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A LEI DA PAIXÃO / Margo Maguire
A LEI DA PAIXÃO / Margo Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A LEI DA PAIXÃO

 

                       Norte da Inglaterra... Outono, 1423

Ao avistar o Castelo Clairmont, Robert Dryden examinou a fortaleza de pedra iluminada pelos primeiros raios da manhã e, novamente, abominou o dia em que nasceu. Insultou a sucessão de fatos acometidos em sua vida os quais ainda o assombravam.

Junto com a perda da visão de um olho, tempos atrás, também perdera a profunda perspicácia que lhe era peculiar desde os tempos da adolescência. Portanto, tinha dificuldade de calcular em que distância encontrava-se o castelo. Mas confiava na capacidade de seu companheiro, Nicholas Becker, quando ele dissera que estavam a apenas dois quilômetros dos portões de Clairmont.

Ambos haviam passado a última noite na flo­resta, planejando alcançar o castelo pela manhã, depois de ter a oportunidade de se banharem e colocarem suas melhores roupas.

Tudo isso, apenas, para ir ao encontro da noiva de Robert...

Maldita mulher, Robert blasfemou em pensamen­to. Não queria se casar. Nem tinha pretensões de acrescentar mais terras à sua já imensa proprieda­de, tampouco desejava uma esposa cordata em sua vida. Definitivamente, não precisava de nada disso.

Não compreendia por que seu amigo, Wolf Colston, o duque de Carlisle, acreditava que Robert era a pessoa ideal para realizar as vontades do conselho. Wolf e a esposa também não entendiam a preferência de Robert por uma vida solitária.

Longos e dolorosos meses se passaram até que ele se recuperasse dos ferimentos adquiridos du­rante a época em que ficara preso nas masmorras do castelo em Windermere. Durante aquele pe­ríodo, Robert não fizera planos para o futuro, mui­to menos demonstrara qualquer anseio por uma mulher. Na verdade, havia revelado uma total au­sência de interesse.

Era um homem acostumado ao isolamento. A agonia que sofrerá, abandonado nas cavernas es­curas do calabouço de Windermere, o tornara frá­gil e indefeso, impotente contra a mutilação. Na verdade, estivera à beira da morte...

Robert afastou da mente aquelas lembranças dolorosas. Imagens aterrorizantes o perseguiam à luz do dia e o torturavam a cada noite enquanto tentava conciliar o sono.

Perdera o prazer de viver, sentia-se desiludido e inteiramente só.

Suas virtudes, qualidades e determinação se perderam nas trevas. O que lhe restara? Nenhu­ma força para lutar pelo país. E, com certeza, nada lhe restava para oferecer a uma mulher.

Aliás, lady Marguerite Bradley fugiria horroriza­da ao ver o rosto deformado de Robert. Afinal, era o que todos faziam, exceto seus amigos mais íntimos.

Ajeitou com cuidado o pedaço de tecido que lhe cobria o olho esquerdo. Era um tolo errante, con­cluiu, agastado. Viúvas não ficavam ansiosas para se casar novamente... a menos que houvesse uma boa razão. Ele duvidava que conseguisse prover bons motivos à viúva do conde de Clairmont. Ver­dade seja dita, o único beneficiário seria...

Um grito de mulher atravessou a silenciosa manhã. Agindo por puro reflexo, um aspecto que não sabia ainda existir em si mesmo, Robert virou-se e embre­nhou-se na floresta, seguindo na direção da voz.

De maneira veloz, vasculhou o território com a agilidade de um cavaleiro bem treinado, possuidor de talentos extraordinários.

O coração batia em disparada, mas os músculos das pernas de Robert moviam-se com precisão.

Embora usasse apenas a cota de malha de ferro, ele estava desprovido da armadura adequada. No entanto, carregara consigo o arco e um punhado de flechas, na esperança de caçar algumas lebres para oferecer à cozinha de Clairmont.

Naquele momento, seu único olho seria testado em uma situação de vida e morte. Não se tratava de um detalhe com o qual se preocupara, já que havia praticado arco e flecha em Windermere e nem sequer uma vez atirara por satisfação.

Desesperada, Samantha Tudor agarrava-se aos galhos da árvore, balançando as pernas na ten­tativa de ganhar impulso e fugir do furioso javali.

O imenso porco selvagem a surpreendera tão logo ela adentrara à floresta de Clairmont. Estando de­sarmada, Samantha fora obrigada a correr na di­reção do carvalho mais próximo e agarrar-se ao pri­meiro galho que viu na sua frente, antes que as gigantescas presas do animal a devorassem.

O pavor deu forças às mãos de Samantha. Mas as pesadas saias a impediam de impulsionar as pernas em direção ao galho mais alto. Ela olhou para baixo e divisou o enfurecido javali com os dentes afiados à mostra e as narinas dilatadas.

Sabia que a morte era iminente. Sentia que a força de suas mãos enfraqueciam, os dedos sua­vam dificultando-lhe a tarefa de segurar-se na­quele galho. Começava a escorregar...

Pelo que havia de mais sagrado, a jovem estava caindo!

Robert esticou o arco e lançou a primeira fle­cha... depois a segunda. Sentiu o coração se aper­tar. Com sua visão precária, como poderia estar certo de que a seta encontraria o alvo e não ma­taria a mulher?

Como saber se a flecha sequer passaria perto do animal?

O repentino uivo da enorme criatura atestou a precisão da mira.

Porém, Robert não parou para vangloriar-se. Jo­gou-se no chão enquanto o javali urrava de dor e fúria. Folhas secas e poeira voavam pelo ar, e Robert pôde sentir o pesado animal tombar no solo. O tecido amarelo flutuou e caiu. Uma poça de sangue espalhou-se pela terra. Em seguida, os movimentos cessaram.

Cauteloso, Robert aproximou-se para ver as con­dições do animal, sob os raios da manhã que pe­netravam entre os galhos. Mantinha uma flecha em posição.

Pensou ter ouvido um ruído. Um gemido suave e feminino. Um movimento entre as folhas. O te­cido amarelo se mexeu.

Samantha encarou o homem que a tinha socorrido e piscou algumas vezes para ajustar a vista à forte luminosidade. Embora houvesse batido a cabeça e estivesse um pouco zonza, reparou que ele era alto e musculoso. O físico avantajado assemelhava-se ao de um cavaleiro habituado a batalhas.

Quando Samantha fez menção de se afastar do monstruoso javali, o cavaleiro atirou outra flecha diretamente entre os olhos do animal.

Agora mais satisfeito, o homem fitou-a, reve­lando o rosto inteiro.

Ficou surpresa ao notar o tapa-olho negro, mas admirou os traços fortes da fisionomia. As feições másculas acentuadas, os lábios carnudos, e o nariz anguloso. Havia uma cicatriz na testa. As sobran­celhas grossas e pretas davam-lhe um ar sombrio. O olho descoberto, de um azul como nunca vira igual, de tão brilhante, traduzia desconfiança. Os cabelos negros, longos e em desalinho, possuíam alguns fios prateados que cintilavam sob a luz do sol como lâminas afiadas.

Um homem perigoso, Samantha deduziu. Dife­rente de todos que ela já conhecera. A poderosa presença causava-lhe arrepios pelo corpo e a in­capacitava de agir com cuidado naquela situação.

Não devia estar a sós com nenhum homem, em especial com um cavaleiro solitário que poderia até ser um mercenário. Mas a cabeça latejava e a visão tornava-se turva. Dadas as circunstâncias, a habi­lidade de proteger-se estava além de suas forças.

Robert ajoelhou-se ao lado de Samantha. Ela tentava se mover, mas seria preciso verificar pos­síveis ferimentos antes de ajudá-la a se levantar.

— Quieta, mulher — ele ordenou.

A jovem o ignorou e sentou-se. Robert notou a pulsação acelerada e o rasgo no vestido amarelo causado pelos dentes do javali. Um machucado entre o ombro e o braço começava a escurecer. A pele alva havia sido arranhada em diagonal.

Ela poderia ter morrido.

Fascinado, Robert não conseguiu desviar o olhar quando a mulher jogou os cabelos avermelhados para trás. Os olhos insolentes eram tão azuis quanto o anoitecer. O rosto delicado, lábios ru­bros... Mesmo depois de ter passado por tanto perigo ela conseguia manter, naquele momento, a aparência de uma criança traquinas, embora fosse evidente que era adulta.

Na realidade, era linda. Robert ateve-se outra vez ao ferimento.

Não parecia profundo, tampouco deixaria cica­triz acima dos seios perfeitos. Ele abandonou a evidência de tais atributos e pegou uma das mãos machucadas a fim de examiná-la. O ato em si foi extremamente sensual. Robert podia sentir o calor fluir através do toque.

Aflita, a mulher recolheu a mão, como se a hou­vesse queimado. O estranho efeito daquele contato físico o incomodou. Desde sua captura, jamais se sentira tão perturbado por uma mulher.

E a sensação, além de indefinida, não era nada agradável.

— Diolch — a jovem murmurou em galés nativo. — Obrigada pela sua ajuda, senhor cavaleiro. — Depois de respirar fundo, sorriu e voltou a falar em inglês: — Pela assistência. Sem sua ajuda, eu...

— Poderia ter morrido.

A voz grave do cavaleiro pareceu despertar uma sensação desconhecida em Samantha. Não conse­guia discernir se o repentino tremor advinha do acidente que havia sofrido ou da proximidade da­quele homem.

— Por que veio sozinha à floresta? — Robert indagou. — Onde está sua escolta?

Samantha evitou o olhar penetrante. Sabia ser tolice afastar-se tanto do castelo, mas não pôde resistir à tentadora liberdade. Em uma semana, seria confinada no Convento de St. Ann e toda aquela inocente diversão acabaria.

Na verdade, ela se tornaria uma pequena escrava da abadessa, uma vez que o dote que seu irmão conseguira juntar consistia em uma pobre quantia.

— Eu estava em Clairmont, senhor — Samantha explicou. — A floresta não me pareceu tão lon­ge, nem tão perigosa...

— Uma total sandice — ele murmurou. Contrário ao tom raivoso, o semblante de Robert pareceu preocupado. Com extrema gentileza, ele deslizou as mãos sobre os tornozelos e pés de Samantha, avaliando, ela supôs, algum ferimento que a impedisse de andar.

Incomodada ante as sensações causadas por aque­las másculas e competentes mãos, ela esquivou-se e ergueu o braço. Logo, sentiu a ardência do arranhão.

— Não sou nenhuma maluca, senhor — retru­cou, indignada. — Só não estou familiarizada com o terreno e...

— Poupe-me de tantas explicações — o cavaleiro rebateu. — Consegue ficar em pé?

— Não. Sim! Talvez... — Samantha balbuciou, confusa diante da súbita hostilidade, embora não esperasse outra coisa de um saxão.

Antes que ela pudesse protestar, o cavaleiro lan­çou-lhe um olhar exasperado e a tomou nos braços, como se Samantha fosse uma pluma.

Fitou o animal morto e, sem pronunciar uma palavra, caminhou pela floresta.

— Ponha-me no chão, senhor! — exclamou, pasma ante as atitudes contraditórias daquele homem.

O tom de voz soava grosseiro e, no, entanto, ele a carregava tal qual um bem precioso.

— Não vai me transportar até o Castelo de Clairmont!

— É verdade — ele concordou, enquanto andava.

De súbito, Samantha se viu dividida entre a gra­tidão e o preconceito. Por várias semanas estivera na companhia dos amigos saxões de seu irmão e achara a maioria deles arrogante e esnobe. Eram também rudes e talvez um tanto cruéis para com a rústica galesa que os acompanhara.

Entretanto, aquele saxão a resgatara sem fazer sequer uma pergunta, além de tratá-la com gen­tileza. Era de estarrecer.

— Como se chama, senhor cavaleiro? — ela per­guntou, sem conter a curiosidade. — Quero saber seu nome para agradecer-lhe de forma adequada.

— Robert Dryden. — E, após uma pausa, acres­centou: — Conde de Alldale.

Ele recebera o título e as terras do rei Henry V, por seu longo e fiel serviço na França. Mas Henry falecera havia cerca de um ano, e seu filho, herdeiro do trono, tinha apenas dois anos de idade. A rainha Catherine residia em Londres com o pequeno rei Henry, graças à boa vontade do conselho real. En­quanto isso, o bispo Beauford e os duques de Gloucester e Bedford empreendiam uma guerra silen­ciosa porém mortal entre si, pela disputa de poder.

Tratava-se de um combate, o qual Robert Dryden tencionava evitar. Talvez por esse motivo Wolf Colston o convencera a ir a Clairmont e cortejar a viúva. Clairmont estava localizada ao norte do país, muito distante da efervescente Londres.

— Eu lhe agradeço mais uma vez, lorde Alldale. — Samantha sorriu e beijou o rosto de Robert.

Dryden quase a derrubou. Os lábios eram ma­cios em contato com sua pele. A essência de flores silvestres invadia-lhe os sentidos.

De repente, ele não sabia ao certo se as batidas aceleradas do coração eram resultado do esforço em carregá-la ou pelo beijo recebido.

— Sou Samantha verch Marudedd — ela se apresentou.

— Está longe de Gales, não? — Robert perguntou quando atingiram a parte mais densa da floresta.

Reconheceu o forte sotaque galés ao escutá-la pronunciar o nome, assim como a referência ao pai, Marudedd. O vestido bem moldado e a maciez do tecido indicavam a origem nobre de Samantha verch Marudedd.

A galesa achava-se tão digna quanto a situação permitia. No entanto, emanava uma fascinante vulnerabilidade.

Lady Samantha, infelizmente, incitava o inte­resse de Robert como ninguém jamais o fizera durante anos.

— Vim de Londres, milorde — Samantha in­formou, tomando cuidado para não ofender o con­de. — Cheguei recentemente a Clairmont, com meu irmão.

A declaração se perdeu no silêncio da floresta.

Robert continuou a caminhada até o local onde seu cavalo e Nicholas, quase cochilando sobre a relva, encontravam-se. Quanto mais cedo a devol­vesse a Clairmont, melhor seria.

— Pode me colocar no chão, milorde — Saman­tha pediu. — Estou certa de que consigo andar.

Disposto a impor certa distância, Robert atendeu-a.

Ainda atordoada devido à queda, lady Samant­ha tentou dar um passo, mas perdeu o equilíbrio. Robert abraçou-a pela cintura e, resmungando, guiou-a pelo terreno acidentado.

A atitude cavalheiresca do lorde foi motivo de espanto, pois Samantha não estava habituada a galanteios masculinos. Nunca se imaginara capaz de sentir emoções turbulentas. O poderoso braço saxão ao redor de seu corpo não podia causar ta­manha perturbação. Era ridículo!

De fato, não tinha o menor conhecimento acerca dos homens e seus hábitos. Tampouco tinha ca­pacidade para imaginar aquele tipo de contato entre um homem e uma mulher. Afinal, ninguém jamais mostrara interesse por ela. E, em seus de­zenove anos, Samantha nunca chegara tão perto do sexo oposto.

Não até aquele momento.

— Por Deus, Robert! — uma voz ecoou através da floresta. — Onde esteve?

— A caça de uma tola errante.

— Não gostei disso — Samantha resmungou. Na pequena clareira, Robert e Samantha encontram um homem selando seu cavalo. Com lon­gos cabelos loiros e belos traços, o companheiro de lorde Alldale era o homem mais atraente que Samantha já vira. E avistara muitos, tanto em Gales quanto na Inglaterra, mas nenhum deles sequer valia a chance de uma segunda opinião. Ela nunca atraíra a atenção dos rapazes, exceto alguns amigos saxônios do irmão que ousaram certas intimidadas, as quais Samantha declinara na hora.

— Nicholas Becker, a seu dispor, milady. — O homem sorriu, mostrando os dentes perfeitos. Em seguida, curvou-se, respeitoso.

Relutante, Robert apresentou-a:

— Lady Samantha verch Marudedd.

A expressão de agrado no rosto de Samantha foi evidente. Robert também não conteve a inveja que tinha da boa aparência de Nick. Jamais con­seguira competir com o sucesso de Nicholas Be­cker entre as damas, mesmo antes de adquirir tantas cicatrizes. E a amizade de longos anos so­brepujara qualquer rivalidade masculina.

— Do Castelo Clairmont — Robert completou.

— As condições em Clairmont estão insatisfa­tórias? — Nicholas indagou, referindo-se à apa­rência trágica de Samantha.

— Decerto que não — ela respondeu. Para um saxão, Nicholas Becker pecava por excesso de ca­risma. — Não me acidentei em Clairmont. Um javali me perseguiu pela floresta e Sua Senhoria me salvou.

— Verdade? — Nick franziu o cenho.

— Ele flechou a fera bem no coração — Sa­mantha anunciou, admirada. Tomando fôlego, prosseguiu: — E também entre os olhos.

Nick encarou Robert.

— Pensei que sua visão ainda estivesse prejudicada.

— Foi pura sorte.

— Nas duas vezes?! — Nicholas perguntou admirado.

— Sim... — Robert abaixou-se e pegou a sela. Jogou-a no dorso do cavalo. — Teremos javali as­sado em Clairmont para jantar.

Dois cavalos para três pessoas. Foi difícil, mas Nicholas persuadira a dama a dividir com ele a montaria. Robert blasfemava em silêncio enquan­to Nick e Samantha conversavam.

Mantinha-se calado. Lady Samantha verch Ma­rudedd não significava nada para ele.

Pouco tempo depois, atravessaram os portões do castelo e encontraram Clairmont em plena agi­tação. O panorama lembrava Windermere, onde a próspera família de Wolf Colston agora residia.

Talvez o casamento e a administração de Clairmont não representassem um preço oneroso, Robert ponde­rou consigo. Afinal, Wolf e a esposa pareciam contentes. Com a adorável filha, Eleanor, e outro bebê a caminho, Wolf e Kit estavam, na verdade, felizes. Deliciados diante da vida que estavam usufruindo, aliás.

Contudo, tal felicidade estava além das expec­tativas de Robert.

Quando atingiram a entrada principal do cas­telo, Dryden apeou. Então, observou Nick ajudar lady Samantha a desmontar e conduzi-la aos de­graus de pedra.

Como se fosse preciso, Robert pensou ao reparar na agilidade da dama. Não havia agora nenhuma seqüela do acidente na floresta.

De propósito, ignorou os companheiros e falou com o pajem que aparecera para cuidar dos ca­valos. Explicou ao rapaz onde encontrar o imenso javali na floresta.

Desencantado com a situação a qual iria en­frentar, Robert começou a subir os degraus para encontrar sua noiva.

 

Juncos recém-colhidos cobriam o as­soalho do grande saguão, e as mesas estavam cobertas de toalhas limpas. Todos pare­ciam ocupados em suas atividades. Até o cães, que em geral dormiam pelos cantos, encontravam-se ausentes. Os raios de sol adentravam o recinto através das imensas janelas, cujas cortinas ha­viam sido abertas.

Um elegante senhor de cabelos grisalhos apro­ximou-se deles.

— Lady Samantha! — exclamou, notando a apa­rência desgrenhada da galesa. — Seu irmão...

— Não precisa saber o que aconteceu comigo, sir George — Samantha interveio. Segurou a bar­ra das saias e fez menção de se afastar. — Está tudo bem. Não precisa se preocupar. Vou tratar dos meus arranhões.

Ela então retirou-se, como um cintilante can­delabro no obscuro corredor de pedra do castelo.

Intrigado, Robert perguntou-se por que tal ana­logia lhe viera à mente.

— Lorde Thornton, lorde Alldale — o homem cumprimentou-os, ainda chocado com o estado de Samantha. — Eu os saúdo em nome de lady Marguerite e seu filho, lorde John. Sou sir George Packley, o procurador de Clairmont.

— Obrigado — Nicholas replicou, sem esconder o sotaque alemão que o diferenciava.

Como neto ilegítimo de Margrave de Bremen, Nick fora criado na corte do avô junto com o primo, Wolf Colston, e o jovem amigo deste, Robert Dryden. Os três haviam lutado na França a serviço do rei Henry para que ele pudesse tomar posse do território francês, e foram recompensados com terras e títulos ingleses.

No entanto, Robert era o único que não havia visto o próprio legado. Um confiável procurador administrava Alldale com extrema eficiência.

Dois anos atrás, Dryden fora vítima de uma emboscada e tornara-se prisioneiro do conde de Windermere, um cruel e perverso parente de Wolf Colston.

Ao ser capturado, ele ficara preso a correntes em uma das frias cavernas sob o castelo, e sofrerá terríveis torturas nas mãos do implacável conde.

Naquele úmido calabouço, estivera a madrasta do tirano, e Windermere a torturou e matou diante dos olhos de Robert.

Embora nunca falasse a respeito de tremendo infortúnio, as atrocidades cometidas permaneciam impressas em seu corpo. Um olho fora suprimido, além de um dedo decepado. Queimaduras e lace-rações o cobriam. Quase sucumbira à desidratação e à fome. Considerava sua sobrevivência um mi­lagre dos céus.

Mas Robert havia feito somente isso. Sobrevi­vera. A recuperação o transformou em uma som­bra do que fora no passado. Considerava-se um homem solitário, sem grandes sonhos e nenhum objetivo a atingir.

Kathryn, a esposa de Wolf Colston, estava de­terminada a restaurar a alma de Robert. Sendo uma mulher generosa e justa, Kit queria ver o melhor amigo de seu marido curado em todos os sentidos. As primeiras negociações acerca do ca­samento entre Robert e Marguerite de Clairmont haviam sido obra dela.

Lady Kathryn não acreditava que o casamento fosse a solução à indiferença de Dryden, mas Clairmont era de importância estratégica à Co­roa. Próximo à fronteira da Escócia, o castelo provinha o confronto entre os guerreiros do norte e a Inglaterra.

Um poderoso líder, um homem de experiência militar, era essencial para manter a integridade na divisa nórdica.

Kit Colston esperava que, casando-se com Mar­guerite, Robert pudesse assumir o dever de de­fender a fronteira e proteger as terras de John, o herdeiro de Clairmont. Ela supunha que tal de­safio faria despertar o homem espirituoso que Ro­bert fora dois anos atrás.

E se o casamento trouxesse felicidade e frutos seria muito melhor para todos.

Sir George escoltou Nicholas e Robert às suas acomodações e os informou que Lady Marguerite os veria à ceia do meio-dia, já que a dama en­contrava-se ocupada naquela manhã.

Além do espanto por lady Marguerite não re­ceber os hóspedes, ambos ficaram ainda mais sur­presos ante a declaração seguinte do procurador.

— A rainha, contudo — sir George disse —, está ansiosa para vê-los.

— A rainha? — Nicholas perguntou. — Catherine está aqui?

— Sim. — O procurador puxou as pesadas cor­tinas das janelas. — O séquito real permanecerá até o fim do mês... e lady Samantha Tudor faz parte do cortejo da rainha.

— Tudor!

— A irmã do nobre Owen — sir George explicou. Nick e Robert sabiam que Owen Tudor pertencia à corte de Henry V. Porém, não estavam cientes de que ele possuía uma irmã que, aliás, preferia se identificar como galesa a utilizar o nome Tudor.

Robert questionou a razão de Samantha não desejar associar-se a Owen.

Entre os membros da corte do rei Henry, Tudor destacava-se como um jovem competente. Tinha boa aparência, era ambicioso mas com cautela e absolutamente leal à Coroa. Robert não conseguia entender a reticência de Samantha ao ocultar o parentesco. Mas resolveu esquecer o assunto ir­relevante, e acompanhou Nicholas e sir George ao espaçoso solário acima do castelo.

— Majestade! — Nick exclamou, quando ele e Robert ajoelharam-se diante da rainha.

Além de jovem e elegante, Catherine também possuía uma inteligência sagaz. Havia dois anos que Robert e Nick não a viam. O último encontro, na verdade, acontecera durante o casamento de Wolf Colston e Kathryn em Londres.

— É um prazer inusitado revê-la, Majestade — Nicholas confessou.

Catherine sorriu com ar de tristeza.

— Ah, Londres é cansativa nessa época do ano.

— Londres? — Nick indagou.

— Oui, Londres. — Os olhos da rainha faiscaram. — E... meu cunhado e seu tio.

— Gloucester e Beaufort estão se exercitando novamente? — Robert perguntou.

— Não quero me tornar o prêmio de uma des­prezível luta de poderes — Catherine desabafou.

— O que há dessa vez? — Nicholas inquiriu.

— Uma odiosa conspiração para me ver casada.

— Casada? Com quem?

Somente o conselho podia aprovar o casamento da rainha, e nem Robert ou Nicholas havia sabido de tal consentimento. Mas o duque de Gloucester e o bispo Beaufort exerciam um grande poder de persuasão sobre os lordes do parlamento.

Se houvesse um pretendente à altura de Ca­therine, um guardião para o pequeno rei, os no­bres seriam levados a aprovar a união.

E o "vencedor" da luta de poderes poderia, as­sim, controlar o reino através do padrasto do rei.

— Não importa, senhores — Catherine falou, sus­pirando. — Mon petit Henri e eu não estamos em Londres, muito menos sob a influência de seus tios.

— Por enquanto... — Robert murmurou, cami­nhando até a janela, alheio à conversa entre Nick e Catherine.

Um menino, vestindo roupas caras, brincava no solário com uma bola de couro e alguns pinos. Ele jogava a bola de encontro aos pinos, depois os recolocava em pé para, em seguida, derrubá-los de novo. Admirado, Robert observava a paciência e habilidade do rei Henry.

Era uma pena o pai do garoto não ter vivido para ver o filho crescer, dar-lhe irmãos e protegê-lo de predadores.

Mas a vida tinha suas vicissitudes, Robert pon­derou. A morte era o destino de todos. E, às vezes, ela chegava antes do esperado.

Do lado de fora, o céu estava azul e um aglo­merado de pássaros cantarolava na árvore mais próxima. Vozes animadas chamaram a atenção de Robert para o campo, onde um jogo estava acontecendo. Traves haviam sido montadas em ambas as extremidades e vários meninos, mon­tados em porcos, tentavam marcar pontos com uma enorme bola.

Curioso, Dryden observou aquela espécie de jogo que jamais vira. Pessoas postavam-se ao redor do campo para assistir ao campeonato. Riam às gar­galhadas diante das investidas dos jogadores.

E em meio à multidão estava Samantha Tudor.

Ela havia trocado de roupa e agora usava um vestido azul tão vibrante quanto seus olhos.

Robert tentou desviar o olhar, mas o sol dourava as mechas mais claras dos cabelos e ele se viu hip­notizado pela exuberância do manto avermelhado.

Já teria visto uma cor tão intensa em sua vida?

Duvidava. Vira apenas as cores da guerra na França e a esmagadora escuridão do calabouço de Windermere.

Espantando os pensamentos sombrios, espiou Samantha Tudor mover-se entre os jogadores. A voz melodiosa atingia a janela, os movimentos graciosos o atraíam e o entusiasmo parecia con­tagiá-lo. Por que motivo, perguntou-se, ela exala­va tamanho júbilo?

Não havia resposta. Samantha devia ser uma jovem frívola e vazia.

Samantha bateu palmas e interrompeu o jogo, alheia ao atento observador na torre.

— Falta! — ela gritou, tentando conter a risada. Aquele jogo era distinto a qualquer outro que Samantha já organizara. Porém, quando viu a matilha de porcos, não pôde resistir à diversão.

— Vocês têm de guiar os porcos de volta ao meio do campo e recomeçar o jogo!

— Não, milady — queixou-se um menino. — Está mudando as regras. Nós quase...

— Jacob Johnson! — Samantha o repreendeu, rindo. — Não é permitido discutir com o juiz ou será penalizado.

— Mas...

— Sem exceções — ela o interrompeu. — Agora, retome sua posição!

O jogo prosseguiu. Samantha corria pelo campo e, de quando em quando, ajudava um dos com­petidores a acomodar-se em sua "montaria". Gos­tava de entreter crianças, organizar brincadeiras e passeios. Era o que adorava fazer em Westminster, enquanto seu irmão planejava-lhe o futuro. Contudo, nunca imaginara que ele a mandaria a um convento.

Estava condenada. Sem um dote substancioso ou uma propriedade rentável, e com o nome da família desgraçado, um bom casamento estava fora de cogitação. Apesar de Owen ter se insinuado na residência do rei e conseguir um alto posto na elite inglesa, Samantha se considerava uma causa perdida. Afinal, como vivia se metendo em en­crencas com freqüência, não havia sequer um ho­mem no reinado disposto a esposá-la.

Mesmo em Gales, ela fora rejeitada. Como vi­vesse da boa vontade dos tios, Samantha nunca pertencera a lugar nenhum. Nem a Pwll.

Sua maior preocupação consistia em criar raízes. Durante anos sonhara com a possibilidade de Owen tirá-la de Pwll. Mas a vida agora lhe apresentava outro destino. Esperava conseguir encontrar seu lu­gar em St. Ann. No ambiente do monastério talvez fosse capaz de eliminar o vazio da alma.

— Samantha!

Owen marchava em sua direção com o semblante enfurecido. Embora irmãos, tinham pouca in­timidade, o que não a impedia de reconhecer aque­la expressão.

Anos atrás, Owen deixara Gales para viver com uma nobre família nos arredores de Londres. Abandonara Samantha à mercê da piedade dos irmãos da mãe. Como a vida teria sido diferente caso ambos houvessem crescido juntos em Gales! Talvez Owen não se transformasse no cavalheiro cansativo e intolerante que ela via diante de si.

Segurando-a de maneira brusca pelo braço, Owen a arrastou até a porta da cozinha. Em tom severo, ele a censurou novamente por causa do comportamento indecoroso.

— E impossível para você juntar-se às outras damas? — Owen indagou, frustrado pela ausência de habilidades femininas da irmã.

Como sempre, Owen vestia-se de forma impe­cável. Estava determinado a superar os pecados do pai, que tivera um papel de destaque na revolta galesa contra o rei Henry V. Samantha, com sua total falta de sofisticação e charme, não servia à boa causa.

As damas da corte a evitavam pois não queriam se associar a uma jovem comum e mal-educada. Para piorar, os rapazes tentaram seduzi-la tão logo Samantha chegara a Westminster, imaginan­do que, devido à ingenuidade explícita, ela poderia lhes prover satisfação. As constantes recusas não conquistaram admiração por parte dos cortesãos.

— Sinto muito, Owen — Samantha murmurou, fitando as crianças no campo. — Sou desajeitada, como você sabe, e meu talento para costura foi amaldiçoado...

— Não diga mais nada, Samantha! — Owen esbravejou, agora irado. — Sua aparência está um fiasco, tanto quanto seu vestido... Veja o es­tado dos seus cabelos... Onde está o véu? Pelo amor de Deus, irmã, não me desgrace aqui!

— Estou tentando, Owen! Você, melhor do que todos no castelo, sabe o quanto eu me esforço para satisfazê-lo — Samantha rebateu, lamentando ter causado tamanho desapontamento.

Iria se esforçar mais. Sem dúvida nenhuma. Se ao menos Owen se importasse mais com ela, em vez de dedicar-se exclusivamente à posição ad­quirida junto à rainha...

Samantha olhou para baixo e reparou nas manchas de sujeira que aderiram à barra, do vestido azul.

Perguntou-se de que maneira conseguiria se limpar antes do almoço.

— Nervoso? — Nicholas perguntou a Robert. Eles estavam se dirigindo ao encontro de lady Marguerite, que se encontrava no jardim do cas­telo naquele momento.

Robert resmungou com desdém.

— Foi uma pergunta inofensiva, Dryden. Se eu fosse conhecer minha futura noiva, estaria...

Sentada em um banco de madeira, próximo a uma estátua de pedra, a dama em questão con­versava com uma criança.

— ...atônito — Nicholas completou a frase quando ambos fitaram Marguerite Bradley. Tratava-se de uma linda mulher, cujos sedosos cabelos negros encontravam-se muito bem penteados. Os olhos cor de violeta emanavam um brilho singular. A conduta da dama transparecia graça e sere­nidade. Ela recebeu Robert e Nicholas revelando gestos elegantes.

— Sejam bem-vindos ao Castelo Clairmont. — A voz suave era rebuscada de um delicado sotaque francês. — Sou Marguerite Bradley e este é meu filho, John.

Criados trouxeram cadeiras para os cavaleiros e uma ama encarregou-se da criança. Após ter­minarem os cumprimentos, um silêncio constran­gedor se seguiu. Até Nicholas, que sempre tinha o que dizer, parecia sem fala diante da beleza excepcional daquela mulher.

— Imagino que tenham feito uma boa jornada? — Marguerite perguntou. Ela fitava, incomodada, a aparência repugnante de Robert e o carisma evidente de Nick.

— Sim, foi muito boa — Nicholas respondeu, e então começaram a dissertar acerca do melhor tempo para viajar e do incidente ocorrido naquela manhã com lady Samantha e o javali.

Robert permaneceu calado, deixando que Nick fizesse as honras. Há muito tempo acostumara-se a reação constrangedora das damas ante o olho tampado e as cicatrizes que lhe marcavam o rosto. Gestos de repulsa não mais o perturbavam.

No entanto, lady Marguerite parecia afetá-lo de alguma maneira.

Claro, ela possuía uma rara beleza, mas Robert não conseguia demonstrar muito entusiasmo. Tentou apreciar o delicado arco que prendia os cabelos negros, os olhos brilhantes, o nariz aris­tocrata e os lábios voluptuosos.

Mas foi em vão. Casando-se ou não com aquela mulher, Robert sabia estar condenado ao isola­mento. Porque ninguém jamais entenderia a obscuridade de sua alma.

A música que a rainha Catherine trouxera a Clairmont deliciava Samantha. Era evidente que Sua Alteza possuía os próprios músicos e menestréis que proporcionavam ura encantador acom­panhamento a cada refeição.

Quando Samantha sentou-se para a ceia, dese­jou ter um pouco da elegância de lady Marguerite. Além da beleza estonteante, como castelã, a condessa mantinha tudo na mais perfeita ordem. O domínio de lady Marguerite inspirava limpeza e organização. Hóspedes e servos eram simplesmen­te imaculados.

Samantha serviu-se da comida que partilhava com seus companheiros de mesa enquanto obser­vava os cavalheiros ao redor da anfitriã.

Todos a bajulavam, exceto Robert Dryden, o con­de de Alldale. Era diferente dos outros saxônios. Parecia ignorar o charme abundante de lady Mar­guerite e mantinha-se à parte da excessiva adulação. Apesar de o rosto não mostrar nenhuma emoção, Samantha notou o brilho inteligente no único olho.

Alldale vivia, com certeza, imerso em pura so­lidão, ela concluiu. Sentira algo em relação a ele naquela manhã e, desde então, vinha pensando no nobre conde.

Não era um homem bonito... contudo, havia um profundo sofrimento devido às adversidades pelas quais já tivera que passar em sua vida. Uma pes­soa não sobreviveria aos ferimentos que marca­vam Robert Dryden sem uma estrondosa força de caráter.

Dentre todas as damas à mesa elevada, somente a rainha Catherine parecia imune à aparência de Robert Dryden.

As cicatrizes pouco escondidas sob o tapa-olho, os danos em uma das mãos representavam marcas de um terrível sofrimento. Samantha sabia que o conde tinha consciência da aversão que causava. Sentiu compaixão pelo homem quieto e solitário. Ela conhecia a dor de ser só no mundo. Duvidava que alguém mais àquela mesa soubesse como era.

O conde de Alldale participava da conversa so­mente quando solicitado. Samantha deduziu que ele devia sentir-se pouco à vontade entre os com­panheiros nobres. Parecia-se com um falcão que ela vira certa vez na floresta. De feições duras e possuindo uma inabalável determinação, os fal­cões prezavam, acima de tudo, a liberdade. Voan­do sobre as terras, circulando, acompanhando o vento, eram mestres soberanos em seu domínio, incapazes de se submeter.

Robert Dryden era tal qual um falcão, Samantha considerou. Os braços fortes, o peito musculoso e o poder de carregá-la pela floresta sem nenhum es­forço atestavam sua teoria. Nada seria capaz de alterar o semblante austero que, com polidez, escu­tava a conversa maçante de damas e cavalheiros.

Ao terminar a ceia, Sua Majestade retirou-se do saguão, acompanhada de alguns membros do séquito real. Os menestréis continuaram a entre­ter aqueles que permaneceram no salão.

Samantha tentou ignorar os comentários mal­dosos dos jovens londrinos com os quais se sen­tava, e lançou vários olhares furtivos à mesa prin­cipal, na esperança de descobrir outros aspectos de Robert Dryden.

Para a felicidade de seu coração, percebeu que ele continuava indiferente à gloriosa Marguerite. Era gratificante saber que pelo menos um homem na In­glaterra não se afetava ante tamanha perfeição.

Logo após a saída da rainha, Robert desculpou-se e atravessou o saguão, rumo à porta principal. Samantha perguntou-se onde e como aquele ho­mem solitário poderia passar o tempo.

E, enquanto recordava a sensação de ter os braços másculos ao redor de si, ela esbarrou na taça de cerveja e derramou o líquido sobre o vestido azul.

Era o único traje decente que possuía.

Nuvens cinzentas começaram a se agrupar, enegrecendo o céu que até há pouco estivera límpido. Robert sempre encontrava conforto a céu aberto, pois podia respirar livremente. Caminhou pelo vi­larejo de Clairmont e seguiu a trilha da colina até atingir a clareira que bordejava um lago com um banco de pedras.

Sentou-se em uma enorme rocha à beira da água e jogou um cascalho na superfície negra. Então, atirou outro pedaço de pedra.

E quase sorriu.

A amargura que residia dentro dele recusava-se a amenizar por conquistas insignificantes. Tinha consciência de que era meio cego e parcialmente desfigurado. Naquela noite, como de hábito, seria impossível dormir sem as imagens assombrosas que o perseguiam. Veria o rosto do impiedoso ini­migo e sentiria o ferro em brasa queimar-lhe o olho... a pesada marreta esmagando seu dedo...

Durante dois anos, desde o aprisionamento, preponderava a mesma sensação. Fora-lhe estripada a honra e a potência como homem. No calabouço sofrerá depravações com a dignidade que conse­guira manter.

Embora a dignidade tivesse sido suficiente, ele perdera a fé e a resistência. Chegou ao ponto de optar pela total inconsciência a sofrer as agonias esquematizadas pelo conde de Windermere. Robert havia barganhado a alma em troca da liberdade.

Mergulhou na desgraça acometida a um cava­leiro desesperado.

Como poderia tornar-se o marido da castelã de Clairmont? O que oferecer àquela maravilhosa dama? Robert não tinha nada além de um título, terras e... um passado. Pouco restava a Margue-rite de Clairmont. Não havia futuro para Robert Dryden.

Uma fria garoa começou a cair e uma fina bru­ma pousou à superfície do lago. Robert achou estar insensível já que perdera o apreço pela natureza. Onde outrora havia fascínio diante do mundo, ago­ra existia apenas angústia e sufocamento.

Não conseguia suportar. Tinha passado dias, jamais poderia dizer quantos, acorrentado na es­curidão. Incerto quanto ao futuro.

Ficara esperando... sempre esperando.

De súbito, o som de passos correndo sobre o solo úmido perturbou-lhe os devaneios. Escondido atrás das pedras, Robert tentou enxergar o intruso sob o entardecer. Um vulto correu em direção ao lago e, pelo choro, tratava-se de uma mulher.

O tom de voz parecia familiar. Rebeldes cabelos ruivos e o Vestido azul repleto de sujeira resva­laram a mente de Robert. A imagem da pele alva e dos olhos brilhantes invadiu-lhe o pensamento.

Estático, ele rezou para que Samantha fosse embora. Viu-a jogar-se na terra molhada a certa distância e cair em pranto.

Incomodava-o ter sua paz importunada por tão intensa emoção. Caso se movesse, poderia pertur­bar a jovem e, portanto, teria de falar com ela. Uma escolha que não o agradava.

Contudo, aquele tolo desabafo talvez durasse uma eternidade. Robert não viu outra saída a não ser aproximar-se dela.

"Por que a vida era tão injusta?", Samantha indagou-se aos soluços. Encostou em uma pedra gélida e abraçou os joelhos. Não gostava de chorar pois sabia que as lágrimas nada resolveriam. En­tretanto, as últimas semanas mostravam quão inútil e insípida ela era. Por esse motivo fora con­denada ao convento. Que homem em sã consciên­cia a esposaria?

A bem da verdade, tivera sorte ao ser aceita em St. Ann.

Não podia voltar ao lar porque já não o possuía, uma vez que seus tios haviam falecido. As tias e os primos mal conseguiam se sustentar. Pwll ja­mais fora o paraíso, mas ao menos Samantha sa­bia qual era seu lugar e o que esperavam dela.

O despretensioso povo de Pwll estava acostu­mado a vê-la descabelada e suja. Ela criava jogos engraçados, contava histórias, cantava e instigava competições inofensivas. Só não sabia por que era errado partilhar risadas e alegria com os demais.

Muito cedo descobrira que o mundo achava-se repleto de mágoa e dor. A vida em Gales não havia sido fácil, principalmente sendo filha de Marudded Tudor, o rebelde galés que participara da re­belião de Glendower.

Os lordes saxões, e um conde odioso em parti­cular, foram severos com o povo após a revolta, e Samantha sofrerá tanto quanto os outros galeses. Talvez até mais porque tinha sido relegada a uma vida à parte, mantendo-se separada de seus semelhantes.

Samantha e o povo de Pwll aprenderam que um Tudor somente atraía tragédia.

Alheia à densa bruma, ela abraçou os joelhos. Não conseguia conter o pranto, nem os soluços.

Deixar Pwll e a família havia sido doloroso. Des­de o dia em que Owen a trouxe à estrangeira terra saxônica, ela só cometia erros. Não entendia as regras da corte de Londres, tampouco agrada­va-lhe os avanços impróprios dos homens e os co­mentários depreciativos das mulheres.

Sem a noção de certo e errado, Samantha atra­palha-se sempre, evocando a ira de Owen a cada confusão.

Owen conseguira uma ótima posição como guar­dião do guarda-roupa real. Depois do falecimento de Henry V, a rainha Catherine o convocara para conselheiro pessoal. Logo, ele não podia tolerar a irmã desajeitada. A incompetência de Samantha prejudicaria suas aspirações.

Endireitando os ombros, Samantha puxou o decote do vestido e permitiu que a chuva lavasse a cerveja que derramara sobre si e a opressiva dor que apertava-lhe o coração.

O frio aumentava. Precisava retornar ao castelo, mas não queria confrontar aqueles rostos zombeteiros que haviam testemunhado mais um episó­dio ignóbil na vida de Samantha verch Marudded.

Mas por que não?

De cabeça erguida, ela entraria no grande sa­guão do castelo, como sempre fizera, e ignoraria os olhares e os comentários rudes da fina aristo­cracia. Ela tinha experimentado horrores ainda piores em Gales que o recente ocorrido e a cons­trangedora repreensão de Owen em público.

Qual era o problema de derramar um pouco de cerveja na roupa? Todos na Inglaterra eram tão perfeitos e impolutos a ponto de não entender ou aceitar pequenas imperfeições?

Samantha enxugou as lágrimas e levantou-se. De repente, viu-se diante do conde de Alldale, que se aproximara sem fazer o menor ruído.

Ele nada disse, mas permaneceu de braços cru­zados, como se esperasse explicações de Samantha.

Petulante, ela ergueu o queixo como se o desafiasse.

— Se veio ridicularizar minha falta de elegân­cia, milorde — Samantha passou pelo conde, re­soluta —, asseguro-lhe de que estou ciente de mi­nhas limitações. Eu...

— Veja! — Robert apontou para além da pedra onde ela estivera chorando. A presença de ambos ficou oculta atrás das imensas rochas. — Há um grupo de homens movendo-se sob o nevoeiro.

No mesmo instante, Samantha esqueceu-se dos próprios problemas. A norte deles, homens sacia­vam a sede à beira do lago. Não pareciam ser de Clairmont.

— Eles usam manto xadrez — ela sussurrou. — Ouvi dizer que escoceses estão atacando os vi­larejos e roubando animais.

Robert sabia que Richard Bradley encontrara a morte quando defendera Clairmont de tais malfeitores.

— Acredita que haja uns... trinta homens ali?

— Creio que sim — Samantha confirmou, per­cebendo que Alldale não confiava na própria visão. — Mas deve haver mais naquelas carroças que estão descendo a colina.

Ao divisar as colinas, Robert atestou as palavras de Samantha. Não tinha visto as carroças. Ela possuía olhos acurados, apesar de enevoados pelas lágrimas.

Fitando o rosto entristecido, Robert perguntou-se por que razão ela chorava. De súbito, sentiu a von­tade urgente de tocar a pele alva, mas a reprimiu.

Ficou espantado consigo mesmo. Samantha Tudor tinha o irmão para confortá-la ou qualquer outra dama do castelo. Com certeza, não precisava das palavras ternas de Robert, mesmo que ele soubesse alguma.

— Temos de voltar a Clairmont e alertar os homens — Robert avisou, puxando-a pelo braço.

— Os escoceses me parecem bem equipados, mi-lorde. O ataque irá devastar Clairmont.

— Não, se estivermos preparados — Robert replicou.

Ambos enfrentaram a chuva, atravessando o vi­larejo em direção ao castelo. Estavam encharcados quando cruzaram os portões de Clairmont.

— Vá tirar estas roupas molhadas — Robert ordenou.

— Irei com o senhor — ela o desafiou.

Sem tempo para discutir, Dryden adentrou o grande saguão, onde lady Marguerite e outros no­bres conversavam e assistiam aos menestréis da rainha.

Robert divisou Nicholas Becker ao lado de Mar­guerite e caminhou até o belo casal, imaginando que Nick era um pretendente bem mais aceitável que ele.

— Robert! — Nicholas exclamou. Em seguida, encarou Samantha. — Vocês estão ensopados!

Ignorando o comentário do amigo, Dryden foi direto ao ponto:

— Há escoceses atravessando as colinas a norte, preparando-se para atacar. Os cavaleiros preci­sam se armar.

Marguerite empalideceu. Nicholas, que se en­contrava próximo, amparou-a antes que ela des­maiasse. Os convidados ficaram apavorados.

— Sir George saberá como reunir os cavaleiros — Nick disse. — É melhor consultá-lo. — Ele se virou e carregou a castelã até a escada principal.

A aparição de Robert com Samantha causou ta­manha algazarra que não foi preciso procurar o administrador de lady Marguerite.

Sir George encontrou Robert rodeado de curio­sos que já o questionavam. Dryden falou da amea­ça que se desenvolvia perto do lago e a multidão se dispersou. As mulheres correram para se abri­gar e os cavaleiros dirigiram-se ao alojamento a fim de armarem-se.

Após alertar as tropas, Sir George e Robert fo­ram ao depósito de armas, onde ele começou a ditar ordens e vestir sua armadura.

— Mande soldados ao vilarejo para prevenir o povo — Robert disse ao rapaz que o ajudava a colocar o colete sobre a cota de malha.

Após ajeitar as mangas, ele acrescentou a es­pada e o punhal.

— Mas, milorde...

— Faça com que os homens mais fortes perma­neçam no povoado e mande os outros para cá — Dryden ordenou. — Precisam guardar seus ani­mais e suprimentos dentro das muralhas do cas­telo. Avise-os da importância de apressarem-se.

— Milorde — sir George protestou. — Precisa­mos de um plano de defesa. Não podemos...

— Este é o plano, sir George. O que lorde Richard fez ao enfrentar o inimigo?

— Nunca fomos informados do ataque com an­tecedência. Portanto, o conde sempre confrontava o inimigo face a face no campo de batalha — o procurador informou.

— E hora de criar uma nova estratégia — Ro­bert impôs, assumindo o posto de líder. — Prote­geremos o povo, removendo-os para o castelo. Ah, Nicholas — ele o chamou ao vê-lo entrar no de­pósito de armas.

Nick ficou atônito ante a energia de Dryden. Robert mostrava pouco interesse nas coisas desde a tortura que sofrerá no Castelo Windermere. Po­rém, naquele momento, ele parecia formidável, armando-se e ditando ordens, como se jamais hou­vesse perdido um olho, um dedo... ou fora acor­rentado no calabouço e forçado a testemunhar as atrocidades cometidas contra uma indefesa anciã.

— Não se aparvalhe, Nick. — Robert pegou o arco e as flechas. — Comece a se armar.

Enquanto Nicholas vestia a armadura, ocorreu-lhe que seria mais fácil lidar com a mudança re­pentina de Robert, caso houvessem enfrentado uma guerra juntos antes da que estava prestes a acontecer.

— É possível que os escoceses saibam que a rainha e o filho estão aqui? — Dryden perguntou a sir George. Sua mente astuta calculava todas as possibilidades, surpreendendo Nick outra vez.

— É duvidoso, milorde. Sua Majestade chegou a menos de uma semana... Acredito que não houve tempo para os escoceses se organizarem como o senhor nos informou.

Embora não confiasse na certeza de sir George, Robert abandonou o assunto. Cientes ou não da presença de Catherine, os escoceses podiam inva­dir Clairmont e ferir o herdeiro do rei Henry e a rainha.

— Quantos arqueiros o castelo possui?

— Vinte e dois, milorde — George respondeu.

— E quantos soldados?

— Trinta e cinco. O combate aconteceria por volta da meia-noite,

uma estratégia típica dos escoceses. No entanto, Robert sabia que os inimigos estavam em maior número. Tudo parecia incerto, com exceção do fato de que a pressa era essencial.

A atividade no castelo aumentou. Samantha ha­via desaparecido, portanto, Robert presumira que ela fora se secar. Mas a encontrou sob a chuva, entre carroças e animais, direcionando os habi­tantes do povoado aos abrigos.

Indignado, notou os cabelos molhados, o vestido azul que grudava nas curvas do corpo como uma segunda pele e os constantes tremores que ela não conseguia conter.

— Mulher tola — Robert murmurou, abraçando-a pelos ombros. Então guiou-a em direção ao castelo, ignorando os protestos.

— Há trabalho a ser feito, milorde — Samantha reclamou ao cruzar o grande saguão. — O povo não sabe aonde ir. As crianças estão assustadas e...

— Você vai ficar doente — Robert interrompeu-a, escoltando-a à galeria onde localizava-se o apo­sento de Samantha. — Qual desses é seu quarto?

Teimosa, Samantha deteve-se.

— Não pode me obrigar a nada, milorde.

— Necessita de um guardião, milady! — ele esbravejou, erguendo o tom de voz pela primeira vez em anos.

Chocada, Samantha recomeçou a tremer.

— Não necessito de nenhum guardião!

