixoto, por outras pessoas e episódios que haviam transitado nas suas conversações anteriores. Um ou outro domingo, interrogava-o, também, era certo, sobre o tempo que ainda faltaria para ele ser definitivamente operário. Mas, ao fazê-lo, a senhora Gertrudes perdia toda a espontaneidade verbal. As suas palavras, como as de Idalina, enchiam-se de reticências que ela não sabia disfarçar — e que ele apreendia facilmente. Mesmo nesses momentos, a mãe jamais se referia ao casamento. Se o nome de Idalina surgia entre eles, a senhora Gertrudes creditava-lhe um elogio e não ia mais além; se dos pais dela se tratava, a sua boca comia um rápido silêncio e mudava para outro assunto.

Um domingo, ao entrar em casa, depois de ter deixado Idalina, Horácio, como encontrasse sozinha a senhora Gertrudes, pusera-lhe a questão. Que havia, que não havia, ele já não entendia nada e tinha de saber o que se passava. Até a Idalina não lhe parecia a mesma e, às vezes, ele julgava que andava ali a fazer figura de parvo.

A mãe não respondeu logo.

— Isso são ideias tuas... — disse, mais tarde. — Pois o que havia de haver?

Horácio insistiu, barafustou, gritando que o tratavam como a uma criança.

Que alguma coisa havia, estava ele farto de perceber afirmou.

Perante a teimosia e a exaltação do filho, a se nhora Gertrudes decidiu-se:

— Não há nada... Eles não acreditam que tu possas alcançar o que desejas... E não têm ganas de esperar...

— Eles? Quem?

A senhora Gertrudes não levantou a pergunta.

— A Idalina também? — voltou ele a interrogar, ansiosamente.

— Não. A rapariga, não — tranquilizou-o a mãe. — De mais a mais, tu deves sabê-lo melhor do que eu... Ela é boa pequena. Cada vez gosto mais dela.

— Mas, então...—Horácio deteve-se, de olhos fixos no soalho. Ao seu lado, de pé, olhando-o, consternada, a mãe respeitou-lhe o silêncio. Por fim, ele volveu: —E? Vossemecê crê, também, que eu não consiga?

A senhora Gertrudes vacilou, atormentou-se mais e disse, esforçando-se por dar ligeireza à sua voz:

— Pois claro que hás-de conseguir! Por que não? Estás novo, tens saúde e vontade. Se não arranjares essa tal casa, arranjas outra. Não te aflijas por isso!

Horácio continuava a pressentir que alguma coisa ficara por dizer e que a mãe pretendia apenas consolá-lo.

— Não percebo... — murmurou. E voltando-se para a senhora Gertrudes: — Como é que eles sabem que eu não arranjo nada, se ainda há tão pouco tempo entrei para a fábrica? Que pressa é essa?

A mãe dominou-se um momento: resolveu, depois, falar, e, de novo, se conteve; finalmente, soltou:

— Não queria arreliar-te mais do que andas, mas, já agora, acho melhor dizer-te tudo. Esteve aí um rapaz de Gouveia, que começou a arrastar a asa a Idalina...

Horácio levantou-se bruscamente:

— O quê? O que está vossemecê a dizer?

— Sossega... Não é caso para te ralares. A Idalina não lhe ligava importância nenhuma — mesmo nenhuma. A mãe dela é que não descansava. Parece que o rapaz tem alguma coisa de seu e a Januária não se fartava de lhe meter a filha à cara. Mas a Idalina portou-se bem. Tanto que ele, depois de estar aí uns tempos, foi-se embora e nunca mais voltou.

— Eu logo vi que havia alguma coisa! Agora já compreendo tudo... Quem é ele?

— Que te importa? O rapaz estava aí e procurou entreter-se. Se a coisa pegasse, pegava; se não pegasse, paciência! Se tu estivesses no lugar dele farias o mesmo...

Horácio continuava sombrio: —’Mas quem é?

— Ora, ora! Deixemo-nos de histórias! Ele não te conhecia; não te devia respeito. Viu um balmito de cara e piscou-lhe o olho; ela deu-lhe para trás e tudo se acabou. Que mais queres?

— Mas vossemecê não vê que eu venho a saber quem ele é?...

— Pois sabe! És teimoso como o teu pai. Se tu fizesses alguma coisa ao rapaz, eu era a primeira a renegar-te. Se ele fosse teu amigo, teu conhecido, está bem, podias queixar-te. Mas, assim...

—’É o que eu digo! Tenho andado aqui como um parvo! Por que não me preveniram há mais tempo?

— Para quê? Se eu visse que havia alguma coisa séria... Mas, ao contrário, tu é que ficaste a ganhar... A princípio, ainda me apoquentei... Tanto que, um dia, não me pude conter e, como a rapariga passasse aí à porta, chamei-a. Eu tinha ouvido uns zunzuns, e quis pôr as coisas em pratos limpos. Ela, coitada, desfez-se em lágrimas e contou-me tudo. Dela, sim, eu tive pena, porque, aperreada pelos pais, deve ter sofrido bastante. Agora tu, até fizeste boa figura. Todo o povo ficou sabendo que a Idalina não te troca, mesmo por um rico.

Ele ouvia e remoía, despeitado, odiento, a atitude da tia Januária e do marido.

— Que velhos desavergonhados!—exclamou.— Onde se viu uma coisa assim? Terem. a filha comprometida comigo e andarem a oferecê-la a outro!

A senhora Gertrudes ficou, um momento, silenciosa. Depois disse, vagarosamente:

— Bem... Há que ter em conta como as coisas são. Não que eu goste da Januária... Para dizer a verdade, até não fiquei contente quando tu começaste a namorar-lhe a filha. Mas resolvi não me meter no caso. A tua avó não queria que eu casasse com o teu pai e, afinal, eu dei-me bem com ele. Nunca me zanguei com a Januária, mas também nunca simpatizei com ela. E, agora, mal nos falamos. É “Salve-a Deus” para aqui, “Salve-a Deus” para acolá — e mais nada. Mas há que ter em conta o que teu pai diz e com razão. Eles são muitas bocas a sustentar. Os filhos vão crescendo e cada vez são maiores as despesas. E se eles ainda tivessem meios! Mas não; eles vivem pior do que nós. A Idalina está uma mulher feita e precisa de arrumar a sua vida. Quando ela trabalha nos campos, bem vai... Sempre auxilia... Mas quando não arranja trabalho, que é a maior parte do tempo? Há que ver as coisas... Claro, se eu estivesse no lugar da Januária, parece-me que seria diferente dela. Mas ninguém pode dizer: “Desta água não beberei.”

Horácio sentou-se, fimcou os cotovelos sobre os joelhos e apoiou a cara nas mãos. -Os seus olhos estavam fixos no lume, mas não viam o lume.

A senhora Gertrudes continuou:

— No dia em que a Idalina esteve aqui e se pôs a chorar, o teu pai disse-lhe que estava resolvido a vender uma das nossas courelas, para vocês se casarem e acabar-se com isto. Eu também já estava por tudo, mesmo sabendo que, se nos desfizéssemos da terra, ficaríamos de pernas quebradas. Mas a rapariga garantiu que não queria de maneira nenhuma tal coisa e que esperaria o tempo que fosse preciso.

Horácio ia-se tranquilizando. A mãe continuava a falar, a recomendar-lhe paciência, mas ele já mal a ouvia. Uma maior ternura por Idalina enchia-lhe, agora, a cabeça e o peito. O tio Joaquim entrou soprando o frio da noite. A senhora Gertrudes desatou a pairar sobre outra coisa e depois colocou a ceia na mesa. Horácio olhou para o velho despertador, que estava dependurado na parede. Eram quase oito horas, ele considerou que já não chegaria à Aldeia do Carvalho antes da meia-noite. Quis comer depressa, mas o apetite encolhia-se-lhe.

A mãe seguia-o, com o olhar. Ele deixara na tigela metade do caldo.

— Não quero mais! — disse, quando a senhora Gertrudes lhe trouxe o tassalho de presunto e as batatas que havia cozido.

— Come! Então tu vais ficar assim?

Ele tentou ainda, mas as fêveras prendiam-se-lhe na boca.

— Não quero mais — tornou a afirmar.

A senhora Gertrudes suspirou de tristeza:

— Que raio de vida a tua! —E, suspirando sempre, acendeu a lanterna que ele devia levar.

Horácio saiu, a grandes passadas, para a noite. Cá fora, a sua ternura por Idalina continuava a subir. Ao lembrar-se de como, ultimamente, ela lhe apertava, em silêncio, as mãos, comovia-se mais. “Coitadita, estava como a pedir protecção, mas só agora ele sabia isso.” Sofria o desejo de tornar a vê-la, de a afagar ternamente, de lhe dizer que lhe queria muito — agora mais do que nunca. E, pensando nela, parecia-lhe que o próximo domingo é que seria o mais feliz da sua vida.

Toda a manhã seguinte, na fábrica, ele se entregou àquele mesmo negrume de alma que lhe havia tirado o sono durante a noite e lhe envenenava, agora, as horas de trabalho. A sua atenção desgovernava-se para outra coisa que não fosse aquilo e até Pedro, de mau humor, o advertira, já por duas vezes, de negligência. Mas ele não podia evadir-se da apoquentação. A ideia de que outro andara rondando as graças de Idalina e que poderia voltar a fazê-lo, que nos pais dela encontraria estímulo, incandescia-lhe os nervos, entre o frio ruído das máquinas. “Ele tinha de casar o mais depressa possível! Não havia dúvida de que Idalina resistira, mas se demorassem muito tempo a casar, quem sabia lá? Ele só a via no fim de cada semana, enquanto os pais tinham todos os dias para serrazinar-lhe os ouvidos. O outro possuía bens e talvez fosse, até, mais desempenado do que ele. Idalina podia acabar por gostar desse tipo de Gouveia. Desse ou de outro qualquer. Tinha-se visto isso muitas vezes.” Rematava sempre: “É preciso não demorar muito!”

Lançava se a lavrar cálculos, mas de nenhum extraía consolo. O que recebia como aprendiz dava apenas para a comida e a dormida em casa de Ricardo e para os cigarros. Por ali não podia fazer nada. Fora pena não ter aprendido, com o pai, alguma coisa de sapateiro, pois, agora, nas horas livres, sempre podia ganhar uns vinténs. Era certo que já pedira a Manuel Peixoto, a Marreta e a outros que, se aparecesse alguém que precisasse de trabalho de enxada, nas horas que ele tinha livres, o recomendassem. Mas mesmo isso era difícil, logo lhe tinham dito, porque ali, à parte um ou dois, todos os demais amanhavam, eles próprios, o que era seu. Só havia um remédio capaz: ele chegar a pegador de fios e, depois, aprender para tecelão. Mas ninguém sabia ainda quando isso poderia ser.

A sua expressão mostrava-se tão diferente da dos outros dias que Marreta, à hora do almoço, lhe perguntou:

Que te aconteceu? Estás com uma cara de enterro.

Ele pensou desabafar com o amigo, mas a presença de outros operários coibiu-o. Tentou sorrir:

— Não tenho nada... Dormi mal a noite passada. ..

Marreta contemplou-o com os seus olhos profundos, como se não acreditasse no que ele dizia e visse claro no fundo da sua alma. Perante esse olhar, onde adivinhava, também, carinho por si, Horácio decidiu confidenciar a Marreta as suas mofinas logo que os dois saíssem da fábrica. Parecia-lhe, agora, que, além de alívio, no amigo poderia encontrar útil opinião e conselho para o seu imediato futuro. E, assim, após o almoço, ele impacientava-se com o carro de fiação, ansioso de que o trabalho terminasse.

À tarde deu-se, porém, na fábrica, acontecimento que lhe fez olvidar quantas dúvidas e tristuras trouxera de Manteigas. Mateus passara na coxia central, olhando, atento, para todos os lados, mesmo para debaixo das máquinas, mesmo para os espaços vazios, como se andasse a ver se o casarão estava capazmente varrido. Junto das penteadeiras, as suas mãos entretiveram se, um momento, a acertar rigorosamente, sobre os socos rolantes, os “potes” que recebiam as mechas de lã. Tudo o mais lhe devia ter parecido bem limpo e ordenado, porque, em seguida, sempre com vagarosos passos e olhos inspeccionadores, abandonou o grande quadrilongo, metendo à porta que dava para a secção onde eram feitas as canelas de papel. Pouco depois, sabia-se que Azevedo de Sousa Viria, nessa tarde, mostrar a sua fábrica a um suíço, representante de teares, dos quais ele pensava comprar alguns. Quando, da sua penteadeira, Tramagal transmitiu a nova, Horácio quedou-se emaranhado em curiosidade. Nunca tinha visto o seu patrão. Azevedo de Sousa, piloto de vários negócios raramente aparecia ali. Ora por Lisboa e Coimbra, ora na sua quinta do Zêzere, quando adregava estar na Covilhã e vir à fábrica, metia-se no escritório, um pequeno edifício autónomo, do outro lado da calçada interior e os operários não o viam. Vinha às horas em que eles trabalhavam, conferenciava com o gerente, dava-lhe ordens, examinava papéis, discutia encomendas e retirava-se. Só uma vez Horácio divisara, quando saía da fábrica, o automóvel de Azevedo de Sousa à porta do escritório, porque, nesse dia, o industrial demorara-se mais ali. Os operários falavam dele com diversas opiniões, mas nenhum com simpatia. Uma tarde em que, de regresso à Aldeia do Carvalho, Marreta começara a bosquejar-lhe a figura, Tramagal intrometera tantos comentários, tantas críticas, que ele ficara sem saber como o patrão era. Um homem alentado, como o próprio Tramagal, fora a ideia que lhe quedara. E o industrial passara a ser para Horácio apenas um homem forte, de rosto indefinido, sentado nesse automóvel que ele vira, um dia, à porta do escritório, com um motorista fardado e de boné de pala.

Agora, porém, ia vê-lo. E esta certeza dava-lhe uma antecipada sensação de humildade e de respeito.

Ainda não eram quatro horas quando Azevedo de Sousa surgiu, com o suíço, ao cimo das escadas que ligavam, internamente, o piso superior da fábrica a” piso térreo onde, em lavadeiras, despedideiras, hidroextractores, batedores, lobos e outros maquinismos, especializados operários realizavam os mais duros trabalhos que a lã exigia antes de ser cardada e fiada. As máquinas, ali, não possuíam a elegância de linhas, nem a complexidade de movimentos das suas irmãs de cima; eram de rude aspecto, sóbrias, negras, umas de férreo ventre e temíveis dentuças, outras de pesados tambores. Tão-pouco os homens que se viam em redor delas se mantinham estáticos como quase todos os seus camaradas do andar principal, silenciosos espectadores dos movimentos mecânicos, aguardando uma possível necessidade de intervenção. Mas, os de baixo, suados, sujos de poeiras, de gorduras, moviam-se tanto como as máquinas, abrindo-as e carregando-as, lavando, carbonizando, azeitando as lãs, tudo numa atmosfera densa de vapores, de cheiros de óleos e de soluções sulfúricas.

Quando algum estranho visitava a fábrica, era sempre por ali que o proprietário ou o gerente o introduzia, já porque assim o visitante caminhava da causa para o efeito, da lã em estado original para os vistosos tecidos em que ela se transformava, já porque vendo, em último lugar, a parte superior do edifício, a mais moderna, aquela onde os operários consumiam menor esforço, conservaria na sua memória mais lisonjeira impressão.

Agora, no tope das escadas, Azevedo de Sousa detinha-se, para que os olhos do suíço pudessem abranger, em conjunto, esse longo pavimento, de boa iluminação e muito asseio, onde trabalhavam dezenas e dezenas de máquinas e de homens e mulheres.

Depois, o industrial e o suíço foram avançando, lentamente, para os primeiros maquinismos para as cardas. Atrás deles vinha o gerente, o mestre e um dos debuxadores da fábrica.

Horácio identificou facilmente Azevedo de Sousa, por ser ele quem mais falava, quem gesticulava e caminhava com maior segurança, com mais passo de dono, sobre o cimento. Era, como Marreta lhe havia dito, um homem robusto, cara redonda e morena e ventre levemente abaulado. Quando estendia o braço, numa indicação, nos seus dedos faiscavam pedras preciosas. Ao lado dele, o suíço, de pescoço muito alto, rosto magro, bigode curto, uns óculos brilhantes e o cabelo loiro, tinha um sorriso cortês, que só quebrava para fazer uma ou outra pergunta.

Junto da fiação contínua o grupo parara. E, pela primeira vez, o suíço falava mais do que Azevedo de Sousa. Apontando um trecho de uma das máquinas, dobrava-se para melhor o observar e, em seguida, tirava do bolso papel e lápis e punha-se a desenhar. Por fim, mostrara o desenho ao industrial.

tornara a falar e a apontar a máquina, enquanto Azevedo de Sousa ia fazendo, com a cabeça, movimentos aprovativos.

Dali, os cinco homens dirigiram-se para as “self-actings”. O coração de Horácio começou a pulsar fortemente. Parecia-lhe que o seu futuro dependia daquele homem que se aproximava dele sem o olhar sequer, que o seu destino estava nas mãos daquele homem que não o conhecia e que ele próprio via, agora, pela primeira vez. E pensou que devia mostrar-se humilde, subserviente, para dar boa ideia de si a quem tanto poderia influir na sua existência.

Mateus adiantou-se e mandou parar os carros de fiação. Entretanto, Azevedo de Sousa saudava, amavelmente, a operários e aprendizes. “Boa tarde”, “Boa tarde” — ia dizendo. “Boa tarde a vossa excelência. Como está vossa excelência?”—apressou-se Horácio a pagar-lhe. E tão enleado se sentiu, tanto a sua voz lisonjeira ecoou e se lhe demorou nos ouvidos, que não deu sequer pelo tom que Pedro e Boca Negra respondiam.

Agora, o industrial estava ao pé do “homem de ferro”, da primeira “self-acting”, a conversar com o suíço. Falava uma língua que Horácio não compreendia, mas que Pedro lhe disse ser francês. O gerente, o Mateus e o debuxador mantinham-se ligeiramente afastados, em respeitosa atitude.

O suíço voltara a tirar dos bolsos um papel e um lápis. E enquanto este desenhava, Azevedo de Sousa começara a palestrar com Boca Negra, que era, de todos os operários, o que estava mais próximo dele. Boca Negra ouvia e respondia com muita naturalidade. Somente os seus lábios revelavam, às vezes, uma leve perturbação.

Horácio acercou-se do grupo e pôs-se mesmo em frente de Azevedo de Sousa, ansioso de que este o fixasse. A sua vontade era intervir, dizer alguma coisa, não sabia o quê, alguma coisa pela qual o patrão o ficasse conhecendo e tendo-o em boa conta. Mas, uma vez ao pé do industrial, cujos olhos nunca se desviavam para ele, de novo se sentiu tímido, preso da sua humildade. Calado, ia acompanhando os gestos e as falas de Azevedo de Sousa com sorriso e expressões de servidão, como se tudo quanto ouvia lhe merecesse aplauso.

O suíço concluíra os seus apontamentos. E Azevedo de Sousa voltara a dialogar com ele em francês. Quando os dois se retiravam, Horácio afastou-se rapidamente, em sucessivas curvaturas de tronco e de cabeça. Com o desejo de criar espaço para o grupo do industrial passar, e cada vez mais perturbado, menos senhor de si, recuara até à proximidade das penteadeiras. Foi então que o seu olhar encontrou o de Tramagal, que o contemplava com dureza e desprezo. De começo, ele não compreendeu bem a razão daquilo; logo, porém, se sentiu vexado. Até ali, toda a sua atenção se prendera a Azevedo de Sousa e aos que o acompanhavam. Agora, batido pelos olhos de Tramagal, Horácio reparava nos companheiros de trabalho. Esperava vê-los também submissos, evidenciando, por modos e palavras, o desejo de colher agrado do patrão. Mas, ao contrário, viu que eles mantinham aquela mesma atitude fria, atitude de sentinelas de máquinas, que tanto o havia impressionado no primeiro dia em que viera para ali. Quer os que Azevedo de Sousa saudava de passagem, quer aqueles com quem falava, ao deter-se junto dos teares, todos lhe respondiam cortesmente, mas nenhum mostrava expressão ou fazia movimento que denunciasse desejos de lisonja. Dir-se-ia que continuavam atentos, sobretudo, às máquinas e que, ali, o industrial era, como o suíço, um estranho, perante o qual não se esquecia que o trabalho, as funções de cada um, constituíam elementos mais importantes do que o patrão. Havia, contudo, algo que pesava sobre eles mais do que habitualmente; e esse peso só se rarefez quando Azevedo de Sousa, o suíço, o gerente e o debuxador, depois de se terem demorado longo tempo a examinar os teares, saíram da fábrica. Alguns operários trocaram, então, um olhar e as máquinas continuaram no seu rumor, nos seus movimentos, tudo na mesma, como antes de o industrial ter surgido ali.

Horácio sentia-se humilhado e evitava os olhos de Tramagal. A certa altura, ouviu-o resmungar, como era muito de seu feitio. Pensou que aquilo devia ser por causa dele, por causa do patrão ou pelos dois juntos, mas não entendeu uma só palavra. As máquinas prosseguiam na sua tarefa e parecia-lhe que as de fiação de carruagem metiam, naquele momento, maior ruído do que nunca nos ouvidos dele.

Subitamente, porém, as cardas, que se alinhavam junto da escada interna, detiveram-se. Dois cardadores estendiam o pescoço, apurando o ouvido para o que se passava no piso térreo. Depois, as penteadeiras e as estiradeiras pararam também. E os seus operários e operárias voltavam-se para o lado das escadas, em atitude de quem escuta. Admitindo um acidente ou outro acontecimento vultoso, dentro em pouco todos os olhos convergiam para ali e as máquinas iam-se detendo, umas a seguir às outras. Que era, que não era, nas ruidosas “self-actSngs” ainda ninguém sabia ou ouvira nada do que decorria lá em baixo. Mas os pegadores de fios compreendiam que os outros, os mais próximos da escada, ouviam perfeitamente. Por fim, as “self-actángs” pararam também. E, então, voou até Horácio a voz forte de Felício, mestre da ultimação, que altercava com outro homem. Na fábrica fizera-se um grande silêncio e só aquela voz autoritária enchia tudo. O outro parecia defender-se, justificar-se, mas nem todas as suas palavras chegavam inteligíveis até lá acima.

— É o Ravasco — disse Boca Negra, dirigindo-se a Horácio e a Pedro.

A voz de Felício voltou a erguer-se:

— Está despedido! Nunca se viu uma coisa destas! Está despedido!

A outra voz não contestou. Entretanto, Mateus saíra do seu gabinete e lançara aos operários um olhar severo por eles haverem interrompido o trabalho. As máquinas tornaram imediatamente a laborar. E Mateus, enfiando pela escada que dava para a ultimação, desaparecera. Os olhares de todos os operários voltaram a encontrar-se interrogativamente. Alguns estavam sombrios, outros mostravam um sorriso gelado, cortante. Os relógios marcavam quatro e quarenta e as máquinas continuaram a trabalhar, como sempre, até às cinco horas, até a sereia apitar. Logo os operários do primeiro piso desceram, mais apressados do que em outro qualquer dia. Tramagal ia à frente, açodado e trombudo. Marreta caminhava atrás dele. Ao chegar à calçada já não encontraram Ravasco, mas os seus companheiros nas lavadeiras comentavam, em grupos, o ocorrido. E os de cima souberam, então, que, pouco depois de ter partido o automóvel que levava Azevedo de Sousa e o suíço, Felício dirigira-se a Ravasco e acusara-o de lhe haver faltado ao respeito, quando ele acompanhava o patrão na sua visita. Que duas vezes ele lhe fizera uma pergunta e que o Ravasco não lhe respondera. E que, como ele teimasse, dissera umas palavras que mais pareciam um grunhido do que uma resposta e, em seguida, voltara-lhe as costas. Quer o patrão, quer o gerente e até o suíço tinham percebido muito bem tudo aquilo. E, assim, não podia consentir essa falta de consideração por ele, que, como mestre da ultimação, era o encarregado de manter ali a disciplina. Ravasco, que começara negando ter ouvido as primeiras perguntas, quando o outro dissera que ele grunhira, exaltara-se e gritara que Felício “estava muito enganado, que ele não era porco, pois não pertencia à sua família”. Palavra puxa palavra, os dois haviam-se insultado. E Ravasco, então, confessara que não respondera quando perguntado, porque aos outros operários fora sempre o patrão quem fizera as perguntas e só a ele, como se o tivera por menos que aos demais, é que Felício se dirigira e, ainda por Cima, com o ar de quem trazia o rei na barriga. E que aquilo já vinha de longe. Que o Felício andava sempre a implicar com ele, tanto que ele, se não fosse pensar na mulher e nos filhos, já teria feito uma asneira. Depois que Felício o despedira, Ravasco abalara logo, dizendo que, nessa noite, ia apresentar a questão no Sindicato.

Os operários do primeiro piso, após ouvir aquilo, quedaram-se, um momento, indecisos em creditar razão apenas a um dos dois. Somente Tramagal, excitado, parecia inclinar-se mais para Ravasco, ao perguntar:

— Então o Felício andava sempre a implicar com ele? Que lhe fazia?

Os outros responderam que não sabiam. O Ravasco nunca lhes dissera nada. Ele tinha aquele feitio reservado, que todos lhe conheciam, e, nos últimos tempos, irritava-se facilmente. Só uma vez, há já muitos meses, ouviram Felício perguntar-lhe por que não bebia pouca água, para ver se urinava menos. Ele, decerto, não gostara daquilo. Fora, talvez, por isso, que a questão começara, pois há pouco, quando discutiam, Felício dissera “que Ravasco estava muito enganado se pensava que a fábrica lhe pagava para ele passar a vida a mijar e, ainda por cima, a faltar ao respeito a quem o devia”.

— Mas quando o Felício lhe disse isso da água, era com boa ou má intenção? — insistiu Tramagal.

Foi o Bernardo, que trabalhava ao lado do Ravasco, quem respondeu:

Eu ouvi, mas não sei. Parece que era por bem. O Felício disse aquilo com. bons modos. É claro que, então, o Ravasco ainda não usava bolsa e tinha de interromper o serviço muitas vezes, para ir lá fora.

— Ah! Está tudo visto!—gritou Tramagal.— Devia beber pouca água, para não roubar tempo ao patrão!

Os outros operários não se solidarizaram com aquele raciocínio.

— Logo à noite já eu falo com o Ravasco e sei como isso foi — disse um deles. E um e outro começaram a arriscar comentários, até que Marreta afirmou:

— Há muito tempo que o Ravasco não devia precisar de trabalhar. Isso é que é!

Houve um silêncio. Os operários principiaram a andar, em direitura ao portão. Pedro preveniu-os:

— O Felício, o gerente e o Mateus têm estado por detrás da janela do escritório a olhar para nós. — E como alguns fossem a voltar-se:—Não olhem. É melhor eles imaginarem que nós não os vimos. Decerto pensavam que estávamos a falar do caso e queriam ver o que fazíamos...

Na estrada, os homens apartaram-se, uns grupos para a Covilhã, outros para a Aldeia do Carvalho, como nos demais dias. Vinha subindo o declive, entre outras operárias, a mulher de Ravasco, a Maria Antónia, que trabalhava junto da ribeira, na Fábrica Nova.

— Vou ver se ela sabe mais alguma coisa — disse Tramagal.

Marreta agarrou-lhe um braço:

— Não vás! Ela, com certeza, ainda não sabe nada e ias dar-lhe uma má notícia. Deixa que o Ravasco lho diga...

Como sempre, Marreta, Tramagal e Horácio iniciaram, juntos, o regresso à aldeia. Horácio sentia, porém, que Tramagal evitava falar ou olhar para ele. A certa altura, ouviu-o estender conversa aos homens que iam à frente e, por fim, viu-o somar-se ao seu grupo. Pareceu a Horácio, por um súbito silêncio de Marreta, que este também conhecia a razão daquela atitude. E, com um sentimento de infelicidade, que a lembrança da passagem de Azevedo de Sousa pela fábrica lhe trazia, procurou quebrar essa mudez que marchava ao seu lado ’como uma reprovação.

— Afinal, que doença é que o Ravasco tem?

— É uma coisa muito má...—respondeu Marreta. — Ele principiou por andar sempre a urinar e, às vezes, até urinava sangue. Quando estava diante de gente e não tinha um lugar para se encostar, molhava-se todo. O médico da Caixa Sindical disse que deviam ser pedras na bexiga e receitou-lhe umas drogas. Ele melhorou uns dias, mas, depois, aquilo voltou e cada vez pior. Andou assim muito tempo. O médico tinha-lhe falado também numa operação, mas ele não queria, a ver se ficava melhor sem se operar. Depois, começou a deitar mais sangue, a emagrecer de dia para dia e assustou-se. Foi então que resolveu ir ao doutor Barbeito, de Coimbra, quando, na semana passada, ele veio dar consulta na Covilhã. Todos dizem que é um grande médico, que leva caro, mas que vale quanto leva. O Ravasco foi lá com o João Ribeiro. O doutor Barbeito meteu-lhe um aparelho com luz na bexiga e depois disse-lhe que ele precisava de ir a Lisboa, pois lá havia um instituto bom para tratar daquelas doenças. Que talvez tivessem de o operar ou de lhe fazer um tratamento, mas lá é que veriam isso definitivamente. E deu-lhe uma carta para ele se apresentar a um outro médico de Lisboa. Depois, à. saída, chamou de parte o João Ribeiro e disse-lhe que era quase certo o Ravasco ter um cancro na bexiga. E que não tinha tempo a perder...

— Coitado! — lamentou Horácio. — Eu não sabia nada disso... E ele não quis ir a Lisboa?

— Ele, agora, estava resolvido a ir. Andava a ver se arranjava dinheiro para as passagens. A Câmara paga o Hospital em Lisboa, mas não paga o comboio. E sempre há mais outras despesas. Ontem, ele disse-me que tinha esperanças de poder ir na semana que vem. Decerto tinha promessas de algum empréstimo...

— Ele, claro, não sabe o mal que tem?

— Não... Creio que não.

Marreta calou-se um instante e, depois, acrescentou :

—. Eu não sei quem tem razão: se o Feiício, se o Ravasco. Talvez até tenham os dois. O Feiício, com aquela cara e aqueles sorrisinhos, é tão torto como o Mateus. Mas também parece que a doença que o Ravasco tem transforma as pessoas. Ele, agora, não é o mesmo que era antigamente. Agora, anda sempre com um mau génio dos demónios. Por dá cá aquela palha, vai aos ares. Além disso, é dos antigos, dos analfabetos, e muitas vezes não vê bem as coisas. O que ele precisava era de estar tranquilo e de ter meios para se tratar. Mas qual! Tem de se aguentar! Tem de fazer das tripas coração e ir trabalhando. Parece que ele pensava que, mais cedo ou mais tarde, o punham na rua, mas estava à espera de que o despedissem por doença, para assim receber dois meses de salário. Quem me disse isto foi o João Ribeiro. E talvez fosse com esse dinheiro que o Ravasco contasse...

— E o Felício sabia disso?

Marreta embateu com aquela pergunta, que lhe abrira, de repente, um novo caminho. Considerou um momento, outro e outro, prolongando o silêncio.

— Não creio que nenhum camarada lho fosse dizer. Mas não era preciso. Ele sabia que, se o despedisse por doença, o patrão teria de pagar dois meses. Mas não se pode dizer que foi por isso. É preciso, também, não começarmos a dizer, por aí, coisas no ar, pois não temos a certeza...

Marreta calou-se. No grupo da frente, Tramagal continuava a falar e a gesticular muito. Marreta contemplou-o e, perante esse olhar, o mal-estar de há pouco volveu a Horácio. Como Tramagal costumava ir sempre com eles, aquela separação vexava-o cada vez mais. Hesitou em trazer o caso ao julgamento de Marreta, porque só a ideia de falar naquilo o molestava. Mas acabou por decidir-se, na ânsia de dar e de encontrar justificação:

— Parece que o Tramagal ficou zangado por eu, esta tarde, me ter afastado para deixar espaço ao patrão. Atirou-me uns olhos e pôs uma cara que até parecia que me queria comer...

Marreta não preencheu logo a pausa que Horácio abrira. Continuou a andar, calado, e, só muitos passos feitos, disse:

— Isso passa-lhe. Ele é assim. Mas não foi por tu te teres afastado. Foi pela maneira como estavas junto do patrão...

— Então, como é que eu estava?

Marreta manteve ainda, por alguns segundos, o seu silêncio. Depois, pôs-se a discorrer, paternalmente:

— Não és filho de operário, nem tens vivido no nosso meio. Aí está! Foi isso que eu pensei quando chegou o patrão e reparei em ti. Se o Tramagal tivesse pensado a mesma coisa, não faria aquela cara...

— Não percebo nada! Marreta voltou-se para ele:

—Não percebes ou não queres perceber?

— Não percebo, já disse!

Marreta tornou a olhá-lo e, depois, deu à sua voz um tom de paciência:

— Bem... Antigamente, quando o patrão entrava na fábrica, todos se punham como tu te puseste. Os patrões vinham, largavam sentenças, intrometiam-se em tudo. E as descomposturas eram o pão de cada dia. Pela coisa mais insignificante ameaçavam-nos de nos pôr na rua. Eles e até nós próprios pensávamos que tínhamos nascido para trabalhar para eles e que ainda era um grande favor eles darem-nos trabalho. Mas, um dia, nós vimos que também éramos homens e, pouco a pouco, fomos adquirindo a nossa dignidade. Ainda há alguns que andam sempre a lamber-lhes as botas, mas esses são cada vez mais raros. Por isso, hoje em dia os patrões não gostam de entrar nas fábricas. Eles vêem que não são recebidos com humildade, como noutros tempos. Hoje, eles e nós não nos entendemos. E quanto mais consciência formos ganhando, menos nos entenderemos. Nós até poderíamos trabalhar mais e melhor se não fosse a ideia de que estamos a trabalhar para o patrão... Compreendes?

Horácio fez um gesto vago. Parecia-lhe, às vezes, que Marreta tinha razão. Mas todo quedava ressentido: “O que ele fizera não era suficiente para os outros estarem com aquelas coisas. Também ele gostaria de poder ter sempre a cabeça erguida, de não precisar de engraxar ninguém.”

— Eu não sabia nada disso... — justificou-se, sombriamente. — Agora que o Tramagal é um malcriadão, não há dúvida!

Marreta sorriu:

— Vocês vão já fazer as pazes... Ó Tramagal! Tramagal! Espera aí...

Ainda humilhado e de rude humor, Horácio pensou que teria de deixar para outro dia o seu caso individual, sobre o qual havia desejado, durante toda a manhã, ouvir a opinião de Marreta.

Também, nos dois dias seguintes não conseguira falar-lhe a sós. Tramagal, já reconciliado, viera com eles durante todo o caminho e, à noite, a casa do velho tecelão enchera-se de outros operários, que discutiam ainda o caso de Ravasco e jogavam as cartas. Na quinta-feira, porém, Horácio decidiu falar a Marreta antes da ceia e, no regresso da fábrica, acompanhou-o até sua casa. Seguido por ele, o velho entrou riscando fósforos. E, aceso o candeeiro, pôs-se a acender o lume:

— Com a guerra, falta o petróleo, falta tudo, e parece que também a lenha está falsificada... Não pega...

Horácio tomou conta do fogo. Acocorado, ia pondo cavacos e soprando, enquanto Marreta, junto da mesa, começara a lavar cuidadosamente, as batatas, que ele costumava cozer com a própria casca, “porque, com as cascas, o caldo ficava melhor” — dizia. De fora vinha o rumor da ribeira que a invernia engrossara.

O fumo desaparecera e as chamas cresceram em redor da panela. Horácio esperava, em silêncio, que Marreta terminasse a lavagem. As chamas alargaram-se mais e, nelas, ele começou a ver o homem de Gouveia, na figura que a sua imaginação criara. Ora estava nos seus olhos, ora ia dos seus olhos até às chamas, sem nunca se queimar. E cada vez lhe parecia com mais atractivos para as mulheres com muito mais atractivos do que ele e, ainda por cima, com dinheiro. Horácio odiava-o, mas o outro persistia e sempre mais atraente.

Marreta escorreu a segunda água, aproxinou-se e foi tirando da malga, uma a uma, as batatas e colocou-as na panela. Depois, sacudiu os dedos e limpou-os às calças.

—Vá... Que é que me queres dizer?

Ele olhou-o, admirado:

— Já sabia?

— Não... Não sei nada. Mas como vieste a esta hora, calculei...

— Lê-se na minha cara? Marreta sorriu, fraternalmente:

— Anda! Fala!

Ele desejara tanto esse momento, que, agora, se lhe entorpecia, de repente, a decisão. Lembrou-se do olhar que Tramagal lhe lançara quando o patrão viera à fábrica. Lembrou-se das palavras que, depois, Marreta lhe dissera. Mas já voltava a figura que andara, há pouco, nas chamas. E, com ela, a de Idalina. Ele sentia os olhos de Marreta espetados nele, à espera. Tentou sorrir também:

—Não é nada de importância, tio Marreta... Eu só queria pedir-lhe uma coisa...

Parecia-lhe que as palavras lhe saíam desgarradamente e se ligavam, perdendo-se, aos surdos regougos da ribeira, que se despenhava ali pertinho. Ele hesitava entre fazer, primeiro, o pedido, ou explicar, primeiro, a razão por que o fazia.

— Já uma vez lhe disse, tio Marreta... A minha vida não pode continuar muito tempo assim... E, agora, inenos do que nunca...

O velho tecelão contemplava-o, em silêncio. As chamas envolviam totalmente a panela, dependurada da cadeia.

— Vossemecê conhece muita gente, muitos mestres de fábrica. E é respeitado. Eu queria ver se vossemecê falava aos mestres, a ver se me arranjava um lugar em qualquer parte. Eu já posso ser operário... Já dei, outro dia, as provas...

Marreta chasqueou:

— Estás com pressa, hem? Não admira... Todos nós, quando somos aprendizes, estamos ansiosos de chegar a homens e a operários. Homem já tu és; assim, tens mais pressa ainda.

— Não é bem por isso; é que...

Decidiu confessar as causas da sua inquietação. Humilhava-o a ideia de falar da atitude dos pais de Idalina para com ele, mas venceu o desprazer. Parecia-lhe que pondo o amigo na sua intimidade, se libertaria do desassossego que o andava roendo, que o roía agora mesmo; e que se Marreta soubesse quanto se passava poderia interessar-se mais por ele.

Contou tudo, num tom de desabafo. O velho tecelão escutou-o sem o interromper e, por fim, disse-lhe:

Eu compreendo muito bem as tuas arrelias.

E vou falar aos mestres. Mas é apenas por um descargo de consciência... Ainda há pouco andei a pedir a um e outro, a ver se arranjava um lugar para um camarada da Covilhã, o Remolacha, e não consegui nada. São coisas com que não se pode contar quando se quer... Pode aparecer um lugar de um dia para o outro e pode demorar muito tempo. É uma questão de sorte, pois nenhum patrão vai meter um operário sem precisar dele... Já falaste ao Mateus?

— Falei ao irmão, ao Manuel Peixoto...

— E que disse ele?

— Disse-me a mesma coisa que vossemecê: que não há vaga, que logo que houver eu não serei esquecido, mas ninguém sabe quando será... Por isso me lembrei de ver se arranjava noutras fábricas...

— Eu tratarei disso... Mas, assim, para já, não dou nada pela caçada. Mesmo nada. Só por um acaso... Claro, é melhor ter muitos anzóis na água do que um só... Mas tu levanta esse ânimo! Se a rapariga espera, isso, agora, é o principal para ti!

Horácio não disse nada. Ele tornava a duvidar que Idalina esperasse todo o tempo que fosse preciso, todo aquele indeterminado tempo, sem que os pais dela acabassem por convencê-la a olhar para outro homem — fosse para esse de Gouveia, fosse para outro qualquer:

Marreta, mudando o tom de voz, perguntou:

— Então tu querias uma casita? — E, sem aguardar a resposta inútil, acrescentou, sorrindo: — Supõe que estás a cavar numa horta e que encontras uma panela com libras. Vendes as libras e mandas fazer uma casa. Tu ficas satisfeito, mas os outros continuam na mesma...

Horácio olhou-o, surpreendido. Marreta sentiu o seu olhar e justificou-se:

— Isto é falar por falar... Não vás tu pensar que estou maluco...

Horácio continuou calado. A sua expressão voltara a carregar-se sombriamente. Lá fora, na noite, prosseguia o tumulto da ribeira, correndo entre penedos. Esse ruído fendia o silêncio que entre eles se fizera, como um uivo arrastado fendendo a noite. Subitamente, Marreta perguntou:

—’Já leste os livros que te emprestei?

— Já. Trago-lhos amanhã.

— E então? Que te pareceram?

— Lá que dizem muita verdade, isso dizem! gente que não tem nada e outra que tem de mais. Mas como há-de isso acabar? Foi sempre assim...

Marreta protestou:

— Acaba! Digo-te que acaba! Um dia há-de acabar... Tu não deves pensar dessa maneira...

Um momento, os dois ficaram silenciosos. Depois, a voz de Marreta volveu, já com um acento doce, rememorativo:

—’Nós nunca devemos perder as esperanças. O Mundo vai andando... Tem custado muito sangue, muito sacrifício, mas vai andando. Eu sou ainda do tempo em que se passava toda a semana metido na fábrica e só se saía ao domingo. Quando penso nisso, até me parece mentira! Os rapazes novos como tu não podem imaginar... Era o tempo bom para os patrões. Ganhavam dinheiro e não tinham preocupações connosco. Hoje, eles continuam a ganhar dinheiro, mas já não vivem tranquilos. Tu não deves pôr essa cara... Há muitos homens que estão pior do que tu... A rapariga gosta de ti e, mais cedo ou mais tarde, casas com ela. Eu não presto para nada, mas no que eu puder fazer por ti, contas comigo, já sabes.

Aquilo não o contentava. Marreta tendia sempre para um futuro longínquo e a ele só interessava o presente, a sua vida imediata. As palavras do tecelão, ao contrário do que ele esperara, do que ele desejara, não conseguiam encher o vácuo, aquele oco imenso, que se lhe abrira na alma.

Demorou-se ainda algum tempo e, depois, ergueu -se, cada vez mais infeliz e mais comovido com a sua própria angústia

— Vossemecê é boa pessoa, tio Marreta... Fico-lhe muito obrigado... Até amanhã...

E saiu bruscamente, para que o outro não lhe visse os olhos.

A noite apresentava um luar difuso e intermitente. Sobre a Lua transitavam nuvens e ora a neve fulgia na serra, ora imensas sombras caíam sobre a aldeia. Já perto da casa de Ricardo, Horácio cruzou-se com um vulto. Era o João Ribeiro, que lhe disse:

— Parece que o frio está a passar...

Ele sentia um calor intenso, mas que lhe vinha de dentro, do peito e do cérebro.

— Parece que sim... — confirmou, abstracta mente. E ia a seguir o seu caminho quando o outro o deteve para lhe anunciar que o Sindicato nada obtivera a favor de Ravasco. A direcção falara mesmo com Azevedo de Sousa, mas ele respondera que o que estava feito, estava feito: não podia readmitir o Ravasco, senão desautorizaria o Pelício, que tinha carradas de razão. Depois disso, o Sindicato entregara o caso à delegação do Instituto do Trabaiho.

— Eu estava, esta tarde, na Covilhã, quando soube da resposta do Azevedo e fui agora a casa do Ravasco, preveni-lo — acrescentou João Ribeiro.

Horácio sentiu-se mais oprimido. Mal conhecia Ravasco e nem a sua figura nem os seus modos lhe eram simpáticos; agora, porém, apiedava-se dele, lamentava-o como se lamentasse algo de si próprio, aquela tristeza, maior, cada vez maior, que lhe enchia o peito.

— Coitado! E de que é que ele vai viver? Como se pode tratar?

João Ribeiro declarou:

— Quando lhe dei a notícia, o Ravasco ficou calado, como se não fosse nada com ele. Mas quando a mulher disse que havia de ir procurar o patrão e falar-lhe às boas, para ver se o Azevedo pagava, ao menos, os dois meses de salário, ele ficou furioso e proibiu-a de fazer isso. A Maria Antónia ainda teimou na sua, dizendo que, com aquele dinheiro, ele poderia ir a Lisboa, mas não o convenceu. O Ravasco até a ameaçou de lhe bater se ela fosse pedir alguma Coisa. Ele diz que há-de ir a Lisboa seja lá como for.

A Lua rompia, novamente, as nuvens e iluminava os dois homens em frente do casebre de Ricardo. Nos olhos de Horácio esboçou-se a figura de Ravasco ameaçando a mulher e a sua própria figura perante Azevedo de Sousa, quando este passara na fábrica Duas vezes, nessa noite, aquela lembrança o assaltara, molestando-o. E agora deixava-lhe desgosto de si mesmo.

João Ribeiro despediu-se e ele entrou em casa. Também Júlia lhe disse:

— Hoje há menos frio, não é verdade? — E continuou:— Oxalá que isto passe, para ver se o Ricardo melhora. Tem andado sempre a queixar-se do reumatismo. Nunca se viu um Inverno assim!

Horácio sentou-se. Ricardo não havia regressado ainda. Nos últimos dias ele ia mais vezes à Covilhã, depois de sair do trabalho, do que antigamente. A princípio, Horácio supôs que era por causa do Antero, mas, por fim, largou essa ideia. Soubera na fábrica que, devido à guerra, que encarecera quase todas as coisas, os operários pensavam voltar a pedir um aumento nos salários. Da primeira vez que o tinham feito, meses antes, os patrões haviam-no recusado. Mas eles iam insistir —dizia-se— porque não podiam viver assim...

Pedro bichanara a Horácio que Ricardo fazia parte da comissão que ia tratar do caso. Depois de saber isso, Horácio interrogara Ricardo, mas este respondera-lhe de modo vago, misterioso. Marreta, a quem ele falara também sobre aquilo, dissera-lhe:

— Pensa-se cuidar disso, pensa-se... Mas não se deve andar a badalar por aí, compreendes?

Agora, enquanto esperavam Ricardo, Júlia ia tagarelando :

— Não é só o frio que lhe faz mal; é, também, a humidade. E, este ano, o reumatismo deu-lhe a valer. Nos outros anos, nunca ele perdeu um dia. Mas, neste, já não têm conta.

Horácio esforçava se por acompanhar Júlia na palrice, como nas outras noites, enquanto Ricardo não chegava. Mas nenhuma palavra lhe saía jeitosa, ele próprio o sentia. Várias vezes esteve para se referir à situação de Ravasco e sempre desistiu, porque aquilo também a ele o incomodava.

Finalmente, Ricardo entrou, coxeando. Mal tirou o chapéu, sentou-se à mesa:

— Vamos à ceia! —disse.— Já é muito tarde... Você desculpe...

Júlia trouxe a sopa. Enquanto comiam, Ricardo notou o silêncio e a expressão de Horácio:

— Você parece que está hoje muito aporrinhado... Tem algum desgosto?

— Não. Não tenho nada.

Ricardo tornou a olhá-lo — e não insistiu.

Pouco depois, Horácio subia, para se deitar. Ia desgostoso consigo próprio: “Por que diabo era ele assim? Todos lhe viam na cara o que ele sentia.”

Passou a noite mais tormentosa do que aquela em que topara homem morto no caminho. De manhã, a resolução estava firme: “Desonraria Idalina. Tudo o que Marreta dissera eram coisas para depois. Desonraria Idalina e pronto! Assim já ela não podia mudar de tenções. Já não iria para outro, mesmo que os pais dela se fartassem de a aperrear.”

DE lanterna apagada, balouçando-a na mão esquerda, Horácio subiu, no sábado, a rampa da Covilhã. Ao seu lado, Pedro falava do pedido de aumento de salários que uma comissão do pessoal das fábricas havia apresentado, nesse dia, aos patrões. Acabavam os dois de sair do trabalho e outros grupos de operários, que, à frente e atrás deles, palmilhavam também a ladeira, iam comentando a mesma coisa. A Horácio chegavam, de quando em quando, frases soltas:

— Não dão; vais ver que não dão!

