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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LEI DOS VARÕES / Maurice Druon
A LEI DOS VARÕES / Maurice Druon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A LEI DOS VARÕES

 

Durante trezentos e vinte e sete anos, da eleição de Hugo Capeto até a morte de Filipe, o Belo, somente onze reis se sucederam, deixando todos um filho para receber a coroa de França.

Dinastia prodigiosa, que o destino parecia ter marcado para a durabilidade e para a permanência! Entre aqueles onze reinos, só dois cobriram um período menor que quinze anos.

Aquela extraordinária continuidade no exercício e na transmissão do poder, tinha permitido, e talvez mesmo determinado, a formação da unidade nacional.

O vínculo feudal, puramente pessoal de vassalo para suserano, do mais fraco para o mais forte, ia sendo substituído progressivamente por outro vínculo, por aquele outro contrato que une os membros de uma vasta comunidade humana, por muito tempo submetida às mesmas vicissitudes e às mesmas leis.

Se a idéia de nação ainda não era evidente, seu princípio, sua representação, já existiam na pessoa real, fonte suprema de autoridade e supremo recurso. Quem pensasse em “o rei”, pensava também em “a França”.

E Filipe, o Belo, durante toda a sua vida, aplicara-se em cimentar aquela unidade nascente, pela forte centralização administrativa e pela destruição sistemática dos podêres exteriores ou particulares.

Ora, mal o Rei de Ferro desapareceu, seu filho Luís X o seguiu ao túmulo. O povo, diante daquelas duas mortes sobrevindas uma após a outra, ferindo reis em plena força da vida, não podia deixar de ver nisso o signo da fatalidade.

Luís X, o Turbulento, reinara dezoito meses, seis dias e dez horas. Não fora necessário mais tempo àquele lastimável monarca para arruinar em grande parte a obra de seu pai. Durante seu governo, a rainha fora assassinada e o primeiro-ministro enforcado. A fome assolara a França, duas províncias revoltaram-se, um exército inteiro afundou-se na lama da Flandres. A alta nobreza retomava a dianteira sobre o poder real, a reação era todo-poderosa e o tesouro estava a seco.

Luís X ascendera ao trono quando o mundo estava sem papa, e partia sem que se tivesse ainda chegado a um acôrdo sobre a escolha de um pontífice. Deixava a cristandade à beira do cisma.

Agora, a França estava sem rei.

Porque, de seu casamento com Margarida de Borgonha, Luís X deixava apenas uma filha de cinco anos, Joana de Navarra, sobre a qual pesavam fortes suspeitas de bastardia. De seu segundo casamento ficava somente uma esperança: a Rainha Clemência estava grávida, mas só daria à luz dentro de cinco meses. Enfim, dizia-se, abertamente, que o Turbulento fora envenenado.

Nada tendo sido previsto para a organização da regência, as ambições pessoais atirar-se-iam ao assalto do poder. Em Paris, o Conde de Valois tentava fazer-se reconhecer como regente. Em Dijon, o Duque de Borgonha, irmão de Margarida, a assassinada, e chefe de poderosa liga baronial, ia empreender a vingança da morte de sua irmã, fazendo-se campeão dos direitos de sua sobrinha. Em Lião, o Conde de Poitiers, primeiro irmão do Turbulento, via-se envolvido nas intrigas dos cardeais e esforçava-se inutilmente por obter uma decisão do conclave. Os flamengos só aguardavam ocasião propícia para retomar as armas, e os senhores d’Artois continuavam sua guerra civil.

Seria preciso tanto para que a memória do povo recordasse o anátema lançado pelo grão-mestre dos Templários, dois anos antes, do alto de sua fogueira? Numa época disposta às crendices, não seria difícil perguntar, a si próprio, naquela primeira semana de junho de 1316, se a raça dos Capetos não estaria, dali por diante, maldita.

 

                 Filipe, Portas Fechadas

 

                                     A RAINHA BRANCA

AS RAINHAS usam luto branco.

Branca, a faixa de tecido fino que envolvia o pescoço, aprisionando o queixo até a boca e deixando aparecer apenas o centro do rosto; branco, o grande véu que cobria a fronte e as sobrancelhas; branco, o vestido fechado nos punhos e tombando até os pés. Esse era o trajo quase monacal que acabava de vestir, provavelmente pelo resto da vida, a Rainha Clemência da Hungria, viúva aos vinte e três anos do Rei Luís X, depois de dez meses de casamento.

Dali por diante ninguém mais veria seus admiráveis cabelos de ouro, nem o oval perfeito de seu rosto, nem aquele brilho, aquele tranqüilo esplendor, que tinham impressionado os que dela se aproximavam, e tornado célebre a sua beleza.

A máscara estreita e patética, que se recortava agora entre aqueles linhos imaculados, trazia a marca das noites de insônia e dos dias de lágrimas. O próprio olhar modificara-se: não se fixava em nada de preciso, e parecia flutuar à superfície dos seres e das coisas. A bela Rainha Clemência já assumira o aspecto que teria a sua estátua jacente.

Entretanto, sob as pregas de seu trajo, nova vida se ia formando. Clemência esperava um filho, e o pensamento de que seu esposo jamais o conheceria obsedava-a.

“Se Luís tivesse vivido ao menos o bastante para vê-lo nascer!”, dizia consigo. “Cinco meses, somente cinco meses mais! Como ficaria alegre, especialmente se fôr homem.. . Por que não fiquei grávida desde nossa noite de núpcias!...”

A rainha voltou a cabeça, com um gesto frágil, para o Conde de Valois, que, em passo de galo gordo, andava de cá para lá através do aposento.

— Mas por que, meu tio, por que haviam de envenená-lo tão perversamente? — perguntou ela. — Não praticava todo o bem que podia? Por que procurais sempre a perfídia dos homens onde, sem dúvida, é a vontade de Deus que se manifesta?

— Sois a única a atribuir a Deus, nesta ocasião, o que mais parece pertencer aos artifícios do diabo — respondeu Carlos de Valois.

O chapéu de alta crista atirado para as costas, o nariz forte, as faces amplas e coradas, o estômago projetado, e vestido com o mesmo trajo de veludo preto, com fechos de prata, que usara dezoito meses antes, no enterro de seu irmão Filipe, o Belo, Monsenhor de Valois chegava de Saint-Denis, onde acabava de inumar seu sobrinho Luís X. A cerimônia, aliás, apresentara-lhe alguns problemas, porque, pela primeira vez desde que fora instaurado o ritual para os funerais régios, os oficiais do Palácio, depois de terem gritado: “O Rei morreu!”, não tinham podido acrescentar: “Viva o Rei!” E não se sabia diante de quem fazer os gestos destinados ao novo soberano.

— Pois bem! Quebrareis vosso bastão diante de mim — dissera Valois ao camareiro-mor, Mateus de Trye. — Sou o mais velho da família, e o melhor indicado para tanto.

Seu meio irmão, o Conde d’Evreux, insurgira-se, porém, contra a estranha inovação, da qual Carlos de Valois não deixaria de tirar argumentos para se fazer reconhecer como regente.

— O mais velho da família, se quereis vê-lo por esse prisma — disse o Conde d’Evreux — não sois vós, Carlos. Nosso tio Roberto de Clermont é filho de São Luís. Esquecei-vos de que ele é ainda vivo?

— Sabeis muito bem que o pobre Roberto está louco e que não se pode contar com aquela cabeça transtornada para coisa alguma — replicara Valois dando de ombros.

Finalmente, ao terminar o repasto fúnebre, servido na abadia, o camareiro-mor quebrou a insígnia de suas funções diante de uma cadeira vazia.

— Luís não dava esmolas aos pobres? Não tinha agraciado muitos prisioneiros? — recomeçou Clemência, como se procurasse convencer a si própria. — Era uma alma generosa, eu vos afirmo... Se pecou, arrependeu-se...

Não era aquele, evidentemente, o momento oportuno para contestar as virtudes com que a rainha adornava a memória ainda tão recente de seu esposo. Carlos de Valois, apesar disso, não pôde reter um gesto mal-humorado.

— Sei disso, minha sobrinha, sei disso — respondeu. — Sei que tivestes sobre ele uma grande influência no sentido piedoso, e que o rei se mostrou muito generoso... convosco. Mas não é apenas com orações que se governa, nem cobrindo de presentes aqueles que amamos. E o arrependimento não basta para desarmar os ódios que semeamos.

Clemência pensou : “Aí está... aí está Carlos, que se atribuía todos os méritos do poder enquanto Luís era vivo, e já o renega. Quanto a mim, depressa serei censurada pelos presentes que ele me fêz. Tornei-me a estrangeira...”

Estava demasiado fraca, demasiado abatida. Não tinha forças para indignar-se. Disse, apenas:

— Não posso acreditar que Luís fosse odiado a ponto de desejarem matá-lo.

— Pois bem, não o acrediteis, minha sobrinha — exclamou Valois — mas o fato aí está! A primeira prova foi aquele cão que lambeu os panos de que se serviram para lhe retirar as entranhas, durante o embalsamamento, e que estrebuchou uma hora depois. Há...

Clemência fechou os olhos e apertou as mãos sobre os braços de sua poltrona, para não cambalear diante da visão que impunham ao seu espírito. Era de seu marido, do rei que dormira contra seu flanco, do pai da criança que ela trazia em si, que tinham a crueldade de falar daquela maneira, obrigando-a a fazer a imagem mental do cadáver oferecido à lâmina dos embalsamadores?