— Então aprenda a se cuidar! — Robert não continha a irritação. — Tire estas roupas!

— Não! — Samantha cruzou os braços e fincou os pés no chão.

— Por Deus, mulher, você desafia minha pa­ciência — Robert falou, exasperado.

Ela também provocava outras emoções, como aborrecimento, cólera... e um instinto idiota de proteção.

— Por que não pode apenas trocar de roupa? — perguntou, exasperado.

Envergonhada, ela baixou o rosto.

— Porque... não tenho outras.

Ao ver a verdade naqueles olhos azuis, Robert comoveu-se.

— Nada apresentável?

Samantha meneou a cabeça em negativa.

Owen lhe comprara dois vestidos na época de sua chegada a Londres, mas Samantha não vira necessidade de outros já que estava prometida ao convento de St. Ann. Uma vez que, lá chegando, usaria somente a túnica das freiras, achou que não havia motivo para gastar o pouco dinheiro do irmão com trajes novos.

Resoluto, Robert levou Samantha a seu quarto e fechou a porta. Pega de surpresa, ela começou a reclamar. Dryden, sem retrucar, alimentou a lareira. Em seguida, posicionou-a diante do fogo e desamarrou o laço que prendia o corpete.

— Milorde! — Samantha gritou, tentando afas­tar-se. O toque das mãos ásperas causava estranhas reações em seu corpo. — E inaceitável! Não pode...

— Posso, sim. Já salvei sua vida hoje. Não quero desperdiçar meus esforços dessa manhã vendo-a morrer de febre.

— Vou procurar alguém que possa me ajudar — ela replicou. — Alguém... mais adequadol

— Fique quieta, Samantha. O corpete molhado dificulta a tarefa e tenho pouco tempo.

— Eu me oponho, milorde! — ela exclamou, ago­niada. Que tipo de magia podia causar tais sensa­ções? Por que nunca vivera aqueles sentimentos?

Era horrível! Samantha tinha de fugir de Dryden antes que perdesse a capacidade de pensar. O toque era diferente das mãos atrevidas dos jo­vens londrinos. O conde de Alldale agia com a potente segurança de um homem. A força adqui­rida em batalhas parecia eliminar uma suposta suavidade.

— Sua objeção foi notada, milady — Robert pon­tuou ao afrouxar o laço.

O vestido azul escorregou do corpo de Samantha e tombou no chão. Restou-lhe apenas a fina guarnição de linho branco que também estava enchar­cada. Os cabelos avermelhados caíam sobre as cos­tas, fazendo-a parecer frágil, como um cristal co­lorido sob os efeitos do luar.

Tomada por estranhas emoções, Samantha abaixou o rosto. Ele também sentia aquele clima? perguntou-se. O conde já fora tocado com cuidado e ternura?

Possivelmente não, ela deduziu. Robert Dryden a achava tola. Dissera que Samantha desafiava sua paciência. Era um estorvo para ele.

Transfigurado ante a delicada beleza de Sa­mantha, Robert permaneceu estático por um longo período. Os quadris arredondados eram nítidos sob o tecido ensopado. Imaginar aqueles lábios macios percorrendo-lhe o corpo causou um desejo quase incontrolável.

Ao vê-la estremecer, ele despertou e pegou um cobertor que jazia sobre a cama. Apressado, en­volveu-a na coberta, incapaz de evitar a necessi­dade de tomá-la nos braços.

Os expressivos olhos azuis o fitaram. O sem­blante assustado tornou-se confuso. O tempo pa­receu parar enquanto ambos continuavam tão pró­ximos. Ela sentia o calor do corpo másculo domi­ná-la. Ansiando por tocá-lo, Samantha deteve-se ao lembrar que o conde a via como tola.

— Agradeço-lhe o cuidado com meu bem-estar, milorde. Tentarei não incomodá-lo outra vez.

Dito isso, ela se enrolou no cobertor e retirou-se do quarto de Robert Dryden.

 

A batalha foi longa e exaustiva. Cada homem capaz juntou-se à frente de combate. Os habitantes do vilarejo utilizaram o que tinham em mãos: foices, martelos, porretes e adagas. Quanto aos cavaleiros de Clairmont, Robert optou pela estratégia de comando em tro­pas, com arqueiros posicionados no teto das ca­sas. Mesmo assim, os escoceses estavam em maior número e possuíam mais armas e guer­reiros selvagens.

Foram os arqueiros que, enfim, venceram o ar­doroso combate. A estratégia de mantê-los acima do campo de batalha eliminou boa parte dos es­coceses. Flechas voavam pelo ar e atingiam os inimigos. Em solo, os soldados de Clairmont ter­minaram o trabalho.

Quando tudo acabou, no entanto, os danos na cidade eram extensos. Enquanto caminhava pelas ruas, Robert sentiu-se, de certa forma, ausente àquele caos. Algumas casas estavam em chamas, corpos eram jogados em uma enorme fogueira, mulheres e crianças choravam. Havia ainda gemidos de dor que ecoavam a distância, uma agonia que ele próprio não conseguia aliviar.

Retornou ao castelo sem ater-se aos cumprimen­tos que recebia das pessoas que agora o conside­ravam herói. Fora ele quem descobrira a intenção dos escoceses, formara um plano de ataque, en­viando os soldados para defender o vilarejo, e emergiram vitoriosos.

Após tantas perdas em pequenos confrontos, aquela vitória aqueceu a alma dos habitantes de Clairmont.

No pátio do castelo, Robert apeou e deixou seu cavalo aos cuidados de um jovem cavalariço. An­dou a esmo pela propriedade até encontrar uma capela. Calado, adentrou o templo, trêmulo apesar do sol de outono que penetrava pelas janelas aci­ma do altar.

E Robert Dryden orou pelas almas que haviam sido despachadas naquele dia.

Distraída, Samantha ajudava duas meninas a lavar as mãos no poço quando divisou os homens retornando do vilarejo de Clairmont. Embora fe­ridos e cansados, tinham o brilho da vitória em seus olhos. Mulheres e crianças os recebiam com abraços, lágrimas e risos.

O semblante de Dryden surgiu na mente de Samantha. Tentou avistá-lo entre os homens, an­siosa por assegurar-se de que estava bem. Havia passado a noite e o dia preocupada com ele, mesmo sabendo que Robert não apreciaria tal atenção.

Ficou aliviada ao vê-lo. Queria tocá-lo, sentir o corpo sólido próximo ao dela outra vez, como na noite anterior, somente para certificar-se de que se encontrava inteiro. Ele estava coberto de poeira e sangue. Samantha rezou para que não houvesse nenhum ferimento grave.

Depois que Robert entregou seu cavalo a um rapaz, ela chamou-o, mas o conde se afastou, ignorando-a.

Magoada ante aquele total descaso, fitou o ves­tido simples que colocara na noite anterior em meio à confusão. Era feio, o tipo de traje que um nobre desprezaria. Seus cabelos em desalinho es­tavam ainda piores. Por isso Dryden a ignorara, e a indiferença causou-lhe um aperto no coração.

— Deus do céu, Samantha! — exclamou uma voz masculina. Owen agarrou-a pelo braço e levou-a à porta da cozinha. — Precisa ser tão desleixada?

— Owen, eu...

— Você está horrível!

— Está me machucando, Owen — Samantha gritou, oprimida pela fúria do irmão. O que havia feito de errado dessa vez? Era seu dever cristão auxiliar aquelas pessoas em uma hora de neces­sidade. Por que Owen deturpava as coisas? — Por favor!

Ele a soltou e empurrou-a cozinha adentro. As criadas trabalhavam sem cessar e, para a surpre­sa de Samantha, Owen manteve-se calado. Guiou-a por uma passagem escura até atingirem uma alcova.

― Não consegue comportar-se como uma dama de sua posição? — ele esbravejou. — Não é uma serva que pode se vestir como quiser e sujar ainda mais nosso nome.

— Owen, eu não...

— Estou fazendo o que posso — ele disse, pas­sando a mão pelos cabelos loiros — para restaurar a honra em nosso nome. A fim de que nossos des­cendentes tenham o respeito que merecem. Exceto você! — exclamou, frustrado.

Além da vergonha, Samantha sentiu uma má­goa profunda. Descendentes não tinham nada a ver com ela, já que em breve seria enviada à clau­sura de St. Ann.

— Você atrapalha todos os meus esforços! — Owen prosseguiu, sem conter a raiva. — Coloca-se no mesmo nível que os camponeses, vestindo-se como eles e sujando suas mãos com eles. Por que não observa e aprende? Veja a rainha, por exem­plo. Sua Majestade é uma mulher superior às ou­tras! É gentil e graciosa, linda e refinada. E lady Marguerite...

Infeliz, Samantha mordeu o lábio inferior para reprimir o choro. Mas não conseguiu evitar as lágrimas que rolavam pelas faces. Owen estava certo, claro. Ela nunca pensava nas conseqüências antes de agir, tampouco considerava o estado das roupas e dos cabelos.

Quanto à sujeira nas mãos... Samantha não ti­nha medo do trabalho pesado e não via desonra nisso. Em Pwll não havia residências elegantes ou servos para cuidar dela. Nenhum tutor que a ensinasse regras de etiqueta, porém aprendera muito acerca da cruel aristocracia com Edmund Sandborn, o arrogante conde de Wrexton, cuja pro­priedade inglesa era fronteiriça às terras galesas, perto de Pwll.

Anos atrás, ela havia jurado no túmulo de seus dois amigos galeses que, se encontrasse Wrexton novamente, arranjaria um jeito de cravar uma faca no coração maligno do conde.

Samantha perguntou-se o que seu irmão faria em relação àquela vingança.

— As mãos da dama estão sujas por uma boa causa, Tudor.

Mortificada, ela viu Robert Dryden sair da ca­pela. Teria ele escutado o discurso de Owen?

— Não há vergonha em ajudar os mais neces­sitados — Robert acrescentou, tomando a mão de Samantha e levando-a aos lábios.

Já era um vexame o conde de Alldale testemu­nhar a falta de afeto que Owen demonstrava. Sa­mantha esperava que o homem não notasse as lágrimas e o tremor no queixo.

— Saia daqui — Owen resmungou, depois que Dryden foi embora. — E só volte quando se fizer apresentável.

Robert Dryden entrou na banheira de água quente e suspirou. Enxaguou o rosto, os ombros e o tórax bem torneado. Gotas de água cobriam os negros pê­los do peito, fazendo-o arrepiar-se de leve.

― O corte em seu braço está bem feio — Nicholas comentou, sentado à vontade na cama de Robert. — Deve ter doído.

― Eu estava ocupado demais para notar — Ro­bert replicou, pensando em como seu ombro des­locou pouco antes do escocês atingi-lo.

O corte era realmente feio, atravessava o mús­culo abaixo do ombro e ainda sangrava. Tinha um ungüento medicinal para aplicar no ferimento, mas queria se lavar antes. Quando cicatrizasse, seria apenas uma marca a mais em seu corpo.

— Foi em seu ombro ruim — Nicholas disse. — É melhor costurá-lo.

Dryden resmungou algo incompreensível. Já ex­perimentara muitas suturas em sua vida. Contu­do, o corte era profundo e prejudicava o ombro que fora danificado durante seu aprisionamento.

— Tudo correu bem hoje — Nick continuou. — Você devia fazer a proposta à lady Marguerite, enquanto a vitória ainda está fresca.

Robert preferiu abster-se de comentários. Nem sequer pensara em lady Marguerite. Na verdade, não conseguia se livrar da imagem de Samantha Tudor sendo execrada pelo irmão. No mínimo, ela passara a noite em claro e pareceu necessitar de uma força sobre-humana para suportar as pala­vras rudes de Owen Tudor.

Aquele homem era um idiota.

— Há outros pretendentes, Robert — Nicholas falou, referindo-a à castelã. — Tem de conversar com ela agora.

Exausto, Robert pegou a barra de sabão e co­meçou a limpar o ferimento do braço.

— A rainha disse que Marguerite recebeu men­sagens de dois outros nobres. — Nicholas levan­tou-se, irritado. — Um é conde e o outro, o vis­conde Darly.

— Ora, deixe que um deles se case com ela — Robert retrucou. — Qualquer um será melhor que eu.

— Que droga, homem! — Nicholas levou as mãos à cintura, exasperado.

Havia prometido a Wolf Colston que Robert es­posaria Marguerite Bradley.

— Ela é perfeita, Robert! Incomparável, aliás! En­tre Alldale e Clairmont, você se tornaria um dos homens mais poderosos da Inglaterra. Não pode...

Sim, podia, Robert pensou, mergulhando a ca­beça dentro da água e bloqueando qualquer ruído. Esperava que a sutil manobra espantasse o fala-tório de Nick para que assim pudesse terminar o banho em paz.

Não podia se casar. Fora a Clairmont com o ob­jetivo de pedir a mão de lady Marguerite, mas, na­quele momento, tinha dúvidas. Dois anos atrás, algo rompera-se dentro dele. Se era a alma ou o coração, não sabia dizer. Só não se sentia um homem inteiro.

E não acreditava que fosse mudar.

Além disso, pensou ao ouvir a porta se fechar, estava fatigado. Na manhã seguinte ponderaria sobre casamentos e propriedades.

Samantha acalentava o precioso bebê nos braços enquanto caminhava pelo parapeito do castelo, pretendera trocar de roupa, mas ao encontrar uma jovem mãe no pátio, ofereceu-lhe ajuda.

Ficou compadecida com a mulher que viúva e sobrecarregada com o bebê no colo ainda tinha mais dois filhos agarrados à barra da saia. Sa­mantha também notou que ela estava grávida.

Como os dentes começassem a crescer, a criança mostrava-se irritada, dissera a mulher sem emo­ção. Samantha esperara ver a dor da perda, mas a jovem mãe reprimia o sofrimento, exaurida pela gravidez.

Por impulso, Samantha ofereceu-se para cuidar do bebê até que a mãe se sentisse mais capaz.

No parapeito elevado, ela entoava uma canção de ninar. Quando a menina resmungava, Saman­tha a embalava. Ajeitou a manta de lã sobre a cabeça do bebê para protegê-lo do vento frio.

Era gratificante sentir a criança entre os braços, o aroma da pele perfeita e a maciez dos cabelos que começavam a nascer.

No céu, pesadas nuvens se formavam, cobrindo de quando em quando a lua cheia. Um guarda acenou quando ela se aproximou. Samantha achava que os saxões eram iguais a seu povo. Lutavam para viver no mundo. Honravam seus Pais e amavam suas crianças. Comiam, dormiam, bebiam e riam.

Brigavam para manter o que lhes pertencia.

Não era isso que faziam em Pwll? Viviam, riam e lutavam contra o conde de Wrexton, que estava determinado a roubar o que era dos galeses?

Samantha recordou os dois amigos que, anos atrás, haviam sido vítimas da terrível crueldade de Wrexton. Além da perda dos companheiros de infância, a parte mais dolorosa da lembrança era saber que o pavoroso episódio não passara de um jogo para Wrexton, uma mera brincadeira de "gato e rato".

Aquele bastardo odioso.

Tentou conter as lágrimas que sempre caíam quando se lembrava dos amigos, Idwal e Dafydd. Nunca esqueceria a dor e a culpa pela morte dos meninos. Porque era ela quem Wrexton quisera, não os inocentes galeses. Samantha Tudor... a fi­lha de um rebelde.

O bebê começou a chorar. Ainda lamentando os amigos, ela ninou a criança e retomou a canção, agora em tom mais alto. Tratava-se de um simples soneto galés, mas parecia acalmar a menina e a alma triste de Samantha.

Oh, se pudesse ser a mãe daquele bebê, desejou infeliz. A maternidade era um dos muitos prazeres que lhe seriam negados. Owen decidira que ca­samento estava fora de cogitação. Como parente mais próximo, o irmão não a deixaria casar-se com um dos homens de Pwll, pois eram inferiores aos poderosos, mas denegridos, Tudor.

De qualquer maneira, Samantha jamais colocaria outro galés à mercê da vingança dos saxônios.

Com certeza, não havia nenhum nobre inglês entre os conhecidos de Owen que a quisesse, mes­mo que Samantha possuísse um dote. Era galesa demais e muito desajeitada.

Chegou a considerar fugir de Owen e da vida que ele lhe escolhera. Contudo, não sabia aonde ir ou como viver. Uma mulher sozinha tinha pouca chance de sobreviver. Em várias ocasiões, Owen afirmara que Samantha não atrairia os homens, a não ser para encontros clandestinos. Era tei­mosa, impertinente e indesejável ao extremo.

Como resultado, ela seria relegada ao convento.

E tinha medo que tal destino provasse quão inadequada era também para a vida sacra.

Robert alongou os músculos fatigados e encos­tou no canto de pedra do parapeito. Escutava a doce canção que lady Samantha entoava para o bebê. Sentiu a alma aquietar. Não compreendia as palavras, mas a melodia reconfortante parecia embalar a criança.

Um estranho contentamento o invadiu. Samantha era uma jovem encantadora, não tão bonita quanto lady Marguerite, mas interessante. Talvez até mais, ele pensou. Mostrava-se resoluta às vezes.

O incidente da noite anterior, quando o vestido caiu no chão e ela permaneceu quase nua, resva­lou a mente de Robert. Não se lembrava de desejar tanto uma mulher como o fizera naquele momen­to. Se Samantha não fugisse do quarto, ele não seria capaz de se conter.

Mesmo agora, ouvindo a voz melodiosa a distância, visualizava os olhos azuis e os lábios carnudos e úmidos. Os cabelos encaracolados combi­navam com a pele alva do rosto delicado. O corpo atraente representava uma deliciosa tortura a qual ele pretendia sucumbir.

Só de pensar nela descobriu o erro de caracte­rizá-la como uma "jovem encantadora".

Voltou os pensamentos às festividades que acon­teciam no interior do castelo. Ele se recusou a participar. Não somente estava cansado, como também não se considerava herói e não queria ser ovacionado por ninguém. Precisava fazer a proposta a lady Marguerite e ainda não sabia se era certo, a despeito dos argumentos de Nicholas Becker.

Não tinha mais disposição para guerras. Pas­sara a vida se exercitando ou enfrentando ba' -lhas. Os escoceses não iriam desistir de Clairmo; Caso esposasse lady Marguerite, Robert teria   e encarar combates até abater os inimigos.

Talvez, com um líder capaz em Clairmont e mais vitórias, os escoceses parassem de molestar o gado. Era um detalhe a considerar. Sem dúvida , fora essa a intenção do Conselho Parlamentar ao sugerir o casamento.

Apesar das roupas despretensiosas, o tampão preto que cobria o olho não era fácil de esconder. Os guardas do parapeito, tão logo o viram, o sau­daram como líder, o homem que lhes trouxera vitória.

Robert respondeu aos cumprimentos, mas esquivou-se a fim de encontrar um canto sossegado e escuro próximo à torre de vigia, de onde pudesse apreciar o céu turbulento sem ser visto. Sentou-se na amurada de pedra e esticou as pernas.

Surpreendera-se consigo mesmo por ter agüen­tado a desafiadora batalha madrugada adentro. Era bom descobrir-se ainda um soldado capaz, ar-queiro, espadachim e comandante; aqueles ho­mens seguiram seu confiante comando.

Para os membros do conselho, a presença de Robert proveria a Clairmont a liderança necessá­ria. Ele possuía o próprio legado, perto de Windermere e, embora não acreditasse que o Castelo Alldale fosse tão prodigioso quanto o de Clair­mont, as terras eram prósperas. Nenhum homem razoável ficaria insatisfeito com a propriedade. E havia paz em Alldale. Sem fronteiras a defender ou saqueadores a enfrentar.

Nenhuma morte para suportar.

As nuvens tornaram-se mais densas, ocultando o luar e a noite se intensificou. Permaneceu sen­tado à sombra, absorvido nos problemas, sem preocupar-se com a tempestade ou qualquer outro detalhe a seu redor.

Quando Samantha, distraída, tropeçou nos pés de Robert, foi o reflexo rápido de Dryden que a impediu de derrubar o bebê e cair.

— Ai! — ela gritou e a menina voltou a chora­mingar. — Desculpe-me, milorde. Não o vi na es­curidão. — Sentiu-se uma tola. Sempre desajei­tada, principalmente quando perto de Alldale. Ele devia achá-la estúpida. Como Owen. Tal qual to­dos que ela conhecia.

— Não foi nada, Samantha. — Robert segurou-a pelo braço para equilibrá-la. — Não se preocupe com isso.

— É muito gentil, milorde... — Antes que pu­desse completar a frase, o bebê expeliu uma boa quantidade de leite no ombro de Samantha, que escorreu pela manga do vestido. Ela queria cavar um buraco e se esconder.

Robert franziu o cenho.

Samantha gemeu. Tinha certeza que depois da­quele incidente ele a acharia mesmo uma idiota e por uma ótima razão. Tinha muita experiência com bebês, porém estava despreparada para lim­par a criança se necessário.

Aborrecida, Samantha notou os primeiros pin­gos de chuva caindo sobre eles. Robert puxou-a para dentro da torre e observou as nuvens desaguarem. Em segundos, uma cortina de chuva os envolveu, permeada de trovões e raios. O bebê acalmou-se e adormeceu no colo de Samantha.

Olhando ao redor, ela esquadrinhou o abrigo som­brio. Não devia ficar a sós com o conde, pois precisava manter o decoro e preservar a inocência. Estava pro­metida a St. Ann, mas a figura máscula de Robert, o tórax avantajado, a força das mãos, as potentes coxas... Aflita, Samantha tentou conter o arrepio que, a despeito do vento gélido, originava-se do toque de Robert na noite anterior e no modo como ele beijara sua mão diante de Owen.

― Talvez seja dor de barriga — ela disse ao bebê, desviando a atenção do homem viril. — Não são os dentes que lhe causaram mal-estar, mas sim o estômago.

Robert Dryden a tirava do prumo natural. Re­cobrando a compostura, falou em galés com a me­nina. Sabia que sua aparência havia piorado ainda mais com o leite do bebê espalhado pela roupa.

― Não tive tempo de me trocar... — ela mur­murou, constrangida.

― Os habitantes do vilarejo precisam de você ― Robert comentou, espiando pela estreita janela da torre.

Aquele conde saxão sabia se impor, Samantha concluiu. Usando uma túnica clara e calça preta, ele transparecia segurança e quietude. Era sem dú­vida o herói de Clairmont, como o povo o chamava.

Um raio cruzou o céu, seguido de um estrondoso trovão, dando mais um motivo a Samantha para ficar incomodada.

— Estamos seguros aqui?

Calado, Robert assentiu. Conforme os raios ilu­minavam a noite, o rosto do conde ficava mais visível. Clarões pipocavam com freqüência, assus­tando-a cada vez mais. Tentou relaxar, mas a fú­ria da tormenta a deixava agoniada.

— O pior ainda está longe — ele comentou.

— Vai piorar? — Ela olhou através da estreita janela. Tempestades violentas sempre a apavora­vam. E aquela parecia carregar a ira de Deus. — Mais raios? Torrentes?

— Pode ser. Mas talvez se dissipe. Ou mude de direção.

Samantha não estava tão confiante. Estreme­ceu, de repente, e se afastou da janela, agarrada ao bebê.

— Devíamos descer — sussurrou.

— Ainda não. — Só então Robert percebeu que Samantha estava amedrontada. — A tempestade vai passar em alguns minutos. Depois eu a levarei para baixo — disse com o intuito de acalmá-la.

Quando ela olhou em direção à porta, Robert deduziu que a mulher considerava a possibilidade de enfrentar a chuva para atingir o pavimento inferior. A corrida poderia fazê-la escorregar, fe­rir-se e talvez derrubar a criança. Não podia dei­xá-la arriscar-se.

— Samantha, a tempestade está a quilômetros de distância. Não precisa se preocupar com sua segurança.

Como ele tinha tanta certeza? Um raio atingira o campanário da igreja de Pwll anos atrás e Sa­mantha jamais se esquecera do evento. Não lhe agradava estar na parte mais alta do castelo em meio ao pior da tormenta. Porém, correr sob a chuva fria não seria a melhor opção.

O conde estava correto, a tempestade logo di­minuiria de intensidade. Mesmo assim, era difícil permanecer calma.

Trêmula, tentou refrear a ansiedade. Era uma mulher crescida, não uma criança dominada por medos.

— Já vi muitas tempestades — comentou. —... Nossa!

Um imenso raio atravessou o céu, antes que uma potente trovoada ecoasse.

Samantha pulou de susto. Ao mesmo tempo, Robert virou-se para assegurá-la e, de alguma ma­neira, tomou-a nos braços, acordando o bebê. O ferimento começou a sangrar, algo que Samantha notou quando se afastaram.

— Está ferido! — ela exclamou, apesar do choro da criança.

— Não é nada. Vou tratá-lo quando descermos.

— Mas está sangrando demais. — A necessi­dade de Dryden sobrepujou o medo. Ela olhou em volta, à procura de um tecido com o qual pudesse estancar a hemorragia, mas nada havia.

Alheia à tormenta, Samantha saiu à porta para achar um sentinela. Deviam estar todos abrigados da chuva.

— Tome. — Ela entregou o bebê a Robert. — Segure-a por um instante.

Pasmo, Robert sustentou a menina no outro bra­ço e observou Samantha abaixar-se para erguer o vestido. Ao puxar barra de linho sob o traje, ela expôs um lindo par de pernas esguias. Dryden sentiu a garganta ressecar e desviou o rosto.

Ouviu o tecido sendo rasgado e, de súbito, ela voltou, pegou o bebê e enrolou o pano no ferimen­to» estancando o sangue.

— Devia cuidar deste machucado, milorde — Samantha o repreendeu. Não podia avaliar a extensão do ferimento através da túnica, mas dada a quantidade de sangue, sabia ser profundo. — Vai acabar perdendo o braço, se não tratá-lo.  

— E o que você sabe sobre perder membros? — Robert perguntou, agastado.

Samantha enrijeceu. O tom de voz havia mudado. Agora ele se assemelhava aos arrogantes saxões que conhecia. O conde de Alldale poda muito bem ter estado entre os soldados que ar­rasaram Pwll e outras fronteiras galesas em re­tribuição à revolta Glendower.

Samantha não devia alimentar sentimentos ter­nos por um aristocrata saxão.

Eram todos iguais.

O que ela sabia sobre perder membros? Não se daria ao trabalho de relatar as terríveis chacinas que seu povo sofrerá, tampouco detalhar as per­das. Nem queria recordar as atrocidades cometi­das por alguns porcos saxônios.

Indignada, Samantha jogou o outro pedaço de pano na mão de Robert. Após ajeitar o bebê sob a manta, ela precipitou-se pela chuva, correndo em direção à escada que dava acesso às depen­dências do castelo.

Dryden pressionou o tecido sobre o ferimento e praguejou consigo por ser um idiota.

A mulher só queria ajudá-lo e ele acabara por insultar-lhe a inteligência, como se falasse com uma imbecil. Não pretendia ofendê-la, mas qual­quer referência à perda de membros o deixada enfurecido.

Como alguém podia saber como era perder... um olho? Com certeza, Samantha, a petulante irmã de Owen Tudor, não sabia.

Não havia dúvidas de que estava zangada. Ela cerrou os lábios com tamanha pressão que se tor­naram tão brancos quanto a luz dos raios. E os profundos olhos azuis brilharam de raiva.

E, enquanto acomodava-se para assistir à na­tureza tumultuada da chuva, Robert lamentou a atitude grosseira. Samantha já havia sido acha­cada pelo irmão. Certamente não necessitava de um tratamento semelhante da parte dele.

 

Robert e a rainha Catherine, acompa­nhada de seu séquito, fizeram uma minuciosa vistoria no vilarejo com o objetivo de avaliar os danos causados pelos inimigos e con­solar os habitantes.

Na opinião de Dryden, Catherine era uma mu­lher extraordinária. Seu filho um dia se tornaria o rei Henry VI sob a orientação de uma rainha apta a governar. Ela aprendera valiosas lições com o marido durante o curto período de casada. Uma em especial era cultivar o apego do povo para com seu monarca.

Robert Dryden e Owen Tudor a acompanha­vam naquela missão de solidariedade. Catheriy.? oferecia pequenos presentes aos habitantes, cor fitas, tecidos e sacolas de couro. E questiona os súditos acerca de suas perdas e necessidade após a batalha.

Lady Marguerite seguia a comitiva ao lado de Nicholas Becker e sir George. Conversavam sobre o suprimento de comida, a sobrevivência dos ani­mais e a morte de alguns pais de família. Pediam conselhos a Nick e Robert referentes a métodos de segurança e sobre como proteger o povoado de ataques futuros.

Não havia soluções simples ao problema que Clairmont enfrentava, mas Robert sabia ser pos­sível criar novas estratégias. Ele e Nicholas juntos poderiam reunir cerca de cem cavaleiros dispostos a lutar. O único obstáculo seria o pagamento. Clairmont teria dinheiro suficiente para sustentar a força adicional?

Se houvesse um plano de racionamento teriam provisões até o fim do inverno. Alguns suprimen­tos poderiam ser importados. Robert sabia que Alldale, entre outros legados, tivera uma safra produtiva. Era possível comprar determinados produtos básicos. Novamente tratava-se de uma questão de fundos.

— Veja, Owen — a rainha disse, apontando o pasto distante. — É Samantha, non?

Dryden fitou o horizonte quando Owen seguiu a indicação da rainha e todos divisaram Samantha no alto da colina, rodeada de crianças. Para Robert ela não passava de um ponto no campo. Estava longe demais a ponto de discernir as feições, mas não precisava vê-la para saber como era seu sor­riso. Ou a expressão insolente.

Owen suspirou, frustrado.

— Vou chamá-la, Vossa Majestade, e...

— Non, Owen — Catherine interveio. — Deixe-a.

— Mas...

— Não vê, Owen? Samantha recolheu todas as crianças e levou-as a um passeio. Ela as está dis­traindo com... — a rainha procurou a palavra cor­reta em inglês — brincadeiras. Veja como estão sentadas em círculo e há um menino no centro. — Tem razão, Majestade — lady Marguerite concordou. — Como ela é esperta.

A risada de Samantha podia ser ouvida a dis­tância, assim como o riso inocente das crianças. Robert supôs que era realmente esperta por ter afastado os menores enquanto os adultos limpa­vam a cidade e tratavam dos ferimentos.

A irmã de Tudor parecia possuir uma maneira especial de tratar os infantes, ele concluiu, talvez porque fosse também infantil.

Samantha deveria retornar ao castelo ou per­manecer mais perto da fortaleza. Não havia ga­rantia de que o combate espantara todos os es­coceses da área. Robert jamais conhecera alguém tão singelo e ingênuo. Duvidava que ela sequer pensasse na própria segurança.

Voltou a atenção à castelã de Clairmont. De forma sensata e firme, Marguerite Bradley en­xergava as responsabilidades com profundo sen­so de dever. Mostrou-se astuta quanto à situa­ção do povoado. Ações emergenciais tinham de ser realizadas para dar continuidade à vida dos camponeses. Robert estava certo de que a dama o faria. Tudo em Marguerite indicava eficiência e compromisso.

A postura da castelã era séria, cuidadosa e com­petente. Não existia futilidade ou disparate na mulher. Até as roupas demonstravam sua elegân­cia discreta. Sedas caras e cortes da moda repre­sentavam a perfeição. Os sapatos sempre combi­nando com as vestes. Não havia um só fio solto nos cabelos muito bem penteados.

Robert olhou para Samantha quando esta, rin­do, jogou-se no gramado ao redor das crianças. Voltou a estudar o perfil de Marguerite. A lady de Clairmont era linda, pensou, além de inteli­gente e moderada. Um prêmio que qualquer ho­mem teria orgulho em receber.

Daria uma ótima esposa. Enfim, Robert decidiu fazer o pedido de casamento quando retornassem ao castelo.

Mas não antes de garantir que lady Samantha e as crianças não se afastassem da cidade.

Samantha queria ter mais algumas semanas de liberdade. Adorava cantar e brincar com crian­ças, cavalgar nas cercanias do castelo, nadar nas águas frias do lago... Baixou os olhos, resignada. Em breve, viajaria a St. Ann, onde seria privada de tudo que mais amava.

Sabia muito pouco acerca dos costumes que eram seguidos num convento, seu conhecimento vinha somente das histórias que escutara de di­ferentes povos ao longo dos anos, e não tinha motivos para duvidar do que lhe disseram. Por exemplo, a abadessa iria trancá-la em uma "cela" todas as noites, na qual dormiria sobre um leito de palha.

Ouvira dizer que as freiras raspavam os cabelos e sobre a cabeça mantinham um horrível pano negro firmemente preso ao redor do rosto. Deviam sentir muito calor, supunha Samantha, e ainda eram obrigadas a passar horas de joelhos rezando pela salvação das almas de toda Inglaterra.        

Mas a maior dificuldade seria eliminar Robert Dryden de sua mente. Achava impossível conse­guir. O homem perseguia seus pensamentos desde a manhã em que matara o javali na floresta. Ele lhe salvara a vida, logo, não podia esquecê-lo... Tampouco a maravilhosa sensação de tê-lo por perto.                                                                  

Estremeceu ao recordar Robert desamarrando o vestido ensopado antes de envolvê-la no cobertor. Samantha jamais experimentara emoções tão intensas. Era como se o conde acendesse um misterioso fogo dentro dela. Partes de seu corpo se tornaram super sensíveis e o homem mal a tinha tocado!

As mãos eram rudes, mas gentis. As palavras soavam objetivas, porém embebidas de carinho. Ao menos, ele fora carinhoso até Samantha men­cionar a perda de um membro. Claro que não pre­cisava dizer a Robert Dryden nada referente a perdas. Havia merecido a grosseria que o conde lhe fizera durante a tempestade.

Suspirando, Samantha reuniu as crianças e sentaram-se sobre as folhas secas, amontoadas ao pé de um carvalho. Tinha de parar de pensar em Robert e aceitar seu destino.

A decisão de Owen era definitiva. Samantha seria forçada a viver em St. Ann.

― Em minha terra há um lugar chamado Llanfabon, onde as fadas gostam de fazer travessuras.

― Samantha contou, enquanto uma das meninas ajeitava seus cabelos. Outra garota colheu algumas flores e enfeitou os cachos avermelhados. — E, em Llanfabon, viviam uma viúva e seu filho, Pryderi.

Ao narrar o antigo conto, Samantha esperava controlar os pensamentos. Era inútil cismar com Robert Dryden ou seu fantástico heroísmo.

O conde mostrava-se reservado e sério demais. No mínimo, não sentira nada quando despiu Sa­mantha. Afinal, ela não inspirava desejos arden­tes nos homens.

Ignorando a sensação de derrota, ela prosseguiu a fábula:

— Um dia, enquanto a viúva preparava o desjejum do filho, ela escutou uma agitação do lado de fora. O gado estava agitado. A mãe de Pryderi ficou preocupada.

— O que poderia ser? — perguntou uma menina.

— Era um lobo! — exclamou outro menino.

— Não — Samantha dramatizou. — Lembrem-se, havia fadas naquela região...

De repente, as crianças iniciaram um interro­gatório interminável. Queriam saber se fadas exis­tiam e se elas haviam provocado os porcos e as vacas de Clairmont. Estavam tão entretidos na história de Samantha que nem sequer notaram 0 cavaleiro que se aproximava.

Robert retardou a volta ao castelo para pedir a Samantha que afastasse as crianças da floresta pois podia haver escoceses à espreita. Pretendia ser breve, mas resolveu parar e escutar o som suave da voz e o místico sotaque galés.

Ela continuou a narrativa quando as crianças se acalmaram:

— Quando a pobre mãe retornou à choupana, suspeitou que algo tinha mudado. "Oh, criança!", ela exclamou. "Você se parece com meu querido Pryderi, mas está diferente. Creio que não é meu filho que está aqui".

As crianças encaravam Samantha, ansiosas.

— O menino, que estava diferente, acordou e disse: "Claro que sou eu, mãe. Quem mais po­deria ser?"

— As fadas tiraram Pryderi da mãe? — uma menina indagou.

— Elas a desafiaram? — um garoto sugeriu.

— A boa mãe não tinha certeza — Samantha respondeu. — Mas só havia um jeito de descobrir. Iria perguntar ao velho sábio do vilarejo...

Encostado no tronco da árvore, Robert obser­vava o comportamento de Samantha. Era uma ótima contadora de histórias. Mudava o tom de voz e gesticulava devagar para enfatizar as cenas. A primeira impressão que tivera da galesa não fora justa, concluiu. Viu-se fascinado pela magia da voz e delicadeza das mãos.

Tomado de encanto, Dryden imaginou como se sentiria caso ela o tocasse. Não queria vê-la tratando seu ferimento, tal qual a noite anterior. Desejava a suave carícia da ruiva temperamental, oura e ingênua, cujo prazer de viver se manifes­tava quando rodeada de crianças.

__...e a mãe do menino escutou o conselho do velho sábio — Samantha prosseguia. — "Precisa realizar uma difícil tarefa", dissera-lhe o ancião. "Ache uma galinha tão preta quanto a noite, e cujas penas não reflitam a luz. Feche-a em sua choupana, tranque portas e janelas, mas deixe a chaminé aberta. Acenda o fogo e cozinhe a ave na lareira..."

O conto terminou com um final feliz e somente após Samantha descrever a felicidade de Pryderi e sua mãe que as crianças repararam na presença de Robert à sombra do carvalho.

No mesmo instante, todos fitaram o homem de tapa-olho preto.

— E lorde Alldale — Samantha disse, tão sur­presa quanto as crianças. Ela se levantou depres­sa. — Foi ele quem me salvou do javali que queria me "engolir" com seus dentes afiados... — Ela agarrou um menino e o rodopiou, às gargalhadas.

Sem explicação, Robert sentiu ternura no cora­ção ao ver Samantha brincar com o menino, tendo as saias flutuando ao redor dela. Então aproxi­mou-se do grupo.

— Lady Samantha, seria melhor ficar mais per­to do povoado.

— Por quê, milorde?— Os olhos inocentes brilhavam.

Hesitante, Dryden não via motivos para estra­gar a alegria de todos.

— Porque... me parece que vai chover outra vez — improvisou.

Samantha fitou o céu.

Estava correto. Outra tempestade se formava. Ela sorriu, encantada. Fora muita consideração preveni-la.

— Vraiment, estou envaidecida, lorde Alldale.

— Marguerite disse, em resposta ao pedido de Robert.

E ela corou, embora a pose digna evidenciasse tato. Não houve nenhuma indicação de repulsa à proposta de casamento. O leve rubor das faces e uma sutil torção nos lábios... Robert só notou os pequenos sinais porque estava habituado a aver­sões e olhares de desdém.

Uma vez seu rosto fora bonito. Na juventude vivera satisfeito com a própria aparência, gostava de desafios ou de partilhar momentos festivos com os amigos. Era sempre solicitado em batalhas e reuniões sociais.

Naquela época, as mulheres jamais desmaiaram ante seu charme irresistível, porém algumas bel­dades deitaram-se com ele. Não que desejasse ter criaturas vazias e vãs consigo. Já tinha visto mui­tas damas desfalecerem ao reparar nas cicatrizes e na ausência do olho. Sabia que receavam ser tocadas pelas mãos disformes.

Marguerite encontrava-se sentada em seu solário, e Robert permanecia em pé, livre para se retirar quando quisesse. Recusava-se a sucumbir à reserva de lady Marguerite. Sabia quão repug­nante era aos olhos da bela castelã, e o sacrifício que faria para conceber uma vida em comum com um marido desfigurado.

Robert endireitou o corpo. Nunca voltaria a ser o que era antes do infortúnio em Windermere. Mas ainda se via como um homem capaz. Forte outra vez. Marguerite podia estar à mercê de um pretendente pior. Ele tinha bens, e jamais pediria favores à viúva rica! Alldale, um próspero legado, pertencia somente a ele.

A dama tomou um gole de vinho, protelando o momento.

— Como deve saber — Marguerite anunciou, por fim —, recebi mais dois pedidos de casamento.

— Sim, eu soube. — E não se importou. "Es­colha", Robert disse consigo, "para que possamos prosseguir de um jeito ou de outro".

— Meus pais faleceram — Marguerite acrescentou.

— Não tenho nenhum parente para me aconselhar.

— E Sua Majestade, a rainha?

— Somos muitos amigas, é verdade. Mas Cathe-rine sugeriu que eu escrevesse a meu tio em Lyon, pedindo-lhe sugestões e... talvez seu consentimento.

— Entendo.

— E preciso solicitar a permissão do conselho em Londres. Eles devem ter certas restrições...

— Sim, estou ciente das restrições do conselho

— Robert a interrompeu e virou de costas.

Que humilhação! Por que concordara em vir Clairmont? Ele se voltou e encarou-a.

— Não encontrará nenhuma objeção junto at conselheiros, milady. Mas concedo-lhe o tempo que precisar.

— Obrigada, milorde — Marguerite agradeceu, tímida. — E muito generoso.

— Se me permitir, ficarei em Clairmont até to­mar sua decisão.

— A decisão não cabe somente a mim... Robert ergueu as mãos.

— Tanto faz. Se não for inconveniente, vou per­manecer aqui.

— Será sempre bem-vindo, milorde. — Marguerite adquiriu a usual cortesia. — Sinta-se à vontade.

Com certeza, Marguerite considerava o pedido só porque Robert provara ser valioso em batalha, e não por desejar esposá-lo. A despeito da impe­cável educação, a castelã ganhara tempo para in­quirir o tio e os demais conselheiros. Tempo a fim de se preparar para uma união indesejável.

Apesar da rejeição, Robert preferia ficar em Clairmont a retornar a Windermere ou a Alldale. Ele e Nicholas iniciavam o treinamento dos ho­mens com espada, lança e arco.

Depois de organizar patrulhas para rastrear a vizinhança, voltaram ao vilarejo com o intuito de auxiliar os habitantes nas tarefas mais pesadas antes de começar a reconstrução das casas.

No fim da tarde, Dryden foi ao jardim do castelo aproveitar os últimos raios de sol em paz. Espaços amplo e o ilimitado céu confortavam sua alma, como sempre.

Havia muito trabalho a realizar em Clairmont e o excesso de atividade o revigorava. Era es­tranho empreender metas, lutar por objetivos definidos. Estava cansado fisicamente, mas sen­tia-se bem.

Acomodado no banco de madeira, apreciou a brisa fresca do entardecer. A movimentação no castelo ecoava a distância. Robert relaxou, esque­cendo-se do passado. Tentou imaginar Clairmont como seu lar. Caminhar ao longo dos parapeitos do castelo, vigiar a fronteira pelo resto da vida. Viver com Marguerite.

— Maman! Regarde!

Robert avistou petit Henri correndo em sua di­reção e sorrindo.

O menino ultrapassou o grupo de adultos, pulou no colo de Dryden e o abraçou com extremo afeto.

— Lorde Alldale, não se levante — a rainha pediu ao se aproximar. Notou o contentamento do filho no colo do conde. — A tarde está linda para um passeio, non?

Robert concordou com Sua Majestade. Após a chuva, o céu tornou-se límpido e o vento, suave. Ele estava exausto, mas satisfeito com o dia pro­dutivo. No entanto, a paz da tarde se dissipara ao ser interpelado por aquelas pessoas, incluindo Owen Tudor e a irmã.

Lady Samantha usava o vestido amarelo que rasgara na floresta quando havia sido atacada pelo javali. O corpete fora costurado e mal se notava o defeito. Contudo, Robert não esquecera a exposição da pele macia e a intensidade dos olhos azuis.

Depois de acalmar os pensamentos, achou que a cor combinava com Samantha, ensolarada, ino­cente e aberta. Uma mulher!

Os cabelos estavam presos. Mas Robert duvi­dava que houvesse grampos suficientes no reino para manter aqueles cachos rebeldes no lugar. Perguntou-se o que ela fizera com as flores que a enfeitavam naquela manhã.

— Há um duro treinamento a ser feito com os cavaleiros de Clairmont? — a rainha quis saber acomodando-se ao lado de Robert.

— Estão em boa forma, Majestade, mas preci­sam de um líder.

Catherine fitou-o, desconfiada. Já devia estar a par da proposta de casamento. Ela conhecia a história de Robert e suas qualidades. Marguerite Bradley era muito amiga da rainha e esta, por sua vez, queria ver a castelã muito bem casada. E, acima de tudo, feliz.

— Lorde Alldale, podia prover esse líder para Clairmont.

Robert assentiu apenas.

— Não tenho dúvidas de que é um excelente cavaleiro — Catherine confessou. — Foi o primeiro tenente de meu marido na França. E Henri não admitia falta de competência.

― Samantha! — o pequeno rei exclamou quando a viu em sua linha de visão.

Pulando do colo de Robert, o menino correu até a galesa que o carregou nos braços.

— Parryl — Samantha usou o apelido em galés que dera ao rei e o abraçou, sorridente.

Quando ela beijou o rosto angelical da criança, Robert sentiu o próprio corpo se aquecer.

— Já se curou de sua terrível experiência em Windermere? — Catherine indagou, chamando a atenção de Robert.

Fortes emoções começaram a fluir. Ninguém co­mentava sobre as atrocidades cometidas em Win­dermere na frente de Robert. Nem ele tinha in­teresse em discuti-las agora. Não quando as mãos de Samantha Tudor afagavam o menino e os lá­bios beijavam-lhe a face.

Com algum esforço, Dryden voltou-se à rainha.

— Sim, Majestade. Estou totalmente recuperado. Henry soltou uma risada e escondeu o rosto no

pescoço de Samantha.

O sangue de Robert ferveu. Levantou-se de for­ma abrupta.

— Meus ferimentos foram superficiais. Como pode ver, estou curado.

— Claro, Alldale. — A rainha estranhou a rea­ção de Robert. — Eu nunca diria o contrário.

— Perdoe-me, Majestade — Dryden pediu, des­concertado —, por ser brusco.

— Não se desculpe. — Catherine levantou-se também e aproximou-se de Samantha e Henry.

— Está com ótima aparência. Eu não devia ter perguntado, Alldale. — Então, resolveu mudar de assunto. — Como avalia os danos no vilarejo de Clairmont?

— O povoado perdeu muitos homens, Majes­tade. E...

— A reconstrução será complicada, Alteza — Samantha interveio. — Ronald Beak, o carpintei­ro, foi morto em batalha.

— Verdade? Lady Marguerite sabe disso?

— Não creio — Samantha respondeu. — Mas muitos trabalhadores morreram e tal perda irá prejudicar o plantio. Ainda há muito trabalho a ser executado durante o outono para garantir as provisões de inverno. Arar a terra não é tarefa fácil. Tampouco colher os cereais.

— O que sabe a respeito disso, Samantha? — Catherine perguntou, curiosa.

Constrangida, Samantha reparou que era tarde demais para se calar. Owen com certeza a re­preenderia por ser tão insolente diante da rainha.

— Todos em meu vilarejo trabalham, Majesta­de. Mesmo os senhores de feudos. Quando fomos atacados... muita gente morreu. — Os olhos azuis faiscaram de repente, Robert notou. — O povo passou fome e não havia ninguém para trabalhar na plantação.

— E depois, Samantha?

Não podia reprimir-se, ela refletiu, após ter re­velado tanto.

— Vários morreram de fome, Majestade. Esperimente os menores — Samantha acrescentou, alheia ao carinho que fazia nos cabelos de Henry.

O pesadelo sempre se repetia.

Robert sentiu as correntes em volta dos pulsos, braceletes de ferro nos tornozelos e o chão úmido gelado sob os pés. Estava escuro e o odor da morte impregnava-se naquele lugar tenebroso.

Esperava. Queimava por dentro.

Uma luz atravessou o ar. Olhos amarelos es­piavam, dentes rangiam.

Dor aguda. Sofrimento dilacerante!

A voz rouca, quase um murmúrio inaudível, de uma senhora. Gemidos, choro. Balbucio sem sentido.

Sangue por toda parte. Ele podia sentir o gosto metálico na boca. O clima de puro desespero.

Dedo... esmagado. Oh, Jesus, Maria e José, sua mão!

Os olhos agora. Não, por favor!

Robert gritou e sentou-se na cama. Gotas de suor escorriam pela testa, pingando no peito. Ofegante, levantou-se e acendeu uma vela para es­pantar as sombras do quarto.

Em seguida, alimentou a lareira, eliminando de vez a escuridão. Trêmulo, pegou um pano e se en­xugou. Sentou-se então na poltrona diante do fogo e tentou amenizar a turbulenta aura do sonho.

Samantha Tudor surgiu-lhe à mente.

Brilhante e ruiva. Com o sorriso sincero que o estonteava. A princípio, imaginou-a infantil e caprichosa.

Seu relato naquele fim de tarde, porém, mostrara que não era tola. Havia muito mais que fadas e florestas em Samantha Tudor.

Apesar do ataque ao povo galés e da inanição das crianças, Robert acreditava que nenhum pen­samento sombrio podia macular a pureza da alma de Samantha.

 

Dois dias foram necessários para que as cozinheiras do castelo preparas­sem à ceia formal oferecida à rainha e ao seu cortejo. Nicholas insistia com Robert para que ele comparecesse ao evento.

— Não pode continuar ignorando lady Marguerite — Nicholas argumentou, irritado. — Já fez o pedido de casamento. Ao menos, demonstre interesse.

— Estou interessado — Robert protestou. — Pedi a mão dela, não?

Percebendo a perturbação de Robert, Nick re­solveu retirar-se. Becker estava dando importân­cia demais ao pedido.

Uma aliança com o novo senhor de Clairmont iria beneficiar Nicholas, Wolf Colston e vários se­nhores da vizinhança. Portanto, seria uma união estratégica.

Se Marguerite aceitasse outro pretendente a ma­rido, que assim fosse. Os proprietários de terras po­deriam se aliar ao escolhido da castelã. E Robert então rumaria a Alldale, uma viagem que já adiara demais, e se tornaria senhor do próprio legado.

Praguejando contra a tediosa obrigação, Robert preparou-se para cumpri-la. Lady Marguerite po­dia muito bem usufruir as festividades sem que ele participasse. Não necessitava da presença do suposto noivo, tampouco precisaria de um marido para organizar festas.

Tão logo se casasse com Marguerite, e tinha certeza de que a dama seria dissuadida a esco­lhê-lo, Robert colocaria um fim naquelas babosei­ras inúteis e cansativas. As constantes festas em Clairmont estariam encerradas.

Cumpriria seus deveres de marido e sua esposa não pediria nada além disso.

Samantha adorava festas.

As damas da rainha usavam os modelos mais finos da corte, e uma delas emprestara a Saman­tha um lindo traje cor de violeta. O vestido era detalhado com pequeno botões de marfim, desde o decote até a altura dos quadris. As mangas bufantes possuíam listas coloridas.