— Talvez dêem, que diabo! Alguma vez há-de ser... Eu já tenho tudo empenhado...

— A mim palpita-me que fica tudo na mesma...

— Talvez não...—arriscou uma voz cansada.— Talvez não...

Pedro era dos descrentes. E, fatigado de ouvir martelar aquilo, meteu outra peça à sua forja. Pôs-se a afirmar que ia aprender a fazer esqui com o Narciso do Clube e que um dia também tomaria parte no campeonato anual.

Ao chegarem à Praça da República, os operários começaram a debandar. Horácio separou-se de Pedro na Rua Direita e entrou numa loja de fazendas. Pediu lenços. Hesitou na escolha e discutiu os preços. Pedro havia-lhe emprestado, à hora do almoço, vinte escudos e ele tinha oito de seu. Renunciou aos lenços mais caros e comprou um de grandes flores estampadas. Ainda o empregado o embrulhava e já ele ia visionando Idalina com o lenço na cabeça, linda, mais linda agora, mais linda e a sorrir para ele com aquelas flores sobre os seus ’cabelos negros.

Pagou e, cortando o centro da cidade, meteu à serra. Na floresta, acendeu a lanterna e, por ínvios atalhos, entestou ao Picoto, depois ao Beijames. Ia avançando e ruminando a sua ideia. Desde que planeara aquilo, rara hora se passava sem que ele volvesse a entrever a cena, a esmiuçar estorvos e possibilidades. Idalina ficaria contente com o lenço. Era uma novidade, pois ele, desde que viera do serviço militar, não lhe tinha oferecido nada. Ele não mostraria desconfianças. Dir-lhe-ia que sabia tudo, que a mãe lhe contara, e fingiria que estava agradecido por ela não ter dado trela ao outro. Agradecido, não, porque, então, Idalina ia julgar que lhe fizera um favor. Não, isso não. Havia de dizer-lhe que se estava mesmo a ver que esse tipo de Gouveia não a conhecia bem. Como é que pudera imaginar que ela mudava de sentimento assim de pé para a mão? Só uma desavergonhada o podia fazer, tendo noivo, como ela tinha. Bem vistas as coisas, aquilo até era uma ofensa para ela. Mas o outro, um malandro com más intenções, não se importava com isso. O que queria era satisfazer o seu desejo e, depois, alçar a perna. Como a via pobre, julgava que ela ia com duas cantigas, lá porque ele tinha alguma coisa de seu. E, depois, iria rir-se dela, para Gouveia. Mas havia de se rir pouco tempo, porque ele estava ali, para lhe fazer pagar caro a brincadeira.

Horácio pensou que Idalina gostaria de o ouvir falar assim. Se fosse preciso, dir-lhe-ia também que poderiam casar mais cedo do que ele havia imaginado. As coisas, na fábrica, corriam bem, os patrões iam aumentar os salários e, com certeza, não tardaria muito tempo para ele chegar a operário. Com o dinheiro que, então, ganharia, já os dois viveriam, mesmo que tivessem de deixar para mais tarde a casa que ele desejava. Isto devia dar resultado. O mais difícil era apanhar Idalina a jeito. No Verão, sempre havia maneira de se arredarem da vila e de encontrar um bom sítio para aquilo. Antes de ’ir para a tropa, ele tinha tido muitas ocasiões, se quisesse. Mas conseguira ter sempre mão em si, embora o roesse uma vontade doida. Agora, que ele queria, estavam no Inverno e era o diabo! Idalina não tinha razões para ir até os campos, porque estava tudo cheio de neve. Ainda se a coisa fosse de combinação com ela, tudo seria fácid. Então, Idalina iria ter aonde ele lhe dissesse. Mas assim, não. Ele não podia dizer-lhe o que queria, pois se ela o soubesse era o suficiente para não deixar. E muito mais agora, que havia o outro. Ele tinha de levar aquilo como quem não quer a coisa. Tinha de o fazer quando estivessem à sua vontade e com muitos beijos; quando ele a abraçasse e ela também o apertasse muito nos braços e ao mesmo tempo parecesse mole, com os olhos meio fechados e os beiços pegados aos dele, como ’algumas vezes acontecia. Então é que ele devia aproveitar. Mas, para isso, é que faltava um bom sítio. Agora, só podia ser na casa da tia de Idalina, a tia Madalena e isso era mais difícil.

O relógio de Santa Maria acabava de dar onze horas quando Horácio entrou em Manteigas, cansado de pisar neve. Ao atravessar a estrada, Serafim Caçador, que estava num grupo de bêbedos, lobrigou-o e cortou-lhe o passo:

—Olha lá! Voltas amanhã?

— Volto, pois claro!

— Eu vou também. Mas podíamos ir mais cedo do que das outras vezes. As cinco?

— As cinco, não...

— Então às seis.

Horácio fez um gesto incerto:

— Eu passo por sua casa.

Serafim Caçador tinha um filho casado na Borralheira, que lhe cuidava de umas territtas que ele possuía ali e por mor de um e de outras ia lá de quando em quando. Costumava aproveitar a companhia de Horácio, para sentir menos longa a travessia da serra; e Horácio, por igual razão, ficava contente sempre que o tinha como companheiro. Agora, porém, ele queria libertar-se de Serafim, que, palrador e alegre de alguns copos, tentava retê-lo.

— Adeus! Hoje vou com muita pressa. Amanhã falamos. Por volta das seis e meia irei buscá-lo.

Mal Horácio enfiou na congosta onde Idalina morava, os seus olhos dirigiram-se, ansiosos, para a porta da casa. Ela não se encontrava lá, à sua espera, como nos demais sábados. “É porque está muito frio e, além disso, venho atrasado por causa do raio da neve”— pensou. Logo, porém, que se aproximou mais, viu a cabeça de Idalina surgir no rectângulo iluminado do janelico, a inspeccionar a rua. Ao divisá-lo, ela desapareceu rapidamente; ele continuou a avançar, já feliz.

A figura de Idalina recortava-se, agora, na porta. O lume, que havia lá em cima, na lareira, envolvia-a numa luz difusamente doirada. Horácio entreviu-a, de novo, com o lenço que lhe comprara: “Quando ele viesse na outra semana, já ela estaria à sua espera com o lenço novo na cabeça.” Esta ideia tornou-o ainda mais ditoso.

Idalina encostara-se à ombreira e continuava a sorrir-lhe, só a sorrir-lhe, sem falar, quando ele chegou. Foi ele quem disse as primeiras palavras e depois prosseguiu com outras, com puerilidades que, para eles, significavam tudo, pelos silêncios de felicidade que constantemente as intervalaram. Cá fora estava frio, mas ele não o sentia. De lá de dentro chegavam, de quando em quando, a voz fanhosa da senhora Januária e os ruídos que os filhos desta faziam. Ele pensava no seu plano e sentia-se feliz só por estar ao pé de Idalina, ao pé daquela claridade que o fogo lhe lançava sobre o cabelo, como se fosse um luar.

— Amanhã, as duas, na tia Madalena...—murmurou.

Ela fez um sinal afirmativo e ele, então, partiu a caminho de sua casa.

Depois do jantar, Horácio pensou que, no dia seguinte, devia ter o corpo limpo e pediiu à mãe:

— Arranje-me, amanhã, uma grande panela de água quente. Quero lavar-me bem, pois esta semana sujei-me muito...

A casa da tia Madalena, “a da viúva”, como lhe chamavam, para a distinguir da da outra Madalena que vivia mais além, tinha dois pisos. No térreo, havia uma coelheira, raízes de urzes para o lume no Inverno e bastantes teias de aranha. Uma escada externa dava acesso à parte superior — dois quartos e a cozinha. Por fora, a casa mostrava-se velha e negrusca, como as demais; mas lançava sobre a rua uma varanda de madeira, que, embora negra também, lhe emprestava airosidade, com os caixotes de cravos e sardinheiras que nela garridamente se exibiam.

Fora ali que Horácio e Idalina se haviam sentado a primeira vez que vieram namorar em casa da tia Madalena. Então, ainda os pais de Idalina não sabiam ou fingiam não saber do derriço que eles tinham começado nos caminhos do Eiró. Mas, quando se principiou a falar daquilo, continuaram a sentar-se na varanda, aos domingos, na Primavera, antes de ele subir, com o rebanho, para a serra, e no Outono, depois de regressar. Assim, o povo não podia murmurar e eles estavam ali mais à vontade do que em casa de Idalina. A tia Madalena parecia protegêios, mas caprichava conseienciosamente em nunca os deixar sozinhos; se precisava de sair, só o fazia quando a filha, a Arminda, quedava em seu lugar. Eles gostavam da varanda, porque a tia Madalena, ao trafegar na cozinha, não os via. Mas gostavam, também, do interior da casa, no Inverno, porque se alguma vez ficavam apenas com Arminda, esta afastava-se, espontaneamente, para o quintal ou para o seu quarto e eles podiam beijar-se. Arminda só voltava quando ouvia, na rua, os passos da sua mãe. E procedia sempre com um sorriso afável, mesmo quando irónico, como se a sua pequena cumplicidade também a ela desse prazer.

Agora, eles estavam sentados na cozinha. Lá ao fundo, a tia Madalena lavava as panelas, pratos e malgas sujas durante o almoço, tudo limpando e arrumando vagarosamente, com aquela ordem e cuidados especiais que ela punha nas coisas ao domingo, como se não voltasse a cozinhar durante muitos dias. Quando terminou, sempre com essa pachorra, esse ar domingueira de quem dispõe de tempo a mais, acercou-se dos dois, mas dirigindo-se, sobretudo, à sobrinha:

— Sabes... A Ana já teve o menino... Um belo rapagão!

A Ana era a sua filha mais velha, casada há já vários anos.

— Já teve o menino? E vossemecê não me tinha dito nada! —protestou Idalina.

— Vocês, mal chegaram, puseram-se logo para aí a cochichar... Como ia eu dizer? Teve-o esta manhã. Vieram cá chamar-me de madrugada. E, agora, a Arminda está para lá.

Ainda comentaram, um instante, o acontecido e, depois, sempre com passo vagaroso, a tia Madalena caminhou para o seu quarto e sentou-se junto da janela, com um novelo de lã no regaço, duas agulhas e um casaquito, quase concluído, para criança. Por detrás dos vidros ela ia vendo a rua, aquela parada luz dominical, alguma rara figura que passava. Sentia pesar-lhe a cabeça, subir-lhe o sono que ela tinha interrompido de madrugada, para acudir à filha. Na casa não havia, agora, outro ruído além do das palavras baixas de Horácio e de Idalina. De onde estavam, eles podiam ver, se distendessem o pescoço, a tia Madalena e ela vê-los a eles, se fizesse a mesma coisa, através da porta aberta que Mgava a cozinha ao quarto. Mas eles não a queriam ver e não distendiam o pescoço e desejavam que a tia Madalena não distendesse o seu também...

Horácio sentia pueril contentamento pela alegria que julgava ir dar a Idalina.

— Tira o teu lenço e fecha os olhos...—pediu-lhe.

— Para quê?

— Tira o lenço... Anda!

— Ora essa! Para que é que queres que eu o tire? — E ria, arqueando os braços, obedecendo-lhe. Mas como o fizesse lentamente, sempre a olhar para ele e sempre a ouvir, em expectativa, Horácio interveio, puxando, por uma ponta, o lenço que ela trazia.

— Agora fecha os olhos...

— Lá isso é que não fecho!...

— Digo-te que os feches! É uma surpresa... Sorrindo mais, obedeceu de novo. Ouviu, primeiro,

um ruído de papel, ao ser desdobrado, logo sentiu algo que pousava sobre os seus cabelos, depois as mãos dele roçando as faces, depois um tecido roçando-lhe o pescoço.

— Que tal? — perguntou, por fim, Horácio. Ela abriu os olhos e viu a extremidade do lenço

novo sobre os seios.

— Que bonito! Que bonito! Onde o compraste? — De repente, antes mesmo de ele responder, Idalina mudou de expressão: — Não se deve dar um Lenço... Lenço é sinal de apartamento, de separação. ..

Ele inquietou-se também:

— É verdade... Já uma vez ouvi dizer isso. Não me lembrei... Mas não são só os de assoar?

— São todos...

Horácio apressou-se a tirar-lhe o lenço da cabeça: Ora esta! Não me lembrar... Podia ter comprado outra coisa...

Só agora os olhos dela abrangiam todas as ramagens, todo o cromático efeito do tecido aberto sobre os joelhos dele.

—Ébem bonito! Deixa-me ver...

— Não, não. É apartamento...

—Éapartamento desde que seja dado. Mas se for comprado, mesmo que seja só por meio tostão, já não é. Eu logo dou-te um tostão e já não faz mal. Deixa-mo ver...

Ele não estava tranquilo ainda, mas Idalina voltou a repetir que, dando-lhe uma moeda, quebrava todo o malefício. E se ele duvidava do que ela dizia, podia perguntar a quem quisesse.

Horácio entregou-lhe o lenço. ela acariciou-o como se afagasse o pêlo de um gato; colocou-o, depois, sobre a cabeça, logo o deixou descair e amarrou-o em volta do pescoço.

Ele contemplava-a, embevecido.

— Ficaste a matar!

Ela sorriu também, carinhosamente, num enlevo. Vendo-a assim, Horácio pensava que já não poderia viver sem ela, que ficaria doido se a perdesse, que seria capaz de matar o outro, se lha roubasse.

Foi então que, pegando-lhe na mão, lhe contou que já sabia tudo e lhe disse quase tudo quanto havia pensado para melhor a catequizar. Ela ouviu-o em silêncio, ora séria, ora sorridente, lisonjeada pela boa conta em que ele mostrava tê-la.

— Era um nojo de homem!—exclamou depois, referindo-se ao de Gouveia.

Por que não me preveniste logo? Quando eu soube, fiquei muito descorçoado, por não me teres dito nada.

—Para quê? Para que meter-te macaquinhos na cabeça, sem necessidade nenhuma?

Ele continuava a acariciar-lhe a mão. Só não lhe dissera ainda que poderiam casar mais cedo do que ele pensara. Prudentemente, hesitava em dizer-lho. Parecia-lhe, agora, não ser necessário mentir, porque tudo havia corrido bem e Idalina estava mesmo como ele desejava que estivesse. O que faltava era uma ocasião. A tia Madalena, muito sossegada no seu quarto, não dava mostras de pensar sair naquela tarde. E a ausência de Arminda dificultava qualquer hipótese favorável.

Eles continuavam a falar em voz baixa, mas, agora, Horácio estava a matutar constantemente naquilo, naquele domingo que ia perder. As horas haviam deixado de possuir o encanto de há pouco, porque ele se agarrara à vaga esperança de que se Arminda voltasse cedo talvez a tia Madalena ainda se decidisse a sair — e o tempo passava sem que Arminda aparecesse.

Já várias vezes ele considerara o escabelo onde se sentavam. “Enquanto a beijasse e abraçasse, poderia ir vergando-a devagarinho.” Quanto mais pensava naquilo, mais se enervava. Nas suas palavras já não havia tom de espírito presente e o seu próprio rosto tomara uma expressão sombria. Idalina notou a metamorfose:

— Que tens tu?

Ele bichanou-lhe, impaciente:

— A Arminda não voltará hoje?

Ela teve um sorriso malicioso, pensando nos beijos que costumavam dar:

— Não sei. Se queres, perguntamos à tia...

Ele olhou-a, quase severo, e Idalina sorriu ainda com maior ironia.

Arminda chegou, finalmente.

— Então esse menino? — perguntou-lhe Idalina.

— Lá está. A minha mãe já te disse? É um amorzinho de criança! Gordo, bochechudo, como o Menino Jesus... Aquilo pesa um ror de quilos! Mudou o tom de voz:

— Ô filha, eu gosto muito de crianças e com uma assim saudável é de a gente dar graças a Deus. Mas eu te digo: a Anica berrou tanto esta madrugada, padeceu tanto a pobre, que eu, depois de a ouvir, fiquei sem vontade de ter filhos. Não; aquilo não é brincadeira nenhuma! De mais a mais, vindo um assim tão alentado...

A Horácio tornou-se subitamente desagradável a loquacidade de Arminda. As suas palavras podiam influir em Idalina, justamente quando seria bom que ela não pensasse nas consequências do acto que ele pretendia realizar. Logo a outra devia ter a criança naquele dia! Ele ia desviar a conversa para novo caminho, quando ouviu a tia Madalena levantar-se e, em seguida, surdir na porta do quarto. Com surpresa sua, foi ela quem protestou contra a demora de Arminda:

— Porque vieste tão tarde?

— Vim tarde? Parece-lhe? Éque não viu o monte de roupa que tive de lavar! Ainda trago a pele engelhada... — E mostrava os seus braços roliços e muito brancos.

A tia Madalena voltou a desaparecer da porta do quarto. Horácio ouviu os passos dela, lá dentro, de uma banda para outra e, entretanto, a esperança crescia, mais alta, no peito dele. Arminda sentara-se ao lado de Idalina e continuava a pairar, mas ele já não escutava o que ela dizia, todo entregue àquela ansiosa expectativa, que as visíveis voltas da tia Madalena iam prolongando. De repente, o seu coração bateu com mais força. Ela saía do quarto com um xaile aos ombros e trazendo, na mão, dois lençóis e o casaquito de lã. Dirigiu-se à filha:

Se eu não vier. a horas, põe a panela ao lume

— A tia vai a casa da Anica? — perguntou Idalina.

— Vou.

— Ah, então eu vou também! Estou morta por ver o menino!

Ele olhou-a, espantado. A sua alegria transformara-se num quase furor. A tia Madalena voltara-se, mas nem ela nem Arminda disseram nada, como se também às duas aquilo parecesse absurdo. Ele murmurou, a custo:

— Tu vais... agora... Arminda saiu a auxiliá-lo:

— Sim, tu podes ir vê-lo mais tarde. Quando vocês saírem daqui...

Aquela intervenção ainda o vexou mais.

— Bom! Então, eu vou depois—disse Idalina, sorrindo.

A tia Madalena saiu, encolhendo os ombros. Ele ficou silencioso, amuado. Ao encontrar os seus olhos, Idalina exclamou:

— Que cara tens! — E soltou uma gargalhada. — Não vês que era a brincar?

Ele não respondeu e continuou carrancudo.

— Agora uma zanga! Era para ver o que tu fazias... Não acreditas?

Custava-lhe a acreditar. “Parecia impossível que, mesmo de brincadeira, ela pensasse em deixá-lo tão cedo, quando ele, só para estar um bocado junto dela, fazia o sacrifício de vir de tão longe! Bem diziam todos os homens que as mulheres nunca eram de fiar. Ele tinha de fazer aquilo o mais depressa possível, tinha de amarrá-la, senão ela ainda era capaz de lhe pregar uma partida.”

Arminda ergueu-se:

— Vá! Façam as pazes! Tu não percebeste que ela estava a fingir? — E caminhando para a porta: — Até logo! Vou dar de comer aos coelhos...

Idalina sorriu. Arminda, quando queria deixá-los sozinhos, dizia sempre que ia dar de comer aos coelhos. Logo que ela desaparecia, ele costumava estender o braço por detrás do pescoço de Idalina, puxá-la a si e beijá-la. Agora, porém, era Idalina que, vendo-o assim, de cara fechada, lhe passava a mão na face e o olhava meigamente. Ele, então, pensou que, mesmo que tivesse razão para estar enfadado, o melhor seria não prolongar aquilo, não perder tempo.

— Por que fizeste isso? — perguntou, com voz triste.

— Por nada. De repente, não sei porquê, apeteceu-me arreliar-te. Mas não era por mal, acredita!

Ele continuava a não compreender claramente, tanto mais que, a princípio, ia jurar, ela falara a sério. Olhou-a. Então, o seu desígnio tornou a obsessioná-lo. “Dali a pouco seria noite e, logo que começasse a escurecer, decerto Arminda subiria, mesmo antes de sentir que a tia Madalena voltava. Devia aproveitar já. Fora o diabo aquela ideia de Idalina! Até lhe matara o entusiasmo.”

Ela insistia, com uma voz submissa, toda de ternura:

— Não estejas zangado... Se eu tivesse saído chegava à escada e voltava logo para tras, acredita! Sou tão feliz quando estou ao pé de ti! Nem tu calculas!

Ele estendeu o braço esquerdo. Atraiu-a a si e os seus lábios prenderam-se. Ele prolongou o beijo; ele costumava sempre prolongá-lo, mas agora fazia-o propositadamente, pensando em tudo quanto fazia e devia fazer.

Perturbada, Idalina descerrou, com lentidão, as pálpebras. Mas, ao vê-lo assim descomposto, ergueu-se repentinamente e olhou com surpresa e modos repreensivos;:

Estás doido?

— Que mal há? Não vamos casar mais cedo do que eu pensava...

— Estas doido...

Ele tentou ainda agarrá-la por um braço, mas ela desprendeu-se, avançou até à porta e voltou, depois, para o meio da cozinha.

— Que ideia a tua! — E desatou a chorar.

— És tola... Por que é essa choradeira?

Ela não respondeu. Ela não saberia responder naquele momento, mesmo que quisesse. Ele passou-lhe a mão sobre os cabelos e procurou beijá-la de novo, agora apenas por ternura, por desejo de secar-lhe as lágrimas. Mas ela repeliu-o:

—’Deixa-me! Deixa-me!

Horácio voltou a sentar-se no escabelo e a contemplá-la. Ela continuava no meio da casa, limpando o rosto, de costas voltadas para ele.

— Vou-me embora... — ouviu-a dizer, com um soluço.

Ele levantou-se e pegou-lhe brandamente num braço:

— Não vás ainda... Até a Arminda reparava... Temos tão pouco tempo para nos vermos... Senta-te aqui, um bocado, anda!

Ela não obedeceu.

— Nunca pensei que fizesses uma coisa dessas... — disse.

— Mas eu não fiz nada! Não sejas pateta! E, se fizesse, que mal vinha daí ao Mundo, se nós vamos casar ? — repetiu.

— Não quero! Não quero! Percebeste?

Calou-se. Ele ficara também silencioso, contrariado. “Tinha de arranjar melhor as coisas, para a outra vez pensou. Tinha de a convencer.”

Idalina confessava, agora, numa voz lenta, onde se sentia um pudor mal vencido:

—Aqui há tempos, quando a minha mãe andava com aquela mania do rapaz de Gouveia, eu dei-lhe a entender, para que ela não me aperreasse mais, que eu já te tinha pertencido... Foi um barulho dos demónios! Ela pegou na tranca da porta e, se não fujo, matava-me. Ainda assim, apanhou-me de raspão aqui num braço, que ficou preto durante muitos dias. Depois, por mais que eu lhe dissesse que aquilo não era verdade, não havia maneira de ela acreditar. Fartou-se de gritar que eu era uma galdéria, que eu era a vergonha da sua cara, e até quis pôr-me fora de casa. O que sofri, só eu sei!

Ele escutava-a, guloso das suas palavras, ora lisonjeado por ela haver dito aquilo à mãe, ora temendo que, depois da atitude que esta tomara, Idalina viesse a resistir-lhe sempre.

— Então foi por isso que...

— Não foi nada por isso! É que eu não quero! Nós sofremos por vocês e vocês, depois de fartos, deixam-nos como a um cão. Todas as pessoas que sabem dizem o mesmo. Olha o que sucedeu à Custódia!... Por aí, como uma perdida, com um filho ao colo...

A ele parece inverosímil que ela pensasse assim, que ela pensasse que ele poderia abandoná-la. “Se tudo aquilo era por amor dela, era para ele ter a certeza de não a perder! Não fora isso, ele teria andado como até ali, sem procurar adiantar-se, pois até já havia imaginado como as coisas correriam no dia do casamento.”

Enervado, tentou novamente justificar-se, mas as palavras saíam-lhe dificilmente, dada a razão que o impelira e que ele desejava ocultar.

Idalina interrompeu-o:

— Não quero ouvir falar mais nisso! Vamo-nos embora!

A luz da tarde esmorecia e a cozinha ia-se enchendo de penumbra.

Já vamos... Espera mais um bocadinho. Senta-te aqui. Então a tua mãe ficou furiosa? E esse tipo de Gouveia, não tornou a aparecer?

— Nunca mais o vi. Ainda me escreveu umas cartas, mas não lhe dei resposta.

— Ah, ele escreveu-te?

— A segunda nem a mandei ler. Assim como a recebi, assim a deitei ao fogo. Na terça-feira passada, ele escreveu à minha mãe. Não sei o que queria. Ela não me disse nada, nem eu lhe perguntei.

Horácio estava novamente inquieto e odiento, como no domingo anterior, quando soubera daquilo.

— Então esse tipo continua a teimar na sua?...

— Um dia há-de cansar-se...

— Eu, um dia, é que lhe parto a cara!

— Para quê ? Se ele voltasse aqui, da minha boca não ouvia nem mesmo um “Salve-o Deus!”.

Estas palavras não o tranquilizaram. “O malandro do outro não desistira e, decerto, contava com a mãe de Idalina. Se lhe escrevia, é porque contava com ela. O outro podia casar quando quisesse, pois tinha dinheiro. Ao passo que ele não tinha nada. E a ideia de desonrar Idalina, para a prender, com certeza não dava resultado. Ele bem vira que ela não queria. Quando voltasse a teimar, ela tornava, pela certa, a não deixar.”

Sentia cada vez maior rancor. Ora lhe vinha a ânsia de agarrar Idalina e violentá-la imediatamente, ora de procurar o outro, atirar-se a ele, cuspir-lhe na cara, matá-lo se fosse preciso. E insultar “aquela velha desavergonhada, que nem parecia uma mãe e sim uma alcoviteira”.

Anoitecia. Ouviram Arminda subir as escadas lentamente. Idalina rompeu o silêncio que entre eles se havia feito:

— Vamo-nos embora... — E para Arminda, que entrava: — Vou agora a casa da Anica. — Tinha um sorriso pálido e a sua voz não era normal.

— Vocês continuam amuados? Estão com uma cara!

— Não, que ideia! — negouIdalina. Ele negou também e, pouco depois, saíram.

Pelo caminho, Horácio quis ainda, vencendo a maranha dos sentimentos — o ódio, o despeito, o amor e os receios que na sua alma transitavam — dizer a Idalina da sua ternura, sussurrar-lhe que ela era a vida dele, afirmar-lhe, mais uma vez, o que lhe havia dito muitas vezes e que ela não o deixara repetir há pouco. Mas sempre que começava a falar, alguém se cruzava com eles na nevada ruela, entrava ou saía das casas, saudando-os e interrompendo-o, quebrando-lhe a sequência e o calor das suas confissões.

Deixou-a à porta da Anica e prosseguiu o seu caminho, agora com um grande vácuo na alma. Os pais viram-no entrar com ar soturno e dirigir-se, sem palavra, para o seu quarto, onde se deitou, vestido, sobre a cama. Mais tarde, a senhora Gertrudes foi ter com ele:

— Que tens? Falaste com a Idalina?

— Falei.

— E então? Por que estás assim? Aconteceu alguma coisa?

— Não aconteceu nada... Deixe-me! A ceia está pronta? Às seis e meia o Serafim Caçador espera por mim...

A senhora Gertrudes não teimou naquilo:

— Está pronta, está. Podes vir — disse, resignadamente.

Ele levantou-se e foi sentar-se à mesa. Para poder abalar cedo, aos domingos ceava sempre sozinho, muito antes da hora em que os pais costumavam fazê-lo. Mas o tio Joaquim, se estava em casa, punha-se também à mesa e começava a pairar. Agora, o velho lamentava o preço do leite das suas três cabras.

— Estava tudo muito caro e só o leite se vendia por uma miséria — afirmou.

A senhora Gertrudes, depois de encher de sopa a malga, pusera-se a examinar, discretamente, a expressão do filho. Horácio comia com lentidão e parecia estar a pensar em coisa muito diferente daquela em que o pai falava. De súbito, a senhora Gertrudes percebeu que ele voltava a si, de muito longe. Desatou a comer apressadamente e, mal esvaziou a malga, levantou-se com modos excitados.

— Não queres as sardinhas?

— Não; não quero.

Correu ao quarto e tornou com o chapéu, a lanterna e o cajado:

— Até sábado.

A passos largos, começou a descer a ruela, sempre atormentado por aquele novo temor. Parecia-lhe que quanto mais tempo perdesse mais agravaria o mal.

Idalina acabava de regressar de casa de Anica quando ele a chamou da rua. Lá dentro, os pais e os irmãos dela falavam ininterruptamente e eíe teve de a chamar outra vez. E assim que ela, entre o súbito silêncio da família, abriu a porta, ele disse-lhe, ansiosamente:

— Tinha-me esquecido... Dá me o tostão pelo lenço...

Serafim Caçador aguardava-o, impaciente.

— É tarde — censurou, quando o viu chegar a sua casa. — Tinha ficado de vir das seis para as seis e meia e já deram sete...

— Não pude vir mais cedo... — desculpou-se Horácio.

Serafim olhou em seu redor, como se receasse esquecer-se de alguma coisa. Em seguida, pôs ao ombro um saco meio cheio, pegou no cajado e volveu-se para a mulher:

— Bom. Eu devo voltar amanhã à noite. Mas se, de todo em todo, não puder ser, venho depois de amanhã.

Os dois saíram. Descendo as escaditas exteriores, Serafim queixava-se:

— A tarde estava feia, viste? Épena não haver camioneta todos os dias para a Covilhã. E, para um homem ir tomar o comboio a Belmonte, tem de perder um dia inteiro. Parece que moramos no fim do Mundo! Eu, antigamente, não me importava. Atravessava a serra num pulo, sempre que era preciso; mas, agora, já não estou para grandes caminhadas.

Horácio deixava-o falar e não lhe respondia. Passado o Fundo de Vila e vencido o rio, meteram, de lanterna acesa, à encosta em frente. Subindo o pinhal, Serafim continuava a parolar sem descanso, como era de seu feitio. Já as luzes do povoado haviam desaparecido, quando eles ouviram, longinquamente, o relógio de Manteigas soltar oito horas, que reboaram, com vagar, pelo vale, imerso na escuridade, lá em baixo, atrás deles.

— Temos de dar-lhe!—disse Serafim, num parêntesis; e logo voltou a falar sobre aquele mau vizinho que o filho tinha na Borralheira. Horácio continuava a não fixar o que ele dizia. Idalina instalara-se no seu espírito e ocupava-o todo. “Ele tornaria a tentar no próximo domingo. Ele tinha de resolver aquilo quanto antes e de qualquer maneira, pois o canalha do outro até à mãe dela escrevia.” Demorava-se em hipóteses, amassava pormenores e caía sempre em amargura. “Logo que o fizessem operário, casava-se — e pronto! Acabava-se a ralação! Não era assim que ele queria, mas paciência...” Tornava a sentir-se infeliz, com a ideia naquela casita em que tanto pensara e que ele conhe cia por dentro e por fora, em todos os seus aspec tos, como se já a houvesse construído, como se já a tivesse habitado. Mas a casa aparecia-lhe, agora, distante, mais distante do que essas que ele tinha visto à beira do Tejo, na linha de Cascais, quando andava na tropa; cada vez mais distante e mais pequena e a apagar-se como se fosse uma casa de bonecas pintada num muro, que alguém cobrisse com uma pincelada de tinta negra.

Uma aragem forte começara a correr na vertente, quando eles se aproximavam do Vale do Buraco. E, pouco depois, Serafim sentiu pousar na sua mão, que segurava o saco, algo mais frio do que o frio que havia na serra.

— Eu bem tinha visto!—exclamou, ao atentar na neve que principiara a cair. — A tarde não estava boa... Para S. Lourenço, o céu andava de carranca.

Os dois homens continuaram a subir. Serafim calara-se, finalmente, por mor daquele vento que passava, num zumbido, e lhe entrava pela moca. Era um vento gelado, que fazia rumorejar vagamente a floresta de pinheiros que eles atravessavam. Moderado embora, trazia, agora, até cá abaixo, flocos de neve que, antes, ficavam presos na caruma. Os homens iam andando e a lanterna iluminando troncos após troncos, que brotavam da noite para logo se sumir de novo, dando lugar a outros, sempre a outros, a uma colunada que partia em todas as direcções e parecia sem fim. Obedecendo aos movimentos da luz, os pinheiros dançavam, inclinavam-se, engrossavam ou adelgaçavam, sombras que o eram um momento num bailado estranho sobre a neve que cobria o chão. E a lanterna continuava a andar, como um grande pirilampo voando na floresta.

Finalmente, os dois chegaram a terra desimpedida de árvores. Dali em diante encontravam apenas neve, e, de quando em quando, algum hirsuto rochedo, que a neve não conseguira revestir totalmente e negrejava na infinda brancura. O vento, entretanto, crescera. E pusera-se a entoar um lamento cada vez mais forte e prolongado. Depois, largara-se a uivar, não se sabia em que profundas cavernas, que lhe avolumavam o desespero errante, enchendo a noite e a montanha de um lúgubre tumulto. Horácio e Serafim marchavam contra ele, de cabeça baixa e boca cerrada. Os flocos de neve, já sem ramagens de pinheiros que os detivessem, batiam-lhes no rosto, acumulavam-se sobre os chapéus e infiltravam-se entre a roupa e o pescoço. Dentro das suas quatro faces de vidro, a chamazita da lanterna vacilava, ora se distendia, ora baixava até quase se apagar, perseguida pelo vento que, enfiando-se nos interstícios dos ângulos, chegava até ela. Os homens continuavam a marchar de cabeça vergada. Serafim, arrependia-se de ter vindo. E, a seu lado, Horácio pensava que fora uma grande sorte ter, naquela noite, a companhia de Serafim, pois se fosse ali sozinho aquilo seria ainda mais desagradável. A neve aumentava, rodopiava em volta deles, fustigando-os sem cessar. Era a que vinha do céu e era a que o vento levantava da terra, arrojando-a como uma saraivada.

Serafim deteve-se, ao abrigo de um penedo:

— É melhor voltarmos para trás — propôs.— A mim fazia-me jeito ir hoje, mas, assim, não se pode...

— Eu tenho de ir. Não posso faltar ao trabalho.

— Com uma noite assim, nunca mais chegamos lá. Apanhamos uma carga de neve e ficamos por aí estendidos. Deixemos isto para amanhã. Voltamos agora para casa e vamos amanhã de manhã.

— Isso também eu queria! Mas não posso, já lhe disse! Não posso faltar à fábrica... De mais a mais, isto passa. Vai ver que passa!

A ideia de perder a companhia de Serafim, de ter de palmilhar sozinho a noite medonha, desprazia-lhe grandemente:

— Isto passa! E, se não passar, havemos de romper. Não é a primeira vez que isso me acontece. E você... quantas vezes você já não apanhou neve no caminho?

Serafim, lutava consigo próprio. De Manteigas à Borralheira ou à Aldeia do Carvalho, a pé, mesmo com bom tempo, era o que todos sabiam. Um homem chegava arrasado. Com um tempo assim, era de rebentar e nem em cinco horas se punham lá.

— Fazia-me muito jeito ir hoje, lá isso fazia — repetiu. — Mas o caminho não está para graças. Anda daí, vamo-nos embora! Iremos amanhã. Então tu não podes faltar ao trabalho um dia? Se estivesses doente, não faltavas?

Horácio pensou que Serafim tinha razão. Também ele receava essa noite que ocupara os trilhos da serra e se fora tornando, pouco a pouco, pavorosa, ora gemendo, ora rugindo por toda a parte. Um momento, ele admitiu a ideia de voltar, com Serafim, para Manteigas. A hipótese de se sentar, agora, ao lume da casa paterna parecia-lhe indizível felicidade. Mas logo a lembrança de Mateus o reteve. “Mateus não gostava que se faltasse ao trabalho e, mesmo quando se tratava da doença de um operário, punha uma cara de má vontade. Se soubesse que a razão de ele não se apresentar na fábrica, no dia, seguinte, era ter vindo a Manteigas ver a namorada, ficaria mais contrariado ainda. Ninguém tomava muito a sério o que um homem fazia por causa de uma namorada. E se Mateus começasse a embirrar com ele, poderia deixá-lo estar como aprendiz tempos sem conta. Ora ele precisava de passar a operário o mais depressa possível. E depois do que Marreta lhe dissera, só contava, a bem ver, com Mateus.”

—’Você faça o que quiser, mas eu sigo! Não me convém deixar de ir à fábrica. Depois... para que andar para trás? Daqui a Manteigas é mais de uma hora e o mau tempo tanto está para um lado como para o outro. Se seguirmos, chegamos, não tarda muito, a meio do caminho e de lá até à Aldeia é tudo a descer... é um salto! Mas você faça o que quiser...

Serafim tornou a considerar os seus próprios interesses. Com uma noite daquelas era uma estopada andar sozinho na serra, tanto mais que já estava muito longe de casa. E também a ele não convinha perder o dia seguinte no caminho. Se fosse agora, podia arranjar as coisas com o filho logo de manhã, dar, depois, um pulo à Covilhã, para comprar o que a senhora do doutor Couto lhe havia encomendado e voltar a meio da tarde. Porque, para a volta, não teria ele companheiro e não queria apanhar, outra vez, uma noite como a que estava.

— Vamos lá... —disse com voz resignada. Tornaram a avançar. O vento prosseguia na sua

fúria. De quando em. quando, a neve formava redemoinhos e eles eram como o centro de um funil, açoitados por todas as bandas. Agora e logo tocavam, com as pontas dos cajados, as abas dos seus chapéus, para que caísse a neve que lá se acumulara. Pouco depois, porém, os chapéus volviam a ter peso de chumbo. De boca fechada e nariz escorrendo humores, Serafim principiava a sentir dificuldade em respirar, assim, de encontro ao vento, que se lhe metia pelas orelhas, enchendo-lhe o próprio cérebro de estranhos ruídos. E cada novo passo se tornava sempre mais penoso, como se o vento quisesse vedar-lhe aqueles seus desolados domínios. À altura dos joelhos, o sobretudo de Horácio e a capa de Serafim, constantemente movidos por essa desvairada força, ora lhes azorragavam as pernas, ora se abriam e enfunavam, impelindo-os para trás. Dos joelhos para baixo, as calças molhadas colavam-se à. pele, como esponjas segregando humidade. E a serra continuava sob a neve em turbilhão e aqueles regougos sinistros do vento enfurecido. Os homens andaram, assim, algum tempo, vencendo a ingremidade. Subitamente, Serafim deteve-se outra vez, deixou cair o saco e deu costas ao vento. Horácio voltou-se também. Na sua mão, a lanterna tinha oscilações de pêndulo de relógio. Serafim estava ofegante, os olhos congestionados, os lábios roxos, o chapéu e os ombros todos brancos.

Eu bem te disse que vinha uma tempestade e que era melhor voltarmos para casa...—murmurou, com dificuldade. — Mas tu não quiseste crer... E, agora, é isto...

— Você não falou em tempestade, ora essa! O que você disse é que o tempo estava ruim. E eu tenho visto o tempo assim e, depois, passar...

Serafim considerou que era demasiado tarde para retroceder, mas lamentava-se por não o ter feito anteriormente.

A lanterna lançava uns laivos vermelhos ora sobre os rostos dos dois homens, ora sobre as suas mãos. De quando em quando, iluminava-lhes também as pernas e aquela brancura imensa onde se afundavam os pés.

—Eu já tinha idade para ter juízo. Mas deixei-me levar pelas tuas cantigas...

Serafim continuava a falar com esforço. Horácio sentia-se igualmente fatigado e com os mesmos obstáculos na respiração, mas não o queria confessar.

— Ainda há poucos anos um de Gouveia morreu para os lados das Penhas Douradas, por causa disto

— tornou Serafim. — E os outros só escaparam porque deram a tempo com o Observatório... Se não fosse isso, tinham, ficado lá todos...

— Não conheciam a serra como eu a conheço...

— interrompeu Horácio. Logo, hesitante, ergueu a lanterna. A luz não ia além de cinco metros. Horácio consolou:—Já passámos, com certeza, as Almas. Devemos estar perto da Portela...

Serafim teimou:

— Então aquele rapaz que, aqui há tempos, morreu, com o cavalo, mesmo ao pé do hotel das Penhas da Saúde, também não conhecia a serra? Anda, dize!

Horácio encolheu os ombros:

— Se soubesse que você tinha tanto medo, não era eu que queria a sua companhia...

— Medo, eu? — A voz de Serafim parecia sair de um subterrâneo, de um túmulo.

Os dois sentiam-se empurrados pelas costas. Horácio meteu os dedos entre o pescoço e a gola do sobretudo e tirou de lá a coleira de gelo que o oprimia. Tinha desejos de ser agradável a Serafim:

— Dê cá o saco... Eu levo-o, agora, um bocado... Pegue lá a lanterna...

Voltaram a caminhar, sempre de cabeça baixa, cara voltada para a direita, na ânsia de melhor respiração. No cume da serra, o vento passava e ululava com mais violência ainda. Um momento, os flocos de neve pareceram diminuir, mas logo tornaram a adensar-se, fortes no choque com os corpos dos homens, como se fossem arremessados por uma funda.

De quando em quando, Horácio sentia enregelar a mão que segurava o saco. Passava, então, este para a mão direita e o cajado para a esquerda. Pouco depois, fazia o contrário. Sobre o cajado ele procurava movimentar os dedos, abrindo-os e fechando-os constantemente, para aquecê-los, mas cada vez eles se moviam com maior dificuldade.

Subitamente, a lanterna apagou-se. Serafim berrou uma praga. Os dois pararam, mas não viam nada em seu redor. Só a neve continuava a bater-lhes nos rostos e nas mãos. Serafim tornou a praguejar. A sua voz não teve, porém, eco: o vento incorporou-a imediatamente à sua fúnebre ária.

— Abra a capa — pediu Horácio. Ele mal adivinhava, na sua frente, o vulto de Serafim. Ajoelhou-se e tirou a caixa de fósforos: — Chegue bem a lanterna para aqui. — Abriu a portita de vidro e riscou o primeiro fósforo, que se apagou. Serafim estava de costas ao vento e com a lanterna entre as pernas, protegida pela capa, mas o segundo, o terceiro, o quarto fósforo apagaram-se também. A capa debatia-se com o vento e as pernas; ora se afastava destas, ora se insinuava por entre elas, fazendo uma dobra que ia até junto da lanterna. Horácio irritava-se contra os seus dedos, que, endurecidos, quase hirtos pelo frio, não lhe obedeciam, não protegiam eficazmente a ínfima chama que, num, instante, feria a treva, para logo morrer. De pé, Serafim enervava-se também. Parecia-lhe que se fosse ele a acender a lanterna já o teria conseguido. “Deixa ver! Deixa ver!” — pedia de vez em quando. Horácio, porém, teimava. Por fim, sacudiu a caixita junto do ouvido. Logo, inquieta, a tacteou por dentro. Havia apenas quatro fósforos. Horácio ergueu os olhos para o companheiro:

— Olhe lá: você tem fósforos?

Serafim adivinhou rapidamente tudo. E respondeu, sombriamente, repreensivo:

— Não. Tu bem sabes que eu não fumo. Se me tens dado isso, eu já tinha acendido...

Horácio levantou-se:

— Não tinha! Nem você, nem o mais pintado! Pegue lá os fósforos... Mas sempre lhe digo que, sem uma fraga que abrigue a lanterna, não se consegue nada...

Habituados à escuridade, os olhos viam, agora, melhor em sua volta. Era tudo ’branco, uma terra branca sem fim. Horácio lembrou-se da Lua que ele tinha visto, noites antes, quando saía da casa de Marreta e encontrara João Ribeiro. “Havia, então, nuvens sobre a Lua, mas, mesmo assim com nuvens, a Lua dessa noite seria, agora, a salvação” — pensou. O céu estava opaco, de um claro-escuro que parecia tocar, pesadamente, a própria cabeça deles. “E o João Ribeiro e a Júlia a dizerem que o frio ia passar!”— lembrou-se de novo, com raiva.

Volveram a caminhar, lentamente, olhos à esquerda e à direita, em busca de recife que se levantasse naquele mar de leite cristalizado. Mas quando algum mamilo se apresentava em frente deles, logo viam que estava também coberto de neve e não oferecia anteparo capaz. E para além de seis, sete metros, eles não divisavam coisa alguma. Por fim, um vulto maior se destacou. Numa das suas faces havia uma mancha negra, que a neve não conseguira tapar. Os dois avançaram para lá, pela primeira vez contentes desde que tinham saído da floresta. Era uma pequena cavidade, onde mal caberia uma ovelha. À entrada, o gelo retorcia-se em pingentes. Serafim ajoelhou-se, abriu a lanterna e pegou nos fósforos. Acocorado do lado de fora, Horácio seguia, de respiração suspensa, os seus movimentos. O fósforo chegou a entrar, aceso, na lanterna. Mas, ao acercar-se do pavio, apagou-se. A mão de Serafim tremia ao abrir, outra vez, a caixa. Ele sentia também os dedos presos, desobedientes, inteiriçados pelo frio. Uma nova luzita brilhou, trémula pela aragem que penetrava na cavidade. Pouco depois, Serafim fechava, triunfante, a portita da lanterna. À pálida luz, a sua cara mostrou-se comprida e de olhos amortecidos. Tinha neve até nas sobrancelhas.

Cajados à frente dos pés, os dois recomeçaram a marcha. As extremidades das calças já não pareciam húmidas; haviam endurecido e molestavam-lhes, agora, as pernas, como se fossem de vidro. Horácio não cessava de olhar a um lado e outro, ansioso de identificar a Fraga do Neto, que ’lhe daria o conforto dó saber que tinha feito já a maior parte da caminhada. Mas a neve deformara tudo, covas e relevos, pedras e urzes, igualando, em longos trechos, o que, noutros dias e noutras noites, era diferente. A ele, agora, a imagem de Idalina aparecia-lhe, esbatida, sob a de Mateus. Era a figura do mestre que se antepunha entre os seus olhos e a neve, entre os seus olhos e a noite inteira. Nos momentos em que o cansaço se fazia sentir mais, Mateus surgia-lhe, de cara sombria, à hora de os operários entrarem na fábrica. E, então, ele arrancava, a si, novas forças para continuar a andança, para vencer a neve, o vento e a noite. E sempre aquela ansiedade de chegar a casa, de pedir à Júlia que acendesse um grande lume para ele se aquecer, para aquecer, sobretudo, as mãos. E assim poder, no dia seguinte, às oito horas, estar na fábrica. Continuava a olhar e via a figura de Mateus e não a Fraga do Neto, que ele buscava. “Já deviam tê-la passado, pois andavam na serra há um ror de tempo” admitiu.

A lanterna voltou a apagar-se. Serafim, que a levava, estacou. Desta vez ele não disse uma só palavra. Horácio ficou calado também, ambos tolhidos por essa vontade adversa, inexorável, que dominava a serra e a noite.

Horácio foi o primeiro a arriscar alguns passos. Serafim, de começo, marchava atrás dele, mas, depois, colocou-se ao seu lado. Dez, quinze minutos — e sempre o vento e sempre a neve e sempre aquelas dores nas mãos. Finalmente, Serafim murmurou, voltando a cabeça:

— Ali...

Era outro rochedo branco e negro, à direita. Por detrás, muitos outros penedos ainda. Ambos procuraram uma cavidade.

— Aqui está abrigado — preveniu Horácio.

— Pega lá os fósforos...

— Não... Acenda você... — Acende tu...

Nenhum deles queria, agora, a responsabilidade. Contrariado, Serafim transigiu e acocorou-se. Estendeu a mão aberta, sondando o ar, mas a sua mão estava insensível. Pediu:

—Vê lá bem se não há vento aqui...

Horácio estendeu igualmente a mão. Também a ele a sensibilidade amortecera.

— Parece-me que não há Mas deixe lá, eu abro o sobretudo...