Monsenhor de Valois continuava seu macabro raciocínio. Quando se calaria aquele homem gordo, frenético, autoritário, vaidoso, que, ora vestido de azul, ora de vermelho, ora de preto, aparecera em todos os momentos importantes ou trágicos da vida de Clemência, naqueles dez meses em que ela estava na França, para repreendê-la, aturdi-la com palavras e levá-la a agir contra a sua vontade? Já na manhã do casamento, em Saint-Iyé, o tio Valois, que Clemência jamais tinha visto, esteve quase a arruinar-lhe a cerimônia, instruindo-a sobre intrigas da corte, intrigas das quais ela nada compreendera... Clemência revia Luís vindo ao encontro dela, pela estrada de Troyes... e a igreja do campo, o aposento do pequeno castelo, rapidamente improvisado em câmara nupcial... “Terei sabido gozar suficientemente minha felicidade? Não, não quero chorar diante dele”, pensou.

— Não sabemos ainda — prosseguiu Valois -— quem seja o autor dessa horrível perversidade. Havemos de descobri-lo, entretanto, minha sobrinha, eu vos prometo solenemente... se me derem os meios necessários, é evidente. Nós, os reis...

Valois jamais perdia a ocasião de lembrar que usara duas coroas, puramente nominais, mas que, ainda assim, colocavam-no em pé de igualdade com os príncipes soberanos* (1).

— ... nós, os reis, temos inimigos, que menos o são de nossas pessoas do que das decisões emanadas de nosso poder. E não falta gente a quem interessaria tornar-vos viúva. Há os Templários, cuja Ordem foi destruída, o que representou grande erro, bem que eu disse muitas vezes! Formaram uma liga secreta e juraram a perda de meu irmão e de seus filhos. Meu irmão morreu, seu primeiro filho seguiu-o na morte. Há os cardeais romanos... Lembrai-vos daquela tentativa de enfeitiçamento que o Cardeal Caetani fêz contra Luís e contra vosso cunhado de Poitiers, desejando despachar os dois. O caso foi descoberto, mas Caetani bem poderia tentar o ataque de outra forma. Que quereis? Não é possível desalojar um papa do trono de São Pedro, como fêz meu irmão, sem que se guardem ressentimentos! Pode ser, também, que os partidários do Duque da Borgonha recebessem mal o castigo de Margarida, e admitissem ainda menos que a tenhais substituído...

Clemência olhou diretamente para os olhos de Carlos de Valois, que se perturbou e corou um pouco. Tinha chafurdado razoavelmente no assassinato de Margarida, e compreendeu que Clemência o sabia, sem dúvida através de imprudentes confidencias de Luís...

Clemência, porém, nada disse: evitaria, sempre, tocar em tal assunto. Sentia-se sob a carga de uma responsabilidade involuntária, já que aquele marido, cuja alma virtuosa ela gabava, ainda assim mandara asfixiar sua primeira esposa, a fim de se casar com ela, a sobrinha do rei de Nápoles. Seria preciso procurar alhures a causa do castigo de Deus?

— E ainda há a Condêssa Mafalda, vossa vizinha — apressou-se a continuar Valois — que não é mulher para recuar diante de um crime, por pior que seja...

“Em que é ela diferente de vós?”, pensou Clemência, sem ousar responder-lhe. “Não me parece que nesta corte hesitem diante do assassinato.”

— ... Ora, Luís, há menos de um mês, confiscou-lhe o condado de Artois, para obrigá-la a submeter-se.

Por um momento, Clemência perguntou a si própria se, inventando tantos possíveis culpados, Valois não seria pessoalmente o autor do crime. Aquele pensamento, que não podia, aliás, apoiar-se em qualquer raciocínio sensato, causou-lhe imediatamente horror. Não, ela proibia a si mesma de suspeitar de quem quer que fosse: queria que Luís tivesse morrido de morte natural... Entretanto, e inconscientemente, o olhar de Clemência, através da janela aberta, voltava-se para a folhagem da floresta de Vincennes, para o sul, na direção do castelo de Conflans, residência de verão da Condêssa Mafalda... Alguns dias antes da morte de Luís, Mafalda, em companhia de sua filha, a Condêssa de Poitiers, viera fazer uma visita a Clemência. Uma visita muitíssimo amável. Clemência não as tinha deixado a sós nem por um instante. Haviam admirado as tapeçarias do aposento...

“Não há nada que envileça mais do que suspeitar de felonia alguém entre os que nos rodeiam”, pensava Clemência, “e começar a procurar a traição em cada rosto...”

— Por isso, minha cara sobrinha — recomeçou Valois — é que precisais concordar com o que vos peço, e voltar a Paris. Sabeis quanto vos quero. Fiz vosso casamento, e vosso pai era meu cunhado. Deveis ouvir-me como a ele, se Deus no-lo tivesse conservado. A mão que atacou Luís pode bem prosseguir em sua vingança, sobre vós e sobre o fruto que trazeis em vós. Eu não poderia deixar-vos assim, no meio da floresta, entregue às maquinações dos perversos, e não terei paz senão quando vos vir instalada mais perto de mim.

Havia uma hora que Valois se esforçava para conseguir de Clemência que ela voltasse para o palácio da Cité, porque resolvera transferir-se também para lá. Aquilo constituía parte de seu plano, a fim de impor-se como regente, colocando o conselho dos Pares diante do fato consumado. Quem mandasse como senhor no palácio, ganhava foros de realeza. Instalar-se sozinho, ali, entretanto, poderia tomar aspecto de um golpe de força ou de uma usurpação. Se Valois, ao contrário, entrasse na Cité acompanhando sua sobrinha, como parente mais próximo e protetor, ninguém poderia opor-se a tal. O ventre da rainha constituía, no momento presente, o melhor penhor de prestígio e o mais eficaz instrumento de governo.

Clemência voltou os olhos, como que pedindo assistência, para um terceiro personagem, que estava a alguns passos dela, e silencioso, com as mãos cruzadas sobre os punhos de uma espada alta, seguia a conversação.

— Bouville, que devo fazer?... — murmurou ela.

Hugo de Bouville, o antigo camareiro-mor de Filipe, o Belo, fora nomeado curador do ventre pelo primeiro conselho que se seguira à morte do Turbulento. Aquele bom homem, barrigudo, grisalho, mas ainda muitíssimo alerta, servidor exemplar da realeza havia trinta anos, tomara sua nova missão mais do que a sério. Tomara-a de forma dramática. Constituíra uma guarda de gentis-homens cuidadosamente selecionados, que se revezavam em grupos de vinte e quatro à porta da rainha. Êle próprio estava vestido como para a guerra, e suava em grossas bagas, pelo calor de junho, sob sua cota de malhas. Os muros, os pátios, os arredores de Vincennes, estavam recheados de archeiros. Cada assistente da cozinha tinha a escolta permanente de um sargento. E as próprias damas de honor deviam ser revistadas antes de entrarem nos apartamentos. Jamais vida humana fora mais cerradamente protegida do que aquela que dormitava no seio da rainha da França.

Bouville, teoricamente, partilhava sua responsabilidade com o sire de Joinville, que fora designado como segundo curador. Tinham pensado nele porque se encontrava justamente em Paris, onde viera receber, como fazia duas vezes por ano, e com a pontualidade desconfiada dos anciões, a renda das dotações que lhe haviam sido concedidas por três reis sucessivos, e, em particular, por ocasião da canonização de São Luís. O senescal hereditário de Champanha, entretanto, tinha agora noventa e dois anos, e era, praticamente, o decano da alta nobreza francesa. Quase cego, aquela última viagem, do seu castelo de Wassy no alto Marne a Paris, fatigara-o muito. Passava a maior parte do tempo dormitando, em companhia de dois escudeiros de barbas brancas, e, dessa maneira, todos os encargos tinham de ser atendidos por Bouville.

Para a Rainha Clemência, Bouville era pessoa ligada a todas as suas lembranças felizes. Fora o embaixador que a pedira em casamento, escoltando-a, depois, desde Nápoles. Era o confidente imensamente devotado, e, provavelmente, o único, amigo verdadeiro com que ela contava na corte da França. Bouville compreendera bem que Clemência não queria sair de Vincennes.

— Monsenhor — disse ele a Valois — posso garantir melhor a guarda da rainha neste solar completamente fechado pelas muralhas, do que no grande palácio da Cité, aberto a quem quer que chegue. E se é a vizinhança da Condêssa Mafalda que temeis, posso dizer-vos, pois que me mantenho informado sobre todos os movimentos da redondeza, que a Senhora Mafalda está, neste momento, fazendo as malas para ir a Paris.

Valois já estava bastante agastado com a importância que Bouville tomara depois que era o curador, e com a insistência dele em ficar ali, plantado sobre a sua espada, ao lado da rainha.

— Messire Hugo — disse ele, com altivez —- tendes o encargo de velar pelo ventre e não de resolver sobre a residência da família real, nem de defender, sozinho, todo o reino.

Sem se perturbar, Bouville respondeu:

— Desejo lembrar-vos também, Monsenhor, que a rainha não pode aparecer em público durante os quarenta dias de seu luto.

— Mas eu conheço os costumes, tanto como vós, meu caro! Quem vos disse que a rainha precisará aparecer? Faremos o caminho em carro fechado... Enfim, minha sobrinha — exclamou Valois, voltando-se para Clemência — até parece que desejo enviar-vos para o país do Grande Cã, e que Vincennes fica a duas mil léguas de Paris!

— Compreendei, meu tio — disse Clemência, com voz frágil — esta morada de Vincennes é o último presente que recebi de Luís. Êle fêz-me doação desta casa, ali, e estáveis presente... (ela agitava a mão na direção do quarto onde Luís X morrera) a fim de que eu morasse nela... Parece-me que ele ainda não partiu, verdadeiramente. Compreendei... foi aqui que tivemos...

Mas Monsenhor de Valois nada podia compreender das exigências da memória nem das fantasias da dor.

— Vosso esposo, pelo qual oramos, minha querida sobrinha, pertence doravante ao passado do reino. Vós, porém, trazeis convosco o seu futuro. Expondo vossa vida, expondes a de vosso filho. Luís, que lá do alto vos vê, não vos perdoará tal coisa.

Tocara o ponto nevrálgico, e Clemência, sem nada dizer, encolheu-se um tanto em sua cadeira.