Radiante, Samantha saboreava cada momento. Ja­mais usara uma guarnição tão elegante! Mas perma­neceu atenta para não se sujar ou rasgar as mangas.

Uma das auxiliares da rainha Catherine arru­mou seus cabelos em um simples e requintado penteado e enfeitou a brilhante cabeleira aver­melhada com um arco de flores. Sua Majestade em pessoa oferecera um pingente de ouro e Owen, muito a contragosto, deixara a irmã usar o anel do pai no qual estava gravado o brasão dos Tudor.

Ele teve de admitir que Samantha estava ado­rável, embora fosse destinada ao convento.

Um fato, aliás, que pretendia esquecer naquela noite. Seria sua última diversão antes da clausura em St. Ann. Iria aproveitar cada minuto.

Queria saborear a soberba cozinha de Clairmont, jogar cartas e outras distrações, e dançar para agra­dar seu coração. Por fim, deitar-se-ia sabendo que havia provado as pequenas alegrias que, ela sabia, lhe seriam proibidas nos próximos anos.

Owen a escoltou ao grande saguão, lindamente decorado para a comemoração. Os menestréis da rainha já iniciavam os primeiros acordes. Uma dupla de rapazes cantava em harmonia com os músicos enquanto os lordes e as damas festejavam a vitória.

Nicholas Becker apareceu acompanhando a rai­nha. Em seguida, surgiu Robert Dryden com lady Marguerite.

— O que houve? — Owen perguntou, ao sentir a tensão de Samantha.

— Nada, Owen — ela replicou, evitando olhar para o caisaL

Robert estava tão atraente e charmoso naquela noite que Samantha percebeu o coração disparar ao vê-lo. Nada poderia estragar a atração que sen­tia pelo homem sombrio e solitário, e não tencio-nava instigar outra repreensão por parte de Owen.

Já era suficiente poder participar da festa e, talvez, conversar com Robert mais tarde. Porém, Samantha sabia que uma pessoa de baixa posição como ela não ganharia muita atenção do enigmá­tico herói de Clairmont.

A noite progrediu de forma satisfatória, sem nenhum entrevero sério à mesa e nenhuma gafe vergonhosa. Os companheiros de Samantha eram agradáveis, embora um jovem nobre se mostrasse inconveniente.

No passado, cada vez que mencionava tais liber­dades a Owen, ele a acusava de estar exagerando, de recriminar a atitude amigável dos londrinos.

E Owen podia ter razão. Talvez ela atribuísse maio­res proporções ao comportamento masculino. Afinal, não estava acostumada ao protocolo da corte, tam­pouco ao convívio com estranhos. As famílias de Pwll haviam aprendido quão custoso era travar relações com um Tudor. Apesar de não a evitarem, os galeses não faziam questão de construir forte amizade.

E Samantha não desejava testemunhar outra tragédia semelhante à de Idwal e Dafydd. Não podia arriscar a vida daqueles que a acolheram após a morte de seu pai.

Como resultado, nunca sabia como agir ante tantas atenções. Conseguira evitá-los desde que chegara a Clairmont, mas agora seria impossível. E pior, estava sentada ao lado de Dwayne Morton, considerado o mais libertino dos ingleses.

Ciente de que devia comportar-se e ignorar a ousadia dos homens, Samantha concentrou a energia apenas na festa. Afinal, não lhe restava muito tempo até trancafiar-se em St. Ann.

As formalidades à mesa principal tornavam-se mplexas sendo a rainha o ponto central. Lady Marguerite sentou-se entre Nick e Robert. Os membros da nobreza, que faziam parte do séquito de Catherine, foram acomodados conforme a po­sição que ocupavam junto à realeza.

Robert ateve-se à refeição, indiferente à con­versa em francês que acontecia ao redor. Deixou Nicholas atender as necessidades de Marguerite, uma vez que ela se encontrava ao lado de sua visão prejudicada, o que o impossibilitava de vê-la.

Contudo, Samantha Tudor encontrava-se em sua linha de visão, com duas damas e três inúteis ingleses que haviam ido a Clairmont como inte­grantes do séquito real.

Por que nunca tinha notado o delicado pescoço de Samantha? Como podia lhe parecer tão graciosa e refinada agora? Seriam os cabelos cor de fogo tão bem penteados? Robert não sabia responder.

Por que ela não prendia aqueles cachos rebeldes que lhe caíam sobre a testa e as faces, moldando seu adoráveV rosto? Desviou o olhar e tomou um longo gole de^cerveja. Tentou lembrar-se das co-vinhas perto dos lábios carnudos que traziam tan­ta graça àquele rosto angelical.

Jamais havia reparado no charmoso detalhe.

A ceia foi interminável para Robert, que lançava olhares fugidios a Samantha. Não gostava do jeito que o jovem londrino se insinuava. E os outros dois, também grosseiros cavalheiros, fitavam cer­tas partes da anatomia feminina.

Onde, em nome de Deus, estava o irmão da mulher? Robert procurou Owen Tudor, mas não o encontrou em lugar nenhum. Ele não devia to­mar conta de Samantha? Tinha de mandá-la tro­car aquele vestido ousado por um traje que não deixasse exposta a curvatura dos ombros e... os seios fartos.

O grave arranhão que Samantha sofrerá na ma­nhã em que ele matara o javali agora era apenas uma pequena marca avermelhada. Não maculara a expansão da pele alva exposta pelo justo corpete.

Moveu-se incomodado em sua cadeira. A gar­ganta ficou seca. Se ela se mexesse muito, correria o risco de os seios pularem para fora daquele ves­tido. Como o irmão lhe permitira tamanha falta de pudor?

Robert engoliu uma boa dose de cerveja, na ten­tativa de esquecer a presença de Samantha Tudor. Como se vestia e que homens a cortejavam não era problema dele. Precisava participar da con­versa em sua mesa. Ao olhar para Marguerite, no entanto, notou que a dama usava um vestido semelhante ao de Samantha. E a rainha Catherine também.                                                

Porém, os trajes de Marguerite e da rainha não eram tão reveladores. A pele à mostra não lhe parecia provocante, tampouco perturbadora... como a de Samantha.

Os profundos olhos azuis brilhavam de conten­tamento. Robert estremecia cada vez que o inso-lente londrino cortava um pedaço de carne e o oferecia a Samantha. Ela não tinha o próprio ta­lher?* pensou, sentindo a irritação crescer enquan­to observava os lábios rosados e úmidos.

Afrouxando o colarinho, Robert ansiava para que aquela ceia terminasse logo. Os criados não precisavam continuar a alimentar o fogo, uma vez que o salão se encontrava bem aquecido.

O nobre rebuscado, sentado ao lado de Saman­tha, sorriu e abraçou-a pela cintura quando os brindes começaram. A paciência de Robert esgo­tou. Levantou-se abruptamente para deixar a mesa e reclamar a liberdade excessiva do compa­nheiro de Samantha.

De repente, aplausos e vivas ecoaram pelo saguão.

Olhou os rostos em volta e percebeu, para seu desagrado, que estava sendo aclamado como herói. Samantha também encontrava-se em pé, erguen­do seu cálice e sorrindo de puro deleite.

A fim de satisfazer a multidão, Robert ergueu sua bebida, inquieto ante a despretensiosa mulher que o homenageava.

Vários brindes seguiram o primeiro e, logo de­pois, a rainha liberou a multidão para se espa­lharem pelo salão.

Enfim, quando Robert fez menção de fugir, sir George pediu-lhe que detalhasse a ardorosa ba­talha contra os escoceses.

As mesas foram recuadas e os músicos iniciaram uma balada tradicional para que os convidados dan­çassem. Robert explicava a sir George as idéias que tinha a fim de aprimorar a defesa de Clairmont.

— Com licença, milorde — lady Marguerite interrompeu a discussão de Dryden com o procurador

Ele se virou e deu atenção à dama. Sabia que for negligente durante o jantar, mas não acreditava que Marguerite tivesse se importado. Afinal, havia deze­nas de pessoas à mesa capazes de entreter a anfitriã,

Robert não se incluía na lista, muito menos fin­gia ser sociável.

— Por favor, perdoe-me, milorde — ela conti­nuou, pouco à vontade. Marguerite evitou fitar o único olho. — Está ficando tarde... Sua Majestade e eu iremos nos recolher agora.

— Vou acompanhá-la...

— S'il vous plalt — ela suplicou, como se não quisesse passar mais tempo com Robert. — Por fa­vor. Os guardas da rainha nos acompanharão. Não precisa interromper a conversa com sir George.

Quando Marguerite retirou-se, Dryden resumiu a discussão com o procurador, ciente ainda do mal-estar entre ele e a suposta noiva.

Cedo ou tarde, a castelã teria de se decidir quan­to ao casamento. A idéia de esposá-la não se tor­nara mais atraente do que antes, e tinha certeza de que a dama partilhava da mesma opinião.

Mas o pedido fora feito e Robert estavá agora comprometido. Não havia meios de cancelar a oferta de casamento.

A música prosseguiu alegrando a festa. Muitos convidados se dirigiram às salas menores ou alcovas para carteado ou qualquer outro jogo. Cria­dos serviram vinho a Robert.

 

Sob a luminosidade dos inúmeros candelabros,dançarinos se organizavam em duas fileiras, empreendendo passos complicados com as respectivas parceiras. Caminhavam ao centro e depois recuavam ao ritmo da música.

A melodia contagiante o fez recordar Samantha. Robert procurou-a, e não conseguiu avistá-la em meio à multidão. Tampouco viu o irmão, logo, acre­ditou que Owen a escoltara aos seus aposentos. Era tarde e ela devia estar cansada.

Apesar de Samantha parecer feliz com a come­moração, não teria a insensatez de privar-se de uma boa noite de sono.

Ou teria?

— Deixe-me em paz, Dwayne — Samantha pediu ao jovem nobre que se tornava cada vez mais abusivo.

Em Londres ou durante a jornada a Clairmont, Dwayne Morton soubera se comportar. No entan­to, desde o início da ceia, naquela noite, ele a assediava ignorando seus protestos. Samantha agora tinha certeza de que Owen se enganara em relação ao amigo. A cada investida ela perdia a paciência e o inglês recusava-se a soltá-la.

No instante em que conseguiu escapar de Dway­ne, Samantha tentou localizar Owen entre a mul­tidão, mas ele havia sumido. Embora não quisesse se retirar da festa, teria de fazê-lo já que Morton impedia sua diversão.

Resignada, tomou o último gole de vinho e, ao se virar, deparou-se com Dwayne outra vez.

— Venha comigo até o pátio — ele convidou-a, tomando-lhe a mão.

— Não, Dwayne. — Samantha o empurrou. -—. Não quero sair com você.

— Você me magoa, Samantha. Provocou-me a noite inteira e agora diz não. Eu...

— Pare, Dwayne — ela exigiu, sabendo que fora apenas educada com todos à mesa. — Solte-me, por favor.

Dwayne expressou o que devia ser um sorriso , malicioso e não a soltou.

— E uma moça muito difícil, Samantha. — Dwayne puxou-a em direção a uma galeria escura. — Quando a conheci em Londres, pensei que podíamos...

— Não! Deixe-me em paz! — Samantha excla­mou e virou-se para fugir.

Robert sentia que tinha passado horas caminhan­do pelo parapeito do castelo a inspecionar alojamen­tos, portões e depósito de armas com sir George e alguns cavaleiros de Clairmont. Sugeriu melhorias e falou de novas estratégias militares, deixando os homens ansiosos para implementar mudanças?

Nesse ínterim, os incansáveis menestréik pros­seguiam no salão proporcionando horas agradá­veis ao pessoal que se divertia.

Não sabia o que lhe acontecia. Não era de seu feitio distrair-se facilmente, mas não conseguia fixar a atenção em armamentos e fortificações. Imaginava as pessoas dançando e visualizou Samantha Tudor sendo cortejada por algum nobre da corte.

― Se não se importa, milorde — George disse ― Gostaria que falasse aos homens amanhã para explicar as modificações que o senhor recomendou.

Robert concordou. Tal tarefa ele podia realizar sem esforço. Tirar Samantha dos pensamentos era bem mais complicado.

— Até amanhã, milorde — sir George despe­diu-se e recolheu-se a seus aposentos.

Ao voltar à festa, Robert esgueirou-se entre os convidados, na esperança de poder retirar-se antes que o interpelassem.

Quando se aproximou dos fundos do saguão, um movimento estranho chamou-lhe a atenção. Lady Samantha era coagida a passar por uma porta em arco pelo mesmo rapaz esnobe que a acompanhara à mesa. E ela não parecia disposta a ceder.

Robert agiu por instinto. Ágil, marchou em di­reção ao arco onde a vira. A dança continuava e ninguém falou com ele ao atravessar a multidão.

Segurando o punho da espada, adentrou um es­treito corredor. Mais cinco passos e ele divisou uma Samantha colérica. Quando, de repente, o rapaz tentou beijá-la, ela jogou o conteúdo de seu cálice no homem.

— Jesus Cristo, Samantha! — ele se queixou, antes de tentar esbofeteá-la.

Desviando-se do golpe, Samantha correu na di­reção de Robert, que cruzou os braços a fim de amparar a colisão.

— Ai! — ela gritou, ao bater no tórax musculoso.

— Mae'n chwith gen i — sussurrou em galés e escondeu-se atrás de Robert, como se ele fosse seu escudo.

Os pensamentos de Samantha eram desconexo mas Robert pôde entender algumas palavras em in­glês. O tom de voz também expressava raiva e medo.

Dryden teria achado graça naquele talento nato para meter-se em confusões se não fosse o jovem, que quase a espancara, estar a sua frente.

Samantha colocou-se às costas de Robert e, trê­mula, abraçou-o por trás.

— Não me abandone — suplicou, com a voz fraca. — Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha com ele!

Por alguns instantes, Robert ficou paralisado ao sentir a forma feminina de Samantha colada em suas costas. Prendeu a respiração na tentativa de conter a vontade de tomá-la nos braços e levá-la embora.

Chocado ante a reação física, recriminou-se por sentir desejos tão primitivos. No entanto, decidiu defender Samantha, como qualquer cavalheiro o faria, e depois afastar-se dela por definitivo.

O nobre empavonado caminhou em direção a eles, embebido em vinho e vingança, até que di­visou a figura do conde de Alldale.

De súbito, o rapaz endireitou os ombros e passou as mãos no casaco molhado, como se houvesse apenas poeira sobre o tecido. Fez menção de falar porém, desistiu.

Apesar de Samantha estar em vantagem agora Robert sabia que na manhã seguinte a reputação da galesa estaria arruinada. O jovem, sem dúvida um homem desonesto, diria o que lhe viesse à mente só para manter o orgulho intato. Haveria uma ma­neira decente de refrear aquela criatura tosca?

Resoluto, Robert segurou as mãos trêmulas de Samantha e escoltou-a de volta à festa.

Samantha olhou para trás e viu o semblante enraivecido de Dwayne Morton. Assustada, levan­tou o queixo e numa postura superior continuou a caminhar. Não havia nada a temer ao lado de Robert Dryden.

Contudo, suas pernas bambeavam e os olhos estavam enevoados. Fora de novo uma idiota! Dei­xou que Dwayne estragasse aquela noite tão es­pecial, a última festa à qual compareceria.

Enxugou as lágrimas e tentou se recompor con­forme percorria o estreito corredor. Tinha de se recolher para evitar o escândalo que não somente alimentaria a ira de Owen, como também a tor­naria uma candidata inaceitável em St. Ann.

Com pesar, ela acompanhou lorde Alldale até o salão. Precisaria enfrentar os olhares maliciosos dos convidados, antes de alcançar seu quarto. Mas o faria de cabeça erguida e sorridente, como se nada houvesse acontecido.

Quando chegaram ao arco, na entrada do gran­de saguão, Robert deteve-se.

— Arrume seus cabelos, Samantha. Vão pensar que eu... e você...

— Oh, sim! — ela exclamou, surpresa.

No mínimo os cabelos deviam estar horríveis a ponto de o conde mencioná-los. No entanto, era lisonjeiro ouvi-lo dizer que alguém os interpretaria daquela maneira... Vilões como Dwayne Morton eram os únicos que se interessavam por ela.

Após tirar as presilhas dos cabelos, Samantha tentou recolocá-las no lugar. Porém, como ainda estivesse tremendo, seus esforços pouco valeram.

— Acho que não consigo... Não há problema em deixá-los soltos...

Ao escutar um suspiro impaciente, ela sentiu as mãos de Robert em sua nuca. Calado, o conde assumiu a tarefa de arrumar-lhe o penteado dos cabelos. O toque gentil causava arrepios em Sa­mantha, desde o pescoço até o ventre.

O gesto cuidadoso de Dryden evitava puxar os fios para não machucá-la.

Samantha entregou-se ao momento, imaginan­do que a atitude dele significava mais que a sim­ples correção de sua aparência. Queria acreditar que podia afetá-lo, mesmo sabendo ser uma tola fantasia.

Em pouco tempo, Robert percebeu que tentar arrumar os cabelos avermelhados havia sido um erro crasso. Jamais tocara fios tão sedosos e re­beldes. Os cachos exalavam o perfume Silvestre e enrolavam-se nos dedos de Robert, tornando quase impossível ajeitá-los sob o arco de flores

O que entendia acerca de penteados femininos, afinal? E que uso daria a tal conhecimento? Lady Marguerite com certeza tinha criadas para ajudá-la. Jamais precisaria da assistência de Robert.

Exasperado, respirou fundo e tentou finalizar a tarefa, embora se sentisse inapto. Então Sa­mantha inclinou a cabeça de uma maneira muito sensual. A linha tentadora do pescoço agora es­tava exposta. Ele reprimiu um gemido.

Em um gesto brusco, Robert a puxou para o salão.

― Dance comigo — disse, com a voz rouca.

Não houve oportunidade de recusar, tampouco Samantha o queria. Dançar olhando as poderosas feições de Dryden e sentir a mão larga em sua cintura era um sonho que ela vinha cultivando desde que o conhecera.

Robert a resgatara e agora a tornava a dama mais importante da festa. Mas tudo pertenceria ao passado.

Como Owen Tudor estivesse ausente, Robert re­solveu ficar com Samantha. Enquanto a observava seguir os intrincados passos, notou que o rubor das faces aumentavam. Não estava mais pálida e havia parado de tremer. Ela gostava da dança, sem re­parar quão desconfortável Dryden se sentia.

Pelo menos nenhuma das damas mostrou re­pulsa por ele ou espantou-se com as cicatrizes e o tapa-olho. O bruto que acossara Samantha havia desaparecido. Mas, se ousasse voltar à festa, Ro­bert duvidava de que ele tentasse molestá-la.

Tudo parecia bem por enquanto.

Resolveu permanecer na comemoração mais al-Suns minutos. Owen logo apareceria para encarregar-se da irmã e então Robert iria se recolher Talvez pudessem tomar um cálice de vinho... Q]i dançar novamente. Depois disso, ele partiria. Não havia motivo para ficar até mais tarde.

Na verdade, não gostava de dormir tarde. Após o extenuante dia de trabalho, sentia-se cansado e pretendia mergulhar sob as cobertas o mais rá-pido possível.

O único problema era saber se conseguiria con­ciliar o sono. Suspeitava de que o perfume silves­tre o assombraria a noite inteira.

 

Aquela pressão excessiva seria sua to­tal ruína, Robert concluiu. Pesaroso, subiu a escada espiral que dava acesso ao solário da castelã. Após uma longa e fatigante manhã, ele enfim cedera à insistência de Nicholas. Iria se esforçar para conquistar Marguerite.

Fazer-lhe a corte. Não se tratava de uma prer­rogativa aprazível, mas Nick o havia atormentado tanto, tal qual uma anciã, que Dryden acabara por resignar-se. Levaria tempo até Marguerite sentir-se à vontade com ele ou, pelo menos, acos­tumada a ele.

Portanto, resolvera passar mais tempo em sua companhia. Como Nicholas pontuara muito bem, Robert não ganharia a confiança da castelã se continuasse a evitá-la.

— Oh, lorde Alldale! — Marguerite exclamou e derrubou a agulha ao vê-lo adentrar o solário.

O menestrel parou de tocar seu instrumento e as outras damas o fitaram, abandonando a tape­çaria que teciam.

A rainha Catherine achava-se sentada em uma poltrona próxima à janela, e observava seu petit Henri brincar. Ela parecia tranqüila ante a che­gada de Robert.

O que havia de errado?, ele se perguntou, es­pantado com os rostos que o encaravam. Outro nariz tinha crescido em sua face? Ou esquecera-se de colocar o tampão no olho? Seria sempre essa a reação das pessoas quando estivesse na presença de Marguerite?

Um silêncio constrangedor dominou a atmosfera até que a rainha se manifestou.

— Lorde Alldale, venha sentar-se ao meu lado. Depois de curvar-se diante de Catherine, ele se

acomodou na poltrona que lhe fora indicada. As outras damas voltaram ao trabalho e o menestrel recomeçou a tocar. Serenidade e ordem se resta­beleceram. Tudo estava como devia ser.

— Os soldados de Clairmont estão ficando mais disciplinados — Catherine comentou. — Mais ágeis, mais... raffinés... refinados na arte marcial. Precisam de um líder que os direcione.

Robert apenas assentiu. Vários homens pode­riam liderar as tropas de Clairmont. Não existia nada de especial em seus métodos.

— O clima em Clairmont é agradável, não?

— Muito... — resmungou ele. Nunca fora de engajar-se em grandes conversas, nem sequer ti­vera necessidade de aprender. Vinha lidando so­mente com homens, comia e bebia na companhia deles. Lutava ao lados deles. Ninguém se mos­trava falante como as damas que o rodeavam.

Agora, entretanto, havia alguns ajustes a fazer, precisava adaptar-se a certos aspectos da rotina feminina. Conversar. Escutar mexericos acerca de costura e moda. Cozinha. Bebês.

Robert não sabia se estava preparado para tanto.

— Lady Marguerite é uma castelã que qualquer homem se orgulharia em possuir como esposa.

— Creio que tem razão, Majestade.

Que homem em sã consciência recusaria Mar­guerite? Linda, inteligente e charmosa. Robert de­via fazer um comentário que agradasse e interes­sasse a rainha, mas não conseguiu encontrar pa­lavras para se expressar. Aliás, Catherine já co­nhecia as qualidades da amiga. Não era necessá­rio repeti-las.

— Sempre se esforçou para ser uma boa filha e irmã — Catherine prosseguiu. — E, claro, um modelo de esposa para Richard Bradley. No en­tanto, agora Marguerite está começando a apro­veitar a vida.

A respeito de que a rainha estava falando?, Ro­bert perguntou-se, intrigado. Via Marguerite ape­nas como a castelã de uma rica propriedade. Uma viúva indefesa necessitava de um marido com ta­lento militar.

— Minha amiga é livre agora — a rainha afirmou, sem esconder o adorável sotaque francês. — Pela primeira vez em sua vida, tem a liberdade de tomar as próprias decisões. Não há mais ditadura e exi­gências de um pai, ou irmão... ou marido.

— Ditadura? — Robert indagou.

— É um homem, Dryden. Logo, imagino que seja difícil entender.

O que havia para entender? Homens tomavam decisões, conduziam suas famílias. Com certeza, um indivíduo generoso levaria em consideração os desejos da esposa e das filhas ao deliberar os rumos que afetariam seus parentes.

— Tem de ser paciente com Marguerite — a rainha pontuou. — Creio que ela chegará a um consenso — acrescentou. — Mas pode levar algum tempo.

Henry correu para a mãe e ela o pegou no colo.

— II ría qu'un oeil, maman — o menino disse, apontando o único olho de Robert. Em seguida, colocou dois dedos na boca e começou a chupá-los.

— Oui, meu querido — Catherine concordou. — Mas tem de falar em inglês. É seu dever con­versar no idioma de seu povo. — A rainha fitou Dryden. — Marguerite, sem dúvida, tem deveres para com o povo.

Durante as horas seguintes, Robert ponderou a respeito das palavras da rainha, enquanto ob­servava a atividade no solário. As mulheres tro­cavam comentários com Marguerite em meio ao detalhado artesanato.

Odiava tudo aquilo. Não sabia como cortejar sua suposta noiva ou o que dizer para atrair o interesse dela. Pensou em convidá-la para estudar os livros de finanças do legado, mas acreditava ser inadequado já que não estavam noivos. Talvez pudessem falar de manobras militares. Não, Marguerite ficaria entediada com o assunto. Saber que os cavaleiros de Clairmont estavam sendo treinados era o que lhe bastava.

Se fossem falar sobre a administração do castelo, como era o desejo de lady Marguerite, Robert iria entediar-se, pois aquele assunto não o interessava.

A tarde tornou-se então tensa e cansativa.

À medida que os dias passavam, Robert prati­cava incansavelmente com a espada e a lança. Marguerite ainda não havia se decidido.

Nicholas e outros cavaleiros de Clairmont exer­citavam-se com ele a fim de estarem preparados para proteger o castelo e o povoado, caso os es­coceses resolvessem voltar a atacar.

Homens armados, que patrulhavam o perímetro do condado, relataram ter visto sinais suspeitos. Restos de madeira queimada indicavam pequenos acampamentos. Havia pegadas de cavalos e fo­lhagem pisoteada. Robert intensificou a patrulha.

Embora os intrusos permanecessem ocultos, Dry­den pediu aos habitantes que ficassem alertas. Era impossível que uma dupla de escoceses fizesse muito estrago, mas não lhes custava ter precaução.

Todos no castelo sabiam que Samantha Tudor visitava o povoado e muitos se encantavam com a evidente habilidade de distrair as crianças, man­tê-las ocupadas enquanto os adultos faziam repa­ros e consertavam as avarias. Ela também auxi­liava as jovens mães, passeando com os filhos me­nores nas lindas tardes de outono.

Aristocratas, convidados de Clairmont, ridicu­larizavam e criticavam a disposição de Samantha de engajar-se em atividades irrelevantes.

Os cavaleiros, no entanto, pareciam gostar de observar Samantha com o pequeno grupo de in­fantes no alto da colina e acenavam quando pas­savam pelo campo.

Ela fazia questão de manter as crianças próxi­mas ao vilarejo, e os homens sentiam que estavam seguras.

Enquanto Robert trabalhava na reconstrução das casas, de quando em quando fitava em direção à colina onde avistava Samantha rodeada de crianças. Forçava-se para não pensar na jovem galesa, mas imagens incontroláveis invadiam sua mente em momentos inesperados.

Desde a noite da comemoração, quando dançara com ela e se esquecera por um instante de que era um homem marcado, ele a vinha evitando Robert achava que seu valor se resumia apenas em defender a fronteira de Clairmont.

Perguntou-se por quanto tempo a rainha e sev séquito, incluindo Samantha, continuariam m fortaleza. Não escutara rumores acerca de urm eventual partida, mas acreditava que o Castelí Clairmont ficaria monótono sem a fogosa e tem peramental ruiva.                            

O som da voz melodiosa, carregado pela brisa chegava aos ouvidos de Robert e a expressão de completo abandono resvalava-lhe o pensamento. Não conseguia se lembrar de como era sentir uma alegria tão inocente. Sua juventude havia sido nontuada de uma série de finais violentos e de um contínuo treinamento militar até atingir a niaioridade e tornar-se cavaleiro pelas mãos do avô alemão de Wolf Colston.

Em seguida, ele se juntara a Wolf e Nicholas para lutar ao lado do rei Henry na França, cons­truindo sua carreira através da espada e da as-túcia. Anos depois, retornou à Inglaterra a fim de ajudar Wolf e recuperar Windermere.

Perdera o orgulho e a honra no processo.

Desviando o olhar de Samantha, Robert esfre­gou a parte alterada de seu rosto. Não tinha tempo para besteiras. Mandou os homens recolherem o equipamento e voltou ao castelo com eles, ávido pela refeição do meio-dia.

As crianças estavam começando a ficar com fome. Samantha notava os sinais, porém queria mantê-las longe do povoado por mais alguns momentos. Tão logo o ruído de martelos e serras parassem, ela as levaria à cidade para se alimentarem. Por enquanto, ocupá-las parecia ser a única contribuição de Sa­mantha em favor daqueles que reconstruíam as es­truturas destruídas pelos escoceses.

Além disso, adorava estar com crianças. Nunca se sentia isolada ou sozinha. Gostavam dela, ama­vam escutar suas fábulas, brincavam, riam quan­do ela se fazia de tola e gritavam a valer nos mstantes em que as surpreendia.

Podia ser autêntica com os menores e não precisava comportar-se de modo adequado, tal qual Owen exigia quando na companhia das damas do castelo.

— Isso mesmo! — Samantha exclamou, riu e bateu palmas, entusiasmada. — Peguem as bor­boletas fujonas com seus bonés!

— Peguei uma, lady Samantha! — disse a p< quena Meg.

— São realmente fadas disfarçadas, lady Sa mantha? — outra garotinha perguntou.

— É apenas uma história, sua tola. Fadas nãr existem — um menino mais velho falou à mais nov;

— Existem, sim!

— Veja. São todas brancas e brilhantes — Meu anunciou. — Devem ser fadas.

De repente, um grito chamou a atenção de Samantha. Um estranho, um guerreiro de roupa xadrez, surgiu entre as folhagens da floresta e agarrou um dos meninos retornando com ele ao matagal.

Samantha pegou um pedaço de pau e correu atrás do escocês, exigindo que ele soltasse o garoto.

Foi ignorada pelo pústula. O homem se preci­pitou floresta adentro, carregando Davey que gri­tava apavorado.

Sem pensar nas conseqüências, Samantha dis­parou atrás do escocês e nem sequer escutou o badalo apelativo do sino da igreja. Continuou sua frenética perseguição ao biltre que devia ser um dos envolvidos na invasão que ocorrera ná semana anterior.

Quando o escocês adentrou a região mais densa da floresta, Samantha quase o alcançava. Irada, usou o pau que segurava para atacar as pernas do homenzarrão. O infeliz derrubou Davey.

Como não estivesse seriamente ferido, apenas assustado, o infame investiu contra o menino, fu­rioso agora.

— Corra, Davey! — Samantha gritou, sem tirar os olhos de corpulento guerreiro. — Depressa!

Davey obedeceu de pronto e disparou a correr o mais rápido que suas pernas minúsculas podiam suportar. Samantha afastou-se do escocês. Mas ao se virar, tropeçou em uma pedra e caiu, dando ao homem a oportunidade de agarrá-la.

No entanto, conseguiu rolar para o lado e re­cuperar o pedaço de pau, com o qual atingiu o rosto do escocês. Quando ele gritou de dor, Sa­mantha levantou-se e correu.

O malfeitor recuperou-se e tentou pegá-la, mas Samantha era mais rápida. Enganou-o mais uma vez e lançou-se em direção ao vilarejo. Contudo, outro escocês enorme bloqueou seu caminho.

Na mesma hora os cavaleiros de Clairmont res­ponderam ao alerta. Quando Robert e os soldados atingiram o povoado, não houve necessidade de pedir explicações a respeito do badalo incessante do sino. Aos prantos, mulheres abraçavam seus filhos e os homens indicavam a floresta. Nenhuma instrução seria necessária.

Liderando a tropa, Robert galopou colina acima, rumo à densa floresta, certo de que acharia os intrusos que vinham sondando a área desde o àh da batalha. Eram, sem dúvida, uma ameaça ao povo de Clairmont.

Robert e os cavaleiros estavam dispostos a acuí: los e rendê-los de uma vez por todas.

O solo mostrava sinais recentes de invasão. Su­pondo que os habitantes pudessem ser pegos dt< surpresa pelos escoceses, Robert ordenou que o cavaleiros se espalhassem e cobrissem a região ao redor da cidade.

No interior da floresta, um grito de mulher rom­peu o silêncio. Robert atravessou os arbustos e apeou do cavalo. Apavorado, viu Samantha Tudor caída no chão, as saias na altura dos joelhos e as mãos cravando a terra.

— Samantha!

Ela reprimiu um grito, levando a mão arranha­da aos lábios.

― Você está bem? — Robert perguntou, abai-xando-se ao lado dela.

— Estou, milorde. Havia dois homens. Um a cavalo e o outro a pé.

— Sir John — Robert dirigiu-se ao cavaleiro. — Assuma a liderança. Vá atrás deles.

— Será um prazer, milorde. — O homem cha­mou os companheiros e embrenhou-se jia floresta.

— Tem certeza de que não está féridal Saman­tha? — Não havia cor no lindo rosto, tampouco nos lábios. Robert imaginou que ela pudesse pos­suir algum ferimento interno.

— Tenho — ela respondeu, ainda trêmula. — Um deles apareceu de repente, agarrou o pequeno Davey Blue e eu... corri atrás deles.

― Samantha...

― Ele podia machucar o menino, Robert — ela prosseguiu, explicando as ações como se esperasse ser repreendida por auxiliar Davey. — Não havia ninguém por perto. Precisei ajudá-lo a fugir.

Alívio e ternura invadiram o coração de Robert. Ele tirou uma folha que se prendera aos cabelos avermelhados.

— Tem razão.

— Davey fugiu, mas o escocês tentou pegá-lo outra vez. — Samantha ficou um tanto confusa ante a aceitação de Robert. — Então eu o derrubei com um galho de carvalho.

— Você feriu o escocês? — Dryden perguntou, ajudando-a se levantar.

Samantha tremia, mas ele resistiu à vontade de tomá-la nos braços para confortá-la. Segurou-a pela cintura, como devia agir um homem compro­metido, e a conduziu até onde se encontrava a montaria. Ajudou-a a montar e, em seguida, aco­modou-se atrás dela na sela.

Ousou, porém, mantê-la bem junto a si, confor­me cavalgavam devagar em direção ao povoado.

A atitude impulsiva e a audácia de Samantha não deviam surpreendê-lo. Era uma mulher va­lente de coração bondoso e a admirava por isso. Nenhuma outra dama teria socorrido a criança Com tamanho fervor.

— O garoto conseguiu escapar? — indagou, por fim.

Assentindo, Samantha moldou-se ao corp0 quente de Robert e à segurança dos braços fortes que a envolviam.

— Sim, conseguiu. — Ela estremeceu, de súbito. — O homem tentou me pegar. Então, seu com­panheiro apareceu a cavalo. Pensei que nunca mais... Não sabia se alguém chegaria a tempo.

— Nós chegamos a tempo, Samantha? Ele não a feriu mesmo?

— Não. Estou bem. — Ela sentiu o alívio ime­diato no corpo de Robert.

A reação a alegrou, embora soubesse que não devia dar muita importância ao fato. Entretanto, permitiu-se desfrutar das sensações agradáveis que aquelas coxas musculosas coladas às suas lhe causavam.

— Quando os escoceses escutaram o galope dos cavalos, eles me largaram e fugiram.

— Apenas um a cavalo?

— Não. O homem trouxe uma outra montaria para o companheiro.

O conde ainda não a havia repreendido por cor­rer atrás do menino, para o espanto de Samantha. Ele somente a mantinha firme enquanto caval­gavam, escutando detalhes do ocorrido.

Virou o rosto e fitou-o. O nariz angular estava bem próximo e os lábios, ainda mais. Um pequeno deslize do cavalo poderia provocaj um beijo. E Robert parecia querer beijá-la de verdade.

— Você percebeu que chegávamos?^— ele per­guntou, interrompendo a fantasia de Samantha.

Espantada com a pergunta ela recordou que ou­vira a aproximação dos cavaleiros, mas acreditara ser as batidas frenéticas de seu coração.

― Olhe — Robert disse, apontando uma clareira

logo à frente.

― É Owen! — Samantha encolheu-se no corpo de Dryden.

Owen Tudor, seguido de um pequeno grupo de cavaleiros, aproximou-se.

— Saudações, lorde Alldale. — Se estava preo­cupado com o bem-estar da irmã, Owen não de­monstrou. A expressão refletia o desagrado ante a condição das roupas e dos cabelos despenteados de Samantha. — A rainha e lady Marguerite estão ansiosas para saber a razão de tanto barulho.

— Os escoceses que acampavam na floresta saí­ram do esconderijo — Robert explicou. — Lady Samantha resgatou um menino que fora pego pe­los homens e quase...

— Por Deus, Samantha! — Owen gemeu. — Em nome de...

— Tudor — Robert proferiu com autoridade. — Sua irmã acaba de enfrentar uma situação grave e perigosa. Sugiro que a poupe de críticas por enquanto. Pelo menos até que ela esteja segura em Clairmont.

Owen enrijeceu os músculos do rosto. Encarou a irmã.

— Desmonte, Samantha — ordenou. — Eu vou levá-la de volta ao castelo.

Dryden apertou-a contra si.

— Ela está bem, Tudor. Irei escoltá-la até castelo.

O semblante de Owen tornou-se sombrio, mas o tom de voz permaneceu controlado.

— Milorde, como Samantha é minha irmã e sou responsável por ela, devo insistir. Não é de bom-tom uma moça destinada ao convento cavai-gar com um homem solteiro.

— Convento? — Robert ficou chocado. — Sa­mantha vai... tornar-se freira?

— Minha irmã está prometida à Abadia de St. Ann, em Tyndale.

Samantha enrijeceu o corpo.

— Pretendia partir amanhã bem cedo para levá-la a St. Ann — Owen justificou. — Porém, meus planos foram alterados.

Robert estava perplexo. Uma freiral Como Owen Tudor podia enxergar a irmã dessa manei­ra? Por que condenar aquela criatura vibrante e passional ao silêncio perpétuo de um convento?

Se havia uma mulher totalmente inadequada para a vida monástica, essa era Samantha. Ela, entre todas, devia se casar com um homem que apreciasse sua vivacidade e gostasse de estar ro­deado de crianças.

Samantha precisava de liberdade, cores, risa­das, correr pelos campos verdejantes, dançar e...

Engolindo a revolta, Dryden apeou e ajudou-a a fazer o mesmo.

— Acabamos de receber uma mensagem — Owen informou. — O bispo de Winchester, Beaufort chegará ao Castelo Clairmont hoje à noite ou amanhã de manhã.

A novidade penetrou os pensamentos de Robert. O bispo Beaufort era um inescrupuloso eclesiás­tico, famoso pelo poder político. Sua presença per­niciosa em Clairmont não seria aconselhável para a rainha Catherine.

Owen fez Samantha montar em seu cavalo. En­quanto Dryden os observava, parte da conversa com a rainha emergiu em sua mente. Tratava-se de algo relacionado à liberdade... Lady Marguerite queria ser livre para escolher o próprio destino.

Era um luxo que Samantha Tudor não poderia usufruir.

 

Em pé diante da lareira que aquecia o grande saguão do castelo, Robert pressupôs que Samantha já houvesse se recolhido.

Não conseguia tirar do pensamento a espirituosa galesa, apesar de todos no salão discutirem, fervorosamente, a chegada indesejável do bispo Beaufort.

Incapaz de se ajustar à idéia de Samantha em um convento, ele passou a noite insone e de pés­simo humor. Tentava encontrar uma solução ra­zoável para ela. Precisava propor a Owen Tudor uma saída mais vantajosa para a jovem.

Chegou à conclusão de que a melhor alternativa seria o casamento. Deveria existir alguém condi­zente com a posição nobre de Samantha, um ho­mem rico o bastante para dispensar um dote subs­tancioso como quesito às núpcias.

Mas quem?

Robert pensou em vários candidatos, e descar­tou cada um deles. Somente um homem especial podia desposar Samantha Tudor. O marido teria de ser tolerante, pois teria de suportar barulho, desordem e um lar repleto de crianças. O preten­dente precisaria ter paixão pela vida, assim como pela esposa.

Também tinha de ser gentil com ela, porque Samantha possuía uma ternura profunda que in­sistia em esconder. A paciência era uma virtude indispensável já que a galesa não se submeteria a regras de rigidez.

Senso de humor era igualmente essencial e uma forte estrutura física porque Robert tinha certeza de que Samantha Tudor iria testá-lo até as últi­mas conseqüências.

— ...mas não podemos garantir que ele se submeteu a uma viagem exaustiva para uma região tão distante do reinado a fim de fazer uma simples visita. — Owen argumentou, rompendo os devaneios de Robert.

— O tio de meu marido almeja apenas poder — Catherine disse. — Ele vive só para isso, e nada mais. Contudo, Beaufort é... — ela procurou a palavra exata. — Malin.

— Mau — Nicholas traduziu a rainha.

— Sua intenção é controlar o pequeno Henry — Owen completou.

— Para quê? — Marguerite perguntou, intri­gada. — O Conselho Parlamentar comanda a In­glaterra até que Henry atinja a maioridade. O que o bispo Beaufort pode fazer...

— O nobre que se casar com Sua Majestade terá controle absoluto sobre Henry — Owen ex­plicou. — É fundamental que nenhum homem ad­quira tanto poder para...

— Mas que nobre seria? Não estou entendendo — Marguerite confessou. — Como a visita do bispo Beaufort ganhará o agrado da rainha? Ela deixou Londres em várias ocasiões para fugir de sua influência, e ele sabe disso!

Robert sabia a resposta.

— O bispo já escolheu o pretendente de Sua Majestade — afirmou, seguro de si. Afinal, havia passado metade da noite ponderando acerca de um marido para Samantha Tudor. A idéia não lhe era estranha. — E Beaufort pretende articular o casamento de seu agrado antes que o Conselho Parlamentar interfira.

Todos permaneceram em total silêncio.

— Receio que esteja certo, lorde Alldale — Tu­dor, enfim, comentou, agitado.

— Bem — a rainha Catherine opinou. — É uma estratégia que ele nunca tentou.

— Imagino quem o bispo escolheu — Marguerite pensou em voz alta.

— E tenho certeza de que Sua Eminência trará consigo o suposto noivo — Nicholas deduziu.

A noite estava tão fria que acabou por extinguir o fogo. Samantha não o reativou para que o quarto continuasse na penumbra. Assim não seria vista. Apagara as velas, temerosa de que sua inaptidão e ousadia se revelassem. Embora estivesse deter­minada, o nervosismo prevalecia.

Insegura e sem saber o que fazer, Samantha soltou os cabelos, deixando a cascata ruiva cair sobre as costas. Estavam lavados e ela ainda borrifou um pouco de essência de flores para que exalassem o perfume de verão.

Sentou-se e tirou os sapatos. Logo depois, desabotoou o corpete do vestido jogando-o no chão. Então aproximou-se da lareira, usando apenas a fina roupa de baixo.

Tentou controlar o tremor pelo corpo.

Devia despir-se e acomodar-se nua sob as co­bertas do leito ou permanecer diante das poucas brasas com o traje íntimo?

Talvez fosse melhor ficar perto da lareira sem nenhuma roupa.

De qualquer maneira, pretendia seduzir Robert Dryden naquele exato lugar. No quarto dele.

Resignada quanto à solitária existência que teria no convento, Samantha havia resolvido experimen­tar uma noite de paixão. Uma experiência inesque­cível. Nunca mais pediria nada depois que partisse do mundo secular para enclausurar-se em St. Ann.

Somente uma noite. Com Robert.

Nicholas Becker seria o marido de Samantha, Robert decidiu por fim. Só que ainda não comu­nicara ao amigo.

Além da boa aparência, Nick era paciente e es­tava sempre de bom humor. O visconde Thornton não precisava de terras ou fortuna. Logo, um dote seria desnecessário. Possuía muita energia tam­bém, então, com certeza, daria muitos filhos a Samantha.

Entretanto, esse representava o maior proble­ma. Robert não admitia que nenhum homem, nem Nicholas Becker, tocasse Samantha. A idéia de casá-la parecia tão estúpida quanto enviá-la ao convento.

Enquanto subia a escada e caminhava até se quarto, ele se sentia como se tivesse esmurrado algo sólido. Um muro, talvez. Por que aquela ga-lesa invadira sua vida de forma inesperada? Por que os olhos azuis o perseguiam dia e noite?

E por que se sentia responsável pelo futuro de Samantha?

Se não fosse a visita do bispo Beaufort, Robert deixaria Clairmont ao raiar do dia. Abandonaria tudo e todos. Para que se apoquentar com os pla­nos insensatos de Owen em relação a irmã? Eram aparentados, afinal de contas. Owen Tudor tinha deveres a cumprir como único responsável pelo futuro de Samantha.

Por Deus, que ela fosse ao convento! Teria uma vida longa e comedida atrás das...

Uma exclamação, seguida do estardalhaço de um vidro se quebrando, alertou Robert Dryden quando abriu a porta do cômodo.

De espada em punho, estava prestes a atacar quando percebeu que o intruso era a mulher que lhe perturbava os pensamentos. Por sorte, deteve-se antes de feri-la. Samantha encontrava-se se­minua, tendo uma garrafa espatifada a seus pés.

A reação física de Dryden foi instantânea. Mais uma vez viu-se indefeso ante a imagem de uma mulher cujo rosto ruborizado, os cabelos soltos e lábios carnudos capazes de proporcionar prazer eterno achavam-se em seus aposentos, aparente­mente disposta a desafiar sua virilidade. Os seios rijos eram claramente visíveis sob o tecido fino da roupa.

Incapaz de resistir, Robert gemeu e deu um pas­so à frente.

Os olhos sensuais de Samantha encontraram o dele. Ela engoliu em seco. Esfregou as mãos trê­mulas no tecido de linho e respirou fundo, movi­mentando os seios pouco cobertos pelo decote.

Os lábios se entreabriram.

Tal qual um homem famélico, Robert deu mais um passo.

Seus pés esmagaram os cacos de vidro.

— O que faz aqui, Samantha? — O autocontrole o abandonava, a voz soou grave e o semblante tornou-se ameaçador.

Samantha soltou o ar que até então prendia nos pulmões e virou o rosto. E agora? Não pla­nejara explicar sua presença, quase nua, no quar­to. Pensara que o cenário mostraria o óbvio. Es­perava que ele entendesse sem precisar definir suas intenções.

A vergonha substituiu o nervosismo e ela re­cuou. Robert segurou-a pelo braço.

— Não se mexa — disse. — Vai cortar seus pés. Sem raciocinar, Samantha jogou-se nos braços dele. Então abraçou-o pelo pescoço, enquanto era carregada para longe dos cacos de vidro.

— Imaginei que você entenderia... por que estou aqui — ela sussurrou no ouvido de Robert.

Um músculo do rosto moreno enrijeceu, mas ele continuou calado.

— Não fique zangado comigo — Samantha pe­diu, na tentativa de fazê-lo falar.

Estava arrasada. Devia saber que não era bo­nita o bastante para atrair aquele homem. O co­ração do conde seria conquistado pela dama mais bela e radiante do reinado. E a integridade de Alldale jamais permitiria que ele deflorasse uma jovem camponesa.

— Eu queria...

Robert levou-a ao local onde ela deixara o vestido.

— O que você queria, Samantha? — perguntou, encarando-a.

Próxima às lágrimas que atestavam aquela tris­te rejeição, ela tentou se recompor.

— Queria que... nós dois...

O rosto másculo estava tão perto de Samantha que pela forte respiração ela podia sentir o doce aroma do vinho que ele bebera.

Devia ficar na ponta dos pés e atrever-se a bei­já-lo? Pressionar o próprio corpo contra o dele? Como uma mulher podia demonstrar que desejava... mais que uma polida conversa com um homem?

— Preciso dizer, milorde — sussurrou, aproxi­mando-se como se Robert fosse magnetizado e ela um imã.

Pelo menos, o conde não mostrou repulsa, Sa­mantha pensou, embora parecesse transpirar.

Um breve momento se passou, antes de ela sentir mãos afoitas segurando-lhe com força a cintura.

— Samantha — Robert murmurou e, hesitante, cobriu os lábios entreabertos com os dele.

O beijo não foi o que Samantha havia imaginado. A inusitada sensação causada pelo toque, a princípio suave, propagou-se por todo o corpo. Era como se a alma de ambos estivesse à mercê de alguma força passional que as fundia em uma única entidade. Ela nunca mais estaria sozinha. Jamais voltaria a sonhar e imaginar como seria gostar de alguém ou sentir-se a metade de um todo.

Sem perceber, ela soltou um pequeno gemido de prazer. Robert intensificou o beijo, agora devorador, e estreitou o abraço. Com uma das mãos ele segurou-lhe a nuca, mas a outra permaneceu moldada à cintura fina. Aproximou-se a fim de aderir-se ao corpo curvilíneo.

Nada mais importava. Cada palavra dura que escutara, cada dia terrível que vivera, cada mo­mento de solidão desapareceu quando os lábios de Robert possuíram os dela.

Ele deslizou a mão sobre a cintura e colou-a junto a si. O beijo tornou-se mais feroz e Saman­tha estremeceu com a emoção causada pelo con­tato íntimo. Moveu-se devagar. Escutou-o gemer, enquanto brumas de prazer fluíam dentro dela e ao redor, unindo-os em uma esfera de pura excitação.

Ao sentir as mãos se movendo, ela percebeu que os laços se soltaram, despindo-a da roupa de Unho branco. Dedos afoitos, enviavam ondas de paixão que lhe percorriam a pele nua e acaricia­vam os seios.

Em um segundo, viu-se na cama com Robert sobre ela. Mãos experientes exploravam as curvas do corpo, os lábios viajavam sobre a pele sensível do pescoço, descendo até a altura dos seios, onde tremores intensos se originavam fazendo-a estre­mecer de prazer. A respiração tornou-se ofegante quando ele sugou os mamilos.

— Robert... — O chamado soou como um sus­surro, uma súplica para que ele a levasse a lugares inimagináveis.

Para além da realidade da vida, muito além do destino que a aguardava. Tudo que ela desejava era aquele momento único.

Queria senti-lo por inteiro. Quando ela puxou a barra da túnica, Robert retirou o traje. Os pêlos negros do tórax avantajado roçaram os seios, in­crementando o clima. Samantha acariciou a pele morena e, para sua surpresa, notou que Robert reagia da mesma forma que ela quando tocado.

No instante em que Samantha beijou-lhe a pele, ele gemeu. E recuou.

— Samantha... — resmungou.

Vozes e passos no corredor trouxeram Robert de volta à realidade.

— Dryden! — Nicholas o chamou.— Beaufort chegou! Você foi convocado a compadecer no gran­de saguão!

Beaufort. O poderoso bispo de Londres havia chegado.

E quanto a Samantha? Não podia abandoná-la em seu quarto daquele jeito. O sentimento de inse­gurança estava explícito nos olhos azuis, aqueles lindos olhos que tanto expressavam confiança e...

Robert meneou a cabeça na tentativa de clarear a mente. Deveria ter negado aquele encontro clan­destino desde o início.