Os dedos de Serafim, tiraram, com dificuldade, o fósforo da caixa. Duas, três vezes riscou a lixa. A chamazita surgiu, mas extinguiu-se antes mesmo de se aproximar da lanterna. O coração de Horácio começava a pulsar mais fortemente. Nos seus ouvidos andava uma zoeira enorme, que já não parecia do vento, mas sim criada no seu próprio cérebro. Serafim tardou a retirar da caixa o seu último fósforo. Silenciosos, os dois homens pareciam aguardar algo imprevisto, uma súbita inspiração, um socorro impossível. Serafim meteu, outra vez, o fósforo na caixa.

Acende tu... — balbuciou.

Para quê?—A voz de Horácio saiu-lhe rouca, pastosa.

Serafim juntou as mãos, ergueu os olhos para o céu revolto e pôs-se a murmurar uma reza. Depois, tornou a pegar no fósforo.

Horácio abriu, de novo, o sobretudo, encostando as suas extremidades ao rochedo, para dar melhor resguardo.

Serafim riscou. O fósforo luzia mesmo à portita da lanterna. E, .trémulo, com a chama ora a distender-se, ora a minguar, ainda avançou alguns centímetros. Os olhos de Horácio não o largavam. Aquilo não durou um segundo e parecia que durava toda uma vida. A lanterna tornou a ficar no escuro. Só na lixa da caixita que encerrava os fósforos brilhou, alguns, momentos, uma vaga claridade, um risco vagamente luminoso, que, em breve, também se desvaneceu.

— Vamo-nos embora... — rouquejou Serafim. E, erguendo-se, começou a andar, sem esperar pelo companheiro, como se este lhe fosse indiferente. Ia vergado, cada vez mais vergado. Agora, a um rochedo sucedia outro, uma série de penhas fantasmais postadas no dorso da montanha. As mãos de Horácio, que seguravam o saco e o cajado, doíam-lhe mais. Dir-se-iam revestidas de cortiça e a doer, a doer nos ossos. “Se, ao menos, pudesse metê-las nos bolsos! Se, ao menos, pudesse meter uma delas!” Os rochedos continuavam. Horácio prendeu horizontalmente o cajado sob o braço direito e abrigou a mão no bolso. Mas, tentados alguns passos, verificou que não marchava capazmente sem o auxílio do cajado. Volveu a tirar a mão da algibeira.

Olhe lá... Que leva você, aqui, no saco?

Serafim já mal podia falar. As palavras saíram-lhe entrecortadas e como num sopro:

— Umas coisas de que o meu rapaz precisa...

— Se o deixássemos aqui? Amanhã você vinha buscá-lo... Ou apanhava-o quando voltasse...

As mãos de Serafim doíam-lhe também, há muito tempo já. Mas ele olhou em seu redor e convenceu-se de que nunca mais encontraria o saco, se o abandonasse ali.

— Não pode ser... São mais de quinhentos mil réis... Dá-mo cá.

— Não; eu levo-o.

— Dá-mo...

Pô-lo no ombro esquerdo e entregou a lanterna a Horácio. A serra continuava povoada de rochedos, que pareciam acampados sob vastos lençóis de formas cónicas. Horácio arremessou a lanterna inútil contra um deles e meteu a mão no bolso. O vento não deixou sobressair sequer o estilhaçar dos vidros; ele continuava a dominar tudo com os seus uivos, que mantinham a alma da noite num perpétuo estarrecimento.

Horácio voltava a fixar os penhascos: “Já há muito deviam estar —pensou— no Beijames e ver, ao longe, o clarão da Covilhã. Mas no Beijames os penedos não eram assim... E não dera também conta de que tivessem passado pela Portela e pela Fraga do Neto...”

Serafim arrastava-se cada vez mais penosamente. Quando Horácio o olhou, já ele havia abandonado o saco. Tinha o passo de urso cansado de dançar.

A Horácio parecia-lhe, agora, que conhecia aqueles penedos. Não eram, porém, os dos atalhos que levavam à Aldeia do Carvalho ou à Covilhã.

Serafim tropeçou, caiu e deixou-se ficar, estendido, na neve. Milhentos flocos tombavam sobre o seu corpo como se, por cima dele, uma macieira estivesse a esflorar-se. Horácio dobrou-se, para ajudá-lo a erguer-se, mas sentiu que, também a si, as forças iam faltando. Os seus braços estavam hirtos, como se não possuíssem articulações. Serafim manteve-se algum tempo quieto e, depois, conseguiu ajoelhar-se. O peito arquejava-lhe. Firmando-se no ombro que se lhe oferecia, pôs-se lentamente em pé.

— Parece-me que nos desviámos, que não vamos por bom caminho...—murmurou Horácio.— Parece-me que estas fragas são as da Malhada Velha...

Serafim olhou os penhascais cobertos de nev e reconheceuos: “Não havia dúvida, iam enganados. Já tinham feito um estirão escusadamente. E se continuassem por ali, em vez de botar à Aldeia, iriam sair entre a Nave e as Penhas da Saúde.” Serafim quis falar, mas não pôde. A garganta expelira apenas um rouquejo. Tornou a pensar: “Também o rapaz que morrera, com o cavalo, mesmo ao pé do hotel das Penhas, conhecia bem a serra. Ganhava a vida a fazer serviços entre a Covilhã e as Penhas. E nem por conhecer a serra se salvara, quando a tempestade o apanhou...”

— É a Malhada Velha, não é verdade? — insistiu Horácio.

Serafim tentou, mais uma vez, falar. A voz desaparecera-lhe. Com a cabeça ele fez um vago sinal afirmativo.

— O melhor, então, é cortarmos aqui à esquerda e sempre a direito. O Beijames deve estar por aí...

Horácio adivinhou que Serafim pensava em todo aquele caminho que haviam perdido e o culpava a eie de quanto acontecera. Desculpou-se:

— Foi o raio da lanterna... E você também não deu por nada! Mas, assim, já não nos enganamos outra vez...

Serafim não fez o menor esforço para responder. Os dois tornaram a marchar. Horácio sentia-se exausto. E aquelas imagens que surgiram no seu cérebro, desde que eles se tinham detido a primeira vez, voltavam sempre, esfumadamente. Era a sereia a apitar, o Mateus junto do seu cacifo envidraçado e os operários a entrarem as oito da manhã em ponto. Era sempre a mesma coisa, sempre as mesmas cenas.

A montanha lançava, agora, a sua outra vertente. A descer, o passo tornava-se mais incerto, inseguro a cada instante. Ao procurar apoio nos cajados, as mãos, falecido o seu vigor, deslizavam ao longo da vara, encortiçadas, inertes. A neve que escondia os magotes de urzes rompia-se, por vezes, sob os pés, e eles afundavam-se no mundo vegetal, que jazia por baixo, eriçado de puas. Cada vez, porém, a pele tinha menor susceptibilidade.

Serafim via, como no centro de uma névoa, a mulher e os filhos. Via, depois, o seu funeral. O padre, o sacristão, a cruz. Caía neve em flocos, como fragmentos de asas. Ele ia dentro do caixão, com saudade da mulher e dos filhos. Os amigos caminhavam atrás, vestidos de preto, mas com os ombros e os chapéus cobertos de neve. A cova já estava aberta, mas a neve embranquecera, num instante, a terra remexida que se acumulava nas bordas. A mulher continuava a chorar. Logo ele pensou, vagamente, que, se morresse ali, podiam passar-se muitos dias antes de ser encontrado o seu cadáver. Talvez só o descobrissem quando o Inverno acabasse, quando a neve se derretesse. E essa ideia aterrorizou-o mais.

Dir-se-ia que, na encosta, os penedos se haviam multiplicado. Não se venciam dez metros sem se topar um daqueles vultos em frente, branco nas suas absurdas formas arestosas. Mais abaixo, outro, outro, sempre outros, sempre outros. Serafim voltara a cair e arrastava-se, pesadamente, como um réptil, por entre esses quedos fantasmas.

Finalmente, eles adivinharam, à direita e ao longe, a Covilhã. Noutras noites, o clarão da cidade enchia o céu e via-se a grande distância. Mas, agora, o céu estava todo fechado e só uma vaga claridade, muito vaga, contrastava com a obscuridade geral. Ao distingui-la, porém, Serafim sentou-se ao pé de um dos rochedos e começou a chorar. Era um choro grotesco mesclando-se com aquela sua respiração que dir-se-ia um resfolegar de vapor. Horácio sentou-se também e quis encorajá-lo. Mas, como a de Serafim, a sua garganta já não conseguia articular uma só palavra. A única força que sentia era essa que não o deixava respirar livremente, era essa que oprimia o seu peito, como se ele fosse estoirar. Quedaram, assim, alguns minutos. Depois, Horácio levantou-se e olhou, de novo, para as bandas da Covilhã, em seguida para o vale, perscrutando a noite. “Iam, agora, por bom caminho, com certeza. A Aldeia devia estar lá em baixo.”

Serafim ergueu-se, lenta e dificilmente, e os dois continuaram a descida da encosta. Os pés já haviam perdido o jeito de tactear, nadeclividade, as pedras que se deslocavam e as urzes que formavam ocos sob a neve. Serafim deixara o cajado entre os penedos; a mão de Horácio ’também já não sustinha o seu e abandonara-o igualmente. Agora, eles avançavam entregando-se às circunstâncias, resvala aqui, tomba ali, gatinhando além e prosseguindo cada vez mais vagarosamente. O vento teimava nos seus rugidos e dir-se-ia a única presença na serra, à qual o vale, a imensa Cova da Beira, respondia com ecos de terror.

Horácio tinha a sensação de que os seus pés haviam crescido e que ele caminhava sobre duas coisas mortas, às quais a neve se agarrava; duas coisas que não eram pés e que não eram dele. O corpo parecia existir apenas do sexo para cima e somente lá muito dentro, como o cerne de uma árvore.

De quando em quando, Serafim ficava para trás. Horácio quedava-se a esperá-lo. Pela sua própria carência de forças, ele admitia que Serafim não pudesse dar, de um momento para o outro, um só passo mais. O chapéu, de tão carregado de gelo, pesava-lhe, agora, como se ele levasse uma pedra à cabeça. E, em volta do pescoço, entre o sobretudo e a pele, a neve formara uma gargalheira, que o ia apertando que nem um garrote. Horácio teimava em levar lá as mãos, mas os seus braços estavam rígidos e não lhe obedeciam. Serafim deixou-se novamente cair e, mais do que das outras vezes, tardou a levantar-se.

Já passava da meia-noite quando o velho quinteiro Sargo acordou com o rumor que faziam na sua porta. Ainda estremunhado, soergueu-se e apurou o ouvido. A mulher despertou também e ficou, igualmente, à escuta. O ruído volvia, de quando em quando. Eram umas pancadas surdas, como se alguém batesse na porta com a cabeça. Sargo considerou as horas que seriam e pensou em ladrões. O seu casebre erguia-se, solitário, no meio de uma quintazita sobranceira à Aldeia do Carvalho a mais alta que fora arroteada na serra. Dali às primeiras casas que, dispersas, o povoado lançava encosta arriba, havia ainda grande distância.

O velho Sargo acendeu, tremulamente, o candeeiro. Pensou que ele nada possuía que valesse a pena roubar, mas os ladrões podiam julgar o contrário, tinha-se visto isso muitas vezes e, às vezes, até matavam as pessoas que estavam em casa. Com a luz na mão, foi acordar o filho, o Leopoldo, que dormia no sobrado. E só quando o viu de pé, a bocejar e a contemplá-lo, intrigado, é que gritou para fora:

— Quem está aí?

Ninguém respondeu. Mas ouviu-se, de novo, um ruído surdo na porta, como se um burro ou um cavalo nela roçasse a garupa. A ideia de que seria animal perdido, tranquilizou um pouco mais o velho Sargo.

— Quem está aí? — repetiu.

À mesma ausência de voz que respondesse, sucedeu o mesmo rumor. Sargo olhou para o postigo que havia no sobrado. O filho, adivinhando-lhe o intento, correu para lá, meteu cautelosamente a cabeça e volveu:

— São dois homens — sussurrou. — Um está no chão, como morto.

Sargo teve novamente receio. Quem se encontrava do lado de fora insistia, porém, nas pancadas, cada vez mais leves, mais surdas cada vez.

— Estão cobertos de neve...—tornou Leopoldo. O velho hesitou e colou o ouvido à porta.

— Quem é? Quem é?

Captou, então, uns sons guturais, de quem queria falar e não podia. Sargo decidiu-se. Passou o candeeiro à mulher e armou-se do seu cajado. O filho pusera-se do outro lado, também de cacete no ar. Mas logo que o velho abriu a porta, Leopoldo baixou o varapau. Dentro de casa caíra, exânime, um vulto humano. O outro continuava estendido lá fora.

A mulher de Sargo pusera-se a soltar exclamações de surpresa e de piedade. E enquanto ela acendia o lume e o velho quinteiro ia buscar a garrafa de aguardente, Horácio pensava, difusamente, como num sonho, que, no dia seguinte, às oito horas, podia entrar na fábrica, como sempre.

OS patrões haviam tardado uma semana a responder ao pedido que lhes fora feito. Depois, declararam que, como se sabia, os tecidos estavam tabelados. E não podendo eles aumentar o seu preço, não podiam também aumentar os salários. Tinham muita pena, pois reconheciam que, devido à guerra, a vida estava difícil. Mas não podiam fazer nada. Dois ou três escudos que aumentassem, por dia, a cada operário, dariam, no fim do ano, uma soma enorme, que a indústria não comportava.

Na fábrica de Azevedo de Sousa, a notícia, conhecida à hora do almoço, não trouxe grande surpresa. Houve um pequeno silêncio e os homens deixaram de mastigar durante um momento. Depois, os que sempre se tinham mostrado cépticos pareciam mesmo contentes por haver triunfado sobre os mais confiados:

— Então... eu não te dizia?

— Quem tinha razão? Dize lá!

Reacção violenta só a teve Tramagal, que se lançou em palavras obscenas, como era seu costume, quando se irritava. Mas, perante o sorriso de Pedro, ele mudou de tom:

— Acho muito bem que os tecidos estejam tabelados. É ver como sobe de dia para dia o preço das coisas que o não estão... Mas, mesmo assim, os tecidos têm dado rios de dinheiro, pois isto dos tabelados é uma mina, como toda a gente está farta de saber.

— Ora! Ora! — exclamou Pedro, do canto da mesa onde se sentava. — Se tudo aumenta, por que não hão-de aumentar também os tecidos?

Marreta e outros operários saíram a contrariá-lo. Pedro pôs-se a discutir com Tramagal e Marreta e, por fim calou-se, desdenhoso. Com um pedacito de madeira, tirado da caixa de fósforos, começou a limpar as unhas.

Os homens continuaram a falar dos salários e do custo da vida, lamentando-se; mas, agora, faziam-no com vozes graves e, de quando em quando, um novo silêncio caía entre eles. Parecia, porém, que Marreta, pela maneira como se referia àquilo, esperava ainda alguma coisa.

De repente, Pedro voltou-se para Horácio e disse-lhe que, no sábado seguinte, sairia dali. Iria, na segunda-feira, para a Renovadora. Lá, em vez de pegar fios, trabalharia na penteação, o que era melhor para ele.

— Agarra-te ao irmão do Mateus, para ver se apanhas o meu lugar. E deixa-os lá falar! Eles andam todos na lua...

Ia Horácio perguntar a Pedro como obtivera aquilo, mas já ele, acendendo um cigarro, abandonava, ostensivamente, o refeitório. Foi, então, que o Boca Negra, comentando o caso, segredou a Horácio que Pedro era tido por filho ilegítimo de um comerciante da cidade, que, às vezes, o protegia. Mas parecia que este duvidava de ser o verdadeiro pai, pois bacorejava-se que, no seu tempo, a mãe de Pedro se divertira com mais de um homem. Por isso, o comerciante nunca quisera ver o filho e a protecção que lhe dava era fraca, só de longe a longe, e, mesmo assim, sempre por portas travessas.

Horácio sorriu:

— Eu logo vi que o Pedro contava com qualquer coisa. Aquela mania que ele tem das mulheres da alta e de aprender esqui:

Boca Negra interrompeu-o:

— Não deixes de fazer o que ele te disse, senão o Mateus é muito capaz de dar o lugar a outro...

Horácio tinha por inúteis aquelas recomendações, pois, mal ouvira as palavras de Pedro, havia decidido voltar a pedir a interferência de Manuel Peixoto. E, assim, nessa mesma tarde, mal chegou à Aldeia do Carvalho, o procurou. Peixoto ouviu-o e prometeu-lhe ir, na manhã seguinte, à Covilhã, falar com Mateus.

Desde então, Horácio passara a contar, ansiosamente, os dias. Mesmo depois de Manuel Peixoto lhe haver dito que o irmão ficara “de ver o caso”, ele continuara em nervosa expectativa, sempre futurando o pior, sempre admitindo que outro, mais recomendado, se cruzasse no seu caminho, ocupando, à última hora, a vaga que se ia dar. Todas as manhãs, ao dirigir-se para a fábrica, esperava que Mateus o chamasse e lhe comunicasse a boa nova. Mas ele entrava e o mestre não dizia coisa alguma. Chegara, assim, o sábado, dia em que Pedro deixaria de trabalhar ali. Também nessa manhã Mateus vira-o passar em frente do seu gabinete envidraçado e não lhe fizera qualquer sinal para que se aproximasse. Horácio vivera em desespero todo o dia e o próprio Boca Negra, o próprio Pedro, não ousavam contrariar os seus receios de que o lugar já houvesse sido dado a outro. Às cinco horas da tarde, porém, alguns segundos antes de a sereia apitar, Mateus, largando do seu gabinete, começou a avançar pela fábrica. E logo que os operários foram substituídos pelos do turno da noite, ele disse a Horácio, secamente:

— Segunda-feira, você ocupa o lugar do Pedro, que se vai hoje embora...

Não esperou sequer agradecimentos. No seu passo vagaroso, continuou a andar para o extremo do grande quadrilongo.

Horácio saiu alvoroçado. Ao chegar à estrada, aguardou Marreta e Tramagal e contou-lhes, ditoso, a novidade. Queria dá-la também a Ricardo, mas em vão os seus olhos perscrutaram a curva que a estrada fazia junto da Carpinteira.

— Vamos embora — propôs Tramagal.

— Deixem ver se o Ricardo vem...

— Não deve vir agora — disse Marreta, como se soubesse o que o Ricardo ia fazer depois de sair da fábrica. — Hoje, só deve vir lá para a noite...

Como Marreta falasse com um tom de mistério e nada acrescentasse espontaneamente, Horácio não insistiu. E os três partiram. Nessa noite ele não soube mais coisa alguma. Mas, dias depois, ouviu murmurar, na fábrica, que estava em organização uma greve.

— Então as greves não são proibidas? — perguntou.

No grupo em que ele se encontrava houve um súbito silêncio.

— Também havia de ser proibido deixar-nos morrer de fome, e não é! — exclamou, por fim, Tramagal.

À hora da saída, Horácio ouviu Marreta lastimar que a notícia da greve se houvesse propalado antes de tempo:

— Ainda os industriais e a polícia acabam por saber tudo e tomam as suas providências, como tem acontecido de outras vezes..

Tramagal fez o movimento de falar, mas conteve-se. Ricardo, que, desta vez, ia também com eles, estrada fora, mantinha os seus modos reservados. Marreta voltou-se para ele:

— Não te parece?

Ricardo olhou para o chão, para a biqueira dos sapatos, como se se interessasse pelo avanço dos seus pés na estrada.

— O que falta à maioria dos nossos é uma consciência declasse — disse, depois. — Se todos a tivessem, já não encontraríamos estas dificuldades... - Tramagal desatou a discutir aquilo:

Mas esses da Covilhã? Sim, os da Covilhã?

Estava uma tarde fresca, toda plúmbea e merencória. Era <no fim de Fevereiro e mal eles entraram na Aldeia do Carvalho começara a chover. Choveu a noite inteira, uma chuva violenta, que Horácio ouvia bater sobre o telhado da casa de Ricardo, forte como grãos de chumbo. Mas, de manhã, quando ele se levantou, só as poças dos caminhos e as folhas das couves, que luziam gotas como as do orvalho, guardavam lembranças da chuva. O céu abrira sobre a terra o seu grande olho luminoso e tudo modificara. O frio amortecera e o gelo que resistira à noite pluviosa brilhava, agora, ao sol. Por toda a parte, os pobres pareciam respirar alívio, pois os meses anteriores haviam sido tão rudes, tão frígidos, que até a neve caíra nas regiões do sul, onde, há muitos anos, não se via a sua pinta. Agora o sol cobria tudo. Dir-se-ia um sol novinho, acabado de fundir e ainda espirrando raios do seu branco metal incandescente.

No domingo de tarde, Horácio procurou Marreta em sua casa. Desde que havia ocupado o lugar de Pedro decidira mandar fazer um fato novo, para o caso de ter de precipitar o casamento. Após aquela noite pânica em que atravessara a serra com o Serafim Caçador, ele só voltara a Manteigas uma vez. E, para isso, tivera de mentir ao mestre. Afirmara-lhe que a sua mãe estava doente e -pedira-lhe que o dispensasse nesse sábado à tarde e na segunda -feira seguinte, para poder ir de camioneta e regressar no comboio. Mateus acedera, mas, como sempre, de má catadura. Ele fora e, também dessa feita, Idalina resistira às suas tentações. Desde então, porque o trânsito na serra, atulhada de neve, continuava perigoso, só por escrito tivera notícias dela. E essa falta de convivência adensara, ainda mais, a sua intranquilidade. Nas cartas que enviava a Idalina, nunca aludia ao rapaz de Gouveia; mas a recordação deste, todas as hipóteses ruins que a sua existência permitia desfiar, molestavam-no constantemente. Agora, porém, sentia-se mais senhor do seu destino. Com’ um fato novo e um dinheiro emprestado, casar-se-ia se percebesse, em qualquer momento, que Idalina já não estava disposta a esperar mais tempo. O seu novo salário era pequeno e, visto o preço que as coisas agora custavam, para muito pouco dava. Mas Idalina podia trabalhar também, vir a ser esbicadeira, auxiliando a vida deles, como a Júlia e outras mulheres faziam. E talvez, com isso da greve, os salários fossem aumentados. Só faltava o raio da casa. A guerra encarecera grandemente as terras. Ele já deitara as suas contas e vira que nem trabalhando três anos conseguiria forrar o dinheiro necessário só para o terrenozito de que precisava. E o resto? Os materiais? As coisas, vistas assim de perto, eram diferentes do que ele pensara quando estava em Manteigas. Mas, agora, constava que a Câmara ia construir casas para os operários. E que cada uma delas teria dois ou três quartos, uma sala, uma cozinha e até uma latrina, melhor do que ele havia desejado. Se isso fosse verdade, estava tudo resolvido. É certo que muita gente garantia que isso não podia ser: “Ninguém ia fazer casas assim tão boas para os pobres. Já uma vez, há quase trinta anos, o governo tinha dito que ia construir um bairro social. Muitos homens chegaram a andar a partir rochas junto da Covilhã. E, por fim, não se fizera coisíssima nenhuma. Os pobres ficaram tal como estavam.” Sempre que ouvia contar isto, ele entristecia. Mas os outros operários admitiam que talvez agora fosse certo, pois os jornais da Covilhã já tinham falado daquilo e parece que os de Lisboa também.

Tramagal alinhava, como sempre, entre os que não acreditavam:

— Palavriado! Também da outra vez os jornais falaram!

Horácio quedava em dúvida: “Se aquilo se fizesse, ele escusava de andar ali a sacrificar-se: casaria imediatamente. Se não se fizesse paciência! Ele gostava muito de crianças lá isso gostava! E ficaria desgostoso se Idalina não lhe desse filhos. Mas isso podia acontecer e, então, talvez ele e ela, trabalhando os dois, conseguissem amealhar alguns vinténs para levantar a casa que ele desejava. Agora, faria a roupa, para adiantar as coisas, pois não confiava nada nos pais de Idalina, sempre dispostos a casá-la com outro. O resto, depois se veria.”

Ouvira dizer, há tempos, que na fábrica podia obter um corte de fazenda muito mais barato do que cá fora. Nessa altura ele ainda não pensava em fazer o fato, mas, agora, queria saber como se arranjava isso.

Ao entrar no casinhoto de Marreta, o velho tecelão mal lhe ouviu o intento, disse que aquilo era muito simples. Os patrões vendiam aos operários os cortes de fazenda pelo preço do seu custo. E alguns, se lho pedissem, aceitavam até que o pagamento fosse em prestações, cada uma descontada na féria semanal. Se os operários dali vestiam de lã as gentes de muitas terras, enquanto muitos deles andavam esfarrapados e traziam as famílias cobertas de trapos, não era que não tivessem tecidos mais baratos do que tinham as outras pessoas. O caso era outro. O caso era que eles não ganhavam o suficiente para comprar, mesmo pelo preço do custo, mesmo a prestações, os cortes de fazenda de que careciam para andar bem abrigados. Os outros, os que tinham dinheiro, é que podiam usar os bonitos tecidos que eles faziam ali. Mas estivesse Horácio descansado. Já que tinha acanhamento de falar naquilo ao Mateus, logo depois de o mestre lhe haver dado o lugar de Pedro, ele próprio falaria. Queria descontar tudo nas férias ou entregava algum dinheiro por conta?

Bem... O que me convinha é que fosse para descontar, pois dinheiro, por enquanto, não tenho. Vou cuidar de economizar tudo o que puder, mas tenho também de pagar ao alfaiate...

— Está dito! Amanhã trato disso...

Horácio hesitou um momento antes de interrogar Marreta sobre a outra questão que o preocupava. Ao seu egoísmo de montanhês, todo voltado para si somente, os rumores de greve próxima causavam reacções antagónicas. Ora aceitava a ideia de boa mente, fascinado pela hipótese de uma melhoria de salários, ora se enchia de receio — receio de ser despedido, como alguns operários diziam que, às vezes, acontecia aos que em tais acções tomavam parte.

— E isso da greve, como vai? — perguntou, por fim.

Antes mesmo de ripostar, a cara de Marreta adquirira uma expressão melancólica:

— Há-de fazer-se... Há-de fazer-se... Como podiam os operários continuar a viver assim? Até os patrões se admirariam se ficássemos de braços cruzados... Que a esta hora eles já devem saber tudo, está claro... A greve devia ter sido feita, como eu queria, logo que eles disseram que não aumentavam os salários. Mas há-de fazer-se...

Ao voltar a casa, Horácio considerou que, se o tempo se mantivesse assim ensoalheirado, no sábado seguinte já ele podia ir, a pé, a Manteigas. E a ideia de voltar a ver Idalina varreu as outras que ele trazia.

À porta dos casebres por onde Horácio ia passando, homens e mulheres, sentados nos limiares, fruíam a tarde domingueira. Na aldeia proletária, velha e suja, de ínvias ruelas e de paredes negras a desmoronarem-se, os habitantes mostravam-se gratos e surpreendidos com aquela temperatura de precoce Primavera. Tão agradecidos, que os mais idosos contemplavam o céu e teciam dúvidas: “sol de Inverno, sol de pouca dura.” O sol, porém, desmentiu-os e pôs-se a brilhar dias e dias a fio. A neve derretera-se e, mesmo nos cumes da serra, lá para as vizinhanças da Torre e dos Cântaros, os humildes zimbros, até aí sepultados em gelo, puderam ver, de novo, a luz solar. Quando, no domingo seguinte, Horácio obrigou Idalina a dizer-lhe quem era o homem de Gouveia que a tentara e lhe escrevia, havia sol na varanda da tia Madalena e sol continuou a haver toda a semana. Tanto, tanto, que, em meados de Março, se soubera que esse calor prematuro, que aos pobres aquecia, secava pastos, atrofiava searas e, para as bandas do Sul, já os gados emagreciam e toda a agricultura se mostrava lesada em seu desenvolvimento. Se a estiagem continuasse, o ano seria terrível. A fome bateria, ainda mais desalmadamente, à porta dos pobres, já que o pouco que a terra produzisse só os ricos o poderiam comprar. As gentes passaram, então, a ver o sol como um inimigo e, nas aldeias de maior crença, os padres e outros habitantes começaram a entoar preces, implorando do céu que lhes enviasse chuva. O céu, porém, não os atendia e, como esses dias limpos de nuvens e de frio prosseguissem, Júlia olhou os seus dois cobertores mais novos e pensou que, em último caso, eles poderiam resolver-lhe os apuros. Com o tempo seco, Ricardo melhorara, mas em Janeiro e Fevereiro tinha perdido tantos dias que a vida económica da família se agravara ’grandemente. Eles deviam ao merceeiro e já haviam pedido dinheiro emprestado a vários amigos. Agora Júlia hesitava entre falar a Horácio e empenhar os cobertores. Já na véspera hesitara igualmente. Da última vez que ela fora ao Marques, ao velho usurário que, a ocultas e como se prestasse singular favor, recebia, a troco de algumas moedas, roupas e objectos domésticos, discutira tanto com ele e tão desagradáveis palavras lhe dissera e lhe ouvira, que se sentia humilhada em lá voltar. A ideia de recorrer a Horácio não a humilhava menos. Era seu hóspede e pedir-lhe aquilo seria diminuir-se, dar-lhe confiança, metendo-o na intimidade da sua vida o que ela não desejava. Se consultasse Ricardo, ele, decerto, se oporia. Mas ela não pensava consultá-lo. Desde a véspera que o marido se encontrava, de novo, tolhido na cama. Nessa semana ele trabalhara apenas segunda-feira; estavam na quarta e só na sexta veriam alguns escudos. Para quê lhe falar naquilo, se Ricardo não podia, solucionar a dificuldade, esses dois dias em branco que se abriam à frente deles e em que eles e os filhos precisavam de comer?

Júlia decidiu-se. Pediria a Horácio. Tanto lhe custava pedir a ele como ao Marques e, assim, sempre ficaria com os cobertores, pois muita gente dizia que o mau tempo ainda voltava.

A esbicar a nova peça de tecido, Júlia estava de ouvido atento aos ruídos exteriores. Eram quase seis da tarde e, por volta dessa hora, ouviam-se, em todos os dias de trabalho, muitos passos na aldeia. Subitamente, Júlia interrompeu o labor. Ajeitou o avental e, rápida, transpôs a porta. Os operários regressavam das fábricas e, em breve, ela lobrigou a figura de Horácio, caminhando ao lado de Marreta, no lusco-fusco. Júlia ficou em inquieta expectativa, não fosse ele seguir para casa do outro, como tantas vezes fazia nos últimos tempos, só aparecendo à hora de comer. Justamente nessa noite não haveria ceia que bondasse, pois sem levar algum dinheiro por conta da dívida ela não teria coragem de ir à mercearia.

Júlia respirou. Horácio separara-se de Marreta e caminhava em direcção a ela. Dir-se-ia, porém, não a divisar na obscuridade que começava a envolver a aldeia. Júlia abordou-o antes de ele se acercar da porta. E disse-lhe com voz mais trémula e acanhada do que se lhe falasse pela primeira vez:

— Você tem de desculpar, mas eu queria pedir-lhe um favor... Era que me adiantasse o dinheiro da semana que vem... Se isso não lhe fizer diferença, já se vê...

Ele ouviu, surpreendido, as primeiras palavras, mas às últimas já não pôde dar atenção. Ficou mais perturbado ainda do que Júlia:

— Olhe que pena! Tanto gosto eu teria... E como tenho de pagar, tanto me fazia ser agora como no dia da féria... Justamente nestas últimas semanas eu juntei uns vinténs, mas dei-os no sábado ao alfaiate, por conta do feitio de um fato... Hoje só tenho quatro escudos... Que pena! Sucedeu-lhe alguma coisa?

— Nada, não — murmurou Júlia. — É uma precisão de momento.

Ele tirou os dedos do bolso:

— Estão aqui os quatro escudos... Se lhe fazem jeito, estão ao seu dispor...

— Obrigado. Isso não me chega. Mas não se incomode. Eu arranjarei por outro lado. — E abalou em direcção à porta. Horácio seguiu-a e pôs-se a vencer os degraus que davam para o seu quarto. Instantes passados, Júlia voltava a sair com um grande embrulho debaixo do braço.

Pouco depois, Horácio ouvia, lá em baixo, a voz de Marreta, que se informava do estado de Ricardo e lhe pedia licença para subir. Logo, os seus passos soaram na escada. Intrigado com a visita, pois era a primeira vez que Marreta o procurava ali, Horácio caminhou para a abertura que havia ao fim do soalho. O velho tecelão trazia cara alegre. Sentou-se no rebordo da cama e comunicou que, depois de haver deixado Horácio, encontrara a tia Augusta, mãe de Ravasco. Tinham estado de conversa e ela dissera-lhe que ia mandar amanhar as suas courelas. Que já ia mesmo atrasada, pois, com um tempo assim quente, há muito que as batatas deviam encontrar-se na terra. Mas por mor dos seus achaques e desgostos com a doença do filho fora-se descuidando. Ele, então, lembrara-se do pedido que Horácio lhe havia feito. Como este andava, agora, semana sim, semana não, no turno da noite, podia, nos dias livres, cavar aquelas terras. E também nos outros poderia aproveitar algum tempo; saía da fábrica às cinco horas e, dali em diante, as tardes seriam cada vez maiores. Por isso, ele pedira à tia Augusta que desse o trabalho a Horácio. Ela respondera que gostava mais de um homem que cavasse o dia inteiro, mas, depois, ficara de o mandar chamar. É claro que Horácio não devia esperar receber muito, desde já ele o prevenia, pois a velha era somítica; mas aquilo sempre serviria de ajuda. Até há pouco, fora ela e o filho que haviam tratado das courelas; agora, porém, a tia Augusta, com quase oitenta anos, encontrava-se estafada e o filho estava doente, em Lisboa, como se sabia.

Horácio enterneceu-se com os cuidados de Marreta, já obtendo-lhe aquele trabalho, já vindo ali dizer-lho antes mesmo de fazer a sua ceia.

— Muito obrigado! Vossemecê é uma jóia! E diga-me cá uma coisa: são muitas terras?

— Não. Lá muitas não são, mas chegam para te entreter algum tempo. E, depois, veremos se se arranja mais alguma coisa...

Desde essa noite, ficou ansioso de que a velha lhe mandasse recado. Passaram-se, todavia, vários dias sem que ela o fizesse. E, entretanto, uma manhã, Ravasco regressou de Lisboa. Regressou antes do tempo em que o esperavam. Os médicos do Instituto de Oncologia, depois de o examinar e de terem mandado radiografá-lo, comunicaram-lhe que devia voltar dali a dois dias. E, dois dias passados, ele fora conduzido a outra sala, onde começaram a aplicar-lhe raios X. Ele andara nesse tratamento umas três semanas. Depois, levaram-no, mais uma vez, aos médicos, que lhe meteram na bexiga aquele aparelho de luz que o doutor Barbeito já lhe tinha metido também. Falaram entre eles e disseram-lhe que voltasse na segunda-feira seguinte. Ele voltara, os médicos tornaram a vê-lo e, por fim, aconselharam-no a que regressasse à Aldeia. Ele ainda perguntara se não era caso para operação. “Que não era” — responderam-lhe. Se sentisse dores, que tomasse dois daqueles comprimidos que figuravam tna receita que lhe iam entregar. E se, mesmo assim, as dores não se fossem, chamasse o médico da Covilhã para lhe aplicar uma injecção, pois o médico da Covilhã já sabia que injecção devia dar-lhe.

Ravasco chegou à Aldeia e encarou a vida. Três filhos, a mulher e aquelas despesas de viagem e todo aquele tempo perdido. A mulher era urdideira, mas o que recebia não chegava, sequer, para eles comerem, quanto mais para eles se desempenharem. Ele tinha de deitar mão a qualquer coisa. Se a sua mãe havia de pagar a outro para lhe amanhar as courelas, pagaria a ele, como nos anos anteriores, quando ele gozava saúde.

Uma tarde, já depois de terem vindo juntos da fábrica, Marreta tornou a procurar Horácio em casa de Ricardo. E disse-lhe que a tia Augusta pedia desculpa de não lhe dar o trabalho prometido, pois o filho tomara conta dele.

Na manhã seguinte, o povo viu Ravasco dobrar-se sobre a terra, enxada vai, enxada vem, lá em riba, nas últimas jeiras da aldeia. Ele voltara de Lisboa mais chupado e com uma cor ainda mais amarelenta do que quando partira, mas parecia senhor de uma força dos demónios naquele movimento contínuo.

Todo o povo sabia que ele tinha um cancro, que assim o assoalhara João Ribeiro, depois de o haver acompanhado ao consultório do doutor Barbeito. E todos garantiam que um cancro tirava as forças a quem o tinha e era mal sem remédio, a não ser que o atalhassem logo de princípio. Ora o Ravasco andara um ror de tempo com aquilo, como fizera o Taborda, que morrera também com uma nascida na língua. Como é que ele, agora, se metia a cavar, com tanta gana, as courelas da mãe, que, ainda assim, eram uns bons pedaços de chão?

Das portas e janelas das casas vizinhas, as mulheres lançavam, às vezes, um olhar curioso para as belgas da tia Augusta. Ravasco continuava de enxada nas mãos, a vergar e a erguer o tronco.

Por volta das onze horas, a sua figura desapareceu. Mas uma rapariga que descia os quebra-costas da aldeia informara que o Ravasco estava sentado debaixo de uma oliveira. Ao meio-dia, viram-no a trabalhar novamente.

— Coitado! Não sabe o mal que tem! Nem ele, nem a mulher, nem a tia Augusta... É o que lhes vale!

Durante a tarde, Ravasco continuou nas courelas. O povo notou, contudo, que ele, agora, se deitava mais frequentemente à sombra das oliveiras. Ao fim do dia, a mulher, regressando da fábrica, marralhou com ele: “Aquilo não tinha jeito nenhum! A sua saúde não estava para aquilo!” Ravasco pôs o casaco sobre os ombros e caminhou para o extremo do povoado. Bateu à porta do Linguínhas e com este ajustou a dormida das suas ovelhas, naquela noite, sobre a terra que ele cavara durante o dia. E voltou para casa a pensar e a antegozar a contrariedade que Manuel Peixoto teria ao saber que, por causa do seu irmão Mateus, que era colega do Felício, ele não quisera, desta feita, o seu gado.

Na manhã seguinte, ao olhar a leira, considerou ser bastante o estrume deixado pelas ovelhas e barato o preço que combinara. Ergueu a enxada e lançou o primeiro golpe à terra — outro, outro e outro... Agora, porém, sentia-se mais fraco do que na véspera. Quatro enxadadas e o corpo pedia-lhe sossego. Ravasco, então, enervava-se: “Aquela doença arrasava-o! Antigamente, ele era tão forte que, com dois goles de aguardente, de manhã, e uma tigela de caldo, ao meio-dia, trabucava de sol-nado a sol-posto sem se cansar. Mas não ia, agora, deixar-se tomar por aquilo. Tinha que fazer havia de o fazer!” Mordia os lábios e voltava a enfiar a enxada na capa verde que as ovelhas tinham rapado rapado tanto que não se via uma única erva erguer-se acima da terra.

Ia cavando e remoendo os seus despeites e desesperos. Aquela velha que ele havia encontrado na sala de espera do Instituto de Oncologia ajudara a dar cabo dele — pensou. — Pois que precisão tinha ele de saber aquilo? Desde a primeira não simpatizara com ela. Mas que ia fazer? A sala estava cheia de pessoas esperando vez para consultas e tratamentos e o diabo da bruxa metia-se com toda a gente. Com aquele chapéu preto coçado e um passarinho também preto e já sem bico em riba do chapéu, falava por todos os cotovelos. Quando ela era assim faladeira e tinha manias de janota naquela idade, o que seria o estafermo em nova? A primeira vez que ele antipatizara com ela, fora quando a ouvira dizer, em voz alta, na sala: “Parece que eu tenho um cancro na ponta do seio, mas já me disseram que, aos oitenta e sete anos, o cancro não tem força para se desenvolver e que eu posso viver ainda muito tempo.” Ela dizia aquilo com satisfação e como se fosse, por isso, mais do que os outros. Todos ficaram calados, mas ele percebera muito bem que todos ficaram aborrecidos, pois quem vinha ali sabia que no Instituto se tratavam as doenças más, mas ninguém gostava de falar em cancros.

Naquela manhã, a velha fora além das marcas. Nunca esperara uma coisa assim. Quando ele voltava dos doutores, a bruxa, ao vê-lo de cara alegre, logo metera conversa. E ele, tão tolo, a pôr para ali tudo o que os médicos lhe tinham dito. E ela, então, com aquele ar de amizade, que se via mesmo que era falso: “Ah, ainda bem! Ainda bem! Não há-de ser nada, se Deus quiser! Eu rezarei muito por si, para que Deus Nosso Senhor lhe dê saúde!” A bruxa! Ele, agradecido, a voltar-lhe as costas, a procurar, nos bancos, no meio daquela gente toda, o seu chapéu, e ela a dizer aos outros, pensando que ele já ia longe: “Coitado! Está perdido! Quando os médicos falam assim é que já não há nada a fazer. Foi a mesma coisa que eles disseram à minha irmã Leonor, que tinha um cancro no fígado. Não quiseram operá-la, por não servir de nada. E ela morreu pouco tempo depois...” Uma facada nos ouvidos ter-lhe-ia doído menos. Ainda se voltara para o lado onde a velha estava sentada. Dera com os olhos nalguns dos homens que a escutavam e que, ao compreenderem que ele também a tinha ouvido, ficaram com um sorriso parado, como se houvessem morrido com aquele sorriso. Ele vira logo tudo muito claro. Até chegar à rua, até ter mão em si, as suas pernas tremiam-lhe. Era certo que quando os médicos lhe disseram que ele podia voltar para casa, parecera-lhe que havia alguma coisa que eles não diziam naquelas palavras. Mas ia lá supor uma coisa assim!

Lançou, com mais força, a enxada à terra, como se a metesse no corpo da velha. Estava ’perdido, mas havia de fazer das tripas coração, a ver se pagava a dívida antes de morrer. Se não a pagasse, o miserável do Marques não largaria a Maria Antónia e era ela, a pobre, quem teria de entrar com o dinheiro. E ainda com juros, que aquele avarento levava-os maiores do que as casas de prego da Covilhã. Com essa obrigação a pesar-lhe, como poderia ela sustentar-se e aos pequenos com o salário que recebia? Não, ele não queria morrer com a ideia de que os seus filhos iam passar fome logo que ele fechasse os olhos! Felizmente, como estivera pouco tempo em Lisboa, gastara menos de metade do dinheiro que tinha pedido emprestado ao Marques. E o que ficara por lá, havia de o ganhar, se Deus lhe desse ainda algum tempo de vida. A sua ’mãe é que lhe podia valer, porque ele estava desconfiado de que ela tinha notas suficientes. Mas a velhota também era muito agarrada ao dinheiro e depois que ele lhe pedira, há anos, aqueles cinquenta mil réis e não lhos pagara, nunca mais ela quisera emprestar-lhe um tostão. Dizia sempre que os patacos que recebia da venda do centeio mal chegavam para pagar o amanho das terras no ano seguinte e que se, um dia, adoecesse, nem para remédios teria dinheiro. Podia ser, mas ele não acreditava. Sempre lhe parecera que só ao outro filho, ao que estava no Teixoso, ela votava amor. Ele tinha, pois, de contar só consigo, de pagar aquilo, se não queria que a desgraça caísse sobre os pequenos coitadinhos, que eram inocentes! logo que o levassem para o cemitério. E também sobre Maria Antónia, que fora sempre trabalhadeira e honesta.

O seu próprio monólogo lhe dava novas forças, aquela fúria com que ele, em certos momentos, suado, ofegante, o sexo pingando sangue, cavava a terra a grandes enxadadas. Mas logo surdia o cansaço das pernas, dos braços, do corpo todo, aquela sensação de frio, aquela sensação de desmaio e, em seguida, a hemorragia. Quedavam-lhe dores e uma secura na garganta, que não havia água que matasse por muito tempo. Ele emborcava a bilha, mas, pouco depois, lá estava a secura sede, como se a sua garganta fosse, agora, de cortiça. E, novamente também, aquela imperiosidade de fazer a micção sanguínea.

Todas as ’tardes, a mãe, curvada e amparando-se a um cajado, aparecia nas leiras. E ao vê-lo assim esfalfado, magro, de uma magreza que parecia transparente, dizia-lhe:

—É melhor, talvez, chamar um homem para aqui. Não estás com saúde para tanto!

Ele rosnava uma recusa e continuava a cavar. Mas, em cada novo dia que passava, a tia Augusta via que o trabalho do filho era menor.

— Ao menos um homem para te ajudar... — sugeria ela, timidamente.

Ravasco saltava de lá:

— Se vossemecê não fosse minha mãe, eu sei o que lhe havia de responder. Deixe-me em paz, ande!

A tia Augusta partia, agarrando-se ao seu bordão e suspirando o desgosto de ver Ravasco assim acabado e assim teimoso. E ele ficava, odiento, a ruminar as suas cóleras: “Ela tinha oitenta anos e já não fazia falta a ninguém. Se ela morresse, ele venderia uma das courelas que lhe coubessem nas partilhas e pagava ao Marques. Até podia descansar um bocado antes de ele próprio morrer. Iria, também, a S. Torcato de Guimarães. Ele nunca pudera gozar nada. Andara sempre a trabalhar e sempre sem dinheiro. Quando era ainda vivo, o seu pai, que nascera para as bandas de Guimarães, dissera-lhe, muitas vezes, que não havia, em Portugal, outra romaria como a de S. Torcato. Mas ele nunca pudera lá ir. Passara a vida com aquele desejo e nunca o pudera satisfazer. Agora, com certeza, também já não iria. A velha estava, ainda, muito rija. E mesmo que ela morresse já, aquilo das partilhas demorava sempre muito tempo; resolve e não resolve, já ele teria morrido também.”

Desde que, naquela manhã de Lisboa, compreendera que o seu mal não tinha cura, deixara de se apiedar por quem morria. Viera-lhe mesmo um vago consolo ao saber que o Cosme da Borralheira se finara e que o Isidoro do Sineirinho estava as portas da morte, com uma tuberculose. Mas aqueles pensamentos que ele punha, como alcateia danada, atrás da sua mãe, quando ela se retirava, acabavam sempre por o deixar de mal consigo próprio. “A velha tinha aquele feitio, mas também ela não sabia que ele estava assim. Até lhe dissera, quando ele a prevenira de que ia a Lisboa: “Agora, por uma dor de barriga, mandam logo a gente para Lisboa, para Coimbra, para o hospital... No meu tempo, ninguém saía de onde estava e vivia-se muito mais.” Ela não sabia que aquilo era doença de matar e, ele, então, também não sabia nada. Porque, se soubesse, não teria saído dali e não estaria, agora, empenhado.”

Numa daquelas tardes, quando a tia Augusta apareceu e se pôs a olhar, em silêncio, para o chão cavado desde a véspera, Ravasco julgou adivinhar o que a mãe pensava. É, pousando as mãos sobre o cabo da enxada, contemplou, também, a terra que ele revolvera desde o dia anterior.

— É pouca, é... — murmurou. — Mas não se aflija por isso... Vossemecê paga-me só metade da jorna... Como se eu trabalhasse só meio dia...

A tia Augusta não respondeu logo. Os seus olhos voltaram a percorrer não apenas a terra cavada, mas a que faltava cavar, nas courelas vizinhas. E prolongou o silêncio, fazendo cálculos. Depois:

— Quantos dias pensas que precisas para acabar?

Ele olhou a mãe e, em seguida, aquelas faixas de chão, cobertas de verde felpa, que se estendiam ao seu lado.

— Se eu estivesse forte, em quatro ou cinco dias dava conta de tudo isto. Assim... não sei... Talvez oito para cavar... Depois, para semear... não sei...

Oito dias... Bem! Eu pago-te, na mesma, os oito dias, mas vem um homem dar-te uma ajuda. Um rapaz de que me falou o Marreta. Um que se chama Horácio. Tu conhece-lo...