Bouville, porém, declarou que nada podia decidir sem a aprovação do sire de Joinville, que foram procurar na mansão. Esperaram vários minutos, depois a porta abriu-se, e ainda esperaram. Enfim, vestido com um trajo comprido, como os que eram usados no tempo da cruzada, tremendo sobre as pernas, a pele maculada e semelhante à casca de uma árvore, a pálpebra lacrimejante, a pupila desbotada, o último companheiro de São Luís apareceu, arrastando seus sapatos, e amparado por dois escudeiros quase tão arruinados quanto ele. Sentaram-no com todas as atenções que lhe deviam, e Valois tomou a si explicar-lhe suas intenções no que se referia à rainha. O ancião ouvia, sacudindo a cabeça compungidamente, e visivelmente satisfeito por ter um papel ainda a representar. Quando Valois acabou, o senescal engolfou-se em meditação que todos evitaram perturbar. Esperava-se o oráculo que ia tombar de sua boca. E, subitamente, ele perguntou:

— Mas, então, onde está o rei?

Valois tomou expressão desolada. Tanto trabalho inútil, quando o tempo urgia! O senescal ainda compreenderia o que lhe diziam?

— Vejamos! O rei morreu, sire de Joinville — respondeu ele — e nós o enterramos esta manhã. Sabeis bem que fostes nomeado curador...

O senescal franziu a testa e pareceu fazer grande esforço de reflexão. Aquela falha da lembrança, aliás, não era nova nele. Ditando suas famosas Memórias, quase aos oitenta anos, não se apercebera de que estava repetindo, textualmente quase, no fim da segunda parte, o que já dissera na primeira...

— Sim, nosso jovem Rei Luís — disse ele, finalmente. —

Morreu. Foi a ele que apresentei meu grande livro. Sabeis que é o... quarto rei que vejo morrer?

Contava aquilo como se fosse uma façanha.

— Então, se o rei morreu, a rainha é regente — declarou.

Monsenhor de Valois ficou escarlate. Tinha feito escolher como curadores um caduco e um medíocre, pensando poder manobrá-los à sua vontade. Seus cálculos voltavam-se contra ele, e daqueles dois homens é que lhe vinham as piores dificuldades.

— A rainha não é regente, messire senescal, ela está grávida — exclamou ele. — Não pode de forma alguma ser regente enquanto não se souber se foi um rei que nasceu! Depois, estais vendo o estado dela, e se está em condições de atender os encargos do reino!

— Sabeis que quase não enxergo — respondeu o ancião.

A fronte apoiada na mão, Clemência pensava apenas: “Quando acabarão com isso? Quando me deixarão em paz?”

Joinville começou a explicar em que condições, por ocasião da morte do Rei Luís VIII, a Rainha Branca de Castela assumira a regência, para grande satisfação de todos.

— Madame Branca de Castela... dizia-se bem baixinho... não era tão pura como a imagem que dela fizeram. Parece que o Conde Thibaut de Champanha, do qual messire meu pai era um bom amigo, serviu-a até em seu leito...

Foi preciso deixá-lo falar. O senescal esquecia facilmente os acontecimentos da véspera, mas lembrava-se precisamente do que lhe haviam contado de sua mais remota infância. Encontrara um auditório, e aproveitava-se disso. Suas mãos, agitadas pelo tremor senil, roçavam continuamente a seda do manto, sobre os joelhos.

— E mesmo quando nosso santo rei partiu para a cruzada, onde estive com ele...

— A rainha residia em Paris durante esse tempo, não é verdade? — interrompeu Carlos de Valois.

— Sim... sim... —- acedeu o senescal.

Foi Clemência quem primeiro desistiu da luta.

— Pois bem! Seja, meu tio — disse ela — farei vossa vontade e voltarei para a Cité.

— Oh! Eis, enfim, uma decisão sensata, que messire Joinville aprova, com certeza.

— Sim... sim...

— Vou tomar todas as providências. Vossa escolta será comandada por meu filho Filipe e por nosso primo Roberto d’Artois...

— Muitíssimo obrigada, meu tio, muitíssimo obrigada — disse Clemência, quase a desfalecer. — Agora, porém, peço que me façam todos a graça de deixar-me rezar.

Uma hora mais tarde, cumprindo as ordens do Conde de Valois, o castelo de Vincennes estava em pleno alvoroço. Tiravam-se as carroças das cocheiras, e os chicotes estalavam sobre as ancas dos grandes cavalos do Perche. Servos passavam correndo, e os archeiros haviam abandonado suas armas para auxiliar os homens das cavalariças. Já que desde o início do luto todos se viram obrigados a falar em voz baixa, encontravam agora uma oportunidade de gritar. E se realmente alguém pretendesse atentar contra a vida da rainha, aquele teria sido o momento propício.

No interior da mansão, os tapeceiros desprendiam reposteiros, desmontavam móveis, transportavam credencias, armários--estantes e cofres. Os oficiais do palácio da rainha e as damas de honor precisavam apressar também as suas bagagens. Contava-se com um primeiro comboio de vinte veículos, e, sem dúvida, a mudança exigiria mais de duas viagens.

Clemência da Hungria, envolvida em seu comprido trajo branco, com o qual ainda não se habituara, errava de aposento em aposento, sempre escoltada por Bouville. Por toda a parte, a poeira, o suor, a agitação, o aspecto de pilhagem que acompanha as mudanças. O tesoureiro, de inventário em punho, vigiava a expedição da baixela e dos objetos raros, que tinham sido reunidos e ocupavam todo o piso de lajes de uma sala: os pratos de mesa, as jarras, os doze hanapes* de prata dourada que Luís mandara fazer para Clemência, o grande relicário de ouro contendo um fragmento da Verdadeira Cruz, e tão pesado que o homem incumbido de transportá-lo estafava-se sob a carga, como se subisse ao Calvário.

No quarto da rainha, a primeira roupeira, Eudelina, que fora amante de Luís X quando ele ainda não se havia casado com Margarida, dirigia a embalagem das roupas.

— Para que... para que levar todas essas roupas, pois que de nada mais me servirão! — disse Clemência.

E as jóias, também, fechadas em pesadas caixas de ferro, todas aquelas fivelas, aqueles anéis, aquelas pedras raras com as quais Luís a cumulara durante o breve período de sua vida conjugai, seriam, dali por diante, objetos inúteis. Mesmo as três coroas cravejadas de esmeraldas, de rubis e de pérolas, eram altas demais e adornadas para que uma viúva pudesse usá-las. Simples círculo de ouro, com pequenas flôres-de-lis, colocado sobre o véu, eis a única jóia real a que ela teria direito, mais tarde.

“Passei a ser uma rainha branca, como vi acontecer com minha avó Maria da Hungria”, pensava ela. “Mas minha avó tinha passado dos sessenta anos e dera à luz treze filhos... Meu esposo nem mesmo verá seu filho...”

— Madame — perguntou Eudelina — devo ir convosco para o palácio? Ninguém me deu ordens... *

Clemência olhou para a linda mulher loura, que, esquecendo inteiramente o ciúme, fora para ela de tamanho préstimo durante aqueles últimos meses, e, sobretudo, durante a agonia de Luís. “Teve uma filha dela, e afastou essa criança, meteu-a num convento... Será por isso também que o Céu nos puniu?” Sentia-se carregada com todas as faltas que Luís cometera antes de conhecê-la, e destinada a resgatá-las pelo sofrimento. Teria a vida inteira para pagar a Deus com lágrimas, orações e esmolas, o oneroso preço da alma de Luís.

— Não — murmurou ela — não, Eudelina. Não me acompanhe. É preciso que aqui fique alguém que o tenha amado.

Depois, afastando até mesmo Bouville, refugiou-se no único aposento sossegado, o único que fora respeitado, o quarto onde seu esposo expirara.

As cortinas fechadas enchiam de sombra o local. Clemência foi ajoelhar-se junto do leito, pousou os lábios sobre a coberta de brocado.

Subitamente, sentiu como que um raspar de unha contra o tecido. Foi tomada de angústia, o que lhe provou existir ainda nela vontade de viver. Durante um momento permaneceu imóvel, retendo o fôlego. Atrás, continuava o rumor. Prudentemente, virou a cabeça. Era o senescal de Joinville, que tinham depositado ali, a um canto do aposento, aguardando a partida.

                   UM CARDEAL QUE NÃO ACREDITAVA NO INFERNO

A NOITE de junho começava a empalidecer e uma delgada faixa cinzenta, marcando a linha do céu, a leste, anunciava que a aurora depressa se ergueria sobre a cidade de Lião.

Era a hora em que as carroças punham-se a caminho, nos campos das redondezas, para levar à cidade legumes e frutas, a hora em que as corujas emudeciam e ainda não se ouvia o cântico dos pássaros. Era também a hora em que, por trás das ogivas estreitas de um dos apartamentos de honra da abadia de Ainay, o Cardeal Duèze pensava na morte.

O cardeal jamais sentira grande necessidade de dormir, mas, com a idade, tal necessidade diminuía cada vez mais. Três horas de sono eram-lhe amplamente suficientes. Pouco depois de meia-noite, levantava-se e instalava-se diante de sua secretária. Homem de inteligência pronta e de prodigioso saber, habituado a todas as disciplinas do pensamento, compusera tratados de Teologia, de Direito, de Medicina e Alquimia, que eram respeitados como autoridade entre os clérigos e doutores de seu tempo.

Naquela época em que a grande esperança, do pobre como do príncipe, era a fabricação do ouro, muito se referiam às doutrinas de Duèze sobre os elixires destinados à transmutação dos metais.

As coisas com que se pode fazer o elixir são três — podia ler-se em sua obra intitulada “O Elixir dos Filósofos”: os sete metais, os sete espíritos, e as outras coisas... Os sete metais são: sol, lua, cobre, estanho, chumbo, ferro e mercúrio; os sete espíritos são: azougue, enxofre, sal-amoníaco, ouro-pigmento, tutia, magnésia, marcassita; e as outras coisas são: mercúrio, sangue de homem, sangue de cabelo e de urina, e a urina é do homem (2) ...