Em que ela pensara quando invadira o quarto e se despira diante dele? Cerrou os dentes e lutou para manter-se controlado.

Deus, como ele a queria. Como jamais desejara uma mulher. E Samantha, aparentemente, o cor­respondia. Não havia repulsa ao toque da mão deformada, tampouco se enojara ante as cicatri­zes. Era, sem dúvida, uma pessoa excepcional.

E a intensidade da paixão que manifestara pa­recia consumi-lo.

— Samantha. — Robert segurou-a pela mão e puxou-a da cama. Sentiu a garganta ressecar ao visualizar a inocente nudez. — Tenho de ir.

Perturbada, ela franziu a testa.

— Não se trata apenas de Beaufort. — Ela per­manecia parada enquanto Robert a vestia com a roupa de linho. Então pegou o vestido, incerto quanto à maneira de colocá-lo nela. — Não pode­mos fazer isso. Você foi prometida ao convento.

— Não. — Havia agonia nos olhos e na voz. Não podia estar acontecendo. Uma vontade súbita de chorar a invadiu. Primeiro ele mostrou-se ávido pela união amorosa. Agora queria entregá-la ao destino árido de freira.

Robert pegou sua túnica e fitou-a, recordou com tristeza a reação de amargura que ela mostrara em seu olhar, quando Owen citara o exílio em St. Ann.

Calada, afastou-se dele. Ocupou-se com os bo­tões e laços do vestido, enquanto tentava reprimir as lágrimas. Fora tola e estúpida novamente, não ponderara antes de agir.

— Samantha.

— Peço-lhe perdão, milorde...

— E se você se casasse? — Robert sugeriu, por impulso. — Caso um homem a pedisse em casa­mento, seu irmão ainda assim a mandaria à abadia?

— Não sei — ela respondeu, duvidosa. — Meu dote é muito pequeno. Ninguém...

— Owen consideraria uma mudança de planos? Não havia sequer um homem na Inglaterra que

a pedisse em casamento. Samantha não entendia a intenção do conde. A menos que...

Um clarão de esperança brotou em seu coração Voltou a encará-lo.

— Realmente não sei — disse, enfim, temendo fantasiar bons presságios.

Devia estar atrapalhada com os botões do ves­tido porque, tão logo vestiu a túnica, Robert co­meçou a abotoar o corpete como se ela fosse uma criança.

O gesto era gentil e, embora Samantha manti­vesse a cabeça baixa, podia sentir o olhar pene­trante sobre si.                

Sabia que a expressão de seu rosto a delataria, Não queria constranger-se mais ainda. Quando se viu vestida e recomposta, esquivou-se de Robert e caminhou até a porta.

― Espere... — Ele estava logo atrás e a impediu de sair.

Samantha fitou-o.

— Você é... — Robert hesitou e segurou o de­licado queixo. — Você é... única, Samantha. Es­pecial. — A sombra de um sorriso surgiu nos lá­bios dele. — Nunca se esqueça disso.

Mantendo-a atrás de si, Robert abriu a porta. Após certificar-se de que o corredor estava deserto, deixou-a passar. Olhou-a mais uma vez, até vê-la entrar no próprio quarto. A passos largos marchou em direção ao saguão.

O pesado corpanzil de Beaufort, o bispo de Win­chester, encontrava-se acomodado em uma confortá­vel poltrona diante da lareira. O semblante sempre pálido estava corado, como se o homem houvesse feito exercícios exagerados. O quisto acima da sobrancelha direita parecia mais rosado que o usual. Os olhos cinzentos e ardilosos nada perdiam ao redor.

Uma mesa farta de bebida e comida havia sido posta. Vários homens acomodaram-se em volta do eclesiástico e outros, à mesa. Nicholas e sir George faziam parte do grupo.

A ausência das damas indicava a gravidade da situação. Robert tinha certeza de que lady Marguerite não só sabia que Beaufort havia chegado, como também conhecia os nomes de cada figu­rante que acompanhava o bispo.

— Alldale — Beaufort cumprimentou-o e mordeu uma enorme coxa de galinha. — Não sabia que estava em Clairmont.

Robert não duvidava disso. O bispo tencionava encontrar a rainha Catherine sozinha. Desprotegida e à mercê de suas intrigas políticas.

— Sua aparição é tardia, Vossa Eminência. —. Robert curvou-se diante de Beaufort, sem beijar o anel eclesiástico. Conhecia o velho bispo havia anos e muito bem, por sinal. Logo, não se preocupava com aquela particular formalidade.

Beaufort pareceu incomodado, mas não comen­tou a atitude informal de Dryden.

— Não queria passar outra noite na estrada sob tendas úmidas e uma chuva torrencial. Wrexton! — exclamou, virando-se à direita.

Um homem alto e de cabelos grisalhos aproximou-se de Beaufort. O comportamento era de sinteresse, mas, ao mesmo tempo, o olhar demonstrava cautela. Um sorriso sutil distorcia os lábios que outrora deviam ter sido charmosos. Dryden conhecera vários homens que sustentavam o mesmo olhar sarcástico. Portanto, sabia que precisava ficar atento.

— Edmund Sandborn — o bispo o apresentou — Conde de Wrexton, este é Alldale.

Robert cumprimentou-o. Já ouvira falar dele, mas nunca o vira. Wrexton não participara das guerras francesas, preferia passar o tempo em sua vasta propriedade na fronteira galesa, afastado das atividades londrinas.

Rugas profundas ao redor dos olhos e da boca marcavam o semblante duvidoso do conde. Na concepção de Robert, ele parecia ser um homem acos­tumado a bajulações.

― Também trouxe Darly, como pode ver.

Sim, Robert podia ver. Ficou espantado pelo fato do visconde Darly deixar Londres e enfrentar uma jornada extenuante. O aspecto de fraqueza do vis­conde se apresentava não só pela expressão facial como também pela formação física: era alto e ma­gro como um mourão. A pele amarelada condizia com os cabelos secos como palha.

Robert se perguntou se o visconde viajara até Clairmont socado no fundo de uma carroça.

Ele encarou Nicholas, como se indagasse "Este é meu rival?"

Nick sorriu discretamente.

— Sua Majestade passa bem, presumo? — Beaufort perguntou.

Robert assentiu.

— E meu sobrinho-neto?

— Vai muito bem — Nicholas respondeu, sem entrar em detalhes acerca da criança.

— É muito perigoso para a rainha hospedar-se tão perto da fronteira sem uma proteção adequa­da. Não acham? — Beaufort fitou os presentes.

— Vossa Eminência ignora, mas há proteção suficiente em Clairmont — Nicholas respondeu. — Aliás, algumas noites atrás...

Aliviado, Robert deixou Nicholas dialogar com Beaufort, enquanto avaliava os acompanhantes do bispo. Sua comitiva era composta de vários cav^. leiros muito bem armados e somente dois nobres

Imaginara que Beaufort viesse acompanhado de mais homens. Deviam estar no alojamento com os outros soldados do castelo, alimentando-se e abrigando-se do mau tempo.

Quais seriam os planos do bispo? Robert lem­brava-se de que Darly pedira a mão de Marguerite em casamento. Portanto, Wrexton deveria ser o candidato a marido da rainha. Seria o homem tão maleável quanto Beaufort pensava, ou Wrexton possuía o próprio esquema articulado?

Pelo aspecto maléfico do conde, o bispo com cer­teza não confiava nele.

Um servo adentrou o saguão e disse algo ao ouvido de sir George.

— Os cômodos estão prontos, Vossa Eminência, caso queira se recolher — sir George anunciou.

Beaufort levantou-se.

— Estou exausto — disse o bispo, limpando a boca com um guardanapo. — Um leito de verdade me trará um repouso divino.

Enquanto o bispo se retirava com sua comitiva, Robert chamou Nicholas.

— Preciso conversar com você.

 

Samantha não conseguia dormir. A es­perança de que Robert pretendia pe­dir sua mão a impedia de relaxar e descansar. Passou boa parte da madrugada sentada no pa-rapeito da enorme janela olhando o incessante chuvisco. Observava a negritude dos campos de Clairmont e escutava o leve ruído da chuva sobre as plantas que circundavam o castelo.

Enrolou-se em um xale e abraçou os joelhos. Fora um dia e tanto, concluiu. O pavoroso con­fronto com os dois escoceses originou uma nova perspectiva de futuro. Ela percebeu que a vida era cheia de possibilidades e não havia razão para pessimismo. Poderia recusar o caminho radical que as exigências de Owen lhe determinavam.

O exílio em St. Ann estava fora de cogitação. Não iria jamais. Tampouco voltaria a ser um es­torvo na vida das pessoas. Após a morte de seus pais, vivera da caridade dos tios até Owen resolver ir buscá-la em Pwll. Ela sempre representara mais uma boca a alimentar, outro corpo a vestir. Nunca mais. Samantha era uma mulher capaz, inteligente e forte o bastante para trabalhar em serviços domésticos. Se Robert não a quisesse, es­taria apta a criar o próprio destino no mundo. Talvez pudesse ser uma criada, ama de crianças ou até dama de companhia de uma lady.

Era uma Tudor, afinal, descendente dos conse­lheiros de David e Llewelyn e do herdeiro de Angesley. Seu irmão se tornara o guardião do guar­da-roupa real. Por que ela não poderia obter um lugar mais agradável para viver? Ninguém, nem mesmo Owen, tinha o direito de depreciar suas habilidades.

No entanto, por mais que tentasse, não conseguia apagar a sensação inebriante. Jamais se sentira tão viva, tão ligada a alguém quanto no momento em que Robert a beijara. Daria tudo para adquirir o privilégio de abraçá-lo, de pertencer a ele.

Samantha sabia que era pedir demais, mas a vida se mostrara generosa para com ela. Apro­veitaria a oportunidade e lutaria com todas as forças a fim de alcançar seu objetivo.

Desde que fora expulsa de Pwll, após o faleci­mento de seu pai, não conseguira realizar seus desejos. No passado, sempre aceitara as contin­gências, não esperava nada além.

Mas agora que conhecia as carícias de Robert... depois de sentir-se envolvida por ele...

Suspirou de paixão. Por isso não conseguia con­ciliar o sono. Horas se passaram antes de ela se entregar ao descanso merecido.

― Com licença, milady — disse uma criada, ao bater à porta de Samantha na manhã seguinte. ― A rainha quer vê-la o mais rápido possível.

Pulando da cama, Samantha se vestiu as pres­sas. Não podia disfarçar o abatimento no rosto. A. rainha era compreensiva e desculparia a apa­rência fatigada, Samantha deduziu, enquanto atravessava a galeria que dava acesso aos apo­sentos de Catherine.

Adivinhar o que Sua Majestade queria com ela àquela hora da manhã seria impossível, porque Clairmont recebia ilustres hóspedes vindos de Londres.

O castelo permanecia silencioso, atestando que os convidados permaneceriam repousando por muitas horas.

Após uma suave batida à porta, Samantha adentrou ao quarto da rainha.

— Samantha! — Catherine exclamou, sorriden­te. — Como você é rápida.

Um movimento na outra extremidade do cômo­do chamou-lhe a atenção. Owen encontrava-se sentado em uma cadeira perto do fogo.

— Owen?

— Precisamos de sua ajuda, Samantha — ele disse e aproximou-se da irmã.

Considerando que era um mero servo da rainha, Samantha achou que Owen se movimentava com liberdade excessiva. Embora o posto do irmão fos­se importante, ficou surpresa ao testemunhar a casual familiaridade entre ele e Catherine. Es­tranho nunca ter notado aquele particular!

— Em que posso ajudar? — Samantha perguntou

— Nossos planos ainda estão incompletos —, Catherine começou. — Mas...

— Queremos que você tire Henry de Clairmont

— Owen prosseguiu.

— Tirá-lo daqui? — Samantha ficou assustada.

— Por quê? Para onde?

— Será temporário, Samantha — a rainha ex­plicou. — A presença do bispo de Winchester não significa bons presságios para mim... e meu filho.

— Ele trouxe um conde — Owen se adiantou.

— Um pretendente a marido para Sua Majestade. Se Beaufort não conseguir coagir a rainha a se casar com esse nobre, ele assumirá a custódia de Henry e forçará o conselho a aceitá-lo como guar­dião do futuro rei.

— Dessa maneira, Sua Eminência ganhará mui­to poder na Inglaterra.

Samantha respirou devagar. Centenas de per­guntas lhe surgiram, mas não conseguia concatenar as palavras.

— Majestade...

— Sei que é um pedido difícil e incomum, Sa­mantha. — Ela caminhou em direção à janela e olhou a chuva intermitente.

A jovem rainha sempre mantivera uma postura calma e serena e nunca se deixara abater pelas circunstâncias. No entanto, naquele momento Catherine de Valois torcia os dedos, mostrando um nervosismo surpreendente,

— Se eu conseguir despistar Beaufort, vou precisar de uma pessoa tão forte e audaciosa quanto você.

— Para onde devo levá-lo? — Samantha ficou espantada com a confiança da rainha. — E como?

A rainha relaxou ao perceber que a pergunta indicava a aceitação de Samantha. Catherine abraçou-a pelos ombros.

— Obrigada, Samantha. Você não imagina...

— Você o levará para o Castelo Windermere — Owen anunciou, também nervoso. — Mas não diga isso a ninguém.

— Como chegarei a Windermere? — Samantha indagou, ainda mais confusa. Já ouvira falar desse lugar e sabia que Robert Dryden viera de lá. — Não sei...

— Um homem irá escoltá-la.

— Alldale — Catherine disse. — E a única pes­soa confiável que poderá acompanhá-los, embora esteja noivo de Marguerite.

As pernas de Samantha bambearam. Robert es­tava noivo? De lady Marguerite?

— Nicholas Becker permanecerá aqui — Owen acrescentou, alheio ao choque da irmã.

Ele e a rainha estavam tão preocupados com o esquema elaborado que nem sequer notaram a súbita palidez de Samantha e a respiração ofe-gante. Nenhum olhar humano nas atuais circuns­tâncias perceberia a dor em seu coração.

— Nick é mais falante que Dryden e precisamos desse talento para persuadir Beaufort.

— Você vai necessitar de Dryden para chegar a salvo em Windermere e manter Henri em segurança.

— Majestade... — Samantha murmurou. Tinha de falar, fazer perguntas. Não iria sucumbir às lágrimas, muito menos deixaria o irmão notar o menor sinal de fraqueza. — Não seria melhor que a ama de Henry o acompanhasse?

— Non, Samantha — Catherine retrucou, con­victa. — Ela está ficando... — A rainha olhou para Owen à procura da palavra correta.

— Velha.

— Exato. Dada sua idade avançada, ela não agüentará uma viagem longa com mon petit Henri.

— Henry a adora, Samantha — Owen disse.

— Ele a conhece e você tem... uma certa facilidade com crianças. E nossa melhor escolha.

— Mas lorde Robert... — Samantha protestou.

— Se está noivo de lady Marguerite...

— Ainda não é oficial, Samantha — Owen in­terrompeu-a. — Mas é o que menos importa. Dryden é o mais qualificado para escoltar Henry até Windermere. Você é a melhor ama para Sua Ma­jestade. Ambos irão.

— E o conde... Robert concorda com este plano?

— Samantha... — Owen conteve a impaciência.

— Não questione. Dryden já está se preparando para a jornada.

Arrasada, Samantha virou o rosto. Não sabia quão longe era Windermere ou quantos dias ela e Robert permaneceriam juntos.

Na noite anterior, teria ido a qualquer lugar com ele. Agora seria uma tortura ficar perto do conde sabendo que pertenceria a outra. Mais uma vez, fora infeliz em seus impulsos. Que ridícula fora sua tentativa de sedução!

— Certo. Somente nós dois... com o pequeno Henry?

— Samantha, é assim que Alldale prefere — Catherine explicou. — Dessa forma, segundo ele, a viagem será mais rápida e tranqüila.

Que opção ela tinha? Gostava de Catherine e adorava Henry. Samantha olhou ao redor, como se pudesse encontrar um meio de fugir.

Porém, não havia escapatória. Teria de ir a Win­dermere com Robert.

Samantha arrumou seus pertences em uma única bagagem com a ajuda de uma criada tagarela. A jovem falava do excesso de trabalho no castelo agora que tantos lordes haviam chegado de Londres.

— Fiquei aliviada quando me encarregaram de servir o bispo — ela dizia. — Não gosto daquele Wrexton.

— Wrexton). O conde? — Samantha exclamou. — Edmund Sandborn?

— Sim, milady. Apesar da idade, é um homem bonito.

Idade? Ele envelhecera? Samantha ficou per­plexa. Wrexton em Clairmont? Não poderia ser! Mas sim, o conde devia estar mais velho agora. No mínimo, ao redor dos quarenta anos.

Seria impossível deixar Clairmont maquele mo­mento. Não quando tinha tamanha oportunidade de matar o homem. O conde não a reconheceria após tantos anos, tampouco imaginaria que alguém invadiria seu quarto para lhe cravar uma faca no peito.

A morte instantânea não permitiria que Wrexton percebesse a vingança de Samantha Tudor.

Ou devia fazê-lo sofrer? Matá-lo devagar e de forma dolorosa por toda agonia que o maldito cau­sara ao povo de Pwll?

— Onde os novos hóspedes estão alojados, Aggie? — perguntou, mantendo o tom de voz inalterado.

— Não creio que haja muitos quartos disponíveis...

— Não, milady. — Aggie riu. — Há muitos cô­modos ainda. O bispo está na ala norte do castelo. Wrexton está na leste. Ele tem uma linda vista do jardim, bem distante dos estábulos.

Era somente isso que Samantha precisava sa­ber. Só lhe restava arranjar uma arma, assassinar Wrexton e fugir. Quando o corpo fosse encontrado, ela já estaria bem longe, a caminho de Windermere. Jamais seria descoberta.

Conseguiria cometer o crime? Nunca havia ma­tado outro ser humano. Não era adepta à violência, embora pudesse utilizar tal recurso para sobreviver. Odiava Wrexton com todas as forças, mas não sabia se conseguiria matar o homem a sangue-frio.

Se entrasse sorrateira no cômodo enquanto ele dormia, poderia esfaqueá-lo... no coração? No pes­coço? Nas costas?

— Já terminei, Aggie. Pode ir — Samantha orde­nou, fechando a sacola de lona. Possuía poucos ob­jetos, não havia muito a arrumar. Sua preocupação se resumia na maneira fatal de liquidar Wrexton.

Seria puro assassinato. Sem misericórdia, tal qual o conde fizera com Dafydd e Idwal. Talvez justificado, mas assassinato de qualquer maneira.

Oh, Deus. Matar um conde!

Samantha estremeceu como se uma corrente de ar gélido entrasse no quarto.

— Bem, vou rezar pela senhorita — Aggie disse, causando arrepios em Samantha. — E espero que ore por mim quando chegar à abadia.

Aflita, Samantha mordeu o lábio inferior. A pre­ce de uma assassina? Oh, Deus amado!

Todos no castelo acreditavam que ela viajaria para St. Ann na companhia do conde Alldale, em vez de Owen. Samantha hesitou em mentir para Aggie, em especial acerca da oração na abadia. Mas não pôde evitar. Pela segurança de Henry, e dela, não podiam levantar suspeitas por ao me­nos alguns dias.

— Vou sempre... incluí-la em minha preces, Ag­gie — disse, por fim, sentindo-se culpada antes de realizar seu plano.

A criada retirou-se. Samantha vistoriou o apo­sento. Tudo estava dentro da bagagem. O espaço parecia limpo. Não havia nenhuma indicação de que ela estivera ali.

Igual a sua vida, pensou. Nenhum sinal de existência.

Robert não se importava de ter apenas o esboço de um plano estratégico. Era assim que sempre tra­balhava. Conhecia os riscos e utilizava os instintos para superá-los. Voltar a Windermere seria simples.

Viajar com Samantha seria penoso ao extremo

Contudo, era inevitável. Não podia carregar Hen­ry durante o longo trajeto até Windermere, e não sabia nada acerca de crianças. O que comiam? Quan­do dormiam? E quanto às necessidades fisiológicas? Devia estar grato por uma mulher acompanhá-lo na jornada, mas... tinha de ser Samantha?

Só de pensar nela sentia cada fibra e músculo do corpo estremecer.

Pela centésima vez, espantou a lembrança do que ocorrera entre ambos e continuou a empacotar comida e outros suprimentos nas sacolas de couro da sela. Não podia pensar nela naqueles termos, Samantha poderia desconsiderá-lo como possível amante.

Ele jamais o seria. Em breve se tornaria marido de Marguerite Bradley, padrasto de seu filho, John. Não pretendia desonrar os votos que faria a lady Marguerite, tampouco queria desgraçar Samantha.

Entretanto, ao refletir sobre as duas mulheres, Robert questionou a vida futura ao lado de Mar­guerite. Era uma linda dama e muito bem edu­cada nos deveres femininos. Sabia administrar um lar repleto de servos e apresentar-se diante da sociedade com classe e distinção. Possuía impor tantes atributos, os quais representavam o único motivo de Robert ter aceito a sugestão de Wolf.

No entanto, depois de conhecer Samantha suas expectativas haviam mudado. Ele experimentar a paixão da galesa ruiva, a extraordinária sensibilidade a seu toque. Poderia alguma mulher na Inglaterra ser tão livre, afetuosa e devotada quan­to Samantha Tudor?

Lady Marguerite conseguiria suportar o toque de Robert sem sentir repulsa?

Duvidava. Mas esse detalhe era irrelevante. Ti­nha pedido a mão de Marguerite em casamento e, quando voltasse a Clairmont, ela se tornaria sua noiva.

Os pensamentos foram interrompidos pela apa­rição de dois jovens cavaleiros. Robert estava no estábulo, selando sua montaria e uma dócil égua para Samantha.

O alvorecer se aproximava e a luminosidade estava fraca. Pelo menos, cessara a chuva.

— Milorde — um dos cavaleiros disse ao apear. — Sir George nos pediu que o encontrasse aqui.

— Estão preparados para viajar durante dias?

— Estamos, milorde — o outro respondeu. — Diga-nos para onde e partiremos imediatamente.

Dryden mandou-os a St. Ann e ordenou que per­manecessem nas vizinhanças do convento por al­guns dias, antes de retornarem a Clairmont. Tam­bém sugeriu que se mantivessem distantes da ci­dade e evitassem outros viajantes pelo caminho.

Para não despertar suspeitas por parte dos sen-tinelas do castelo, os dois cavaleiros partiram de Clairmont, como se fossem realizar uma patrulha de rotina. Robert já havia imaginado um meio de atravessar a fortaleza sem que Henry fosse notado pelos guardas.

Amarrou as rédeas dos cavalos em um poste e saiu em busca de Samantha. Ela já deveria estar pronta, deduziu ao cruzar o grande saguão.

— Lorde Robert — uma voz o chamou tão logo ele atingiu a escada.

Era sir George.

— Quando vai partir? — o procurador perguntou. Pelas janelas, Robert notou que a luz do dia

somente agora surgia no horizonte.

— O mais breve possível. Vou buscar lady Sa­mantha e...

— Vossa Senhoria, estou indo aos portões do castelo agora — sir George proclamou com abso­luta formalidade. — Não dormi bem esta noite. Sofro de insônia e ninguém irá estranhar se eu substituir o sentinela na guarida.

Assentindo, Robert compreendeu a insinuação de sir George. Não podiam falar abertamente a respeito do que a rainha havia planejado pois al­guém poderia escutá-los. Poucas pessoas estavam a par do esquema armado. Nem mesmo os cava­leiros que estavam a caminho de St. Ann sabiam.

A presença de sir George Packley nos portões era fundamental. Henry precisaria ficar escondido ao ultrapassar as muralhas do castelo, e a tarefa seria mais dificultosa se qualquer outro cavaleiro se encontrasse na vigilância.

— Boa jornada, lorde Robert — George desejou. — E que Deus os acompanhe.

Depois de agradecê-lo, Dryden subiu a escada com o intuito de chamar Samantha e tirar o pe­queno Henry dos braços da rainha.

Pressentia a tristeza de Catherine ao despedir-se do filho e esperava que ela o fizesse antes de ele aparecer para pegar o menino.

Quando aproximou-se do quarto de Samantha, bateu à porta. Como não ouvisse resposta, entrou e percebeu que o cômodo estava vazio. Havia so­mente uma mala de lona no chão. Intrigado, Ro­bert dirigiu-se ao próprio aposento. Talvez ela es­tivesse a sua procura, concluiu, lembrando-se no­vamente do interlúdio da noite anterior.

No fundo, sabia que jamais esqueceria os cabe­los avermelhados ou os reluzentes olhos azuis. A sensação de afagar os seios fartos e os lábios ma­cios compunham um quadro vivo que o acompa­nharia por toda existência. Imaginava se Mar-guerite entregaria o corpo e a alma com a mesma liberdade de Samantha.

Um vulto movimentando-se devagar chamou-lhe a atenção. Havia alguém no corredor, perto do quarto de Wrexton. Robert se aproximou e di­visou Samantha.

Curioso quanto a atitude sorrateira da galesa, seguiu em frente.

No momento em que ela tocou a maçaneta do cômodo de Wrexton, Robert viu que segurava uma afiada faca de cozinha. Samantha empurrou a por­ta e entrou.

— Samantha! — ele sussurrou, mas não foi ouvido.

Embora fosse loucura, Dryden perseguiu-a. As cortinas do leito estavam presas, revelando o sono profundo de Wrexton. O odor fétido de cerveja permeava o espaço e o conde jazia, embriagado sobre a cama.

Uma mulher dormia ao lado de Wrexton, mas Robert não a reconheceu. Podia ser uma das cria­das ou alguém do vilarejo... Não sabia ao certo. Também ignorava qual dos dois Samantha pre­tendia ferir.

Tão logo ela se aproximou do leito, Wrexton resmungou e se mexeu, mas não acordou. O mo­vimento súbito assustou-a e a fez parar. Contudo, apertou o punho da faca e deu um passo à frente. A mulher gemeu e continuou a dormir. Samantha aproximou-se ainda mais.

Robert precipitou-se. Com a mão trêmula ela ergueu a faca e hesitou alguns segundos. Foi o tempo que Dryden precisava para agarrá-la pele pulso.

Atônita, Samantha derrubou a arma, despertando Wrexton. O conde abriu os olhos, levantou a cabeça, fitou-a um tanto zonzo e voltou a deitar-se.

Tapando a boca de Samantha, Robert puxou-a para fora do aposento. Depois de fechar a porta em silêncio, continuou a arrastá-la pelo corredor até atingir o quarto dela.

— Ficou louca? — perguntou, nervoso. Pálida, quase desfalecida, Samantha meneou a cabeça em negativa.

— Então o que significa isso? — Robert andava pelo quarto, passando as mãos nos cabelos. Estava atordoado. — Por quê? Por quê, em nome de Deus?

— Eu...

― Você queria matar Wrexton! — ele respon­deu, mal podendo acreditar no que seu único olho testemunhara. Nunca a achou capaz de assassinar outro ser. E Wrexton! Entre tantas pessoas, ela escolhera um conde!

Samantha assentiu. O queixo, apesar de ergui­do, tremia. Uma lágrima rolou pela face. Ela pa­recia apavorada, porém resoluta.

Pereceu-lhe natural tomá-la nos braços naquele momento, mas Robert conteve-se. Não se deixaria esmorecer pelas lágrimas. Havia jurado manter distância de Samantha Tudor e pretendia cumprir a promessa.

— Não temos tempo — Dryden esbravejou pe­gando a mala de Samantha.

Não podia perder minutos preciosos tentando entender por que aquela criatura resolvera matar Wrexton.

— Precisamos partir agora. Antes que os hós­pedes acordem. E antes que você, arranje mais problemas. Não creio que Wrexton tenha visto meu rosto, mas só podemos rezar para que ele não tenha visto o seu.

 

Henry ainda estava sonolento. Embo­ra fosse muito cedo, não pareceu se importar com a brincadeira que ele, Samantha e Robert iriam fazer. Despediu-se da mãe, cujo sem­blante demonstrava, além da dignidade real, preo­cupação. O menino se acomodou em uma cesta, na qual adormeceu mesmo antes de passarem pe­las muralhas do castelo.

Robert esperava percorrer um longo trajeto antes que Wrexton soasse o alarme. Com sorte, o estupor do conde o impediria de perceber quão próximo à morte estivera naquele início de alvorecer.

Tudo que tinha de fazer era atravessar os portões sem Henry ser visto. Aos olhos de todos, Robert levava Samantha a St. Ann como havia planejado, e os dois cavaleiros que partiram antes do amanhe­cer proveriam pistas substanciais acerca do álibi.

Montados nos cavalos, ambos cavalgaram de­vagar e silenciosos, em direção à saída do castelo para não chamar a atenção. A enorme cesta atada à sela de Samantha não levantou suspeitas. Pa­recia, na verdade, fazer parte de sua bagagem.

Após ultrapassarem os limites do povoado, Sa­mantha voltou a respirar normalmente. O sol co­meçava a nascer, dissipando a tensão.

A "fuga" de Clairmont lhe pareceu um pequeno milagre. Tivera receio de que Henry não conse­guisse permanecer quieto até adentrarem a flo­resta, um trajeto quase interminável, aliás.

Quando atingiram a estrada, ao norte do vila­rejo, Robert pediu que Samantha parasse. Ele de­satou a cesta e colocou-a em seu colo.

Com o dedo na boca, Henry ainda dormia um sono profundo. Samantha teria sorrido ante a cena angelical, mas depois do evento ocorrido no quarto de Wrexton, não podia. Estava frustrada e zan­gada por Robert ter-lhe estragado o plano.

Contudo, sentia-se aliviada.

Tencionara mesmo matar Wrexton. Havia descido à cozinha do castelo e encontrado uma faca. Em seguida, voltara ao dormitório do conde sem ser vis­ta. Ou melhor, pensou que ninguém a vira. Preten­dia infligir uma ferida mortal em Edmund Sandborn e esgueirar-se sob as sombras para fugir.

A mulher na cama do conde a assustara. E se ela acordasse? Começaria a gritar?

E o assassinato em si? Teria coragem de ir até o fim? Samantha sentiu-se trêmula e nauseada outra vez. As mãos ficaram úmidas. Poderia ter tirado a vida daquele homem horrível?

Wrexton realmente era maléfico. Merecia mor­rer pelo horrendo malefício causado aos amigos de Samantha. E quem poderia avaliar os outros delitos por ele cometidos e pelos quais lhe caberia a sentença de morte?

Um homem como o conde Wrexton deveria car­regar na consciência vários crimes hediondos. Nunca Samantha encontrara uma oportunidade tão boa de matá-lo, e, quando a tivera, havia per­dido a chance.

Depois de tudo, não sabia se agradecia ou cen­surava Robert Dryden por ter impedido a execução.

— Não devemos continuar? — ela perguntou, fria. — Achei que a pressa fosse imperativa.

Calado, Robert amarrou a cesta na frente da sela. Não tinha a menor disposição de conversar com Sa­mantha. Havia quilômetros a percorrer antes de al­cançarem a meta proposta para o primeiro dia.

Estava ainda perplexo por tê-la descoberto empunhando uma faca no aposento de Wrexton. Portanto, não suportaria uma discussão naquele momento.

Tampouco pretendia abordar o interlúdio que viveram na noite anterior. Queria afastar aquilo da memória e nunca mais recordar.

— Continuaremos pelo norte até atingirmos o rio — ele comunicou.

Samantha assentiu em silêncio. O propósito era criar rastros em direção a St. Ann, depois atra­vessar o rio que bordejava as terras de Clairmont a fim de evitar pistas no solo. Em seguida, esta­riam livres e a caminho de Windermere pelo sul.

Fora isso, ela não sabia o que esperar. Disse­ram-lhe somente para confiar em lorde Alldale.

Felizmente, nenhum dos dois parecia disposto a dialogar.

O pequeno rei dormiu cerca de uma hora. Já haviam cavalgado vários quilômetros antes que Henry perguntasse por sua maman.

Pararam para que Samantha o confortasse e o alimentasse. Henry não entendia por que não po­dia ver a mãe ou o motivo de ela não participar daquele passeio.

Quando Robert embrenhou-se na floresta, o me­nino começou a chorar e Samantha tomou-o nos braços.

— Parry... — Usou o apelido em galés que sem­pre o fazia rir, na tentativa de distraí-lo.

Porém a brincadeira não funcionou dessa vez. De repente, Robert reapareceu.

— Henry. — Ele se ajoelhou ao lado de Sa­mantha e do menino em prantos. — Veja. — Na palma da mão havia um sapo. Henry parou de chorar, embora ainda soluçasse um pouco. Os olhos do futuro rei brilharam de interesse.

Por sua vez, Samantha também ficou intrigada. Mas não pelo sapo. Por Robert e sua atitude em despender atenção ao menino. Muitos homens te­riam praguejado contra uma criança manhosa de dois anos de idade. Contudo, ele contou, com sua­vidade, tudo o que sabia a respeito de sapos. E disse a Henry que, se não fossem bem cuidados, eles fariam verrugas na pele humana.

— Robert não tem verrugas — Henry reparou, tirando a mão da boca para falar. — Mas sey dedo foi embora.

— É verdade — Dryden concordou. — No en­tanto, não foi um sapo que fez isso.

— Quem fez? — Os olhos sagazes do rei encaram Robert. — Uma cobra?

— Perdi meu dedo em um acidente — ele res­pondeu sem vacilar. — E isso aconteceu há muito tempo.

— Sinto muito, Robert. Posso segurar o sapo? Não tenho verrugas.

Samantha perguntou-se como ele havia perdido um dedo. Como podia ter sido em um acidente? Não fora em uma batalha? Não imaginava que tipo de sortilégio lhe tirara o olho e também lhe causara i tantas cicatrizes. Mas não ousaria inquiri-lo. Após o evento malfadado daquela manhã, não tinha disposição para conversar. E muito menos queria recordar o que ela fizera na noite precedente. Seu comportamento fora desastroso e frustrante.

Estava mortificada de vergonha. Evitava pensar na frágil tentativa de sedução. Devia ter previsto que um homem como Robert Dryden não se in­teressaria por ela, nem por uma noite. Sendo noivo de lady Marguerite, ele não precisava de uma... Como Owen a chamara? Uma mulher para en­contros furtivos.

Uma risada irônica escapou de seus lábios e Robert fitou-a. Samantha virou o rosto pois não queria que ele testemunhasse sua angústia.

Por que não adivinhara? Era óbvio que Robert e lorde Nicholas haviam ido a Clairmont por al­gum motivo. Ela não se deteve para refletir acerca do fato.

Agora sabia. Todas as noites ele se sentara ao lado de Marguerite à mesa e tinha passado tardes no solário da castelã. Como pôde ser tão cega? Lorde Alldale estava comprometido com uma das mulheres mais belas da Inglaterra.

Formavam um casal perfeito. Ambos eram quie­tos e reservados. A potência masculina de Robert combinava com a estonteante feminilidade de Marguerite.

Por que não percebera a corte antes de fazer papel de tola?

Permaneceram mais algum tempo com o sapo. Henry se acalmou o suficiente para Robert expli­car-lhe que iria se aventurar pela floresta e em breve visitaria uma linda princesa em seu castelo. O conto pareceu confortar a criança a ponto de retomarem a jornada.

Henry aceitou cavalgar com Robert, e apressa­ram o passo a fim de alcançar a residência de um amigo antes do anoitecer.

Após a rápida interrupção, Samantha sentiu-se desolada. Suas descobertas e reflexões provoca­ram-lhe uma frustração tão incontrolável que es­tava a ponto de explodir.

Conseguiu bloquear qualquer pensamento refe­rente a Robert, porém substituiu-o com as lem­branças da tragédia em Pwll e a culpa pela morte dos dois amigos.

O sangue borbulhava. Como não levara adiante seu intento? Wrexton era a única criatura do rei que merecia morrer, e ela havia perdido a oportunidade perfeita. Podia tê-lo feito em absoluto silêncio. Dessa forma livraria o mundo de um mem sanguinário e, logo depois, deixaria Cia mont para sempre.

Por que Robert Dryden decidira interferir? Por que não permitira que ela completasse a cruel tarefa? Agora tinha de retornar a Clairmont, após entregar Henry em Windermere, e eliminar Wrex­ton, como deveria ter feito naquela manhã.

Determinada, Samantha memorizou o trajeto através de marcas atípicas do caminho. Como iria voltar a Clairmont sozinha, não podia contar com o senso de direção de Robert.

O dia de cavalgada foi penoso a Samantha. Não estava habituada a montar durante horas. Claro, o desconforto físico acentuava o mau humor.

Para Henry também foi difícil. Ele precisava de liberdade a fim de brincar e exercitar as pernas. Ao anoitecer, choramingava tanto que Samantha duvidava que aquela fuga improvisada tivesse êxito.

Mas Dryden persuadiu o menino a prosseguir e logo chegaram a uma enorme e graciosa resi­dência. Havia luzes nas janelas e, embora o as­pecto fosse acolhedor, Samantha ficou temerosa. Tinham de evitar contato com pessoas mesmo que para isso precisassem dispensar acomoda­ções confortáveis.

O sol começava a se pôr e a brisa gélida do entardecer tendia a piorar com a chegada da noite. Uma cama quente seria o ideal para ela e Henry.

Que lugar é este? — Samantha perguntou a Robert.

― Descer! — Henry gritou.

― Em breve você vai descer — Dryden disse ao menino. Então olhou-a. — É o feudo Morburn. O lar de Chester Morburn, um velho amigo. Ire­mos pernoitar aqui.

― Não devíamos ser mais cautelosos...

― Chester é de confiança — Robert replicou. — Ninguém jamais saberá que estivemos em sua casa.

Apesar dos receios, Samantha seguiu-o pelos fundos da moradia. Precisava mesmo confiar nos instintos de Dryden e, dadas as circunstâncias, não tinha escolha.

De repente, a porta se abriu e um homem de cabelos claros apareceu, carregando um candela­bro. Possuía o corpo de um soldado e a expressão desconfiada.

— Morburn! — Robert chamou-o ao apressar o cavalo.

— Dryden? E você, homem?

— É claro que sim. — Ele trotou até a frente da residência com Samantha logo atrás.

— Joan! — ele chamou alguém e aproximou-se para receber os recém-chegados.

Primeiro, Morburn ajudou Samantha a apear. Ela, em seguida, correu para pegar Henry.

— Onde está a princesa, Samantha? — o me­nino perguntou ao descer do cavalo.

— Vamos, Parry. — Ela segurou a mão de Henry. — Antes de falarmos da princesa iremos cuidar das nossas necessidades. — Samantha não fazia idéia de que princesa era aquela. Encarou Robert, ima­ginando que tipo de história ele contara ao garoto.

— Jamais pensei em vê-lo fora dos portões de Windermere — Chester Morburn comentou, de­pois que Samantha afastou-se.

Dryden não retrucou. Também não acreditara que um dia veria o mundo novamente, quanto mais participar das intrigas da corte. E lá estava ele, evitando assassinatos pela manhã e fugindo com uma criança à noite.

— Você se recuperou?

Quando a esposa de Morburn, Joan, apareceu, Robert apenas assentiu. Chester apresentou-o a ela como sendo um velho amigo.

— Ainda economiza palavras tal qual fazia an­tigamente — Morburn disse.

Após desamarrar as sacolas da sela, Robert entre­gou-as a Chester, que as levou ao interior da casa, como se fosse algo comum para ele receber amigos.

— Estamos por conta própria aqui, Robert. Não temos criados. Portanto, terá de me ajudar com os cavalos.

Samantha retornou com Henry. Mas, antes de levar os animais ao estábulo, Robert apresentou-a aos anfitriões.

— Samantha Tudor, este é o barão Chester Mor­burn, e sua esposa, lady Joan. Sua Majestade está, sem dúvida, mais interessado em jantar.

— Sua Majestade? — Joan repetiu, incrédula .

— Diga olá, Henry — Samantha pediu ao me­nino que mantinha no colo.

— Não — ele resmungou. — Quero descer, Samantha.

Joan Morburn recobrou a compostura.

— Não desejam entrar? Vão passar a noite co­nosco, certo?

— Obrigada pela gentileza — Samantha agra­deceu, seguindo Joan. — Ficaremos, se não lhes der trabalho.

Pelo que tudo indicava, Joan e o marido já ha­viam jantado. A mesa da imensa sala estava vazia, mas um aroma apetitoso emanava de algum lugar.

— Comida, Samantha! — Henry pediu, puxando-lhe a saia.

— Nós vamos comer, Parry. — Ela também es­tava faminta. — Logo.

— Temos bastante comida. — Joan caminhou até a cozinha. Amarrou um avental à cintura, pegou vários potes na prateleira, abriu-os e começou a pre­parar uma substanciosa refeição. — Mas não temos servos. Chester e eu acabamos de nos estabelecer no feudo e ainda há muito trabalho a fazer.

Joan era uma mulher atraente com seus cabelos castanhos e sardas pelo minúsculo nariz. Saman­tha notou o ventre arredondado sob o avental e sentiu uma pontada de inveja, a qual eliminou de pronto.

A esposa de Morburn mostrava-se simpática e parecia feliz na companhia de Samantha. Tinha pouco contato com as pessoas desde a mudança para o feudo e sentia falta de conversas.

— Especialmente agora que estou grávida — Joan explicava. — Há trabalhadores ajudando na reforma da casa e do celeiro, mas Chester não tem condições de contratar uma criada. Eu ado­raria conversar com outra mulher, uma que já seja mãe.

— Bem, não tenho filhos — Samantha falou odiando o som daquelas palavras. — No entanto tenho uma tia que é parteira em meu vilarejo. Eu a ajudei em vários nascimentos — acrescentou mais gentil.

— Verdade? — Joan levou as mãos ao peito — Talvez possamos conversar mais tarde. Tenta uma ou duas perguntas...

— Decerto. Não sou uma grande conhecedor de partos, mas acho que poderei responder sua perguntas.

— Oh, qualquer assunto de que falemos me fará bem. Há somente meu marido, e, quando convesamos, ele só faz dissertar sobre a força e valentia de seu futuro filho.

Samantha sorriu. Morburn era semelhante a homens de Pwll. Não se importava com o apoio fundamental à mãe no período de gestação, esperava apenas ter um filho forte e saudável. Supunha ser um aspecto da natureza masculina. Imaginou como Robert se comportaria uma vez que Marguerite estivesse grávida. Seria atencioso ou pensaria no bebê somente ao nascer?

Não eram pensamentos agradáveis e Samantha ficou aliviada quando Joan continuou a falar.

— Por que vieram até aqui com Henry? — Joan não sabia de que maneira referir-se à criança. Como monarca? Ou como um menino amuado de tanto cansaço?

— Tem a ver com política — Samantha respon­deu, incerta quanto ao que podia revelar. — É complicado demais.

— Quero mais, Samantha! — Henry exigiu, de­pois de inserir na boca uma fatia inteira de pão.

— Mastigue o que tem na boca, Parry.

O jantar esquentou rápido. Enquanto Henry era alimentado, Chester e Robert adentraram a casa e dirigiram-se ao pavimento superior. Joan mencionou que os dois homens provavelmente foram arrumar as camas. Samantha e ela falaram de diversos as­suntos, até que o pequeno rei adormeceu.

Por fim, Samantha carregou-o escada acima para acomodá-lo na cama.

Robert encontrava-se sozinho no primeiro quar­to, acendendo a lareira. A soleira da porta, ela admirou os movimentos das costas musculosas e dos ombros enquanto Dryden adicionava lenha ao fogo. A despeito do enorme fascínio, ela sentiu os dias de tensão a dominarem, esgotando suas for­ças e enfraquecendo-a.

Virando-se, Robert viu Samantha acariciar os cabelos de Henry. Podia escutar o sussurro suave em galés, palavras sem significado para ele. De súbito, aproximou-se e pegou o menino nos braços. Então, acomodou-o na cama.

— Acho que vou me recolher — Samantha co­municou. — Estou cansada demais para comer.

Hesitante, Robert notou a palidez do rosto e os círculos cinzentos ao redor dos olhos. Não havia dúvida de que ela precisava descansar, mas tam­bém necessitava de alimento.

— Esta também será minha cama? — ela perguntou.

— Sim, se não se importar em dividi-la.

— Não — Samantha murmurou, constrangida. — Tudo bem.

— Você devia jantar.

— Vou esperar até amanhã. — Ela sorriu. — No mínimo, serei capaz de devorar um dos cavalos.

A sala da casa de Chester era grande e confor­tável, e a refeição revelou-se um manjar dos deu­ses. O estômago de Robert logo ficou satisfeito. Joan cozinhava muito bem. Notou que estava grá­vida, e a maneira afetuosa com a qual o casal se relacionava o fez refletir. Por um instante, ima­ginou-se usufruindo da doce companhia de uma esposa enquanto esta gerasse seu filho no ventre.

Descartou a idéia na mesma hora. Companhei­rismo e afeição não existiriam em seu casamento, nem constituíam uma boa razão para se casar. O noivado com Marguerite lhe convinha porque se tratava de uma mulher que pouco exigiria dele. Um detalhe importante já que Dryden não tinha quase nada a oferecer.

— Tem notícias de Nicholas Becker? — Morburn indagou, quando a esposa serviu-lhe vinho.

— Ele está em Clairmont. — Robert declinou outra dose da bebida. — Tentando distrair Beaufort. O bispo não pode saber que Henry se foi.

— Como?

— Você conhece Nick. Fala mais que um irlandês.

— Certo, mas...

— Ele e a rainha vão prender Beaufort durante um dia ou dois para que possamos chegar em se­gurança a Windermere — Robert explicou. — Nós não temos certeza de que o bispo queira ver Henry...

— Mas possível?

— Claro. Tudo é possível, Morburn. Tenho es­perança de que conseguiremos chegar a Winder­mere a tempo de entregar Henry à proteção de Wolf, antes que Beaufort possa nos alcançar.

— Wolf o defenderá como se fosse seu próprio filho — Chester afirmou.

— Tem razão.

— E quanto a Wrexton? Por que ele está com Beaufort?

— Você o conhece?

— Um pouco — Morburn respondeu. — Seu legado fica ao sul, além de Windermere. É na fronteira de Gales.

Embora permanecesse inalterado, Robert es­pantou-se com a informação.

— Joan pode lhe dizer mais — Chester conti­nuou. — Ela é da região de Stafford e, portanto, o conhece melhor.

Joan corou e baixou a cabeça. O súbito nervo­sismo indicava que ela preferia manter-se calada. Mas arriscou:

— Wrexton era... — Joan encarou o marido. — Era severo com o povo galés. Talvez pior. Às vezes, ele podia ser brutal.

— Como assim? — Dryden ficou curioso.

— Bem, depois da rebelião que arrasou os po­voados de Gales, alguns ingleses resolveram per­seguir os "traidores"... quer dizer, todos os galeses.

— Refere-se à Revolta Glendower? Joan assentiu.

— Mas quando foi? Há vinte anos? — Robert inquiriu. — Wrexton não pode ser tão mais velho que eu. Talvez dez anos.

— Não sei, milorde. Nunca vi o homem. Mas sei que os ingleses puniram aqueles que partici­param da rebelião de Glendower contra o rei. Por isso Edmund Sandborn odeia o povo galés. E tem um certo prazer em cometer crueldades.

O pensamento de Robert retornou à mulher que dormia no quarto. Teria ela experimentado a le­gendária brutalidade de Wrexton? Não podia en­contrar nenhum outro motivo para Samantha ten­tar matar o conde.

Ainda intrigado, levantou-se e agradeceu a Joan pelo jantar e a ambos pela hospitalidade.

Enquanto subia a escada, concluiu que Wrexton cometera alguma barbaridade imperdoável contra Samantha ou contra alguém que ela amava. So­mente um fato dessa monta poderia levá-la a rea­lizar um ato tão violento.

A menos que o homem fosse culpado de um crime contra um inocente.

Bateu de leve à porta para não perturbá-la, caso estivesse dormindo. Como não houvesse resposta, Robert entrou e foi direto à lareira. Abaixou-se, ali­mentou o fogo e ficou algum tempo aquecendo-se.

Enfim, permitiu-se olhar para Samantha dor­mindo. Ela estava abraçada ao menino de forma protetora.

Um dos ombros estava exposto, com apenas a fina alça da roupa íntima a cobri-lo. Os cabelos sedosos achavam-se ao redor do rosto, emoldu­rando as feições delicadas.

Henry se moveu durante o sono e Samantha acomodou um dos braços acima da cabeça.

A visão da pele nua perturbou-o. Queria des­pir-se e se deitar com ela. O gesto tentador o fez lembrar-se do corpo que vira na noite anterior... suave, quente e convidativo.

Podia passar a madrugada colado a ela, man­tendo-a aquecida e segura, partilhando a intimi­dade do sono. Os seios se tornariam túrgidos e ele redescobriria a sensação de sentir as pernas esguias a seu redor.

O cenho perfeito franziu enquanto Samantha dormia. Robert aproximou-se e puxou uma mecha avermelhada da face ainda pálida.

Atrás daquela figura mutilada e austera escon­dia-se um homem cheio de ternura.

Como deitar-se com ela sem desejá-la? Não era um tormento estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe? Fitou os lábios entreabertos, recordan­do o sabor e os suspiros de paixão.

Nunca aconteceria de novo. Tinha de sair dali e procurar outro local para dormir. Caso contrário, cometeria o maior erro de sua vida.

Marchou até a porta, e virou-se para apreciá-la novamente.

Não. Jamais teria o poder de permanecer tão próximo sem sequer tocá-la.

Mesmo incerto, Robert deixou Samantha imersa em seu sono.

 

Samantha acordou por causa do pe­sadelo. Não tinha aquele sonho des­de que Owen fora buscá-la em Pwll. Contudo, não havia sido o irmão que causara aquelas ima­gens. Foram os recentes acontecimentos que as provocaram.

Henry continuava a dormir profundamente. Ela se levantou e logo sentiu o frio dentro do quarto. Acrescentou mais lenha ao fogo e esfregou os bra­ços para se esquentar.

A sensação desagradável do sonho permanecia. Sentiu o estômago queixar-se de fome. Chegara ao limite da exaustão e agora, com apenas algu­mas horas de sono, Samantha percebeu que seria incapaz de dormir sem alimentar-se.

Com o intuito de buscar pão, ou uma maçã, ela se enrolou em um cobertor, acendeu uma vela e saiu.

A cozinha de Joan Morburn estava em perfeita ordem. Samantha lembrava-se do lugar onde a anfitriã guardara os alimentos, então pegou um pedaço de pão, uma faca e cortou uma fatia. Estava tão entretida na tarefa que não reparou em nenhum movimento, até que se virou para alcan­çar o pote de manteiga na prateleira.