Ele não disse nada. Os seus olhos volveram a fixar os olhos da mãe e, depois, humedeceram-se. A tia Augusta batia, agora, com o seu pau, num torrão, como se tivesse muito empenho em desprender uma pequena pedra que ao torrão se agarrava.

Pois é — disse ela, depois. — Fica assim combinado. Por mim, não trabalhavas mais... — E voltou a arrastar a velhice em. direcção à sua casita, que se erguia atrás das oliveiras.

Ele ficou a vê-la afastar-se. “Se lhe contasse tudo, talvez ela, desta vez, lhe valesse. Pouco era... Mas não! Ele não ia contar-lhe aquilo. Não queria que ninguém soubesse da sua desgraça e tivesse pena dele. Ninguém! Se ele contasse à velhota, a Maria Antónia viria a sabê-lo. E ele não queria dar-lhe esse desgosto. Bem bastava que fosse ela, agora, a sustentar sozinha a casa.”

Quando, na manhã seguinte, Horácio surgiu nas courelas, já Ravasco lá estava. Foi por entre dentes que ele respondeu ao seu “bom dia!”, enquanto olhava para a enxada que Horácio trazia ao ombro e que Manuel Peixoto lhe emprestara.

— Então vossemecê está melhor?

— Estou bom! Estou quase bom...—disse, de mau humor. E estendendo o dedo, acrescentou: — Pode começar acolá.

Horácio dirigiu-se para a jeira indicada. Ravasco, às voltas com a terra, irritava-se mais: “Aquela mania que todos tinham de perguntar pela sua saúde! Só isso bastava para dar cabo de um homem! Não poder ver ninguém, sem logo a outra pessoa lhe lembrar aquilo. Como se não fosse bastante o que ele sofria, para os outros estarem ainda a remexer na sua ferida! E, afinal, os outros incomodavam-se tanto com ele, como ele com a primeira camisa que vestira. Era costume — e pronto! Vá de estragar a vida a um homem! Se não fosse isso, ele até gostaria de conversar. Gostaria mesmo muito, pois, quando estava a conversar, esquecia-se, às vezes, daquilo.”

Com o rabo do olho perscrutou a leira vizinha. “O tipo dá-lhe com gana” — pensou, despeitado, ao ver a terra que, num instante, Horâcio cavara. Começou a invejar a juventude de Horácio. ”Também ele, quando tinha vinte anos e não passava os dias a mijar sangue, era assim. E mesmo agora, com quarenta e seis, ninguém lhe levaria a palma se não fosse aquilo. O fedelho ainda tinha muitos anos para viver enquanto ele... enquanto ele...”

Não queria olhar, mas não se podia conter. A enxada de Horácio continuava a virar a terra, vigorosamente. Já tinha quase um metro cavado a toda a largura. Então, Ravasco pensou que, a seguir assim, Horácio cavaria mais em duas horas do que ele num dia inteiro.

— Desfaça-me esses torrões!—gritou-lhe, com íntimo rancor. — Não é só andar; é fazer o serviço como deve ser!

Sentia vontade de o humilhar e de depreciar, de qualquer maneira, a quantidade do seu trabalho. Horácio obedeceu-lhe e, com a cabeça da enxada, pôs-se a esboroar a terra que havia quedado em bocados, aqui e além. Apesar do tempo assim despendido, Ravasco verificava pouco depois que Horácio ia de novo mais adiantado do que ele. “Não podia ser! A velha já sabia que ele não era capaz de dar muito, mas, enfim, não queria comparações. Ainda se ela soubesse como ele andava!”

— Venha para cá! — berrou, de novo, a Horácio. — É melhor trabalhar aqui, ao meu lado, porque eu quero a terra bem esboroada.

Horácio obedeceu-lhe novamente. Então, ele ficou tranquilo: “Assim já ninguém saberia qual deles trabalhara mais.” A princípio, Ravasco cavava em silêncio. Depois, desatou a falar. A falar da fábrica, do Felício e do Mateus. Eram ambos dois tratantes — disse. — Tinham sido operários e, agora, mostravam-se piores do que os patrões. O irmão de Mateus, o Manuel Peixoto, esse, sim, era outra loiça. Se não lhe comprara as noites de esterco, fora só para lhe fazer ver que ele, Ravasco, também tinha alguma força, embora o houvessem mandado embora da fábrica onde o Mateus era mestre, como se mandassem um cão. Mas não queria mal ao Manuel Peixoto, lá isso não queria.

As quatro horas da tarde, quando Horácio largou a enxada, para se dirigir à fábrica, Ravasco teve súbita pena de ficar sozinho. Sentia-se, de repente, como que abandonado e toda aquela terra sua inimiga.

No dia seguinte, quando Horácio voltou, Ravasco não estava lá. O povo vira-o entrar, de manhãzinha, na igreja. Homens e mulheres murmuraram comentários, porque Ravasco nunca ia ali e era, como Tramagal, dos que andavam sempre a dizer mal dos padres. Mais tarde, a empregada da Casa do Povo, que estava à janela, ali mesmo em frente, viu-o sair da igreja, encostar-se a um canto, forçado pela sua hematúria, e volver a entrar. Desde então, os habitantes da aldeia já não estranharam as constantes visitas que Ravasco, cada vez mais magro, mais caquético e de mais amarelada cor, fazia ao pequeno templo, onde se demorava largas horas. Um dia, porém, deixou de aparecer. E, de tarde, o povo soube que ele estava na cama, contorcendo-se com dores e gemendo desesperadamente.

Entretanto, o frio voltara. O tempo continuava seco, mas gelado de cortar a pele. De madrugada, Horácio acordou com um choro de criança. E de pois:

Mãe! Ó mãe! Eu tenho frio!

Lá em baixo, os outros filhos de Ricardo despertaram e alguns deles gritavam como o irmão:

— Eu também tenho! Eu também tenho frio. Júlia acendeu a luz e berrou-lhes que se calassem.

Em seguida, ergueu-se e colocou sobre os filhos quanto trapo havia na casa. Mas ela via bem que aquilo não chegava. Ela própria tremia de frio. E os trapos que davam melhor agasalho já a família os utilizava desde que os cobertores tinham sido empenhados. Júlia dirigiu-se à sua cama. Ultimamente, ela e o marido cobriam-se apenas com, uma manta e o sobretudo de Ricardo. Júlia tirou a manta e estendeu-a sobre o corpo dos filhos, todos, menos o de berço, dormindo num mesmo colchão. Depois, pôs-se a olhar para o corte de fazenda que ela começara a esbicar na véspera. Era um tecido vistoso e caro, que valia a féria de muitas semanas e só gente rica o poderia comprar. Júlia hesitou. Já uma vez, numa noite assim gelada, ela havia posto um corte de fazenda na cama das crianças e, de manhã, o filho mais novo, que era mesmo um demónio, fizera-lhe um rasgão, com um prego. Querendo ocultar aquilo, não fossem, lá na fábrica, negar-lhe, de futuro, trabalho, ela tivera de pagar à metedeira de fios bom dinheiro para cerzir o tecido. Júlia decidiu-se: “Agora, em cima dela e do Ricardo não havia perigo.” Meteu-se na cama e cobriu-se a si e ao marido com o corte de fazenda. Puxou o sobretudo, para se aconchegarem melhor—e apagou a luz. Os seus dentes batiam uns nos outros, com aquelas tremuras que a percorriam violentamente. Um dos filhos, o Ernesto, continuou a protestar, no escuro:

— Isto não chega! Cá para mim isto não chega! Tenho frio...

— Pois não tenho mais roupa! Só o príncipe reclama, não querem ver? — gritou Júlia.

Foram, as últimas palavras que, naquela noite, Horácio lhe ouviu. Mas, pouco depois, ele sentia os passos dela, lá em baixo. Júlia tirara também o sobretudo da sua cama e pusera-o sobre o Ernesto e os outros filhos.

Na manhã seguinte, quando Horácio e Ricardo se dirigiam para as fábricas, o dia estava soalheiro, como os anteriores, mas o frio da noite continuava. Ao acercarem-se da Carpinteira, divisaram outros operários que marchavam em direcção contrária à deles e, depois, deixando a estrada, cortavam para os Penedos Altos. Eram pedreiros, via-se pelas ferramentas, e caminhavam tão friorentos e apressados como os operários das fábricas. Nem Ricardo, nem Horácio estranharam o caso, na terra em que homens de Alcains andavam sempre em trabalhos de edificação para os industriais e outros capitalistas. Mas, ao meio-dia, uma mulher, que viera trazer à fábrica o almoço ao marido, espalhou a grande novidade. Nos Penedos Altos havia começado a construção de casas para os pobres. Toda a manhã andara lá, a trabalhar, uma turma de homens. E a todo o momento chegavam camionetas com material. Ao ouvir aquilo, alguns dos operários ainda duvidavam, enquanto outros iam afirmando: “Eu bem preciso de uma casa...” “E eu também.” “E eu também.”

À hora da saída, os que moravam na Covilhã acompanharam os da Aldeia do Carvalho até o ponto da estrada de onde se viam os Penedos Altos. Afinal, era verdade. Já havia alguns alicerces abertos. Perto, levantavam-se rimas de pedras e tijolos que não se encontravam lá de manhã. E, ao fundo, um barracão de madeira e zinco, para recolha das ferramentas e dormida de pedreiros e carpinteiros, fora concluído num só dia.

Horácio contemplava aquilo, extasiado. “O sítio não podia ser mais airoso. Via-se o vale, via-se, ao longe, a Covilhã e estava-se a dois passos da fábrica. Uma casita ali ficava mesmo a matar.”

Nos dias seguintes, quer à vinda, quer à ida para a Aldeia, ele olhava sempre o local, tão ansioso pelo avanço das construções como se a obra fosse sua.

Muitos outros operários faziam a mesma coisa. Uma tarde, deixaram mesmo a estrada e caminharam até os Penedos Altos. Os pedreiros também já haviam abandonado o trabalho e alguns deles estavam no barracão. Era uma casa de malta, com beliches sobrepostos e, por todos os lados, farrapagem, mantas sujas e utensílios de cozinha. Mas num outro compartimento, onde o mestre-de-obras tinha uma mesa e se guardava a ferramenta, via-se, na parede, emoldurado e desenhado a alegres cores, o projecto das casas a edificar. Horácio e os companheiros quedaram-se, largo tempo, a examinar aquilo em silêncio. Havia umas casas que eram maiores do que outras, mas todas, pequenas ou grandes, prometiam ser garridas, com seus beirais recurvos e largas janelas, semelhantes a muitas das que Horácio admirara no Estoril e na Parede, quando era soldado.

— São bem boas! — comentou Belchior.

— Lá isso são! — respondeu um dos pedreiros de Alcains que andavam a construí-las. — Tomara eu ter metade de uma assim para mim e para a família.

Horácio sentia-se cada vez mais contente. E, no domingo seguinte, em Manteigas, deu a novidade a Idalina: “Estava resolvido a casar-se. Já era operário e pouco importava que a casa não fosse dele. O principal era que fosse como ele a havia desejado. E a Câmara ia, agora, construir casas assim para os operários.”

Tinha renunciado a desflorar Idalina antecipadamente. E nesse mesmo domingo, ao atravessar a serra, de volta à Aldeia, ele ia evocando as pessoas a quem poderia pedir dinheiro emprestado para as despesas do casamento. Pensava numa e logo a largava; pensava noutra, avaliava a sua vida e imediatamente a deixava também. Todos os seus conhecidos da Aldeia do Carvalho, salvo o Manuel Peixoto, não tinham mais do que ele. E o próprio Manuel Peixoto já vendera algumas cabeças do seu gado, por falta de dinheiro. Em Manteigas, havia, era certo, pessoas de muitas posses. Com essas, porém, não tinha ele confiança. Só ao Valadares poderia pedir aquilo. Mas a este não queria ele pedir. Quando fora do incêndio, parecia-lhe fácil chegar junto do Valadares e dizerJhe: “Precisava que me emprestasse um conto de réis, para eu, depois, pagar aos poucos.” Agora, que já se passara muito tempo, custava-lhe falar em tal coisa ao seu antigo patrão.

Eram quase onze horas da noite quando ele entrou na Aldeia do Carvalho. Ao transitar em frente da casa de Ravasco, viu, à porta deste, um grupo de mulheres. Horácio adivinhou o que acontecera antes mesmo de alguém lho dizer. Lá dentro, a Maria Antónia, gritava:

— Meu Deus, que vai, agora, ser de mim? Que vai ser de mim e das crianças?

Horácio aproximou-se. Júlia estava cá fora, entre as outras mulheres, e disse-lhe com simplicidade:

— Morreu ontem ao fim da tarde e foi enterrado hoje. Viemos fazer um pouco de companhia à Maria Antónia, mas ela, coitada, não se resigna.

Outras mulheres vinham saindo. Horácio ainda avançou até à porta; logo pensou que não sabia o que havia de dizer à Maria Antónia e desistiu de entrar.

Embrulhadas nos seus negros xales, algumas das mulheres iam-se separando. Na casa, já sem visitas, a viúva continuava a gritar:

—Meu Deus, que vai ser de mim?

Júlia e outras vizinhas começaram a descer a encosta. Horácio caminhava ao lado delas, acabrunhado.

— Coitada! Ela tem razão! — disse Júlia. — Sozinha e com a vida como está...

As outras mulheres, esquecidas já da Maria Antónia, largaram a falar do preço das coisas, que era a sua obsessão quotidiana. Um quilo disto ou da quilo, que, no ano anterior, custava tanto, agora custava o dobro. As sardinhas haviam aumentado duas e três vezes mais. E as batatas, quem as não tinha, via-se doido para as arranjar. E se as arranjava, pagava-as a peso de oiro. Só o que estava racionado não subira muito de preço, mas isso pouco valia, pois o que davam no racionamento não chegava para nada.

— Na Covilhã ainda é pior — afirmou Júlia. — Aqui, alguns ainda amanham as suas territas. Mas na Covilhã é tudo à força de dinheiro. Fui lá a semana passada visitar a minha cunhada e vi que as mulheres de lá não sabem o que hão-de fazer à vida. O que os homens delas ganham não chega para comer e elas têm tudo no prego.

As que ouviam a Júlia pensavam que se ela fora, nos últimos tempos, muitas vezes à Covilhã, não tinha sido em visita à cunhada, como dizia, rnas sim para ver o filho, aquele matulão do Antero, que justamente na última semana abalara para Lisboa, sem ligar nenhuma importância aos pais. Pensaram isso, um momento, mas ’logo esqueceram Antero, como haviam esquecido a Maria Antónia, todas atentas ao que Júlia contava sobre a vida na cidade.

Horácio escutava de mau humor. Ia ruminando que Júlia queria, decerto, aumentar outra vez o preço da comida e da dormida, pois nos últimos tempos andava sempre a referir-se, na frente dele, à carestia que os alimentos tinham sofrido. Pareceu-lhe, Contudo, que naquela noite Júlia falava com um tom diferente do das outras vezes, como se partisse de alguma coisa que só ela sabia.

NINGUÉM, talvez, poderia dizer como a notícia entrou, àquela hora, na fábrica e passou, murmurada, de homem para homem e de máquina para máquina sem as máquinas se deterem. Horácio soube-a pelo Boca Negra, enquanto as “self-actings” trabalhavam:

— Prenderam o Ricardo e o Gabriel Alcafoses e parece que mais alguns da Covilhã...

Horácio olhou para o lado das penteadeiras e, pela cara de Tramagal e dos outros operários, compreendeu que também eles já tinham conhecimento daquilo.

— Por que os prenderam?

A Boca Negra pareceu inútil a pergunta:

— Por que havia de ser! — disse.

Há muito tempo que Horácio ouvia falar de Gabriel Alcafoses como de um dos mais activos operários da Covilhã. Mas ele não o conhecia. E só a prisão de Ricardo lhe dava verdadeira pena.

As máquinas continuaram a trabalhar, mas dir-se-ia que por baixo do seu rumor havia um silêncio pesado, mais forte do que o próprio rumor, como no dia em que Ravasco fora despedido.

Quando, às cinco horas, os operários saíram da fábrica, logo se formaram grupos na estrada, que todos queriam saber pormenores sobre o caso. Os que chegavam da Renovadora informaram que das polícias haviam entrado ali, à hora do almoço, e dito simplesmente ao Alcafoses que os acompanhasse. Ricardo e Cristino — disseram outros, que eram seus companheiros de fábrica — tinham sido presos já depois de o trabalho haver recomeçado.

— Também levaram o Cristino? — estranhou Tramagal.

— Também.

— Eu you à Covilhã... — disse, subitamente, Marreta.

Tramagal olhou para ele, um momento, e declarou:

— Eu vou contigo...

— Não... É melhor eu ir sozinho... Vocês previnam a Júlia. E, à noite, passem por minha casa.

Marreta partiu. Os grupos começaram a desfazer-se. Tramagal e Horácio, desta vez no meio de muitos outros operários, que comentavam ainda o acontecido, regressaram à Aldeia do Carvalho.

Júlia tinha o filho mais novo nos braços e ia dar-lhe o seio quando eles chegaram à sua porta e lhe comunicaram aquilo.

— Ah, prenderam o meu homem? — disse ela com sombria serenidade. — Então prenderam-no? — repetiu. A sua voz denunciava uma ’cólera jacente. Abrindo a blusa, Júlia entregou o peito ao filho.

Os homens ficaram a olhá-la, surpreendidos e calados perante aquela atitude. Júlia voltou a erguer os olhos e dirigiu-se a Horácio:

— Se você quiser comer agora, a ceia está pronta. Antes mesmo de Horácio responder, Tramagal protestou:

— Qual comer, qual carapuça! Ele ceia hoje comigo.

Júlia fez um gesto de indiferença. Os homens não sabiam que lhe dizer, nem sabiam sair dali sem lhe dizer mais alguma coisa. Pela primeira vez, Horácio sentiu que a voz de Tramagal procurava tornar-se doce:

— Ele não há-de ficar lá muito tempo. E eu vou dizer à minha patroa para vir fazer-te um pouco de companhia...

Júlia manteve-se silenciosa e com o mesmo ar indiferente.

Quando, depois de comer, eles se acercaram, pela segunda vez, da casa de Marreta, esta continuava fechada e às escuras. Horácio examinou o seu relógio:

— Se calhar, levaram-no também... Tramagal não disse nada, pois havia pensado a mesma coisa.

Os dois caminharam até à ribeira, detiveram-se lá um momento e volveram. E nesse vai e vem andaram mais de uma hora. De quando em quando, surgiam outros operários, que também frequentavam a casa de Marreta, mas, como o tempo estivesse frio, retiravam-se.

Era quase meia-noite quando, finalmente, o velho tecelão apareceu, acompanhado de João Ribeiro, que lhe saíra ao caminho.

Marreta olhou, mais uma vez, para trás, não fosse alguém havê-lo seguido. Meteu, depois, a chave na porta, acendeu o candeeiro e, perante a cara dos outros, que o fixavam interrogativamente, disse:

— Não está nada perdido. A organização está de pé. Na Covilhã tinha-se trabalhado bem, nestes últimos dias... Agora vai-se andar depressa, antes que aconteça mais alguma coisa. Não são precisas novas reuniões e amanhã todos os operários serão prevenidos. A greve é depois de amanhã...

Marreta falava com muita naturalidade e, no mesmo tom calmo e simples, respondeu às várias perguntas que Tramagal e João Ribeiro lhe fizeram.

Ao ouvi-lo assim tranquilo, os confusos receios que Horácio tinha de vir a ser despedido da fábrica, de perder o seu novo lugar, de ser, talvez, preso também, desapareceram. Ele sentia, agora, um estado de espírito diferente do dos dias anteriores.

Ao entrar em casa de Ricardo, para se deitar, encontrou lá um grande silêncio. Isso acontecia-lhe muitas vezes, quando entrava tarde, mas, agora, o silêncio parecia-lhe maior e com maior vácuo, com maiores cavidades do que nunca. Ao subir as escadas, tossiu propositadamente, esperando que ao seu ruído Júlia correspondesse com outro, para assinalar que ela estava lá. Mas o silêncio manteve-se. Horácio acendeu a vela, despiu-se, tornou a apagá-la, sempre com aquela mudez a pesar sobre a casa.

De manhã, Júlia acordou-o com as três pancadas no soalho, como de costume. Mas ele percebeu que, lá em baixo, ela trafegava mais lentamente do que nos outros dias. As próprias crianças dir-se-iam mais comedidas do que habitualmente.

Quando Horácio desceu, já a malga de caldo fumegava sobre a mesa. Ele sentiu logo que Júlia não tinha vontade de falar e tentou consolá-la:

— Provavelmente soltam-no hoje...

Júlia não disse nada. Mas logo que ele saiu, ela ajeitou os cabelos, pôs o xale e foi pedir a uma vizinha que lhe tomasse conta dos filhos. Depois, meteu à mesma estrada por onde Horácio e os outros operários seguiam todos os dias.

Júlia ia andando e pensando que talvez àquela hora Ricardo não tivesse ainda comido nada. E que esses buracos onde, segundo se dizia, metiam os presos, podiam aumentar “lhe o reumatismo. Contra a vontade dela, visionou Ricardo a contorcer-se com dores entre paredes negras, onde não havia luz e a humidade escorria. Júlia mordeu os lábios. Ela pensou, então, que Ricardo era corajoso. Lembrava-se, subitamente, de vários pequenos actos da sua vida, de vários nadas, aos quais, nesses momentos, não dera importância e de novo pensou que Ricardo era forte de ânimo. Tornou a visionar o seu vulto contorcendo-se entre húmidas sombras — mas ela, agora, estava calma.

Ao chegar à Covilhã, Júlia entrou, resoluta, na esquadra de polícia e pediu que a deixassem ver o marido. Veio um guarda, veio um segundo, veio, por fim-, o chefe. Perante a negativa recebida, Júlia insistiu. Insistiu tanto, que, pelas mastigadas palavras de um e de outro, ela concluiu que Ricardo já não se encontrava ali, que a polícia tinha-o mandado para Lisboa e o acusava de andar incitando o povo para uma rebelião.

Júlia deteve-se, um momento, a fixar os guardas com os seus grandes olhos, agora nublados. A sua boca ainda se entreabria, como se fosse falar, mas logo ela voltou as costas e saiu, muito embrulhadita no seu xale negro.

Quando chegou a casa, colocou sobre a banca o corte de fazenda que havia principiado a esbicar na véspera. Mas os olhos mal viam os resíduos vegetais que a lã prendia; a atenção andava longe, o trabalho não avançava e a mão já não sustinha as pinças detinha-se, muitas vezes, como inerte, sobre o tecido.

À alpardinha, quando Horácio volveu da fábrica, Júlia disse-lhe:

— Levaram o Ricardo para Lisboa... Já sabe? Ele fez um sinal afirmativo. Desde manhã, todos os operários sabiam que a polícia havia metido os presos numa camioneta, conduzindo-os, primeiro, para Castelo Branco e, dali, para a capital. Júlia continuou:

— Você tem de arranjar outro quarto para si. Eu não sei quanto tempo o Ricardo andará por lá. E eu não posso viver aqui com um homem solteiro, enquanto o Ricardo está na cadeia... O povo podia começar a murmurar e eu não quero.

Surpreendido, Horácio balbuciou:

—Está bem... Irei embora... desde que é essa a sua vontade... Mas de que vai vossemecê viver com toda esta criançada?

Júlia não respondeu. Pela primeira vez, após a notícia da prisão do marido, duas lágrimas surgiam nos seus olhos. Em frente dela, a velha Francísca, surda e cega, sentada à beira do lume, parecia dormir com o gato no regaço e o rosário caindo-lhe das mãos esqueléticas.

A greve começou, efectivamente, na quinta-feira. Quando Horácio saiu de casa, a manhã mostrava-se muito límpida. Um milhafre planava, lentamente, sobre um dos flancos da aldeia e dir-se-ia haver uma luz de domingo.

Horácio estava ansioso de ouvir os companheiros nesse dia em branco que lhe parecia a mais na sua vida. Mas em redor da casa de Ricardo não se via ninguém. Apenas algumas galinhas bicavam a terra, a um canto. Tudo o mais jazia em quietude.

Logo, porém, que dobrou a ruela, Horácio ouviu rumores de vozes e divisou grupos de operários que falavam e gesticulavam muito. Ao aproximar-se, compreendeu que eles discutiam, exaltados. Mais além, Tramagal gritava:

— São uns malandros! Não há direito de uma coisa destas! O que eles precisavam é que nós lhes partíssemos a cara!

— Mas o que é que aconteceu? — perguntou Horácio.

Cada vez mais excitado, Tramagal não lhe deu atenção. Foi Belchior quem lhe explicou ter-se sabido, há pouco, que muitos operários não haviam abandonado o trabalho. Na véspera, parecia que só meia dúzia deles discordava da greve; mas, de manhã, verificara-se que o número dos “amarelos” era maior do que se imaginara. Tramagal propunha, agora:

— Vamos lá! Vamos lá metê-los na ordem! Outros homens avançavam viela acima, entre os

velhos pardieiros, e falavam também acaloradamente. Por toda a parte se ouviam palavras de desdém e de indignação.

Informado do que se passava, Horácio dirigiu-se a casa de Marreta. No caminho, cruzou-se com outros grupos mais calmos, mas que avançavam já para a estrada da Covilhã. Malheiros, que ia num deles, disse-lhe:

— Vamos ver como aquilo anda por lá. Não queres vir também?

Horácio desejava ouvir, primeiro o Marreta.

— Já lá vou — respondeu.

Quando chegou a casa do velho tecelão, a porta encontrava-se fechada. Mas lá dentro alguém fazia discreto ruído. Horácio bateu. O ruído deteve-se, houve um silêncio, como que uma hesitação. Horácio bateu de novo. Sentiu, então, uns passos.

— Quem é?

Não era a voz de Marreta.

— Quem é? — tornaram a perguntar. Horácio reconheceu a voz de João Ribeiro.

— Sou eu... Eu, Horácio. A porta abriu-se.

— Ah, és tu! Entra.

João Ribeiro não parecia tranquilo. Fechou outra vez a porta.

— O Marreta não está — disse, depois, mais sereno. — Foi a correr para a Covilhã, por causa desses ranhosos que estão a furar a greve.

Sobre a pequena mesa viam-se os livros de Marreta, alguns deles já embrulhados em velhos jornais. João Ribeiro seguiu o olhar de Horácio e explicou:

— O Marreta não teve tempo de tirar isto daqui. Pediu-me que lhos guardasse em casa da minha irmã. Como ela é viúva, se a polícia vier meter o nariz por aí, com certeza não irá a casa dela...

João Ribeiro avançou para a mesa e acabou de embrulhar os livros.

— Tu podes ajuda-me a levá-los — disse. — E depois iremos à Covilhã, se quiseres...—Olhou Horácio e acrescentou: — Eu quero ir.

A irmã de João Ribeiro morava do outro lado da aldeia. Eles deixaram lá os pacotes e meteram à estrada da Covilhã.

Horácio viu que muitos operários faziam o mesmo caminho. Alguns, dos mais jovens, tinham envergado os seus fatos de domingo, mas marchavam apressadamente, como se fosse dia de trabalho.

Pouco depois avistaram a Covilhã.

As primeiras fábricas estavam fechadas. Então, os que iam aperaltados diminuíram o seu passo e começaram a avançar devagar, gingando, com o chapéu inclinado a uma das bandas. Eles olhavam para os portões cerrados e, ante a quietação e abandono dos edifícios, sentiam uma confusa volúpia em passar ali, em passar assim lentamente, como se tudo aquilo, pela primeira vez, dependesse deles, como se tudo aquilo, sem eles, tivesse de estar assim parado, assim morto, como nesse dia.

Logo, porém, que desceram mais a estrada para a Carpinteira, João Ribeiro e Horácio viram grande ajuntamento em frente da Fábrica Levante.

— É com certeza acolá — disse João Ribeiro. — Não me admira nada: na Levante e na Renovadora houve sempre “amarelos”.

Entre os que se aglomeravam na estrada, em frente da fábrica, havia muitos operários da Covilhã, homens e mulheres, e com eles já se encontravam também Belchior e Tramagal. Ouvia-se zoeira de protestos e de discussões junto do grande portão fechado e cada vez se juntava mais gente, descida da cidade.

— Quem são eles? — perguntou João Ribeiro, ao chegar.

Horácio ouviu citar nomes. E depois:

— Já se foi à Covilhã, falar com as mulheres deles, para elas lhes virem dizer que larguem o trabalho... Mas parece que a polícia prendeu os que foram à Covilhã. Agora, o Marreta está lá para dentro, a ver se consegue alguma coisa. Mas isso consegue ele! Aqueles foram sempre uns sem-vergonhas...

Chegava, de momento a momento, mais gente. E, com ela, veio a notícia de que o “comité” da greve havia sido preso também, depois de apresentar aos patrões um novo pedido de aumento de salários. Homens e mulheres exaltaram-se mais. Em frente do portão, centenas de bocas gritavam:

—Marreta! Marreta! Deixa lá esses traidores!

Dir-se-ia não haver ninguém na fábrica. Nenhum vulto assomava às suas muitas janelas. Não se via nada vivo. Mas quando a multidão se calava, ouvia-se, distintamente, o ruído dos teares a trabalharem lá dentro. Junto do largo portão de ferro, à espera de Marreta, o poviléu impacientava-se, vozeando as suas discordâncias. E estavam, todos assim, quando apareceu, subitamente, na curva da estrada, vindo da Covilhã, um copioso grupo de polícias, que se deteve em frente dos grevistas.

Armados de pistolas e de carabinas, os guardas e o tenente seu comandante ordenaram:

— Daqui para fora, já! Daqui para fora!

Homens, mulheres e garotos-aprendizes hesitaram um instante. Depois, alguém se lembrou de perguntar:

— Daqui para fora, porquê? Não fizemos mal a ninguém!

Palavras ditas, a multidão largou em apupadas e assobios à polícia, enquanto alguns dos guardas continuavam a mandar:

— Daqui para fora, já disse!

Ninguém obedecia. E a surriada aumentava. Então, o comandante da polícia, sentindo-se desrespeitado na sua autoridade, tornou-se sobrecenho e ordenou que fosse preso quem mais se destacava no escárnio e na gritaria. Vendo a decisão dos guardas ao levarem a carabina à cara, de novo a maioria hesitou. Mas havia os que, no alvoroço provocado, tinham perdido receios e instintos defensivos e, de nervos soltos, prosseguiam na assuada. A esses, alguns polícias iam prendendo, protegidos pelas suas armas e pelas dos colegas.

Entretanto, o portão abria-se, o tenente e dois guardas entravam e, pouco depois, volviam, trazendo entre eles a Marreta. E logo se viu marcharem estrada além, ladeados pelos seus captores, duas dezenas de homens, de mulheres e de adolescentes.

A multidão, surpreendida e vacilante, calou-se. Depois reagiu e tudo se passou rapidamente. Operários e operárias corriam pela estrada, atrás dos seus, que iam presos. Berravam e protestavam e, chegados à cidade, em todos os casebres das ruelas proletárias soaram vozes de levantamento:

— Mandam-nos para Lisboa, depois para a costa de África e nunca mais os veremos!

Eram, sobretudo, as mulheres que gritavam assim e outras mulheres, tirando a panela do lume ou deixando os filhos, somavam-se às primeiras e iam fazendo rabiar o alarme e a revolta de porta em porta.

Mal os presos haviam sido aferrolhados na cadeia, instalada, como a esquadra da polícia, no rés-do-chão do velho edifício filipino que a Câmara Municipal ocupava, já a multidão surgia ali em frente, no Pelourinho, enchendo de gritos toda a praça.

E cada vez engrossava mais, mulheres atrás de mulheres, sempre mais mulheres.

— Queremos os presos! E queremos pão para os nossos filhos!

O comandante da polícia veio à porta, viu aquela massa ululante e considerou que, se se estabelecesse luta, ele e os subordinados seriam vencidos. Num instante, alinhou, de carabinas aperradas, os seus homens em frente da esquadra e telefonou para a Guarda Republicana e para o Batalhão de Caçadores 2, pedindo urgente auxílio.

O vozeario continuava. As mulheres berravam sempre mais alto e incitavam, com palavras e gestos, os homens mais tímidos. Horácio sentiu-se empurrado pelas costas:

— Vamos lá! Vamos tirá-los da cadeia!

O Pelourinho andava em obras, para alargamento da sua área e as pedras do calcetamento amontoavam-se aos cantos da praça. Enfurecidas mãos femininas agarravam-nas e arremessavam-nas sobre a polícia.

De repente, desembocaram ali soldados do exército e da Guarda Republicana, luzindo metralhadoras. A praça fora cercada. A multidão deu conta do acontecido, hesitou uns segundos e continuou a avançar para a cadeia.

— Quero o meu filho! Quero o meu homem! Queremos os nossos presos!

— Queremos pão! —E a voz isolada logo se multiplicou e se repercutiu por toda a praça:—Pão! Pão! Pão!

Postados junto das metralhadoras, à boca das ruas, os soldados do exército e da Guarda Republicana viam, de sorriso frio e amarelo, o mulherio avançar, vociferante. Mas hesitavam em abrir fogo, que o prélio era com a polícia e só para a polícia as pedras e as apóstrofes se dirigiam furiosamente. De súbito, porém, um tiro soou. Batido por certeira pedra, mesmo à porta da esquadra, um dos polícias apontara, em desforço, a sua carabina e um rapaz caíra com uma perna traspassada pela bala. Ao seu grito sucedeu um. uníssono grito de ódio da multidão inteira. E viu-se, então, homens e mulheres que caminhavam para o assalto à cadeia, volver seus passos e correrem, encolerizados, sobre a esquadra de polícia. Um outro guarda, perante essas cabeças desvairadas, que se aproximavam dele numa onda de raiva e de clamor, meteu a carabina à cara e levou o dedo ao gatilho. E foi nesse momento, em dois segundos apenas, que tudo aquilo se metamorfoseou. O tenente que comandava a polícia, ao ver o gesto do subordinado, deu um salto sobre ele. A sua mão não teve tempo de tirar-lhe a arma, mas impeliu, num gesto brusco, o cano para cima, desviando a pontaria. Ouviu-se um tiro, dois, três, que o polícia, também em desvario, continuava a fazer fogo. Mas as balas iam altas, perdiam-se no ar.

A multidão odiava o tenente. Fora ele quem, duas horas antes, mandara prender homens e mulheres junto do portão da fábrica. E, mesmo antes disso, corriam sobre ele histórias de brutezas, de impulsos do seu carácter violento. Mas, agora, perante o seu inesperado gesto, a multidão, surpreendida, amolecia de repente. Os que avançavam, enfunados, detiveram-se; o fulgor do ódio que havia nos seus olhos esmoreceu, os seus rostos contraídos duramente adquiriram outra expressão e um súbito, um imenso silêncio, dominou toda a praça. Dir-se-ia que, após esses poucos segundos, uma gratidão colectiva substituíra o rancor. Aproveitando aquele amortecimento, o tenente estendeu os braços e arengou. Que fossem para casa, que tivessem juízo, que aquilo só lhes podia trazer desgraças. Ele não queria fazer mal ao povo, mas tinha de cumprir o seu dever. Ele não podia soltar os presos sob ameaças de ninguém. Ele tinha de entregá-los aos seus superiores e só os seus superiores é que poderiam mandá-los em paz.

Falava em tom paternal e os operários, habituados a vê-lo façanhudo e autoritário, amoleciam ainda mais, ao ouvi-lo falar assim.

Que pensassem bem as coisas volveu a dizer. — Não viam que, se todas aquelas espingardas e metralhadoras disparassem, morreria muita gente? Ele não quisera, até agora, dar ordem de atirar, mas seria obrigado a fazê-lo se teimassem naquela atitude. E para que servia, afinal, tudo isso? Depois do que se passara, ele, como já dissera, não podia, só por sua vontade, libertar os presos. Contudo, ia interessar-se por eles, junto dos seus superiores, para que nenhum mal lhes acontecesse. Mas que ninguém visse naquilo um sinal de fraqueza e sim apenas o seu desejo de evitar derramamento de sangue.

Desarmado, em frente dos polícias, cujas carabinas fizera baixar, no eiradozito que havia junto da esquadra e que dominava toda a praça, o tenente deu conta do efeito das suas palavras e, depois, abalou para dentro do edifício.

Muitas das mulheres comoveram-se. Entretanto, haviam chegado mais soldados, mais metralhadoras. Viam-se, agora, armas em todos os lados da praça. Alguns operários ainda barafustavam, mas já a multidão se dividia em grupos, que discutiam entre si, e uns e outros começavam a retirar-se, de passos vagarosos, vencidos. Das janelas que abriam sobre o Pelourinho, as cabeças curiosas, que tinham retardado o seu almoço para assistir àquela cena, principiaram também a desaparecer. Pouco depois, a praça volvia ao seu aspecto normal, enquanto nas ruas as mães e as mulheres dos presos iam chorando a caminho de suas casas.

A greve prosseguiu. Todos os dias se viam, no Pelourinho e no jardim, grupos de operários que, antes, só se reuniam ali, àquelas horas, em dias dominicais. Ora falavam entre eles, ora se calavam longamente, de olhos parados, como se assistissem à passagem do tempo invisível, que vinha do fundo dos tempos e ia para os horizontes onde se abrem as auroras. Ao cabo de uma semana, a população da Covilhã já se habituara a ver aqueles grupos nos extremos dos passeios ou enconstados às paredes, vestidos de escuro e à espera.

Na Aldeia do Carvalho, os homens esperavam também, mas ossinais exteriores de greve eram menos perceptíveis do que ali. Os operários metiam-se em casa, conserta isto, conserta aquilo, reparações que nunca tinham encontrado tempo e disposição de ânimo para fazer, ou dobravam-se, de enxada nas mãos, sobre as courelas arrendadas. Apenas as mulheres, que, com um embrulho debaixo do braço, iam à cidade mais frequentemente do que antes, lembravam a existência da greve.

Como sucedera a Ricardo, a Alcafoses e a Gristino, também Marreta e os outros prisioneiros haviam sido conduzidos para Lisboa. Ao saber isto, logo no segundo dia do movimento, João Ribeiro dissera a Horácio:

— Uma vez que a Júlia não te quer em sua casa, e como eu tenho a chave da casa do Marreta, tu podes ir dormir para lá.

Horácio mudara-se nessa mesma tarde. Mas os operários haviam deixado de se reunir ali. Reuniam-se agora, todas as noites, em casa do Tramagal. Escutavam os que tinham ido à cidade e demoravam-se a discutir as notícias que eles traziam1. Na Covilhã constituíra-se um novo “comité”. Mais uma vez, porém, os industriais haviam declarado ser-lhes in> possível atender as reivindicações. Que tivessem paciência, mas eles não podiam elevar os salários, porque o governo continuava a não lhes permitir elevar o preço dos tecidos. O governo entendia que, se se cedesse, cair-se-ia num círculo vicioso, pois o aumento de salários provocaria, fatalmente, um aumento do custo de vida, prejudicial para todos. Assim, a única promessa que podiam fazer era não despedir quem houvesse tomado parte na greve e isto se não se desse qualquer novo incidente.

A casa de Tramagal estava cheia quando se comentou aquilo. Tramagal disse:

— Os industriais perdem ainda mais dinheiro do que nós. E, salvo esses malandros que não aderiram, por toda a parte os camaradas estão firmes. Esperemos.

A mulher de Tramagal olhou-o, ao ouvi-lo falar assim. Ele sentiu esse olhar e tomou uma expressão mais dura.

— Esperemos! — repetiu, como se respondesse à mulher.

Quase todos pensavam da mesma maneira. E outras noites e outros dias se esgotaram sempre naquela expectativa.

Na Covilhã, os homens continuavam a formar grupos na Praça do Pelourinho e no jardihi público. E as mulheres cantarolavam mais do que outrora nas suas casinhotas. Mas era um cântico nervoso, tão nervoso e tão distraído que não as fazia esquecer aquilo em ’que elas não queriam pensar. Nos caminhos enlameados encontravam-se, agora, mais pegadas femininas do que masculinas e os proprietários dos cafés populares verificavam, preocupados, que o seu negócio minguava de dia para dia.

O segundo “comité” fora preso também e nas ruas da Covilhã viam-se passar, a toda a hora, patrulhas da Guarda Republicana. Alguns industriais tinham partido para Lisboa e Coimbra, aproveitando aquele forçado descanso. E os que ficaram não davam mostras de querer novas negociações. Ao fim da tarde, as andorinhas pousavam nos fios telegráficos e quedavam-se a ver de alto a cidade. Outras, com a sua cabecita redonda, entretinham-se a coçar o colo, lá em cima e com o céu por cima delas.

Uma noite, Malheiros trouxe a notícia de que à Covilhã cada vez chegavam mais polícias vindos de Lisboa. Os homens que se reuniam em casa de Tramagal ouviram aquilo e não estranharam, pois recordavam-se de que tinha sido quase sempre assim. Mas logo as suas caras se abriram num sorriso de vingança ao saberem, por Belchior, que na cidade se formara um terceiro “comité”. Dizia-se, também, que os operários de Gouveia, de Unhais da Serra, de Arrentela e até das longínquas margens do Vizela iam dar a sua solidariedade aos dali. Fiassem lã ou algodão, todas as fábricas têxteis do país paralisariam em breve.

Horácio ouviu Tramagal exclamar:

— Veremos se, assim, os industriais continuam a cantar de alto! O que nos faltava era justamente a solidariedade de todos os camaradas. Se a tivéssemos tido logo de princípio, isto já teria acabado!

Nessa noite os homens saíram com novo alento. E, de manhã, as mulheres levaram de suas casas, suspirando menos do que das outras vezes, as últimas utilidades domésticas.

Desde então, todos os dias homens e mulheres se levantavam com aquela esperança. Mas o tempo passava e a notícia tão desejada não chegava nunca. Soubera-se somente que a polícia andava azafamada em Gouveia, em Unhais da Serra e noutras terras. Perante isso, Malheiros começara a duvidar, contra a opinião de Tramagal, que teimava:

— A polícia não pode prendê-los a todos, nem as fábricas vão ficar paradas toda a vida! Eles devem ir para a greve, por que não? Eles têm toda a vantagem em fazer greve ao mesmo tempo que nós.

João Ribeiro chegou nesse momento. Vinha da Covilhã e informou que a polícia havia proibido as casas de penhores de emprestarem mais dinheiro sobre os objectos pertencentes aos grevistas.

O candeeiro dava uma luz difusa. Mal iluminadas e assim imóveis, as caras pareciam, mais do que nunca, talhadas em granito. A cabeça de Belchior dir-se-ia um busto de pedra, corroído pelo sol e pela chuva, nos beiços do qual um garoto colocara uma ponta de cigarro apagada. Subitamente, uma voz rompeu o silêncio:

— Querem render-nos pela fome! Querem matar-nos à fome! A nós e aos nossos filhos...

Durante alguns segundos ninguém disse mais nada. Depois, todos começaram a bradar, ao mesmo tempo, palavras de cólera. Duas dezenas de homens estavam ali e os seus olhos fulguravam e as suas bocas contraíam-se duramente.

— Sim, a nós e aos nossos filhos e nós não fazemos nada! Nós não nos defendemos!

A mulher de Tramagal estava sentada a um canto e Horácio viu que os seus olhos se humedeceram.

Os homens saíram dali excitados. Cá fora, eles olharam a noite espessa, olharam, com ódio, o caminho da Covilhã e pensaram no que fariam no dia seguinte.

No dia seguinte, porém, averiguaram que a polícia não interviera naquilo. Se alguns penhoristas se haviam recusado a emprestar mais dinheiro, era porque os derradeiros trapos que as mulheres dos operários lhes levavam não tinham, para eles, valor.

Essa verificação não só apaziguara os mais exaltados, como deixara, no espírito de muitos, um súbito vácuo, ao secar aquele ódio suplementar que lá havia brotado.

Entretanto, a greve mantinha-se. A esperada solidariedade de outras terras não se efectivara, mas os operários da Covilhã continuavam a formar grupos, como até ali, no Pelourinho e no jardim público.

Nos seus casebres, as mulheres haviam-se tornado tão azedas como os homens, mais ainda, pois enquanto eles, sombriamente concentrados, cada dia falavam menos, elas cada vez falavam e protestavam mais. Empenhado tudo quanto dava algum dinheiro, esta, aquela e aqueloutra cobriam quilómetros sobre quilómetros para ir a Cortes do Meio, a Teixoso, a outras distantes aldeias, pedir, a um parente pobre como elas, um pouco de pão que as ajudasse a manter os filhos e o marido. Mas, nos dias imediatos, a carência surgia de novo, porque abundantes eram apenas as necessidades e aquelas chuvas primaveris, que de quando em quando caíam, dificultando os movimentos e enchendo os casebres, as ruas e as próprias almas de maior enervamento. A princípio, se as crianças se tornavam pedinchonas e irritantes, as mães castigavam-nas colericamente e disparavam-lhes pragas, como era de seu costume. Mas, com o decorrer dos dias, foram deixando de bater nos filhos. Às vezes, perante as impertinências destes, ainda elas, mal•humoradas, levantavam os braços; logo, porém, aquele súbito pensamento as detinha — e as mãos que se haviam erguido, num gesto de ira, desciam, vencidas.

Uma tarde, a mulher de Tramagal prevenira-o:

— Amanhã não temos nada para comer. As crianças vão rebentar de fome...

— Pois que rebentem! — respondeu ele, com um tom furioso.

À noite, Tramagal parecia ainda mais inflexível do que fora até ali:

— São uns cães! São uns cães! — vociferou, quando soube que alguns operários da Covilhã haviam retomado o trabalho. — Parece que só eles têm precisão! E os outros? Os outros? Pena tenho eu de haver vendido a minha espingarda! Porque o que eles precisavam...

Nenhum dos presentes acreditava que Tramagal fosse capaz de fazer o que ele próprio sugeria. Ninguém acreditava, mas as suas palavras pareciam dar maior gravidade ao acto dos outros. Os homens sorriram primeiro e, depois, quedaram-se num longo silêncio. Entretanto, os olhos de Tramagal, muito incendiados, iam examinando cara por cara e, finalmente, detinham-se detinham-se e demoravam-se sobre Malheiros e sobre Horácio. Este suportou-os um momento e acabou por baixar a vista, mal disposto, pois desde há dias parecia-lhe que Tramagal julgava que ele era pela capitulação.

— Uns miseráveis! Uns tipos sem nenhuma vergonha e que desconhecem mesmo os seus interesses!— tornou Tramagal.—- É por causa deles que os industriais levam sempre a melhor.

— Não vale a pena fervermos em pouca água, pois são raros os que têm pegado no trabalho — interveio Belchior. — A grande maioria aguenta-se. É ver que das fábricas que fecharam logo no primeiro dia, ainda nenhuma reabriu. Os que têm voltado são dos que trabalhavam em fábricas onde houve sempre “amarelos”.

Tramagal pareceu ficar mais calmo. Afirmou mesmo que não voltaria à Covilhã enquanto aquilo durasse, para não perder a cabeça.

Na noite seguinte, porém, ele enervou-se novamente, ao saber que mais alguns operários haviam renunciado a continuar em greve.

— À porta das fábricas há, agora, muitos mais guardas-republicanos do que antes, para garantirem a liberdade do trabalho...—informou Malheiros.—’E parece que o “comité” vai dar a greve por finda...

— É o “comité” que vai dar a greve por finda ou és tu que desejas? — berrou Tramagal.

Criara-se, subitamente, grande discussão. E Malheiros saíra amuado.

De manhã, ao contrário do que afirmara, Tramagal dirigiu-se à Covilhã.

No jardim continuavam os grupos de operários. Mas já não apresentavam o mesmo aspecto dos primeiros dias. Embora o tempo não houvesse aquecido, quase todos eles estavam sem sobretudo e, se algum o envergava ainda, era o abrigo tão velho, tão roto e esfiapado que, mais do que de homem válido, dir-se-ia de coxo pedinte de estrada.