Com setenta e dois anos, o cardeal descobrira ainda domínios nos quais não se expressara, e completava sua obra, enquanto seus semelhantes dormiam. Usava, sozinho, tantas velas quanto toda uma comunidade de monges.

Durante as suas noites trabalhava também na enorme correspondência que mantinha com inúmeros prelados, abades, juristas, sábios, chanceleres e príncipes soberanos, através da Europa. Seu secretário e seus copistas encontravam, pela manhã, o trabalho preparado para o dia inteiro.

Ou, então, debruçava-se sobre o tema astrológico de um de seus rivais no conclave, comparava-o com o seu céu pessoal, e interrogava os planetas a fim de saber se ele usaria a tiara. Segundo os astros, suas possibilidades mais fortes de tornar-se papa colocavam-se entre o início de agosto e o início de setembro do ano em curso. Ora, estava-se já no dia 10 de junho, e não havia o menor indício a esse respeito...

Depois, vinha o momento penoso da antemanhã. Como se tivesse tido a premonição de que deixaria o mundo justamente àquela hora, o cardeal sentia, então, angústia difusa, vago desassossêgo, tanto de corpo como de espírito. Pela sugestão do cansaço, interrogava-se sobre os atos que realizaria, e suas lembranças podiam apresentar-lhe o desenvolvimento de um destino extraordinário... Proveniente de uma família burguesa de Cahors, e ainda totalmente desconhecido com a idade em que a maior parte dos homens daquele tempo já haviam terminado sua carreira, sua vida parecia não ter começado senão aos quarenta e quatro anos, quando partira bruscamente para Nápoles, em companhia de um tio que aí ia a negócios. A viagem, a mudança de país, a descoberta da Itália, tinham agido sobre ele de maneira estranha. Alguns dias após o desembarque, tornava-se discípulo do preceptor das crianças reais, e lançava-se apaixonadamente aos estudos abstratos, com um frenesi, uma agilidade de compreensão, uma flexibilidade de memória que os adolescentes de cérebro melhor dotado poderiam invejar. Ignorava a fome, como ignorava a necessidade do sono. Um pedaço de pão, muitas vezes, era o suficiente para alimentá-lo durante todo um dia, e teria suportado muito bem o regime da prisão com a condição de que lhe fornecessem livros. Depressa fêz-se doutor em Direito Canônico, depois em Direito Civil, e seu nome começou a espalhar-se. A corte de Nápoles procurava as opiniões do clérigo de Cahors.

Depois dessa sede de saber viera-lhe a sede de poder. Conselheiro do Rei Carlos II d’Anjou-Sicília (avô da Rainha Clemência), depois secretário dos conselhos secretos e provido de inúmeros benefícios eclesiásticos, dez anos após sua chegada era nomeado bispo de Fréjus, e um pouco mais tarde alcançava a função de chanceler do reino de Nápoles, isto é, de primeiro--ministro de um Estado que compreendia ao mesmo tempo a Itália Meridional e todo o condado da Provença.

Uma ascensão tão fabulosa, entre as intrigas da corte, não pudera realizar-se apenas graças aos talentos do jurista e do teólogo. Um episódio, conhecido de pouca gente, pois era segredo da Igreja, mostrava bastante de que aprumo e astúcia Duèze era capaz.

Alguns meses após a morte de Carlos II, fora enviado em missão à corte papalina, quando o bispado de Avinhão — o mais importante de tôda a cristandade, pois que era sede da Santa Sé — estava vago. Sempre chanceler, portanto detentor dos selos, redigiu tranqüilamente uma carta, pela qual o novo rei de Nápoles, Roberto, pedia para ele, Tiago Duèze, a cadeira episcopal de Avinhão. Isso se passara em 1310. Clemente V, desejoso de conseguir o apoio de Nápoles, numa época em que suas relações com Filipe, o Belo, estavam bastante abaladas, atendera imediatamente aquele pedido. A fraude foi descoberta no dia em que o Papa Clemente e o Rei Roberto, encontrando-se face a face, demonstraram a mesma surpresa, o primeiro por não ter recebido agradecimento algum com referência a tamanho favor concedido, e o segundo porque achava um tanto inconveniente aquela nomeação imprevista, que o privava de seu chanceler. Era tarde demais. Em vez de deixar que estalasse um escândalo inútil, o Rei Roberto tinha fechado os olhos, preferindo manter ascendência sobre um homem que agora ocupava uma das mais altas situações eclesiásticas. E todos tiraram da situação o melhor partido. Agora, Duèze era cardeal de cúria, e suas obras eram estudadas em todas as universidades.

Mas, por muito espantoso que seja um destino, só aparece sob tal aspecto aos que o contemplam do exterior. Os dias vividos, repletos ou vazios, agitados ou tranqüilos, são todos, igualmente, dias enterrados, e a cinza do passado tem o mesmo peso em todas as mãos.

Tanto ardor, ambição e energia despendidos teriam um sentido qualquer, e tudo devia, inelutàvelmente, ser atirado para aquele Além, do qual as mais altas inteligências e as mais difíceis ciências humanas conseguiam apreender apenas retalhos indecifráveis? Por que desejar tornar-se papa? Não teria sido mais sensato encerrar-se no fundo de um claustro, no desapego total? Despojar-se ao mesmo tempo do orgulho do conhecimento e da vaidade de dominar... adquirir a humildade da fé mais simples... preparar-se para desaparecer... Mesmo esse gênero de meditação, porém, tomava, no Cardeal Duèze, o tom de especulações abstratas, e sua ansiedade diante da morte transformava-se em debate jurídico com a divindade.

“Os doutores nos asseguram”, pensava ele naquela manhã, “que as almas dos justos gozam, imediatamente depois da morte, a visão beatífica de Deus, e essa é a sua recompensa. Seja, seja... Mas, depois do fim do mundo, quando os corpos ressuscitados houverem encontrado suas almas, serem submetidos ao juízo final. Ora, Deus, que é perfeito, não pode apelar de suas próprias sentenças. Deus não pode cometer erros e despedir do paraíso os eleitos que ali tiver admitido. De resto, não convém mais que a alma entre na posse da alegria de Seu Senhor apenas no momento em que, reunida a seu corpo, ela mesma seja perfeita em sua natureza? Portanto... portanto, os doutores enganam-se. Portanto, não haverá beatitude propriamente dita nem visão beatífica antes do fim dos tempos, e Deus só se deixará contemplar depois do Juízo Final. Até lá, entretanto, onde ficam as almas dos mortos? Iremos esperar sub altare dei, sob esse altar de Deus de que fala João em seu Apocalipse?...”

Os passos de um cavalo, coisa muito rara a semelhante hora, retiniram ao longo dos muros da abadia, sobre os pequenos calhaus redondos que pavimentavam as ruas melhores de Lião. O cardeal prestou ouvidos por um momento, depois voltou ao seu raciocínio, cujas conseqüências eram surpreendentes.

“... Porque se o Paraíso está vazio, pensava, isso modifica singularmente a situação daqueles que decretamos santos ou bem-aventurados... Mas o que é verdadeiro para a alma dos justos, é forçosamente verdadeiro, também, para a alma dos injustos. Deus não puniria os maus antes de ter recompensado os bons. É no fim do dia que o trabalhador recebe seu salário; no fim do mundo é que o bom grão e o joio serão definitivamente separados. Alma alguma habita atualmente o inferno, porquanto a condenação não foi pronunciada. Vale dizer que, até lá, o inferno não existe...”

Aquela posição era muito mais tranqüilizadora para quem quer que pensasse na morte. Recuava a chegada do supremo processo, sem fechar a perspectiva da vida eterna, e combinava muito bem com aquela intuição, comum à maioria dos homens, que diz ser a morte uma queda no grande silêncio escuro, uma inconsciência indefinida...

Com certeza, se semelhante doutrina viesse a ser professada, causaria violentas reações, tanto entre os doutores da Igreja como na crença popular, e o momento seria mal escolhido, para um candidato à Santa Sé, de pregar a inexistência ou a vacância do paraíso e do inferno(3).

“Esperemos pelo fim do conclave”, dizia consigo o cardeal.

Foi interrompido por um irmão-porteiro que bateu à porta, comunicando-lhe a chegada de um mensageiro, que vinha de Paris.

— Da parte de quem vem ele? — perguntou o cardeal.

Duèze tinha voz abafada, sem ressonância, inteiramente destituída de timbre, embora bastante distinta.

— Da parte do Conde de Bouville — respondeu o porteiro. — Deve ter vindo muito depressa, porque tem o aspecto bem fatigado. Quando fui atender seu chamado à porta, encontrei-o já meio adormecido, a cabeça contra o batente.

— Faça-o entrar.

E o cardeal, que alguns minutos antes meditava sobre a vaidade das ambições do mundo, pensou imediatamente: “Será a propósito das eleições? A corte da França tomaria partido abertamente pelo meu nome? Irão propor-me uma barganha?...”

Sentia-se todo agitado, cheio de curiosidade e esperança, e percorria o quarto em passinhos rápidos. Duèze tinha a estatura de um menino de quinze anos, focinho de rato sob fortes sobrancelhas brancas, ossatura frágil.

Por trás dos vidros, o céu começava a fazer-se rosado. Ainda não se poderia apagar as velas, mas já era a alvorada. A hora má passara...

O mensageiro entrou, e, com o primeiro olhar, o cardeal percebeu que não se tratava de um correio comum. Aliás, um mensageiro de ofício teria posto imediatamente um joelho em terra e estendido sua caixa de correspondência, em vez de se conservar de pé, inclinando a cabeça e dizendo: Monsenhor... Depois, a corte da França, para mandar suas cartas, utilizava-se de vigorosos cavaleiros, de sólida compleição, bem aguerridos, como o grande Robin-Cuisse-Maria, que fazia freqüentemente o percurso entre Paris e Avinhão, e não um rapazola daqueles, de nariz pontudo, ao qual parecia custar muito manter as pálpebras abertas e que titubeava de fadiga sobre suas botas.