— Samantha — Robert sussurrou, antes que ela tivesse a chance de gritar e acordar a casa toda.

Sobressaltada, recuou e acabou derrubando o cobertor.

— Robert! Que susto você me deu.

— Desculpe-me... A figura máscula encontrava-se oculta sob as sombras, pois a vela provinha pouca luminosida­de. Samantha, no entanto, não pôde deixar de notar que estava seminu. Devia tê-lo despertado enquanto se esgueirava pela sala e Robert viera investigar.

O corpo avantajado possuía músculos bem de­finidos dos ombros ao abdômen. Ela ainda se lem­brava da sensação de sentir os pêlos do tórax ro­çando os seios, e dos braços poderosos a envolvê-la.

Estremeceu.

— Está com frio.

— Eu derrubei meu... Robert pegou o cobertor. Contudo, não a cobriu.

Somente entregou-lhe o tecido de lã, como se qui­sesse manter certa distância.

— Deve estar faminta.

— A fome me acordou, eu creio — Samanthí murmurou, sem se referir ao terrível pesadelo Jogou o cobertor sobre os ombros e voltou a pega a manteiga.

— Henry está dormindo?

— Está. Foi um dia fatigante para ele.

— E para você também. — Robert serviu-lhe uma caneca de água. — Não conversamos a res­peito do incidente... com Wrexton.

Samantha meneou a cabeça em negativa e sen­tou-se em um banco próximo à lareira. O fogo ainda estava ativo, mas Robert incluiu mais lenha para preservá-lo. Tentando ganhar tempo, mordeu

a fatia de pão.

— O que Wrexton fez para que o odiasse tanto? — ele perguntou, ao sentar-se no banco.

— Você não entenderia.

— Não pode ter certeza. Talvez se surpreenda com minha capacidade de compreensão.

Era verdade. Ele a impressionara diversas ve­zes desde o dia em que o conhecera. Talvez fosse hora de falar acerca das barbaridades de Wrexton. Afinal, ela guardara a dor para si durante muito

tempo.

— Quando meu pai faleceu, Owen foi enviado a Londres — relatou. — Eu fui morar com os irmãos de minha mãe em Pwll.

— Quantos anos tinha?

— Acho que já estava com quase dez anos — Samantha respondeu. — Pwll é um pequeno vi­larejo muito próximo à fronteira de Gales. E perto da propriedade de Wrexton.

Ela fechou os olhos, pesarosa.

— O povo de Pwll não gostou de saber que iriam ter um Tudor na aldeia. O nome de meu pai estava associado a Glendower e à rebelião. Eu e meus tios não podíamos negar a realidade. E Wrexton já havia causado muitos problemas ao povoado. Tive de me manter afastada das outras crianças. O que não foi nada fácil, porque eu não conseguia evitá-las.

Comovido, Robert teve a impressão de que Samantha levara uma vida solitária. Sentiu o cora­ção se apertar ao imaginá-la sozinha e isolada em tão tenra idade. Apesar de perder os pais na juventude, Dryden havia sido aceito na família de Wolf Colston como filho.

E depois que o pai e o irmão de Wolf foram mortos em uma emboscada, Robert passou a mo­rar com o avô alemão de Wolf. Contudo, por ironia do destino, jamais fizera questão de companhia.

— Nossas famílias não sabiam, mas eu tinha amigos... dois meninos em particular. Idwal ap Rhys e Dafydd ap Dai. Costumávamos brincar nas colinas e vales, nos metíamos em todos os tipos de encrencas, sem que ninguém descobrisse minha participação.

Ela sorriu, recordando as aventuras divertidas que tinha vivido com os dois amiguinhos.

— Um ano após minha chegada a Pwll, no fim do inverno, achei duas ovelhas perdidas no es­treito vale, entre Pwll e as terras de Wrexton. De acordo com Idwal, os animais não pertenciam ao povoado. Se fossem de Wrexton, ele não se im­portaria de abrir mão de duas ovelhas já que era um rico saxão.

Fazendo uma pausa, ela tomou um gole de água.

― As pessoas passavam fome. O ano não fora próspero e não tínhamos comida. Dafydd matou as ovelhas na floresta e levamos a carne para casa. Claro que a mãe de Dafydd e a de Idwal ficaram desconfiadas, e minha tia também, mas a necessidade venceu e nossas famílias obtiveram fartas refeições.

— Como Wrexton descobriu?

— Eu nunca soube. Não pensamos em queimar as carcaças... jamais imaginei... Certo dia, Wrex­ton apareceu no povoado com alguns de seus ho­mens, exigindo que os ladrões se entregassem.

— E eles se entregaram?

— A princípio, não. Éramos crianças. Estáva­mos com medo. Mas o povo percebeu...

— O que aconteceu, Samantha?

— Fui a primeira a me entregar — ela res­pondeu, com a voz trêmula. — Disse a Wrexton que havia roubado as ovelhas e estava disposta a pagar por elas. O conde gargalhou. Achou que uma mera garota não poderia roubar dois ani­mais e matá-los na floresta... mesmo sendo uma Tudor. Ele me amarrou em um poste, começou a me bater...

— Santo Deus, Samantha!

— E me torturou para eu dizer quem havia me ajudado.

Agoniado, Robert tomou-a nos braços.

— Idwal se entregou — ela prosseguiu. — Em seguida, Dafydd. Não puderam suportar o castigo que Wrexton me impôs. Seus homens os agarraram. Oh, Robert! — Samantha chorava copiosamente. — Eram somente meninos! Tinham doze anos! Nem tinham mudado de voz, ainda... A des­peito da miséria e da fome, eram crianças tão alegres, riam e brincavam tanto... Mas Wrextor os prendeu e...

— Não precisa terminar — Robert sugeriu, mas Samantha não o escutou.

— Os saxônios penduraram cordas nos galhos de uma árvore — ela disse, ainda em prantos. — Wrexton disse que era a punição deles por confiarem em uma Tudor. E... os enforcou. Na minha frente, diante do vilarejo inteiro. — A voz soava fraca quando ela finalizou.

— Sinto muito, Samantha... — Ele estreitou < abraço.

— Ainda vejo o rosto de ambos... e o das mãe deles. Escuto suas vozes... vejo seus olhos — Samantha continuou. — E sei que fui a única responsável.

— Não foi, Samantha. Wrexton é o maior culpado

— Sim, ele carrega a culpa. Por isso, invadi o quarto do conde...

— Entendo.

— Prometi a mim mesma, no dia em que meus amigos morreram, que me vingaria de Wrexton. Não sabia quando nem como, só tinha certeza de que acabaria com a vida dele, tal qual fizera com as de Idwal e Dafydd.

Suspirando, Robert acariciou os cabelos sedosos.

— Agora, já não tenho certeza de mais nada...

Se não tivesse me impedido, não creio que o ma­taria — ela confessou e o encarou com aqueles olhos brilhantes. — Não sei se sou corajosa o bas­tante para cumprir minha promessa.

Um assassinato jamais justificaria qualquer vingança, Robert refletiu. Mas sabia como era de­sejar a morte de alguém tão vil e cruel.

— Era uma menina quando fez a promessa — ele disse, por fim. — Não precisa mais se mortificar, Samantha.

Em silêncio, ela acomodou-se no calor daqueles braços seguros. Robert não sentiu o frio, tampouco o passar das horas. Por enquanto, bastava-lhe es­tar com Samantha.

Eles partiram antes do nascer do sol para evi­tar serem vistos pelos carpinteiros e trabalha­dores que costumavam chegar ao amanhecer. Henry ainda dormia, uma condição que Robert pretendia manter, e o carregou durante a pri­meira hora do dia.

Pensativa, Samantha cavalgava atrás de Dryden, relembrando o modo como ele a abraçara na noite anterior.

Jamais recebera tamanho conforto. Ainda sen­tia no corpo a sensação do puro carinho, um sentimento de intimidade que nunca experimen­tara antes.

Ninguém a havia consolado ou conversado com ela após a trágica morte dos meninos. Os tios ape­nas a desamarraram do poste onde Wrexton a prendera para chicoteá-la. Fora levada à casa do tio Llwel e tivera as feridas tratadas sob um lastimoso silêncio.

Para dizer a verdade, Samantha nem sequer obtivera espaço para falar da culpa e da tristeza.

Mas agora havia Robert, que parecia compreen­der a profunda angústia que sentia. E Samantha, comovida com o poderoso aconchego, prosseguia a cavalgada pela trilha da floresta, enquanto o sol despontava no horizonte.

— Robert? — Henry disse, ao acordar com um bocejo. — Fome.

— Você está sempre com fome, Parry. — Sa­mantha riu. Aproximou sua montaria e entregou uma fatia de maçã ao menino.

— Que tal pararmos por alguns minutos, Robert? Era inacreditável, Dryden pensou, espantado.

Como ela podia sorrir e mostrar-se tranqüila quando carregava na memória as sombras de uma infância devastadora? Assassinar Wrexton podia não ser a melhor saída, mas por que se alegrar sabendo que o vilão vivia e prosperava?

Henry e Samantha começaram a conversar ami­gavelmente. Robert ainda ponderava. Tratava-se de uma mulher incrível mesmo. Abandonara a vida que conhecia em Gales para acompanhar o irmão a Londres. Sem revolta, aceitara a deter­minação de Owen de mandá-la para o convento. Encarregara-se das crianças de Clairmont, organizando atividades durante a reconstrução do vilarejo.

Pouquíssimas damas teriam suportado as provações que Samantha Tudor agüentou, conservan­do o senso de humor, a vontade de viver, e a co­ragem. Ela se questionava quanto à coragem de realizar seu objetivos.

Robert quase soltou uma gargalhada.

O fato de não ter matado Edmund Sandbom não significava ausência total de valentia.

No fundo, ele gostaria de lhe oferecer a cabeça do conde Wrexton em uma bandeja. Porém, não lhe cabia ser o herói de Samantha. Encontraria um bom marido a ela e providenciaria um dote razoável, caso fosse necessário.

Nicholas não recusara a idéia de se casar com Samantha, mas também não concordara... Aliás, Nick agira de forma bem distinta. Permanecera pensativo e calado quando Robert expôs a situação da galesa ruiva.

Naquele momento, não chegou a refletir sobre o comportamento do amigo. Fazia tanto tempo que não se interessava por histórias alheias que nem sequer atinara para a atitude discreta de Nicho­las. Havia algum problema, sem dúvida. Mas de nada adiantava conjecturar. Teria de falar com ele quando retornasse a Clairmont.

O dia foi tão longo e tedioso quanto o anterior. A chuva ameaçou despencar- a tarde inteira. Nu­vens cinzentas cobriam o céu. Havia ainda muitos quilômetros a percorrer antes de atingirem a pró­xima parada. Se não conseguissem alcançar o des­tino previsto, devido a tempestade, teriam de pas­sar a noite na estrada.

Embora Henry tivesse se comportado bem, aca­bou dificultando a jornada. Samantha pediu vá­rias pausas, para o desagrado de Robert. O menino precisava correr e brincar, segundo ela.

No entanto, manteve-se paciente. Em várias ocasiões precisou obrigar Samantha e Henry a montar mais cedo do que queriam.

O início da chuva aconteceu ao entardecer.

Robert cobriu-se com seu pesado manto e ajei­tou Henry a sua frente, sob o casaco. O menino se aninhou junto ao corpo de Dryden e, enfim, adormeceu.

— Acha que conseguiremos encontrar algum tipo de abrigo onde possamos esperar a chuva pas­sar? — Samantha perguntou, fitando os raios que cruzavam o céu a distância.

— Iremos parar em breve — Robert assegurou, avaliando a trilha.

Aflita, Samantha trotou atrás dele, rezando para que se abrigassem. Estava exausta e sentia dores insuportáveis nas costas. Seu corpo preci­sava de descanso e Henry também estava nas mesmas condições.

Minutos depois, o odor de madeira queimada atingiu-lhe as narinas e, antes que pudesse fazer algum comentário, avistou três homens à beira da estrada, protegidos embaixo da copa das ár­vores. Uma pequena fogueira os aquecia.

Quando os três os encararam, Samantha pren­deu a respiração. Não seria uma boa hora para confrontos com Henry no colo de Robert e estando ela, além de exaurida, desarmada.

Entretanto, Dryden parecia ignorar os andari­lhos. Simplesmente esporeou o cavalo e prosse­guiu. O perigo ficou para trás, sem danos.

A noite encobriu a floresta e a chuva aumentou de intensidade.

— Temos de parar, Robert. Receio que meus músculos não agüentem mais.

— Só nos resta subir aquela elevação, Samantha.

Doía-lhe obrigá-la a continuar. Já tinha perce­bido o tremendo cansaço, e obrigá-la a continuar era um martírio para ele. No entanto, em meio à floresta e dominados pela chuva, não podiam titubear. Ao menos, teriam uma noite de repouso e no dia seguinte a jornada seria mais curta. Afi­nal, estavam próximos de Windermere.

Enveredaram por um caminho que terminava em uma enorme casa abandonada e em ruínas. Robert dirigiu-se à lateral da residência e parou no estábulo. Samantha observou-o desmontar com Henry nos braços.

— Maman? — o menino chamou ao despertar.

— Não, Henry — Robert disse, abrigando-o da chuva enquanto ajudava Samantha a apear.

As pernas bambearam quando ela tentou ficar em pé.

— Você está bem? — ele indagou, preocupado. Não era do feitio de Samantha mostrar fraqueza. Logo, pôde deduzir que ela devia estar bem pior do que queria admitir.

— Sim. Só estou fatigada. Que lugar é este? -— ela perguntou, alongando as pernas.

— Dryden Hall. — Robert fitou o lar onde outrora passara a infância. — Venha comigo ao estábulo. Não quero que entre na casa sem mim.

— Por quê, Robert? O que...

— Está vazia há muitos anos — ele argumen­tou, puxando os cavalos. As pernas de Samantha voltaram a obedecê-la, então conseguiu acompa­nhá-lo. — Prefiro ser cauteloso.

Ela não fez nenhuma pergunta. Seguiu-o até o estábulo, escutando o choramingo de Henry. Era bom fugir da chuva e o teto das baias parecia intato.

A construção antiga inspirava aconchego, após tantas horas suportando frio e umidade. Pegou Henry no colo e caminhou à entrada do estábulo a fim de espiar a casa.

Era a propriedade da família de Robert. O que aparentava ter sido um lar adorável, encontrava-se agora em péssimo estado de conservação. O que acontecera aos outros Dryden? Onde se en­contravam os pais e irmãos de Robert? Por que uma residência tão imponente fora abandonada?

— Veja, Parry. — Ela apontou a casa. — Não há luzes nas janelas.

— Aonde as pessoas foram? — Henry pergun­tou, encostando a cabeça no ombro de Samantha.

— Talvez não haja pessoas. Acho que só nós es­tamos aqui — ela acrescentou. Sentia certa expec­tativa, pois sabia ser sua última noite com Robert. Na manhã seguinte chegariam a Windermere.

Mas Samantha não podia se dar ao luxo de de­sejar momentos íntimos com Robert, muito menos conforto e afeição. Era um homem comprometido. Nunca trairia Marguerite, nem que Samantha o forçasse.

— Onde está mamanl

— Em Clairmont — ela respondeu, e mudou de assunto para distrair Henry. — Vamos jantar em breve, Parry. Podemos também brincar dentro da casa. Trouxe seus blocos de madeira. E talvez Robert nos deixe explorar os cômodos.

Depois de chegarem a Windermere, Saman­tha ignorava o que iria acontecer. Presumia que Robert voltaria a Clairmont, para os braços de Marguerite.

Sentiu o coração se apertar, mas não parou para refletir. O futuro de Robert Dryden já havia sido traçado.

As chances de Samantha eram limitadas. Po­dia pedir trabalho em Windermere como criada do duque. Ou então, retornaria a Clairmont para terminar o que começara na manhã ante­rior. Matar Wrexton. Não acreditava que Robert seria capaz de escoltá-la, caso soubesse de suas intenções.

Na verdade, ele a impediria, embora entendesse o ódio de Samantha e a necessidade de vingança.

— Fique aqui — Robert ordenou, de repente. — Vou vistoriar a casa.

— Mas...

— Parece vazia, porém quero ter certeza. Se algo me acontecer, Samantha, há um vilarejo bem perto daqui. Basta seguir a trilha...

— Não, Robert! — Ela o abraçou, ainda com Henry nos braços. O menino protestou ao ser pren­sado entre os dois. — Seja cuidadoso... assim não teremos de ir ao vilarejo.

Incapaz de resistir, ele acariciou os cabelos avermelhados.

— Não se preocupe, vou tomar cuidado... — dis­se e se foi.

Sem perder tempo, Robert acendeu a lareira.

O interior da casa exalava um forte odor de mofo. Salvo alguns ratos que correram pelo rodapé quando ele entrou, a casa encontrava-se deserta. Devia haver morcegos no andar superior, mas não teve disposição para procurá-los na escuridão. Já era suficiente saber que nenhum intruso estava à espreita.

Quanto às tenebrosas cavernas no porão da re­sidência, onde brincara quando criança, ele não pretendia aventurar-se por lá. Já tivera sua quota de obscuros calabouços ao ser aprisionado por Phi­lip Colston e, desde então, vinha evitando lugares lúgubres e úmidos.

Contudo, não podia se entregar a fraquezas. Ti­nha de prover abrigo a Samantha e Henry, e Dry­den Hall, apesar do clima sinistro, era a melhor escolha. Representava o refúgio onde podiam pas­sar a noite em segurança.

Henry começou a espirrar tão logo entrou, mas a reação alérgica a pó e bolor desapareceu em minutos. Robert voltou ao estábulo a fim de buscar as bagagens e, assim que as deixou na casa, de­sapareceu novamente para cuidar dos cavalos.

Pelo estado degradante de Dryden Hall, Sa­mantha concluiu que havia anos ninguém habi­tava o local. Os aposentos, no mínimo, deviam estar em péssimas condições. Mas o alicerces da residência pareciam firmes e resistentes à chuva. Ficou grata por não terem de passar a noite em céu aberto.

Achou vários tocos de vela e os acendeu. Levaria tempo até que pudesse repousar o corpo dolorido, pois Henry precisava exercitar as pernas. Man­cando devido à dor intensa nos músculos, Saman­tha segurou a mão do menino e ambos foram ex­plorar o espaço.

Quando Robert voltou, ela já tinha trocado as roupas do pequeno rei e as próprias, e pendurado os trajes molhados para secar. O saguão principal tornou-se acolhedor com tantas velas acesas e Sa­mantha sentada diante da lareira, alimentando Henry.

Por um instante, ele apreciou a cena, vivendo a forte sensação de ter um lar. Era absurdo, claro. Não vinha a Dryden Hall desde os dezessete anos quando fora acolhido em Windermere pelos Cols­ton. O sentimento de bem-estar, sempre raro, sur­gia em Windermere, jamais na mansão abando­nada de Dryden Hall.

— Não creio que haja camas em bom estado — Samantha explicou-se. — Então resolvi...

— Tudo bem — Robert a interrompeu, indican­do as peles perto da lareira. — Os colchões estão puídos. A casa ficou fechada desde a morte de meu pai, anos atrás.

Juntou-se a ela perto do fogo e serviu-se de co­mida. De forma inacreditável, Samantha limpara o espaço ao redor da lareira. Se ficassem mais dias, a galesa seria capaz de transformar aquele palacete em um lar de verdade.

— Precisa se livrar destas roupas molhadas — ela sugeriu. Não conseguia parar de pensar na nudez de Robert, no tórax musculoso e nos pêlos negros em contato com sua pele. — Vai se sentir melhor e mais aquecido — acrescentou, abraçando Henry.

O menino protestou. Samantha suspirou e o sol­tou para terminar a refeição.

— Que barulho foi esse, Robert? — Henry perguntou.

— Um trovão. Nada com que se preocupar.

— Por quanto tempo viajaremos amanhã? — Samantha indagou, temerosa.

Devia sentir-se segura em Dryden Hall, mas tempestades violentas sempre a enervavam. Um trovão a distância não era nada, disse a si mesma. Estava a salvo. Precisava somente descansar e relaxar. Não podia deixar a tormenta atrapalhar seu sono.

— Windermere não está longe daqui — Robert respondeu. — Menos de um dia de cavalgada.

Só de imaginar-se novamente sobre o lombo de um cavalo Samantha sentiu dores no corpo. As pernas e os quadris ardiam como se houvesse le­vado uma surra. Não conseguia encontrar uma posição confortável.

— Dryden Hall pertence a sua família? — in­dagou para distrair-se.

— Sim. Foi construída cem anos atrás pelo pri­meiro barão.

— E seus parentes?

— Foram-se. Morreram há muitos anos. Outro trovão reverberou no céu. Samantha fitou as janelas, grata por não serem atingidos. Trê­mula, convenceu-se de que estava protegida e te­ria horas de repouso antes de montar na égua mais uma vez.

Não queria pensar na viagem.

Henry brincou durante algum tempo e, fatigado, aninhou-se nas peles e cobertores que Samantha arrumara para ele. Adormeceu de pronto.

Em seguida, Samantha e Robert também se aco­modaram para dormir.

Robert dormiu durante horas. Porém o sonho o despertou. Ou teria sido a tempestade? A chuva torrencial despencava sobre a casa com toda vio­lência. Estrondos de trovões soavam mais próxi­mos e clarões de raios adentravam a sala sem cessar, como se estivesse iluminada por centenas de velas.

O ombro doía. Fora deslocado quando estivera aprisionado em Windermere, e o tempo úmido sempre reativava a inflamação nas juntas. Alcan­çou a sacola e pegou a garrafa de ungüento que Kit Colston lhe dera.

Tirou a túnica e passou o líquido medicinal no ombro. O alívio foi imediato devido ao repentino calor que lhe percorreu a pele.

Samantha gemeu em meio ao sono. Robert sabia que ela deveria estar com os músculos doloridos por causa das longas horas de caval­gada, mas imaginou que a tormenta também a perturbava. Lembrou-se da reação assombro­sa aos trovões na noite em que haviam ficado no parapeito de Clairmont. Ela lhe parecera aterrorizada.

Guardou o ungüento e aproximou-se de Saman­tha. Com o sono agitado, uma das pernas esguias encontrava-se fora do cobertor. Tentou não fitar a maciez exposta quando a cobriu.

Ela murmurou algo. Robert?

Foi isso que escutou? Ou seria o vento que trans­formara o suave murmúrio em seu nome?

De repente, ela abriu os olhos.

— Robert — sussurrou novamente, gemendo ao se mover.

Um trovão reverberou naquele instante e um potente raio clareou a sala. Samantha gritou de susto. Até Robert se espantou com o estrondo. Levantou-se e precipitou-se à porta, abrindo-a para espiar o lado de fora.

A tempestade parecia intensificar-se. Tiveram sorte por conseguir chegar a Dryden Hall antes daquela violência da natureza. Arvores se curva­vam com a força do vento e os galhos roçavam o solo. O volume de água inundava as cercanias da residência, quando outro trovão surgiu. O tempo­ral parecia concentrar-se somente no quintal do estábulo.

Não havia nada a fazer. Os cavalos estavam abrigados, como os humanos, e Robert pediu a Deus que os impedisse de se refugiar no porão da velha casa. Imaginar-se submerso naquele lu­gar escuro o fazia estremecer.

Fechou a porta e voltou para junto de Saman­tha, que se encolhia diante da lareira, apavorada.

— É apenas uma tempestade — ele tranqüilizou-a. Henry continuava dormindo, satisfeito com o dedo entre os lábios.

— Você é mestre em compreensão — Samantha murmurou. — Pensei que um raio houvesse caído aqui perto.

— Pelo que pude observar, não. Foi o trovão que a acordou?

— Não — ela respondeu, irritada. — Foram estes malditos músculos que odeiam exercícios no lombo de um cavalo.

Robert voltou a pegar a garrafa de ungüento. Se a dor não a deixasse dormir, sem dúvida não poderia cavalgar na manhã seguinte. Isso sig­nificava que teriam de permanecer mais um dia em Dryden Hall e, Beaufort poderia encontrá-los facilmente.

— O que é isto? — Samantha indicou a garrafa.

— Um ungüento que vou passar em suas pernas — ele replicou, ignorando a tormenta. Tirou a ro­lha da garrafa no momento em que um trovão eclodiu. — Deite-se de bruços.

 

Assustada, Samantha arregalou os olhos e meneou a cabeça em nega­tiva. Seu orgulho ferido não permitiria que Robert a massageasse, nem que viesse a tentá-la com seu toque, uma vez que ele pensava em outra mulher. Não podia suportar tamanha afronta.

Além do mais, sempre cuidara de si mesma e continuaria a fazê-lo. Nunca seria dependente de ninguém, muito menos de Robert Dryden.

— Ficarei bem — disse. — A chuva forte me deixa nervosa. Sei que conseguirei dormir assim que a tempestade amainar.

Um músculo do rosto de Robert contraiu, en­quanto despejava um pouco de ungüento na mão.

— Samantha, tem de cavalgar amanhã. Pela sua aparência cansada não será capaz de montar. Serei obrigado a seguir sem você.

— Não! — ela exclamou, em pânico.

— Então deite-se de bruços.

— Não, eu... prefiro fazer isso sozinha.

— Deite-se, Samantha. Nada de impróprio irá lhe acontecer — ele afirmou, impaciente.

Como Robert podia estar tão convicto? Situa ções impróprias aconteciam cada vez que ele a tocava. Uma simples proximidade devastava-lhe os sentidos.

Mesmo hesitante, Samantha se deitou. Robert ajoelhou-se ao lado e um longo momento passou antes que a apalpasse. Então, deslizando a mãe sob o vestido, sem erguer a saia, começou a mas sagear-lhe a coxa.

Após algum tempo, usou as duas mãos para trabalhar ambas as coxas. O corpo inteiro de Sa­mantha fervia enquanto Robert trabalhava em seus músculos doloridos. Um calor súbito pene­trou-lhe nos músculos, seguido de relaxamento. O alívio começou a dominá-la.

As mãos eram poderosas. Ele pressionava e sol­tava com extremo cuidado, massageando, estenden­do os exercícios aos locais doloridos. Eram também os pontos mais sensíveis a qualquer carícia.

Ela acomodou a cabeça entre os braços, sentindo a massagem nos quadris. Primeiro um lado, depois o outro. Conforme Dryden prosseguia, as sensações aumentavam, semelhantes às que Samantha expe­rimentara na última noite em Clairmont. Percebeu o ar frio roçar-lhe a pele e deduziu que suas pernas deviam estar expostas. Não se importou.

Não mais se preocupava com pudor na presença de Robert.

Mordeu o lábio a fim de reprimir o gemido, mas um suspiro de prazer escapou. Como ele podia continuar sem saber ou entender os efeitos que causava nela? Samantha também o afetava da mesma maneira? Massagear partes íntimas não tinham a menor conseqüência para ele?

O desejo renasceu, exigindo satisfação. Queria carícias mais sensuais, uma intimidade mais pro­funda. Precisava sentir o sabor de um beijo, as mãos em seus seios. Não suportaria ficar deitada por muito tempo.

Os movimentos diminuíram. As mãos agora so­mente acariciavam, como se Robert descobrisse cada centímetro das pernas nuas. Os dedos tra­çavam as curvas, brincavam sobre a pele arrepia­da. Sôfrega, Samantha se virou, surpreendendo a ambos.

— Robert... — O nome sussurrado incrementou o desejo. Um trovão ecoou a distância e, em algum lugar de sua mente, ela reparou que a tempestade se afastava.

Samantha puxou-o para si e Robert não resistiu.

Ele continuava a afagar os quadris quando en­volveu-a em um beijo ardente. Aproximou-a ainda mais, enlaçando-a com as próprias pernas. Beija­va-a com paixão, enquanto empreendia movimen­tos sensuais.

— Você é tão linda, Samantha — sussurrou, beijando o lóbulo delicado, o queixo e a curvatura do pescoço.

Samantha parecia mergulhar em ondas de sen­sações indescritíveis. A pressão da coxa musculosa e a intensidade dos afagos a faziam estremecer de prazer.

A única vez que experimentou tanta paixão foi com Robert. Era como se fosse parte dele, parte de um todo, nunca mais se sentiria sozinha ou isolada novamente.

Amava-o, apesar de ser um amor proibido. Uma lágrima rolou pela face. Samantha rezou para que Robert não a notasse. Não precisava de piedade. Que­ria amor, embora ele não estivesse livre para amá-la.

Recusava-se a refrear seus desejos, queria en­tregar-se de corpo e alma àquele instante tão es­pecial. Seu coração se apertou, e, em um rompante de consciência, percebeu que as lembranças do que acontecia entre ambos teria de durar pelo resto da vida.

Era errado, porque Robert não poderia corres­ponder ao mesmo sentimento.

Desesperada, ela colou-se no corpo viril, im­plorando por mais. Seriam apenas um naquela noite. Nada a impediria de realizar seu maior desejo, mesmo que Robert pertencesse a Marguerite Bradley e o interlúdio fosse a única dá­diva a receber dele.

— Samantha... — Robert pousou a cabeça sobre os seios fartos.

Um silêncio, que pareceu uma eternidade, pas­sou-se antes que ele falasse. Samantha já sabia o que iria escutar.

— Não podemos. Não é certo.

— Oh, Robert... — A culpa a envolveu e as lá­grimas ofuscaram-lhe a visão. Constrangida, ela desviou o rosto. — Entendo. Você e Marguerite estão noivos e não pode romper o compromisso com ela. Eu não devia...

— Foi minha culpa, Samantha. Eu não devia tocá-la...

De súbito, Robert parou de falar. Samantha sen­tou-se e ajeitou as roupas. Lutaria contra as lá­grimas, pois jamais revelaria quanto necessitava dele. Quão solitária se sentia.

Agora mais recomposta, cobriu as pernas e fin­giu uma postura auto-suficiente. Não deixaria transparecer a mágoa que a consumia por ter de renunciar a ele em favor de Marguerite.

— Samantha, eu... — Ele parou e escutou. Na verdade, ambos ouviram. Vozes e barulho do lado de fora.

— Os cavalos!

Robert ficou em pé rapidamente. Agarrou a es­pada, o arco e jogou o estojo de flechas no ombro.

— Fique aqui e bloqueie a entrada! — ordenou ao sair e bateu a porta.

Os salafrários estavam roubando os cavalos, o único meio de transporte a Windermere! Robert precipitou-se pela chuva em direção ao relinchar dos animais.

Por sorte, os ladrões não eram cavaleiros com­petentes. Os cavalos empinavam e corcoveavam, enfurecidos. Sob o súbito clarão de um raio, Robert reconheceu os homens que se encontravam, horas atrás, à beira da estrada. E os três tentavam mon­tar nos dois cavalos!

Sem titubear, Dryden puxou uma flecha, que certeira e silenciosa atingiu as costas de um dos homens. Ele não gritou, somente tombou no la­maçal, deixando os outros dois companheiros para Robert confrontar. Pelo menos, a vantagem dos safardanas havia diminuído.

Gritos e blasfêmias ecoaram em meio à chuva tão logo os vagabundos atestaram a morte do com­panheiro. Quando a égua empinou novamente, os homens escorregaram na lama, soltando as ré­deas. Robert ergueu a espada e, sem escolha, par­tiu para cima do mais forte dos larápios.

O homem também possuía uma espada e as lâminas colidiram assim que Dryden aproximou-se. A luta foi rápida pois Robert era ótimo espa-dachim. Rendeu o ladrão, mas o outro, esgueirando-se pelo lado cego de Dryden, atingiu-o com o galho de uma árvore.

Robert ficou estonteado, porém não caiu. Virou-se depressa e enfrentou o segundo homem, que se defendia com o galho. No instante em que ele fez menção de ferir o sujeito mais forte, este es­quivou-se da espada, apesar do barro escorrega­dio, e o outro espancou-o outra vez com o galho de árvore.

Os gatunos continuaram a atacá-lo por ambos os lados enquanto Robert com sucesso os comba­tia. No entanto, era impossível causar qualquer ferimento grave neles. Aquela briga insana pre­cisava terminar. Tendo dois oponentes, logo fica­ria cansado e seria vencido pelos malfeitores.

A maior desvantagem de Robert consistia na vjsão. Era incapaz de manter a atenção nos ad­versários e ao mesmo tempo calcular a precarie­dade do solo barrento a fim de melhor atacar. Caso vacilasse, os ladrões usariam tal deslize para eliminá-lo. Só esperava que Samantha possuísse o bom senso de permanecer trancada no interior da casa com Henry.

De repente, uma abertura surgiu. Robert apro­veitou a falha e investiu contra o homem armado, rasgando-lhe a pele. Simultaneamente, o bandido teve tempo de ferir o braço de Dryden, reabrindo o corte ainda mal cicatrizado que ele havia ad­quirido na batalha de Clairmont.

O ferimento voltou a sangrar.

Por sorte, o ferimento não fora no braço que manejava a espada. Com um gesto de puro reflexo, cravou a lâmina no peito do adversário.

Contudo, o outro ladrão voltou a atacá-lo com o galho e, dessa vez, o golpe o deixou inconsciente.

Samantha não podia permitir que Robert enfren­tasse os três malfeitores sozinho. Não era justo!

Olhou ao redor à procura de uma arma, e não encontrou nenhuma. Enfim, optou por uma imensa moringa que poderia ser útil em caso de necessidade. Então, saiu pela porta dos fundos da casa.

Os cavalos mostraram ser inteligentes. Haviam retornado às baias para se proteger da chuva. Sa­mantha esperava que continuassem lá pois não tinha tempo a perder com eles.

Com a moringa nas mãos, correu até o quintal onde Robert enfrentava os dois ladrões. O terceiro jazia na lama com uma flecha cravada nas costas.

Contendo a náusea repentina, viu Robert com­bater os outros dois. Sabia que ele estava em des­vantagem devido à ausência de visão do lado esquerdo. Samantha atravessou o terreno, sem sei notada pelos homens.

Quase desfaleceu quando Robert foi ferido no braço. Em seguida, testemunhou-o aniquilar o mercênário com a destreza de um excelente espadachim Paralisada de pavor, ficou impotente ao avistar c terceiro homem agredi-lo de forma letal.

Por impulso, Samantha avançou por trás do facínora e quebrou a moringa na cabeça dele. O infeliz estatelou-se na lama, e ela ajoelhou-se ao lado de Robert.

— Robert!

Não houve resposta.

— Oh, Deus, não o deixe morrer! — exclamou desesperada.

Felizmente ele ainda respirava, mas o ferimentc do braço sangrava demais. Supunha que a pan­cada na cabeça, pela violência, o deixaria incons­ciente por um longo período.

Precisava levá-lo de volta à casa, porém Robert era muito corpulento e pesado, seria impossível carregá-lo. Tampouco podia puxá-lo pelos braços pois agravaria mais o ferimento.

Samantha correu até a casa, pegou o maior co­bertor de pele que achou, certificou-se de que Henry ainda dormia e retornou ao local onde Robert se encontrava. Enrolou-o na coberta com cuidado e arrastou-o em direção à entrada da casa.

Primeiro, bloqueou a porta. Duvidava de que o único ladrão sobrevivente acordaria tão cedo, mas não podia facilitar outro confronto. Se o cretino voltasse a si e roubasse os cavalos, não haveria nada a fazer.

Ela rasgou a túnica de Robert e usou os pedaços como torniquete para o braço machucado. Secou-o e, em seguida, verificou a cabeça à procura do ferimento. Sentiu uma protuberância do lado di­reito da nuca.

Aproximou-o do fogo, cobriu-o com cobertores e jogou seu manto nas costas com o intuito de sair e se assegurar de que os cavalos estavam ainda no estábulo. Não podiam mesmo se dar ao luxo de perdê-los.

Durante os minutos seguintes, tentou não se preocupar com Robert. Concentrou-se em garantir a ida a Windermere.

Graças ao bom Deus, os animais permaneciam abrigados nas baias. Havia algumas goteiras no teto, mas nada que causasse uma inundação na cocheira.

Enxugou os cavalos e jogou a proteção de sela sobre eles. Então, encostou-se na porta do está­bulo. Precisava pensar em um modo de prender o ladrão que ainda continuava caído no barro sob a chuva. Os outros dois deviam estar mortos, pon­derou, mas não permitiria que o terceiro acordasse e tentasse roubar os cavalos de novo.

Muito menos o deixaria morrer na chuva. Não havia escolha quanto ao problema. Tinha de tirá-lo do quintal.

Olhando ao redor, avistou um pedaço de couro jogado no chão do estábulo. Devia ter sido um chicote ou uma rédea, portanto, seria perfeito para submeter o ladrão.

Agarrou a tira de couro e correu em direção ao homem. Amarrou bem forte os pulsos do malfeitor. Então, puxou-o pelas pernas até o estábulo. Lar­gou-o em um monte de feno ressecado e trancou a porta com uma tora.

Exaurida, Samantha retornou à casa. Após blo­quear a entrada, recostou no batente e respirou fundo.

Ainda havia muito a fazer. Tinha de tirar as roupas molhadas de Robert e tratar do ferimento no braço. Quanto à pancada na cabeça a alternativa seria rezar para que não fosse fatal. Livrá-lo dos trajes frios e úmidos serviria apenas para confortá-lo.

Samantha alimentou o fogo. Robert continuava inerte. Parecia, na verdade, esfalfado. Além de encharcadas, as roupas estavam cobertas de lodo e a ferida no braço ainda sangrava.

Iniciou pelos pés. Tirou as botas molhadas e, após cobri-lo para salvaguardar a modéstia, Sa­mantha soltou o laço que prendia a calça. Com extrema dificuldade e esforço, conseguiu despi-lo da cintura para baixo. Quando terminou, viu-se suja de lama e ofegante.

Retirar a camisa foi mais problemático. Robert gemeu de dor quando ela moveu o braço machucado. A reação deixou-a penalizada, mas precisava livrá-lo do traje.

A tarefa requeria esforços intensos e absoluta delicadeza. Samantha puxou, esticou, até que por fim tirou a camisa. Quando Robert ficou comple­tamente nu sob os cobertores, ela lavou as mãos e começou a vasculhar seus pertences.

Certa de que o corte deveria ser costurado, achou agulha e linha. Então, rasgou sua roupa íntima em tiras, tal qual fizera dias atrás. Des­cobriu o braço machucado e limpou o ferimento com água.

De quando em quando, Robert resmungava e gemia enquanto Samantha costurava o corte. Fe­lizmente, ele não acordou durante o processo.

Ao finalizar o tratamento improvisado, deu-se conta de que tremia de frio. Precisava tirar o ves­tido encharcado e enlameado.

Somente então seria capaz de dormir.

A luz das chamas ofendia o único olho de Robert. Blasfemou contra a dor aguda que sentia na ca­beça. Estava quente e seco, embora não fizesse idéia de como havia chegado àquele conforto. Só se lembrava de estar atacando os ladrões que ha­viam tentado levar os cavalos.

Onde estariam os salafrários agora? O que acon­tecera a Samantha e Henry?

Movendo o rosto lentamente, Robert olhou os arredores e percebeu que voltara à sala de Dryden Hall. A lareira continuava acesa e Henry dormia a seu lado. Não havia nada de anormal, exceto a terrível dor de cabeça e o braço que ardia demais. Mas eram detalhes irrelevantes no momento. Ti­nha de saber onde encontrava-se Samantha.

Mexeu-se mais um pouco a fim de esquadri­nhar o espaço. Onde ela se metera? O que teria acontecido?

Então avistou-a.

Embora oculta sob as sombras da sala, Samant­ha achava-se próxima ao calor do fogo e nua. Ela se abaixou, umedeceu um pano em um balde de água e ergueu-se para acariciar, os seios com o tecido molhado. Gotas cintilantes escorriam ao longo do ventre e, quando ela estremeceu, Robert sentiu os músculos contraírem.

Samantha era tal qual uma aparição. Coberta pela penumbra, ela surgia e desaparecia de seu campo de visão. A garganta de Robert ficou seca, outra parte de sua anatomia manifestou-se. Não mais podia negar que á desejava.

Seria dele aquela noite, decidiu enquanto ten­tava se levantar. A despeito do compromisso as­sumido em Clairmont, Robert faria amor com ela.

Uma dor insuportável originou-se em sua ca­beça espalhando-se pelo braço. Tontura e náusea emergiram ao mesmo tempo. Fechou o olho e vol­tou a deitar-se devagar.

— Robert! — Samantha, enrolada em um co­bertor, ajoelhou-se ao lado dele. — Graças a Deus, você acordou! Fiquei tão preocupada.

— O que aconteceu? — Arriscou virar a cabeça para fitá-la, mas a dor era insuportável.

Aflita, Samantha relatou a sucessão de fatos em detalhes, inclusive o que fizera com o ladrão desmaiado. Robert franziu o cenho. Na hora ela achou que cometera algum erro. Mas, de súbito, algo inacreditável ocorreu.

Um sorriso sutil despontou nos lábios de Robert.

Tratava-se de uma expressão inédita. Ele sempre mostrava desagrado, seriedade e careta, mas nunca sorriso. O coração de Samantha exultou porque sa­bia ser difícil para ele manifestar bons sentimentos.

— E conseguiu me trazer até aqui? Sozinha?

— Não exatamente — ela respondeu. — Eu o enrolei nesta pele e o arrastei.

O semblante tornou-se sério.

— Samantha, você devia ter ficado aqui dentro — Robert retrucou. — E se eles... se Henry...

Toda a alegria dissipou-se. Robert não conside­rava o perigo que ela correu ao ajudá-lo. Pensava apenas no bem-estar de Henry.

Indignada, Samantha levantou, recolheu as roupas secas e escondeu-se na sombra para se vestir. O sorriso do conde Alldale não era o sufi­ciente para obrigá-la a escutá-lo. Estava exaurida, dominada pela tensão e nervosa demais.

Nada podia suavizar aquele homem! Salvara-lhe a vida e, como agradecimento, o idiota recla­mava e a repreendia. Sim, Samantha correra um risco imenso ao socorrê-lo. Sabia disso tão bem quanto ele.

Mas Robert se atinha à segurança de Henry.

Vestiu a roupa de linho, a mesma que rasgara para cuidar do ferimento, e puxou a pele até a extremidade da lareira, onde se deitou. Iria dor­mir, ordenou a si própria. Apagaria da mente o sorriso que ele expressara.

Reprimindo a vontade de chorar, Samantha en­colheu-se sobre a pesada coberta e fechou os olhos.

A cabeça de Robert ainda o incomodava na ma­nhã seguinte, enquanto levava as sacolas de couro ao estábulo. O braço esquerdo estava inutilizado. Mas iriam a Windermere naquele dia. Não podiam retardar a jornada.

Samantha mal lhe dirigira a palavra desde a noite anterior, quando a fizera acreditar que não estava grato pela inestimável ajuda. Na verdade, se não fosse por ela, Robert estaria morto.

Em sã consciência, no entanto, não a deixaria nutrir sentimentos românticos. Agira como um tolo ao imaginar que podia possuir Samantha e manter o casamento. A relação que planejara com Marguerite lhe convinha. Não haveria laços emocionais, nem a intensa paixão que Saman­tha despertava.

A vida em Clairmont seria controlada e pru­dente. O papel de marido era previsível. O tipo de situação de que ele necessitava.

Ao adentrar o estábulo, Robert ouviu uma voz rouca chamá-lo.

— Desamarre-me, homem!

Depois que sua visão ajustou-a à fraca lumino­sidade, ele avistou a silhueta do gatuno no chão.

— Aquela rameira me amarrou...

— A dama pode fazer o que desejar com você. Mão me importo. — Robert não pretendia perder tempo com o infame. Selaria os cavalos para que pudessem partir o mais rápido possível.

O único problema era como erguer as selas e jogá-las no lombo dos cavalos. Não teria condições de fazê-lo com um braço apenas.

Precisava pedir ajuda a Samantha.

Largou as sacolas de couro no chão e verificou o prisioneiro. Estava muito bem amarrado.

— Levante-se — Robert ordenou.

Assim que o homem obedeceu, ele empurrou-o para dentro de uma baia e trancou-o.

— Não pode me deixar aqui! — o ladrão queixou-se. Dryden ignorou o protesto. Selar os cavalos e manter Samantha e Henry em segurança eram sua prioridade. Tinha de trancafiar o safardana até que estivessem prontos para partir. Do con­trário, o homem poderia se soltar e agarrar Henry. Ou, Deus misericordioso, Samantha!

Fora do estábulo, Robert respirou o aroma fresco da manhã. O ar tornava-se mais puro após a chu­va, pensou. O céu estava limpo e livre de qualquer ameaça de tempestade.

Viu Samantha caminhando em sua direção jun­to com Henry. Parecia à vontade segurando a mão do menino que não parava de tagarelar. O dis­curso atrapalhado do pequeno rei era ocasional­mente pontuado pela voz melodiosa.

Pensamentos perigosos começaram a rondá-lo enquanto a observava. Fantasias que jamais poderia concretizar.

— Samantha — chamou-a.

Ela encarou-o assustada, como se não o hou­vesse notado. Tomou Henry nos braços. O menino agarrou-se a ela tal qual uma armadura.

— Tem de me ajudar com as selas — Robert informou.

Calada, ela fitou a porta do estábulo. Os lindos olhos revelavam fadiga, a expressão era de poucos amigos. Samantha não reclamou, tampouco mencionou a cen­sura a qual Robert a submetera na noite anterior.

De alguma maneira, conseguiram aprontar os cavalos. Robert transpirava muito quando termi­naram e a dor de cabeça havia aumentado. O bra­ço esquerdo latejava. Necessitaria de uma força sobre-humana para suportar o trajeto a Windermere, mas estava determinado a prosseguir.

Uma vez na fortaleza, Kit Colston cuidaria dele, utilizando a mesma devoção que dispensara após a tortura que Robert sofrerá nas catacumbas de Windermere.

Fora o vasto conhecimento em ervas medicinais de Kit que lhe salvara a vida.

Tal qual a astúcia de Samantha na noite anterior.

Antes de partir, Dryden voltou ao estábulo e jogou um punhal ao prisioneiro. Depois de ter sido bru­talmente aprisionado, sabia quão tenebroso era.

Tinha certeza de que, quando o homem conseguisse se soltar, eles estariam a quilômetros de distância.

Já passava do meio-dia quando o Castelo Win­dermere despontou no horizonte. Samantha divisou as muralhas que rodeavam a fortaleza de pedra e as três torres. O panorama era impressionante.

— Vou ver a princesa agora, Robert? — Henry perguntou, sonolento. O menino conseguiu cochi­lar um pouco, mas a expectativa de conhecer a princesa prometida o impedira de adormecer.

Samantha reparou no esforço que Robert fazia para manter-se sobre a sela. Aquela condição de fraqueza aplacara sua raiva, porém nunca mais se deixaria enganar pelas emoções. Várias vezes ele havia mostrado que não a queria.

O fato não iria interferir em suas intenções. Apesar da demora, ela compreendeu que um re­lacionamento entre ambos não teria futuro. Owen lhe dissera que um nobre jamais a escolheria como esposa. Além disso, o sobrenome Tudor era uma maldição.

Sem contar que Robert estava comprometido com Marguerite Bradley. Samantha levaria adiante o esquema inicial que elaborara antes de fugir de Clairmont com Henry.

Após acomodar o futuro rei em Windermere, ela desafiaria Owen e se ofereceria para trabalhar em alguma residência nobre.

Mas, antes de tudo, pretendia vingar Idwal e Dafydd.

A estrada que dava acesso ao castelo cruzava o vilarejo. Havia uma grande variedade de casas comerciais. Contudo, o estado deplorável de Robert a preocupava tanto que não pôde apreciar agitação. Ele estava pálido e cansado. Samantk ansiava por atravessar os portões da fortaleza e entregá-lo aos cuidados dos amigos.

— Lorde Alldale! — um homem gritou. A voz transparecia surpresa. Ele e outro cidadão estavam parados à porta de uma casa.

— Juvet — ele murmurou, quase desfalecendo.

— Sua Graça está aqui — Juvet anunciou. ― Ele ficará feliz em vê-lo.

— Sem dúvida — Robert sussurrou tão baixo que apenas Samantha o escutou.

— Onde está a princesa, Robert? — Henry protestou.

O menino parecia exausto e mal-humorado. Era mais um que precisava chegar rápido ao Castelo Windermere, Samantha concluiu.

— Nós a veremos em breve. O pai dela está aqui — Robert respondeu ao apear. — Juvet — chamou o mais baixo dos dois homens. — Por favor, ajude a dama a desmontar.

— Claro, milorde. — Juvet auxiliou Samantha. Então fitou Robert, que não conseguia mover o braço esquerdo. — O senhor está bem?

Antes que houvesse resposta, um homem alto e moreno surgiu à luz do dia. Dadas as roupas finas e a postura imponente de aristocrata, Sa­mantha supôs se tratar do duque de Carlisle, o amigo de Robert, Wolf Colston. Os traços bem de­finidos estavam marcados por uma terrível cicatriz na face direita. Somente um milagre o teria salvo após sofrer um ferimento tão grave.

Os olhos acinzentados do duque fixaram-se em Robert. A expressão tornou-se consternada. No momento seguinte, Wolf Colston começou a ques­tionar o amigo.

Respeitando a conversa privativa de Robert, Sa­mantha permaneceu junto da égua, segurando Henry nos braços.

— Robert! — o menino gritou, impaciente. — Onde está a princesa?

Os dois homens aproximaram-se dela e de Henry.

— Lady Samantha Tudor — Robert começou a apresentá-la a Wolf. — Este é Wolf Colston, duque de Carlisle, senhor de Winder...

— É um prazer, milady. — O duque curvou-se diante de Samantha.

Ela o reverenciou, como ordenava a etiqueta, mas Colston a deteve.

— Perdoe-me por ser breve, mas temos de levar Robert a Windermere sem demora. Ele não me parece nada bem.

Assentindo, Samantha entregou Henry a Colston.

— Tem razão, milorde. Ele foi ferido ontem à noite. Ainda não estava preparada para abrir mão de Henry. Mal havia se ajustado à idéia de perder Robert e agora lhe tiravam o menino também.

— Consegue montar, Samantha? — Robert perguntou.

Resoluta, manteve a expressão neutra quando Robert a fitou. Não queria mostrar a ele o grau de tristeza que sentia. Não somente o perdia, como também seu amigo Parry encontrava-se nas mãos capazes do duque de Carlisle. Mais uma vez, ela se achava abandonada.

Piscando para afastar algumas lágrimas, ela montou na égua e começou a cavalgar em direção ao Castelo Windermere.