Tramagal começou a andar de grupo -para grupo. De todos ouvia a mesma coisa. Ninguém afirmava, mas todos diziam que “parecia que o “comité” ia dar ordem para se voltar ao trabalho”.

— E vocês?

A pergunta criara repentinosembaraços. Alguns barafustaram, pondo-se ao lado de Tramagal; outros mantiveram-se em silêncio, sob esse cansaço que se via nos seus olhos, no seu todo, como se eles houvessem passado as últimas semanas não em ócio, mas num permanente labor. Todos pareciam de acordo com Tramagal, mesmo os que não falavam; todos, porém, sentiam que aquilo era já inevitável.

Tramagal dirigiu-se ao Pelourinho. Também lá havia, como nos dias anteriores, numerosos ajuntamentos de grevistas. Mal ele começou a protestar, Silvano, que era tido como um tecelão inteligente, muito gabado por Marreta, e que pertencia ao novo “comité”, puxou-o para um lado e disse-lhe:

— Nós vamos sem querer, é claro. Mas o pior para eles é que, justamente, nós vamos sem querer ir, é que nós vamos contra a nossa vontade... Compreendes ?

Tramagal não compreendia. Ouviu aquilo, ouviu mais explicações, mas não se convenceu. E, ao fim da tarde, tendo-se reunido a outros discordantes, levantava os seus irados punhos e agredia, sobre a rampa da Carpinteira, alguns dos operários que haviam retomado o trabalho.

Era quase noite quando um grupo de guardas-republicanos atravessou o Pelourinho, levando-o a ele e aos seus companheiros para a esquadra.

Foi numa segunda-feira. Os homens começaram a descer da Covilhã, uns ao lado dos outros, uns atrás dos outros, em negras filas. Ninguém dizia nada. A manhã estava áspera e eles marchavam de cabeça baixa, contra o vento cortante.

Pela estrada da Aldeia do Carvalho chegavam outros operários — homens e mulheres, elas embrulhadas em esfarrapados xales, eles de golas levantadas. Também vinham em silêncio e, à medida que se aproximavam, iam caminhando mais lentamente, esnioendo a sua humilhação de vencidos. Todas as fábricas estavam abertas, como nos dias normais, antes da greve. A única diferença é que nos portões e sobre a própria estrada se viam numerosas forças da Guarda-Republicana, umas a cavalo e outras a pé. Os guardas falavam entre eles e fingiam que não davam conta do que em seu redor se passava.

As sereias soltaram, o primeiro apito e os operários foram-se acercando mais. Depois, os vultos escuros dos homens e das mulheres começaram a transpor os portões, sempre calados.

Em breve, as sereias davam o último sinal e logo chegava cá fora o rumor das máquinas, que haviam recomeçado a trabalhar.

Alguns guardas-republicanos, que eram também pobres e também tinham dificuldades em suas casas, olharain-se entre si, sorriram de satisfação e acenderam os seus cigarros.

 

ENJORCADOS nas fatiotas domingueiras, barba feita, este e aquele de flor na lapela, convidados e padrinhos iam chegando, enquanto a senhora Gertrudes, auxiliada péla tia Madalena e por Arminda, andava em trafega incessante, da sua cozinha para o forno do Belisário e do forno para a cozinha, em preparação de cabritos e coelhos. As onze horas, todos os homens presentes, levando no meio deles a madrinha, o tio Joaquim e Horácio, largaram Eiró abaixo, a buscar a noiva em sua casa.

Ao alcançarem a porta, de dentro rompeu segundo grupo: vinha Idalina e os seus padrinhos, o tio Vicente, mais homens e mais mulheres. De xale e lenço negros, saia e blusa, faces coradas, Idalina sentia súbita vergonha ao olhar para Horácio em frente dos outros. Mas já os dois bandos formavam um só e, trilhando a ruela, avançavam para a igreja. Lá, aos pés do abade, eles ouviram o que entendiam e o que não entendiam, responderam “sim” quando foi preciso — e encontraram-se casados. O encarregado do registo civil estava também presente e foi o primeiro a desejar-lhes felicidades.

Cá fora, farejando dádiva de moedas, aglomeravam-se garotos e umas velhas que lançaram punhados de flores. Idalina ia, agora, ao lado de Horácio e sempre que avistava, a um lado e outro do caminho, alguém a olhar, sorridente, para ela, voltava a sentir-se envergonhada, como se a vissem não ali e sim noutro lugar, nua em vez de vestida dos pés até a cabeça.

Ao entrarem no Eiró, algumas raparigas da vizinhançadebruçaram-se nas suas janelas e atiraram, também, flores. Todas, porém, contemplavam sem alvoroço o cortejo, porque os convidados eram poucos, os noivos pobres como elas próprias e demasiado acanhada, para se poder dançar, a casa onde a boda se efectuava.

A senhora Gertrudes já havia conseguido assar cabritos quando o filho, a nora e seu acompanhamento chegaram. Os homens agruparam-se a um lado, as mulheres a outro, parolando enquanto Arminda colocava os últimos pratos sobre a grande mesa feita de várias mesas emprestadas.

Lá fora havia um fulgurante sol de Junho, mas vaga era a luz que entrava em casa. De janelico aiberto, para maior claridade, homens e mulheres sentaram-se a comer. Quando falavam pouco ou se calavam, ouviam-se as lamúrias dos mendigos que, sabendo do festim, iam chegando e se reuniam, lá em baixo, na rua. Eram tantos e tão persistentes nas solicitações e nos lamentos que a senhora Januária, para os ouvir menos, pedira licença à senhora Gertrudes e fechara a janela. Entretanto, com o vinho, os homens iam graçolando cada vez mais, menos os padrinhos, que entendiam ser de sua obrigação mostrarem-se austeros enquanto estivessem junto dos noivos.

A meio da tarde, já as mulheres se haviam retirado, para volver à hora da ceia, os homens separaram as mesas e começaram a jogar as cartas, bebendo sempre. Foi então que Arminda teve a ideia de levar Horácio e Idalina para sua casa e lá, onde havia maior espaço do que ali, cantarem e dançarem. Como os convidados eram quase todos velhos, sem fervores para bailaricos, ela bateu as redondezas em busca de rapazes e raparigas. Poucos arrebanhou, porque a maioria labutava ainda, àquela hora de sábado, nas fábricas ou nos campos; os raros que vieram dançaricaram até as oito da noite, em volta do Francisco Silveira, que tocava a sua harmónica. Depois tornaram ao lugar da boda e, de novo, comeram e beberam.

Já passava da meia-noite quando a senhora Jánuária disse à filha:

— São horas de irmos, pois amanhã tens de te levantar cedo...

E, em seguida, ela e o tio Vicente partiram, levando Idalina. Arminda trocou um olhar atrevido com Horácio e os últimos convidados largaram novas chocarrices, “por em noites daquelas ser caso de arreliar ir a noiva com os pais, em vez de ficar na cama com quem de direito”.

Finalmente, a senhora Gertrudes viu, na sua casa, apenas o marido e o filho, como antes de este casar. Moída muito embora pela faina que tivera, ela não resistiu e pôs-se a manusear o dinheiro que padrinhos e convidados haviam oferecido, como os bons usos mandavam. Contou, ao todo, duzentos e oitenta escudos e concluiu, pesarosamente, que aquilo nada era em relação às despesas feitas, ali, em Manteigas, com a boda e o senhor vigário, e na Covilhã com a casa para onde o filho ia morar. E, então, pensou que escolhera mal os padrinhos, pois se houvesse falado aos Fonsecas, como queria o tio Joaquim, estes, decerto, dariam muito mais. Com tal ideia ela se deitou e não pôde dormir. Ouviu cantar os primeiros galos e quando ia, enfim, pegar no sono, o despertador tocou. Sentiu Horácio mexer-se na cama, no quarto ao lado, e, depois, levantar-se. A senhora Gertrudes ergueu-se também, para lhe aquecer uns restos de cabrito e uma pinga de café de café que comprara de propósito para essa manhã.

As sete e meia, as duas famílias estavam junto da camioneta que ia partir para Belmonte. O condutor pôs no tejadilho o baú de Idalina e dois sacos de batatas, oferecidos, na véspera, pelos convidados que não haviam dado dinheiro. O sol branqueava já os cumes da serra que envolvia, como uma muralha, a vila de Manteigas; e na Igreja de Santa Maria os sinos tocavam para a missa de domingo.

Horácio e Idalina despediram-se dos pais e subiram. A camioneta arrancou, deixando a senhora Gertrudes encostada ao tio Joaquim e com duas lágrimas nos olhos. Velha que era, sabia que levando Horácio a Idalina, ela não tornaria a ver tão cedo o filho. Que só por ela, que o criara, ele não voltaria tantas vezes como até aí.

Entretanto, na camioneta, muito chegado a Idalina e com o braço sobre os ombros dela, Horácio sentia-se feliz. O veículo ia avançando e ele semicerrava os olhos, sempre com aquela gula que o queimava, sempre com aquela ânsia de que o dia se esgotasse depressa e viesse a noite, para ser mais feliz ainda.

Duas horas corridas na estrada e chegaram à estação de Belmonte. A camioneta de Manteigas só vinha ali uma vez por dia, àquela hora, buscar o correio que o comboio de Lisboa trazia. E o comboio descendente, que os deixaria na Covilhã, só às cinco da tarde passaria ali.

— E! o raio esta falta de transportes! — lamentou Horácio. — Termos de sair tão cedo de casa, para, afinal, perder o tempo aqui! Já por causa disto, eu e o Serafim Caçador nos vimos gregos, aquela noite, na serra!

Com tantas horas livres, Horácio decidiu arrecadar baú e sacos na estação e ir vaguear com Idalina no picaroto de Belmonte. Como a vila e seu velho roqueiro quedavam distantes do caminho de ferro, os dois dirigiram-se vagarosamente para lá, ele com um dos braços na cintura dela e os olhos parecendo boiar em seiva. Nas ladeiras do povoado, se enxergavam vulto humano à sua frente, cortavam logo em oposta direcção, porque, nesse dia, só a eles próprios desejavam ver. E, assim, atingiram e se puseram a deambular pelos solitários meandros do castelo, mais atentos às sombras e recantos das antigas muralhas onde pudessem apertar-se e beijar-se, do que aos panoramas que de lá se descortinavam em larguezas de pasmar.

Almoçaram numa taberna de Belmonte e, a meio da tarde, havendo entestado a sua vaga curiosidade até à remota Torre de Centum-Cellas, ali, no meio dos campos, ele inão se contivera mais e consumara, em poucos minutos, a sua ambição de tantos anos, de tantas noites de insónia e de imaginação.

Às cinco horas estavam, de novo, com o baú e os sacos junto do caminho de ferro e, uma hora depois, o comboio deixava-os, finalmente, na estação da Covilhã.

Com um carregador, Horácio discutiu o preço do transporte dos sacos de batatas para casa, pois o baú levá-lo-ia ele próprio. Idalina interveio, afirmando que, em vista daquilo ser tão caro, ela levaria o baú e ele um dos sacos. O outro ficaria guardado na estação e, depois, viriam buscá-lo. Horácio considerou que isso seria o melhor, já que o carregador lhe pedia mais do que ele ganhava em meio dia de trabalho na fábrica. Não quis, porém, que Idalina andasse com carregos logo naquele dia, que era o verdadeiro dia do seu casamento, pois na véspera cada um tinha ido para casa dos pais.

— É longe... — disse. — São quase dois quilómetros e sempre a trepar...

— Não faz mal! — declarou ela, resoluta. — Eu levo o baú

Pouco depois, os dois subiam as íngremes rampas que dão acesso à Covilhã, ele vergado sob o saco de batatas, em cima do qual pusera, dobrada, a jaqueta nova; ela de baú à cabeça, onde levava as suas roupitas de noivado e umas louças que lhe oferecera a madrinha.

Quando entraram na Rua Azedo Gneco, negra e tortuosa como as demais da vizinhança que eles haviam atravessado, iam ambos ofegantes, estafados. Idalina deteve-se e colocou o baú no chão: “Ufa!” Horácio pousou também o saco e pôs-se a limpar o suor da testa.

— É um bom bocado, não te dizia eu? Mas, agora, a casa está perto. Fica logo aí adiante.

Um velho corcovado vinha avançando na rua. Horácio reconheceu nele o Manuel da Bouça, mas fingiu não o ver. O velho, porém, ao acercar-se deles exclamou:

— Olá, rapaz! Já não há quem te ponha a vista em cima! — examinou Idalina e, depois, perguntou a Horácio, em voz baixa: —Já casaste? É esta a rapariga de que falavas?

Aquela presença mal dispunha Horácio. Ele conhecera Manuel da Bouça há pouco tempo ainda. Conhecera-o pouco depois de as autoridades de Lisboa terem, afinal, decidido soltar todos os operários que haviam sido presos durante a greve, menos Ricardo e Alcafoses. Marreta regressara ao seu casebre e Horácio passara a viver na Covilhã, para ir preparando a casa que alugara para si e para Idalina. Manuel da Bouça morava no sótão do mesmo pardieiro onde Horácio tinha um quarto com vários rapazes de Cortes do Meio, que trabalhavam também nas fábricas e dormiam todos juntos, para pagar menor aluguer. Era encarregado da limpeza de um armazém e, às vezes, Horácio apiedava-se do seu destino, vendo-o assim velho e acabado, sem parente algum na Covilhã e mal ganhando para comer. Mas não lhe aprazia falar com ele, porque, ao ouvi-lo, ficava descoroçoado, pois Manuel da Bouça não acreditava no futuro e falava sempre mal dos homens e da vida. Contava que tivera uma casa e tivera terras e perdera tudo porque quisera viver melhor do que vivia. E que haviam sido outros homens que lhe tiraram quanto era dele. Que atravessara os mares, rolara por terras distantes, trabucara como um negro e nunca amealhara nada, porque em toda a parte existiam homens que tinham mais poder do que outros e ficavam com tudo quanto podiam. Depois, andara aos trambolhões em Portugal, de uma banda para outra, a ver se ainda levantava cabeça. Mas nunca o conseguira. Cada um só tratava de si e não se importava com os demais. Até a sua filha e o seu genro o haviam desprezado, quando souberam que ele não trouxera vintém lá das terras por onde andara. Aquilo não tinha remédio algum e havia de ser sempre assim. Os homens eram como eram e não havia jeito a dar-lhes. Quem tinha sorte, tinha; quem não a tinha, que rebentasse ! Ali mesmo, na Covilhã, onde viera parar com os ossos, se não o punham no olho da rua é porque ninguém faria mais ’barato o trabalho que ele fazia no armazém. E ainda porque, sendo o dono podre de rico, não queria, certamente, que o criticassem por haver despedido um pobre diabo que não tinha onde cair morto e só ganhava cento e cinquenta mil réis por mês.

— Também eu fui como tu — afirmava, frequentemente, a Horácio, com desagrado deste.—Também eu pensei, como tu, fazer alguma coisa na vida e, como vês, acabei para aqui, neste estado. E olha que trabalhei a valer!

Manuel da Bouça repetia tanto as suas descrenças e amarguras, que Marreta, quando, um domingo, viera ali e o conhecera, dissera, depois de o ouvir falar:

— É um vencido, porque perdeu todas as esperanças. Só os que não têm nenhuma esperança são vencidos como ele.

Agora, Manuel da Bouça, esfarrapado e de barba crescida, voltava-se para Idalina, fazendo um gesto largo, a indicar a cidade:

— Então a menina gosta disto ? Idalina sorriu:

— Sei lá! Cheguei agora mesmo...

— Ah, então nunca tinha cá vindo? Olhe, se precisar que lhe faça algum trabalhinho lá em casa, algum recado, estou às suas ordens. O Horácio sabe onde moro.

Porque continuava a molestá-lo a presença de Manuel da Bouça, Horácio pegou no saco e fez o movimento de partir. Mas o outro, ao ver Idalina vergar-se também, para erguer o baú, interveio:

— Deixe lá, menina, que eu levo-lhe isso. Idalina olhou para ele e, ante o seu corpo decrépito, recusou:

— Não é preciso, muito obrigado. Isto é pesado; tem louças dentro...

— Ora! Ora! Posso com ele, vai ver! Dê-mo cá. Com essevestido novo, até não fica bem à. menina levar um baú à cabeça...

Horácio pensou: “O que ele quer eu bem o sei. O que ele quer é ver se lhe dou alguma coisa.” Mas Horácio sentia desejos de ser gentil com a mulher naquele dia de núpcias e disse-lhe:

— Dá-lho. Já que o quer levar, que o leve. — E ele próprio auxiliou Manuel da Bouça a pôr o baú às costas.

Com o velho à frente, de passos lentos e hesitantes sob aquele peso que lhe dobrava ainda mais o tronco já dobrado pela idade, os três começaram a trilhar a ruela.

 

A casa que Horácio alugara ficava quase em frente do quarto onde ele se tinha acomodado desde que saíra da Aldeia do Carvalho.

— É aqui...

Manuel da Bouça já havia pousado o baú e, enquanto Horácio metia a chave, Idalina olhava a portita humilde do rés-do-chão, olhava a parede suja e escalavrada, fendida no primeiro piso, toda a cair de velhice. Ela mirou, depois, em derredor, em busca de melhores habitações. Mas toda a rua proletária, sufocada em sua estreitura, era assim negra, assim velha, assim pobre, pingando tristeza e imundície. Enfezadas e rotas crianças, de cara mascarrada, brincavam no lajedo, entre cães e gatos; e, sentadas às portas térreas, esquálidas mulheres esbicavam cortes de fazenda e velhas desmelenadas pareciam beber com os olhos já amortecidos a última luz do dia, enquanto outras seguiam, curiosas, os movimentos do casal recém-chegado.

Manuel da Bouça ajudou Horácio a meter em casa o saco e o baú e despediu-se:

— Desejo-te boa sorte, meu rapaz!

Horácio deu-lhe uma moeda e, depois, pôs-se a riscar fósforos, porque, embora o Sol luzisse ainda no céu, no interior do casebre havia uma obscuridade que mal deixava divisar as coisas.

Logo que acendeu o candeeiro, Horácio fechou a porta e correu a abraçar e a beijar a mulher. Teve-a, assim, alguns momentos, contra o peito, e, quando a largou, ela viu-se entre uma quadrazita de paredes tão velhas e enegrecidas como as exteriores. Ao fundo, estava a cama de ferro e a mesa de cabeceira; ao centro, uma mesita e duas cadeiras, tudo isso já muito usado. A esquerda, havia uma arca de pinho e, à direita, o fogão, que semelhava também uma mesa, com cobertura de tijolo e, neste, dois buracos para o brasedo. Só a cantareira era nova, branquejando ainda as suas tábuas sem pintura. Nela Horácio tinha metido as tigelas, pratos, garfos, facas e colheres que julgara indispensáveis para eles dois. Em baixo encontravam-se uma panela, um tacho, um alguidar e nada mais.

Idalina olhava, lentamente, a quadra. E Horácio seguia, atento, esse exame, ansioso de obter aprovação, porque fora ele quem, nos últimos meses, andara, de uma banda para a outra da cidade, em busca de móveis em segunda mão, dos mais baratos que pudesse haver.

— Que tal? — perguntou.

— Está bem... — respondeu Idalina. E acrescentou, com ternura:—Tens pena de não ter a casita nova, de que falavas, não é verdade?

— Claro! E não tenho razão? Ora dize lá: Não era bem melhor virmos logo para uma casinha nova como eu queria e que depois fosse boa para os nossos filhos?

— Lá isso era, não há dúvida. Mas deixa lá... A gente há-de viver. E o principal é a gente dar-se bem...

Ela falava assim, meigamente, mas também ela se havia acostumado à ideia dele e sentia, agora, uma súbita melancolia. “Aquilo ali era ainda pior do que o Eiró, de onde ela vinha” — pensou.

— Também é verdade que isto é provisório — volveu Horácio. — É só até estarem prontas as casas que a Câmara mandou fazer... Depois mudamo-nos para lá. É o que vale! Porque lá passar a vida metido aqui, isso não quero eu, isso não!

Horácio avançou -para a mesa-de-cabeceira, que ele só adquirira porque o dono da cama não quisera vender-lhe esta sem aquela. E, pondo a mão em cima do traste, disse:

— Resolvi comprar isto... Que achas?

Ele sentia, nesse momento, vaidade pela aquisição, já que, fosse em Manteigas, fosse na Aldeia do Carvalho ou ali, os pobres não usavam aquele móvel e metiam o vaso de noite sob a cama.

Idalina repetiu:

— Está bem...

Por súbita ligação de ideias, ela voltava-se, agora, para um lado e outro, como se procurasse algo que faltava. A casa, divisão única, tinha apenas uma porta e um janelo de dois palmos que abria sobre a rua. Mas o olhar de Idalina insistia, como se não tivesse visto tudo da primeira vez, como se teimasse em descobrir, nas paredes, uma porta falsa, uma porta oculta, que facultasse passagem para outro lado.

Horácio julgou adivinhar o que ela procurava e hesitou em explicar-lhe, em referir-se àquilo, nesse primeiro dia da sua vida em comum. Muitas vezes, ao falar com ela sobre a casa que ele desejava, lhe dissera que queria uma casa com latrina pegada. Mas, agora, sentia um repentino pudor. Continuou hesitante, até se convencer de que não podia deixar de falar daquilo. E foi titubeando, enchendo de reticências as primeiras palavras, que disse:

— Bem... Necessária não é... lá isso não... Aqui, nas casas dos operários, é quase tudo assim... A gente arranja-se como pode e, depois, vai despejar numa pia que está aí, na porta do lado... Logo vês: tem uma tampa de pau... É ao pé da escada que dá para o primeiro andar, por mor de servir a todas as pessoas do prédio...

Tendo Idalina posto, pudicamente, os olhos no chão, como se ouvisse e não ouvisse, ele procurou desculpar-se:

— Eu bem quis alugar uma casa que não fosse assim, lá isso quis, mas para as nossas posses, não encontrei. E ainda as desta rua são das melhores. Porque há umas, aí para baixo, onde só existe uma pia para todo o quarteirão. Como as pias tinham de ser ligadas aos esgotos e isso era por conta dos senhorios, eles, para gastar pouco dinheiro, só mandaram fazer uma. As mulheres vêm de longe, de uns pátios que há lá para os fundos, fazer os seus despejos ali e, por onde passam, deixam tudo empestado. Lá havia uma casa para alugar, que era maior do que esta e pelo mesmo preço, mas eu, estás a ver!, não a quis. Aqui, pelo menos, a pia está na porta dos vizinhos e só incomoda, a bem dizer, aos que vivem cá por cima de nós...

Gomo ele fizesse uma pausa, Idalina disse, com voz resignada:

— Vou arranjar as coisas que trouxe... Horácio olhou-a, inquieto:

— Parece que não gostaste nada da casa... Tu não estás triste, não é verdade ?

—Não... Que ideia a tua! — protestou ela, mas, contra sua vontade, a voz continuava melancólica. E ia a dobrar-se, para abrir o baú, quando ele a tomou pela cintura e a beijou de novo.

— Deixa agora isso! Vamos, primeiro, comer e, quando voltarmos, arranjas as coisas.

— Então não comemos aqui?

—Hoje, não, pois não comprei nada para cozinhar. Vamos embora! Quero também mostrar-te onde a Câmara está a fazer casas para operários. Verás que sítio bonito é!

Rua em fora, Idalina ia vendo, dentro de cada porta de escada, mesmo junto do limiar, aquelas redondas tampas de madeira de que o marido falara. E parecia-lhe que teria vergonha, muita vergonha de vir ali. Os dois dobraram para outra viela e era sempre a mesma coisa. E sempre crianças farroupilhas, mulheres mondongas, velhas desgrenhadas, cães e gatos vadios.

— Pensei que a Covilhã fosse outra coisa... — murmurou, agarrando-se ao braço de Horácio.

— A Covilhã não é só isto, minha tola! Também tem coisas bonitas, vais ver. Isto é cá dos pobres. Mas lá para cima há casas que põem de cara à banda todas as de Manteigas. Depois verás. Há algumas que são mesmo tão boas como as que vi em Lisboa e no Estoril.

Verão andante, com duas horas adiantadas à dor mal, havia ainda poalha de sol para as bandas do Ferro e de Belmonte, quando eles entraram na Praça da República no Jardim. As altas tílias estavam carregadinhas de flores e o seu aroma enchia o vasto terraço ajardinado que a cidade lançava, ali, sobre o vale. Gente tarda, homens e mulheres, rapazes e raparigas, sentados nos bancos ou transitando nas áleas, fruíam o encanto vesperal, antes de ir jantar.

Horácio atravessou, com Idalina, por entre eles e foi debruçar-se nas grades que deitavam para o lado da Carpinteira.

— Olha, é acolá! —disse. E apontava os Penedos Altos, numa suave declividade da outra margem da ribeira. — É acolá que estão a construir as casas para os pobres. Vês? É um sítio bonito, não é verdade?

Idalina mirava as dezenas de paredes, ainda sem cobertura, que se erguiam ao longe, em frente dela, e confirmava:

—É muito bonito.

— Pois é lá que ficará a nossa... Vão construir por ali acima, para os operários da Covilhã.

Idalina repetiu:

— É um lugar bonito... Quando ficarão prontas?

— Não sei, mas não deve demorar muito. Aquelas que estás vendo, só faltam as obras de carpinteiro, o reboco e os telhados. Deve ser questão de poucos meses...

Horácio indicava, agora, um outro ponto, à sua esquerda:

— Olha, ali é a fábrica onde eu trabalho... Aquela grande, toda envidraçada... Estás vendo? As fábricas daqui são muito melhores do que as de Manteigas...

—É aquela que está assim um pouco de través?

— Não. Essa é a do Alçada. É a outra, a que tem uma bandeira.

— Ah, já sei.

Idalina demorou-se a contemplar o conjunto de construções fabris, que se exibia lá em baixo, junto da ribeira:

Horácio tornou:

—. É para lá que tu irás também. Quando pedi ao Mateus, que é o meu mestre, para me dispensar sexta-feira e ontem, aproveitei a ocasião e pedi também ao Felício, que é mestre da ultimação, um lugar para ti... Para tu aprenderes a meter fios ou a esbicar, conforme o que houver mais falta... E o Felício ficou de arranjar isso, logo que possa. — Horácio sorriu, com esperteza: — Pelo sim, pelo não, pedi também ao Marreta para falar a mestres de outras fábricas... Assim, quando fores operária, ganharemos por dois lados...

Já várias vezes ele se havia referido aquele projecto e ela, agora, escutava-o sem o interromper. Os seus olhos passaram do grupo de fábricas para as casas do Sineiro e do Sineirinho, postas mais acima, nas fraguentas curvas da Carpinteira.

Horácio insistiu:

— E quando eu chegar a tecelão — porque hei-de chegar a tecelão, custe lá o que custar! — ganharemos ainda mais.

Também aquilo Idalina lhe tinha ouvido de outras vezes, embora com outras palavras. Sorriu-lhe, com carinhoso assentimento, e os seus olhos voltaram as fábricas, ali em frente, e das fábricas ao vale, à grande Cova da Beira, que se estendia lá em baixo.

— Gosto mais de Manteigas...—disse Idalina, como se falasse consigo própria.

— É que ainda não estás acostumada aqui. Isto também não é feio. Repara no castelo de Belmonte, onde estivemos hoje. Agora volta-te. — E indicando-lhe a parte mais alta da cidade:—Olha as casas de que te falei há pouco. Vês ? Em Manteigas só há uma que se lhes pode comparar: aquela nova, na Senhora dos Verdes. Estas têm tudo o que é bom. Eu nunca entrei em nenhuma, está claro, mas todos garantem que elas têm, lá dentro, muitas coisas compradas em Coimbra e Lisboa, coisas boas que não se vendem por aqui. Aquela, cor-de-rosa, com uma data de sacadas, é a do meu patrão. Para mim é a melhor de todas. Ele não tem filhos, mas dizem que gosta de casas grandes. As vezes, vêm pessoas de Lisboa visitá-lo e ficam ali uns dias, antes de irem para a quinta que ele tem lá em baixo, no vale...

Falando, parecia-lhe que, ao valorizar o seu patrão, se valorizava a si próprio, perante Idalina.

— E que tal é ele? Horácio vacilou:

— Eu cá não sei... Só o vi duas vezes... Uns dizem bem, outros mal. Mas que ele está por cima de todos os outros industriais, não há dúvida. Há dois tão fortes como ele, mas toda a gente garante que o meu patrão é o mais esperto...

Subitamente, Horácio recordou-se do olhar que Tramagal lhe havia lançado no dia em que Azevedo de Sousa entrara na fábrica com um suíço — e calou-se, mal disposto.

— Vamos comer— disse, depois, com outro tom de voz.—Vão sendo horas...

Voltaram à maranha das ruelas proletárias e abancaram numa locanda. Terminado o jantar e ao receber o troco da nota que dera em pagamento, Horácio contou, vagarosamente, fazendo cálculos, o seu dinheiro. Dos mil e duzentos escudos que pedira emprestado ao Valadares, para pôr a casa, restavam-lhe cinquenta e seis. Com cinquenta e seis escudos, Idalina podia fazer a comida até sexta-feira.

Tranquilizado pelos seus raciocínios, estendeu à mulher a nota do Banco:

— Pega lá... — E como Idalina exitasse em recebê-la:— É para fazeres, amanhã, as compras, para a semana...

Regressaram a casa, descia já a noite. Ao vê-lo acender, de novo, o candeeiro, Idalina perguntou:

— Então, aqui, não há electricidade?

— O que não falta por aí é electricidade! Estas casas é que não a têm...

Tornou a beijar Idalina, uma, duas, muitas vezes. Depois saiu, um instante, cerimonioso naquela primeira noite de casados; e demorou-se mais do que precisava, para que a mulher dispusesse também de tempo. Voltou a entrar e beijou-a novamente.

Ao despir-se, Horácio considerou a dificuldade. Na Aldeia do Carvalho, ele acordava com as três pancadas que Júlia costumava dar no soalho. E na Covilhã, no quarto que tivera com os rapazes de Cortes do Meio, havia um despertador, que era do Faneca. Ali, porém, carecia de uma e outra coisa. Não que ele não tivesse pensado nisso, ao pôr a casa; mas, sempre temendo que o dinheiro viesse a faltar-lhe, não comprara o despertador. Agora, era o diabo, porque ele não podia deixar de estar na fábrica à hora da entrada. Voltou-se para Idalina:

— Tu costumas acordar cedo?

— Conforme...

— Então não tens a certeza?

— A certeza... a certeza, não tenho. Lá em casa havia um despertador e...

— É disso mesmo que eu preciso aqui! Tenho de estar a pé às sete, sem falta, por causa do trabalho... E, se não me acordam, sou capaz de ficar para aí ferrado no sono. Não foi só por haver dificuldade em encontrar casa na Aldeia do Carvalho que eu vim para a Covilhã. Foi também para ficar mais perto da fábrica. Assim, posso levantar-me um bocado mais tarde... Eu gosto de dormir e não é

com grande vontade que de manhãzinha deixo o quente...

— Podes dormir descansado... — disse Idalina. — Põe o relógio aí e dorme à tua vontade. Eu acordo-te. ..

— Tu não te importas de fazer isso? Também ela gostaria de dormir tranquila e sabia que, com aquela obrigação, não dormiria sossegada, mas respondeu prontamente:

— Não; não me importo.

Ele estava feliz e ansioso de se deitar, ansioso de apertar nos seus braços o corpo da mulher. Tudo o mais que o preocupara até ali não tinha agora, para ele, importância nenhuma, nenhuma importância perante o instinto supremo que o galvanizava.

NA segunda semana de casados, sexta-feira, ele entendeu ser preferível dar-lhe o dinheiro de uma só vez. Aos poucos, parecia que aquilo não rendia nada e Idalina estava sempre a pedir-lhe mais. Assim, tendo-o ela todo à sua guarda, talvez se enchesse de brios e economizasse como era preciso.

Acabava de entrar, vindo da fábrica, e colocou as notas e as moedas sobre a mesa:

— Pega lá... Está aqui a féria. Eu fico só com vinte e cinco tostões, para cigarros. Doravante és tu que governas o dinheiro... Mas não deixes de pôr de banda pelo menos vinte escudos por semana, para ir pagando a dívida ao Valadares. De três em três meses podemos entregar-lhe duzentos e cinquenta escudos e, ao fim de um ano, estamos quase quites com ele...

Idalina pressentia que, por detrás das palavras do marido, havia algo que ele não dizia, mas, ao mesmo tempo, pareceu-lhe natural que fosse ela a administrar a vida doméstica dos dois. Também em casa de seus pais era a mãe quem punha e dispunha do dinheiro que lá entrava para as despesas da família.

Horácio aconselhava:

— Em vez de comprares dia a dia, podes comprar de uma só vez o que for preciso para toda a semana, menos o que se estrague, está bem de ver... Assim, poderás comprar mais barato. Todos os sábados há o mercado grande, onde se pode escolher mais à vontade. É por isso que as férias são pagas, aqui, à sexta-feira...

— Farei como dizes — declarou Idalina. E quedou-se lisonjeada com a autonomia que o marido lhe dava, pois dessa maneira já ela seria verdadeiramente mulher, dona de sua casa, como a sua mãe e como as outras mulheres casadas. Esse estado de espírito durou-lhe, contudo, pouco tempo.

Na manhã seguinte, indo ao mercado, ela obedeceu às indicações de Horácio; mas na quarta-feira verificou que, sem tocar no dinheiro que reservara para o Valadares, não poderia comprar as sardinhas e as couves para esse dia. E, então, arreliou-se: “Horácio ia dizer que ela era uma desperdiçadeira e ela não era desperdiçadeira nenhuma, tinha a certeza disso. O que lhe faltava, talvez, era prática.” Amofinou-se durante toda a manhã e, por fim, decidiu-se: não diria nada a Horácio e, na outra semana, puxaria mais os cordões à bolsa, para repor o que ia tirar agora.

No sábado, regateou com as vendedeiras, disputou todos os tostões e comprou menos do que havia pensado. No domingo, ficou contente, porque Horácio jantara sem estranhar que ela não lhe desse, ao contrário do que fizera no domingo anterior, um pedaço de carne de porco. Segunda-feira, porém, voltava a enervar-se. As sardinhas mudavam todos os dias de preço e até as couves e os nabos também. E quase sempre era para mais. Quando ela viera para ali, havia um litro de petróleo e, agora, a garrafa estava vazia.

Idalina resolveu comprar menos pão em cada dia: cem gramas que fossem, ao fim da semana davam quase um quilo.

Uma noite, Horácio queixou-se:

— O caldo tem pouco azeite...

— É que não reparei bem, ao botar... — desculpou-se...

De outra vez, ele notou:

— Parece que andas sem apetite... Vê lá não vás cair doente! Comes como um passarinho...

Ela apressou-se a justificar-se:

— Não... Eu como bem... É que enquanto estou a arranjar a ceia, sempre you provando e petiscando... E, de pão, nunca gostei muito...

Ele caçoou:

— És como os ricos, não querem ver?

Na terceira semana, ela tremia quando o marido lhe entregou a féria. Dos quarenta escudos que tentara arrecadar para o Valadares, tinha apenas dezoito. E Horácio prevenia-a:

— É verdade, esqueci-me de te dizer que teremos de contar com sete mil e quinhentos por semana para a renda da casa. Vê lá isso...

Ela ficou gelada, primeiro a olhar para ele, depois a olhar para o chão. “Ele ia arrepender-se de ter casado com ela, mas que ia ela fazer?” Hesitou, desesperou-se e, sem levantar os olhos, murmurou:

— O dinheiro não chega... Não chega para dar ao Valadares...

Quando ela lhe disse, a seguir, que não conseguira forrar, por semana, os vinte escudos de que ele falara, Horácio irritou-se:

—.Não percebo nada! Não digo que os catorze escudos que eu ganho por dia sejam muito dinheiro; não é; mas nós não temos filhos e os que os têm vivem com a mesma coisa. E ainda há os que ganham menos do que eu. Os pegadores de cardado só ganham doze escudos. Não percebo como gastas tanto!

Era a primeira vez, depois de terem casado, que ele lhe falara com aquele tom de voz. Idalina começou a chorar:

— Eu não sei... Eu não sei como os outros fazem... Tu pensas que eu não governo bem, mas eu não posso fazer mais... Puxando muito, pode dar para a renda da casa, mas, para o Valadares, não dá de maneira nenhuma ...Tu queres ver? Vai contando...

Ele sentou-se à mesa e ela, limpando os olhos com as costas das mãos, pôs-se a rememorar: tanto disto, tanto; tanto daquilo, tanto...

— Já contaste? E isto porque temos tido as batatas que trouxemos de Manteigas. Mas estão a acabar. ..

Com ela em pé, ao lado dele, Horácio demorou-se em seu silêncio. Depois disse, como se se dirigisse a si próprio:

— É verdade que os pegadores de penteado, como eu, ganham mais do que os pegadores de cardado, mas um pouco menos do que alguns outros operários. É um ofício que se aprende depressa, mas também o salário que se recebe é mais pequeno... — E voltando-se para a mulher:—Bom! Vamos a ver se dou um jeito à vida, que isto, assim, não pode ser!

Idalina ficou-se a olhá-lo. Mas ele não disse mais nada. Voltou ao seu silêncio, cabeça vergada sobre a mesa e as mãos fazendo rodar, distraidamente, as moedas que ali se encontravam.

A ideia de que tinham provindo as suas últimas palavras desagradava-lhe fortemente. E agora, depois de ouvir Idalina, muito mais do que até aí, por aquilo se apresentar como uma obrigação. Desde os seus primeiros dias de fábrica, ele decidira aprender tecelagem logo que chegasse a pegador de fios, pois os tecelões ganhavam mais do que os restantes operários. Em vez de salário fixo, recebiam conforme o número de passagens que as lançadeiras faziam nos teares e alguns havia que, ao fim da semana, tinham uma féria superior às dos outros obreiros melhor pagos. Além disso, os tecelões eram, entre o pessoal fabril, os mais respeitados por mestres e industriais.

Quando, porém, chegara a pegador de fios, ele resolvera adiar a nova aprendizagem, porque estava ansioso de casar-se e aquilo tomar-lhe-ia todo o seu tempo. Após o casamento, adiara mais uma vez, guloso de convívio com Idalina e daquelas horas de sol que, nesses meses de Estio, -havia ainda quando ele largava o trabalho. Agora, porém, não encontrava outra solução. E marralhava consigo próprio: “Se estivessem no Inverno, com chuva ou neve, seria, por um lado, pior, mas ele não teria, pelo menos, saudades da vida de lá de fora. Mas, com um tempo assim bonito como estava e, ainda por cima, casado de fresco, meter-se na fábrica às oito da manhã e só sair à uma da madrugada, era duro de roer. Uma hora para chegar a casa, despir-se e deitar-se, outra para levantar-se, vestir-se e -chegar à fábrica, só lhe restavam cinco horas para dormir. E ele, nem mesmo dormindo oito, ficava satisfeito. Então, ser casado ou solteiro, era a mesma coisa. Não disporia de tempo para viver com Idalina. Mas não havia outro remédio. Aquilo tinha de ser, pois tratava-se do seu futuro. E como tinha de ser, quanto mais depressa fosse, melhor.”

Ao levantar a cabeça, encontrou os olhos de Idalina, que, junto do fogão, onde acabara de acender o lume, o contemplava, sempre interrogativamente.

— Que queres? — perguntou ele, ainda de mau humor.

— Eu cá não quero nada... — Com timidez, acrescentou: — Que é que tu pensas fazer?

— Não sei ainda... Depois se verá... — E, erguendo-se da mesa, pôs-se a transitar na casa, de um lado para o outro, de mãos nos bolsos e a assobiar enervadamente.

No dia seguinte, ao sair da fábrica, Horácio recalcou as últimas hesitações e, como se apagasse a luz do Sol que ele, antigo pastor, gostava de encontrar cá fora, depois do trabalho, abordou Mateus. Ol mestre ouviu-o, carrancudo como sempre que lhe solicitavam alguma coisa; e, em seguida, prometeu:

— Falarei ao senhor gerente, a ver se ele quer escrever ao Sindicato a pedir autorização...

— Fico-lhe muito obrigado...

Mateus fez um gesto de quem recusava o prematuro agradecimento:

— Ainda falta ver se há alguém que queira trabalhar só de dia, para você poder trabalhar sempre de noite...

Horácio balbuciou:

— O Boca Negra diz que não se importa... Que até lhe faz jeito...

O mestre pronunciou, então, a frase ambígua com que costumava responder a todos os pedidos:

— Hei-de ver isso...

Horácio saiu. Boca Negra aguardava-o na estrada.

— Que tal?

Ele contou-lhe o seu diálogo com Mateus e o companheiro mostrou-se optimista:

— Não tarda quinze dias, tens o cartão do Sindicato. Tecelões desempregados não há. O que há são os velhos, que ninguém quer. Portanto, o Sindicato não se opõe. E na fábrica também não há empeno. Se fosses ganhar mais do que ganhas, então seria outra coisa. Mas tu, enquanto aprendes, continuas a ganhar o mesmo e sempre prestas alguns serviços na tecelagem. Não tarda quinze dias, vais ver! Não te importes com a cara que o Mateus fez...

Um momento, ao subirem da Carpinteira para a Covilhã, Horáciodesejou que Boca Negra estivesse enganado e o Sindicato demorasse a autorização, que assim ele ficaria em paz com a sua consciência e poderia aproveitar, junto de Idalina, aqueles fins de tarde estivais.

Boca Negra, porém, não se enganara. Na semana imediata, o Sindicato e o Instituto do Trabalho permitiam-lhe a aprendizagem e Mateus dizia-lhe, com simplicidade:

— Pode começar amanhã.

Ele balbuciou um agradecimento e sentiu-se infeliz. Quando, ao chegar a casa, deu a notícia a Idalina, ela lamentou também:

— A vida, assim, não tem jeito nenhum! Dezassete horas por dia metido na fábrica é de mais! E eu fico para aqui sozinha...

Para não entristecer a mulher, ele nunca quisera confessar-lhe quanto aquilo lhe custava. Mas parecia que Idaiina adivinhava o que ele sentia, pois ela dizia a mesma coisa que ele tinha dito, muitas vezes, a si próprio.

— É só um ano... — atenuou. — Ao cabo de um ano, estou pronto. Muitos tecelões fizeram-se assim... Ganhavam a vida de noite, para poder aprender de dia...

— Ora! Nunca me tinhas dito que, para aprenderes tecelagem, era preciso isso...

— É preciso, é. E é um favor que os patrões fazem, pois quem passa todo o dia na fábrica, quando chega a trabalhar no turno da noite já está cansado e não dá o mesmo rendimento... Foi o que o Mateus me disse e está-se a ver que é verdade...

Idalina insistia:

— Ainda se eu já tivesse, também, trabalho... Mas, assim... Assim sozinha no meio de quatro paredes e quase sem conhecer ninguém daqui...

— Bem... Nós estaremos juntos todos os domingos... Temos todos os domingos por nossa conta... E um ano depressa se passa... Trabalho para ti, também se há-de arranjar. Lá na fábrica não sei quando será, mas lá ou noutra parte arranja-se, com certeza. Ainda hoje o Marreta me disse que havia tornado a falar ao mestre da Renovadora...

Como a mulher continuasse atristada e num silêncio resignado, ele passou-lhe a mão pelas faces:

— Deixa lá... É um sacrifício, claro que é! Mas vale a pena! Ganharei mais e a nossa vida melhorará... Temos de pagar ao Valadares e de forrar alguma coisa, porque, quando formos para a casa dos Penedos Altos, precisamos de mais móveis... Precisamos de pôr aquilo bonito, por dentro. — Mudou o tom de voz: — Anda, vem daí! Vamos dar uma volta, para espairecer ...

— Tenho de tratar da ceia... Ele encolheu os ombros:

— Bom! Então vou eu...

Sentia necessidade de ar livre, daquele sol que havia lá fora, para além do bairro proletário, e que ele ia deixar de ter. Saiu. Venceu, primeiro, as sinuosidades da Rua Azedo Gneco, depois as da Rui Faleiro. E ia falando sozinho: “Tem de ser... Tem de ser...” Quando entrou no Pelourinho, já lá havia numerosos operários, que vinham, ali, todas as tardes, parolar um pouco, entre a saída das fábricas e a hora do jantar, como nos dias em que tinham estado em greve. De longe, Horácio reconheceu a muitos deles, mas não teve ganas de se aproximar. Sentia-se de mal com tudo e mesmo consigo próprio. Cortou direito às Portas do Sol e lá, no velho miradoiro, com motoristas a discutirem atrás dele, espraiou a vista. Havia sol no vale: via-se até o Fundão, até as Donas, mas ele não via o sol. Via apenas o interior da fábrica, ele e as máquinas da fábrica, o dia e a noite na fábrica, onde o sol não entrava e onde ele tinha saudades do sol. Continuava a olhar sem ver o vale ensoalheirado. Por fim, os seus olhos fixaram a colina que estava em frente, com o Convento de Santo António em cima e, mais abaixo, a figura da Senhora da Conceição, sobre alto recinto. Ele lembrou-se, então, de que se dizia — e estava mesmo lá gravado numa pedra — que quem visse de longe aquela imagem e lhe rezasse três ave-marias receberia muitos favores celestes. Encostado ao parapeito, decidiu rezar. Hesitou. Tinha tantas coisas a pedir, que não sabia bem qual devia pedir primeiro. Operário já ele era e já estava autorizado também a aprender para tecelão. Aquilo de passar os dias e as noites metido numa fábrica estragava a vida de um homem, mas ele precisava daquilo. “Bem; podia pedir que a sua vida melhorasse, sem ele dizer como, pois Deus é que sabia como devia ser.” E ia já a dobrar os joelhos quando se recordou de que os cardeais e bispos, cujos nomes estavam inscritos aos pés da imagem, prometiam facilidades, mas era para a vida no céu e não para a da terra. Então, ele pensou que uma coisa nada tinha a ver com a outra. E disparou dali, cada vez mais entristecido. Tornou a atravessar o Pelourinho e foi batendo os sapatos pela Rua Direita. Ia andando e monologando: “Não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe. Se eu estou mal, ainda há outros que estão piores do que eu.” Repetia as frases que Manuel Peixoto, um dia, na serra, lhe havia dito que eram boas para quando alguém desanimava; repetia-as, mas elas não o consolavam. Pensou nos homens que estavam na cadeia, com a barba por fazer e todos cheios de piolhos; pensou no Ricardo, que ainda estava preso, na família dele e no Ravasco, que morrera. E cada vez ficava mais triste, mais aborrecido, ao contrário do que Manuel Peixoto lhe dissera, quando lhe ensinara aquilo...

Desembocou em frente da Igreja de S. Francisco e, dali, meteu ao jardim público. Lá ao fundo, junto das grades, mirou os Penedos Altos. A construção das casas progredia, e isso deu-lhe uma súbita satisfação, a primeira dessa tarde. Logo, porém, que os seus olhos encontraram a fábrica onde ele trabalhava, voltou a enervar-se. Naquele dia a fábrica era-lhe odiosa e a ele parecia-lhe que só se sentiria bem longe dali, não sabia onde, longe, num lugar indefinido.