“Eis alguém que deixa transparecer muito seu disfarce”, disse Duèze consigo. “Aliás, já vi este rosto num lugar qualquer...”

Com sua mão curta e miúda fêz saltar os sinêtes da carta, e depressa sentiu-se decepcionado. Não se tratava da eleição, mas de um pedido de proteção para o mensageiro. Apesar disso, Duèze quis ver naquilo um indício favorável; quando Paris queria obter um serviço qualquer das autoridades eclesiásticas era a ele que agora se dirigia.

— Allora, lei è il signore Guccio Baglione?* — disse ele, ao terminar a leitura.

O jovem sobressaltou-se ao se ouvir interpelado em italiano.

— Si, Monsignore...**

— O Conde de Bouville recomenda-o a mim para que eu o tome sob minha guarda, e afaste-o das perseguições de seus inimigos.

— Se aceitardes fazer-me esse favor, Monsenhor!

— Ao que parece o senhor teve alguma aventura desastrosa que o forçou a fugir com essa libré — continuou o cardeal, em sua voz rápida e sem ressonância. — Conte-me isso. Bouville diz-me que o senhor fazia parte de sua escolta, quando ele conduziu a Rainha Clemência para a França. Com efeito, recordo-me, agora. Vi-o junto dele... E o senhor é o sobrinho de messire Tolomei, o capitão-general dos lombardos em Paris. Muito bem, muito bem. Conte-me seu caso.

Tinha-se sentado e brincava maquinalmente com uma grande estante giratória, em que ficavam os livros de que se servia em seus trabalhos. Estava agora calmo, tranqüilo, e disposto a distrair o espírito com os pequenos problemas alheios.

Guccio Baglioni tinha nas pernas cento e vinte léguas de cavalgada, percorridas em menos de quatro dias. Não sentia mais os membros, névoa intensa enchia-lhe a cabeça e ele teria dado tudo para deitar-se, ali, no chão mesmo, e dormir... dormir...

Conseguiu dominar-se: sua segurança, seu porvir, seu amor, tudo exigia que vencesse, por um momento ainda, a sua fadiga.

— Eis o que se passou, Monsenhor: casei-me com uma jovem da nobreza — respondeu ele.

Pareceu-lhe que aquelas palavras tinham saído da boca de outro. Não eram as que ele gostaria de pronunciar. Desejaria explicar ao cardeal que uma desgraça sem precedentes tombara sobre ele, que era o homem mais abatido, mais despedaçado do Universo, que sua vida estava ameaçada, que fora, talvez, separado para sempre da mulher sem a qual não poderia viver, que essa mulher ia ser encerrada, que os acontecimentos tinham desabado sobre eles havia uma semana, com tamanha violência e tão inopinadamente, que o tempo parecera ter perdido suas dimensões habituais e ele mesmo sentia-se como que ausente do Universo... Ora, todo o seu drama, quando precisou expô-lo, resumia-se nesta pequena frase: “Monsenhor, casei-me com uma jovem da nobreza...”

— Ah! Sim — disse o cardeal. — Como se chama ela?

— Maria de Cressay.

— Cressay... Ah... Não conheço.

— Precisei casar-me secretamente, Monsenhor: a família opunha-se.

— Porque o senhor é um lombardo? Está claro, eles ainda estão um tanto atrasados, na França. Na Itália, com certeza... Bem, quer obter a anulação? Ora! Se o casamento foi secreto...

— Não, Monsenhor, eu a amo e ela me ama — disse Guccio. — Mas a família dela descobriu que ela estava grávida, e os irmãos perseguiram-me, para matar-me.

— Podem fazê-lo, tem o direito consuetudinário em seu favor. O senhor colocou-se na situação de sedutor... Quem vos casou?

— O frei Vicenzo.

— Fra Vicenzo... não conheço.

— O pior, Monsenhor, é que o padre morreu. Assim, nem mesmo posso provar que somos realmente casados... Mas não penseis que sou um covarde, Monsenhor. Gostaria de bater-me. Aconteceu, apenas, que meu tio dirigiu-se a messire de Bouville...

— ... que, muito sensatamente, o aconselhou a afastar-se por algum tempo.

— Mas Maria vai ser enclausurada num convento! Dizei--me, Monsenhor, achais que poderíeis fazê-la sair de lá? Pensais que tornarei a encontrá-la?

— Ah! Uma coisa de cada vez, meu caro filho — respondeu o cardeal, continuando a fazer girar a sua estante. — Um convento? Pois bem, onde poderia ela estar melhor, por ora?... Tenha esperança na mansuétude infinita de Deus, da qual todos nós necessitamos tanto...

Guccio baixou a cabeça, com ar esgotado. Seus cabelos negros estavam cobertos de poeira.

— Seu tio está em boas relações comerciais com os Bardi? — continuou o cardeal.

— Sem dúvida, Monsenhor, sem dúvida. Os Bardi são os vossos banqueiros, creio — respondeu Guccio, com maquinai polidez.

— Sim, são meus banqueiros. Mas acho que, ultimamente, parecem menos... menos fáceis de lidar do que no passado. São uma companhia tão grande! Têm agências em toda a parte. E ao menor pedido, precisam consultar Florença. Mostram-se tão lentos como um tribunal da Igreja... Seu tio tem muitos prelados entre seus clientes?

As preocupações de Guccio estavam bem longe do banco. A névoa ia adensando-se sobre sua fronte, e suas pálpebras ardiam.

— Não. Temos, sobretudo, os grandes barões — disse ele. — O Conde de Valois, o Conde d’Artois... Ficaríamos grandemente honrados, Monsenhor...

— Falaremos disso mais tarde. No momento, o senhor estáabrigado neste convento e passará como homem a meu serviço.

Talvez lhe dêem um trajo de clérigo... Providenciarei com o meu capelão. Pode despir essa libré e ir dormir em paz, coisa de que me parece ter grande necessidade.

Guccio cumprimentou, balbuciou algumas palavras de gratidão e fêz um movimento na direção da porta. Depois, detendo-se, disse:

— Não posso ainda despir-me, Monsenhor. Devo entregar outra mensagem.

— A quem? — perguntou Duèze, imediatamente desconfiado.

— Ao Conde de Poitiers.

— Confie-me a carta. Mandarei levá-la imediatamente por um irmão.

— É que, Monsenhor, messire de Bouville fazia muita questão...

— Sabe se essa mensagem tem algo a ver com o conclave?

— Oh! Não, Monsenhor! É a propósito da morte do rei.

O cardeal saltou de sua cadeira.

— O Rei Luís morreu? Mas por que não disse antes?

— Aqui ainda não o sabiam? Pensei que vos haviam prevenido, Monsenhor.

Na verdade, ele não pensava coisa alguma. Suas desgraças, seu cansaço, fizeram-no esquecer aquele acontecimento capital. Galopara em linha reta desde Paris, mudando de cavalos nos mosteiros que lhe haviam indicado, comendo às pressas, falando o menos possível, e ultrapassara, sem o saber, os mensageiros oficiais.

— De que morreu ele?

— É isso, justamente, que messire de Bouville deseja comunicar ao Conde de Poitiers.

— Crime? — cochichou Duèze.

— Ao que parece, o rei foi envenenado.

O cardeal refletiu por um instante.

— Eis o que pode mudar bastante as coisas — disse ele, num murmúrio. — Designaram um regente?

— Não o sei, Monsenhor. Quando saí, falava-se muito no Conde de Valois...

— Está bem, meu caro filho. Vá repousar...

— Mas, Monsenhor... e o Conde de Poitiers?

Os lábios finos e alongados do prelado esboçaram sorriso rápido, que poderia passar por uma expressão de benevolência.

— Não será muito prudente mostrar-se, e além disso o senhor está caindo de cansaço — disse ele. — Dê-me essa mensagem: para evitar-lhe qualquer censura, irei, pessoalmente, levá-la.

Alguns minutos mais tarde, precedido por um criado com um archote, como exigia sua dignidade, e seguido de um secretário, o cardeal de cúria saía da abadia de Ainay, entre o Ródano e Saône, e metia-se pelas ruelas sombrias, freqüentemente estreitadas pelos amontoados de imundícies. Magro, franzino, caminhava em passos saltitantes, levando seus setenta e dois anos quase de corrida. Seu trajo côr de purpura parecia dançar entre os muros.

Os sinos das vinte igrejas e dos quarenta e dois conventos de Lião soavam os primeiros ofícios. As distâncias eram curtas, naquela cidade que ainda não contava mais de vinte mil habitantes, dos quais a metade entregava-se ao comércio da religião e a outra metade à religião do comércio. O cardeal depressa chegou à residência do cônsul, na qual estava alojado o Conde de Poitiers.

 

                           AS PORTAS DE LIÃO

O CONDE de Poitiers acabava sua toilette da manhã, quando seu camareiro anunciou-lhe a visita do cardeal.

Muito alto, muito magro, o nariz proeminente, os cabelos descendo sobre a fronte em mechas curtas e tombando em cachos ao longo das faces, a pele fresca como se costuma ter aos vinte e três anos, o jovem príncipe, vestido com um trajo de interior feito de camocas marmorizado, veio acolher Monsenhor Duèze, beijando-lhe o anel com deferência.

Seria difícil encontrar contraste maior, dessemelhança mais irônica do que entre aqueles dois personagens, dos quais um fazia pensar num velho furão, saído de sua toca, e o outro numa garça real atravessando altivamente os pântanos.

— Apesar de hora matinal, Monsenhor — disse o cardeal — não quis demorar-me em trazer minhas orações no luto que vos atinge.