 

Robert, com grande dificuldade, con­seguiu manter-se sobre a sela de seu cavalo. Felizmente, alcançaram o destino desejado e estavam a poucos passos da escadaria de pedra maciça do Castelo Windermere. Lá ele encontraria um lugar sossegado para tratar da dor de cabeça e do ferimento do braço.

Sugeriu a Wolf que devolvesse Henry a Samantha tão logo ela desceu da égua. Apesar da fraqueza, pôde perceber o alívio da galesa ao tomar o menino nos braços. Robert não havia notado o forte laço afe­tivo que a ligava ao pequeno rei. Seria um sofrimento para Samantha quando o garoto fosse entregue, de­finitivamente, aos cuidados de Wolf Colston.

Era espantoso conseguir pensar em qualquer coisa, uma vez que sua cabeça latejava a valer. Com um esforço sobre-humano, subiu os degraus, devagar, para adentrar no grande saguão.

Wolf acompanhou-o ao local onde sua esposa, lady Kit, encontrava-se. Duas damas de compa­nhia fitavam, maravilhadas, o bebê envolvido em mantas que a duquesa carregava.

O filho de Kit havia nascido. De súbito, um choramingo agudo reverberou na cabeça sensível de Robert.

A duquesa saudou o marido com um sorriso ra­diante e, pela primeira vez, Dryden se deu conta do sentimento profundo que unia Wolf e Kit. Con­seguiu perceber o amor e à paixão que ambos partilhavam e que, ele próprio, jamais notara.

E tudo através de um olhar apenas.

Não entendia por que tamanha perspicácia sur­gia somente naquele momento. Afinal, considerava Wolf como irmão, e Kit da mesma maneira. Fora ela quem o encontrara entre a vida e a morte no calabouço do castelo, e lhe garantira a sobrevi­vência após o falecimento de Philip Colston.

Parecia estranho Robert nunca ter reparado na forte devoção que dispensavam um ao outro.

Devia ser a pancada que levara na cabeça. Se continuasse a ater-se a noções românticas, logo veria anjos sobrevoando os dois amantes e os abençoando.

Kit virou-se para ver quem chegava com o ma­rido e notou, surpresa, que se tratava de Robert Dryden.

— Robert! — exclamou.

— Sim, milady. — Ele tentou curvar-se para cumprimentá-la e quase caiu. — Vejo que andou ocupada em minha ausência.

— Você não está bem, Robert — Kit reparou, ignorando o inédito senso de humor do amigo. — O que houve?

— É uma longa história — ele replicou, sem forças. — Comprida demais. Temo que eu...

— Wolf, leve-o para o quarto — Kit determinou.

— Maggie, chame um criado para ajudar meu marido e peça a uma das servas que apronte o leito do conde Alldale.

— Não preciso de ajuda — Robert resmungou.— Posso me cuidar sozinho.

— Não seja teimoso, Dryden — Wolf ralhou en­quanto o auxiliava a subir os degraus da torre.

— Vai aceitar qualquer ajuda que lhe for ofere­cida. Kit, não se levante — ele acrescentou à es­posa, que acabara de dar à luz seu filho. — Alguém irá chamar Will Rose tão logo Robert se acomode.

De repente, Dryden viu Samantha sozinha sob as sombras do salão, com Henry nos braços. Per­cebeu com pesar que ela se manteve a distância, como se não fosse bem-vinda.

— Wolf...

— Kit vai cuidar dela — Wolf disse, deduzindo a preocupação do amigo. — Ela ficará bem.

— Venha juntar-se a nós e se aquecer — a mu­lher com gentileza convidou Samantha. A voz soou amigável.

A imponência de Windermere acentuava a sen­sação de solidão e opressão que Samantha sentira em freqüentes situações de sua existência. Ainda tinha o pequeno Parry apertado contra si, e ele a confortava, roçando os cabelos macios em seu queixo e mantendo o dedo na boca.

— Obrigada — Samantha agradeceu, observando Robert desaparecer acompanhado de Wolf Colston.

— Maggie irá chamar o curandeiro do povoado. O velho William cuidará dele — a dama de com­panhia de lady Kit explicou a Samantha enquan­to a conduzia para junto da duquesa. — Ele é muito bom no que faz. Portanto, não precisa se preocupar.

— Não estou preocupada — Samantha murmu­rou, aflita por deixar transparecer sua apreensão. Era impossível ocultar seus temores. — Não é meu lugar...

— Aqui estamos — a mulher disse e fez a de­vida apresentação. — Vossa Graça, a duquesa de Carlisle...

— Obrigada, Emma — a duquesa a interrom­peu. Então, ajeitou o bebê nos braços.

Ao redor do rosto levemente rosado os fartos ca­chos dourados caíam, emoldurando a beleza femi­nina. Os olhos verdes, claros como cristal, receberam Samantha. Ela sorriu de forma encantadora.

— Sou Kit Colston. Por favor, não faça cerimô­nia. Sente-se comigo.

— Vossa Graça, é uma honra conhecê-la. — Sa­mantha acomodou-se diante da duquesa, feliz pela atenciosa recepção. Lady Kit possuía o raro ta­lento de deixar as pessoas à vontade. — Sou Sa­mantha Tudor — apresentou-se em voz baixa, res­peitando o sono de Henry.

— De Gales? Samantha assentiu.

— Conheci Owen Tudor em Londres — lady Kit comentou. — É seu parente?

— É meu irmão. Foi criado na Inglaterra. Eu vivia em Gales com meus tios.

— Entendo. — O bebê resmungou quando a duquesa mudou de posição na cadeira. — O que aconteceu a lorde Robert? Ele estava ótimo desde a última vez em que o vi.

— Vossa Graça...

— Por favor, chame-me de Kit — pediu a ado­rável mulher. — Não gostamos de formalidades em Windermere.

Sorrindo, Samantha ajeitou Henry no colo. Não sabia ao certo o que dizer.

— Lorde Robert e eu... fomos mandados até aqui.

— Por quem?

— Por Sua Majestade, a rainha Catherine.

— Duquesa? — Emma interveio. Era a amiga mais próxima de Kit Colston desde que esta che­gara a Windermere para se casar, dois anos atrás. Sabia muito bem quando sua senhora precisava de privacidade. — Posso pedir a Maggie que a atenda? Tenho de ir a minha casa.

— É evidente, Emma! Desculpe-me, perdi a no­ção do tempo.

— Não me espanta, milady. — Emma riu. — É uma grande bênção poder amamentar o pri­meiro filho.

Kit despediu-se da acompanhante. Quando Emma retirou-se, voltou a conversar com Samantha.

— Tem de me contar tudo, Samantha. Desde os eventos em Clairmont até a enfermidade de Robert. Não me poupe de detalhes.

A mistura de ervas causou uma ardência im­piedosa no braço de Robert, mas a compressa fria sobre o ferimento da cabeça fora um alívio. Em­bora trêmulo, conseguiu relatar os acontecimentos que antecederam sua chegada a Windermere.

Wolf o escutava calado, interrompeu-o uma ou duas vezes para esclarecer pontos, até que Robert começou a perder a consciência.

— O ferimento é grave — William Rose sus­surrou a Wolf, sem saber que Robert o ouvia. — E já está supurando.

— Vai sarar?

— Ele passou por momentos piores, ouso dizer — William replicou. — Mas quem sabe?

Depois de acordar e se alimentar, Henry teve o prazer de conhecer a pequena Eleanor Colston, a linda princesa da qual Robert falara. O futuro rei parecia feliz e à vontade. Lady Kit o tratava com carinhos maternais. Samantha sentiu-se tranqüila pois o menino seria muito bem cuidado e Robert também estava em boas mãos. O curandeiro do povoado conhecia seu ofício e, junto com lady Kit, decidiu a poção necessária para eliminar a infecção do braço.

A febre alta deixara o conde inconsciente, logo, não atinou para a presença de Samantha quando ela foi visitá-lo.

Permanecia longas horas ao lado dele, e apro­veitava cada oportunidade para tocá-lo. Dava-lhe água, mudava a compressa da cabeça, reaplicava o remédio no ferimento e rezava para a febre abrandar.

Durante a noite, enquanto Robert ardia em fe­bre, Samantha confessou-lhe seus sonhos e espe­ranças. Contou-lhe os desejos que jamais se rea­lizariam. Chorou ao revelar que pretendia voltar a Clairmont para acabar com Wrexton. Por fim, disse a ele que o amava.

Quando sentiu que suas forças a abandonavam, por causa do cansaço e da preocupação, recolheu-se ao dormitório que lhe fora oferecido, satisfeita por Robert não ter entendido as palavras que mur­murara em galés.

— Diga-me, Samantha. Como se envolveu nesta sórdida intriga da corte? — lady Kit perguntou.

Ela e Samantha estavam no solário, enquanto Henry brincava com a "princesa Eleanor", e o bebê recém-nascido, Bartholomew, dormia no berço ao lado da mãe.

Para sua surpresa, Samantha fora aceita como amiga íntima da família e honrada por ter salvo a vida de Robert Dryden.

— Creio que eu estava disponível — ela respondeu.

— Ora, Samantha. Sei que Catherine não con­fiaria seu filho a qualquer pessoa — Kit argu­mentou, sorridente. — Ela deve gostar muito de você.

Aquela declaração espantou-a. Sempre se con­siderara um mero estorvo na vida dos outros. Su­pôs que a rainha a convocara por ser realmente a única pessoa disponível. Não possuía responsa­bilidade, tampouco sua ausência seria notada em Clairmont quando o bispo Beaufort descobrisse a fuga de Henry.

— Acho que sim — ela ponderou. Seu valor à rainha era um assunto a considerar.

— Você tem um jeito especial para lidar com crianças — Kit acrescentou. — Henry a adora. E sente-se seguro em sua companhia.

— Sim. Mas ele sente falta da mãe.

— Pode ser. Contudo, a rainha Catherine es­colheu uma substituta à altura. — Kit sorriu. — Até Eleanor sente-se à vontade com você, e ela não gosta de estranhos.

— E uma menina encantadora — Samantha comentou, observando as duas crianças. Brin­cavam lado a lado, com Henry montando uma torre de blocos de madeira e Eleanor embalando seu "bebê".

— E seu espírito, Samantha. Sua coragem... Robert Dryden teria perecido, se você não atacasse e imobilizasse um dos ladrões. Ele lhe deve a vida.

— Não — Samantha retrucou, veemente. — Lorde Robert não me deve nada. Ele tem sido muito... justo comigo — completou, rezando para não deixar transparecer as emoções. Kit era es­perta e a observava muito atentamente.

— Como Robert está se dando com lady Marguerite? — Kit indagou, após uma longa pausa. — Os termos do casamento já foram estabelecidos?

— Não creio. — Samantha tentou manter a pos­tura neutra. Reprimiu a pontada no peito quando voltou a falar. — Ainda não. Como não estou a par da negociação matrimonial do conde...

— Nesse caso, o noivado não foi oficializado?

— Não faço idéia.

— Fale-me de lady Marguerite. É tão linda quanto dizem?

— Oh, é, sim — Samantha respondeu de pronto, embora revelasse certa inveja no tom de voz. — Na verdade, ela é perfeita em todos os sentidos.

— Perfeita? — A risada de Kit aqueceu a at­mosfera do solário. — Quem pode ser perfeito, Samantha?

Era óbvio que Kit Colston não conhecia Mar­guerite Bradley.

— Todos temos nossas imperfeições — ela ex­plicou. — Mesmo quando tudo parece em seu devido lugar, como ter certeza de que não há defeitos?

Tais observações jamais ocorreram a Samantha. Suas trapalhadas sempre foram repreendidas pe­las tias e depois por Owen, que a depreciava em comparação às damas da corte. Nunca fora com­petente em nada.

— O que podemos fazer é nos esforçar com o que há de melhor em nós — Kit continuou. — Podemos falhar em certas áreas, e acertar em outras.

Samantha perguntou-se em que áreas havia falhado. A lista era incomensurável. Das roupas aos cabelos, a falta de habilidade era explícita.

— Sinto-me grata por meu marido não esperar perfeição de minha parte. Caso contrário, sem dú­vida, ele ficaria desapontado.

— Mas...

— A perfeição é uma tarefa difícil — Kit prosse­guiu. — O que eu faria com um marido que nunca errou? E pior, para que ele precisaria de mim?

— Jamais pensei... — Samantha começou, mas se deteve.

Nada sabia acerca do que homens e mulheres esperavam do casamento. Apenas deseja encon­trar um homem gentil e carinhoso. Um compa­nheiro para partilhar felicidade e com o qual se sentiria completa. Alguém que a desejasse de todo o coração.

Porém o único homem que lhe ofereceria tudo isso estava prometido à outra.

— Nunca considerei esta questão, lady Kit. Mas não acredito que seja difícil para lorde Robert vi­ver com lady Marguerite em Clairmont.

— Ela o fará feliz?

— Feliz? Não sei... — As turbulentas emoções se revelaram através da frágil resposta. Se Mar­guerite Bradley faria ou não Robert feliz era um problema que não lhe dizia respeito. Ele estava comprometido com a castelã de Clairmont e hon­raria sua promessa.

O bebê começou a resmungar e Kit tomou-o nos braços.

— Acha que lady Marguerite pode... aceitar as imperfeições de Robert?

Que imperfeições?, Samantha queria gritar. Al­gumas cicatrizes? O homem era justo e decente. Possuía mais bondade e honra que a maioria. Além da gentileza, ele a protegera em inúmeras circunstâncias desagradáveis.

— Estou certa de que lady Marguerite aceitará lorde Robert — afirmou, por fim.

Kit parecia refletir acerca das palavras de Sa­mantha enquanto acalentava o filho. Ao manifes­tar-se novamente, mudou de assunto:

— O que vai fazer agora, Samantha, que Henry está em segurança?

— Meu futuro é incerto, lady Kit. Owen conse­guiu uma vaga para mim na Abadia de St. Ann como noviça — disse, sem notar o espanto de Kit. — Mas... decidi não ir.

— Pois não a recrimino, Samantha. — Kit sentou-se diante da lareira com o bebê. — Você não parece ter os requisitos necessários para se tornar freira.

— Concordo. — Samantha sorriu. — Mas tenho de encontrar um trabalho que me sustente. — Como e quando, não sabia. Ainda se sentia im­pelida a voltar a Clairmont e também não tinha idéia de que maneira o faria. Havia muitos deta­lhes a considerar, e preparar-se para enfrentar as conseqüências.

— Então não faz questão de se casar? — Kit indagou.

— Não é isso. — Samantha observou a duquesa amamentar o bebê. Já havia abandonado a espe­rança de um dia viver a mesma emoção. — Talvez eu pense em casamento depois de encontrar um trabalho. — Porém, após matar Wrexton, seu fu­turo seria uma incógnita. Teria de retornar a Ga­les e refugiar-se em um local bem afastado de Clairmont.

Longe de Robert Dryden e sua esposa.

— Deve existir um homem no reino que seja um bom marido para você — Kit comentou, in­sistindo no assunto. — Wolf e eu conhecemos vários...

— Não! — Samantha exclamou. Kit estranhou a reação.

— Pelo jeito, você gosta de alguém? Ele já é casado... ou noivo?

No fundo, Samantha gostaria de saber mentir.

— Não — ela repetiu, agora com a voz embar­gada. — Acho que não sirvo para ser esposa de ninguém.

— Por quê, Samantha? — Kit exclamou, incrédula.

A conversa não podia tomar aquele rumo. Sa­mantha queria fugir dali. Não lhe agradava re­latar as reprimendas que Owen insistia em fazer, tampouco discutir as falhas de comportamento que reconhecia em si mesma.

— Você tem qualidades valiosas, Samantha. E não me refiro apenas a lealdade e valentia. Con­tudo, acho que está se subestimando.

— Eu nunca... Minha família sempre...

— A família não é qualificada para medir nosso valor— Kit afirmou, convicta. — Temos de fazê-lo por nós mesmas e de acordo com nossos pró­prios padrões.


 

Três dias após a chegada em Windermere, Robert conseguiu levantar-se. Vestiu-se e foi à procura da mulher cujo rosto o perseguia nas horas insones e também durante o sono.

— E bom vê-lo bem-disposto, lorde Robert — um dos criados disse quando o avistou no grande saguão.

— Obrigado. Sabe onde posso encontrar Sua Graça? — ele perguntou.

— Não, senhor — o servo replicou.

— E quanto a lady Samantha? O homem meneou a cabeça.

— Ainda não a vi hoje, milorde.

Robert empreendeu uma busca pelo pavimento principal do castelo. Ninguém tinha visto Saman­tha. Portanto, ele supôs que a encontraria com Kit. Deveriam estar entretendo Henry.

Enquanto subia a escada, percebeu que os efei­tos da febre e da infecção o haviam enfraquecido.

Ao atingir o solário, viu Kit e Wolf juntos com o bebê e Henry.

— Robert! — Kit exclamou quando ao avistá-lo à porta.

— Robert! — Henry correu até ele. — Colo! Apesar da fatiga, ele pegou a criança e entrou no solário.

— Parece-me muito melhor — Kit comentou, surpresa ante a maneira carinhosa de Robert em relação ao menino.

Nos últimos meses que passara entre o casal de amigos, antes de ir a Clairmont, o conde Alldale sempre se mostrara uma pessoa contida e taci­turna. De modo que a demonstração de afeto para com Henry fora uma surpresa agradável de se presenciar.

— Estou procurando Samantha.

— Ela não está aqui — Wolf disse. — Mas é hora de você conhecer meu filho.

Robert jamais vira Wolf tão orgulhoso e nobre. Exceto, claro, quando a filha, Eleanor Bridget, nascera.

O bebê estava acordado. Os cabelos negros eram o oposto da cabeleira dourada da irmã. Os olhos seriam semelhantes, Robert concluiu, pois ambos herdaram o verde brilhante e cristalino da mãe.

— Bartholomew é um nome grande demais para alguém tão pequeno — Robert comentou, fitando o pai do bebê.

— O que é isso? — Wolf riu. — Senso de humor?

— Pare de brincar, Wolf. — Kit ficou mais uma vez surpresa com a reação de Robert. En­carou o amigo, sorridente. — Nós o chamamos de Bart. Eleanor ainda não consegue pronunciar o nome inteiro.

— Nem o resto de nós — Wolf zombou. — Kit insistiu em batizá-lo com o nome de meu pai. Eu preferia Bill ou Alf, porém minha adorada esposa não aceitou minha sugestão.

Dryden olhou de Wolf para Kit. Não estava acos­tumado a divertir-se. Supunha que o casal sempre agira de forma espontânea, mas por alguma razão jamais notara o fato.

Deixando a constatação de lado, ele colocou Henry junto com a "princesa" e sentou-se ao lado de Kit e Wolf.

— Não vejo Samantha desde que chegamos — afirmou. — Onde ela está?

— Quer dizer que lady Samantha o está evitando? ― O que mais poderia ser? — Robert suspirou.

— Não mostrou o ar de sua graça desde... — Desde a noite em que lhe segurou a mão e sussurrou palavras em galés.

Estivera fraco demais para pedir que falasse em inglês e, além disso, a voz era melodiosa indepen­dente do idioma. Robert sentira-se perdido e solitário depois que ela deixara de visitá-lo. Tais sentimentos não eram estranhos a ele, no entanto, a habitual sensação de isolamento vinha se modificando.

— Desde a noite em que chegamos — completou, por fim.

— Robert, você sabia que o irmão de Saman­tha pretende trancá-la em um convento? — Kit perguntou.

— É uma idéia absurda — ele rebateu. — Há outras alternativas.

— Que alternativas? Ela me disse que não vai se casar.

— Como assim? — Robert alterou o tom de voz.

— Samantha nasceu para ser rodeada de filhos. Já viu o modo como ela...

Kit trocou olhares com Wolf.

— O que foi? — Robert levantou-se e, nervoso, começou a andar pelo solário.

— Samantha não acredita que possa ser uma esposa adequada — Kit explicou. — Sinto que ela foi tão reprimida e severamente censurada que não consegue crer nas boas qualidades que possui.

— Isso é ridículo — Dryden esbravejou. — Ela é...

— E o quê? — Wolf perguntou, desconfiado.

— Ela... — Robert passou a mão nos cabelos.

— Ela não vai se tornar freira!

Pasmos, Wolf e Kit Colston observaram o amigo retirar-se apressado do solário.

Samantha sentou-se no degrau de uma pequena capela no jardim de Windermere. A construção, um espaço oblíquo, era atípica, ela pensou, apre­ciando os vitrais coloridos entre as quatro paredes.

Do local onde se encontrava podia enxergar o majestoso castelo rodeado de árvores. Mas, imersa em pensamentos, parecia alheia ao tudo. Acha­va-se solitária naquele lugar tranqüilo, nem mes­mo os jardineiros ali se encontravam para per­turbar sua meditação.

Fechando o casaco para se proteger do vento, que se tornara gélido ao entardecer, Samantha adentrou a capela. Acendeu algumas velas e sen­tou-se em um dos bancos.

Sentia-se acolhida em Windermere. Kit e o ma­rido a receberam com carinho, sem restrições, um comportamento estranho para Samantha. Preci­sou mostrar-se civilizada, apesar dos cabelos mal-cuidados e das roupas simples. Ninguém a criti­cara pela falta de feminilidade ou beleza.

Desde a chegada a Windermere sua autocon­fiança aumentou. Não era mais a garota desajei­tada que fora em Clairmont.

Mas poderia permanecer naquele feudo? Con­seguiria tocar sua vida sabendo que Wrexton con­tinuava impune?

Seria capaz de voltar a Clairmont e cometer um assassinato?

Recordou aquela manhã em que quase cravara uma faca no coração do maléfico conde. Contudo, hesitara. Conteve-se o tempo suficiente para que Robert Dryden pudesse impedi-la.

Mas ele não estaria presente na próxima vez. Agora que Dryden estava recuperado, Samantha podia partir de Windermere. Entraria em seu quarto mais uma vez enquanto ele estivesse dor­mindo e diria o último adeus.

Então, ao alvorecer, estaria partindo, sem que ninguém soubesse. Pegaria apenas os suprimen­tos para a jornada e deixaria a égua que a trouxera a Windermere.

Enxugou algumas tolas lágrimas. Ignorando a dor de nunca mais rever Robert, ela se concentrou na viagem. Não seria fácil. Não sabia onde abri­gar-se na primeira noite pois Dryden Hall estava localizada muito perto de Windermere. Tinha de percorrer um trajeto mais longo...

— Samantha.

Não precisou olhar para cima porque reconhecia aquela voz. O timbre profundo pertencia ao único homem do qual ela pretendia fugir. Passaram-se dias desde a última vez em que o vira. Permanecera horas intermináveis tentando não pensar nele e apa­gar do coração o sofrimento da iminente separação.

O compromisso com Marguerite o obrigaria a retornar a Clairmont em breve. Tal verdade Sa­mantha não poderia suportar. Pelo próprio bem tinha de se manter longe dele. Não correria o risco de alimentar o amor que já a dominava.

Samantha levantou-se quando ele entrou na capela.

— Robert... — A voz soou vulnerável, embora fizesse questão de que fosse o contrário.

0 corpo másculo parecia tenso e os movimentos, controlados. Ele não estava com frio, usava so­mente uma túnica de couro e calça preta. Quando a encarou, as chamas das velas revelaram as fei­ções duras.

— Não a vi... nesses últimos dias — Robert comentou, por fim.

Emocionada, Samantha só pôde assentir em silêncio.

Robert avançou alguns passos. A intensidade do olhar a fez recuar.

— Salvou minha vida, Samantha, e a de seu querido Parry também. No entanto, você não se interessou em saber como minha recuperação progredia.

— Não é isso, milorde. Eu...

— O que é então? — ele perguntou, aproximan­do-se devagar.

Estava tão próximo, na verdade, que Samantha pôde sentir a respiração quente no rosto, o aroma de couro da túnica.

Ignorou as batidas descompassadas do coração. Ele achava-se tão perto que Samantha não pode­ria respirar sem que os seios roçassem o peito musculoso. Se Robert a tocasse...

— Samantha? — ele repetiu com a voz rouca. Ela não se movia. Quando as mãos calejadas acariciaram seu rosto, sentiu-se derreter como neve sob o sol causticante. No momento em que os lábios a beijaram, reconheceu a sensação.

Contra tudo o que havia prometido a si mesma nos últimos dias, Samantha colou-se ao corpo só­lido. Afagou os cabelos negros e recebeu o beijo, intensificando o contato sensual.

Robert gemeu e deslizou as mãos pela cintura fina, causando-lhe arrepios de prazer. Deus, como precisava dele... do toque, da presença protetora.

Ele beijou os lábios de Samantha, a orelha, e a curva do pescoço até atingir a barreira do vestido.

Samantha suspirou. Sem hesitar, Robert soltou o casaco e deixou-o cair. Em seguida, concentrou-se nos botões e laços, um trabalho que finalizou rapidamente.

Embora não sentisse o ar gelado, Samantha tre­mia enquanto ele afagava seus cabelos, e explo­rava o corpo nu com os lábios, dentes e língua.

Por causa do ferimento, Robert encontrou difi­culdade em retirar a túnica, mas Samantha o aju­dou. Quando abriu a camisa, os beijos tornaram-se ardentes e impetuosos. Os corpos se encontraram, pele contra pele, coração com coração.

— Você é minha, Samantha — sussurrou e dei­tou-a sobre o solo forrado pelas roupas. — Nunca se esqueça disso.

O sentimento que Robert tentava, em vão, es­conder se revelou através dos toques, das carícias íntimas que a excitavam, a ensinavam como dar-lhe prazer. Ela deslizou as mãos sobre as costas largas, tateando os músculos, saboreando aquele corpo viril. Descobriu cada parte da anatomia de Robert, e ele explorava as curvas suaves, provando-as, criando uma turbulência de desejos.

Sensações abrasadoras a envolviam, estranhas mas familiares, satisfatórias mas frustrantes.

Ela necessitava de mais.

Percebendo que estava pronta, Robert moveu-se, puxou-a e, de repente, ela se viu sobre o corpo másculo.

Tornaram-se apenas um. As chamas se fundi­ram, assim como os corpos. Moviam-se em um ritmo secular, uma cadência que exigia ser correspondida. Os corações pulsavam acelerados, a tensão crescia e os músculos flexionavam.

Os sentidos de Samantha clamavam por mais. Ela lhe ofereceu tudo e mergulhou na inebriante paixão da alma de Robert. Um calor súbito a do­minou. Uma sensação selvagem emergiu. A po­derosa dança sensual a levou aos patamares do delírio.

Quando, enfim, Robert deitou-se sobre ela, um fogo intenso a atingiu. O poder instintivo daquele homem tornou-se dela. Sentia a potência dos mús­culos dirigindo a união. Escutava a respiração ofegante, os gemidos de satisfação intensa. E, de súbito, uma energia incontrolável rompeu dentro dela.

Suada de paixão, ela se juntou a Robert na ma­ravilhosa intensidade que os transformou num único ser, coração e alma. A unidade eclodiu pelos poros de ambos e culminou em uma triunfante explosão de emoções.

O retorno à realidade foi lento e suave.

Robert deslizou os dedos sobre o lindo rosto, apreciando a maciez da pele, a leveza do toque. Os olhos azuis traduziam o mais puro sentimento de amor.

— Você é um sonho, Samantha. Eu nunca...

Os pensamentos começaram a ficar perigosos. Imagens desconexas sobre casamento, Marguerite Bradley, pipocavam na mente de Robert. A beleza perfeita da castelã de Clairmont, o cuidado em vestir-se, a competente administração do lega­do... Tais atributos não se comparavam à espontaneidade de Samantha, ao espírito generoso, ao fogo da paixão.

E somente agora Robert descobrira os valores que para ele eram fundamentais. Não entendera como a abominável frieza de Marguerite e sua constante aversão o magoariam a cada momento.

E Robert encontrava-se atado a ela pois havia feito o pedido de casamento.

Samantha afastou-se e recolheu as roupas. Era tão doce e linda sob a fraca luminosidade das velas que ele a desejou novamente. Aliás, sabia que a desejaria pelo resto da vida.

— Não, Samantha. — Ele a segurou pelo braço. — Eu...

Ela o fez calar-se ao tocar-lhe os lábios.

— Por favor, Robert. Já está comprometido com lady Marguerite. Não vou pedir que rompa o acor­do. Não fale mais nada.

Robert acariciou a mão delicada e, abraçando-a, beijou-lhe os lábios entreabertos. A paixão voltou a fluir, e Samantha esquivou-se.

Traçando as feições suaves, Robert fitou os olhos tristes. Era tão bonita, tão passional... Significava mais para ele do que podia imaginar. Por isso, não tinha o direito de fazê-la sofrer. Samantha era inocente. Ele não poderia lhe oferecer nada. Nem mesmo a proteção de seu nome.

— Vou me lembrar deste encontro sempre — ela murmurou, com os olhos enevoados e os lábios trê­mulos. — Quando... você voltar a Clairmont e...

— Samantha, Clairmont não significa nada para mim. Marguerite nunca será uma esposa amorosa, ela tampouco o quer.

— Como pode dizer isso? — Samantha protes­tou. Emoções perturbadoras invadiram a expres­são perplexa. — Qualquer mulher teria orgulho de tê-lo como marido. Lady Marguerite não é diferente...

— Samantha. — Robert beijou-lhe os lábios. — Você me envaidece. Não tem consciência dos meus defeitos? Minhas cicatrizes? Muitas mulheres mostraram repulsa e fugiram.

— Não é assim, Robert. A generosidade de sua alma supera estas marcas. Como algumas cica­trizes podem sobrepujar a honra de seu coração?

Infeliz, Robert começou a recolher as roupas e ajudá-la a se vestir.

— A honra é uma virtude que perdi há dois anos, quando fui aprisionado em Windermere.

A expressão de incredulidade no semblante de Samantha o impeliu a prosseguir.

— Muitos anos atrás, o primo de Wolf usur­pou-lhe o título — Robert explicou. — Wolf con­seguiu provas que incriminariam Philip Colston, e fui mandado de Londres a Windermere para vigiá-lo até que os soldados do rei viessem capturá-lo.

Ele respirou fundo.

— Colston me prendeu e acorrentou-me no calabouço do castelo.

— Oh, Robert! — Samantha parou de se vestir e segurou-lhe as mãos.

— Philip tinha um prazer perverso e sádico de infringir dor — ele continuou. — Torturou e matou sua madrasta enquanto eu assistia, incapaz de intervir, impotente para ajudá-la.

Samantha ficou horrorizada.

— Em seguida, ele se divertiu comigo. Possuía todos os instrumentos de tortura naquele porão escuro...

— Seu olho? — ela perguntou, sem conter as lágrimas.

— Sim, entre outras coisas ainda piores. Para reprimir o pranto compulsivo, ela mordeu o lábio.

— Philip era o mestre da crueldade, Samantha. Sabia como dilacerar e regozijava-se a cada grito de dor. Podia causar inconsciência... ou morte.

— Meu querido Robert, como conseguiu sobreviver?

— Esta é minha vergonha, Samantha. Tentei comprar a sobrevivência com traição.

Ficou explícita a falta de compreensão no rosto piedoso.

— Prometi entregar Wolf a Philip... — Robert murmurou. — Se ele me libertasse.

Um longo silêncio se seguiu. Não havia maior desonra que trair Wolf, seu melhor amigo e aliado. E agora Samantha conhecia a desgraça de Robert.

— Como pode se condenar tanto por tentar bar­ganhar tempo, Robert? — Samantha perguntou, fitando-lhe o olho.

— Tempo? Era a vida de Wolf... Ele é um irmão para mim, e eu o teria entregue àquele...

— Não percebe? Era tempo que eu barganhava quando disse a Wrexton que fui a única a roubar suas ovelhas. Estava tão apavorada que nem sequer refleti. Imaginei que se mantivesse a his­tória, alguém poderia intervir. Uma boa alma impediria o terrível pesadelo e tudo voltaria ao normal.

— Samantha, a história é diferente...

— Não, Robert! Wolf Colston é um cavaleiro honrado. Você sabe disso. Se o tivesse entregue a Philip, Wolf jamais sucumbiria ao primo, por mais poderoso e maléfico que fosse.

— Não. Não foi assim...

— Foi, sim! — Samantha segurou o rosto que tanto amava. — Sei que estava sofrendo demais na época para perceber isso, mas tinha de saber que Wolf pensaria em algum plano para distrair a atenção de Philip tempo suficiente para você ou ele, agir. Robert, sua nobreza de caráter nunca o faria desistir de uma luta.

Ela o beijou, apaixonada.

— Tem tanta fé em mim? — Robert perguntou espantado.

— É claro. Você é honrado e gentil, ninguén duvida de seu caráter, muito menos Wolf. A bondade está em seu sangue, Robert. Vi com meus próprios olhos que é incapaz de trair.

— Samantha...

Uma lágrima rolou pela face rosada. Robert enxugou-a com o dedo.

— Não falemos mais de desonra e traição — ela pediu, comovida. — Fez o que qualquer homem faria em tais circunstâncias. Não pode se culpar por implorar tempo.

Maravilhado ante tamanha benevolência, Ro­bert abraçou-a. Samantha era única. Porém não lhe pertencia. Ele a desonrara e a si mesmo também.

Sentiu que ela tremia e reparou que a capela se tornara fria ao extremo. Ajudou-a a se vestir. Por fim, pôs o casaco sobre ela, inalando a essência de Samantha e memorizando a maciez da pele.

— Vamos — ele disse, infeliz. — Vai acabar se resfriando.

Caminharam pelo jardim em direção ao castelo. Escutavam a brisa carregar as folhas secas e ad­miraram o luar no céu. Naquele momento, Robert não imaginava como poderia retornar a Clairmont e deixar Samantha. Tinha de encontrar uma so­lução honrada para ficar com ela.

No pátio do castelo havia vários cavalos que não pertenciam a Windermere. Alguns suados e ofegantes, outros ainda dispostos. Robert olhou ao redor, desconfiado. Nenhum séquito era esperado no cas­telo, pelo menos Wolf não o avisara, e aquela repentina visita só podia significar problemas.

— Entre pelos fundos e vá ao quarto de Kit— ordenou a Samantha. — Verei do que se trata essa romaria.

Samantha pressentiu o perigo no tom de voz. Esgueirou-se entre os cavalos e correu à porta da cozinha. Teria o bispo Beaufort os seguido até Windermere? Robert e Wolf saberiam lidar com a situação imprevista, porém Samantha fícou aflita.

A segurança de Henry estava em jogo, caso o bispo resolvesse levá-lo consigo. E deduziu que Wrexton devia estar no castelo também.

Parou para tomar fôlego. O desespero, que havia iniciado na capela ao se separar de Robert, voltou a dominá-la.

Dryden jamais seria dela. As lágrimas começa­ram a rolar em profusão. Estava ciente do com­promisso de Robert para com Marguerite quando ele a beijou e a tocou tão carinhosamente. O fato de que não era livre tornara-se claro ao se entre­gar a ele.

Mas não importava. Para Samantha sempre existiria apenas Robert, e o casamento com Mar­guerite Bradley não mudaria seu sentimento.

Um sentido de desilusão e abandono instalou-se em seu coração. Tentou reprimi-lo. Tais emoções eram inúteis, pensou, correndo até os fundos da fortaleza. Iria se habituar à solidão. O interlúdio com Robert não modificaria o futuro. Tinha deci­sões a tomar, planos a...

— Tudor, por Deus! — uma voz grave exclamou, quando alguém a agarrou e tapou-lhe a boca. O captor passou o outro braço pela cintura de Sa­mantha e arrastou-a para um canto escuro. — Achou que eu não descobriria?

Samantha entrou em pânico. Tentou empurrá-lo, mas foi em vão.

— Está longe de Pwll. Muito distante de Clairrnonti Não imagina minha surpresa — Wrexton murmurava, colérico —, quando a vi naquela ma­nhã em meu quarto, de faca em punho... Deduzi na hora o que você pretendia.

Samantha quis falar, mas a mão áspera pres­sionava-lhe a boca. Debateu-se na tentativa de se libertar, porém, o vilão era forte demais. Ele a subjugara.

— Pensou que podia raptar o rei embaixo de nossos narizes? — Wrexton, na verdade, afir­mou. — O conselho não vai admitir tamanho atrevimento. A penalidade é severa, Tudor! Será enforcada!

Não, ela gritou em pensamento. Fizera somente o que a rainha lhe pedira. Com certeza, não seria acusada de seqüestrar Henry. A possibilidade era absurda!

Ou não?

Precisava fugir! Tinha de encontrar Robert e obrigá-lo a ajudá-la, antes que Wrexton distorces­se os fatos, tal qual havia feito anos atrás quando assassinou os meninos. Samantha desconhecia as artimanhas políticas da corte, mas Edmund Sand-born era maléfico o bastante para imputar a culpa sobre ela e Robert. Owen não conseguiria ajudá-la porque Wrexton possuía certo poder no Conselho Parlamentar.

Tentaria escapar a qualquer custo.

Fez menção de morder a mão de Wrexton. Ele a esbofeteou, punindo-a. Samantha sentiu gosto de sangue nos lábios e percebeu que o vilão falava sério.

Mais uma vez, debateu-se. Porém ele a segurava com muita força. De repente, sentiu uma pancada brutal na cabeça. Foi a última percepção de Sa­mantha antes de mergulhar na completa escuridão.

 

Sua visita a essa hora não é nada conveniente,   Beaufort — Wolf Colston afirmou, apoiado no mantel da enorme lareira do castelo. Escondido em uma alcova, Robert podia escutá-lo.

— Minha esposa ainda está se recuperando do parto recente e logo receberemos outros hóspedes.

— Batizarei a criança, se houver problema...

— Minha mulher e meu filho gozam de perfeita saúde — Wolf o interrompeu. — Assim como padre Fowler, nosso clérigo.

A última informação, sendo desnecessária, sig­nificava um insulto. Quem não gostaria de ter o primeiro filho varão batizado pelo clérigo mais prestigiado do reino? Mas Wolf, tal qual Robert, conhecia o caráter traiçoeiro de Beaufort e tam­bém alimentava grande desprezo por ele.

O bispo sentou-se diante do fogo, obviamente incomodado com a resposta de Wolf. E os cava­leiros de Beaufort, sempre atentos, aproximaram-se da lareira.

— A noite está mesmo fria — Beaufort disse, por fim, encarando o anfitrião. — Que outros hóspedes?

— Seus sobrinhos — Wolf respondeu. — Alguém avisou Bedford na França, e Gloucester está che­gando com ele de Londres.

Robert observou o bufar colérico de Beaufort. A presença dos dois homens atrapalharia seus pla­nos. O bispo nada disse, continuou a se aquecer tentando ocultar sua frustração.

Foi uma surpresa saber que Bedford e Glou­cester, os irmãos de Henry V, iriam chegar. Robert se lembrava, vagamente, de Wolf ter mencionado o fato pois estivera doente demais para refletir a respeito.

Beaufort nunca conseguiria alcançar seu obje­tivo com a presença dos dois duques, seus sobri­nhos. O bispo não podia obrigar Catherine a se casar, tampouco tirar Henry de sua custódia. E Beaufort seria incapaz de desafiar os poderosos Bedford e Gloucester de forma tão escandalosa. Perderia crédito junto ao conselho, caso fosse des­coberto seu ardiloso golpe.

Satisfeito por Wolf manter o bispo ocupado e aliviado por Wrexton não estar em Windermere, Robert esgueirou-se pelo corredor do castelo. Si­lencioso, aproximou-se do quarto de Kit e bateu à porta. Maggie, a criada, o recebeu.

— Kit? — ele a chamou em voz baixa.

— Estou aqui, Robert.

A despeito do que acontecia no castelo, Kit estava cansada e precisava repousar.   Havia uma semana que dera à luz e ainda não se recu­perara totalmente.

— Onde está Samantha?

— Não a vimos.

— Milorde — Maggie disse. — Eleanor perma­nece aqui com a mãe, o bebê e pequeno Parry. — Todos agora chamavam Henry pelo apelido galés que Samantha criara.

De repente, Robert notou as duas crianças dei­tadas no leito com Kit.

— Nós os acomodamos aqui, milorde, quando soubemos que o bispo Beaufort e seus homens chegaram ao castelo.

— Beaufort não tem poder em Windermere, Ro­bert — Kit argumentou. — Henry estará seguro, mesmo que Wolf revele sua presença entre nós. Mas não se apresente, antes de saber o que meu marido planeja.

Dryden concordou. Já pretendia esperar até ve­rificar que estratégia Wolf tencionava adotar.

Retirou-se do quarto e atravessou a galeria, em direção aos aposentos de Samantha. Bateu à porta e, como não obteve resposta, entrou. Não havia fogo na lareira, o cômodo estava gelado e em com­pleta escuridão. Samantha não se encontrava lá.

Apoiado ao batente, Robert estranhou. Onde ela poderia estar?

Talvez continuasse no jardim ou então voltara à capela. Se Samantha havia descoberto que os cavalos pertenciam ao bispo Beaufort e seus ho­mens, ela se manteria escondida para não levantar suspeitas sobre a presença de Henry em Windermere. E não tinha conhecimento do poder que Robert e Wolf possuíam.

De qualquer maneira, confiava na esperteza de Samantha. Determinado a procurá-la, caminhou até os fundos do castelo quando escutou outras vozes no saguão.

Gloucester e Bedford haviam chegado.

O primeiro detalhe que chamou atenção de Sa­mantha foi o ruído do mar. Voltou a si devagar, indisposta por causa de uma forte náusea e uma intensa dor na nuca. Ao abrir os olhos percebeu que a noite chegara. A lua já havia despontado no céu. Passaram-se horas desde que ela e Robert se amaram, horas desde que Wrexton a capturara no castelo.

Onde estaria Robert? Ou melhor, onde ela estava?

Ergueu o torso e olhou os arredores. Robert se encontrava por perto? Ele lhe falara a respeito do aprisionamento em Windermere, mas Saman­tha sabia que não estava entre quatro paredes.

O céu acima dela, a despeito das nuvens, es­tava carregado de estrelas. Embora estivesse num local muito escuro, podia afirmar que se deitara sobre um solo de madeira e em suas cos­tas havia uma murada. O ar marinho invadia suas narinas.

Não tinha a menor idéia se Windermere se lo­calizava próximo à costa ou que distância Wrexton percorrera enquanto desmaiada. Sentia dores pelo corpo, e não tinha noção de onde se encontrava ou como chegara lá.

A náusea aumentou e Samantha sentiu-se mais zonza. O enjôo a dominou. Acomodou-se no canto para tentar abrandar o mal-estar. Onde por Deus estava?

Escutava sons estranhos e barulhos irreconhe­cíveis. Estalos e ecos... O vento sacudia enormes tecidos... Oh, se pudesse pensar com mais clareza, mas aquela terrível dor de cabeça e a insuportável náusea não lhe permitiam.

Percebeu um movimento, porém não soube dis­cernir se era a indisposição ou se ela se mexia mesmo. Nem teve tempo de ponderar porque de novo as forças lhe faltaram até perder os sentidos.

Tão logo Wolf ofereceu a informação de que o rei da Inglaterra dormia pacificamente em um dos aposentos de Windermere, Dryden juntou-se ao grupo. Não havia motivo para continuar es­condido. Em pouco tempo, se Beaufort já não sou­besse, ele descobriria que Robert e Samantha ti­nham retirado Henry de Clairmont a pedido da rainha.

John, o duque de Bedford, era um homem char­moso, pouco mais velho que Robert, mas fora con­sumido pelo excesso de esforço despendido nas lu­tas pela França, e mostrava isso ao primeiro olhar. Os cabelos claros de algum tempo atrás, agora mostravam-se embranquecidos nas têmporas, e os traços de cansaço marcavam os olhos e os lábios.

Ainda possuía o olhar inteligente e a potente voz de comando.

Bedford fora respeitado entre os tenentes do rei Henry por suas façanhas nas batalhas trava­das por ocasião da guerra francesa, e, desde o falecimento do irmão, liderava as tropas. Sua pre­sença na Inglaterra era indispensável. Com fre­qüência precisava deixar o continente para mediar os conflitos causados entre o teimoso irmão, Humphrey, e seu inescrupuloso tio, Beaufort.

— Dryden — Bedford disse, ao encarar Robert.

— Você me parece em boa forma.

— Pois estou, Vossa Graça.

— Ele possui Alldale agora — Wolf o lembrou.

— Seu irmão fez questão de oficializar o legado dois anos atrás.

— Ah, sim, agora me recordo — Bedford assen-tiu. — Não tem interesse em retornar ao fronte comigo? Preciso de guerreiros como vocês — ele acrescentou, incluindo Wolf.

— Já desisti da França há muito tempo — Wolf argumentou. — Windermere me mantém bem ocupado.

Gloucester murmurou algo incompreensível que Bedford ignorou.

— E quanto a você, Alldale? Preciso de coman­dantes, oficiais confiáveis, homens...

— Peço-lhe desculpas, Vossa Graça — Robert interveio. — Negligenciei minha propriedade por um longo período.

Bedford aceitou as recusas e encarou o tio.

— O que o traz a Windermere, Beaufort? Pensei que sua diocese tomasse muito de seu precioso tempo.

Gloucester resmungou e recebeu um olhar repressor do tio.

— O bispo está brincando de ser político outra vez — Gloucester ironizou. — Contudo, a brinca­deira o afastou de Londres.

— Bobagem. — Beaufort fitou o jovem que tinha uma incrível semelhança com o irmão. — Resolvi aproveitar uma fase tranqüila de meu episcopado para verificar o bem-estar de meu sobrinho. Não confio naquela francesa que o trouxe ao mundo.

— Cuidado, Eminência — Bedford o advertiu. — Está se referindo à rainha da Inglaterra.

A conversa prosseguiu enquanto vinho e comida eram servidos. Gloucester continuou petulante e ressentido. O pomposo bispo Beaufort justificava suas ações. Bedford mediava.

A noite tornou-se madrugada e o nobres ainda bebiam, discutiam e trocavam acusações. Robert teria se retirado para procurar Samantha, mas pelo olhar significativo que Wolf lhe lançou, achou melhor permanecer. Os Lancaster debatiam, e ele pensava apenas no interlúdio que vivera com Sa­mantha na capela.

Sentia necessidade de tocá-la, beijá-la com ar­dor. Jamais acariciara uma pele tão sedosa, nem lábios tão doces.

Como podia sair de Windermere sem ela? Que tolice pensar em casá-la com Nicholas ou qualquer outro homem!

Antes a vida era simples, passava seus dias em total resignação. Samantha mudara tudo. Ele se sentia diferente. A existência isolada não o satis­fazia. Precisava de Samantha.

E, igualmente importante, ela precisava de Robert.

Decidiu, enfim, mandar uma mensagem a Clairmont para cancelar a proposta a Marguerite. Era óbvio que a dama não o desejava, havia mostrado relutância para aceitar o casamento. E Robert ti­nha certeza de que ela se sentiria aliviada. Ha­veria de existir outro homem bem mais adequado ao papel de marido da castelã, e Marguerite o liberaria do compromisso.

Estaria livre para levar Samantha a Alldale, casar-se com ela e torná-la sua condessa.

Enquanto os homens conversavam, Robert re­lembrou as palavras de Samantha e surpreendeu-se com tamanho bom senso. Ela tinha razão. 0 conde de Alldale não passava de um arrogante orgulhoso por não ter enxergado o fato.

A experiência de Samantha nas garras de Wrexton proporcionara-lhe sabedoria. Entendia o que significava ter amigos cujas vidas corriam perigo. Conhecia os riscos de defendê-los, de tentar es­tratégias para agir na hora exata.

E não duvidava de que á valente galesa se envol­veria em encrencas, se necessário, embora ele pre­tendesse protegê-la no futuro. Samantha nunca mais teria motivos para temer pela segurança dos amigos.

Ansioso, Robert torceu as mãos. Precisava tocá-la. Samantha lhe devolvera a alegria de viver.

Com honestidade e o sorriso franco ela o conquis­tara. Acalentando um bebê, ou jogando bola no campo, vestida de princesa ou humilde como uma camponesa, Samantha Tudor era um tesouro. Uma mulher sem igual no coração de Robert.

Não podia imaginar o que o fizera aceitar uma vida em comum com Marguerite Bradley. Robert percebia agora que a cordata Marguerite jamais reacenderia sua masculinidade, seu orgulho. Teria cumprido o dever de marido, acreditando que não era homem, que traíra Wolf e que seu único valor se resumia em proteger Clairmont.

Agradeceu a Deus por Samantha Tudor ter cru­zado seu caminho naquele dia na floresta... e por conseguir salvá-la do javali selvagem.

— ...foi aquele galés idiota quem fez isso! — Beaufort exclamou e bateu o cálice de vinho na mesa, despertando Robert.

— Que galés? — Dryden perguntou. De tão per­dido em pensamentos, nem sequer atinou para o rumo da discussão, apesar de saber a identidade do galés.

— Aquele Tudor insultou Wrexton, que não tem nenhum apreço pelo povo de Gales — Beaufort explicou. — Wrexton abomina Tudor e sua "alta" posição junto à rainha.

Bem, Robert também não apreciava Owen Tu­dor, mas Wrexton precisava ser mais cuidadoso se tinha qualquer esperança de conquistar a rai­nha Catherine. Era sabido que Sua Majestade fa­vorecia Owen e não admitia ofensas ao homem.

— Edmund também odeia a irmã traidora de Tudor — Beaufort continuou. — Por acaso, ela está aqui?

— O que tem a irmã de Tudor? — Robert in­dagou, desconfiado.

— Trata-se de uma história ridícula sobre... — O bispo ensaiou um gesto e desdém. — Por Deus, não vale a pena repetir.

— Por que Wrexton não acompanhou Vossa Eminência a Windermere? — Robert suspeitou que a história de Wrexton houvesse se espalhado por Clairmont.

— O conde veio comigo, mas precisou partir para a costa imediatamente. — Beaufort fitou o grupo, desconcertado. — Ele...

Robert e os demais sabiam que o esquema de Beaufort estava arruinado. Não aconteceria casa­mento algum entre a rainha e Wrexton, e o conde devia estar fugindo pela costa, ávido para chegar em suas terras. Edmund Sandborn não consegui­ria enfrentar o conselho, do qual Wolf represen­tava um membro poderoso. Se o conluio entre Beaufort e Wrexton vazasse, haveria repercussões desastrosas.

— Por que a costa? — Wolf perguntou. — Por que Wrexton não ficou para passar a noite em Windermere?

— Seu... navio atracou na baía Morecambe — Beaufort respondeu. — Estava ansioso para re­tornar ao lar.