Decidiu voltar para casa e pôs-se a trilhar a alameda central do jardim. Grupos de velhos, encarquilhados e de fatos puídos, ’conversavam em volta do coreto. Eram os destroços humanos das fábricas, aqueles que as fábricas despediam assim que os seus corpos denunciavam fadiga e menor capacidade de trabalho, seres tão inúteis para a indústria como os resíduos vegetais e minerais que as máquinas separavam das lãs — para deitar fora. A um e outro, mais felizes, ainda um filho, que prosseguia, nas fábricas, o trabalho iniciado há séculos pelos párias seus maiores, prorrogavam-lhes, precariamente, a velhice, dividindo com eles o seu pão. A maioria, porém, falha, por isto e por aquilo, do apoio da descendência, tinha apenas a sexta-feira como alívio. Nesse dia, palmilhando negras ruelas, entravam no Sindicato, casarão tão senil como eles próprios e onde, outrora, em livres tempos, se gritara, muitas vezes, que todos os homens eram irmãos e a riqueza social a todos pertencia. Escada acima e, depois, arrastando-se na vetusta sala, velhos e velhas formavam escuro cortejo, costas dobradas pelos anos, mãos trémulas, bocas entreabertas pela respiração que a subida tornara opressa, caras de linhas rudes, de esculturas a picão, as faces enrugadas e, nas cabeças, humildemente descobertas, desgrenhados cabelos brancos. Eles e elas iam avançando a passos inseguros, sobre o soalho, até que, lá ao fim, um empregado, luzidio de juventude, entregava, em nome da Caixa Sindical, vinte escudos a cada um. De novo o cortejo, com modos de préstito fúnebre, se movia. Velhos e velhas voltavam a passar nas vielas proletárias, de sapatos rotos, de roupas rotas, caminhando em. direcção a outras escadas, noutros bairros, as escadas dos antigos patrões, para quem eles haviam trabalhado toda a vida. Alguns industriais, evocando obrigatórios contributos a organismos de assistência, não davam coisa alguma; outros, porém, já se sabia, davam todas as sextas-feiras dez tostões.

Tudo somado e depois repartido pelos sete dias a viver — era a fome. E, então, os velhos e as velhas passavam a ludibriar o estômago e o tempo, aguardando a nova sexta-feira, enquanto iam morrendo lenta e prematuramente por míngua alimentar. Todos eles pensavam no Albergue e todos o temiam, porque o Albergue era a antecâmara da morte, o fim do fim, o fim confessado a eles e a todos. Tanto, porém, a miséria os espremia, que, muitos deles, não podendo resistir-lhe mais, dominavam os seus terrores e à porta do Albergue iam, um dia, bater. Mas também lá não havia espaço para eles. Aquilo estava sempre cheio e, muitas vezes, quando a morte levava um dos internados, já alguns dos candidatos ao seu lugar tinham morrido também.

O sol era o único amigo. Encafuados nas suas tocas durante os Invernos nevosos, na Primavera e no Verão os que dispunham de melhores roupitas ajuntavam-se, em grupos de três e quatro, no jardim da Praça da República, que, a certas horas do dia, se tornava um jardim de inválidos, mesmo em frente das fábricas onde eles haviam trabalhado dezenas de anos a seguir. Ali havia sol e havia, sobretudo, o caminho que os operários válidos trilhavam ao regressar do seu labor. Estes constituíam, para os velhos, a esperança de uma moeda em dia de féria, de um cigarro noutros dias — de uma promessa, pelo menos, quando não tinham, também, nem cigarros, nem dinheiro.

Agora, ao divisar os vultos decrépitos em redor do coreto, Horácio tentou passar de largo, fingindo não ter reparado neles. Mas já de um dos grupos saía o Paredes, que, agarrando-se a uma bengala, se acercava, chamando-o!

— Horácio! Horácio! — E quando esteve perto: — O Boca Negradisse-me, há pouco, que vais aprender tecelagem. Fazes bem! Fiquei contente por saber isso. Estás novo; estás na força da vida. Fazes bem! Quem me dera estar na tua idade!

O Paredes, que enviuvara há pouco, nunca lhe pedia nada, mas ele já sabia o que o velho ambicionava quando lhe saía ao caminho. Meteu a mão no bolso e deu-lhe cinco tostões.

Paredes continuou a desejar-lhe felicidades e, antes mesmo de ele se afastar, dobrou-se e apanhou a ponta de cigarro que tinha visto no chão enquanto falava.

Horácio entestou, novamente, às ruas proletárias. Aquele encontro com o Paredes, que lhe lembrava o dia em que o velho fora despedido e ele entrara na fábrica pela primeira vez, deixara, no seu espírito, um novo rasto de enfado. Parecia-lhe ouvir ainda a voz de Tramagal a recriminá-lo, como se ele tivesse alguma culpa.

Nas ruelas que Horácio trilhava estavam, como sempre, àquela hora, no Verão, mulheres sentadas às portas, aproveitando a última luz diurna para esbicar ou meter fios em cortes de fazenda. De passagem, ele salvava uma e outra — a Paula, a Josefa, a Guida, a Procópia — companheiras de operários seus conhecidos. Depois de saudar a última, Horácio teve, de repente, aquela ideia e volveu atrás. Procópia morava a dois passos da sua porta e, como as outras mulheres, encostava-se sentada na soleira, a trabalhar. Horácio lançou o pedido. A Procópia, que havia deixado de esbicar para o ouvir, tornou a pegar nas pinças quando ele concluiu e disse com desenfado:

— Que ela venha.

Ao entrar em casa, Horácio comunicou a Idalina:

— Lembrei-me de falar à Procópia, para ela te ir ensinando a esbicar. Assim vais ganhando tempo e, depois, chegas mais depressa a operária. E até te entreténs. A Procópia é simpática e parece-me boa vizinha. Achas bem? Eu lembrei-me disso por tu dizeres que ficavas muito tempo sozinha, agora que vou passar dia e noite na fábrica...

— Eu acho muito bem. Tanto mais que quero ganhar, quanto antes, alguma coisa, para ajudar as despesas da casa.

Horácio tirou o chapéu e sentou-se à mesa para cear satisfeito com a resposta da mulher.

Mateus colocara-o junto de Marreta, o mais antigo dos tecelões. Ao lado, trabalhava o Dagoberto, de corpo seco e cabeça tão calva e esticada que, em vez de cabeça, semelhava um grande ovo posto sobre os ombros. Para além dos seus teares, outros teares havia, dezenas de tecelões laborando continuamente

Horácio regozijava-se por ser Marreta quem ia ensinar-lhe a tecer. Desde que saíra da Aldeia do Carvalho, só à hora do almoço, na fábrica, e num ou noutro raro domingo em que o velho tecelão aparecia na Covilhã, os dois conversavam-. Mas não era a mesma coisa, nem com o mesmo tempo folgado de quando se reuniam, à noite, em casa de Marreta ou caminhavam para a Aldeia, de volta do trabalho. E ele começara, ultimamente, a sentir falta, não sabia bem porquê, daquelas palavras sobre a vida deles que o amigo costumava dizer, sobretudo quando os dois estavam- sozinhos. Continuava a descrer das largas visões e afirmações de Marreta, mas a confiança que este tinha no futuro confortava-o de indefinida maneira, embora ele teimasse em opor-lhe as suas dúvidas. Atribuía, porém, à amizade e ao feitio de Marreta, sempre pronto a desculpar os companheiros e a interessar-se por todos, essa sensação de alívio que, muitas vezes, dele recebia, nas horas apoquentadas. Parecera-lhe, todavia, que Marreta não tivera contentamento igual ao dele quando, naquela manhã, o vira chegar com Mateus e pôr-se ao lado do seu tear. Essa frieza, que tanto o surpreendera, durara, porém, um migalho de tempo apenas. Logo o velho retomara o seu sorriso afectuoso e dera-se a instruí-lo sobre o funcionamento da máquina:

— Estes fios ao comprido são os da teia, que está montada acolá, ao fundo. Os fios passam por aqueles buraquitos que os arames das perchadas têm. As perchadas são aquelas coisas que parecem pentes. Mas o que se chama pente do tear é outra coisa: é isto aqui. Estás vendo? Agora repara: umas perchadas sobem e outras descem ao mesmo tempo. Assim, uns fios ficam por baixo e outros por cima. E então a lançadeira passa de través por entre eles, metendo o fio da trama.

Com sucessivos rumores secos, pausados, o tear dir-se-ia autónomo de vontades humanas, todo entregue à obsessão dos seus movimentos rápidos, sempre iguais, e mal permitindo a Horácio fixar as operações que Marreta lhe ia explicando:

— Agora, as perchadas com os fios que estavam por cima foram para baixo e as de baixo vieram para cima. A lançadeira tornou a passar, cruzando o fio que ela leva. É cruzando o fio da lançadeira com os da teia, que se fazem os tecidos... Percebeste?

Ao olhar para a cara do discípulo, Marreta compreendeu ter sido inútil a lição. Sorriu indulgentemente e volveu a repeti-la. Por fim, declarou:

— Isto não é difícil, mas o melhor é tu ires vendo. Só com o tempo podes aprender. Porque não é só o que o tear faz; é também o nosso trabalho. Se houvesses nascido na Covilhã, decerto terias ido à Escola Industrial e serias já um tecelão feito. Assim, tens de te fazer por ti próprio... E eu sei o que isso custa! Também aprendi como tu e, nesse tempo, tudo era pior. Nem me quero lembrar!

Depois, Marreta informou, com outro tom de voz:

— Daqui a nada acaba o fio da canela que está dentro da lançadeira e o tear pára. Temos de ter já pronta outra lançadeira com uma canela cheia de fio. A canela mete-se assim... Vês? É muito fácil. Chama-se embocar.

O tear deteve-se. Marreta trocou, rapidamente, as lançadeiras:

—Isto tem de se fazer depressa. Nós recebemos conforme o número de passagens que a lançadeira faz. Ora quanto mais demoramos, menos ganhamos. E os patrões são, também, prejudicados, pois se um tear produz pouco, menor é o lucro deles. Outra coisa que é preciso fazer a toda a pressa é atar os fios da teia que, às vezes, se partem. Tem de se parar o tear, como hás-de ver, e se o tecelão não se despacha, pior é para ele e para a casa. Mas disso tu já tens a prática lá da fiação. — Marreta voltou a sorrir: —Aqui, o que nos faz andar depressa é a “pinta”, é este fiozito branco que está na margem do corte e que, depois, se tira, para a fazenda não ir, assim, para as lojas. É nele que nós medimos as passagens que fazemos. E estás a ver como nós desejamos que ele aumente, pois quanto mais aumentar, mais ganhamos. Quando eu era novo, fazia mais de três “ramos” por dia, mais de quinze metros de tecido...

Dir-se-ia que Marreta se tinha arrependido das suas últimas palavras, porque rapidamente as emendou:

— Claro que eu ainda posso fazer a mesma coisa, se quiser; e se, às vezes, não o faço, não é porque não possa... É porque, como sou sozinho e tenho poucas despesas, não preciso de <correr atrás de foguetes...

O tear continuava com aqueles ruídos secos, aquelas fortes pancadas que impeliam as lançadeiras, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, num voo de bala.

 

AS casitas estavam quase prontas, branquinhas, airosas, soalheiras e até em cada um dos seus quintalejos havia já sido plantada uma árvore de fruto. Vendo-as assim, Horácio interrogava, frequentemente, os camaradas, mas nenhum deles sabia informá-lo sobre quando abriria a inscrição para os candidatos a inquilinos. Duas vezes ele fora mesmo ao Sindicato e lá haviam-lhe dito:

— Ainda é cedo. Ainda não temos ordens para isso.

Entretanto, correra que a Câmara Municipal não construiria mais vivendas económicas. Ao ouvir isso, Horácio duvidou. Como podia ser, se tinham sido feitas apenas setenta casas e só os operários dos lanifícios eram seis mil?

Dias depois, porém, ele verificava que os cabouqueiros, pedreiros e carpinteiros haviam desaparecido dos Penedos Altos e principiado a edificar uma nova fábrica, próximo do hospital. As sobras dos materiais de construção tinham sido, também, retiradas dali. O novo bairro apresentava-se limpinho, com ar de sítio onde não havia mais nada a fazer. Então, alarmado, Horácio voltou ao Sindicato. O presidente da direcção devia saber mais do que os operários, pois dava-se com muitas pessoas importantes e até com o doutor delegado do Instituto.

— É verdade — disse-lhe o presidente do Sindicato. — Para a construção do bairro, a Câmara deu metade do dinheiro e o Governo a outra metade. Mas, agora, a Câmara não tem mais dinheiro. E é pena, porque isto era uma boa obra!

— Então não fazem mais nenhuma casa?

— Certamente, um dia hão-de fazer...

— Um dia... Quando?

— Isso é que não se sabe... Nestes anos mais próximos, a Câmara tem muitas despesas e outras necessidades a atender... Foi o que me disse, há dias, o doutor Teixeira.

Horácio saiu de cabeça baixa. E, durante o resto da semana, andou a moer aquilo. Como podia ele ter uma das casas dos Penedos Altos, se elas eram tão poucas e a gente que precisava delas era tanta?

— Mete um empenho!—disse-lhe, no domingo, o Boca Negra, na floresta que sobrepujava a Covilhã, onde eles haviam ido, com as mulheres e Marreta, passar o dia. — Mete um empenho, enquanto é tempo. Eu cá por mim não quero nenhuma das casas. E há outros camaradas que também não querem. Não que nós não precisássemos, mas porque a renda mais baixa é de setenta escudos. Não digo que seja cara, nestes tempos que vão correndo. É até barata, tendo em conta que são casas bonitas e com cinco divisões. Mas a mim já me custa, só eu o sei, pagar vinte escudos por aquela em que vivo. Agora tu, que queres mudar-te, deves andar de olho aberto. As casas não são apenas para os operários dos lanifícios; são também para funcionários públicos, empregados do comércio, motoristas, padeiros, para todos os sindicatos. Estás a ver... Se não te mexes, ficas sem nenhuma.

—Mas como hei-de eu mexer-me?

— Não sei. Isso é contigo... Vê se arranjas um empenho, já te disse.

Estavam os dois sentados, com Marreta, na Varanda dos Carqueijais, enquanto as mulheres arrumavam, entre os pinheiros, o cesto em que haviam trazido o almoço para esse dia de ripanço. Horácio coçou a cabeça e olhou a cidade que se estendia lá em baixo, luzindo ao sol e padroando o imenso vale do Zêzere.

— Que raio de empenho posso eu arranjar, se não conheço ninguém de peso na Covilhã?

— Eu digo-te isto, porque já ouvi dizer que há pessoas que vão meter empenhos. E só se forem tolas é que não farão isso!

Sentado ao lado deles, Marreta escutava-os em silêncio. Horácio voltou-se e olhou-o, como a pedir-lhe um conselho. Marreta continuou, porém, calado. Depois, tirou um jornal do bolso e pôs-se a lê-lo tranquilamente.

Da estrada que cortava a floresta vinha o ruído de uma camioneta que subia. Horácio pegou no garrafão que tinha trazido e bebeu. Não lhe apetecia, agora, vinho, mas tornou a beber.

— Que diz vossemecê a isto? — perguntou, directamente, a Marreta.

Em vez de lhe responder, o velho tecelão dobrou, vagarosamente, o jornal.

— Estou cansado — declarou. — Já não tenho idade para estas caminhadas. Da Aldeia do Carvalho até aqui é um bom bocado e quase sempre a subir.

Horácio compreendeu que Marreta não queria, de maneira alguma, falar das novas moradias. Lembrou-se, então, da noite em que ele lhe havia dito: “Tu encontras uma panela com libras e mandas fazer uma casa. Tu ficas satisfeito, mas os outros continuam na mesma.” Horácio pegou no garrafão e bebeu pela terceira vez.

Boca Negra estava também calado. Marreta parecia olhar para a serra da Gata, que se divisava lá muito ao longe, de contornos imprecisos. O ruído da camioneta esmorecia, à distância. E de dentro do pinhal saíram, trazendo o cesto, Idalina e a mulher de Boca Negra. Ao dar por elas, Marreta levantou-se e propôs:

— Vamos andando?

Com Marreta no meio, o grupo começou a descer a floresta. E, desde essa tarde, Horacio procurou quem pudesse interceder a seu favor.

Falou, primeiramente, ao Marques. Mas, dias passados, o padrinho dizia-lhe:

— Tens de esperar que se abra a inscrição. Não se aceitam empenhos.

Aquilo brigava com o que Boca Negra dissera e ele comunicou-o ao merceeiro. Marques repetiu:

— Não se aceitam empenhos neste caso. Foi, pelo menos, o que me garantiram. Se alguém os mete, isso não sei! A mim, o que me disseram é que as casas seriam distribuídas ou sorteadas por quem tivesse a idade que a lei manda e bom comportamento. Pessoas que não sejam assíduas no trabalho, bêbedos e zaragateiros, não serão aceites. Mas, felizmente, tu não és desses.

Também aquilo não tranquilizou Horácio. E, de esperanças já bruxuleantes, ele partiu dali para recorrer a Pedro. Embora operário, Pedro conhecia muita gente fora das fábricas e havia até pessoas ricas que o cumprimentavam, talvez por saber quem era o pai dele. Pedro prometeu falar a um empregado da Câmara Municipal, seu conhecido; mas, no domingo seguinte, disse-lhe o mesmo que o Marques lhe tinha dito:

— Não se pode fazer nada. Tens de esperar que se abra a inscrição.

Nessa mesma tarde, Horacio ouviu, no Pelourinho, que várias pessoas haviam decidido não se inscrever. Afirmavam, uns e outros, que o novo bairro ficava longe da cidade e que, no Inverno, dificilmente as crianças poderiam vir à escola e as mulheres ao mercado. E, de noite, eram caminhos que davam medo.

Os operários escutavam os camaradas e a si próprios e cada vez sentiam maior necessidade de elaborar senões e exagerar inconvenientes, para se consolarem da certeza de que, fizessem o que fizessem, a quase totalidade deles não poderia instalar-se no novo bairro.

Tíramagal, que viera passar o domingo à Covilhã, era quem mais fomentava aquela ideia:

— Cá para o meu pensar, ninguém devia inscrever-se. Ou casas para todos ou para ninguém.

Horácio ouvia-os, sem intervir. Agradava-lhe que os outros amarrassem defeitos às casas e desistissem delas. “Assim ele teria mais probabilidades de ficar com uma — pensou. — E dissessem os outros o que dissessem, as casas eram muito boas! Quedavam afastadas da cidade, lá isso era verdade, mas assim mesmo é que ele gostava. Quando fosse para o trabalho, as fábricas estavam ali a dois passos, e quando estivesse em casa, era uma alegria com a terra livre em volta e tudo cheio de sol. Parecia impossível que os outros dissessem aquilo, vivendo, como viviam, nuns buracos onde nunca entrava a luz do dia.”

Tramagal marralhava:

— Ou casas para todos ou para ninguém! Horácio continuava calado. Também aquilo lhe

pareceu absurdo. “Como é que se podia fazer casas para todos, assim de pé para a mão? De mais a mais, havia muitos que nem sequer podiam pagar aquelas rendas baratas. Era ver o Boca Negra e tantos outros.”

A inscrição foi aberta uma semana depois. Horácio soube da notícia à hora do almoço, pela mulher do Boca Negra, que viera trazer a comida ao marido. Logo ele saiu do refeitório e correu ladeira acima,

Sindicato onde, i deles, o para a Covilhã, levando na mão a côdea que não tivera tempo de mastigar.

Quando, arquejante, entrou outros operários saíam. Reconheceu Aloísio:

— Vocês vieram também por mor das casas?

— Viemos.

La dentro estavam outros, à sua frente. Por fim, ele pôde dar o nome e a morada ao empregado do Sindicato.

— Há muita gente que quer as casas? — perguntou, quando o outro acabou de escrever.

— Alguma... — respondeu o empregado.

— Alguma... Mas, então, não é muita? — interrogou de novo, ansioso pela resposta.

— Bem vê... A inscrição começou há pouco...

Horácio volveu à fábrica. Não disse nada a Marreta, nem Marreta lhe perguntara coisa alguma. Mas ele sentia, no silêncio do velho, que este adivinhara a razão da sua saída do refeitório, pouco antes.

As cinco da tarde, ao abandonar o trabalho, Dagoberto confessou-lhe que talvez ele se inscrevesse também. Não tinha fé acrescentou —, mas não perdia nada em tentar.

Horácio dirigiu-se para a fiação. E, atrás do carro, indo e vindo e pegando os fios que se partiam, procedia por força de hábito, tão automaticamente como a própria máquina. “Eram sempre muitos cães a um osso! Eram sempre muitos cães a um osso!” — monologava.

À uma hora da madrugada, quando, enfim, saiu da fábrica, velhas superstições enleavam-no. Ao vencer a rampa da Covilhã, via tudo incerto, tudo precário ; e, como daquela vez que atravessara a serra com o Serafim Caçador, as casas dos Penedos Altos começavam a tremer, a adelgaçar-se, a desvanecer-se, como se fossem deixando de existir, como se, até ali, tivessem existido apenas na imaginação dele.

A noite estava quente. No labirinto proletário da cidade, muitos dos moradores, fugindo ao calor que os sufocava nas baiúcas onde habitavam e aos parasitas que lhes chupavam o sangue, haviam posto as enxergas sobre o chão das vielas e, como era seu costume, todos os anos, naquela época, dormiam ao ar livre da madrugada. Horácio ia andando por entre esses velhos colchões cheios de figuras que ressonavam, como em acampamento improvisado junto de destroços feitos por uma catástrofe. E cada vez ele sentia maior angústia, cada vez se sentia mais desamparado na noite, nos seus desejos, em toda a sua vida. Tramagal dissera que as casas não chegavam a ser sete por cada mil pessoas que precisavam delas. Assim, que esperanças podia ele ter?

Ao chegar à sua porta, Horácio ainda levantou o braço para bater, mas, de súbito, deteve-se. De novo, velhas crenças o envencilhavam. E uma derradeira hipótese de protecção surgia no silêncio nocturnal da ruela.

Perto dele, a Procópia moveu-se entre o marido e os filhos, nas duas enxergas juntas; logo, porém, aquele silêncio, quente e pesado como o ar da noite, volveu. Horácio vacilou ainda um momento e, depois, meio decidido, meio hesitante, continuou a andar, afastando-se, lentamente, da sua porta.

Cidade pequena, acolhedora e pacata, a Covilhã dormia. O seu próprio centro dir-se-ia abandonado. Somente no Pelourinho, Horácio lobrigou uns vultos que, falando, metiam à Rua Direita. O velho edifício filipino, onde se instalavam os Paços do Concelho, parecia golfar, através do arco que dava entrada para a Rua 1.º de Dezembro, um denso mistério de outrora. E, mais adiante, as casas construídas sobre as antigas muralhas da cidade mostravam-se numa confusão de burgo pretérito, onde os camartelos renovadores não haviam conseguido fazer olvidar todos os séculos passados com suas noites infindas.

O relógio de uma das igrejas bateu duas horas. Sempre vagarosamente, Horácio começou a subir para as Portas do Sol. Sentia-se cansado. O corpo, de pé desde a manhã do dia anterior, fosse junto do tear, fosse em correrias para o Sindicato ou atrás da carruagem de fiação, amolengava cada vez mais. Mas, lá dentro, a surda batalha prosseguia com a incerteza, a ideia de pouca sorte, de desarrimo no Mundo. Agora ele pensava: “Se ela dá vantagens no céu, também as há-de dar na terra. Por que não?”

As Portas do Sol estavam solitárias, como as ruas que ele havia calcorreado. O quiosque encontrava-se fechado e os motoristas, que ali faziam praça de seus automóveis, haviam desaparecido. Só o paredão de onde se abarcava a planície se erguia em frente dele. O vale jazia no escuro, mas, à direita, sobre o seu pilar, a Senhora da Conceição, envolta em luz directa, refulgia. Era uma luz verde, de profundidades submarinas, uma luz de sonho; e a imagem dir-se-ia acabada de aparecer, milagrosamente, no negrume da noite, para dominar a noite da terra e das almas e servir de guia aos homens que transitavam na escuridade do grande vale. Horácio contemplou-a um momento e tornou a perguntar a si próprio: “Se ela nos protege depois de mortos, porque não há-de proteger-nos enquanto somos vivos?”

Horácio ajoelhou e rezou as três ave-marias que cardeais e bispos aconselhavam para se obter favores celestes. Depois, pediu à Senhora da Conceição que o patrocinasse. Murmurou novas ave-marias e prometeu que iria todos os domingos, durante um ano, rezar com a mulher aos pés da imagem, se lhe coubesse uma das casas dos Penedos Altos.

As Portas do Sol continuavam em soledade quando ele se levantou. Apenas um gato corria das bandas do quiosque para o lado das antigas muralhas.

Horácio pôs-se a arrepiar caminho. A andar, ia imaginando o que seria a sua existência familiar se lhe fosse entregue uma das casas — e antegozava a alegria desse momento. Pagando os setenta escudos mensais da renda, ao fim de vinte anos, mercê do seguro de vida, a casa pertencer-lhe-ia. Era como se a houvesse comprado. Nessa altura, ele teria pouco mais de quarenta anos; estaria ainda novo e Idalina também.

Ao subir a Rua Rui Faleiro, as palavras do Marreta voltaram-lhe, de repente: “Tu ficas com uma casa, mas os outros continuam na mesma.” Então, ele apressou o passo, novamente mal disposto.

Depois de lhe abrir a porta, Idalina olhou o relógio e lamentou:

— Vieste, hoje, tão tarde! Já passa das três horas e tens de te levantar às sete. Assim, nem descansas...

— Não faz mal... Paciência...

— Mas porque demoraste tanto? Ele cortou:

— Deixa-me dormir. Não estou agora para falar. Depois te conto.

Às oito da manhã, ao entrar na fábrica, ainda sonolento, perguntou a Dagotoerto:

— Você sempre se inscreveu?

— Inscrevi.

— E que tal? Que lhe parece? Dagoberto encolheu os ombros:

— Que me vai parecer? Como por agora não fazem mais casas, se não apanhamos estas, ficamos a chuchar no dedo...

Marreta ouvia-os, mas fingia não os ouvir, como das outras vezes em que se falava das moradias dos Penedos Altos. Essa muda discordância, de tão repe

tida, enervou Horácio: “Se Marreta se punha assim, não era só por as casas serem poucas — pensou.— Era também por Marreta não gostar da Câmara que as fizera. Mas ele não tinha nada com isso.”

Colocou-se ao lado do tear e, despeitado, desde essa manhã evitou falar daquilo em frente do velho tecelão.

Ele ia, entretanto, progredindo facilmente na sua nova aprendizagem. Poucas semanas depois de a haver iniciado, já auxiliava, durante a montagem das teias, a enrolar, a atar, a empeirar, sem que Marreta tivesse de dizer-lhe constantemente, como ao princípio: “Não é assim... é assim!” E cada vez as suas mãos se mostravam mais destras em meter os fios nos olhais dos liços, aqueles aramezitos que constituíam as perchadas.

Marreta estimulava-o, paternalmente.

— Este é esperto — dizia, dirigindo-se a Dagoberto, mas para que ele o ouvisse. — Lá esperto, é! Nem precisaria de um ano para ser tecelão...

Horácio quedava lisonjeado. Quando, porém, começavam a aproximar-se as cinco horas da tarde e num e noutro operário se adivinhava a impaciência pelo momento da saída, ele entristecia. Os outros iam para suas casas ou falaciar no Largo do Pelourinho e só ele pegava o dia com a noite, como se fizesse dois turnos. Mudava apenas de máquina. E, junto do tear, ainda era melhor, porque ali, ao menos, não se cansava, enquanto na fiação de carruagem tinha de andar sempre a trote, para a frente e para trás, sempre no mesmo espaço, sempre a fazer a mesma coisa, como um burro puxando à nora.

Passara-se o mês de Setembro e cada vez o sol ia desaparecendo mais cedo. Mas isso, ao contrário do que ele imaginara no pino do Verão, não o consolava agora. Era uma tristeza diferente da de quando havia sol, mas não deixava de ser uma tristeza, e até maior, aquela hora cinzenta da tarde em que os outros abalavam e ele ficava. E, à uma da noite, quando, enfim, saía, estafado, mal disposto, muitas vezes caíam potes de água. Por mais que corresse ladeira acima, para a Covilhã, chegava a casa encharcado.

Ao ouvir as pancadas violentas que ele dava, Idalina erguia-se da cama e vinha, estremunhada, abrir-lhe a porta. A princípio, Horácio falara em mandar fazer mais uma chave, mas ela dissera-lhe que queria acordar quando ele viesse, pois, de contrário, quase nunca se veriam à sua vontade. De manhã, ele estava sempre com pressa; e ao meio-dia, quando ela lhe levava a comida, havia tantos operários à roda deles, que era como se não estivessem juntos. Horácio aceitara logo aquele desejo, que também a ele a ideia de chegar a desoras e encontrar a mulher a dormir e tudo morto à sua volta lhe pesava desagradavelmente. Idalina guardava-lhe, no fogão, um caldo morno, que ele comia antes de se deitar. É, algumas noites, enquanto não adormeciam, os dois iam discorrendo sobre a sua vida. Para ele, esses diálogos acabavam quase sempre em desgosto, desgosto que até lhe chupava o sono, porque Idalina sempre dizia que estava tudo cada vez mais caro e já nem sequer se referia ao dinheiro a pôr de banda, destinado ao Valadares.

Numa dessas noites, como a mulher suspirasse descontentamento ainda maior do que o dele, Horácio encontrou-se a repetir, para aliviar, as palavras de Marreta:

— Com o fim da guerra, isto muda. E vem outra coisa, com certeza.

Em Outubro, nova esperança medrou entre eles. O mestre da ultimação da Renovadora admitira, finalmente, Idalina como aprendiza de esbicadeira. Horácio preferia que ela fosse para a fábrica onde ele trabalhava, que ali podia tê-la sob as suas vistas e obrigar todos a dar-lhe respeito, enquanto na Renovadora não faltariam matulões que quisessem desinquietá-la, incluindo o Pedro, que andava sempre atrás de saias e disso ainda se gabava. Essa ideia enojava-o, não que lhe minguasse confiança na mulher, mas porque, só de pensar que outro poderia cobiçá-la ou soprar-lhe aos ouvidos palavras de sedução, punham-se-lhe os nervos em cólera. O Felício, porém, havia sempre adiado a admissão de Idalina e ele resignara-se, por isso, a que ela entrasse para a Renovadora

Quando lhe deu a notícia, Idalina disse somente:

— Vou ter pena de não poder levar-te a comida à fábrica, como até aqui...

Ele não prestou ouvidos àquilo e meteu 1 logo à sua obsessão:

— Foi boa ideia isso de andares a praticar com a Procópia. Assim, adiantada como estás, não tarda e és operária. E, para o ano, eu serei tecelão. Acabaremos com o raio da dívida ao Valadares e trataremos da nossa vida...

Horácio calou-se, de olhos distantes, como se andasse a. medir o seu futuro; e, no silêncio que se fez, a mulher tornou:

— Tu podes aquecer a comida lá na fábrica, mas não é a mesma coisa. Não tens paciência e não a aqueces tão bem como eu ta levava...

Desde esse dia, Idalina principiou a levantar-se mais cedo do que ele. Só quando tinha tudo pronto, o caldo da véspera metida nas latas e estas, com o pão e o conduto, acamadas nos dois cestos, o despertava. Horácio vestia-se apressadamente e saíam juntos e juntos caminhavam até o portão da Renovadora, onde ele a deixava.

A concessão das casas fez-se no escritório do fiscal do novo terreno. Estavam o presidente da Câmara, o representante do Governo, que viera propositadamente de Lisboa, engenheiros municipais e outras figuras.

O escritório do fiscal era pequeno e nele não cabia mais ninguém. Cá fora, os candidatos a inquilinos, com suas mulheres, muito embrulhadas nos xales, tremiam de frio. Era um domingo de Janeiro e de noite caíra um nevão tão forte que o presidente da Câmara decidira telefonar para Lisboa, sugerindo o adiamento da cerimónia. De lá, porém, disseram-lhe que o enviado do Governo, o Dr. Navarro, já havia partido, com os jornalistas e fotógrafos, indo dormir, nessa noite, a Castelo Branco. Além disso, os jornais da capital tinham anunciado o acontecimento para aquele dia e não convinha, portanto, adiá-lo.

Agora, metidos entre outros pretendentes às casas, Horácio e Dagoberto ouviam o Dr. Navarro discursar lá dentro. Ele louvara a Câmara Municipal e o Governo, que comparticipara largamente no dinheiro gasto em obra de tão grande alcance. “Graças a esta iniciativa, vai-se, finalmente, oferecer um lar a quem, de outra forma, não o poderia ter. Por isso, este domingo, apesar de invernoso, é um dia de júbilo, não só para a família operária covilhanense, “mas para a cidade inteira, um verdadeiro amplexo entre as várias classes da sociedade, pois só assim, pela justiça social, se obtém a harmonia que constitui a base sólida para o bem-estar das colectividades.”

Os ouvintes percebiam que o Dr. Navarro, apesar de ser homem ainda novo, também sentia frio, porque, embora se esforçasse por tornar a sua voz bastante forte, muitas das palavras que dizia mal se ouviam cá fora.

Alguns retardatários iam chegando, somando-se ao grupo que estava em frente da porta, sobre a neve, e todos se quedavam a escutar. Havia ali gente de vários sectores sociais, desde os operários enfiados em velhos sobretudos, de gola levantada, a funcionários públicos e a pequenos comerciantes com um alfinete na gravata; todos os candidatos às casas.

O céu continuava soturno e via-se que, no alto da serra, continuava a nevar.

Logo que o delegado do Governo terminou o seu discurso,houve, lá dentro, rumor de passos, vozes soltas, enquanto os que estavam cá fora se apertavam mais, na ânsia de escortinar o que se passava. Mas só os que se encontravam à frente o podiam fazer e Horácio, por muito que distendesse o pescoço, por mais que tentasse enfiar a cabeça por entre os omibros dos parceiros, não divisava coisa alguma.

Subitamente, porém, no escritório do fiscal soou uma voz que se dirigia para o exterior e que dominou tudo:

— Casas do tipo 2-A, cinco divisões, setenta escudos por mês. Concedidas a: Heliodoro de Sousa, mestre da fábrica Renovadora; Francisco Teles, motorista da Câmara Municipal; José Bento, tecelão. ..

Horácio deixara de sentir o corpo, o frio, a neve. Dir-se-ia que toda a sua vida se concentrara nos ouvidos, como se não houvesse unais coisa alguma no mundo do que os seus ouvidos e aquela voz que soava, pausadamente, lá dentro:

— José António da Silva, empregado do comércio; Felício Saraiva, mestre; Roberto das Dores...

A cada nome que ouvia, Horácio esperava, ansiosamente, que sucedesse o seu. Tudo aquilo era rápido, mas a ele parecia-lhe que tudo aquilo se arrastava, se arrastava, se arrastava, se arrastava infinitamente.

Cá fora, a multidão agitava-se e comprimia-se de quando em quando, com os movimentos de alegria que alguns dos contemplados iam tendo. Uma mulher protestava, porque um deles tantos saltos dera que lhe fizera cair o xale. Entretanto, lá dentro, a voz prosseguia, impassível:

— Mário Tavares, padeiro; Lucas Soares, empregado da indústria...

Houve uma pequena pausa e logo a voz tornou:

— Casas do tipo 3-A, seis divisões, oitenta e cinco escudos por mês. Concedidas a...

De novo se fez um grande silêncio cá fora. Vieram outros nomes. Nomes a seguir a nomes. E quando, finalmente, a voz se calou, sem pronunciar o nome dele, Horácio já não via e nem ouvia nada do que estava em seu redor. Ao contrário, ele via coisas distantes dali, a imagem da Conceição, o seu casebre na Rua Azedo Gneco e o Eiró, de Manteigas, onde ele, tantas vezes, falara com Idalina da casa que haviam de ter. O coração, que estivera sempre aos pulos, sem que ele houvesse dado por isso, sempre a pulsar mais forte naquela expectativa lenta, parecia agora sossegado, mas deixara-lhe os lábios secos e a garganta quase sufocada. Ao levantar os olhos, verificou que Dagoberto estava com uma expressão sombria. Lembrou-se, então, de que ele não fora também contemplado.

Em volta, a multidão dividia-se e formavam-se grupos, que comentavam o sucedido. Havia homens que riam e outros que partiam de cabeça baixa. Os fotógrafos que tinham vindo de Lisboa fotografavam vários trechos do bairro. Um deles apontava a sua máquina ao José Bento, tecelão, e pedia-lhe:

— Vá lá! Ria! Faça uma cara alegre! É para publicar no jornal...

O José Bento pôs-se a rir e o outro fotografou-o.

As entidades oficiais começaram a sair da casa do fiscal. O Dr. Navarro deteve-se, um momento, a porta, a contemplar os fotógrafos e o bairro novo, todo coberto de neve. Ele tinha um olhar melancólico, pensando que não se havia tirado todo o efeito político do acontecimento. O presidente da Câmara, julgando compreendê-lo, disse:

— Foi pena haver um tempo destes! Senão, tínhamos embandeirado tudo isto e posto aí uma banda de música. Sempre dava outro aspecto.

O Dr. Navarro continuou calado e os dois partiram, seguidos pelos seus acólitos.

Nesse momento, Horácio sentiu alguém bater -lhe no ombro, amigavelmente:

— Também te havias inscrito?

Ele voltou-se e viu o Felício, mestre da ultimação.

— Também.

— Não te deram nenhuma, vê-se logo na tua cara. Tem paciência... Não pode ser para todos ao mesmo tempo...

As palavras de Felício, que tinha sido um dos beneficiados, irritaram-no. Mas conteve-se:

— Pois é... Lá isso é..

Dagoberto havia desaparecido. Dando costas ao Felício,Horácio procurou Idalina. Ela estava ao longe, junto de uma das casas novas, a conversar com a Procópia. Ele acenou-lhe, uma, duas, três vezes, mas ela não o viu. Então, tocado de impaciência, rumou, sozinho, à estrada. Centenas de outros operários caminhavam à sua frente, caminhavam devagar e em silêncio na neve, devagar e em silêncio como se fossem num enterro.

Ao atravessar a Carpinteira, Horácio topou, mesmo na curva da estrada, grande ajuntamento. Os que vinham dos Penedos Altos cercavam um homem e quase todos faziam perguntas ao mesmo tempo. Horácio aproximou-se e reconheceu Ricardo. Pálido, muito mais magro do que era, os ossos do rosto desenhavam-se-lhe, nitidamente, sob a pele. O seu fato apresentava-se cocado, lustroso, cheio de arquipélagos de nódoas, e rota a parte que se divisava da camisa. Só o cabelo estava cortado de fresco. Ricardo tinha, numa das mãos, um embrulho e, ao ver Horácio, abriu os braços:

— Como tens passado? Já sei que casaste... A Júlia mandou-me dizer...

 

Era a primeira vez que Ricardo o tratava por tu, como se a ausência houvesse aumentado a intimidade. E ele, com uma nova emoção enxertada na que trouxera dos Penedos Altos, olhava-o demoradamente.

— Quando chegou? E o Alcafoses?

— Cheguei agora mesmo. O Alcafoses também.

— E a sua mulher já sabe?

— Não. Vou fazer-lhe uma surpresa...

Ao lado, Malheiros insistia pelas confissões que a chegada de Horácio interrompera:

—E, então, eles teimavam?

Ricardo mostrou-se desejoso de continuar o seu caminho:

— Depois falamos — disse.

— Homem, é só um instante!...

— Bem, eles teimavam, todas as vezes. Parece que pensavam que havia outra coisa e queriam saber quem, estava metido nela. Queriam saber também se não havia gente de Lisboa que nos dava ordens... Eu fartava-me de dizer que não, que nós tínhamos feito aquilo porque tudo estava caro o que recebíamos de féria não chegava para nada. Então, eles julgavam que eu estava a mentir e teimavam. Mas o que mais me custava era pensar na Júlia e nos pequenos. Quando estava incomunicável, sem poder receber notícias deles, isso custava-me, é claro. Agora mesmo, não sei como eles estão. A Júlia tem-me escrito, mas eu adivinho que ela não diz tudo nas cartas.

Ricardo falava com simplicidade, mas num tom que pareciaainda mais firme do que antes. Voltou-se para Bernardo e perguntou-lhe.

— Tu tens visto a Júlia e os pequenos? Estão todos bem?

Alguns dos presentes conheciam a situação da família de Ricardo e aquela pergunta lançava-os, de repente, num embaraço contagiante. Bernardo, que vivia na Aldeia do Carvalho, pôs-se a gaguejar:

—Sim... Sim... Tenho-os visto... Ainda ontem os vi... Lá vão andando...

Ricardo pressentia as palavras que ninguém pronunciava.

— Sucedeu-lhes alguma coisa?

— Não... Não... —murmuravam um e outro. Depois, Bernardo disse: — Vivem com dificuldade, claro... Tu sabes... Tu calculas... Mas lá vão passando... Os camaradas, mesmo que queiram, pouco podem auxiliar...

Ricardo despediu-se, bruscamente:

— Bom. Adeus! .Até outra vez! Depois falamos. Os homensviram-no desaparecer na curva da

estrada e, em seguida, começaram a subir para a Covilhã.

Ia o grupo a meio da rampa, quando Horácio ouviu a mulher chamá-lo. Ela corria atrás dele, tropeçando no gelo.

— Andei à tua procura, mas tu sumiste-te — disse Idalina, ao acercar-se.

Horácio levantou os ombros, mal-humorado:

— Estavas a dar à língua com a Procópia... Nunca mais acabavas...

— E que a Procópia queria ver, outra vez, as casas. Ela estava muito amachucada e até chorou por não lhe ter cabido nenhuma. Eu também tive muita pena. São tão bonitas! E, não sei porquê, tinha-me afeito à ideia de que íamos para lá. Eu até havia feito uma promessa...

— Tu também?

Idalina não compreendeu a pergunta e disse com naturalidade:

— Sim, eu havia feito uma promessa... Mas, agora, que já sabia que nenhuma das casas seria para nós, custava-me até olhar para elas. Por isso eu não queria acompanhar a Procópia... Ela lá ficou. Diz que também a ela aquilo lhe dá tristeza, mas que, mesmo assim, queria tornar a ver as casas por dentro.

Horácio ouvia a mulher e a melancolia da sua voz ia somando, no espírito dele, a visão das moradias dos Penedos Altos com a da chegada de Ricardo à Aldeia do Carvalho, o encontro com a Júlia, os filhos, a velha, o rosário e o gato e, de novo, as casas novas e o casebre da Rua Azedo Gneco, tudo numa confusão de imagens e de sentimentos as imagens ora acentuando-se, ora desvanecendo-se e os sentimentos permanecendo, assentando como lama no fundo de uma vasilha.

— Tive uma grande pena!—repetiu Idalina.

— Deixa lá... — consolou ele. — Havemos de ter uma casa nossa. E feita a nosso gosto. Aquelas são bonitas, não há dúvida, mas têm os seus defeitos. Ficam longe. Para se vir à cidade, é um castigo! E imagina um dia de chuva... Eu, para dizer a verdade, não tive grande pena, não... Nós havemos de ter a nossa, mas num sítio melhor. Havemos de tê-la... Tu já és esbicadeira, já ganhas alguma coisa... E eu, para o Verão, acabo o ano de aprendizagem. Depois, mais dia, menos dia, passo a tecelão. E também se diz que os patrões vão, agora, dar um aumento de salários. Já vês que não deves arreliar-te. ..

A voz saía-lhe tão triste como a da mulher, que ele procurava confortar.

 

HORÁCIO fora-se assenhoreando da arte de tecer. O tear era-lhe já familiar: conhecia todas as suas peças, o objectivo dos seus movimentos e montava a enviadura, empeirava e embocava com tanta rapidez como Marreta o fazia. Se um dos fios do barbim se quebrava, em dois segundos os seus dedos o atavam; se havia nova teia, ele sabia como proceder, desde o órgão de onde esta se desenrolava, até à sua passagem no pente, antes de se enrolar novamente, já tecida.

Quando ele começara a aprendizagem, Marreta, se tinha de ir à cloaca, voltava-se para Dagoberto e pedia-lhe: “Olha-me por isto.” Agora, partia sem dizer nada ao outro tecelão, certo de que Horácio daria boa conta do tear. E até o Dagoberto, quando precisava ’também de ir lá fora, o encarregava de vigiar a sua máquina.

Com o tempo, Horácio pudera avaliar mesmo a capacidade profissional de cada um. A princípio, não compreendia por que Marreta punha uns óculos quando tinha de empeirar e os tirava, escondendo-os apressadamente, se via Mateus aproximar-se. E se o mestre parava junto dele, Marreta procurava fazer outra coisa que não fosse introduzir os fios naqueles orificiozitos que os liços possuíam. Só quando Mateus continuava a sua andança, ele tornava a pôr os óculos e a empeirar, olhando, frequentemente, para trás, não fosse o outro volver pela mesma coxia. Na manhã em que Horácio ’compreendera a razão daquilo, não dissera nada, mas tivera muita pena de Marreta. Daí em diante evitara perguntas que pudessem lembrar ao amigo a sua velhice. E se lobrigava, ao longe, o vulto de Mateus, era ele próprio quem prevenia Marreta da aproximação do mestre. O velho tecelão parecia não gostar, porém, dessa espontânea cumplicidade, que denunciava o conhecimento dos seus receios. “Pois que venha!” — dizia sacudidamente, com um tom que não lhe era habitual. Mas, pouco depois, os seus olhos convergiam para o bolso do casaco onde guardava os óculos. E se estes se entremostravam, ele impelia-os, discretamente, com os dedos, para baixo.

Horácio acabou por notar que Dagoberto, ali, ao lado deles, produzia muito mais do que Marreta. Aquele ia sempre além dos três “ramos” por dia, enquanto este nunca os alcançava. Ao pegar no décimo de metal, para medir, na “pinta”, o trabalho feito, a mão de Marreta tremia como quando ele tentava meter, sem óculos, os fios nos olhais dos iiços. De começo, Horácio acreditava que se Marreta não tecia mais era porque, efectivamente, não queria, por não precisar de grande féria para as suas despesas de homem sozinho; mas, depois, convencera-se de que isso não era assim. Toda a gente afirmava que, na fábrica, ninguém sabia, como ele, do seu ofício e que melhor tecelão não existia também na Covilhã inteira. Mas, à medida que os meses iam decorrendo, Marreta parecia conhecer o tear e a tecelagem mais de teoria do que de prática, pois, ao trabalhar, fazia-o cada vez com maior lentidão e cautela, como se lhe faltasse experiência. Mesmo a substituir as lançadeiras ou a embocar, Dagoberto, tido e havido como um remendão, andava muito mais depressa. Horácio detestava essa superioridade do vizinho, que contava menos vinte anos do que Marreta e não era afável como este. Mas Horácio sabia que ele próprio podia realizar aquilo com mais rapidez do que o velho tecelão. E, um dia, assim o fizera. Ao ver, porém, o olhar melancólico com que Marreta seguira os seus despachados gestos ao carregar, tirar e meter as lançadeiras, renunciara a mostrar-se capaz de vencer Dagoberto.

Chegara a Primavera e, Abril andante, um dia Marreta entrara na fábrica com voz rouca e tempestade no nariz. “Estou constipado” — disse, apertando em volta do pescoço um velho cachecol. Na manhã seguinte, voltara ainda com mais espirros e febre. Ao terceiro dia, fora o próprio Mateus quem lhe dissera que, estando ele com gripe, o melhor seria quedar uns dias em casa, pois assim não se curava e até podia pegar o mal aos companheiros.

Ele partira e Horácio ficara com o tear. Antes de lho confiar, Mateus repetira, ao Dagoberto, as mesmas palavras que, ao princípio, Marreta costumava dizer-lhe, quando tinha de ir às instalações sanitárias:

—Olha-me por isto.

Obediente a essa ordem, Dagoberto aproximava-se, de quando em quando, de Horácio e dava-lhe indicações. Mas Horácio fingia não o ouvir. Fingia ostensivamente. Quando, porém, o outro estava de costas, no seu tear, ele espiava-lhe os movimentos e procurava ultrapassá-lo, trabalhando ainda com maior presteza.

Às cinco da tarde, Horácio verificava, envaidecido, que tecera tanto como Dagoberto e muito mais do que Marreta costumava tecer. Foi essa a primeira vez que ele se sentiu feliz ao transitar da tecelagem para a fiação, enquanto os outros operários, que laboravam diurnamente, saíam da fábrica.

Marreta regressou na quinta-feira seguinte, mais magro, e de olhos mais encovados, mais profundos, do que habitualmente.

Inspeccionou o tear e pô-lo em movimento. Mas não fizera aquilo com a naturalidade dos outros dias.