— Luto? — perguntou Filipe de Poitiers, com ligeiro sobressalto.

Seu primeiro pensamento foi para sua esposa Joana, que deixara em Paris, e que estava grávida de oito meses.

— Vejo, então, que fiz bem, vindo prevenir-vos — falou Duèze. — O rei, vosso irmão, morreu há cinco dias.

Na atitude de Filipe nada se alterou. Apenas uma inspiração mais forte levantou-lhe o peito. Nada passou sobre seu rosto, nem surpresa, nem emoção, nem mesmo impaciência em obter mais pormenores.

— Agradeço-vos a solicitude, Monsenhor. Mas como estais ao corrente de tal notícia... antes de mim?

— Por messire de Bouville, cujo mensageiro deu-se grande pressa para que eu vos entregasse secretamente esta carta.

O Conde de Poitiers abriu a mensagem e leu-a, aproximando-a do nariz, pois era muito míope. Ainda dessa vez não traiu sentimento algum. Simplesmente, acabando a leitura, dobrou novamente a carta e guardou-a em suas vestes. Depois, permaneceu silencioso.

O cardeal calava-se, afetando respeitar a dor do príncipe, embora esse último não desse grandes provas de aflição.

— Deus o guarde das penas do inferno — disse, enfim, o Conde de Poitiers, para corresponder à atitude devota do prelado.

— Oh... o inferno... — murmurou Duèze. — Enfim, roguemos a Deus! Penso, também, na infortunada Rainha Clemência, que vi crescer quando estive junto do rei de Nápoles.

Uma princesa tão doce, tão perfeita...

— Oh! Sim, é uma grande lástima para a minha cunhada

— disse Poitiers.

E, ao mesmo tempo, pensava: “Luís não deixou disposição testamentária alguma para a regência. Segundo escreve-me Bouville, meu tio Valois já se movimenta...”

— Que ides fazer, Monsenhor? Partireis imediatamente para Paris? — perguntou o cardeal.

— Não sei, não sei ainda — respondeu Poitiers. — Espero receber informações mais amplas. Ficarei à disposição do reino.

Bouville, em sua carta, não lhe escondia que desejava a sua volta. Como primeiro irmão do rei morto, e par do reino, o lugar de Poitiers era no conselho da coroa, onde, desde a primeira reunião, as dissensões tinham estalado, a propósito da designação de um regente.

Por outro lado, entretanto, Filipe de Poitiers sentia pena e repugnava-lhe, mesmo, deixar Lião antes de ter terminado as tarefas empreendidas.

Antes de mais nada, tinha de concluir o contrato de noivado entre sua terceira filha, Isabel, com cinco anos de idade apenas, e o “delfinzinho” de Viennois, o pequeno Guigues, que tinha seis. Negociara este casamento, na própria Vienne, com o delfim João II de La Tour du Pin e a delfina Beatriz, irmã da Rainha Clemência. Boa aliança, que permitiria à coroa da França contrabalançar naquela região a influência dos Anjou-Sicília. A assinatura do contrato devia dar-se dentro de poucos dias (4).

Além disso, havia principalmente a eleição papal. Durante semanas, Filipe de Poitiers tinha sulcado a Provença, o Viennois e o Lyonnais, para ver, um após o outro, os vinte e quatro cardeais dispersos (5), assegurando-lhes que a agressão de Carpentras não se reproduziria, que não lhes seria feita qualquer violência, dando a entender a muitos que poderiam ter sua oportunidade, lutando pelo prestígio da fé, pela dignidade da Igreja e pelo interesse dos Estados. Enfim, à custa de muitas conversas e dinheiro, conseguira reuni-los em Lião, cidade por muito tempo submetida à autoridade eclesiástica, mas que passara recentemente, nos últimos anos de Filipe, o Belo, para as mãos do rei da França.

O Conde de Poitiers sentia-se prestes a alcançar o alvo. Se partisse, não iria recomeçar tudo, os ódios pessoais reacendendo-se, e o domínio da nobreza romana ou o do rei de Nápoles suplantando o da França, os diversos partidos acusando--se mutuamente de heresia? O papado não iria voltar para Roma? “O que meu pai queria tanto evitar”... dizia consigo Filipe de Poitiers. “Sua obra, já de tal maneira arruinada por Luís e por nosso tio Valois, será inteiramente destruída?”

Durante alguns instantes, o Cardeal Duèze teve a impressão de que o jovem esquecera sua presença. E, subitamente, Poitiers perguntou-lhe:

— O partido gascão vai manter a candidatura do Cardeal de Pélagrue? Achais que vossos piedosos colegas estão, enfim, dispostos a se reunir em assembléia?... Sentai-vos, aqui, Monsenhor, e dizei-me claramente vosso sentir. Em que estamos?

O cardeal vira muitos soberanos e homens de governo, pois há um terço de século participava dos negócios de reinos. Mas nunca encontrara outros que tivessem tal domínio sobre si próprios. Ali estava um príncipe de vinte e três anos, ao qual acabavam de anunciar que o irmão morrera, que o trono estava desocupado, e que não parecia ter outras preocupações mais urgentes do que as complicações do conclave.

Sentados lado a lado, junto de uma janela, sobre uma arca recoberta de damasco, os pés do cardeal mal tocando o chão e o tornozelo delgado do Conde de Poitiers batendo lentamente o ar, os dois homens tiveram uma longa conversação.

Na realidade, segundo a exposição feita por Duèze, a situação voltara sensivelmente ao ponto em que se encontrava dois anos antes, depois da morte de Clemente V.

O partido dos dez cardeais gascões, também chamado o partido francês, continuava o mais numeroso, mas era insuficiente para constituir, sozinho, a maioria requerida dos dois terços do Sacro Colégio, ou seja, dezesseis votos. Os gascões, considerando-se depositários do pensamento do papa morto, ao qual todos eles deviam o cardinalato, defendiam com firmeza a permanência da sede em Avinhão e mostravam-se de uma unidade notável contra os dois outros partidos. Entre eles, porém, havia competição surda. Ao lado das ambições de Arnaldo de Pélagrue cresciam as de Arnaldo de Fougères e de Arnaldo Nouvel. Fazendo-se mútuas promessas, procuravam derrubar uns aos outros.

— A guerra dos três Arnaldos — disse Duèze, com sua voz cochichada. — Vejamos, agora, o partido dos italianos.

Eram apenas oito, esses, mas despedaçados em três facções. O temível Cardeal Caetani, sobrinho do papa Bonifácio VIII, opunha-se aos dois cardeais Colonna, por causa de uma rivalidade secular de famílias, que se tornara ódio inexpiável depois do caso d’Anagni e da bofetada aplicada por um Colonna no rosto de Bonifácio. Entre esses adversários, oscilavam os outros italianos. Stefaneschi, por hostilidade à política de Filipe, o Belo, defendia Caetani, do qual, aliás, era parente. Napoleão Orsini negaceava. Os oito só estavam coesos num ponto: a volta do papado para a Cidade Eterna. Mas, nisso, sua determinação era feroz.

— Sabeis bem, Monsenhor — continuava Duèze — que por um momento estivemos arriscados ao cisma, e que ainda estamos sob tal risco... Nossos italianos recusavam-se a reunir-se na França e ainda há pouco comunicaram que, se fosse eleito um papa gascão, não o reconheceriam e elegeriam o seu, em Roma.

— Não haverá cisma — disse, calmamente, o Conde de Poitiers.

— Graças a vós, Monsenhor, graças a vós, apraz-me reconhecê-lo e eu o digo por toda a parte. Indo de cidade a cidade levar a boa palavra, se ainda não encontrastes o pastor, já conseguistes reunir o rebanho.

— Ovelhas custosas, Monsenhor! Sabeis que parti de Paris com dezesseis mil libras, e que me foi preciso pedir outro tanto, na semana passada? Jasão, junto de mim, era senhor de pouca monta. Eu gostaria muito que todos esses tosões de ouro não me escorregassem por entre os dedos — disse o Conde de Poitiers, apertando levemente as pálpebras para olhar bem de frente o cardeal.

Este último, que se havia amplamente beneficiado daquelas liberalidades, por meios indiretos, não se deu por achado, mas respondeu :

— Creio que Napoleão Orsini e Albertini de Prato, e talvez mesmo Guilherme de Longis, que antes de mim foi chanceler do rei de Nápoles, se desligariam com bastante facilidade. Evitar um cisma valia tal preço.

Poitiers pensava: “Êle utilizou o dinheiro que lhe demos para conseguir três votos entre os italianos. É hábil”.

Quanto a Caetani, embora continuasse a bancar o irredutível, sua situação já não era tão forte depois de descobertas suas práticas de feitiçaria e sua tentativa de enfeitiçar o rei da França e o próprio Conde de Poitiers. O antigo templário Everardo, um semilouco, do qual Caetani se servira para suas obras demoníacas, tinha falado um tanto demais, antes de ir entregar-se à gente do rei...

— Trago aquele caso de reserva — disse o Conde de Poitiers. — O perfume da fogueira poderia, no momento oportuno, tornar Monsenhor Caetani um pouco mais flexível.

Um sorriso leve, muito furtivo, passou sobre os lábios delgados do velho prelado, ao pensamento de ver grelhar outro cardeal, e ele acrescentou:

— Ao que parece, Francisco Caetani abandonou completamente os negócios de Deus para ocupar-se apenas dos de Satanás. Não teria sido ele quem fêz atingir pelo veneno o vosso irmão, o rei, já que o feitiço não dera resultado?

O Conde de Poitiers deu de ombros.

— Cada vez que morre um rei, afirma-se que ele foi envenenado — respondeu. — Disseram isso de meu ancestral Luís VIII, disseram-no de meu pai, que Deus o guarde... Meu irmão tinha saúde bastante precária. Mas, enfim, a coisa merece ser meditada.

— Resta, enfim — disse Duèze — o terceiro partido, que chamam provençal, por causa do mais agitado entre nós, o Cardeal de Mandagout...