— Pela baía Morecambe? — Robert retrucou, aliviado ante a ausência do conde. Não queria arriscar um confronto entre Samantha e o impie­doso nobre. — Pensei que o legado de Wrexton ficasse ao sul... da fronteira galesa.

— O que eu sei sobre tudo isso? — Beaufort indagou, irritado. — Ele se gaba de ser um ex­celente navegador. Vai viajar pelo mar, aportar em algum ponto perto do legado e seguir por terra.

Homens sem escrúpulos preferiam viajar de na­vio quando lhes era conveniente. Dessa forma, a jornada seria reduzida pois atravessar as monta­nhas e regiões acidentadas aumentavam em muito o caminho a percorrer.

— Senhores, peço-lhes licença. — Wolf se le­vantou. — Já é tarde e há um recém-nascido em meu quarto. Estou certo de que estarei desperto ao alvorecer quando meu filho acordar faminto.

Robert também se retirou enquanto os homens riam do bom humor de Wolf. Voltou ao dormitório de Samantha, e não a encontrou. Intrigado, diri­giu-se aos aposentos de Wolf e Kit. Seu amigo abriu a porta.

— Samantha está com vocês?

— Não. E Kit já está dormindo.

Agora preocupado, Robert desceu as escadas e saiu na escuridão da noite. Atravessou o pátio interno, o jardim e aproximou-se da capela, par­cialmente escondida atrás da folhagem.

— Samantha!

Não houve resposta.

Entrou na capela e acendeu uma vela para iluminar a pequena construção de pedra. O que podia ter acontecido?, pensou. Onde ela estaria àquela hora da noite?

À medida que refletia, a imagem de Wrexton surgiu-lhe à mente e a informação de Beaufort acerca do conde e de seu afastamento repentino.

Ainda mais perturbado, ele retornou ao pátio onde a deixara e esquadrinhou os arredores. Os cavalos haviam sumido e tudo permanecia em ple­no silêncio.

Robert era um bom rastreador. Cuidadosamen­te, analisou as redondezas, procurando alguma pista. Galhos quebrados, terra batida... De repen­te, encontrou algo diante da porta da cozinha.

O casaco de Samantha.

Robert blasfemou e precipitou-se ao castelo. Sa­bia agora o que ocorrera a Samantha. Mandou-a esgueirar-se pelos fundos, onde estupidamente su­pôs que ninguém a veria entrar. Claro que nada disso acontecera.

Wrexton devia estar à espreita.

 

Estava chovendo.

A medida que recuperava os sentidos, Samantha percebia as gotas gélidas caírem sobre o rosto. Um homem apareceu, puxou-a e a amarrou em um poste.

— Por favor! — gritou, sentindo a corda cor­tar-lhe os pulsos.

— Fique calada, mulher! — o homem ordenou. — Vai continuar aqui fora, bem longe da cabina do conde.

Cabina? Samantha ponderou acerca das pala­vras do saxão. Não via sentido, mas admitia que era melhor ficar afastada de Wrexton.

— Onde estamos? — perguntou. — O que...

Um trovão reverberou e o homem correu. Então o chão começou a oscilar e ondas ferozes tomba­vam sobre ela.

Enfim, deu-se conta de que estava em um navio. Em alto-mar, isolada e sozinha. Condenada.

Raios cruzaram o céu negro e outra trovoada aconteceu. O navio tombava de acordo com o ritmo turbulento do mar. A náusea voltou. Sentia-se mi­serável, fraca e amedrontada. Pensou em Robert e deduziu que ele nunca a descobriria. Desespe­rou-se ao imaginar que jamais o veria.

Os dedos, frios e quase anestesiados, doíam por causa da corda que lhe apertava os pulsos. Não podia ficar ali como um peixe morto à espera do fatídico destino. Se Wrexton pretendia torturá-la, Samantha não iria cooperar. A despeito da fra­queza e do pavor, não se entregaria ao inimigo sem lutar.

A fúria da tempestade aumentou. Homens gri­tavam a distância. Samantha orava enquanto o navio era jogado de um lado para outro, puxando seus braços a cada golpe violento. Litros de água salgada a engolfavam e, quando conseguia respi­rar, sentia a garganta e os músculos se contraí­rem. Tentou soltar a corda que a prendia, o esforço foi em vão. A tormenta pareceu interminável. As nuvens densas não proporcionavam a esperança de me­lhoria ao tempo. Samantha notou que amanhecera porque havia diminuído a escuridão.

A chuva voltou a cair. E, pelo tom furioso dos homens no convés, ela suspeitou de que haviam se desviado da rota.

Podia ser tanto uma bênção quanto o fim, Sa­mantha pensou. E desejava saber o que iria acon­tecer para planejar sua fuga.

Ou ao menos realizar seu ato de contrição.

 

Pela graça de Deus, ela estava viva. A chuva continuava a cair, incessan­te. Embora o tempo estivesse mais brando, o mal-estar prevalecia. Ensopada e trêmula de frio, Sa­mantha tentou se mover, mas foi impedida pela dor nos pulsos amarrados à corda. Os ossos do corpo pareciam quebrar dada a posição em que se encontrava.

Vozes roucas ecoavam no ar, indicando confu­são. As velas do navio foram avariadas, e encon­travam-se longe de Ri ver Dee, para onde deveriam ir. A tripulação, irritada, discutia o que fazer.

— Estamos em Basingwerk! — um dos mari­nheiros gritou.

— Bem, quero saber se ele vai nos dar tempo de reparar o navio ou teremos de viajar de carroça — disse outro.

— Não sei — o primeiro rebateu, enquanto re­colhia os cabos no convés. — Chester é distante demais para irmos de carroça, você sabe.

Basingwerk, Samantha pensou. Estava em Ga­les. Com certeza, poderia encontrar um lugar para se esconder em sua terra, apesar de dar prefe­rência a Chester.

Ouvira dizer que a cidade de Chester se loca­lizava bem próxima a Pwll. Se conseguisse alcan­çar o vilarejo...

Não. Se fosse para casa, colocaria o povo de Pwll em risco. Não faria isso. Não submeteria seus primos ou qualquer outro galés ao perigo. Tinha de desco­brir um meio de sair do navio e fugir de Wrexton.

Mas tão logo estivesse em terra firme como iria sobreviver? Não possuía dinheiro nem nada de valor que pudesse trocar por comida ou abrigo.

Ignorando a dor nos braços, Samantha encolheu as pernas e tentou sentar-se. Olhou ao redor.

Estava amarrada a um mastro próximo de uma escada, mas não conseguia enxergar a costa do lado oposto de onde se encontrava. Indefesa, viu-se completamente à mercê da ira de Wrexton.

Houve uma frenética atividade. Os homens mo­viam-se rápido pelo convés, gritando e puxando cabos. Pareciam dirigir a embarcação em direção à costa. Era evidente que não sabiam se iriam permanecer no navio ou acompanhariam Wrexton em terra firme.

Alem do plano de fuga, Samantha queria tirar as roupas molhadas e se aquecer. Tal oportuni­dade, no entanto, estava fora de cogitação. Assim que viu Wrexton aparecer no convés, sabia que teria sorte caso ele não a jogasse ao mar.

O rosto do conde se contorcia de raiva enquanto se aproximava. Talvez ele estivesse furioso porque o navio saíra da rota planejada. Samantha rezou para que fosse apenas isso.

— Você não se afogou — Wrexton disse ao pas­sar por ela.

Samantha ficou paralisada. Ignorava o motivo de Wrexton odiá-la tanto. Também não entendia por que o homem sentia necessidade de puni-la pelas ações do pai, anos atrás durante a Rebelião Glendower. Era somente uma menina quando a revolta aconteceu.

Não respondeu ao comentário de Wrexton, tam­pouco ele parecia esperar alguma réplica. O conde falou com um marinheiro, que se aproximou para libertar Samantha. Havia sangue em suas mãos e ela mal conseguia mexê-las. O marujo ergueu-a pela gola do vestido e a empurrou.

Samantha caiu.

— Levante-se, sua Tudor maldita! — Wrexton berrou. Samantha forçou-se a obedecê-lo. — Ren-ford! Vá até a costa e arranje alguns cavalos. Não pretendo esperar dias enquanto estes incompe­tentes consertam meu navio!

— Sim, milorde — Renford disse e desembarcou rapidamente para agradar seu senhor.

Wrexton bradou outras ordens ao marinheiros e, pegando Samantha pelo braço, arrastou-a em direção a uma prancha na popa do navio. O conde então obrigou-a a atravessar as poderosas ondas até a praia.

— Pequeno buraco galés — Wrexton murmurou, vistoriando a cidade. — Não há nenhuma taverna por aqui?

Calada de pavor, Samantha deixou-se levar em direção a uma construção. Encostou-se na parede esperando que Wrexton decidisse o que fazer.

— Está com medo? — ele perguntou, maquiavélico. Samantha continuou em silêncio, tentando con­trolar o pavor.

— A essa hora já devem ter notado seu desa­parecimento em Windermere. — Wrexton cami­nhava diante da casa abandonada.

Aflita, ela ignorou o aperto no peito.

— Talvez enviem uma tropa para procurá-la — ele acrescentou. — Aquele bastardo, Alldale, com certeza virá. — Wrexton a encarou. — Não seria fantástico assistir a outro enforcamento?

 

Robert selou seu cavalo e partiu para o sul, em direção às terras de Wrexton. Era tarde, e todos em Windermere repousavam. Portanto, não pediu a ninguém que o acompanhasse. Aliás, preferia assim. Trabalhava melhor sozinho.

Cavalgaria a noite inteira e o dia seguinte, se necessário. Tinha de atingir o legado de Wrexton para salvar Samantha. Seu coração batia descom­passado só de imaginá-la nas mãos daquele conde que parecia determinado a sacrificá-la.

Jamais estivera na propriedade de Wrexton, mas tinha certeza de que encontraria o local e rápido. Tomou a direção sudoeste, sabendo que conseguiria corrigir o curso porque logo amanhe­ceria e as pessoas lhe informariam a direção.

Só esperava não estar tão em desvantagem em relação ao navio de Wrexton. Olhou para oeste, onde o mar se encontrava. Robert observou o pro­gresso de uma violenta tempestade. Samantha de­via estar apavorada, pensou.

Esporeou o animal e prosseguiu a jornada, co­brindo quilômetros apesar da escuridão da noite. Queria chegar ao legado de Wrexton antes dele, mas as chances de atingir tal objetivo eram pou­cas. A rota mais curta tinha de ser por navio, caso contrário, Wrexton não pensaria em navegar.

Estava ciente das circunstâncias adversas que o aguardavam. Não sabia que tipo de fortaleza Wrex­ton possuía, quantos cavaleiros vigiavam as terras. A única prioridade era a segurança de Samantha.

Contudo, logo percebeu que deveria ter tra­zido ajuda.

 

Wrexton cavalgava na frente, com dois de seus homens, e Samantha, amarrada novamente, fora jogada no vagão de uma carroça para sacolejar durante o tortuoso trajeto. A chuva cessara, mas ela ainda estava encharcada. Não sabia se um dia voltaria a sentir o calor de uma lareira.

Quatro homens a acompanhavam, um conduzia a carroça e os outros três cavalgavam ao lado do vagão. Somente um deles parecia particularmente ameaçador. O facínora não pensaria duas vezes antes de matá-la.

Nada referente à região lhe causou alguma fa-miliaridade. Sem dúvida, achava-se longe de Pwll. Sentia-se miserável jogada no vagão tal qual um saco de batatas. Embora ganhasse novos arra­nhões a cada quilômetro, ainda era melhor que estar no navio com as ondas engolindo-a e a tem­pestade ameaçando sugá-la.

Com certeza, viajavam rumo ao castelo de Wrex­ton, mas Samantha desconhecia a distância ou quanto tempo levariam para chegar.

Em Pwll ninguém viajava e só recebiam notícias através de um monge ocasional ou algum anda­rilho. Fora isso, a comunidade permanecia isolada do mundo. Para além dos campos, ignoravam os acontecimentos e apenas sabiam que Londres se localizava a leste e a região de Gales, ao sul.

Claro, Samantha havia viajado muito, desde que Owen a buscara. E as longas jornadas nunca a trouxeram de volta a Gales. Portanto, continua­va ignorante em relação à própria terra, o que impossibilitava qualquer plano de fuga.

Fechou os olhos e deitou-se no vagão, na ten­tativa de recuperar forças. Imaginou o que Robert faria ao descobri-la ausente. Suspeitaria de que fora raptada? Ou pensaria que simplesmente re­solvera partir?

Ele conhecia a história dramática de Samantha. A precipitada partida de Wrexton somada a seu desaparecimento não eram mera coincidência. Ro­bert deduziria o ocorrido.

Mas não poderia ajudá-la naquele momento.

Uma hora ou mais após o alvorecer, Robert di­visou uma residência, localizada no penhasco que costeava o mar. Estava exausto e o ferimento do braço latejava terrivelmente. Não podia prosseguir. O senhor do feudo, um homem de meia-idade, recebeu Robert no pátio dos fundos, em frente ao estábulo. Era alto e robusto, de cabelos grisalhos, e tinha olhos de um azul cristalino.

— Saudações, milorde — o homem cumprimen­tou-o, enquanto Robert apeava. — Bem-vindo ao feudo Northaven. Sou Eldred de Grant, o barão destas terras.

— Sou Robert Dryden, conde de Alldale.

— Por favor, entre — de Grant convidou-o, acenando para um criado cuidar do cavalo de Robert. — Pelo que vejo está cavalgando há horas.

— comentou.

— Pretendo ir às terras de Wrexton — Robert informou. — Mas tenho apenas uma vaga idéia de como chegar até lá.

Quando adentraram a casa, de Grant instruiu os criados para preparar uma refeição e acomodações a Robert. Também mandou alguém chamar seu filho.

— Não posso ficar — Dryden avisou.

— Uma hora de repouso não lhe causará danos — de Grant argumentou. — O legado de Wrexton é distante de Northaven e o senhor me parece exaurido.

A bem da verdade, Robert estava esgotado. A infecção do braço sugara-lhe as forças. Precisava descansar antes de continuar a jornada. Porém, imaginar Samantha nas garras de Wrexton fazia seu sangue borbulhar.

Como não tivesse garantias de que Samantha estava viva, Robert tinha de acreditar que Wrex­ton primeiro a prenderia em sua fortaleza, antes de torturá-la. Era o único meio de conter a raiva, a frustração e de manter energia suficiente para socorrê-la.

— Obrigado, sir — Robert agradeceu, embora lamentasse o atraso.

— Nem pense nisso.

O barão o conduziu a uma enorme sala, aque­cida por uma lareira. Tratava-se de uma próspera residência, confortável e bem organizada. Robert sentou-se diante do fogo para se esquentar.

— Meu filho e eu enterramos minha esposa ontem — de Grant disse. — Se estivesse aqui, sendo a galesa orgulhosa que era, ela perguntaria o que um homem fino como o senhor quer com o porco Wrexton.

Surpreso com o desabafo do barão, Robert sen­tiu-se encorajado pela referência degradante a Wrexton e também por saber que a anfitriã fora galesa. Edmund Sandborn não era querido em Northaven.

— Não parece apreciar o conde Wrexton — ele comentou, com o objetivo de obter mais informa­ções, antes de revelar o problema relacionado a Samantha.

De Grant meneou a cabeça, revoltado.

— Nunca vi tamanha barbaridade — o barão confessou. — Quem ele pensa que é? A personi­ficação das leis inglesas?

— Que barbaridade?

— Ora, deve saber, milorde, já que pretende entrar no território de Wrexton. — De Grant foi interrom­pido por uma serva que carregava uma bandeja de comida, a qual colocou sobre uma mesa de carvalho.

— O jovem Marcus está agora atravessando o vale, milorde — a criada avisou.

— Obrigado, Peg. — De Grant indicou a mesa a Robert. Enquanto se servia, ele estimulava o barão a falar.

— O que sabe a respeito de Wrexton?

— Jamais me preocupei com o pai dele nas pou­cas vezes em que o vi. — De Grant suspirou. — Mas o jovem Edmund... Oh, é uma criatura rara.

— Em que sentido?

O barão cocou o queixo e encarou Dryden.

— Talvez queira me dizer o que deseja tratar com o conde—sugeriu ele, servindo-se de cerveja. —Assim, ficarei mais à vontade para lhe contar o que sei.

Apesar das poucas informações, as últimas pala­vras do anfitrião foram esclarecedoras. O barão não prejudicaria a intenção de Robert, e podia até tor­nar-se um forte aliado para resgatar Samantha.

— Wrexton seqüestrou uma jovem de Winderme-re ontem à noite — Robert revelou. — Ela é de boa família e o conde não tinha o direito de roubá-la. Acredito que queira causar-lhe algum mal.

De Grant nada disse, somente ergueu as so­brancelhas brancas e, após um tempo, perguntou:

— Por que Wrexton roubaria uma dama de Windermere? Mesmo sendo ele quem é, seria uma afronta...

— Não se trata de uma dama de Windermere

— Robert interveio. — Wrexton raptou uma con­vidada do duque de Carlisle.

— Pois não é do feitio de Edmund Sandborn — de Grant replicou. — Capturar uma inglesa...

— Ela é galesa.

— Ah, isso explica tudo.

— O que quer dizer?

— Desde a rebelião galesa, Wrexton alimenta um ódio profundo pelos galeses — de Grant ex­plicou. — Era muito moço na época, mas ele e o irmão lutaram em algumas batalhas.

O barão tomou um gole de cerveja antes de prosseguir.

— Seu irmão devia ter uns quinze anos quando foi morto por uma flecha galesa. Edmund ficou ar­rasado. Dizem que o velho conde, ao ver o corpo do filho, teve um ataque do coração e faleceu na hora.

— Entendo — Robert murmurou.

— Edmund herdou o título e as terras, assim como a tutela da irmã caçula. As batalhas conti­nuaram e Wrexton tornou-se cada vez mais cruel. Assassinava qualquer pessoa a sua frente... in­clusive mulheres e crianças.

Eldred de Grant também contou que um grupo de galeses, com o intuito de render Wrexton, rap­tara a irmã de doze anos do conde. Esperavam que, em troca da segurança da menina, Edmund interrompesse suas crueldade e refreasse sobre seus instintos assassinos.

— Eles a trataram bem, mas a menina adoeceu.

Não sobreviveu a febre causada por uma infecção pulmonar. E todos sabem que os galeses não foram os responsáveis pelo falecimento da pobre menina. Houve uma longa pausa, durante a qual Robert ponderou acerca da história. Não era difícil com­preender o ódio de Wrexton, mas suas práticas de punição para com o povo galés eram inaceitáveis.

— Quando Marudedd Tudor foi ter com Edmund para informar a morte da irmã...

— Tudor?

— Sim. Foi Tudor quem deu a trágica notícia a Wrexton. Devo dizer que o homem tinha cora­gem. Edmund só não aniquilou Marudedd na hora porque estava deveras consumido pela dor da per­da. Rumores alegaram que o jovem conde estate­lou-se no chão de tanto chorar.

Agora desesperado, Robert levantou-se. A ur­gência de resgatar Samantha aumentara após to­mar conhecimento dos motivos que conduziam Wrexton a efetuar tanta crueldade. Embora a ló­gica de Edmund fosse errada, ele pretendia vingar a morte da família em Samantha. O vilão a punira de diversas formas ao longo dos anos, mas Robert sabia que aquele seria o último episódio.

De tão absorvido em preocupações, ele não re­parou na chegada de um homem. Somente quan­do Marcus de Grant cumprimentou o pai, Robert o notou.

Musculoso e bonito, o jovem de Grant postou-se atrás do pai e encarou Dryden.

— Lorde Robert, este é meu filho, Marcus — o barão apresentou-o. — O conde veio de Winder-mere para acertar contas com Wrexton.

Marcus sentou-se à mesa, nada surpreso.

— Verdade? — perguntou. — O que seu primo aprontou dessa vez, pai?

 

A viagem durou o dia inteiro. Samantha chegou a cochilar algumas vezes, mas o desconforto da carroça a despertava. Não conseguia se lembrar de quando comera ou tomara água pela última vez. Contudo, após horas de náuseas a bordo do navio, não podia pensar em alimentar-se. Estava fraca. Precisava agir sem demora ou não teria energia para se ajudar.

Os quatro "guardas" nem sequer a vigiavam. Sa­mantha logo percebeu que não tinham ligação com Wrexton. Foram apenas contratados para obedecê-lo.

As ordens eram simples. Deviam escoltar Samant­ha ao Castelo Wrexton o mais rápido possível. Com certeza, o conde possuía em mente uma série de torturas para ela. Quais seriam, não fazia idéia.

Como não desejasse alertar os guardas, Sa­mantha tentou várias vezes avaliar os arredores. Erguia a cabeça para ver o terreno e gemia con­forme realizava frágeis movimentos. Esperava que os homens acreditassem em sua fraqueza e incapacidade.

De quando em quando, ela adormecia. No ins­tante em que acordou com um ruído, já era noite e receou ter perdido algum sinal importante. Sen­tiu o rosto úmido e sabia que havia chorado enquanto dormia. O sonho voltara. Só que dessa vez Robert encontrava-se acorrentado com Idwal e Da-fydd, sendo torturado e espancado.

Fora uma agonia. Samantha podia visualizar o ros­to dele durante o sonho e revoltava-se ante a cruel injustiça. Nunca mais teria paz em sua vida? Por que aqueles que amava sempre acabavam sofrendo?

Sacudiu a cabeça para clarear a mente. Os lá­bios estavam secos e rachados. Quando tentou umedecê-los, reparou que a língua também res­secara. Sentia-se zonza e a visão parecia ofuscada. O mal-estar no estômago piorava cada vez que a carroça passava por um buraco.

Ninguém, além dela própria, seria prejudica­do agora!

Robert encontrava-se em Windermere. Saman­tha sabia disso. Idwal e Dafydd estavam sob os cuidados de Deus. Precisava tomar uma atitude... mas o quê? Não conseguia pensar!

Onde estava? Para que lugar seria levada?

Havia somente uma certeza: Robert não poderia ajudá-la. Eleja a tinha resgatado... Não lembrava quando nem como, mas ele sempre estivera pre­sente. Além de ser um poderoso guerreiro, Robert a tratava com gentileza e carinho. Era o único ,   que a socorria nos momentos difíceis.

No entanto, Samantha só podia contar consigo mesma. Dependia dela própria para sair da car­roça e fugir daqueles homens. Tinha de agir. Não se submeteria ao jogo perverso de Wrexton como um animal sarnento. Encontraria um local para se esconder e lá ficaria até os guardas desistirem de procurá-la. Sim, era isso que faria.

Arrastou-se em direção à traseira do vagão, to­mando cuidado para não ser vista.

A carroça não corria. Portanto, Samantha não sofreria graves ferimentos caso pulasse. Porém, tinha de calcular o ponto mais estratégico pois precisava de um lugar para se esconder. De nada adiantaria saltar em campo aberto. Eles a veriam mesmo à noite.

De repente, adentraram uma floresta. Saman­tha deslizou até a beira do vagão e preparou-se para pular. Esperava não fazer muito barulho na hora em que rolasse entre as árvores. Tendo as mãos amarradas, ela conseguiu saltar e amparou o tombo com o ombro e o braço.

A carroça continuou.

Enquanto tentava se levantar, Samantha sentia os efeitos da queda. Levou minutos para ficar em pé. Caso eles notassem seu desaparecimento, con­seguiriam recapturá-la novamente. Se não achas­se um esconderijo depressa, estaria perdida.

Quando enfim levantou-se, precipitou-se entre as árvores, a despeito da fraqueza e do tremores no corpo.

 

Robert acordou em Northaven antes do meio-dia e já se aprontou para partir. As poucas horas de sono foram rebuscadas por imagens de Samantha presa no calabouço de Wrexton.

De alguma maneira, porém, ele obteve o mere­cido descanso e, ao levantar-se, viu-se preparado a fazer o impossível para resgatar Samantha.

— Empacotamos suprimentos para sua jornada, milorde — de Grant comunicou no instante em que Robert apareceu na sala da residência.

— Eu lhe agradeço, barão. — Dryden caminhou até a porta. — Preciso apenas das coordenadas para chegar ao legado de Wrexton.

De Grant sorriu.

— Não será necessário, milorde. Intrigado, Robert fez menção de protestar.

— Meu filho irá acompanhá-lo — o barão in­formou. — Ele também não aprecia Wrexton e tampouco deseja ver outra galesa machucada pelo cretino.

— Outra...

— Minha esposa, Rhianwen — de Grant contou, infeliz. — A mãe de Marcus sofreu várias injus­tiças nas mãos dos ingleses.

Dryden dirigiu-se ao estábulo, onde encontrou Marcus de Grant montado em um belíssimo ca­valo. O olhar sagaz do jovem indicava inteligência. Mas Robert também notou que Marcus não era adepto a conversas desnecessárias.

Aquela companhia seria uma bênção, pensou.

Marcus de Grant despediu-se do pai e galopou com Robert em direção ao sudeste.

— O que sabe a respeito do Castelo Wrexton? — Robert perguntou, após percorrerem quilômetros.

— Sei que a fortaleza é muito bem guardada.

— Marcus respondeu. — Estive lá quando menino, de forma que guardo poucas lembranças.

— Quanto tempo ainda levaremos para chegar?

— Creio que não antes do anoitecer. — Marcus fitou-o. — Com sorte, chegaremos lá logo depois de sua dama.

Sua dama. Robert gostou do som daquelas pa­lavras, mas ainda temia não chegar a tempo de salvar Samantha. Fazia um dia, praticamente, que Wrexton a tinha prisioneira. No entanto a tempestade o mantivera ocupado com a própria sobrevivência e não com Samantha. Pelos seus cálculos, deveriam estar em terra firme naquele momento, a caminho da fortaleza.

Se o conde houvesse causado algum mal a sua dama, a revanche de Robert seria brutal.

 

Samantha apoiou-se em uma árvore, e as lágrimas correram soltas em seu ros­to fatigado. Estava livre. Se mantivesse clareza de espírito, conseguiria escapar de uma vez por todas.

Tentou romper a corda esfregando-a no tronco da árvore e, após alguns minutos de aflição, li­bertou-se. Esfregou as mãos no vestido. Os pulsos ardiam e sangravam, contudo, a dor não a faria sucumbir. Secou os olhos com a manga do vestido e fez um esforço considerável para de recompor.

Tinha de optar por uma direção e correr antes que percebessem sua fuga. Ficar parada seria um erro fatal.

Avaliou a escuridão que a envolvia. Seria me­lhor seguir o caminho da esquerda onde a floresta era mais densa, tornando impossível a passagem da carroça. Esperava que a rota escolhida retar­dasse a busca dos guardas.

Caminhou devagar. A fraqueza a consumia e a noite escura também retardava seus passos. As longas horas de cárcere e privações surtiam efeito. Caía e tropeçava a cada obstáculo do solo acidentado. Seus joelhos e as mãos estavam em chagas. A visão se tornara embaçada e os sentidos, debi­litados. Ainda assim prosseguiu rumo à desconhe­cida escuridão. Os pensamentos começaram a di­vagar e Samantha enxergou luzes a distância.

Perdia as forças conforme caminhava e não se lem­brava por que fugia, somente sabia que tinha de con­tinuar. Atingiu um pequeno riacho, onde bebeu da água pura e cristalina. Ficou tentada a ficar ali para descansar, porém uma voz, o brado de Robert, man­dou-a levantar-se e prosseguir. Samantha gritou por­que não podia vê-lo. Então obedeceu o comando.

Em sua mente, Robert obrigava-a a andar, a despeito da fraqueza, da dor nos músculos e dos ferimentos.

De repente, escutou vozes. Não as identificou. Ou­viu patas de cavalos e homens murmurando. Esta­vam muito próximos e ela não sabia o que fazer.

Precisava se esconder!

O medo deu-lhe novo estímulo. Apertou o passo e encontrou um aglomerado de arbustos no qual podia se ocultar. Mas a súbita aparição de uma ribanceira surpreendeu-a. Trôpega, ela rolou pela ravina até tombar, enfim, em uma clareira.

Exaurida, Samantha permitiu que a inconsciên-cia a dominasse.

— Ela caiu da ribanceira — uma voz dizia.

— Sim — outro homem replicou, virando-a. — Vamos tentar carregá-la... Por todos os santos, Cai! É Samantha Tudor!

Samantha abriu os olhos e fitou os rostos dos dois jovens que conhecia havia anos. Eram de Pwll.

Podia ter caminhado até o vilarejo sem ao menos saber? E quanto às vozes que escutara e as luzes dentro da noite? Eram reais ou fora imaginação?

— Cai — murmurou, sem forças. — Dylan.

— Somos nós, jovem — Dylan confirmou. — O que faz aqui?

— Você devia estar em Londres com aquele seu irmão.

Samantha tentou levantar, mas não teve ener­gia para tanto. Os dois rapazes a ajudaram.

Entre balbucios e suspiros, ela começou a se ex­plicar. A incompreensão total das palavras não per­turbou Dylan e Cai. Apenas sustentaram Samantha nos braços e a conduziram em direção a Pwll.

— Sua tia Nesta vai ficar feliz em vê-la — Dylan comentou.

Era difícil acreditar. Nenhuma das tias viúvas protestara quando Samantha fora levada a Lon­dres. Sentiram-se na verdade aliviadas por vê-la partir.

— Ela assistiu vários partos depois que você foi embora — Cai comunicou.

— E diz que sente falta de sua ajuda — Dylan completou.

— Você era boa com as mães e os bebês.

Tia Nesta nunca tecera elogios a Samantha du­rante os anos em que auxiliara os partos. Sempre representara um peso para a família.

— Sua tia Bethan vive dizendo que jamais teria conseguido criar todos os filhos se você não esti­vesse presente a cada nascimento.

Dylan percebeu o olhar cético de Samantha.

— É verdade — reforçou. — Elas sentem muita saudade de você desde que partiu.

Quando se aproximaram da choupana de Nesta, a tia robusta os recebeu antes de baterem à porta. Uma avalanche de emoções passou pelo rosto amo­roso da mulher, deixando-a sem palavras. Então, ela recobrou a postura decidida que Samantha conhecia desde criança.

— Não fiquem no sereno com ela, meninos! — Nesta exclamou. — Tragam-na para dentro. Vou acomodá-la na cama de Rhodri.

Tia Bethan foi chamada e Samantha logo se viu aconchegada no leito do primo com as duas tias a cuidá-la. Sem comentários, as mulheres no­taram a aparência deplorável da sobrinha.

— Precisa descansar, Samantha — Bethan dis­se, acariciando os cachos avermelhados. — E quando acordar, falaremos do que lhe aconteceu, agora durma sossegada.

Samantha dormiu durante horas. Quando enfim abriu os olhos ouviu certo movimento na choupana. Recordava a recepção calorosa das tias e sentiu-se grata. Necessitava do aconchego da família para re­cuperar as forças e superar a perda de Robert.

Fazia quanto tempo não o via? Não o tocava? As horas não importavam. Era fácil lembrar-se do toque gentil ou do timbre agradável da voz rouca ao sussurrar seu nome. Samantha podia sentir os cabelos negros entre os dedos e a sen­sação de beijá-lo com ardor.

E a inusitada experiência na capela a unira a Robert para sempre. Não imaginava que pudesse sentir tamanha paixão. Jamais o esqueceria. Sem­pre recordaria os últimos momentos que passaram juntos, quando se entregou ao amor.

— Ah, jovem. — Nesta apareceu. — Já acordou. Samantha assentiu.

— Por que as lágrimas? — Ela enxugou o rosto da sobrinha. — Não está feliz por voltar para casa?

— Estou. — A inesperada manifestação de ca­rinho por parte da tia comoveu-a tanto que não conseguia conter as lágrimas. Aos soluços, chorou no ombro de Nesta como se o peso do mundo de­sabasse em suas costas.

E o mundo caíra mesmo. Robert viajava para Clairmont com a intenção de se casar. E algum cavaleiro de Windermere devia estar a caminho do Castelo Wrexton a fim de resgatá-la. E o im­piedoso conde o acorrentaria para em seguida en­forcá-lo. Samantha, portanto, seria obrigada a as­sistir à tragédia, sem poder interferir.

Ao longo dos anos aprendera que Wrexton se­guia as próprias leis. O Parlamento não tinha o direito de intervir nas propriedades saxônicas e os nobres podiam agir como bem entendessem em suas terras. Samantha supunha que tais homens recebiam suaves advertências por seus atos tirâ­nicos que, na maioria das vezes, eram ignorados.

— Pronto, querida. — Nesta acariciou as costas de Samantha e deixou-a chorar. — Eu devia ter escutado Bethan e proibido você de ir a Londres.

— Tia Bethan não queria que eu partisse?

— Nenhuma de nós queria, Samantha. Mas Owen... Oh, que escolha tínhamos?

Samantha ficou chocada com a revelação de Nesta. Fora um estorvo à família. E, após o fa­lecimento dos tios, a vida das viúvas tornou-se ainda mais penosa. Sem dúvida, não queriam ou­tra boca para alimentar.

— Oh, titia. Sinto-me tão sozinha desde que parti.

— Bem, agora não está sozinha, Samantha Tudor. — Bethan levantou-se da cadeira e se aproximou da sobrinha. — Pwll ficou um marasmo quando você partiu. As crianças sentiram sua falta.

— E os jovens também — Nesta acrescentou, surpreendendo Samantha novamente.

Nem sequer imaginou que alguém, além das crianças, pudesse sentir sua falta.

— Mas eu nunca... Wrexton teria...

— Teria o quê?

— Vocês sabem que Wrexton me odeia. Ele se vinga de minha família, punindo qualquer um que se aproxime de mim.

— Os tempos mudaram, Samantha — Bethan afirmou. — O conde não se intromete mais com o povo de Pwll. Sim, vivemos uma época difícil, mas o vilarejo ficou triste sem você.

— Oh, tia Bethan — Samantha murmurou, vol­tando a chorar. — Quando Wrexton souber que estou aqui...

— Ele não saberá, Samantha — Bethan asse­gurou-a. — Mas se isso acontecer...

— Wrexton me raptou em Windermere — ela gritou, desesperada. — Estava me trazendo ao castelo dele quando fugi!

Nesta e Bethan trocaram olhares.

— E melhor nos contar o que houve — Nesta ordenou.

 

Marcus de Grant era tão taciturno e calado quanto Robert Dryden. Após ter sido nomeado ca­valeiro por Henry V, ele prestara serviços ao rei e lutara na França sob o comando do duque de Bedford.

Retornou à Inglaterra tão logo soube da doença da mãe.

Robert notou os movimentos ágeis de Marcus, apesar da enorme massa muscular que possuía. E não lhe passou despercebida a competência com a qual manejava o armamento. De Grant caval­gava como um guerreiro, percorrendo o tortuoso terreno sem lastimar.

Em pouco tempo, Robert adquiriu confiança no jovem de Grant e considerou-se afortunado por sua companhia. Precisaria de ajuda para socorrer Samantha.

Cavalgaram horas a fio, parando somente para dar água aos cavalos. Ao entardecer atingiram a colina de onde se avistava o castelo Wrexton.

— Deixaremos os cavalos descansar antes de^ atravessarmos os portões — Robert sugeriu.

— Qual é o plano?

Na realidade, Dryden refletira sobre a estraté­gia a adotar desde que partira de Northaven. Não conseguira elaborar nada além de um plano básico de ação.

— Vamos simplesmente entrar e ver o que po­demos descobrir. Mas não o faremos com cavalos tão suados e ofegantes.

De Grant ergueu as sobrancelhas, duvidoso.

— Algo me ocorreu enquanto cavalgávamos — Robert falou. — O que sabe sobre o castelo de Wrexton?

— Não me lembro de muita coisa.

A propriedade devia ser semelhante as outras que Robert já vira. A fortaleza localizava-se no centro do legado e era composta de um grande salão, capela, cozinhas e quartos no pavimento superior.

Provavelmente, um calabouço no porão do cas­telo. Só de pensar na câmara escura e úmida Ro­bert arrepiou-se. Evitara conceber a idéia de que Samantha pudesse estar aprisionada em cavernas subterrâneas, idênticas às de Windermere onde fora torturado.

Mas, naquele momento, tinha de enfrentar a terrível possibilidade.

Precisava libertá-la. Nem sequer imaginava o pavor que ela sentira ao ser raptada e enfrentando a tempestade a bordo do navio. A despeito da força e coragem, Samantha tinha os próprios medos, os quais Robert testemunhara mais de uma vez.

Odiava Wrexton por tê-la exposto à fúria da natureza em alto-mar.

Que Deus protegesse o conde da ira de Robert, se Samantha estivesse ferida.

Analisou o vasto legado de Wrexton. O castelo encontrava-se à curva de um rio.

— Parece-me que o rio passa embaixo da for­taleza — ele comentou.

— Praticamente — Marcus confirmou. — Há uma passagem secreta na muralha por onde a água flui. Suprimentos são entregues em um pe­queno cais construído sob a fortificação.

— Há algum jeito de conseguirmos um barco?

— Não creio. Quando estive aqui, anos atrás, os meninos do povoado me levaram para ver o cais de pedra. Lembro-me de haver um portão de ferro que podia ser levantado conforme a necessidade.

Robert pressupôs que o portão devia estar abai­xado, logo, não seria uma boa opção. Sabia que a entrada do castelo era vigiada. Se ele e de Grant fossem vistos, seriam questionados.

— Precisamos de um motivo para entrar no castelo. De Grant concordou.

— Vamos recolher lenha — Robert sugeriu. — O máximo que pudermos.

— Boa idéia. — Marcus apeou. — Talvez con­sigamos surrupiar uma carroça no vilarejo.

Ambos coletaram uma considerável quantidade de toras e seguiram por uma trilha que dava aces­so ao povoado em meio ao campo. Encontraram uma carroça abandonada, onde depositaram a lenha. Após atrelar os cavalos ao vagão, prossegui­ram rumo a Wrexton.

Pouco antes de atingir o castelo, vestiram os casacos, cobrindo parcialmente os rostos e as es­padas. Percorreram então o curto trajeto. Ao atra­vessarem os portões, os vigias não fizeram ne­nhuma menção de barrá-los.

Robert estava habituado ao comportamento sor­rateiro. Sabia como se misturar, de que forma passar despercebido e parecer um homem comum. No entanto, dessa vez era complicado exercitar a paciência necessária ao intento. A vida de Sa-mantha estava em jogo. Caso não se apressasse, receava testemunhar conseqüências desastrosas.

Não permitiria que o medo o dominasse.

Os dois cavaleiros transportaram o carregamen­to de madeira pelo pátio até atingirem o castelo. Rodearam a fortaleza de pedra até as proximida­des da cozinha. Não havia ninguém por perto, mas Robert e Marcus conservaram o silêncio.

Derrubaram as toras sobre uma pilha de lenha à porta e saíram à procura de um esconderijo para os cavalos, o que não seria tarefa fácil. Ocultar dois animais tão grandes era quase impossível, ainda mais se tratando de cavalos aptos para batalhas.

Por fim, encontraram um lugar seguro atrás de um aglomerado de árvores. Amarraram os ani­mais e abandonaram a carroça. Em seguida, re­tornaram às proximidades do castelo, parando apenas para elaborar um plano rápido.

— Creio que ele a trancafiou nos porões do castelo — Marcus opinou. — Há uma manteigaria. Logo depois, estão as despensas e o cais onde o rio flui. Em tais salas, Wrexton construiu uma frágil imitação de calabouços.

— Certo — Robert murmurou, suando frio. Nos últimos dois anos vinha evitando espaços fecha­dos. Somente por Samantha ousaria enfrentar um calabouço. — Sabe como chegar lá?

— Sei. — Marcus assumiu a liderança. Passando pela cozinha, Robert seguiu-o até que entraram na manteigaria, onde desceram uma es­cada estreita. No final, havia uma fina porta de madeira. Para além daquela abertura, nenhum dos dois sabia o que iriam encontrar.

Robert cerrou o dentes e empunhou a espada. Mar­cus fez o mesmo. Teriam de caminhar na escuridão, do contrário, alertariam os vigias de Samantha. Sabendo que confrontaria os próprios medos, Robert abriu a porta e deu o primeiro passo.

A fim de passar o tempo, Samantha acomodou-se na choupana de Nesta e trabalhou com a pilha de remendos da cesta que jazia no canto da sala. Recuperou a energia sob os cuidados das tias, res-tando-lhe apenas alguns arranhões em fase de cicatrização. As terríveis horas subjugadas por Wrexton haviam se dissipado.

Tudo que sobrou foi a necessidade de se rea­daptar à vida em Pwll. A vida sem Robert, que devia estar a caminho de Clairmont para os braços da noiva.

Tentou ignorar o triste aperto no coração. Per­dera Robert para sempre. Afinal, ele não iria a Gales por motivo algum após o casamento. Clair-mont e Marguerite o manteriam ocupado. E Sa-mantha aprenderia a viver de recordações.

Largou a agulha e cruzou os braços, na tentativa de aplacar o sentimento de vazio a lhe corroer a alma. Não se renderia às lagrimas outra vez. Não serviam para nada, além de deixá-la infeliz.

Encarar a vida sem Robert, sabendo que per­tencia a Marguerite Bradley, era um tormento a superar, se possível, sem lágrimas.

Ao meio-dia o sol brilhava radiante. De repente, incapaz de tolerar a clausura da choupana, Sa-mantha desistiu da costura. Cobriu-se com um xale negro e saiu.

De cabeça erguida, caminhou pelo vilarejo, en­contrando algumas crianças pelo trajeto. Não ha­via sinal dos adultos, o que era muito gratificante. Samantha não agüentaria reprimendas naquele momento, e sabia que logo as escutaria. O povo de Pwll ficara aliviado ao vê-la partir com Owen. Com certeza, não apreciariam seu retorno.

Embora o sol a esquentasse, duvidava que vol­taria a sentir-se aquecida novamente. Depois de passar horas com as roupas molhadas, estava ávi­da pelo calor. Pretendia caminhar até os limites do povoado, onde poderia sentar em paz e sozinha.

Mas não chegou tão longe. Ao se aproximar da igreja, escutou vozes alteradas.

Um grupo de pessoas se reunia diante da igreja, cuja torre fora parcialmente restaurada. Samantha ficou curiosa, porém teve um mau pressentiento. Vistoriou a multidão e logo divisou os rostos das tias e de vários primos.

— Nós a escondemos, é isso! — o primo Rhodri exclamou.

Samantha teve certeza de que ela era o tema a discussão. Não sabia se os habitantes estavam ou não de acordo, mas houve um murmúrio geeralizado após a declaração de Rhodri.

— Ninguém precisa admitir que a viu — Nesta rgumentou, ansiosa. — Só porque ele a perdeu ão significa que virá aqui para procurá-la.

— Aonde mais ela iria? — um homem cético perguntou.

— Não importa — Berthan replicou. — Wrexton desconhece o local onde a perderam. Ela podia ter se escondido a quilômetros de distância daqui.

— Meus filhos já foram à floresta para garantir que os homens de Wrexton não encontrem ne­nhum rastro até Pwll — Nesta informou, sur­preendendo Samantha, que não fazia idéia da ati­tude solidária dos primos.

— Guardaremos segredo e Wrexton nunca sa­berá — Rhodri disse.

— Além do mais, ela é uma de nós! — um dos habitantes argüiu. — Gostando ou não, temos de cuidar dos nossos!

— Não podemos abandonar a jovem — o procu­rador de Pwll aconselhou. — Nem quando o pai participou da grande rebelião, nós fizemos isso.

A discussão prosseguiu, mas Samantha não pôde deduzir a que consenso chegariam. Não sabia que causaria tamanho problema ao voltar para casa. Sentiu as lágrimas ofuscarem-lhe a visão quando percebeu que não era querida. Mesmo que as tias, os primos e o procurador conseguissem convencer o povo a manter segredo, sua presença seria uma ameaça. Não poderia ficar lá.

Infeliz e desamparada, sem ânimo para comunicar aos outros que partiria, Samantha afastou-se do gru­po. Viu-se como uma pobre menina, sem ter para onde ir e ninguém com quem contar. Estava só no mundo e, dessa vez, era obrigada a fugir a fim de evitar qualquer desgraça ao povo de Pwll.

— Oh, cuidado! — um homem de barba grisalha gritou do torso de uma mula. Ele encontrava-se bem atrás de Samantha quando esta virou para correr. — Está com muita pressa, jovem.

Incapaz de falar, Samantha apenas fitou-o pe­sarosa e recuou. Seu único desejo era escapar da­queles que não a desejavam.

— Saudações, mascate — o procurador Powicke cumprimentou-o quando as pessoas começaram a se dispersar.

— Saudações, povo de... Pwll, estou certo? — o ancião perguntou, enquanto apeava. Soltou os pa­cotes que amarrara à sela. — Trouxe ervas finas e poções de minha última viagem...

Samantha, sem disposição para escutá-lo, es-gueirou-se entre os habitantes, mas foi detida pe­las palavras do mascate.

— Trouxe consolida de York, lavanda das coli­nas de Cumbrian e dedaleira do Castelo Wrexton. Quem de vocês tem edema?

Aflita, Samantha voltou-se ao mascate.

— Tem notícias do Castelo Wrexton? — perguntou. O bom homem franziu o cenho.

— Oh, é uma triste história. — Conte-nos! — o povo pediu, ávido por novidades. — Eu contarei enquanto molho a garganta. — O piercador recolheu os pacotes e dirigiu-se à cervejaria. O homem sentou-se à mesa do estabelecimento e foi logo rodeado por um grande número de pes­soas ansiosas.

— O conde aprisionou dois homens — o mascate relatou após tomar o primeiro gole. — Dizem ser cavaleiros da Inglaterra.

— Quem são eles? — Samantha indagou, cal­culando as possibilidades. Se Windermere enviara cavaleiros para resgatá-la e foram capturados...

— Não me disseram os nomes, mas parece que o conde já esperava esses vilões.

— Vilões! — alguns exclamaram. Mencionar vilões sempre indicava o início de uma história emocionante.

— Isso é certo — o ancião reiterou. — Os dois apareceram disfarçados como mercadores de le­nha. Mas, na verdade, queriam o ouro do conde.

Samantha respirou aliviada. Os cavaleiros de Windermere não eram gatunos. Como o fato não mais a interessasse, ela caminhou em direção à porta enquanto o mascate narrava o acontecido.

— Eles atravessaram os portões do castelo, mas os guardas estavam atentos a qualquer movimento suspeito — o ancião contou. — O conde sabia que seu legado seria invadido e ordenou aos vigias que procurassem um homem com um tapa-olho preto. Gelada, Samantha se deteve. A cervejaria co­meçou a rodar e ela fechou os olhos.

— Wrexton os prendeu e os levou ao pátio para surrá-los diante do povo — o itinerante continuou.

— Pelo que eu soube, serão enforcados amanhã.

— Jesus... — Samantha levou as mãos aos lábios. Correu porta afora e só parou quando chegou à choupana de Nesta.

— Meu Deus amado — Samantha murmurou, fitando a tia que, ao ver a reação da sobrinha, se­guiu-a até a casa. — É Robert! Oh, por que ele veio atrás de mim? Devia estar seguro em Windermere...

Mas Robert Dryden era um homem movido pela honra e um excelente cavaleiro. Claro que viria socorrê-la.

— Madoc — ela chamou um dos primos, en­quanto enxugava as lágrimas. — Preciso que me empreste suas roupas.

— O que pretende fazer, Samantha uerch Marudedd? — Nesta indagou, preocupada.

— Tenho de ir a Wrexton — respondeu, vascu­lhando o baú de roupas com o primo.

— Mas não pode ir sozinha — Nesta protestou.

— O conde vai...

— Nem vai saber que estou lá.

— Oh, Samantha, como pode...

— Vou me vestir como Madoc — explicou. —

Ninguém irá desconfiar que sou mulher, muito menos que sou Samantha Tudor.

Nesta meneou a cabeça, apreensiva. Samantha a abraçou.

— Tenho de fazer isso, tia. Não percebe? Quan­do tentei matar Wrexton pelo que fez a Idwal e Dafydd, não tive coragem. Eu me tornaria tão de­moníaca quanto ele é. Contudo, sei que posso sal­var aqueles homens. Não deixarei Robert e seu companheiro serem enforcados por minha causa.

 

Depois de muito refletir, Samantha decidiu ir sozinha ao castelo de Wrexton. Não seria justo colocar em risco a vida de seus amigos para salvar Robert que já estava nas mãos impiedosas de Edmund Sandborn.

Vestiu as roupas do primo, prendeu os cabelos e colocou um chapéu, escondendo qualquer sinal de feminilidade. Por precaução, sujou um pouco o rosto com terra antes de subir as colinas.

Optou pelo caminho mais alto para que pudesse ter uma boa visão do trajeto e tirar vantagem disso. Enquanto se dirigia ao leste, divisou uma tropa de cavaleiros cavalgando pela estrada. Nin­guém notou-a e, por sorte, havia árvores suficien­tes para ocultá-la. Portanto, passou despercebida e pôde reparar que os cavaleiros de Wrexton ru­mavam a Pwll.

O conde sem dúvida deduzira que ela, após a fuga, fora pedir abrigo na aldeia onde havia sido criada.

Ficou dividida entre voltar a Pwll e alertar o povo ou continuar sua trajetória. Por fim, concluiu que os habitantes do vilarejo não a delatariam.

Afinal, fora isso que a família propusera. Saman­tha então resolveu prosseguir.

Retornar a Pwll de nada adiantaria. Ao contrá­rio, correria o risco de ser capturada novamente e levada a Wrexton com nova escolta. Como pri­sioneira não poderia ajudar Robert.

Se tudo corresse bem em Pwll, os cavaleiros seriam enviados a vasculhar a região, ficando al­gum tempo ausentes do castelo. E ela teria mais chance de resgatar Robert do desprezível conde.

Seria preciso percorrer vários quilômetros até o legado de Wrexton. Samantha seguiu as instruções do primo, Rhodri, que certa vez visitara o castelo. No entanto, ela desviou o curso e só notou o engano quando atingiu o topo de uma montanha, de onde enxergava o vale em toda a sua extensão. Ao visua­lizar a majestosa fortaleza, notou o afluente que pas­sava ao longo da muralha. O rio parecia fluir sob o castelo, mas não pôde ter certeza aquela distância.

Corrigindo a rota mais uma vez, ela seguiu a direção norte.

Não tinha idéia do que fazer tão logo atingisse o destino desejado, somente pretendia descobrir onde Robert havia sido aprisionado e libertá-lo. Doía-lhe o coração imaginá-lo encarcerado em um calabouço, como acontecera em Windermere.