Voltava-se, de quando em quando, para Horácio, falava-lhe e procedia como se o tear já não fosse só de sua conta, mas dos dois. Procedia como se, durante a sua ausência, houvesse perdido a primazia que tivera ali e Horácio pudesse ter por inoportuno o seu regresso. Nos primeiros momentos, parecia tocar nas coisas com timidez, como se mexesse, à vista de outrem, em objectos da casa de um parente que acabara de morrer.

Pouco depois, Marreta disse:

— Já sei que fizeste boa figura. Para um aprendiz, três ramos por dia é obra! Claro que tu já não podes ser considerado um aprendiz... Tu já sabes como um tecelão...

Depois de ver aqueles modos com que Marreta entrara, Horácio arrependia-se de, na ânsia de igualar Dagoberto e de se valorizar a si próprio, haver produzido mais do que Marreta ultimamente produzia.

— Se já sei alguma coisa, a si o devo — declarou, sentindo-se vexado com a ideia que Marreta poderia fazer sobre o seu procedimento.

— Ora! Ora! Tu és esperto, é o que é! Sempre o disse! Fosses outro, e veríamos!

À hora do almoço, os dois amesendaram-se no novo comedoiro. O dia apresentava-se friorento para eles se sentarem ao ar livre, como era tanto de seu gosto, coisa que irritava Azevedo de Sousa, o gerente, o próprio Mateus, sempre prontos a lamentarem ter a fábrica gasto um dinheirão a construir o refeitório que a lei mandava e, afinal, os operários preferirem continuar a comer arrumados a qualquer parte, lá fora, ao sol, como os bichos, sem ordem, sem jeito nenhum. Apesar do dia agreste, alguns haviam ido para as bermas da estrada e, no extremo da terceira mesa do refeitório, Marreta encontrava-se sozinho com Horácio. Ele descascara as suas batatas cozidas, comera-as e ’bebera, em seguida, o caldo que tinha aquecido. Depois, pusera-se a olhar, timoratamente, para o recinto onde estavam, para o tecto de vidro fosco, para a porta.

— São mais uns três mesitos... — murmurou, como se falasse consigo próprio.

— O quê? — perguntou Horácio.

— São mais uns três meses... que venho à fábrica.

— Por que diz isso?

Horácio já tinha adivinhado a causa das palavras de Marreta, mas sentia necessidade de lhe desvanecer aquela ideia, aaquela ideia que se fazia notar no tom da sua voz, no seu sorriso resignado, na profundidade dos seus próprios olhos.

— Digo isto, porque daqui a três meses entregam-te o meu tear e está tudo acabado...

— Ora essa! Está tudo acabado, porquê? Primeiro, eu nãoaceito o seu lugar; depois, quem lhe diz que lho vão tirar?

Marreta sorriu com cepticismo:

— Quando, na semana passada, o Mateus me mandou para casa, eu percebi logo que o que de queria era experimentar-te. Queria ver o que tu davas. Farto de ter constipações e gripes estou eu e nunca ele me disse que eu podia ir-me embora e só voltar quando estivesse bom. Algumas vezes em que me senti doente a valer e lhe pedi para me dispensar do trabalho, ele mostrou-me sempre má cara... Mas já há muito tempo que eu esperava isto: desde que tu vieste aprender e ele te pôs no meu tear... Lembras-te que te perguntei se lhe havias pedido para aprenderes comigo? Tu disseste-me que não; que não era por falta de vontade, mas que tiveras vergonha de andar sempre com pedidos ao Mateus... E disseste, também, que se ele fizera aquilo fora, decerto, por saber que nós éramos amigos. Então, eu não quis desgostar-te, mas eu tinha a certeza de que não era assim. De mais a mais, ele nunca quis que ninguém aprendesse comigo, porque dizia que eu tinha umas ideias que estragavam os rapazes. Compreendes agora?

Horácio deixara de mastigar o seu pão. e desejava falar olhando direito, mas, ao mesmo tempo, os seus olhos acovardavam-se ao encontrar os de Marreta.

— Por mim, não lhe tiram o seu lugar, pode vossemecê estar descansado. Antes queria que me quebrassem os braços do que tomar-lho.

— Não mo tomas; dão-to — disse Marreta, lentamente. — Não tens razão para falar assim. Se não to derem a ti, dão-no a outro e é a mesma coisa. E, então, eu prefiro que o dêem a ti, que és meu amigo.

—Eu não aceitarei, já disse!

— Pois eu acho que deves aceitar. Tu não tens nenhuma culpa. Se pensas que te deitarei alguma responsabilidade, estás enganado. Eles não te dão o lugar para te ser agradável. Nem a ti, nem a qualquer outro. Dão-to porque eu já produzo pouco. E eles não querem ter empatado um tear com um velho que não chega a tecer três ramos por dia...

Comovido, Horácio sentia a garganta apertar-se-lhe e vontade de abraçar Marreta.

— Eu cá por mim não aceito... — teimou. — Se for preciso,esperarei até arranjar noutra fábrica...

Marreta voltou a sorrir, piedosamente, como se falasse a uma criança:

— Mas é a mesma coisa! A não ser que ponham teares novos, tem de sair alguém para tu entrares. Pode ser que o que saia mude apenas de fábrica, mas, no fim, alguém há-de sair — para não voltar. Pode ser também que um arranje trabalho melhor pago. Mas isso é raríssimo. As mais das vezes, quem sai são os velhos como eu... É claro que não me queixo do Mateus. Me é ruim, mas está na sua obrigação. Eu vou fazer sessenta e cinco anos e eu mesmo vejo que já não trabalho como um homem novo...

Marreta calara-se. Horácio buscava, em vão, as palavras de consolo que queria dizer. Nas mesas vizinhas, vários operários comiam e pairavam. E gims, que tinham ido lá para fora, voltavam esfregando as mãos.

— Tu não deves incomodar-te com isto, já te disse —volveuMarreta.— Antes de começares a aprender, já o Mateus andava com o olho em cima de mim. Eu trabalho aqui vai em cinquenta anos. Sou ainda do tempo do primeiro dono da fábrica. Estás a ver se não sei quando os patrões ou os mestres começam a pensar na idade do operário e a reparar na maneira como ele trabalha... Se os mestres são boas pessoas, que também os há, podem fingir, por algum tempo, que não dão por nada; mas lá está a féria a mostrar ao patrão ou ao gerente o trabalho que cada tecelão faz. Como nós trabalhamos à passagem, é fácil ver... O ano passado, por esta época, o Mateus achegou-se amim, olhou para a teia que eu estava a tecer e disse-me de maus modos: “Você ainda não acabou isso?” Ele sabia perfeitamente que eu ainda estava com aquele corte, mas queria mostrar-me que eu já dava pouco rendimento... O meu interesse era tecer o mais possível, está claro; se não tecia mais é porque não podia. A não ser que eu não me importasse de deixar defeitos na fazenda, mas isso também me desacreditaria e ainda era pior... Mas não foi só aquilo que o Mateus me disse. Por meias palavras, tem-me dito muitas outras coisas, para eu me ir convencendo de que estou velho e que já não sirvo para feto. Tu não vês a maneira como ele olha para o que estou a fazer, quando passa pelos teares? Desde o ano passado que ele pensa pôr-me na rua, tenho a certeza disso. De forma que não vale a pena tu ralares-te comigo. Se ainda me deixam estar aqui, é justamente por tua causa. Como o irmão dele se interessa por ti, o Mateus está à espera de que completes o ano, para te dar o meu lugar. Senão, já me tinham despedido e metido outro. Tão certo como estarmos os dois aqui a falar...

Marreta calou-se um momento e, depois, acrescentou, com um tom mais melancólico:

— É uma tristeza a gente ser velho, lá isso é! Até temos vergonha de já não prestar para nada... Mas que podes tu fazer?

Horácio continuava a não encontrar as palavras que desejava. E, no seu silêncio, ia visionando esses velhos inválidos que se juntavam, em dias de sol, no jardim público, mal vestidos, mal alimentados, tecelões, fiandeiros, cardadores, outros profissionais que as fábricas despediam quando as energias deles se esgotavam. Via-os ali, no jardim, com o Paredes a dobrar-se e a apanhar pontas de cigarros e os outros aguardando a passagem dos camaradas que trabalhavam, na esperança de que estes lhes dessem uns vinténs. Via-os, depois, pelas escadas dos antigos patrões, de mão estendida à esmola, e trilhando a rua onde ele próprio morava, velhos e velhas a caminho do Sindicato, onde recebiam os vinte escudos que mal chegavam para comer dois dias entre os sete que a semana tinha. E, no meio deles, via sempre a Marreta.

— E vossemecê de que vai viver? — perguntou, timidamente.

O velho tecelão fez um gesto largo:

— Isso depois se verá... Não te preocupes com isso!

Logo, com um tom mais ligeiro, como se mudasse de assunto, sem, no fundo, mudar:

— Então a guerra parece que vai para o fim... A Itália começou a levar bordoada rija. Tens lido?

Horácio abanou a cabeça:

— Não, não tenho lido. Mas tenho ouvido dizer.

— Pois tem levado porrada de criar bicho!

Marreta desatou a falar da -guerra. Noutras mesas, outros operários falavam da mesma coisa. E nos dias e semanas que se seguiram, a evolução da guerra imperou sobre a atenção de todos eles. O desembarque dos anglo-americanos na Sicília e as primeiras vitórias dos russos haviam acendido nova fé no planeta inteiro e incinerado o desânimo dos anos iniciais. E, assim, nas fábricas e nos humildes casebres da cidade quase ignorada do mundo, a ineia encosta da brava serra de lobos, os homens das lãs iam vivendo também as angústias e as esperanças universais. Este, aquele e aqueloutro compravam gazetas de Lisboa ou do Porto, liam-nas e os demais quedavam a comentar os avanços e os recuos dos exércitos em luta. Dagoberto recortara, do “Primeiro de Janeiro”, dois mapas coloridos e, à hora do almoço, desdobrando-os sobre uma das mesas do refeitório, buscava, de indicador estendido, as cidades onde os aliados combatiam: “Hoje, estão aqui... Amanhã ou depois, com certeza chegam ali...” Às vezes, explodiam discussões, porque uns haviam profetizado triunfos ou derrotas não consumados e outros, tidos por mais espertos, a seu bel-prazer talhavam, para as tropas, caminhos de que os parceiros discordavam. Mas, acima dos seus fragores verbais e do longínquo fragor das batalhas, importava-lhes, sobretudo, o resultado do prélio, o mundo novo que, todos diziam, viria depois da guerra.

Marreta e João Ribeiro eram dos que mais apregoavam, ali, essa crença. Quando eles afirmavam aquilo, logo as discussões se interrompiam e todos emudeciam a ouvi-los. João Ribeiro trazia os bolsos sempre cheios de jornais e revistas, alguns já puídos nas dobras; e, em abono das suas palavras, puxava por eles e lia telegramas ou trechos de discursos oficiais onde se afirmava, igualmente, que, finda a grande luta, viria um mundo melhor para todos os homens.

— Mas virá mesmo? — duvidou, um dia, Horácio.

— Se até chefes de governos que são conservadores o dizem!—respondeu João Ribeiro.—E se eles o dizem, é porque vem mesmo; é porque ninguém o pode evitar...

Na imaginação dos operários, a era nova que se lhes prometia, se a Alemanha e a Itália fossem derrotadas— que se lhes prometia na imprensa, na rádio, nos parlamentos, por toda a parte —, apresentava-se de forma ainda mal definida, mas em todos eles existia a funda esperança de que essa era efectivamente viria. Horácio acabara, também, por se contagiar da mesma fé e ela ia vinculando, dia a dia, por lenta metamorfose, de que ele próprio não dava conta, alguns dos anseios da sua vida.

Uma madrugada de Julho, quando regressava a casa, no meio de outros homens que -trabalhavam, como ele, no turno da noite, avistou, ao entrar na Praça da República, um grupo de operários que, por gestos e palavras, anunciava, a distância, o seu júbilo.

Que seria, que não seria, mal os que estavam viram os que se aproximavam, correram para eles, aos gritos:

— O Mussolini caiu! O Mussolini caiu!

Os que chegavam das fábricas, cansados do trabalho, tardaram a acreditar.

— Quem vos disse isso?

— Várias pessoas ouviram na telefonia. Eu estava já a dormir quando aqui o Ildefonso, que soube do caso, me foi acordar. Então nós dois chamámos os outros para lhes dar a novidade...

— Mas como caiu o Mussolini? — perguntou o Boca Negra.

O Ildefonso adiantou-se:

— Lá isso ainda não se sabe. Mas que ele foi tirado do governo, é verdade. A BBC disse-o e repetiu-o muitas vezes...

Os homens abriram os braços e começaram a abraçar-se. Havia sobre a cidade dos lanifícios um céu estrelado de Verão e os homens continuaram a abraçar-se.

— Agora está por pouco! Agora falta pouco! — profetizavam um e outro. E abraçavam-se de novo.

A alegria que aquela notícia criara prolongou-se por vários dias. E as velhas ansiedades de redenção voltaram a florir mais fortemente, estimuladas, cada vez mais, por essa propaganda que, emitida em todas as línguas e alimentada pela boca dos estadistas, andava no próprio ar que se respirava, a garantir, sem descanso, um mundo melhor para os que trabalhavam— assim que o inimigo estivesse feito em cinzas.

Uma manhã, Horácio perguntou a Marreta:

— Vossemecê é capaz de tornar a emprestar-me aqueles dois livros que me emprestou logo no princípio de eu o conhecer? Eu queria lê-los outra vez...

No olhar do velho houve um lume de satisfação.

— Ora essa! Estão às tuas ordens!—Logo, porém, que concluiu a mudança das lançadeiras, Marreta acrescentou:—Mas, agora, tu não tens tempo para ler... Estás sempre aqui metido...

A sua voz tomara, de súbito, um tom melancólico e do seu olhar desaparecera o fulgor de há momentos antes.

— É para ler aos domingos — explicou Horácio. —Bem. Amanhã já tos trago...

Marreta ia a dizer aquilo e ele a adivinhar o que Marreta pensava. Ele pensara, de repente, a mesma coisa: “Em breve, chegaria a tecelão e teria tempo para ler. Marreta seria despedido...” Esta ideia surgia, agora, constantemente, entre os dois. Não carecia mesmo de palavras ou de gestos para nascer; apresentava-se por tudo e por nada, infiltrava-se nos silêncios deles ou ela própria, depois de estar presente, criava silêncios.

Numa das semanas anteriores, Marreta dissera: “Qualquer destas sextas-feiras, depois de me pagarem a féria, põem-me na rua.” Marreta nunca mais se referira àquilo, como se lhe fosse penoso falar do caso. Mas Horácio sentia que era verdade o que lhe ouvira. Mateus, que se dirigia secamente a todos, nos últimos dias começara a tratar Marreta com afabilidade, como se quisesse tornar-se menos antipático durante o acto que se aproximava. Se se detinha junto do tear, os seus olhos já não fixavam o trabalho de Marreta com a expressão fria de outrora; ao contrário, pareciam encher-se de indulgência. E era, então, Dagoberto quem lançava odientos olhares sobre Mateus. Só Marreta continuava com o seu sorriso paternal, ali e à hora do almoço, quando falava da guerra e do mundo novo que lhe sucederia. Agora, ele afirmava:

— Fico muito contente por quereres reler esses livros. Nãoimaginas, é o maior prazer que tenho hoje...

Na manhã seguinte, trouxera os dois volumes:

— Todos os outros ficam à tua disposição...— ofereceu. Ao ouvi-lo, Horácio pensou que, vivendo Marreta na Aldeia do Carvalho, ele deixaria de o ver frequentemente, desde que o despedissem. Mas já o velho dizia:

— Mesmo depois, se quiseres, posso mandar-tos por um camarada...

Aquele “depois” comoveu Horácio. Ele afastou-se de Marreta e andou em volta da máquina, até junto do órgão; volveu, em seguida, e louvou intimamente o fio que se partira e lhe permitia estender os braços para atá-lo, para fazer qualquer coisa...

Desde essa manhã os dias foram decorrendo, para eles dois, cada vez mais penosamente. Marreta parecia resignado, mas Horácio adivinhava que ele, embora não o exteriorizasse, estava atento a todos os pormenores que podiam relacionar-se com a sua situação. Uma tarde, perguntou:

— Já fez um ano que começaste a aprender, não é verdade?

— Fez anteontem...

— Sim, deve andar por aí... Já estou admirado como tarda...

Arremessadas por metódicas pancadas secas, as lançadeiras passavam vertiginosamente de um lado para o outro, como se passassem não através da teia, mas através dos olhos de Horácio; e depois iam-se liquefazendo, porque nos olhos haviam rebentado lágrimas.

— Não quero! — gritou Horácio, torturado. — Não fico aqui!

— Não sejas tolo... Viria outro, já te disse... — Marreta tornou mais doce a sua voz: —Desculpa-me... Eu é que sou o culpado, pois não devia estar a falar disto. Mas, às vezes, esqueço-me e faço-te mal, sem querer...

Efectivamente, naquela sexta-feira, depois do almoço, Mateus parou, um momento, junto do tear, deu amáveis “boas-tardes” e continuou andando até ao fim da coxia. Voltou pelo mesmo lado, sempre em passo vagaroso e não olhando para as máquinas, como era seu costume, mas para o chão. Deteve-se, outra vez, junto de Marreta e disse-lhe rapidamente, como se tivesse pena de descarregar-se da obrigação:

— Você está cansado, está quase no limite da idade, e o melhor é reformar-se. Eu cá por mim custa-me dizer-lhe isto, mas são ordens. Você deve ir ao médico da Caixa Sindical, para que lhe passe o atestado de invalidez e você poder receber o subsídio... Não é muito: são apenas vinte escudos por semana, mas é melhor do que nada...

EMBORA tecelão feito e com a sua féria acrescentada, todas as semanas, pela da mulher, ao fim de um ano Horácio não se remira ainda, integralmente, da dívida ao Valadares> Os industriais haviam aumentado, finalmente, os salários, mas o custo da vida subia sem parança, agravando-se sempre a desigualdade entre o que se recebia e o que se era forçado a pagar.

Horácio barafustava e desconsolava-se tanto quando falava daquilo, que Idalina, reprimindo os seus próprios enervamentos, procurava conformá-lo:

— Nós ainda temos muita sorte. Somos só dois e, melhor ou pior, lá vamos passando. Não forramos duzentos escudos por mês, como tu queres, mas forramos sessenta ou oitenta... O mês passado, forrámos cem. Agora, essas famílias que há para aí...

Ele interrompia, sarcástico:

— Forramos cem! Tiramo-los ao corpo, é que é! Não gastamos um vintém que não seja preciso. Não vamos a divertimentos, não comemos o que queremos, não fazemos nenhuma extravagância — nada!

Idalina, mesmo quando pensava como ele, insistia em apaziguá-lo:

Está bem, homem! Mas os outros passam pior ainda do que nós. Tu és tecelão e não temos filhos. Quase todos os outros ganham ainda menos do que tu e estão carregados de família e com tudo no prego. Ao passo que nós não temos nada empenhado. E senão fora o dinheiro que deste ao Marreta e aquele tempo em que houve só quatro dias de trabalho por semana, já tinhas acabado de pagar ao Valadares...

— O dinheiro que dei ao Marreta! Vinte e cinco escudos, a grande fortuna! E isso de quatro dias por semana, pode acontecer muitas vezes... Todos dizem que antigamente era o pão de cada dia.

— Não digo que não... Não sei... Mas os outros também trabalharão então só quatro dias e têm muitas bocas a comer...

Ele calava-se, admitindo, de mau humor, que a mulher tinha razão. “Sim, lá filhos a sustentar não tinham eles, graças a Deus.”

Essa situação durou, contudo, pouco tempo. Uma manhã, quando ele ia levantar-se da cama, Idalina disse -lhe:

— Ando desconfiada... Já há dias que ando desconfiada...

— Desconfiada de quê? — perguntou, alarmado. Ela não respondeu e ele não insistiu.

— Era o que faltava agora...—murmurou, entre dentes.

—Mas tu dizias que gostavas muito de crianças...

— Gostava e gosto! Mas não assim...

A semana decorrera-lhe inquietante e, por fim, ele tivera de aceitar aquela ideia, que tanto o enfadava.

No domingo de manhã, sentara-se à mesita de pinho e lançara-se a fazer contas. De quando em quando, detinha-se, com a ponta do lápis metida na boca e os olhos fixos na parede; depois voltava a riscar o papel. Idalina preparava o almoço, de costas para ele. A certa altura, ouviu-o dizer:

— O dinheiro que falta pagar ao Valadares ainda devemos arranjá-lo... Mas mais nada.

Idalina voltou-se:

— O que dizes? Não entendo...

— Digo que não podemos pensar mais na casa. Agora, com um filho, vai-se tudo. Tu já não podes trabalhar tanto e sempre há mais despesas...

— Ora essa! E os que têm cinco e seis?

— Têm cinco e seis, mas não têm casa sua... Estive a ver... Está aqui, no papel. Mesmo que as coisas de comer e de vestir não subam mais, mesmo que não haja nenhuma doença, depois de termos um filho, se economizarmos dez ou vinte escudos por mês é já uma sorte. E com o preço que têm hoje os terrenos e os materiais de construção, nem no fim da vida tínhamos juntado o suficiente para fazer a casa. Há muitos dias que ando a pensar nisto. Desde que tu me disseste aquilo...

Era a primeira vez que ele lhe expunha, assim concretamente, as suas desesperanças sobre a casa; a primeira vez em que não procurava ocultar-lhe o seu desgosto e em que sentia até uma vaga, uma indefinida volúpia de fazê-la sofrer também.

O instinto de Idalina captava esse estado de espírito dele, pressentindo, no fundo das suas palavras, algo que era contra ela ou contra o filho que ela levava no ventre. E vinha-lhe, então, o desejo de reagir, de convencer do contrário o marido, de se defender:

— Ora! Ora! A vida dá muitas voltas! Quem sabe lá o que vai acontecer? Antes da guerra as coisas eram mais baratas e podem voltar à mesma, assim que a guerra acabar.

Também já estive a ver isso — objectou ele, soturnamente. — A ver quanto se ganhava antes da guerra e quanto as coisas custavam então. As contas estão aqui... Está tudo na proporção. Um operário ganhava à roda de dez escudos. Só alguns tecelões de primeira categoria iam até dezasseis. A vida era mais barata, não há dúvida, mas também os salários eram mais pequenos. A prova é que os operários não faziam casas para eles. Viviam nas mesmas em que vivem agora... Eu, às vezes, pensava nisto, mas como o que eu queria era chegar a operário, não dava grande atenção. Eu pensava que os outros não eram económicos, que gastavam dinheiro em vinho, em cafés e noutras coisas que não eram precisas. O Manuel Peixoto, quando andávamos na serra, todos os dias me dizia que os operários eram uns relaxados. E, alguns que eu conhecia, eram relaxados, não há dúvida. Por essas coisas todas, eu julgava que se um homem fosse económico, podia, só com o seu trabalho, levantar cabeça. Mas, agora, vejo que não. Só com o salário não se pode fazer nada. Tu até deixaste de comprar vinho e eu, hoje, fumo menos cigarros do que quando era pastor. E, afinal, é o que se vê.

— A culpa não é minha — justificou-se Idalina. — Eu faço o que posso...

Ele exaltou-se:

— Quem te está a deitar a culpa? Nunca sabes ficar calada!

Levantou-se e rasgou, nervosamente, o papel em que rabiscara algarismos.

Desde esse dia sentiu que algo aluíra dentro dele, algo que vinha fraquejando há algum tempo já e desmoralizando-o nas ambições, na sua própria força de vontade. A ideia de perseverança, de vida regrada e dirigida para um só objectivo, deixava-lhe, muitas vezes, uma sensação de inutilidade.

Começara a não contar os cigarros — um de manhã, dois à tarde e dois à noite — como fazia até aí. Sentia menos desejo de estar em casa, sentia-se saturado da casa e mesmo da companhia da mulher. Parecia-lhe que tinha a vida inteira para estar ali, sempre no mesmo casebre obscuro e sempre ao lado de Idalina — e isso impelia-o para fora e para outras convivências.

Muitos dias, ao volver da fábrica, dirigia-se directamente ao Pelourinho e só à noite aparecia em casa, à hora de comer. Tornava a sair e, como se decidira a mandar fazer duas chaves da porta, às vezes Idalina já dormia quando ele regressava. Um dia, ela queixara-se:

— Nunca estás comigo... Parece que já não gostas demim...

— Não é nada disso. Tenho outras coisas... É que um homem precisa de saber o que vai pelomundo. E não é aqui, metido em casa, que eu sei...

Ele dissera aquilo apenas para se desculpar, mas, depois, pensara que, além de tudo o mais, também aquilo era verdade, que era também por aquilo que ele passava muito tempo fora de casa. E que, se deixasse de o fazer, seria mais infeliz, pois custava•lhe, agora, viver sem ouvir falar de guerra. Tinha-se dado, há pouco, a invasão da Normandia e grandes avanços a Leste — e isso galvanizara, de novo, os operários. Quase todos eles se haviam tornado combatentes mentais e, cada vez com maior paixão, comentavam a luta sempre que estavam juntos, já não só à hora do almoço e da saída das fábricas, mas também à tarde, no Pelourinho, e à noite, nas esquinas e nos cafés proletários da cidade.

Era no João Leitão que Horácio, depois de jantar, se reunia com o Dagoberto, o Ildefonso, o Boca Negra e outros mais. Algumas vezes Pedro ia também ali. Dagoberto trazia, quase sempre, um novo mapa—o último publicado pelo “Primeiro de Janeiro”. E, então, todos se vergavam sobre os nomes de cidades e regiões que haviam sido conquistadas ou onde se pelejava, nomes que eles não sabiam mesmo pronunciar, e iam acompanhando, pelas notícias de cada dia, a marcha dos exércitos conjugados, como se acompanhassem a marcha das suas próprias esperanças.

Pedro era o único que levantava grandes disputas, sobretudo com o Ildefonso. Ele interessava-se pelos acontecimentos a que os jornais se referiam, mas mostrava-se céptico sobre os resultados que os companheiros aguardavam. E, algumas noites, retirava-se antes dos demais, melindrado com o que Hildefonso lhe havia dito enquanto discutiam. Então, os outros também maldiziam de Pedro, afirmando que ele manifestara sempre tendências burguesas, talvez por julgar que o pai lhe deixaria uma herança. E logo voltavam ao mapa — ao mundo que eles esperavam ver desenhar-se, um dia, sobre o mapa.

Alguns domingos, em vez de ir passar a tarde ali ou no Pelourinho, Horácio caminhava até à Aldeia do Carvalho, a visitar Marreta. Mais do que a amizade, impelia-o o desejo de ouvir o antigo tecelão dizer as suas palavras de crença no futuro, aquelas palavras de que ele, agora, carecia como de um alento para a vida. Continuava a considerar Marreta mais inteligente e sabedor do que os outros — e aquilo, dito por ele, parecia-lhe mais digno de fé do que escutado aos operários da Covilhã.

Contudo, dessas visitas trazia sempre um amargor mesclado à confiança nos dias vindoiros que o velho lhe insuflava. Marreta nunca falava de si próprio e, se alguém se referia à sua situação, ele afirmava que não tinha dificuldades — que os vinte escudos mensais lhe chegavam para a renda da casa e para as batatas. Ninguém o acreditava e toda a vizinhança sabia que ele passara a comer uma só vez por dia e que, em alguns dias, não acendia sequer o lume, alimentando-se com duas ou três batatas cozidas na véspera. João Ribeiro, Tramagal, Belchior e um ou outro camarada mais dedicado procuravam auxiliá-lo, mas ele teimava em recusar aquilo que eles teimavam em fazê-lo aceitar. Que não, que não precisava; os outros tinham família e mais precisão do que ele. No domingo em que Horácio lhe levara cinquenta escudos, ele não quisera recebê-los. Horácio, ao partir, deixara-os, escondidos, sob um prato; mas, no domingo seguinte, ele devolvera-lhos e só depois de muito instado aceitara ficar com metade.

Emagrecera mais do que já era e os seus dois dentes isolados dir-se-ia terem crescido na ’boca chupada. Nunca mais falara da sua correspondência com esperantistas estrangeiros, e, uma vez que Horácio aludira ao caso, ele soltara um rápido “deixei-me disso” e metera logo a outro assunto.

Um domingo, ao chegar ali, Horácio encontrou a casa fechada. Bateu uma, duas, três vezes — e ninguém veio abrir. Era, de novo, Inverno, as ruas estavam cheias de lama e desertas, porque começava a cair uma molinha incómoda. Horácio bateu de novo. Só a ribeira, lá ao fundo, lhe respondeu com seus regougos nos penedais por onde se despenhava. Depois, Horácio ouviu ranger uma porta. Voltou-se e deu com a caratula da tia Lucrécia, vizinha de Marreta.

— Ele já deixou a casa — informou a velha. — Foi para o Albergue.

— Foi para o Albergue? — repetiu Horácio, surpreendido.

— Foi; foi ontem. — E a velha, a tremer com o frio, tornou a fechar a sua porta.

Sob a chuva, Horácio pensou em refugiar-se na casa de Ricardo e lá colher pormenores da partida de Marreta. Mas logo desistiu, perante a ideia de que ficaria ainda mais triste se visse a miséria em que Ricardo e a sua família ultimamente viviam. Pôs-se a correr para casa de Tramagal. A chuva aumentara e, aqui e ali, por detrás dos janelicos da aldeia, lobrigavam-se rostos de crianças colados aos vidros, na monotonia do domingo invernoso.

Tramagal estava de serrote metido a uma tábua quando Horácio entrou:

— Olá! Vens de casa do Marreta ? Horácio queixou-se:

— Venho... Você não me tinha dito nada... Nem você, nem ninguém...

Ao contrário do seu feitio, Tramagal mostrava-se sóbrio de gestos e de palavras:

— Também eu não sabia. Só ontem, depois de voltar do trabalho, mo disseram. Pelo visto, o Marreta não queria que ninguém soubesse do caso antes de ele sair daqui. Parece que ele pediu para entrar no Albergue logo que o despediram da fábrica, mas esteve todo este tempo à espera de vaga... Anda, senta-te!

Horácio sentou-se. Os dois homens ficaram, um momento, silenciosos. Lá fora a chuva prosseguia.

— Mas ele andava sempre a dizer mal do Albergue: que aquilo não prestava para nada e que até eram mal empregados os cinco tostões que nós dávamos, por semana, para lá...

— Pois é... —murmurou Tramagal. — É isso que me custa... Ele não foi para lá porque gostasse daquilo... Ele não podia até ouvir falar do Albergue... E é por isso que eu, hoje, não tive coragem de ir lá vê-lo...

Horácio examinou o seu relógio.

— Eu gostava de dar Já uma saltada... Mas já é tarde. chega e não chega, faz-se noite...

Vamos os dois no domingo que vem. Quando penso no caso, até parece que sinto uma coisa a arranhar-me cá por dentro! — disse Tramagal, levantando-se. E, caminhando para a porta, abriu-a totalmente e pôs-se a respirar o ar húmido de lá de fora, enquanto a chuva caía diante dos seus olhos.

Vetusto casarão, com uma esplanadazita em frente, o Albergue dos Inválidos do Trabalho erguia-se no meio de outras casas velhas da cidade. Horácio conhecia-o exteriormente, por haver passado algumas vezes ali, mas nunca se detivera no seu limiar. Agora, ao premir a campainha, a mão tremia-lhe. A princípio, ele não ouviu coisa alguma. Depois, soaram uns passos que vinham de longe, aproximando-se vagarosamente — e a porta abriu-se..

Horácio viu, então, na sua frente, uma freira quarentona, de alvo chapéu engomado e faces muito brancas:

— Boa tarde... — saudou com uma voz ao mesmo tempo pastosa e doce. — Que deseja?

— Eu queria falar ao José Nogueira. A um que chamam Marreta...

A freira hesitou e, puxando do seu hábito um cordão, examinou o relógio que na extremidade deste se amarrava:

— Ainda não é hora de visitas...—disse. — Faltam dez minutos...—Tornou a hesitar e decidiu-se:—Bem, já que está aqui, entre!

Horácio encontrou-se numa espécie de velho pátio, ao fundo do qual uma escada subia para o primeiro andar.

— Espere aqui, que eu you chamá-lo.

Mal a freira desapareceu, Horácio ouviu uma voz que rompia, de súbito, o silêncio do edifício, cantando, nervosamente, uma cantiga que nunca se concluía, que ficava sempre nos primeiros versos — nos primeiros versos sempre repetidos. A voz ora se calava, ora volvia a cantar, às vezes, com frenesi, com um tom raivoso de quem houvesse fincado o pé sobre o cadáver de um inimigo vencido. Os desvairados estrídulos cada vez soavam mais perto, mais perto cada vez, e, somando-se à emoção que Horácio trazia, produziam-lhe crescente mal-estar. Por fim, a voz emudecera. Mas um outro ruído atraiu os olhos de Horácio para o cimo da escada. Desgrenhada rapariga surgira ali e contemplava-o com alucinada expressão. Quedara-se um momento parada e, em seguida, fugira, soltando um grito.

De longe, chegou até Horácio outra voz de mulher, que admoestava:

— Eu não lhe disse já, menina, que não saísse do corredor?

Houve novo silêncio e, depois, a freira voltou a aparecer. Na penumbra do pátio, a brancura dos seus hábitos quase anulava a outra figura que ao lado dela vinha. Era um homem metido numa fardeta coçada, que sorria a Horácio, ternamente. O velho dólman e a calça remendada, mui cingidos ao corpo, ainda amesquinhavam mais o vulto. Horácio identificou-o pelo sorriso.

— Tio Marreta... Então? — Queria dizer mais, mas não podia. As palavras ficavam-lhe na garganta, como pedras que a obstruíssem.

Marreta abraçara-se a ele:

— Então, meu rapaz? Então... como vais? — Tinha lágrimas nos olhos e também dificuldade em falar.

Estiveram assim alguns momentos e, depois, Marreta disse:

— Folgo muito em ver-te...

Mas não era nada daquilo que ele desejava dizer. Ambos sentiam que a presença da freira os perturbava. Marreta passou as costas das mãos nos olhos, voltou-se e pediu:

— A irmã dá licença que vá com este amigo lá para dentro?

A freira inclinou a cabeça.

Alguns passos feitos e os dois encontraram-se num obscuro corredor, logo numa galeria que neste entroncava. Agora, para onde quer que ele volvesse os olhos, Horácio via figuras de velhos — velhos por toda a parte. Uns coxeavam à sua frente, outros arrastavam-se sobre o lajedo, apoiando-se a bengalas. Aqui estava um grupo sentado e emudecido; além, um homem solitário, que roía as unhas e olhava para ele. Alguns, mais audaciosos, saíam-lhe ao caminho e pediam:

— Tem um cigarrinho cá para o velhote?

Da banda de trás, o Albergue dos Inválidos do Trabalho lançava duas alas sobre umas territas cultivadas. Nestas andava, de um lado para o outro, sempre no mesmo trilho, como animal nocturno, e sempre de olhos no chão, outro velho que falava sozinho e gesticulava incessantemente para um interlocutor invisível. De quando em quando, detinha-se, escarrava, fazia gestos mais bruscos e depois tornava a ir e tornava a vir, todo entregue àquela interminável discussão com o seu fantasma, àquele infindo monólogo consigo próprio.

Do lado de lá da horta havia outras galerias, a térrea e a do primeiro piso, lembrando um trecho de pobre claustro. Também nelas, Horácio divisava numerosos inválidos, uns esquálidos, vergados e completamente calvos, outros com umas farripas brancas por cima das orelhas. Num deles Horácio reconheceu o Paredes, que se mostrava de perfil, falando com outro velho.

— Podemos ficar aqui — disse Marreta. Encontravam-se no extremo da galeria e, em frente, erguiam-se, único oásis para os olhos, duas laranjeiras com o seu verde picado pelo oiro dos frutos.

Horácio sentou-se num pequeno banco, ao lado de Marreta:

— Que ideia a sua de vir para cá! E sem prevenir ninguém! Quando soube, no domingo passado, tive um grande desgosto...

Marreta não respondeu logo. Colocou as mãos sobre os joelhos e ficou-se, um momento, a olhar para elas.

— Que ia eu fazer? — murmurou, depois. — Os camaradas vivem com dificuldade e estavam a sacrificar-se por minha causa...

— Ora! Ora! Vossemecê não queria aceitar nada. E um pouco a cada um não custava.

Eu não queria aceitar, mas ia aceitando. E, um dia, oscamaradas acabavam por se cansar. Coitados! Tomaram eles ganhar para a família que têm...

A voz da louca voltou a descer do primeiro andar. Era a mesma cantiga de há pouco — os mesmos versos sempre iguais. Logo, porém, se calou.

Marreta deu uma leve palmada na perna de Horácio:

— Agradeço-te, mas não te aflijas comigo! Aqui não se está tão mal como eu pensava... Não se pode dizer que seja um paraíso, mas vai-se vivendo. A princípio, pode custar... Depois, a gente acostuma-se. Eu, daqui a pouco, estou acostumado, tenho a certeza...

A desvairada cantiga tornou a reboar do piso superior. E parecia meter-se por todas as frinchas, cobrir os diálogos de todos os velhos, traspassar e estarrecer o edifício inteiro.

— É isto que mais me custa — confessou Marreta.— Mas também eu me hei-de habituar...

— Então aqui há loucos?

— Há alguns... Não têm onde os meter e estão para aí... Não digo que estejam doidos de todo, mas faz impressão olhar para eles. A alguns conheci-os eu quando ainda trabalhavam nas fábricas e, agora, custa-me vê-los assim, com o juízo perdido. Essa rapariga é a que está pior. Dá pena, porque não tem ainda vinte anos...

Marreta calou-se e, lá em cima, a louca calara-se também. Horácio disse:

— Eu queria trazer alguma coisa para si, mas não sabia bem o que havia de ser... Como vossemecê não fuma e, além disso, é vegetariano... Mas diga-me o que é que mais falta lhe faz, que eu, no domingo que vem, trago-lhe.

— Não preciso de nada. Não te incomodes. — Marreta vacilou um instante e acrescentou: — O que eu desejo é que o frio passe. Estas terras do Albergue são tratadas por nós e eu gosto muito de tratar de terras. Logo que o frio abrande, eu irei cuidar da horta e já me entretenho.

Horácio voltou a insistir. De alguma coisa ele devia precisar, tinha a certeza. Toda a gente garantia que a vida do Albergue era má e ele próprio, Marreta, lhe tinha dito, muitas vezes, a mesma coisa, quando falava dos inválidos. E se agora dizia o contrário, era com a ideia de não o incomodar, mas estivesse certo de que não o incomodava nada.

Marreta baixou os olhos:

— Bem, já que teimas, quando voltares cá traz-me dois selos para o estrangeiro. E umas folhas de papel de carta... Devo resposta a uns esperantistas da Argentina e não tenho podido escrever-lhes...— A voz de Marreta começara a enternecer-se, mas ele levantou-se e perguntou, com outro tom:—Já viste isto, daqui?

Do extremo da galeria abrangia-se, para baixo das terras do Albergue, as vertentes da ribeira Degoldra e as várias fábricas de lanifícios que, nas suas margens, se erguiam. Mais além, na encosta da serra, mostravam-se longos aglomerados de pinheiros e uma ou outra ferida branca de pedreira. Marreta estendeu o braço e indicou ao longe:

— Acolá, uma vez, encontrei um lobo. Eu ainda era pequeno e vinha de Cortes do Meio. Foi há muitos anos... Quase todas aquelas casas que se vêem daqui ainda não existiam...

A sua voz tornava a comover-se. Ele queria reagir, mas a voz humedecia-se sempre daquela comoção:

— Nasci cedo de mais... Tu é que estás em boa idade. Tens muitas mudanças para ver, quando a guerra acabar...

No começo da galeria surgira o velho Paredes, agarrado à sua bengala:

— Olha o Horácio! Olha o Horácio!

Tinha um sorriso pateta, desdentado. Horácio deu-lhe os dois cigarros que lhe restavam:

— Não sabia que vossemecê tinha vindo, também, para cá...

— Pois vim... Desde que me morreu a mulher... Que ia eu fazer? Mas de quem tenho pena é aqui do nosso Marreta. Eu sou um pobre-diabo; não valho nada... Mas ele... Custa-me! Lá isso custa-me!

Marreta interveio:

— Cale-se, homem! Deixe-se de tolices! Ouviram-se novos passos no lajedo. E uma voz

grossa, que Horácio conhecia. Tramagal e João Ribeiro avançavam na galeria, A freira que os guiava retirou-se e Tramagal abriu os braços:

— Dá cá esses ossos, meu velho! Não há direito de sair assim calado, que nem um rato! Por tua causa, eu até ia serrando um dedo... Olha! —E mostrava o indicador envolto num trapo branco.

Pouco depois, Tramagal e João Ribeiro faziam as mesmas perguntas e ofertas que Horácio fizera e Marreta repetia as mesmas escusas e explicações que havia dado momentos antes. Paredes interrompeu-o:

— O que ele precisa é de um cobertor...

— O quê ?! — exclamou Tramagal. — Então ele não tem cobertores?

— Tenho... Tenho...—declarou Marreta.

—Tem dois, mas não chegam. ’Eu tenho três, e mesmo assim, com este tempo, sinto frio. Quanto mais ele! Ainda a noite passada eu vi-o a tremer na cama, lá no nosso dormitório.

Marreta ia a falar, mas já Tramagal enchia tudo com a sua indignação:

— Parece impossível! Um homem que trabalhou toda a vida com lãs, para os outros, não ter um cobertor quando chega a velho! Onde está essa superiora, que eu you cantar-lhe das boas! Não faltava mais nada!

Os outros inválidos, que se encontravam sentados nas galerias, voltaram-se todos perante o vozeirão de Tramagal. Marreta conseguiu, por fim, interrompê-lo:

— A superiora não tem culpa. Ela até mostra boa vontade... Mas o Albergue tem poucos rendimentos. Os operários pagam cinco tostões por semana e, com os salários que têm, não poderão pagar muito mais. De vez em quando, as freiras fazem um peditório, mas, mesmo assim, não arranjam dinheiro que chegue, pois se alguns ricos dão qualquer coisa, outros não dão coisa nenhuma... De maneira que não vale a pena dizeres nada à superiora... Ainda se fosse só eu! Mas há muitos mais assim...

Todos ficaram, um momento, calados e, depois, João Ribeiro perguntou:

—’E os cobertores que tu tinhas... lá em casa?

— Bem... Muitas vezes tenho pensado nisso... Mas eu tinha feito umas dividazitas e, antes de vir para cá, vendi-os, para pagar... Vendi tudo...

Tramagal afirmou, sombriamente:

— Amanhã já terás um cobertor. E já podias ter mandado dizer que te faltava...

— Não quero! Onde tens tu dinheiro para fazeres assim, de pé para a mão, uma despesa dessas?

— Não há-de ser só o Tramagal a pagá-lo... — disse João Ribeiro.

— Amanhã terás um cobertor — repetiu Tramagal.— E vamos cá a saber: a paparoca?

Paredes ia a responder por Marreta, quando este o deteve com um olhar — um olhar que fez surgir, na boca do outro velho, um sorriso resignado, em vez das palavras que ele se propusera dizer.

Tramagal comentou:

— Não presta para nada, está visto!

— A comida é boa... — corrigiu Marreta. Depois, perante o admirado olhar de Paredes, acrescentou, hesitante: —A comida não é mal feita... Nos quartéis, fazem-na muito pior... Talvez os velhotes comessem mais, se lha dessem... Alguns têm bom apetite, coitados!... Aqui o tio Paredes, por exemplo... Mas quem vem para aqui já sabe o que estas coisas são... Agora, cá por mim, vocês não estejam a preocupar-se, que eu não passo necessidades. Como sou vegetariano, com pouco me arranjo. Nos primeiros dias ainda tive aí umas dificuldades. Mas, depois, falei à superiora e agora fazem, para mim, uma panela à parte, com batatas e couves. Ontem, deram-me cenouras, coisa que eu já não comia há tempos. Souberam-me muito bem.

Mais uma vez a louca desatara a cantar. Alguns dos velhos olharam para cima, como se lhes fosse possível ver a figura dela através do tecto. Logo voltaram aos seus lentos diálogos ou àquela modorra a que se entregavam, de cabeça vergada, as pálpebras cerradas, as mãos postas sobre o ventre.

Tramagal olhou em seu redor:

— Ainda assim, há, aqui, muita velhada... — disse. E voltando-se para Horácio: — O que me dá raiva é pensar que nenhum destes gajos fez o que quis na vida!

Horácio tornou a entristecer de repente. Fechou os olhos para não ver os velhos, mas continuava a ver os velhos dentro dos seus olhos, os velhos e a casita que ele sonhara a desenhar-se agora sobre os velhos e ele velho também, ali, no Albergue, entre os outros velhos. Sentiu, de súbito, uma ânsia enorme de sair dali, de deixar Marreta, de ir lá para fora, para o Pelourinho, para algures, onde não visse nem os velhos nem o Albergue. Mas já Tramagal chalaceava e ria forte, procurando espairecer a Marreta, nos olhos do qual ele adivinhara, também, uma nuvem de tristeza.

Quedaram-se ali até às quatro da tarde. Quando se despediam, Marreta puxou Horácio para uma banda e murmurou-lhe:

— Estive a pensar nisso das cartas e como, agora, com a guerra, elas demoram muito a chegar e, às vezes, vão mesmo para o fundo do mar, o melhor é eu deixá-las para mais tarde... Assim, em vez de trazeres osselos que eu te tinha pedido, traz um bocado de queijo para o Paredes comer. Eu sei que ele gosta muito de queijo, pois ainda anteontem mo disse.

 

O filho de Horácio nasceu com bom tempo. Nas encostas vizinhas da cidade, os castanheiros sobreviventes dos grandes soutos pretéritos mostravam, de novo, as suas copas lustrosas de um verde mui vivo de Primavera. No jardim público, as tílias apresentavam-se, também, exuberantes de folhagem, enquanto as roseiras de trepar haviam já florido sob as varandas das casas ricas. Das povoações serranas, os rebanhos começavam a subir para os cumes, então como há cem, há duzentos, há mil anos, e iam devorando as flores silvestres que rompiam de todas as bandas, pulcras e humildes. Nas Penhas da Saúde e na Nave de Santo António, os amadores de esqui tinham dado o seu lugar aos pastores. E no mesmo sítio onde, no Inverno, soavam gargalhadas de moços e moças elegantes, nas suas quedas, corridas e volteios sobre a neve, o silêncio das alturas só era quebrado agora pela melancolia humana de alguma canção de pegureiro. Na Covilhã, quando, a horas matinais, os operários saíam de casa para as fábricas, já encontravam, no caminho, um sol límpido que cobria a cidade e a serra e parecia encher a serra e o Mundo todo de paz — a paz doce, luminosa, perfumada, cromática, com que, nesses dias primaveris, a Natureza realizava, em silêncio, a sua obra de criação. Era uma paz que dir-se-ia segregada pelas próprias ervas, plantas e arbustos, pelas próprias fragas hirsutas e só por esforço do cérebro se concebia que não fosse universal o domínio que ela exercia ali, nos penedores da montanha agora reverdecidos.

Contudo, lá longe, a guerra, acercando-se muito embora do seu óbito, não morrera ainda. E ali mesmo a harmonia só tinha existência entre os vegetais e minerais da serra e não na alma dos homens. Os operários entravam nas fábricas já excitados e trabalhavam ansiosos pela hora da saída, que lhes permitia conhecer as últimas novas da peleja. Berlim agonizava. Sitiada e fuzilada de todas as bandas, ferida a todos os instantes por bombas e granadas, a cidadela arrogante ia cedendo hoje um passo, amanhã dois, cada vez mais vermelha de sangue, mais débil e encolhida sob o retumbar incessante do ferro e do fogo.