Aquele último partido contava apenas com seis cardeais, de origem diversa: meridionais, como os irmãos Bérenger Frédol, ali vizinhavam com os normandos e com um quercinês, que era o próprio Duèze.

O ouro com que Filipe os cobrira tornara-os mais receptivos aos argumentos da política francesa.

— Somos os menores, somos os mais fracos — disse Duèze — mas somos o apoio indispensável para qualquer maioria. E já que gascões e italianos recusam-se mutuamente um papa que poderia sair de suas fileiras, então, Monsenhor...

— Então será preciso escolher um papa no vosso grupo, não é verdade?

— Creio que sim, creio-o firmemente. Desde a morte de Clemente eu disse isso. Não me ouviram. Pensaram, sem dúvida, que eu estivesse pregando em causa própria, porque, realmente, meu nome fora pronunciado, sem que eu o quisesse.

Mas a corte de França nunca me outorgou grande confiança.

— O caso, Monsenhor, é que éreis demasiado abertamente amparado pela corte de Nápoles.

— E se eu não tivesse sido amparado por ninguém, Monsenhor, quem, então, quem teria jamais velado por mim! Não tenho outra ambição, podeis crer, senão ver os negócios da cristandade, que estão bem maus, em ordem. A tarefa do próximo sucessor de São Pedro será bem pesada.

O Conde de Poitiers juntou as mãos longas diante do rosto, e refletiu por alguns segundos.

— Pensais, Monsenhor, que os italianos, contra a satisfação de não terem um papa gascão, aceitariam que a Santa Sé ficasse em Avinhão, e que os gascões, pela certeza de Avinhão, renunciariam ao seu candidato para ligarem-se ao vosso terceiro partido?

O que significava, claramente: “Se vós, Monsenhor Duèze, vos tornardes papa com o meu apoio, comprometei-vos formalmente a conservar a residência atual do papado?”

Duèze compreendeu perfeitamente.

— Essa, Monsenhor — disse ele — seria a solução mais sensata.

— Vou guardar vossa preciosa opinião — disse Filipe de Poitiers levantando-se, para pôr termo à audiência.

Acompanhou o cardeal à saída.

O instante em que dois homens que tudo aparentemente separa a idade, o aspecto, a experiência, as funções, reconhecem-se de igual tempera e adivinham que pode nascer entre eles uma colaboração e uma amizade, esse instante depende mais de conjunções misteriosas do destino do que das palavras trocadas.

No momento em que Filipe inclinava-se para beijar o anel do cardeal, este murmurou:

— Serieis, Monsenhor, um excelente regente.

Filipe ergueu o corpo. “Sabia ele, então, que durante todo o tempo não pensei noutra coisa?”, pensou. E respondeu:

— Vós mesmo, Monsenhor, não serieis um excelente papa?

Não puderam evitar um sorriso discreto, o ancião com uma espécie de afeto paternal, o jovem com amistosa deferência.

— Eu vos agradecerei se conservardes em segredo a grave notícia que me trouxestes, até que seja publicamente confirmada.

— Assim farei, Monsenhor, para servir-vos.

Tendo ficado só, o Conde de Poitiers refletiu apenas por alguns segundos. Chamou seu primeiro camareiro.

— Adão Héron, chegou algum mensageiro de Paris? — perguntou.

— Não, Monsenhor.

— Então, mande fechar todas as portas de Lião.

 

                 ENXUGUEMOS NOSSAS LÁGRIMAS

NAQUELA manhã, a população lionesa viu-se privada de legumes. As carroças dos hortelãos ficaram retidas fora dos muros, e as donas de casa vociferavam diante dos mercados vazios. A única ponte, a que atravessava o Saône (pois a ponte do Ródano ainda não estava terminada), fora barrada pela tropa. Se não se podia entrar em Lião, também não se podia sair da cidade. Comerciantes italianos, viajantes, monges, ambulantes, apoiados pelos basbaques e pelos desocupados, aglomeravam-se em torno das portas e reclamavam explicações. O guarda respondia invariavelmente a todas as perguntas: “Ordem do Conde de Poitiers!” com esse ar distante, importante, que tomam os agentes da autoridade quando têm de aplicar uma medida cuja razão de ser eles próprios ignoram.

— Mas eu tenho minha filha doente em Fourvière...

— Minha granja de Saint-Just incendiou-se ontem, à tarde...

— O bailio de Villefranche vai me prender se eu não lhe levar meus impostos hoje mesmo...

— Ordem do Conde de Poitiers!

E quando a pressão tornava-se um tanto forte, os sargentos começavam a levantar suas maças.

Na cidade, estranhos rumores circulavam.

Uns garantiam que iam haver guerra. Mas com quem? Ninguém podia dizê-lo. Outros afirmavam que sangrento motim estalara durante a noite, junto do convento dos Agostinhos, entre os homens do rei e o pessoal dos cardeais italianos. Tinham ouvido passar os cavalos. Citavam, mesmo, o número de mortes. Mas, para as bandas dos Agostinhos, tudo estava calmo.

O arcebispo, Pedro de Savóia, sentia-se muito inquieto, perguntando a si próprio se os acontecimentos de antes de 1312 não estavam para se reproduzir e se não o iriam constranger a abandonar, em proveito do arcebispo de Sens, o primaciado das Gálias, única prerrogativa que pudera conservar quando da nova conexão de Lião com a coroa (6). Tinha enviado um de seus cônegos em busca de notícias, mas o cônego, chegando à residência do Conde de Poitiers, esbarrara com um escudeiro cortês e mudo. E o arcebispo estava esperando receber um ultimato.

Entre os cardeais alojados nos diversos estabelecimentos religiosos, a angústia não era menor e tocava mesmo as raias da loucura. Iriam repetir com eles o golpe de Carpentras? Mas, desta vez, como fugir? Emissários corriam dos agostinhos aos franciscanos, dos dominicanos aos cartuxos. O Cardeal Caetani tinha mandado seu factótum, o Abade Pedro, ao encontro de Napoleao Orsini, de Albertini de Prato, de Flisco, o único espanhol, a fim de dizer a estes prelados:

— Vede! Deixaste-vos seduzir pelo Conde de Poitiers. Êle tinha jurado que não nos molestaria e que nem mesmo precisaríamos entrar para a clausura a fim de voltar: que teríamos toda a liberdade. E agora fecha-nos em Lião.

O próprio Duèze recebeu a visita de dois de seus colegas provençais, o Cardeal de Mandagout e Béranger Frédol, o mais velho. Mas Duèze fingiu que estava mergulhado nos seus trabalhos teológicos e que não sabia de nada. Durante esse tempo, numa cela próxima de seu apartamento, Guccio Baglioni dormia como uma pedra, e não estava em condições de imaginar, sequer, que podia ter sido ele a origem de semelhante pânico.

Havia uma hora que messire Varay, cônsul de Lião(7), e três de seus colegas, vindos para exigir explicações em nome do conselho da cidade, batiam os pés de impaciência, na antecâmara do Conde de Poitiers.

Este último estava reunido, em conselho secreto, com os membros de seu círculo habitual e os grandes oficiais que faziam parte de sua missão.

Enfim, os reposteiros afastaram-se e o Conde de Poitiers apareceu, seguido de seus conselheiros. Todos tinham a expressão grave de homens que vinham de tomar importante decisão política.

— Ah! messire Varay, chegastes em boa ocasião, e vós também, senhores cônsules. Vamos poder entregar-vos agora mesmo a mensagem que preparávamos para remeter-vos. Messire Mille, podeis lê-la.

Mille de Noyers, jurisconsulto, conselheiro do Parlamento e marechal-de-hoste* sob Filipe, o Belo, desenrolou o pergaminho, e leu:

— A todos os bailios, senescais e conselheiros das boas cidades. Fazemos chegar ao vosso conhecimento a grande consternação que tivemos com a morte de nosso irmão bem-amado, o Rei nosso sire, Luís X, que Deus acaba de arrebatar ao afeto de seus vassalos. Mas a natureza humana é feita assim, e ninguém pode ultrapassar o termo que lhe foi estipulado. Assim, decidimos enxugar nossas lágrimas, rogar a Cristo, convosco, pela alma dele, e mostrar-nos zelosos do governo do reino de França e do reino de Navarra, a fim de que seus direitos não depereçam, e que os vassalos desses dois reinos vivam felizes, sob o escudo da justiça e da paz.

O regente dos dois reinos, pela graça de Deus

FILIPE.

Passada a primeira emoção, messire Varay foi imediatamente beijar a mão do Conde de Poitiers, e os outros cônsules imitaram-no, sem hesitação.

O rei estava morto. A notícia, em si, era bastante estupefaciente para que ninguém pensasse, ao menos durante alguns minutos, em fazer perguntas. E, na falta de um herdeiro maior, parecia perfeitamente normal que o mais velho dos irmãos do soberano assumisse o poder. Os cônsules não duvidaram por um só instante que a decisão tivesse sido tomada em Paris, pela Câmara dos pares.

— Mandai anunciar esta mensagem pela cidade — ordenou Filipe de Poitiers. — Depois disso, as portas serão abertas.

A seguir, acrescentou:

— Messire Varay, sois poderoso no negócio de lãs e eu vos agradeceria o fornecimento de vinte capas pretas, que fossem depositadas em rainha antecâmara, para que com elas se cubram as pessoas que me venham apresentar suas condolências.

E despediu os cônsules.

Os dois primeiros atos de sua tomada de poder estavam realizados. Fizera-se proclamar regente pelo pessoal de seu círculo habitual, que se tornara, ao mesmo tempo, seu conselho de governo. Ia ser reconhecido pela cidade de Lião, onde residia. Tinha pressa, agora, de estender esse reconhecimento ao conjunto do reino e colocar Paris diante de uma situação de fato. Era uma questão de rapidez.