Pelo que sabia, ele estava enjaulado nos sub­terrâneos da fortaleza, sendo submetido aos mes­mos horrores que experimentara dois anos atrás.

Samantha não suportaria tamanha crueldade. De alguma maneira, iria salvá-lo.

Quando aproximou-se do castelo, embrenhou-se entre as pessoas que circulavam pelo farto comércio do povoado. Mas ficou preocupada. Se Wrexton an­tecipara a presença de Robert, não teria alertado os guardas quanto a possível chegada de Samantha?

Andando tal qual um garoto pela cidade e ao longo da muralha do castelo, ela olhava ocasio­nalmente os vigias no parapeito. Tinha de entrar sem chamar atenção para si. Mas como?

Tentou se mover como se procurasse outra criança, assim ninguém a notaria, caso conseguis­se uma brecha para adentrar o castelo. Porém, ignorava de que forma o faria.

De repente, ela teve uma idéia. Entre os ar­bustos que bordejavam o rio, havia algo que lhe permitiria o ingresso no castelo Wrexton.

Era uma linda bola de couro.

Samantha olhou ao redor. Muitas crianças en­contravam-se por perto e seriam facilmente persua­didas a jogar, caso se interessassem. Pegou a bola, colocou as mãos nas costas e começou a chutar o couro, empreendendo alguns malabarismos. Trata­va-se de uma versão do jogo que aprendera em Pwll. Logo, Samantha era muito boa nas manobras.

Continuou a brincar com a bola e atravessou a ponte que dava acesso aos portões do castelo. Mos­trou considerável talento, atraindo a audiência de vários garotos.

Um menino juntou-se a ela, e ambos disputaram habilidades. Então mais dois vieram e, em pouco tempo, formaram um grupo numeroso o suficiente para organizar um jogo.

Aproximaram-se dos portões, onde o espaço era i   mais amplo. Determinaram as traves e os times. Sa­mantha, apontada como "o mais velho" iniciou a par­tida, chutando a bola em direção à trave. Um jogador . do time adversário interceptou-a e o jogo começou.

Ela estava dentro do castelo! Samantha contava os pontos da animada par­tida, tornando-se a favorita entre os novos amigos. Os meninos adoraram o jogo de bola que requeria apenas o uso dos pés para direcioná-la à trave. Ela jogou com justiça, passando a bola e incluindo os menores que tinham ainda pouca experiência. Crianças eram inocentes. Samantha apostou nesse fato quando explicou aos meninos quem era e de onde viera. Nem por um minuto, duvidaram se tratar de um órfão chamado Madoc que deixara a aldeia galesa para servir ao conde de Wrexton. Eles acharam uma grande aventura. Felizmente, vários meninos   aproveitaram a chance para se exibir ante o novo companheiro. Samantha conseguiu explorar cada canto do pátio I do castelo e ouvir as histórias acerca dos dois pri-p sioneiros que foram trancafiados na torre mais alta da fortaleza.

Foi um alívio saber que Robert não se encontrava acorrentado em um sombrio calabouço, mas se perguntou como o tiraria da torre. A prisão era muito bem vigiada pelos guardas de Wrexton e Samantha não imaginava de que maneira pas­saria por eles.

Ergueu o rosto e fitou a imensa torre.

Teria de invadir o lugar, desarmar os guardas e libertar Robert, sem ser pega por Wrexton.

Seria impossível, concluiu, agora desanimada. Como chegaria até lá sozinha para soltar Robert?

Recusando-se a sucumbir, ela se obrigou a ava­liar cada possibilidade. Infelizmente eram poucas.

Os meninos pararam no poço para tomar água e um deles, Robby, sugeriu que fossem pedir um lan­che apetitoso a sua mãe, a cozinheira de Wrexton.

— Posso ir também? — Samantha perguntou, oferecendo uma caneca de água a Robby.

— Claro — o menino respondeu, liderando o grupo em direção à cozinha. — Ela só pode nos oferecer um pedaço de pão, mas os meninos vão gostar. Minha mãe cozinha muito bem.

Pouco importava se a mãe do menino possuía ou não talento culinário. Samantha só queria ga­nhar livre acesso à fortaleza e investigar o lugar. Talvez não conseguisse esgueirar-se pelas galerias de pedra, mas valia a pena tentar, desde que fosse cautelosa.

A cozinha estava quente. Porém parecia-lhe o paraíso, pois não se alimentava desde a hora em que deixara Pwll.

— Onde está Raulf? — uma das mulheres perguntou.

Uma enorme quantidade de assados encontra­va-se dentro do forno no centro da cozinha. Uma mulher roliça virou as carnes e Samantha sentiu sua boca encher-se de água ante o delicioso aroma.

Os servos entravam e saíam da cozinha para agilizar a ceia. Samantha ficou próxima a Robby.

— Raulf já foi, mãe — o menino respondeu, entregando uma maçã a Samantha, escondido da mãe. — Tem biscoito para meus amigos?

— Vá embora, Robby. Estou ocupada — a mãe resmungou, colocando uma moringa e dois peda­ços de pão em uma bandeja. — Agora tenho de assumir o serviço de Raulf.

— Podemos ajudá-la, mãe — Robby ofereceu. — Basta dizer o que precisa.

A mulher entregou a moringa ao filho, pediu-lhe para enchê-la de água e mandou Samantha à despensa para pegar cerveja.

Quando os dois "meninos" voltaram, a mãe de Robby continuava atarefada. Tirou uma mecha de cabelos do rosto e pegou a bandeja agora pron­ta. Quando aproximou-se do filho, sussurrou algo ao menino. Robby pegou a bandeja e dirigiu-se à porta. Então, parou e fitou Samantha.

— Venha! — murmurou.

Ela não esperou pelo segundo convite. Ambos saíram da cozinha e circundaram a manteigaria, onde a construção de pedra jazia sobre o afluente. Samantha escutava a água fluir e imaginou para que local a corrente seguia.

— Aonde estamos indo? — ela perguntou, en­quanto acompanhava o menino por uma escada.

Robby pediu que ficasse calada e começou a des­cer a longa escada.

 

Robert sentou-se no chão frio e observou Marcus dormir. A minúscula cela não passava de um pe­queno depósito, fechado por uma porta de madeira e uma tranca de aço. Não havia janelas, o que tornava o espaço abafado. O ar exalava odor de suor misturado à cerveja. Sentia-se grato por não cheirar à sujeira e decomposição como os subter­râneos de Windermere.

Pelo menos uma tocha iluminava o cubículo. Robert não suportaria a completa escuridão. So­mente isso o fazia agüentar o confinamento entre as paredes de pedra e o teto baixo.

O pior era não ter notícias de Samantha. Ainda não a tinha visto, tampouco Wrexton a mencio­nara. O conde, entretanto, pareceu satisfeito por capturar os dois heróis de Samantha Tudor.

Robert suspeitava de que a história dos meninos galeses iria se repetir.

Um homem insano como Wrexton só conhecia um estratagema, e estava disposto a aplicá-lo na primeira oportunidade.

Após as informações que Samantha dera acerca de Wrexton, Robert devia ter previsto a embos­cada. Era óbvio que Edmund Sandborn sabia que alguém apareceria para socorrê-la, até mesmo an­tecipara a intenção de Dryden. O conde colocara os guardas atentos a qualquer um que usasse tapa-olho preto.

Agora ele e de Grant encontravam-se tranca­fiados naquela fétida sala da qual não poderiam fugir, muito menos comunicar-se com Samantha.

Onde ela estava? Wrexton a teria prendido na torre só para soltá-la na hora de executar seus salvadores? O que aquele homem aguardava?

Robert precisava escapar com de Grant antes que Wrexton tivesse a chance de repetir as atro­cidades e eliminasse Samantha.

Mas como o faria?

Um dos olhos de Marcus começava a inchar e o outro parecia tão debilitado quanto o primeiro. Ele recebera muitas pancadas no torso e Robert acre­ditava que algumas costelas do jovem deviam estar quebradas, embora fosse um soldado bem treinado e forte. Iria se recuperar. A questão era: quando?

As costas de Robert e o ferimento do ombro doíam demais. Os pontos do braço se soltaram, mas era o menor dos problemas. Não tinha certeza se conseguiria empunhar a espada, mesmo que houvesse a possibilidade de obter uma.

Formavam uma dupla digna de pena.

Ruídos abafados surgiram de repente.

— Marcus. — Robert abaixou-se ao lado do com­panheiro e o sacudiu.

De Grant tentou abrir os olhos em vão. Gemeu e se obrigou a sentar, encostado a um dos barris enfileirados na parede da cela.

— Alguém está vindo — Robert murmurou. — Acha que consegue...

Uma chave penetrou na tranca e a porta es­cancarou-se. Perderam a oportunidade de agir.

— Afastem-se! — o carcereiro ordenou quando um menino entrou na cela, carregando uma bandeja de pão e água. Um arqueiro vinha logo atrás com a flecha apontada na direção dos prisioneiros.

Dryden permaneceu parado, sabendo que o me­nor movimento poderia se fatal a ele e a Marcus. No entanto, algo chamou sua atenção. Reparou que um outro garoto viera espiar os prisioneiros.

Então, voltou a examiná-lo com mais cuidado.

Era Samantha!

 

Jesus, Maria e José Robert não estava na torre, mas nos porões do castelo! E não havia nada que Samantha pudesse fazer. Não conseguiria render o carcereiro, tampouco o outro guarda.

Acompanhou Robby à porta da cela e alertara Robert de sua presença. Mas e agora? Ao menos seu amado relaxaria um pouco sabendo que Sa­mantha não se encontrava nas garras de Wrexton.

No entanto, Robert continuava preso!

Com os olhos, ela o avaliou, notando os novos ferimentos e o machucado no braço. O estado dele era lastimável. A barba crescia em seu rosto e, como perdera o tapa-olho, a cicatriz achava-se à mostra. Amou-o ainda mais.

De alguma forma, iria elaborar um meio de tirá-lo do cárcere junto com o companheiro. Fitando-o no olho, ela mimicou as seguinte palavras:

— Em breve. Estejam prontos!

Alheia ao fato de ele ter entendido ou não, Sa­mantha pegou a bandeja vazia das mãos e Robby. O carcereiro empurrou-a. Então, o menino, ela e os guardas percorreram a estreita passagem.

Discretamente, estudou os arredores na tenta­tiva de esquematizar um plano de fuga. Para além da sala onde Robert e o companheiro estavam presos, havia uma pequena escada que , dava acesso ao rio. Sob a luminosidade do sol que penetrava pela abertura do túnel, Samantha divisou um barco atracado ao cais. Aquela embarcação representava a única ma­neira de retornar à prisão, deduziu, sem ver vista. Porém precisava de mais informações.

Para onde ia o túnel? Ela teria de nadar a fim de retornar ao cárcere? Precisava dar uma boa olhada no cais subterrâneo.

Apostando naquela oportunidade única, Sa­mantha fingiu tropeçar e derrubou a bandeja, dei­xando-a rolar pelos degraus da escada.

— Desculpem-me! — exclamou. — Vou pegar a bandeja.

Devagar, desceu os degraus e examinou o local enquanto recolhia a bandeja. Depois, voltou depressa, ignorando as queixas dos guardas por sua falta de jeito.

— Continue andando — Robby sussurrou e empurrou-a. — Você não teria vindo comigo se eu soubesse que era tão atrapalhado.

— Sinto muito — Samantha murmurou quando o carcereiro destrancou a porta e colocou os dois para fora. — Foi sem querer — acrescentou, petu­lante o bastante para se assemelhar a um garoto.

O sol começava a se pôr. Em poucas horas o entardecer banharia o legado. Quando Wrexton pretendia agir? Na manhã seguinte, tal qual afir­mara o mercador de ervas? Ou naquela mesma noite? Samantha tinha o pressentimento de que o tempo era escasso. Robert e o outro cavaleiro precisavam escapar o mais rápido possível.

Mas a condição física de ambos era desastrosa. Ao perceber os novos ferimentos, Samantha fora obrigada a reprimir um grito de horror e a vontade súbita de jogar-se nos braços de Robert, a despeito dos guardas. Com um esforço sobre-humano ela mantivera a compostura.

O outro prisioneiro estava em pior estado que Robert. Talvez o homem não conseguisse andar, o que dificultaria a fuga.

Samantha cerrou os lábios e considerou o pro­blema que enfrentaria. Era óbvio que os dois não agüentariam fugir a pé. Mesmo que fossem capa­zes de correr, Pwll encontrava-se a quilômetros de distância. E o vilarejo seria o primeiro lugar no qual Wrexton iria procurá-los. Tão logo Sa­mantha os libertasse, teriam de tomar qualquer direção, menos oeste.

Precisava de cavalos e armas. Caso os encon­trasse, como os roubaria? Os obstáculos pareciam insuperáveis. Mas Samantha não desistiria. Ne­cessitava de muita coragem. A vida de Robert de­pendia disso.

Samantha cutucou Robby e sugeriu:

— Vamos chamar os outros e jogar pedras no rio.

A beira do afluente, passou a maior parte do tempo examinando a fortaleza e inquirindo os jovens colegas até descobrir a localização da entrada do túnel. Não havia meios de atingi-lo sem nadar, e isso seria um enorme desafio. Samantha nadava muito bem, contudo, além da água ser gelada, a correnteza do rio era forte. Teria sorte se não con­gelasse antes de cruzar a grande extensão de água. Alcançando o túnel, ela teria de render os guardas e rezar para que não houvesse mais homens à es­preita. Em seguida, levaria Robert e o outro cavaleiro até o barco, e remariam em direção ao portão que Robby mencionara. A partir daí, atravessariam o rio a fim de atracar no banco de areia mais distante.

Uma hora mais tarde, Samantha achava-se so­zinha no estábulo, vistoriando os cavalos. Reco­nheceu a montaria de Robert, assim como vários animais de igual porte. No entanto, não poderia retirar os cavalos das baias sem alertar o vigia.

— O que faz aqui? — um homem berrou, espantando-a.

Correu porta afora, antes que fosse agarrada pelo malfeitor. Nos fundos no estábulo, Samantha sentou-se na terra suja e abraçou os joelhos para conter a tremedeira.

Lágrimas de desespero de nada ajudariam. O que faria? A primeira parte do plano estava esquematizada, mas de nada valeria se não garantisse um transporte assim que atingissem a margem do rio. Tinha de pensar em uma maneira de obter dois cavalos no mínimo.

Do bolso ela tirou a maçã que Robby lhe dera e limpou-a na túnica. Precisava se acalmar para refletir.

Mordeu a fruta e se pôs a pensar. Robert e o companheiro precisavam de montarias. Não po­deriam permanecer no barco e flutuar rio abaixo porque o afluente passava diante do castelo. Se­riam descobertos em questão de minutos.

Estava encurralada. Voltara à estaca zero, com Robert e o amigo ainda trancafiados naquele depó­sito, cujo único acesso era o rio. E a passagem podia estar bloqueada, caso o portão estivesse abaixado.

Suspirou profundamente. Terminou a maçã e aproximou-se de um cavalo atrelado a uma car­roça. Ofereceu-lhe o miolo da maçã e afagou a crina do animal.

Uma nova idéia surgiu-lhe à mente. Percebeu que precisava de outro divertimento para ter su­cesso. Vasculhou os arredores para verificar se os meninos estavam por perto. Talvez gostassem de mais uma partida de bola antes do anoitecer.

 

Foi necessário um imenso autocontrole para Ro­bert não esmurrar o carcereiro que colocou as mãos imundas em Samantha. Somente aquela flecha letal o impedira de agarrá-la e protegê-la entre os braços.

Ela o avisara para estar preparado. Robert não sabia por que, mas não tinha intenção de ser pego desprevenido outra vez. Embora houvesse pouco a fazer naquele espaço confinado, precisava agir.

Começou a arrastar os barris, formando uma bar­ricada diante da porta. A maioria deles estava cheia de suprimentos, mas Robert conseguiu remover um barril de cada vez, rolando-o pelo assoalho frio.

— Marcus. — Tentou acordar o homem nova­mente. — Tem de mudar de posição.

De Grant ergueu o rosto e notou o que Robert pretendia.

— Vou ajudá-lo — murmurou, levantando-se.

— Duvido que consiga. Mas é bem-vindo para tentar.

Juntos formaram uma parede de barris em fren­te à porta. Quando os guardas aparecessem, Ro­bert e Marcus estariam protegidos e poderiam até submeter os vigias.

Munido de esperança, ele esmurrou a porta e chamou o carcereiro.

— Veja — Marcus disse em sua posição atrás da barricada.

Aproximando-se, Robert divisou o monte de pó branco que caía de um buraco no barril. Pegou um punhado e provou.

— É sal.

— A sensação não é muito agradável quando o temos... nos olhos. — Marcus apanhou uma boa quantidade de sal.

Quase sorrindo, Dryden retornou à porta e re­começou a esmurrá-la. Gritou impropérios com o intuito de atrair os guardas, enquanto Marcus se posicionava contra a parede, ao lado da porta.

A barulheira na prisão de Robert era a opor­tunidade de que Samantha necessitava para sair da água sem ser notada. Felizmente, o portão es­tava levantado e o barco continuava atracado. Havia pouca luz, mas o bastante para ser vista ao passar em direção à cela. Ela se agachou no cais e prendeu a respiração, sabendo que precisava agir.

Encharcada e trêmula de frio, Samantha se levan­tou e desatou o nó das cordas que amarravam o barco. Tinha de estar preparada para fugir sem demora, assim que Robert e o outro estivessem a bordo.

Pegou um dos remos e esgueirou-se entre as sombras do cais. Subiu os degraus, escutando a balbúrdia que ocorria na cela de Robert.

— Fique quieto, seu verme! — o carcereiro re­clamou ao se aproximar da porta. O arqueiro vi­nha logo atrás, tal qual Samantha imaginara.

O carcereiro destrancou a porta e a escancarou. Ao mesmo tempo, Samantha precipitou-se em si­lêncio, carregando o remo.

Uma total confusão se instalou. O carcereiro soltou um grito desesperado e se curvou. Saman­tha aproveitou a chance e atingiu a nuca do ar­queiro com o remo. Afastou-se quando o homem rolou desmaiado pelos degraus até o cais.

Robert desarmou o carcereiro e tomou-lhe a es­pada, enquanto o outro prisioneiro, gemendo de dor, saía da cela com uma tocha.

— Samantha Tudor? — ele perguntou, sorrindo apesar do rosto machucado.

Ela assentiu, grata pela luz difusa do anoitecer. Havia deixado a túnica e a calça à beira do rio antes de atravessá-lo, e usava apenas a vestimen­ta de linho de Madoc.

— Temos de correr. Consegue andar?

— Para fugir daqui? É evidente — ele retrucou.

— Sou Marcus de Grant. Sua aparição aconteceu no momento exato.

— Samantha! — Robert exclamou.

Em um segundo, jogou-se nos braços dele e nada mais importava, nem as roupas rasgadas ou o áspero roçar da barba.

Somente as batidas do coração de Robert ti­nham valor naquele instante. Sentir a respiração ofegante e os poderosos braços ao redor dela pa­recia o paraíso.

E, acima de tudo, estavam prestes a fugir da­quele inferno.

— Precisamos ir — Samantha sussurrou, fitando o rosto do homem que amava. — Rápido, Robert.

Ele enxugou as lágrimas que Samantha nem sequer notara, e abraçou-a.

— Mostre-nos como — Robert pediu e beijou-lhe a testa.

Logo em seguida, um reboliço tomou conta da passagem de pedra, mostrando-lhes claramente que o tempo era limitado.

 

Os três precipitaram-se ao cais com a velocidade de um relâmpago e sem dar importância aos graves ferimentos. Marcus pulou no barco logo atrás de Samantha. Sem ques­tionar, Robert jogou a espada roubada no chão do bote. Em seguida, puxou as cordas e juntou-se aos outros.

— Quando passarmos pelo portão, você terá de apagar a tocha — Samantha sussurrou a Marcus, enquanto posicionava o remo. — Dessa forma, não seremos visíveis àqueles que montam guarda no parapeito do castelo.

— Quando eles despontarem no cais, você joga a tocha no rio — Robert aconselhou.

Os homens de Wrexton logo os alcançariam. Ti­nham de remar com extrema agilidade, pois não ha­veria dúvidas quanto à rota de fuga dos prisioneiros. Era evidente que a única saída seria pelo rio.

— A corrente nos fará passar pelo portão — Samantha informou, equilibrando-se no bote. — Depois, teremos de remar contra ela para atingir o lado norte.

— Marcus, fique abaixado. — Robert alternou os movimentos com Samantha, deixando-a liderar, uma vez que somente ela sabia a direção que te­riam de tomar.

Escutaram vozes ao se aproximarem da saída do túnel, e Marcus apagou a tocha. De súbito, viram-se mergulhados na escuridão.

— Continue a remar em linha reta — Samantha murmurou.

O barco estava no centro do canal e não havia possibilidade de colidir com as paredes. Samantha e Robert remavam sem parar, na tentativa de manter o bote em curso. Marcus encolheu-se no fundo da embarcação.

Segundos depois, estavam em rio aberto, tendo a imensa sombra da fortaleza de Wrexton sobre eles. Samantha tremia, mas não de frio. Na ver­dade, receava que fossem capturados. Até aquele momento haviam tido sorte. Muita sorte. O alarme soou.

Desesperada, ela acelerou o ritmo acompanhada por Robert. Então, olhou para trás. Apavorada, percebeu que seriam alvos fáceis aos arqueiros que se posicionavam no parapeito do castelo.

— Não pare, querida — Robert disse, embora exaurido. Toda sua energia se concentrava em re­mar. — Eles não nos verão a tempo.

A correnteza era forte e parecia comandá-los. Samantha esperava que conseguissem controlar o barco, mas era impossível. Não possuía expe­riência em navegação, e os ferimentos de Robert o impediam de dispor mais vitalidade. Cada mo­vimento representava excesso de esforço. Podia ouvi-lo gemer de dor.

No fundo, gostaria de dizer-lhe para descansar, mas tal sugestão seria um verdadeiro desastre. Enquanto ele pudesse remar, não havia escolha a não ser prosseguir.

— Deixe-me substituí-lo, Robert — Marcus pediu.

— Não. Estamos quase fora do alcance das fle­chas. Não há tempo a perder.

Samantha percebeu que estava correto. Apesar de os arqueiros de Wrexton não estarem prontos para atirar, tinham certeza de que os prisioneiros atingiriam a beira do rio. Sem dúvida, haveria em breve uma tropa de soldados percorrendo o terreno ao longo da margem para surpreendê-los.

Precisavam se apressar.

Quando o barco alcançou o banco de areia, Sa­mantha desembarcou e segurou-o para que Robert e Marcus pulassem.

— Samantha — Robert murmurou, deitando-se na relva para recuperar o fôlego. — Seu esquema de fuga termina aqui?

— Não — ela respondeu, vistoriando os arredores. Também estava exausta e queria ter tempo para descansar com os dois. Infelizmente, era impossível. — Deixei um cavalo e uma carroça por aqui.

— Então, solte o barco no rio para que a cor­renteza o leve.

— Boa idéia — Marcus resmungou, buscando o que lhe restava de forças para caminhar.

Samantha seguiu a sugestão de Robert. Talvez os homens de Wrexton achassem o barco e assu­missem que os prisioneiros haviam se afogado. Dessa forma não existiria nenhuma evidência de que atingiram a encosta do rio.

Ao retornar, Samantha encontrou Marcus ador­mecido ou inconsciente. Robert estava acordado. Ela se ajoelhou, temendo tocá-lo e agravar o ferimento. Mas se sentia desesperada para estar perto dele, ainda que por um instante, antes de continuarem.

— Doce Samantha. — Robert puxou-a para si, a despeito da frágil condição.

Os lábios se encontraram em um beijo que dis­solveu qualquer apreensão. Ele apertou-a entre os braços e Samantha tocou-lhe o rosto. Suspirou quando Robert aprofundou o gesto amoroso, em­bora soubesse que tinham de parar. Precisavam afastar-se da costa o mais breve possível.

— Pensei que a havia perdido — Robert confessou. Contudo, Samantha não pensaria no fato de já o ter perdido. Para Marguerite.

— Também imaginei que era meu fim — sussur­rou, entre beijos afoitos. — No navio... a tempesta­de... Mas consegui fugir. — Se ao menos pudessem se esconder da realidade, de Wrexton! Mas Saman­tha sabia ser apenas uma fantasia tola. — Robertl

— Eu sei, amor. — Ele se obrigou a sentar-se. — Precisamos nos mexer.

— Pode acordar Marcus enquanto procuro a car­roça e o cavalo?

— Claro. Quando você voltar, estaremos prontos para partir. — Ele beijou-a mais uma vez, antes de ajudar de Grant.

Esfregando os braços para se aquecer um pouco, Samantha saiu à procura das pistas que ela própria deixara para encontrar o único meio de transporte.

Havia planejado cada passo cuidadosamente an­tes de nadar até o castelo. Tinha retirado a túnica e a calça, sabendo que precisaria de roupas secas caso chegassem àquele ponto. Ciente de que os ho­mens seriam incapazes de caminhar, ela deixara a carroça perto do local onde desembarcariam.

Após amarar o cavalo em uma parte segura da floresta, caminhara ao longo do rio até a altura em que não precisaria lutar contra a correnteza, a qual a levaria diretamente ao portão subterrâ­neo do castelo.

Até agora, tudo corria como o planejado. Porém, a escuridão da noite dificultava-lhe a visão. Não conseguia enxergar o aglomerado de carvalhos onde amarrara o cavalo. Recuou e, através da cur­va do rio, calculou sua posição. Logo percebeu que encontraria a carroça um pouco acima do local que atracaram. Samantha percorreu a distância.

E orou para que não estivesse enganada.

Seus pés ardiam quando aproximou-se do grupo de carvalhos. Tremia de frio e medo, mas não se entregaria à exaustão. O nervosismo lhe daria for­ças para prosseguir.

Encontrou o cavalo no local exato. Apressada, tirou a roupa molhada e vestiu a túnica, a calça e os sapatos secos. Sentiu-se melhor no mesmo instante.

Desamarrou o cavalo, subiu na carroça e voltou para buscar Robert e Marcus.

Tão logo desceu a fim de ajudá-los, Samantha notou que Robert estava sorrindo. E Marcus também.

Não podia ser verdade, pensou. A situação era precária demais para rir, e tinha certeza de que Robert não acharia graça caso fossem pegos. De repente, ela escutou um gemido de dor.

— Meu corpo inteiro dói quando dou risada — Marcus comentou quase feliz.

— Não vejo graça alguma! — Samantha excla­mou. — Temos pouquíssimo tempo como vocês dois devem saber!

— É a ironia, Samantha — Robert explicou. — Esta carroça é a mesma que roubamos para entrar no castelo de Wrexton.

— E agora ela vai nos tirar daqui! — Marcus falou, com entusiasmo.

Vencida, Samantha começou a chorar e sorrir ao mesmo tempo.

Robert sentou-se ao lado dela na carroça e a abraçou.

— Calma, amor — ele sussurrou. — Você se es­forçou muito para nos ajudar. Nenhuma outra mu­lher do reino teria feito o mesmo. Tudo ficará bem.

— Vamos logo — ela alertou, envergonhada por render-se ao desespero. Fora forte até aquele ins­tante. Não era hora de esmorecer.

— É sua vez de descansar, querida — Robert avisou, pegando as rédeas. — Segure-se em mim. Vou tentar nos tirar daqui.

Abraçando-a pela cintura, ele atiçou o cavalo e o conduziu em meio à obscura floresta. Rezou para que o velho animal não pisasse em um buraco ou os levasse de encontro a uma árvore.

Nem sequer sonhava como Samantha consegui­ra resgatá-los. Exceto o fato de que ela atravessara o rio a nado para adentrar à pequena prisão do castelo, Robert ignorava o resto.

Era realmente uma mulher extraordinária.

— Não planejei para onde iríamos depois que eu libertasse vocês. Concentrei-me apenas na carroça.

— Está tudo bem, Samantha. Pelo menos, agora temos uma chance. Seguiremos pelo norte e pro­curaremos um abrigo.

— Conhece esta região, Robert?

— Somente o que eu e de Grant vimos quando chegamos. O que não é muito. Estávamos ansiosos para invadir o castelo e encontrá-la.

— Oh, Robert... Nunca estive lá. Depois que o navio de Wrexton aportou, fui amarrada e jogada no vagão de uma carroça. Viajamos durante horas, mas consegui escapar. Na escuridão. Escutei...

— O que você escutou?

— Sua voz! — ela revelou, ciente de que devia parecer tolice. — Você me mandava continuar fugindo.

— Talvez fosse mesmo minha voz. — Robert meneou a cabeça. — Não parei de pensar em você nem por um segundo, Samantha. — Então, ele a beijou com carinho.

— Lembro-me de ter caído ribanceira abaixo.

Depois acordei na manhã seguinte quando dois ho­mens de Pwll me encontraram. — Samantha relatou a chegada no vilarejo e como descobrira que Robert estava aprisionado. — Eu tinha de fazer tudo' que estivesse ao meu alcance para ajudá-lo.

— Samantha — Robert a interrompeu. — Sabe aonde esta floresta vai desembocar? Ela continua ou termina em algum precipício?

— Não sei, Robert. — Ela olhou ao redor com esperança de divisar alguma saída.

— Haverá patrulhas nos seguindo, amor. Wrex­ton sabe que temos apenas duas direções a tomar: ao longo da margem do rio, o que nos deixaria à vista, ou pela floresta.

— Abandonem a carroça — Marcus opinou. — Desatrelem o cavalo e deixem-no vagar a esmo — acrescentou. — Teremos mais chance de fugir nos escondendo no mato.

— Pode ser — Robert concordou, pulando da carroça. Ajudou Samantha a descer e depois soltou o cavalo.

Marcus foi capaz de se mover sozinho e entregou a espada a Robert.

— Que direção? — Samantha perguntou.

— Por ali — Robert escolheu.

Ele embrenhou-se pelo matagal, ajudando de Grant. Samantha postou-se do outro lado, susten­tando Marcus.

— Há uma elevação logo à frente, a leste? — Robert indagou.

— Creio que sim — ela retrucou, enxergando melhor. — Acha que conseguiremos subir? — De sú­bito, notou a vantagem de estar acima dos persegui­dores. Os cavaleiros de Wrexton ainda demorariam a alcançá-los. Portanto, tinham algum tempo.

— Vamos tentar — Robert disse. — Marcus, pode fazer isso?

Ofegante, de Grant não desperdiçou fôlego com palavras, somente assentiu.

A escalada foi árdua. A elevação da colina era íngreme e o solo, repleto de pedras soltas. Várias vezes escorregaram ou tiveram de se segurar em raízes expostas. Marcus caiu e Samantha receou que ele não conseguisse se levantar. Na verdade, não sabia como ela mesma estava conseguindo prosseguir. Os músculos das pernas tremiam, a garganta estava seca e os pés latejavam.

De alguma maneira, no entanto, puderam em­preender a extenuante jornada.

Quando atingiram o topo da colina, foram re­cebidos por uma numerosa quantidade de espadas pertencentes a um batalhão de homens armados.

 

Samantha achou que tudo estava per­dido. Seu esquema tão bem elaborado chegara ao fim. Após um dia inteiro de luta, de­safio e perigo, alcançaram o pico da colina e aca­baram barrados pela lâmina de uma espada, aliás, de várias. De repente, escutou a voz de Robert.

— Douglas Henley? — perguntou, atônito. — Alfred Dunning?

— Sim — um dos homens respondeu. — Viemos ajudá-lo, Dryden. Claude Montrose também está aqui, assim como Ranulf Bele, Egbert Gunne e a tropa de cavaleiros de Windermere.

Naquele momento, Samantha passou a imagi­nar que tudo não passava de um sonho. Reconhe­cia os nomes. Ouvira histórias a respeito das ba­talhas que Robert e Wolf Colston empreenderam ao lado de tais cavaleiros.

Devia ter adivinhado que eles viriam em seu auxílio. Claro, aqueles guerreiros jamais deixa­riam Robert Dryden enfrentar Wrexton sozinho.

Robert ajudou Samantha a finalizar a escalada e, então, pediu a alguns companheiros que am­parassem Marcus.

— Ele me parece muito ferido, Robert — Ra-nulf disse, preocupado. — Como conseguiu trazê-lo até aqui?

— A subida aparenta ser pior do que realmente é — Robert replicou.

— A subida é muito pior do que aparenta! — Samantha o contradisse, rindo de nervoso.

Os cavaleiros espantaram-se ao ouvir a voz de uma mulher.

— Milady! — Samantha podia parecer tudo, me­nos uma dama. O disfarce tão eficiente conseguira confundir até os bravos guerreiros.

— Você a salvou! — Claude exclamou.

Dryden soltou uma gargalhada, causando sur­presa entre os cavaleiros que não o viam sorrir desde que perdera o olho.

— Não exatamente — disse, sorrindo e orgu­lhoso de sua dama. — Foi lady Samantha quem nos resgatou.

— Meu Deus! — Henley murmurou. — Vai ter de nos contar essa história mais tarde, se não se importar.

— Douglas, como vocês...

— Não é hora para perguntas, Dryden — Hen­ley o interrompeu. — Nós pensávamos em um meio de invadir o castelo ou aguardar o momento oportuno.

— Quando vimos patrulhas atravessando os portões — Alfred completou —, sabíamos que havia algo errado. Mantivemos nossa posição até descobrir que confusão você tinha armado.

— Agora os cavaleiros de Wrexton estão atrás de você — Claude comentou, fitando as sombras dos homens que percorriam o vale. — E são muitos. Todos dispostos a empreender uma guerra sanguinária.

— Wolf vai lamentar perder esta aventura — Henley resmungou, empunhando a espada. — Es­tarão aqui em poucos minutos.

— Robert — Claude chamou-o. — E melhor pe­gar sua dama e esconder-se.

Marcus de Grant já havia se escondido ao ante­cipar a batalha. Tinha certeza de que seria um em­pecilho aos cavaleiros de Windermere. Robert e Sa­mantha saíram do caminho enquanto os homens se organizavam para combater os soldados de Wrexton assim que estes despontassem no precipício.

Tão logo os inimigos surgiram, foram surpreen­didos por um ataque surpresa. A vontade de par­ticipar daquela luta era quase incontrolável, mas Robert não abandonaria Samantha por nada.

Apesar de sentir-se melhor, a surra que levara e os ferimentos que havia adquirido o obrigaram a conter-se. Sobretudo, não queria morrer agora que tinha Samantha a seu lado.

Do alto da colina, testemunhava naquele mo­mento os cavaleiros que travaram uma batalha de vida ou morte. Robert sentiu certa segurança por estar distante do embate.

No entanto, Samantha estava prestes a ter um colapso. Sua vontade era fugir daquele lugar na companhia de Robert. Um local onde não precisaria se preocupar com as crueldades de Wrexton e seus mercenários. Gostaria de estar em um ponto da flo­resta no qual pudesse desfrutar o amor por Robert, e esquecer que nadara na água gélida do rio, roubara uma carroça e rendera guardas armados.

Queria somente estar livre para amá-lo enquan­to ainda tinham tempo.

Ela e Robert estavam sozinhos. Os cavaleiros de Windermere encontravam-se em plena luta e Marcus jazia inerte sobre a grama da floresta.

Quando ele a encarou, um pensamento irracio­nal resvalou a mente de Samantha. Estava muito escuro e não distinguia as feições de Robert. Po­rém o poder de atração era intenso. Não precisava de luz pois, naquele momento, ele emanava ape­nas sentimento.

Como se adivinhasse a sagaz percepção de Sa­mantha, Robert se aproximou e tomou-a nos braços.

— Samantha, sinto que anos se passaram desde a última vez em que a toquei. — Então, ele a beijou, aquecendo-a e absorvendo-a.

Samantha entreabriu os lábios e Robert apro­fundou a carícia íntima que prometia muito mais. Acariciou as curvas sinuosas e apertou-a contra si. Trêmula, ela colou-se ao corpo viril, torturan-do-se por almejar o que não podia obter.

No instante em que Robert beijou-lhe o pescoço, Samantha abriu os olhos e avistou a iminente aproximação.

— Robert! — ela gritou. — Atrás de você!

Ao empurrá-la, Dryden puxou a espada e virou-se. Encarou o rosto insano de Wrexton, um covarde capaz de atacar pelas costas.

— Alldale — Edmund esbravejou, ameaçador. Se ficou aborrecido por ter sido descoberto, ele não demonstrou.

Wrexton, sem dúvida, achava-se em melhor forma que Robert, pois havia se alimentado e repousado nos últimos dias. Assustada e cheia de indignação, Samantha assistia a uma disputa injusta.

— Vai sacrificar sua própria vida por esta in­significante galesa? — Edmund Sandborn pon­tuou ao golpeá-lo com a espada.

Surpreendendo o oponente, Robert defendeu-se da investida, mostrando força e agilidade. Nem sequer incomodou-se com as palavras depreciati­vas de Wrexton.

Bastou um olhar para Samantha atinar que Marcus estava inconsciente e impossibilitado de auxiliar Ro­bert. Os cavaleiros aliados encontravam-se engajados no combate. Tensa, ela se afastou, mas, enquanto observava os dois condes em conflito, notou que Ro­bert se mantinha atento aos avanços de Wrexton.

Admirada, comprovou a incrível habilidade de um verdadeiro espadachim, a despeito dos feri­mentos e da fraca condição física.

Claro, ela devia ter previsto! Wrexton não pos­suía o talento de Robert e sequer lhe chegava aos pés dele. Mas Edmund parecia apostar que tiraria vantagem do estado debilitado do oponente.

Contudo, o conde se enganou. Robert, enfim, investiu contra Wrexton e o desarmou. Em segui­da, empurrou-o na direção dos soldados que ainda lutavam desesperadamente.

— Mande-os parar agora — Robert ordenou, apontando a espada no peito de Wrexton.

— Não, Alldale. Vai ter de me matar primeiro.

— Não duvide de que o farei, Wrexton — Robert pronunciou. — E saiba que nossos homens des­truirão os seus. Mas poupará muitas vidas se obri­gá-los a se renderem.

— Nunca farei isso.

Irritado, Robert o arrastou até o campo de batalha.

— E sua última chance, Wrexton. Diga-lhes... Antes que o conde pudesse rebater a exigência,

um dos cavaleiros de Wrexton virou-se e apontou a lâmina da espada diretamente ao tórax despro­tegido de Dryden.

Samantha gritou, mas Robert foi mais rápido e recuou. Ao mesmo tempo, jogou Wrexton de en­contro à espada letal. A lâmina fincou no peito de Edmund e o conde tombou no chão.

Um silêncio repentino paralisou os cavaleiros na colina, até atingir os outros guerreiros ao longe. Ninguém se manifestou enquanto espadas eram atiradas ao solo e homens se dispersavam.

O cavaleiro que eliminou Wrexton permaneceu diante de seu mestre, em estado de choque.

Samantha aproximou-se de Robert e segurou-lhe a mão. Presenciara, atônita, o trágico fim do legendário tirano.

— Montaremos o acampamento aqui — Douglas Henley determinou o local na planície a poucos metros do rio, onde os homens ergueram as ten­das. — Terá seu próprio alojamento, milady.

Apesar de extenuada, Samantha não queria uma tenda para si. A perspectiva de passar a noite sozinha não lhe agradava. Na manhã seguinte, voltaria a Pwll e Robert iniciaria sua jornada a Clairmont.

Aquela seria a última oportunidade de estarem juntos, ela pensou, preparando-se para o momento em que se separaria do homem amado.

Olhou ao redor. Robert fora levado a alguma tenda para que pudesse tratar dos ferimentos, e Marcus também. Ela não os vira desde então.

Aturdida e esgotada, Samantha vagou pelo acampamento, imaginando o que fazer, até que foi conduzida à própria tenda para se banhar. Após os trágicos acontecimentos daquele dia, es­pecialmente depois de escalar a elevação da colina, estava coberta de sujeira e melada de suor.

O espaço dentro da tenda era restrito. Saman­tha conseguia ficar em pé, mas mal acomodava o próprio corpo. Um colchão de pele cobria o solo e um cobertor de lã estava enrolado em uma das extremidades. Um lampião aceso iluminava a to­tal escuridão. Havia também uma tigela com água e várias roupas limpas no canto da tenda.

Sem perder tempo, ela se despiu e lavou-se. Al­guém aquecera a água, o que ajudou a combater o frio.

— Samantha...

Ao ouvir a voz masculina, virou-se e tentou co­brir a nudez com as mãos.

— Robert... — sussurrou, com os olhos enevoados. Ele entrou na tenda e percorreu a curta dis­tância que os separavam.

— Você é tão linda. — Robert acariciou as mechas avermelhadas, fascinado. O olhar traduzia puro desejo.

— Beije-me, Robert — ela implorou. Quando os lábios se tocaram, os dias e as horas de sofrimento se dissiparam. Tornavam-se um no­vamente, e Samantha pretendia saborear cada mi­nuto. Deslizou as mãos entre os cachos negros, afagou a nuca e colou seu corpo nu ao de Robert.

Ele a deitou sobre o colchão de peles. O toque era possessivo, e não se comparava ao amante gentil que a cobrira de carinho na silenciosa capela de Windermere. Lábios afoitos sugavam os dela, mãos experientes a apertavam. Samantha correspondia, famélica, desejosa, tão impetuosa quanto ele.

Envolvendo os seios, Robert moveu-se desespe­rado para senti-los. A barba roçava a pele sensível, arranhando-a. Um prazer selvagem dominou-a, e Samantha respondeu ao corpo másculo e tenso com toda paixão e vigor de seu ser.

Os ferimentos de Robert não eram empecilho para o ato frenético de amor. Movia-se sobre ela, usando mãos, boca, dentes e língua para imprimir sua marca naquele corpo sedutor.

Um fogo ardente aqueceu Samantha enquanto Robert a amava. Cada movimento ou toque íntimo a aproximava mais e mais do êxtase total.

Após tirar as roupas, ele a penetrou. Samantha notou o brilho orgulhoso de satisfação no olhar de Robert. A partir daquele momento pertenciam um ao outro.

— Sim! — ela pedia, em delírio.

— Oh, Samantha!

— Mais uma vez, amor.

Eram apenas um e ela se entregou inteira e re­cebeu o que Robert podia oferecer. Ele se movimen­tava com uma urgência que parecia aumentar a cada nuance de prazer, a cada suspiro. Almas e corpos se fundiram. E, de repente, viram-se absor­vidos pela magia inconfundível do verdadeiro amor.

Ela jamais vivera algo tão forte, tão profundo.

Robert abraçou-a sob o cobertor. Prendeu-a en­tre os braços, colando o peito nas costas de Sa­mantha. A respiração ainda ofegante roçava o ló-bulo delicado.

— Venha comigo a Alldale — ele pediu, em voz baixa.

Samantha não respondeu. Já havia decidido vol­tar a Pwll. Seria um suplício ir para Alldale com ele. Não poderia suportar vê-lo todos os dias ao lado de Marguerite, sua esposa.

— Está indecisa, Samantha? Ela não podia mais se conter.

— O que é isso? — Robert perguntou. — Lágrimas?

— Quando se casar com Marguerite...

— Pare agora, Samantha. — Ele obrigou-a a fitá-lo. — A única mulher com quem quero me casar é você.

— Eu? — repetiu, espantada. — Mas Marguerite...

— Achou que eu a levaria a Alldale como minha amante?

— Achei. Você está noivo, Robert. Não será fácil... Ele abraçou-a e beijou-lhe a testa.

— Samantha, não estou noivo. Somente fiz o pedido e Marguerite não mostrou nenhuma in­tenção de aceitá-lo. Antes de sair de Windermere, enviei uma mensagem a Clairmont, cancelando a proposta. Samantha, meu amor, o acordo não foi oficializado. E não há nada que seja irreversível.

Ela não conseguia acreditar naquelas palavras. As leis que regiam o compromisso de casamento eram muito claras. Contudo, se não houvera acei­tação por parte de Marguerite, ou contrato... se ele estava livre...

Uma nova esperança começou a brotar no co­ração de Samantha.

— Eu a quero muito, Samantha — Robert con­fessou, sério, intenso. — Nenhuma outra mulher tocou meu coração como você. Venha a Alldale comigo e seja minha condessa. Gere meus filhos e conforte minha alma.

— Oh, Robert! — Ela abraçou-o comovida. — Eu o amo tanto. Não imagina como sofri só de pensar em você com Marguerite. Sim, irei a All­dale. Serei sua esposa.

Quando voltaram a Pwll, os ferimentos de Ro­bert logo cicatrizaram após o competente cuidado de Nesta.

No entanto, a recuperação de Marcus levou mais tempo pois os machucados eram mais graves e profundos. Foi tratado com carinho por Samantha e Nesta e, quando melhorou, contou que seu pai, Eldred, era o único parente vivo de Wrexton.

Tão logo o Conselho Parlamentar tomou conhe­cimento da morte de Edmund Sandborn, os trâ­mites oficiais iniciaram. Portanto, o legado seria legalmente conferido a Eldred de Grant. O barão de Northaven tomar-se-ia então o conde de Wrex­ton, e Marcus, seu herdeiro.

Os cavaleiros de Wrexton que escolhessem per­manecer teriam de jurar lealdade ao novo senhor, Eldred. Douglas Henley e alguns companheiros continuaram em Pwll para garantir ao pai de Mar­cus a transferência de poder à sua família.

Robert e Samantha casaram-se no vilarejo, duas semanas após a vitória em Wrexton. Samantha ficou surpresa ao saber que o compromisso de Ro­bert com Marguerite havia sido indeferido, mas não questionou a decisão do bispo. Estava ansiosa demais para tornar-se a esposa de Robert, parti­lhar sua vida e sua cama, o que seria impossível naquele pequeno povoado.

Os recém-casados levaram dias para chegar a Alldale, aproveitando a tão abençoada união. Ro­bert aprendeu a proporcionar prazer a Samantha, e ela descobriu como fazê-lo rir. E que som ma­ravilhoso tinha sua risada. Ela queria apenas adormecer e acordar ao lado do marido, partilhan­do sua alegria de viver.

 

Na verdade, também esperava poder corres­ponder às expectativas de Robert quando che­gassem a Alldale. Afinal, ela não possuía a ex­periência necessária ao bom desempenho de uma nobre. Nunca se assemelharia a Marguerite Bra-dley. Desejava ser uma boa esposa e fazê-lo or­gulhar-se de sua condessa. A vida em Pwll jamais exigiu talentos refinados, a não ser cuidados bá­sicos da vida doméstica, tosar ovelhas e ajudar a tia nos partos.

Como aprenderia a ser a esposa de que Robert Dryden necessitava?

Tentou apagar as preocupações, lembrando-se do que Kit Colston lhe dissera sobre seu espírito valente e... perfeição. Embora não pudesse se transformar em outra Marguerite Bradley, Sa-mantha esperava revelar novas habilidades e tor­nar-se uma adequada castelã ao legado de Robert.

A viagem a Alldale durou uma semana. E foi em uma tarde ensolarada que avistaram, o novo lar no horizonte. O Castelo Alldale erguia-se, ma­jestoso, entre as colinas que o rodeavam. As pe­dras da imensa fortaleza refletiam os raios de sol quando Robert e Samantha se aproximaram.

Os dois apearam dos cavalos e juntos admira­ram o imponente castelo a distância.

— Oh, Robert... — ela sussurrou, sentindo as preocupações renascerem. — E magnífico!

Sim, era magnificente. O rei Henry havia sido realmente generoso. O Castelo Alldale significava muito mais do que Robert esperava obter em sua vida. Porém, representava pouco se comparado ao preço de sua recente conquista.

Fitou Samantha, sua linda dama, e sentiu o co­ração encher-se de satisfação. A mulher que amava o resgatara para a vida que julgara ter perdido sob as trevas do calabouço. Ele a adoraria para sempre.

— Não imaginava que Alldale fosse tão... gran­de, milorde — ela disse, constrangida.

— Samantha. — Robert tomou-a nos braços. — Não precisa agir com tanta formalidade.

— Mas este...

— Este castelo é apenas uma construção de pe­dra — ele a interrompeu. — Você é minha esposa, Samantha.

— Eu sei. Mas nunca serei como...

— Como o quê? Perfeita e controlada como as damas devem ser?

Ela assentiu, desolada.

— Eu a amo, Samantha Dryden — Robert con­fessou. — Amo seu espírito selvagem, a pureza de seu coração e sua lealdade. Adoro sua hones­tidade e generosidade. É minha esposa e meu amor. Enfrentaremos os desafios de Alldale jun­tos. Nunca duvide disso.

 

                 29 de novembro, 1423

 

De Catherine, com a graça de Deus, a rainha da Inglaterra, para os queridos amigos, pelo poder do Todo-Poderoso, Robert, o conde de Alldale, e Sa­mantha, sua esposa:

Saudações e sinceros votos de felicidade.

Rezo para que esta mensagem os encontre em boa saúde e sob os cuidados de Deus.

Como fiquei satisfeita ao saber de seu casamen­to, Alldale. Desejo-lhe muita alegria e que a vida lhes proporcione muitos frutos. Minha querida Samantha é a dama mais talentosa que já conheci. Não tenho dúvida de que ela o fará muito feliz e lhe dará filhos nos anos que virão.

Agradeço-lhes do fundo de meu coração os cui­dados que dispensaram a mon petit Henri, e por conduzi-lo em segurança a Windermere. Receio que me veria em uma situação bastante complicada, se não pudesse contar com sua dedicação. Mas isso é passado, graças a Deus.

Owen e eu retornaremos a Londres com Henry a tempo de celebrar o Natal. Partiremos de Clairmont antes que o frio aumente e nos impossibilite de viajar.

É com prazer que lhe informo, Alldale, que lady Marguerite recebeu o cancelamento de seu pedido calmamente e sem acerbo. Ela acabou por escolher um marido, o homem que capturou seu coração e paixões.

Minha amiga e lorde Nicholas Becker casaram-se na semana passada e estão radiantes. É suficiente dizer que quando os flagrei no jardim em meio a um vigoroso beijo, eu soube na hora que se tratava da escolha perfeita para ela. Somente nosso querido Nicholas poderia despertar Ia petite sauvage na alma de Marguerite. Vejo que ela descobriu o prazer de viver um grande amor.

Se, eventualmente, forem a Londres, peço-lhes que nos visite, pois Henry sente falta de sua querida Samantha e não entende por que não a vê mais. Incluo vocês dois em minhas orações e peço-lhes que façam o mesmo por mim, Henry e também pelo irmão de Samantha, Owen.

Sua em Cristo, Catherine, a rainha.

 

                                                                                Margo Maguire  

 

                      

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