A irmã de Dagoberto, quando vinha trazer-lhe o almoço à fábrica, trazia-lhe, também, o último jornal chegado de Lisboa ou do Porto. Em volta da gazeta formava-se copioso grupo e as bocas iam mastigando o seu pão enquanto os ouvidos escutavam, atentos, a leitura que Dagoberto fazia, também de boca cheia. Mas era à tarde e à noite, no Pelourinho e nos encontros de rua, que eles se apossavam das mais recentes notícias, propaladas por um ou outro habitante da cidade, que as colhera nos aparelhos de radiofonia. Hitler morrera. Os russos haviam chegado à beira da Chancelaria do Reich. O almirante Doenitz formara novo governo, longe da capital. E já ninguém fixava os nomes das cidades que americanos, ingleses, russos e franceses ocupavam nesses derradeiros dias de batalha.

O mês de Maio começara e nos castanheiros da colina de Santo António surgiam os primeiros laivos amarelos da sua próxima floração. Na Praça da República, as tílias preparavam-se igualmente para florir e encher o jardim com o seu gordo aroma.

Há já semanas se aguardavam, ansiosamente, palavras anunciadoras de que a guerra terminara e a paz volvera também às terras da Alemanha. Por fim, essas palavras vieram e, então, nas aldeias os sinos repicaram e cortejos festivos percorreram vilas e cidades.

A guerra terminara, mas a coincidência que se havia previsto para o seu fim não se dera e um vácuo se abrira, mais uma vez, nas esperanças dos homens que trabalhavam nas fábricas. Era como se mãos invisíveis houvessem cavado, repentinamente, um fosso na estrada que eles trilhavam. Os aparelhos de rádio e os jornais já não se referiam a um mundo novo para todos os homens. Agora, os estadistas tratavam de outros problemas.

Uma noite, no Café Leitão, Ildefonso procurou justificar-se perante os companheiros e perante ele próprio da fé que andara espalhando durante tanto tempo:

— Ainda é cedo para se deixar de acreditar... — disse. — Ainda está tudo muito embrulhado...

Pedro sorria, sarcástico. Os outros operários viam aquele sorriso e irritavam-se. Também eles, agora, acreditavam menos nas palavras de Ildefonso do que meses antes. Mas o sorriso escarninho de Pedro parecia-lhe uma ofensa a todos eles, a algo que possuía mesmo mais força do que eles.

Pedro vangloriava-se:

— Um mundo melhor!... Quem tinha razão? Eu não dizia que o tal mundo não viria? Eram tudo lérias! E vocês, uns palermas, que acreditavam nisso!

Ildefonso levantou-se bruscamente e fez o movimento de retirar-se. Mal deu, porém, dois passos entre as mesas, não pôde conter-se e voltou-se:

— Palerma és tu, compreendes ?

Pedro olhou-o, surpreendido por aquela reacção. Depois respondeu com voz cortante:

— Aprendi contigo...

Palavra atras de palavra, o nada tornara-se, de repente, muito. Boca Negra agarrou-se a Ildefonso, no momento em que ele ia levantar os braços. Os outros operários cercaram Pedro, que se havia erguido, também, da mesa:

— Vai-te embora... É melhor que te vás embora...— disseram-lhe, rudemente. E as vozes de todos pareciam solidarizar-se numa ameaça contra ele.

Boca Negra e Horácio saíram, levando Edefonso. E, desde essa noite, os homens evitavam falar daquilo. Mas os diálogos acabavam sempre por se aproximar daquilo. Então, um ou outro, tinha um sorriso seco e triste.

No domingo, Horácio foi visitar Marreta, que havia adoecido. O antigo tecelão encontrava-se numa das camas de ferro, cobertas de branco, que, em duas filas, constituíam o dormitório do Albergue. O seu coração enfraquecera, em Março tivera duas síncopes e o médico diagnosticara também uma nefrite.

Era a primeira vez que Horácio vinha ali depois de finda a guerra. E não queria desgostar a Marreta falando-lhe do caso, pois isso lembrar-lhe-ia, decerto, as previsões que ele, como o Ildefonso e muitos outros, fizera e não se haviam consumado. Mas fora o próprio Marreta quem, depois de ter respondido às perguntas de Horácio sobre a sua saúde, dissera de repente:

— Então, mais uma vez, tudo ficou na mesma?

Horácio não respondeu. As mãos de Marreta, descarnadas e da cor do marfim velho, dir-se-iam falecidas sobre a puída colcha branca.

— Mas isto não fica assim... — tornou. — Mais ano, menos ano,isto modifica-se. Vocês, os novos, hão-de ver muitas coisas...

Horácio continuou calado. Também ele, depois de finda a guerra, voltara a ter dúvidas. Os projectos que fizera, relacionando-os com uma melhoria colectiva, haviam começado a parecer-lhe, nos momentos de desânimo, tão inexequíveis como os que tinha imaginado à base do seu salário. Pedro dissera-lhe, várias vezes, que Marreta “era um homem que andava nas nuvens” e ele, agora, escutava-o quase com as mesmas reservas de quando o conhecera na Aldeia do Carvalho. Havia algo, porém, que permanecia, apesar de tudo, no seu espírito uma admissão, uma hipótese, uma semente que não germinara e que não estava lá antes de ele vir para as fábricas. E essa imponderável presença criava-lhe frequentes contradições. Quando ele, resmungando, maldizendo de tudo e de todos, pensava em resignar-se, em aceitar as circunstâncias, acomodando-se a elas, submetendo-se a elas, como tinham feito muitos outros, como faziam muitos outros, logo aquela esperança que parecia morta ressurgia, nublada como sempre se lhe apresentara, mas viva e dando-lhe o único consolo que ele encontrava nas suas horas de desespero.

Agora, escutando Marreta e lembrando-se de tudo quanto parecia confirmar as palavras de Pedro, a esperança e a dúvida voltavam a digladiar-se.

Marreta acabara por notar o seu silêncio:

— Hoje não estás nos teus dias... Ele fez um gesto vago:

— Queria que vossemecê ficasse bom... Marreta teve um sorriso resignado e triste. Depois, disse:

— Hei-de ficar bom, então não h’ei-de! Passo as noites mal e incomodo para aí a velhada e as irmãs, coitadas! Mas isto cura-se.

Horácio olhou para ele. E quando, às quatro horas, saiu, vinha mais triste do que o sorriso triste que Marreta tivera.

Os dias iam-se tornando cada vez mais longos. E das Portas do Sol viam-se já os castanheiros da colina de Santo António todos amarelados, todos floridos. Eram poucos e dispersos, como os das encostas sobranceiras ao Sineirinho, mas lembravam a Horácio, numa ténue saudade, os grandes soutos das proximidades de Manteigas. Ele parou, um instante, a olhar os castanheiros e a pensar no que lhe dava saudade. Desenterrou da memória dias e anos da sua infância e da sua adolescência e concluiu que nunca tivera nada de tão bom que merecesse a pena ser recordado. Continuava, porém, a sentir saudades, uma saudade por coisas indefinidas, que não sabia explicar a si próprio. Pensou que seria pelos pais, a quem não via há já bastante tempo; que seria dos primeiros dias de namoro com a Idalina, mas, depois, convenceu-se de que não era por isso também.

Quando, finalmente, Horácio atravessou o Pelourinho, havia lá, como todas as tardes, grupos de operários e de empregados comerciais a pairarem. Mas ele não se deteve. Desde que terminara a guerra, voltara a passar quase tantas horas em casa como nas primeiras semanas de casado. Só saía depois de jantar, quando o Joanico dormia. E era a própria Idalina que lhe pedia, agora, para ele sair: “Vai dar uma volta, senão, assim, sempre a falar, acordas o menino.”

Ele sentia-se cada vez mais preso ao Joanico e contente porque a cara do filho se assemelhava à dele. Todos diziam que raras crianças, nos primeiros meses, se pareciam com os pais, mas o Joanico, desde que nascera, parecia-se com ele; era os seus olhos, o seu nariz e até o seu queixo aguçado.

Na fábrica, Horácio estava sempre desejoso de voltar a casa e, muitas vezes, imaginava que podia acontecer, na ausência dele e da mulher, algum acidente ao menino. Depois do parto e antes de retomar o seu trabalhão de esbicadeira, Idalina tentara deixar o filho na Lactária, onde a Josefa também deixava o seu. Mas lá disseram-lhe que não podiam recebê-lo, que não tinham lugar para mais de doze crianças, nem leite para mais de vinte e quatro, nem dinheiro para comprar mais leite e mais berços. Escusava ela de falar alto, de reclamar, pois aquilo era uma obra de particulares, de senhoras que possuíam bom coração, mas não dispunham, de meios para recolher as mil ou mais crianças pobres que havia sempre na Covilhã. Idaiina decidira, então, pedir à Procópia que lhe tomasse conta do Joanico, enquanto ela estava na fábrica. A Procópia não quisera fazer-lhe preço, mas calara-se quando a ouvira dizer que, depois, lhe daria alguma coisa.

Todos os dias, durante a hora do almoço, Idaiina saía, a correr, da fábrica, disparava rampa acima e vinha entregar o seio ao filho. Recomendava sempre à Procópia que não se esquecesse do biberão das quatro e, só depois disso, regressando ao trabalho, começava a tasquinhar, ladeira abaixo, a sua côdea e a sua sardinha. As outras mulheres, que a viam chegar e partir, sorriam, cépticas e experientes, daquela azáfama — e ’garantiam, mesmo em. frente dela, que tantos cuidados só se tinham com o primeiro filho. Mas Idaiina pensava que ela seria sempre assim, por muitos filhos que tivesse.

A Horácio, a Procópia parecia-lhe mondonga, pouco cuidadosa e cada dia ele tinha maior receio de que ela não tratasse bem o Joanico.

— Ainda o melhor seria tu deixares de ir à fábrica e começares a esbicar em casa — disse ele, uma noite, à mulher.

— Também tenho pensado nisso. Mas, se fico em casa, ganho menos, já se sabe... Por muito que não queira, mete-se uma coisa e outra e o trabalho rende pouco.

Horácio considerou um momento, em silêncio, e, depois, concordou:

— Pois é... Isso é...

Outra noite, ao pegar no Joanico ao colo, ele viu nas pernitas do filho uns círculos avermelhados, que nem de brotoeja.

— Que é isto? — gritou.

Idalina aproximou-se, ainda, antes mesmo de examinar a tenra pelezita, já ele berrava de novo:

— São mordeduras de percevejos, não há que ver! Essa Procópia é uma porca, eu sempre o disse!

Idalina interveio, inquieta:

— Cala-te, homem, cala-te! Fala baixo... Ela pode estar aí na rua e ouvir-te...

— Pois que ouça! É uma porcalhona, não há dúvida! Deixa fazer isto ao menino!

Idalina sabia que não tinha na vizinhança outra mulher que pudesse, como a Procópia, tomar-lhe conta do filho enquanto ela estava na fábrica. E, aflita, procurava serenar Horácio:

— Deixa lá, que não é por isso que a criança morre... Eu hei-de falar à Procópia, mas percevejos há-os por toda a parte, agora com o calor. Aqui mesmo os temos a dar com um pau. Ainda ontem encontrei dois. E tu não és, todas as noites, ferrado por eles?

— Nós somos crescidos! Uma coisa somos nós e outra coisa é o inocente, que não se pode defender! Compreendes?

Depois destas últimas palavras de enervamento, ele pareceu ter reconsiderado — e calou-se. Mas, logo a seguir, pousou o filho na cama e começou a tirar, lentamente, a traparia do berço e a escabichá-la de um lado e de outro.

— Cá está um!—exclamou. E logo: — Cá está outro! Assim, como é que a criança não há-de estar mordida?

Novamente Idalina interveio, conciliadora:

— Pode ser que sejam mesmo da nossa casa. Neste tempo, as madeiras estão cheias deles...

Pois então, no domingo, vai-se fazer, aqui, uma limpeza geral. Tem de se acabar com isto!

Efectivamente, no domingo seguinte, mal regressara do Albergue, com a alma mais aliviada porque Marreta parecia haver melhorado, metera mãos à tarefa. Havia comprado petróleo e pós insecticidas e, num instante, com Idalina, desarmara a cama.

— O colchão para a rua, para arejar!

E enquanto Idalina lhe obedecia, ele buscava os parasitas entre os ferros. Surgira um, surgiram dois, surgiram dezenas, que ele ia esmagando com raiva. Posto a um canto, no seu berço, o Joanico largara a chorar.

— Cala a criança e vem cá! — ordenou Horácio à mulher.

Ele acabava de descobrir que, nas junturas do soalho, por baixo da cama, também se acoitavam percevejos. Pusera, então, Idalina. a esfregar aquelas tábuas velhas, enquanto ele esquadrinhava, com uma lascazita de pinho na mão, a mesa-de-cabeceira. Mas o Joanico voltara a chorar, a complicar aquilo, a irritá-lo mais.idalina ’caminhava do alguidar de água suja para o berço e do berço para o alguidar.

Também a mesa de cabeceira se encontrava habitada. Ele começara a escarafunchá-la e a polvilhar-lhe o interior, quando a figura de Manuel da Bouça se esboçou à porta, com aqueles retraídos modos de quem se tem sempre por inoportuno:

— Boa tarde...

Horácio mal lhe respondeu e continuou a sua faina.

Há muitos meses já que Manuel da Bouça lhe frequentava o casebre. O proprietário do armazém onde o velho trabalhava, considerando quase inúteis os seus serviços, nunca lhe aumentara o ordenado. E, com a carestia dos alimentos, pela guerra provocada, dias havia em que ele passava fome. Dera-se, então, a buscar um e outro conhecido, a aparecer-lhes à hora do jantar, a oferecer-se para recados, a precipitar-se se via ensejo de poder auxiliar a dona da casa. Estava cada vez mais decrépito e, com a barba quase sempre por fazer e o dorso abaulado, os seus pesados movimentos lembravam os de um velho gorila. Percebera que a Horácio não eram gratas as suas descrenças sobre os homens e sobre o seu amanhã e cessara de falar delas. E se, por alguma irreprimida palavra, as deixava entender, logo as corrigia ou se calava. Humilde, serviçal, de suja andaina remendada por ele próprio, a fome adivinhava-se-lhe nos olhos e na tremura dos lábios quando alguém comia na sua frente. Horácio compadecia-se dele, mas continuava a não lhe dar espontânea simpatia. Algumas vezes surpreendia-o de olhar fixo, muito fixo, no Joanico, como se estivesse a recordar-se de alguma coisa que só ele sabia ou a ver a cabeça do menino por dentro. Nesses momentos, parecia a Horácio que aquela mirada podia fazer mal à criança, prejudicar-lhe o seu futuro, pois dir-se-ia que os olhos de Manuel da Bouça estavam a ver coisas que mais ninguém via. E, então, mal disposto, Horácio soltava bruscas palavras, que faziam o velho quebrar a fixidez do seu olhar e estremecer, como se voltasse a si de algures, de muito longe ou de dentro da cabeça do próprio menino.

Ao contrário do marido, Idalina simpatizava com Manuel da Bouça.

— É um pobre homem! E honrado! Nunca me fica com um tostão!—dizia, quando Horácio o criticava. — É um pobre homem e não tem ninguém por ele. Quando penso que teve uma filha e se vê agora assim abandonado, sinto pena...

Com Idalina, desde que trabalhava na fábrica, só aos domingos podia ir ao mercado, era Manuel da Bouça quem, um e outro dia, de manhã cedo, antes de entrar no emprego, lhe fazia algumas compras. E também ao começo da noite, depois de sair do armazém, estava sempre pronto a obedecer-lhe, a ajudá-la nisto e naquilo, a ir ali e acolá, consoante ela precisava. Depois, quando a via a levantar do lume a ceia, fingia que se retirava:

— Bom... Então até amanhã... Deus lhes dê boas-noites...

— Espere aí, homem!—Idalina metia-lhe nas mãos uma tigela de caldo.

Posteriormente, como Horácio afirmasse que o molestava ver Manuel da Bouça a olhar para eles enquanto ceavam, tanto mais que não podiam oferecer-lhe de tudo, Idalina, logo que ele simulava despedir-se, dizia-lhe:

— Volte daqui a um bocado... Preciso de si... Naquela tarde,ao encontrar a casa desarrumada e Horácio a limpar a mesa-de-cabeceira, Manuel da Bouça sorriu, desde a porta:

— Estás a dar-lhes, hem? É o tempo deles... No meu quarto também os há aos cardumes. Olha lá: queres uma ajuda?

Horácio não lhe respondeu, mas ele tomou o seu silêncio por aceitação. E, com um gancho de cabelo que Idalina lhe dera, pôs-se à cata dos ninhos ocul tos em quantos cortes e gretas tinham as paredes e as madeiras. Procedia lentamente, mas com mestria, como se houvesse passado a vida naquela função. Para ver melhor, pedira a Idalina que acendesse o candeeiro e, de quando em quando, Horácio ouvia-lhe um riso voluptuoso e surdo: “Ô ô ô.” Era sempre no momento em que extraía do seu aprisco um dos percevejos e o fazia estalar sobre a chama do candeeiro. Havia-os por toda a parte. Da casa já tresandava para a rua o cheiro do petróleo e muitas das frinchas estavam já tapadas com o pó insecticida; apesar disso, Horácio e Manuel da Bouça continuavam a encontrar parasitas. O Joanico voltara a chorar.

Horácio ouvia o filho, via a mulher agarrada ao esfregão, Manuel da Bouça puxando sempre o candeeiro para junto dos seus olhos cansados, ele próprio a pesquisar os interstícios da cantareira — e rosnava: “Porcaria de casas! Grande porcaria!” De repente, ele viu o Joanico, já mais crescido, já a andar por seu pé, num quintal que havia junto de uma casa pequena, mas que era muito branca por fora e muito limpa por dentro e de telha francesa, como as dos Penedos Altos. Depois, viu muitas crianças a brincarem em jardins, onde havia palmeiras e relvas e grandes casas ao fundo, no Estoril, na Parede e ali mesmo, no cimo da Covilhã, onde estavam as casas dos patrões. Pela primeira vez, ele não evocava aquilo com a simpatia admirativa de quando regressara de Lisboa a Manteigas, nem com a tristeza de quando vira que não lhe coubera nenhuma das casitas dos Penedos Altos. Pela primeira vez ele evocava aquilo com estado de espírito odiento, numa surda revolta que o fazia resmungar enquanto buscava os percevejos.

Na tarde domingueira, a Traquitanas, a Josefa e a Procópia, vendo expostos ao sol a enxerga e as mantas, vieram trazendo a curiosidade até à porta aberta.

— Boa vai ela! —exclamou a velha Traquitanas, com seu carão escuro e enrugado, quando deu pelo que se fazia lá dentro. — É um trabalho que não paga a pena! Vocês limpam hoje, mas, amanhã, está tudo, outra vez, cheio deles...

E as três mulheres começaram a rir-se, umas para as outras, daquela falta de experiência da vida.

Os percevejos prosperavam no Verão — toda a gente o sabia — e os habitantes do bairro tinham-se acostumado a eles. O Verão ia em meio e os homens raramente pensavam nos percevejos, que eram um simples incidente da noite, que o Inverno eliminaria. Outras preocupações eles moíam. Naqueles meses de Estio, os jornais começavam a falar das consequências da guerra. Em vez do pão para todos, que se anunciara para depois da luta, haveria, no mundo em ruínas, falta de pão até para muitos dos que, antes da guerra, o tinham abundantemente nas suas arcas. Quando o Inverno imobilizasse os percevejos, milhões de homens na Europa, que à guerra, haviam sobrevivido, morreriam de fome e de frio.

Um dia soubera-se que, por isso, os Americanos tinham feito, também em Portugal, gordas encomendas de cobertores destinados àqueles que, nas aldeias e cidades destruídas, se encontrariiam sem abrigo quando a neve começasse a cair na Europa. E, assim, nas fábricas da serra não haveria falta de trabalho, como era tão frequente nos anos em que o mundo vivia em paz,

— Estamos com sorte! — regozijou-se Pedro, uma noite, no Café Leitão. — Não iremos para os quatro dias...

Fio cardado, panos grosseiros, constituíam a produção de Manteigas — e a Manteigas foi entregue grande parte da encomenda. Azevedo de Sousa que, há anos, vinha sendo instado para se associar a uma velha fábrica daquela vila, cujo dono pretendia modernizá-la, decidiu-se, então, a entrar para ela com o seu nome e o seu dinheiro. Na Covilhã, os industriais também se mostravam contentes, porque, afinal, o mundo não se subvertera, como alguns deles haviam chegado a temer. Os seus remotos caboucos tinham resistido ao ’grande ciclone; o capital e a propriedade subsistiam. E como a Inglaterra e outros países concorrentes, ainda feridos pela briga, não podiam, por enquanto, voltar aos mercados com os seus tecidos, os teares da Covilhã continuariam a laborar intensamente.

Viera o Outono e os castanheiros começaram a adquirir um tom acobreado e, depois, a deixar cair a folha. No Lactário, o filho da Josefa chegara à idade de coner farinhas e fora, por isso, entregue à mãe, para o seu berço ser por outro ocupado. Quando Idalina viu o filho da Josefa sentiu a inveja esmordagá-la. Ele estava gordinho, rosado de faces e muito limpo; parecia mesmo o menino que se sentava no livro de Santo António, numa das igrejas de Manteigas, ao passo que o seu Joanico andava magrito, sempre mal da barriga e sempre com a cara suja.

Os jornais continuavam a falar de fome e de frio na Europa. Havia cento e quarenta milhões de bocas famintas. Milhares de crianças morriam por falta de alimentos, milhões de homens erravam de terra para terra, assaltando e matando nas encruzilhadas da noite outros homens, por um simples naco de pão. A miséria instalara-se na Europa, mais negra e mais densa ainda do que fora sempre e só ela parecia dominar tudo, inexoravelmente.

Os operários liam ou ouviam falar daquilo e um ou outro soprava, cansado: “Nunca mais saímos disto!” Também a vida deles piorara e se enchera de mais restrições, de mais renúncias, que cada vez era maior a desigualdade entre o que recebiam e o que pagavam para viver. Mas, no âmago da alma, quase todos eles tinham como que o pressentimento de que, um dia, sairiam daquilo. E falavam assim não só pela acre volúpia de se contrariar a eles próprios, mas para não parecerem, perante eles próprios e perante os outros, tão ingénuos como Pedro dizia que eles eram.

Nos princípios de Dezembro caíra a primeira camada de neve. De manhã, ao ver a serra toda embranquecida para os lados do Sanatório, Horácio, enquanto marchava para a fábrica, ia pensando nos homens, nas mulheres e nas crianças que, nos países da Europa onde houvera guerra, não tinham cobertores. E apiedava-se deles. Via-os esfarrapados, os pais abraçados aos filhos e todos a tremerem com frio debaixo daquelas ruínas cobertas de neve de que os jornais publicavam as fotografias. E cada vez sentia mais piedade. Mas, depois, começou a pensar no Albergue, no Marreta, na Júlia, quando empenhara as suas mantas, naquele homem que ele havia encontrado morto, uma noite, na estrada da Aldeia do Carvalho e o seu estado de espírito modificou-se.

A neve continuou. Dos beirais dependuravam-se níveos berloques, níveas estavam as ruelas habitualmente escuras, tudo branco, tudo branco, menos as portas dos casebres, que pareciam entradas para negras covas. Os fios telegráficos e telefónicos tinham engrossado com o gelo, grossos como cajados de pastor, grossos como sogas, e já nem pardais, nem piscos, nem outras asas neles pousavam. Os velhos inválidos haviam desaparecido também do jardim público, expulsos pela neve que cobria toda a terra e dava às árvores da praça fantásticas expressões. Era a tremer de frio, dentes batendo nos dentes, que Horácio e Idalina se levantavam logo que cada dia apontava e se vestiam e abalavam estrada abaixo, cheia de vultos negros contrastando com a brancura que pisavam e dirigindo-se, como eles, para as fábricas.

Nos planaltos da serra a neve subira já muitos palmos e, então, como todos os anos, começaram a passar pela Covilhã rapazes e raparigas, filhos de gente endinheirada, que vinham de Lisboa fazer esqui. Traziam, por mor do tempo, muitos abafos, grossas blusas, luvas e gorros de lã tudo ainda mais bonito do que os abrigos que se fabricavam ali. Quedavam-se, alguns momentos, no Pelourinho, enquanto se organizavam os transportes. Os motoristas olhavam-nos com contentamento, esperando que eles fossem seus clientes. Os industriais, o presidente da Câmara, outras figuras gradas da cidade ficavam contentes também, porque aquelas presenças contribuíam para o prestígio turístico da Covilhã. Por fim, os rapazes e as raparigas partiam para o alto da serra, para o Hotel das Penhas da Saúde. E lá, durante as manhãs e as tardes, eles corriam, com seus esquis, sobre as longas superfícies nevadas, sobre os longos declives brancos, volteia aqui, tomba ali, ergue acolá, e os seus alegres risos iam quebrando o gelado silêncio da montanha.

Quando, fatigados, volviam, ao hotel, à longa varanda envidraçada e aquecida, onde começavam ou prosseguiam os derriços e se discutiam as corridas feitas, alguns deles, que haviam andado pela Suíça e Pirenéus, olhavam as brancas solidões que rodeavam o edifício, a neve que cobria tudo, desde a montanha à cidade que lhes ficava aos pés e lamentavam que ela não fosse ainda mais espessa, não fosse ainda suficiente para se praticar o verdadeiro esqui. As raparigas que nunca tinham ido ao estrangeiro, acendiam os seus cigarros e ficavam-se a escutá-los, com admiração pelo que eles contavam de Super-Bagnères e Chamonix.

À noite, visto de longe, o hotel, com suas luzes, dir-se-ia um enigmático navio encalhado nos ermos polares. Parecia dar à montanha um silêncio diferente do seu silêncio habitual, como se houvesse lá um apelo sufocado e, ao mesmo tempo, uma vida autónoma de tudo o mais. Mas, visto de perto, tudo se modificava. O hotel integrava-se no todo, fazendo a luz das suas janelas brilhar, cá fora, rectângulos de neve e as fantasiosas cristalizações que se dependuravam do telhado. Lá dentro, os rapazes e as raparigas dançavam.

Um e outro dia chegavam novos grupos. Se atravessavam a Covilhã depois de encerradas as fábricas, Pedro, ao vê-los passar, sentia sempre desejos de partir com eles. Uma tarde, decidiu ir, no sábado seguinte, dormir na casa do Trigo que era o guia das Penhas da Saúde e lá passar o domingo, como fizera algumas vezes, nos anos anteriores. Encontrando Horácio, instou para que o acompanhasse. Que valia a pena ver aquilo, que seria um dia bem gozado, e que o Trigo, por uns patacos, lhes daria cama e comida.

— Na! — escusou-se Horácio. — Ir romper as solas por aí acima e ainda gastar dinheiro, para ver os outros divertirem-se, que graça, tem.?

Pedro voltou a insistir. Que também ele podia aprender esqui, se quisesse. Não era coisa do outro mundo e o Trigo arranjar-lhe-ia o necessário.

Horácio riu-se dele:

— Eu sei... Tu queres ir por causa das raparigas. Mas olha lá: tu pensas que elas te ligam alguma? Ricas como são, estão à tua espera...

Pedro tardou a responder.

— Não fosse o raio do trabalho, que me tira o tempo — disse, depois — e tu ias ver! Pudesse eu passar lá os dias como os que vêm de Lisboa ou como os filhos dos industriais! Não sou um homem igual aos outros? O mal é que só posso lá ir aos domingos. E os outros ficam com toda a semana livre. Ainda o ano passado uma me deu sorte. Era de se lhe tirar o chapéu! Bonita, o que se chama bonita, não digo que fosse, mas tinha uns olhos que faziam perder a cabeça a um homem e uma boca que apetecia morder mais do que a uma cereja espanhola. Aquilo só não foi adiante porque eu não pude passar lá a semana. E quando voltei, no outro domingo, já ela tinha partido...

Horácio continuava a rir-se.

— Vem comigo! — repetiu Pedro.—A gente até se esquece das tristezas que temos aqui. Pensa até sábado, e decide-te!

Passaram os dias e, no sábado à tarde, Horácio soubera que Marreta piorara. Ele fora logo ao Albergue e Marreta mal podia falar. Pedro abalara sozinho.

No domingo, Marreta parecia haver melhorado e sorria-se do “susto que —dizia— tinha visto na cara dos camaradas”.

Uma das irmãs de caridade havia pedido a Horácio que não demorasse muito ali e dito a Marreta que falasse pouco. Mas este desobedecia-lhe e quanto mais Horácio se calava, mais ele ia tagarelando. Como em todos os outros domingos, voltava à sua obsessão:

— E, então, lá por fora, o que se diz? Agora nem me deixam ler jornais...

— Parece que cada vez tudo está pior...

— Pior? Qual o quê! Deixa-os lá falar... Pode estar pior agora, mas tenho a certeza de que há-de melhorar... Tu não vês que todo o) mundo está tremido e que isto não pode manter-se assim?... Eu estou aqui encafuado, mas vejo as coisas perfeitamente... Um dia, todos os homens hão-de vir a ser como irmãos e não haverá mais uns que têm tudo e outros: que não têm coisa alguma. Haverá fartura para todos. Podes estar certo disso, digo-to eu! E tamlbém hão-de acabar as guerras, assim que os homens acabarem com as fronteiras. A Humanidade ficará unida. Ninguém me acredita, eu bem sei, mas, um dia, as guerras hão-de acabar...

Ao vê-lo agitado, ofegante, Horácio pediu-lhe:

— Não fale tanto, que pode fazer-lhe mal...

Marreta teve um gesto de indiferença. E continuou a vaticinar o futuro, com ardor crescente, como se tudo dependesse das suas palavras, da sua crença, até que a freira tornou à porta:

— Estão aqui mais dois amigos seus... Marreta, então, calou-se e ficou à espera, mas a

freira não deixou Tramagal e Dagoberto entrarem enquanto Horácio não saiu.

A horta do Albergue estava coberta de neve, vergando-se as folhas das couves sob o peso branco que suportavam. Nos corredores, os inválidos aquietavam-se nos bancos, muito encolhidos, muito embrulhados em trapos, em velhos casacos e sobretudos rotos, quase tão velhos como eles.

Ao chegar a casa, Horácio encontrou a mulher sentada, com a Josefa à beira do lume.

— Que tal vai ele? — perguntou-lhe Idalina.

Parece que está melhor...

A Josefa não conhecia Marreta e voltara à conversa que a chegada de Horácio interrompera. Enquanto a ouvia, Idalina olhava, com atenção diferente da dos outros dias, para o filho que ela tinha adormecido nos braços. Dir-se-ia não ser o mesmo que viera do Lactário, meses antes. Perdera a cor das faces e estava agora magrito, muito pálido e sempre ludro. Só a barriga lhe crescera. Mas a Josefa parecia não estranhar aquilo. O seu filho era como os outros do bairro e já se sabia que quando as crianças, que haviam estado no Lactário, voltavam para a miséria dos pais, ficavam quase todas assim.

Logo que a Josefa saiu, Idalina pensou revelar a Horácio as suas dúvidas. Mas conteve-se. E só mais tarde, à hora de se deitarem e depois de ter arrastado para junto da cama o berço do Joanico, ela disse ao marido:

Ando desconfiada de que estou outra vez. . .

Marreta faleceu na terça-feira. Horácio soube a notícia quando atravessava a Praça da República, vindo da fábrica, e caminhou direito ao Albergue. Lá, parecia que se não havia passado coisa alguma. Só a irmã de caridade, que veio abrir-lhe a porta e o acompanhou no corredor, falava mais baixo do que habitualmente.

Os velhos continuavam sentados nas galerias, muito encolhidos nos seus farrapos, como se não se tivessem movido desde a última vez que Horácio viera ali.

A freira parou à entrada da capela mortuária do Albergue. Marreta estava estendido lá ao fundo, sob um lençol branco. Algumas velas ardiam em volta dele e de um crucifixo. Horácio ia a entrar, mas, subitamente, deteve-se. Tornou a ensaiar um passo e tornou a deter-se. A irmã de caridade murmurava uma oração. Horácio quedou-se alguns segundos a olhar, depois voltou a cabeça e tossiu com receio de que as palavras não lhe passassem da garganta.

— Venho amanhã ao enterro... — disse, para dizer alguma coisa.

A freira tornou a acompanhá-lo. Ia, de novo, no corredor, quando o Paredes surgiu ao seu lado:

— Então o nosso Marreta lá se foi?... Horácio continuava a ter dificuldade em falar:

— E verdade...

— Para ele foi melhor assim. Em vez de estar para aí a padecer...

Nenhum deles disse mais nada.

O funeral fez-se no dia seguinte, ao fim da tarde, como era costume ali, para que o pessoal das fábridas pudesse acompanhar os mortos ao cemitério.

Vieram operários da Aldeia do Carvalho e muitos da Covilhã juntaram-se, também, à porta do Albergue. Marreta não pertencia a irmandade alguma, mas duas das existentes, por simpatia para com ele, haviam decidido tomar parte no seu enterro. Apareceram, porém, Ildefonso e outros mais a afirmar que, não sendo Marreta religioso, não devia ter acompanhamento de confrarias. Discussões desatadas, teima este, teima aquele, Boca Negra mostrava-se, entre todos, o mais ferrenho:

— Não era religioso? Ora essa! E, então, no Albergue? Aquilo não está cheio de freiras e de rezas?

Ildefonso encolheu os ombros:

— Que ia ele fazer?

Embora a maioria fosse crente, acabou por se deixar vencer: o funeral não levaria irmandades. Mas, horas depois, o Boca Negra arrependia-se de ter transigido. Sentia-se em luta com a sua consciência e parecia-lhe que ele próprio nunca mais teria repouso se deixasse ir Marreta, esse amigo que ele estimava tanto, assim abandonado para a sepultura. Fala a um, fala a outro, convence este e aquele, conseguiu pôr, à hora do funeral, a Irmandade das Almas em frente do Albergue.

Caía a noite quando o esquife transpôs o portão, conduzido por quatro velhos. E, atrás destes, outros surgiram, com a sua fardeta e o seu boné de albergados — um exército de inválidos que acompanharia, conforme era da regra, o morto até à beira da cova.

Metido na carreta o caixão, o cortejo formou-se rapidamente. À frente, marchava a Irmandade das Almas, os Irmãos levando opas vermelhas e velas acesas, enquanto outros transportavam! as bandeiras da confraria pobres oleografias religiosas emolduradas na extremidade de varas. Junto do esquife caminhava o padre e o acólito e, atrás, numa mancha negra, os homens das fábricas.

À porta do Albergue, aqueles inválidos que, tolhidos de reumatismo ou de velhice, já não tinham forças para caminhar, viam partir, em silêncio, pelo mesmo caminho por onde os levariam um dia, com menor acompanhamento, o companheiro que não voltaria mais.

O cemitério ficava num alto e o préstito começou a serpejar pelas ruelas da Covilhã, enquanto à sua retaguarda se cerrava, vagarosamente, o portão do Albergue.

Funeral igual a tantos, o habitante da cidade, se assomava à porta ou à janela ou o topava na rua, avaliava logo da sua falta de importância, pois levando, embora, muito povo, tinha uma só Irmandade e nenhum automóvel. Era certo que, de quando em quando, apareciam, na boca das ruas transversais, alguns carros. Mas nenhum deles vinha para acompanhar o morto. Todos paravam, aguardando que o trânsito ficasse livre, e, depois, prosseguiam o seu caminho. A certa altura, o automóvel de Azevedo de Sousa surgiu, também, no flanco do cortejo. Entre os que o reconheceram, ninguém estranhou vê-lo ali, pois antigamente, quando algum operário falecia, o patrão acompanhava-o até ao cemitério e, ainda hoje, havia industriais que fariam isso.

Com suas escuras vestes domingueiras, algumas lustrosas de tão velhas, outras muito apertadas sobre os corpos que tinham alargado depois de elas haverem sido feitas, os homens que iam no cortejo continuavam a passar em frente do automóvel. Entretanto, lá dentro, Azevedo de Sousa impacientava-se. Há meia hora ainda estava ele mui tranquilo em casa, quando o seu novo sócio de Manteigas lhe telefonara sobre vultosa encomenda que recebera pouco antes. Era fabrico de centenas de contos e bastos lucros, mas havia dificuldade em obter lãs com a urgência requerida. Ele quisera adiar a conferência que o sócio lhe pedia. Mas, depois, recordara-se de que, se não fosse a Manteigas nesse dia, até sábado seguinte o automóvel não poderia circular, dado que as restrições na gasolina, durante a guerra estabelecidas, se mantinham ainda. E decidira-se, então, a ir e a volver nessa mesma noite. Agora, porém, vedavam-lhe o trânsito. Além da pressa que tinha, era sempre penoso a Azevedo de Sousa ver funerais, que lhe faziam lembrar a fragilidade da sua vida e a sua própria morte.

— Toca o “klaxon” e vê se passas... — ordenou ao motorista.

Mas o motorista, que era supersticioso, temia cortar procissões fúnebres com o carro e não obedeceu.

— Está quase no fim — disse, olhando para a cauda do préstito, que, do seu posto, ele via aproximar-se.

Azevedo de Sousa resignou-se. E, para melhor encher o tempo desagradável, perguntou de cá de trás, do assento onde ia:

— De quem será o enterro?

— É do Marreta — respondeu o motorista sem se voltar e com o tom de quem dizia palavras inúteis, pois toda a gente devia saber aquilo.

— Do Marreta... Do Marreta...

— Ele trabalhou muito tempo lá na fábrica... Era tecelão...

— Ah, já sei!—lembrou-se Azevedo de Sousa... Era um que tinha dois dentes que saíam da boca e que foi da antiga Casa do Povo... Não sabia que tinha morrido... Coitado! Há muito tempo que o não Via...

— Ele estava, há mais de um ano, no Albergue...

— Então foi por isso... Coitado!

Azevedo de Sousa recordava-se, agora, nitidamente, das discussões e enervamentos que tivera com Marreta, quando este e outros delegados da Casa do Povo dirigiam as greves e reivindicações, nos primeiros anos da República. Muitas vezes sentira mesmo ímpetos de lhe partir aqueles dois dentes e só para evitar maiores conflitos com os operários é que ele se mostrara sempre calmo, roendo em silêncio as cóleras que o entumesciam por dentro. Mas, agora, vinte e cinco anos passados, tudo isso lhe aparecia sem ressentimentos e ele sentia pena de Marreta, verdadeira pena, como se, com a morte deste, morresse também alguma coisa da vida dele, de quando ele era mais novo e mais saudável do que actualmente. Pensou que, estando ali, devia incorporar-se no préstito.

Quando a cauda do cortejo passou em frente do automóvel, Azevedo de Sousa ordenou ao motorista:

— Segue o funeral.

O motorista, que estava com a ideia de avançar para Manteigas, julgou não ter compreendido bem.

— O que diz ? Para seguir o funeral ?

— Sim. Segue o funeral.

O carro principiou a roncar ladeira acima, atrás dos últimos homens que fechavam o fúnebre agrupamento. Estes voltaram-se, reconheceram o industrial e continuaram a sua marcha.

O cemitério quedava-se próximo do centro da cidade, mas tão íngreme se apresentava o seu acesso, que o andamento do funeral se fazia lentamente. Ao cabo de cinco minutos, Azevedo de Sousa olhou o seu relógio. Eram quase seis horas. Por muito que corresse, só chegaria a Manteigas à hora do jantar. Depois, janta e não janta, conversa e não conversa, seriam dez horas. Dez horas, não, porque aquilo era complicado e não se resolveria assim de pé para a mão. Se estivesse despachado às onze, já seria muita sorte. E não estaria, de novo, na Covilhã, senão muito tarde...

O cortejo continuava a subir vagarosamente. Azevedo de Sousa sentia-se, agora, menos comovido com a morte de Marreta do que quando, momentos antes, tivera notícia dela. Mas custava-lhe, apesar disso, abandonar o funeral. Já agora acompanhá-lo-ia até à porta do cemitério. Não sairia do carro, porque a ele sempre custara ver enterrar alguém. Ao próprio jazigo que mandara construir para si e para a família, só fora no dia em que o mestre-de-obras o dera por concluído. Depois, nunca mais voltara lá.

Azevedo de Sousa pensou que não tinha vontade alguma de ir, naquela noite, a Manteigas. Estava frio, o sol dos dois últimos dias não havia ainda derretido toda a neve. O que lhe apetecia era meter-se em casa, que se encontrava aquecida, ler os jornais de Lisboa, que durante o dia não tivera tempo para o fazer, jogar, depois do jantar, às cartas com os cunhados seus vizinhos e, às onze horas, ir para a cama, como de costume. Isso, sim, seria bom e ele poderia seguir, tranquilo, até à porta do cemitério, pois a ideia, recém-nascida, de abandonar discretamente o funeral, dobrando para uma das ruas transversais e retomando o seu caminho, não o deixava bem com a consciência.

Azevedo de Sousa pôs-se a imaginar o que sucederia se ele não fosse, nesse dia, a Manteigas. O sócio, só por si, não era homem para resolver aquilo capazmente. Era um atadão e pouco esperto; por isso nunca passara da cepa torta. Falava muito, mas não tinha expediente. E aquilo metia grémios, o diabo! O mal era terem de dar uma resposta com urgência. Isso e aquelas malditas restrições na gasolina, que só permitiam a circulação de automóveis às quartas e aos sábados. Senão, ele iria lá no dia seguinte e tudo se resolveria. Mas, assim, se deixasse o caso para sábado, a encomenda podia ser dada a outra fábrica. E lá se iam, por água abaixo, muitos contos de réis que ele deixaria de ganhar. Pelo menos, uns cinquenta.

Azevedo de Sousa voltou a pensar no calor da sua casa e no frio e na escuridão que ele iria encontrar na estrada de Manteigas. E considerou que a tranquilidade e o conforto dessa noite seriam, caros por cinquenta contos.

O funeral deteve-se um momento e o automóvel também. Azevedo de Sousa tornou a lembrar-se de Marreta e da sua morte e de que ele próprio já estava velho para andanças por estradas desertas, numa noite fria de Inverno como aquela. Ele era, felizmente, rico e não tinha filhos — pensou; ele fora, além disso, dos que mais ganharam com a guerra, porque a sua fábrica era uma das maiores da Covilhã e os preços tabelados, ao contrário do que, a princípio, se supusera, haviam dado muito dinheiro; ele não teria de pedir esmola mesmo se perdesse aquela encomenda, em Manteigas. Por outro lado, a vida era curta; de um! dia para o outro, estava-se mesmo a ver, um homem ia-se embora, como o Marreta. Ora ele, Azevedo de Sousa, trabalhara toda a sua vida para ser alguém e, agora, tinha direito de ficar em casa numa noite daquelas, mesmo que isso lhe custasse cinquenta contos. De mais a mais, ele devia ir até à porta do cemitério, pois, há pouco, quando evocava as suas discussões com Marreta e os outros delegados da Casa do Povo, lembrara-se de que, pelo menos uma vez, ele não tinha razão, como verificara mais tarde; e, se conseguira impor-se, fora somente porque os operários e o próprio Marreta dependiam dele.

O préstito mortuário recomeçou a sua ascensão na calçada. Quando o automóvel voltou também a mover-se, Azevedo de Sousa calculou que, com marcha assim tão lenta, demorariam, pelo menos, ainda uns quinze minutos a chegar à porta do cemitério. Parecia impossível que, havendo tanto frio, aquela gente não andasse mais depressa! Voltou a olhar o relógio: eram quase sete horas. A existência do cadáver, que ia lá adiante, parecia-lhe, agora, um impecilho para a sua livre decisão.

Azevedo de Sousa pensou que já várias pessoas o tinham visto no funeral. Se se retirasse agora, já ninguém poderia dizer que ele não havia comparecido no enterro de um seu antigo operário. E, além disso, há muito tempo já que Marreta não trabalhava na sua fábrica. Ele, a bem ver, não tinha obrigação de ir ali.

Com pena de não acompanhar o morto até à porta do cemitério e um certo peso na consciência, Azevedo de Sousa, na primeira travessa encontrada, disse ao motorista:

— Volta aí...

Com as sucessivas ordens e contra-ordens, o motorista julgou, mais uma vez, não ter ouvido bem:

— Volto aqui ?

—Sim. Para Manteigas.

O automóvel desapareceu. E o cortejo continuou a subir, vagarosamente, para o cemitério.

Tramagal sentia, de quando em quando, as suas pernas fraquejarem. Não era cansaço, pois ele, alguns domingos, antes de ter vendido a escopeta, batia lombas e encostas à caça de perdizes e de coelhos, sem nunca se fatigar. Aquilo provinha-lhe do mesmo mal que ele sentia na garganta quando pensava que nunca mais veria Marreta. Ao passarem por uma taberna, Tramagal separou-se do cortejo, entrou e bebeu, em dois tragos apenas, um decilitro de aguardente. Saiu a correr e a soprar fumo, para se incluir, de novo, no préstito. iJá se via, lá em cima, o hospital, que ficava ao lado do cemitério.

A Irmandade das Almas atravessou o portão e, atrás da Irmandade, o esquife, os inválidos fardados e os demais homens. Todos meteram por entre os sumptuosos mausoléus dos industriais e de outras gentes ricas da cidade e, lá ao fundo, junto de pequena cova, que mal se divisava à luz das velas dos irmãos da confraria e da lanterna do coveiro, tudo decorreu rapidamente.

Os homens foram saindo em grupos, uns silenciosos, outros conversando em voz baixa. Já na Rua Rui Paleiro, Pedro, que vinha mais atrás, juntou-se a Horácio. A princípio, Pedro não disse nada. Depois, compreendendo, pela mudez do companheiro, que este continuava a pensar em Marreta, comentou:

— Era um bom tipo. Tinha aquelas manias, mas era um bom tipo.

Horácio ia a responder-lhe, mas conteve-se, porque Manuel da Bouça se cruzava com eles e os saudava.

Pedro continuou:

— Nunca vi ninguém que andasse tanto na lua... Às vezes, até me fazia rir o que ele me dizia com um ar muito sério. Mas, mesmo assim, eu gostava dele...

Horácio interrompeu-o, bruscamente:

— Cala-te!

— Calo-me, porquê? Ora essa!

— Cala-te, peço-te!

Pedro quedou-se a olhá-lo. Mas já Horácio lhe voltava as costas, abandonando-o:

— Boa noite... Passa bem!

Agastado, Pedro hesitou um instante. Depois, fez com os ombros, um movimento de indiferença e somou-se aos grupos que desciam.

Horácio encostara-se a um. dos prédios da rua e, enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Manuel da Bouça arrastar-se calçada acima, por entre a multidão que vinha do cemitério. Também aquela imagem do velho céptico o molestou. E, então, pôs-se a olhar para os outros homens,vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho, e da Covilhã, que ele conhecia da hora da saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as ideias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um. deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez se apagavam mais, nos seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Bouça e cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.

Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe:

— No sábado à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Hildefonso. Precisamos de continuar... Compreendes? Precisamos de continuar... Não faltes!

— Lá irei — respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.

Ao chegarem ao começo da Rua Azedo Gneco, onde ele vivia, Horácio despediu-se. Mesmo ao andar sozinho na viela solitária, parecia-lhe que não ia sozinho.

Quando chegou a casa, Idalina entoava uma cantiga monótona, para adormecer o filho. Mas o Joanico, ao ouvir ranger a porta e ao vê-lo entrar, abrira muito os olhos e sorrira-lhe.

Idalina estava com uma expressão triste e perguntou-lhe.

— Então? Tinha muita gente?

— Tinha.

O Joanico continuava a sorrir-lhe. Ele sentiu um súbito desejo de pegar no filho e de o acariciar. Vencendo os protestos de Idalina, agarrou no Joanico, levantou-o do berço até à altura dos seus olhos e beijou-o:

— Seu maroto, que não quer dormir! — E voltando-se para a mulher: — Vamos a ver se, na Páscoa, podemos ir a Manteigas, mostrar o pequeno aos avós...

 

                                                                               Ferreira de Castro 

 

 

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