Já os copistas reproduziam, em múltiplos exemplares, sua proclamação, e os mensageiros selavam seus cavalos para ir levá-la a todas as províncias.

Assim que se reabriram as portas de Lião, lançaram-se a galope, cruzando com três correios que desde a manhã estavam ali retidos, do outro lado do Saône. O primeiro desses correios trazia uma carta do Conde de Valois, que tomava posição de regente designado pelo conselho da coroa e pedia a aprovação de Filipe a fim de que aquela designação se tornasse efetiva. “Estou certo de que haveis de querer ajudar-me em minha tarefa, para bem do reino, e de que me dareis o mais depressa possível vossa aprovação, como bom e bem-amado sobrinho que sois.”

A segunda mensagem vinha do Duque de Borgonha, que também reclamava a regência em nome de sua sobrinha, a pequena Joana de Navarra.

Enfim, o Conde d’Evreux advertia Filipe de Poitiers que os pares não se haviam reunido segundo as prescrições de costume, e que a pressa de Carlos de Valois em se apoderar do governo não se apoiava em texto algum de assembléia regular.

O Conde de Poitiers tornou a reunir-se com seu pessoal, sem interrupção. Seu círculo era composto de homens hostis à política seguida havia dezoito meses pelo Turbulento e pelo Conde de Valois, a começar pelo condestável de França, Gaucher de Châtillon, chefe dos exércitos desde 1302, e que não perdoava a ridícula campanha da “expedição lamacenta” que fora obrigado a dirigir na Flandres, durante o verão precedente. Seu cunhado, Mille de Noyers, partilhava seu sentimento. O jurisconsulto Raul de Presles, depois de tantos serviços prestados ao Rei de Ferro, tivera seus bens confiscados, enquanto enforcavam seu amigo Enguerrand de Marigny, e ele próprio era submetido ao interrogatório pela água, sem que lhe pudessem arrancar confissões. Disso conservara sofrimentos permanentes de estômago e um rancor sólido contra o imperador de Cons-tantinopla. Devia ao Conde de Poitiers sua salvação e seu retorno às boas graças.

Assim, em torno deste último formara-se uma espécie de partido de oposição, agrupando os sobreviventes dos conselheiros de Filipe, o Belo. Nenhum deles via com bons olhos as ambições do Conde de Valois, nem desejava, igualmente, que o Duque de Borgonha se metesse nos negócios da coroa. Admiravam a rapidez com que o jovem príncipe agira, e nele colocavam suas esperanças.

Poitiers escreveu a Eudes de Borgonha e a Carlos de Valois, sem mencionar suas cartas e como se não as tivesse recebido, a fim de informá-los que se considerava regente por direito natural e que reuniria a assembléia dos pares, para sancionar esta situação, tão depressa quanto lhe fosse possível.

Ao mesmo tempo, designava comissários para irem aos principais centros do reino tomar posse do comando, em seu nome. Assim, partiram durante o dia numerosos de seus cavaleiros — que deviam tornar-se, mais tarde, seus “cavaleiros seguidores” (8) — como Regnault de Lor, Tomás de Marfontaine e Guilherme Courteheuse. Conservou a seu lado Anseau de Joinville, filho do grande Joinville, e Henrique de Sully.

Enquanto os dobres de finados soavam em todos os campanários, Filipe de Poitiers conferenciava longamente com Gaucher de Châtillon. Por direito, o Condestável da França tinha assento em todas as assembléias do governo, Câmara dos Pares, Grande Conselho, Conselho Restrito. Filipe pediu, pois, a Gaucher que fosse a Paris representá-lo e opor-se, até sua própria chegada, às investidas de Carlos de Valois. O Condestável, por outro lado, garantiria reunir sob suas mãos as tropas assoldadas de Paris e particularmente o corpo de besteiros.

Pois o novo regente, de início surpreendendo os seus conselheiros, depois com a aprovação deles, tinha resolvido residir provisoriamente em Lião.

— Não devemos desviar-nos das tarefas em curso — declarara. — Para o reino o mais importante é ter um papa, e seremos muito mais fortes quando o tivermos.

Apressou a assinatura do contrato de noivado entre sua filha e o delfinzinho. O caso, à primeira vista, nenhuma relação tinha com a eleição pontificai. No espírito de Filipe, entretanto, um caso ligava-se ao outro. A aliança com o delfim de Viennois, que reinava sobre todos os territórios ao sul de Lião, e dominava o caminho da Itália, formava uma peça de seu jogo. Os cardeais, se pretendessem escapar entre seus dedos, não poderiam refugiar-se daquele lado. Além disso, aquele noivado consolidava a posição do regente, pois o delfim estaria do seu lado, com boas razões para não o abandonar.

O contrato, devido ao luto, foi assinado sem festas, nos dias que se seguiram.

Além disso, Filipe de Poitiers conferenciou com o mais poderoso barão da região, o Conde de Forez, cunhado, aliás, do delfim, e que controlava, por sua parte, a margem direita do Ródano.

João de Forez tinha feito as campanhas de Flandres, representado várias vezes Filipe, o Belo, na corte papal, e havia trabalhado muito ultimamente pela adesão de Lião à coroa. O Conde de Poitiers, desde que retomava a política paterna, sabia poder contar com ele.

No dia 16 de junho, o Conde de Forez teve um gesto altamente espetacular. Prestou solene homenagem a Filipe, como ao senhor de todos os senhores da França, reconhecendo-o, assim, detentor da autoridade real.

No dia seguinte, o Conde Bermond de la Voulte, cujo feudo de Pierregourde encontrava-se na senescalia de Lião, colocou suas mãos entre as mãos do Conde de Poitiers, e prestou-lhe juramento nas mesmas condições.

Filipe pediu ao Conde de Forez que mantivesse, discretamente, setecentos homens em armas. Os cardeais, dali por diante, não mais se afastariam da cidade.

Entretanto, daí a obter uma eleição faltava muito. As negociações marcavam passo. Os italianos, percebendo que o regente desejava voltar o mais depressa possível para Paris, haviam-se mostrado inflexíveis em suas posições. “Êle se cansará primeiro”, diziam. Pouco lhes importava o estado de trágica anarquia em que se afundavam os negócios da Igreja.

Filipe de Poitiers teve diversas entrevistas com o Cardeal Duèze, que lhe parecia, decididamente, o homem mais inteligente do conclave, o conhecedor mais claro e mais imaginativo, ao mesmo tempo, em matéria religiosa, o administrador mais recomendado para a cristandade, no momento difícil em que se encontravam.

— A heresia, Monsenhor, está reflorescendo um tanto, em toda a parte — dizia o cardeal, com sua voz rachada, inquietante. — E como poderia ser de outra forma, com o exemplo que damos? O demônio aproveita-se de nossas discórdias para semear seu joio. Mas é sobretudo na diocese de Toulouse que ele cresce mais forte. Velha terra de rebelião e de maus sonhos! Será conveniente que o próximo papa divida aquela diocese grande demais, difícil de governar, transformando-a em cinco bispados, cada um deles entregue a mãos fortes.

— O que viria a criar quantidade de novos benefícios — respondeu o Conde de Poitiers — sobre os quais, estou bem certo, o tesouro de França recolheria anatas. Encontrais nisso algum obstáculo?

— Absolutamente.

Chamava-se anatas o direito real de receber o primeiro ano das rendas de um novo benefício eclesiástico. A falta de papa impedia que se procedesse à criação de benefícios, com prejuízo para o Tesouro, que ficava sem suas rendas, sem falar na quase impossibilidade de obter a entrada dos impostos atrasados da Igreja, o clero aproveitando-se da situação para erguer toda espécie de dificuldades, impossíveis de resolver enquanto o trono de São Pedro se conservasse vazio.

Realmente, quando Filipe e Duèze encaravam o futuro, um como regente, outro como eventual pontífice, suas primeiras preocupações eram de caráter financeiro.

Pelas subvenções feudais, pela revolta da Flandres, pela insurreição dos nobres de Artois, e pelas brilhantes inspirações de Carlos de Valois, o tesouro real estava não somente exaurido, mas endividado por muitos anos.

O tesouro pontificai, depois de dois anos de conclave errante, não se via em melhor estado. E se os cardeais vendiam-se assim tão caro aos príncipes deste mundo, é que já não havia, para muitos entre eles, outros meios de subsistência senão a negociação de seus votos.

— As multas, Monsenhor, as multas — aconselhava Duèze ao jovem regente. — Castigai com multas os que tiverem errado, e quanto mais ricos forem, mais forte seja o castigo. Se o que faltou contra a lei possui cem libras, tirai-lhe vinte. Mas se possui mil tirai-lhe quinhentas; e se é rico, de cem mil tirai-lhe quase tudo. Tereis, com isso, três vantagens: antes de mais nada, as entradas serão maiores, depois, privado de seu poder, o faltoso não poderá mais abusar, e, enfim, os pobres, que são mais numerosos, ficarão de vosso lado e terão confiança em vossa justiça.

Filipe de Poitiers sorriu.

— O que preconizais muito sensatamente, Monsenhor, pode convir à justiça real que age através de braço temporal — respondeu ele. — Mas, para restaurar as finanças da Igreja, não vejo como...

— As multas, as multas — repetiu Duèze. — Lancemos impostos sobre os pecados: será uma fonte inesgotável. O homem é pecador por natureza, mais disposto, porém, a fazer penitência de coração que penitência de bolsa. Terá arrependimento mais vivo de suas faltas e hesitará por mais tempo em reincidir em seus erros, se as absolvições forem acompanhadas de uma taxa.

Quem tem pena de ter errado, pena pague.

“Será gracejo, isto?”, pensou Poitiers, que, convivendo com Duèze, descobria a tendência do cardeal de cúria para o paradoxo e a fraude.

— E que pecados taxaríeis, Monsenhor? — perguntou, como se aderisse ao gracejo.

— Antes de mais nada, os que se cometem entre o clero. Comecemos por nos reformar antes de empreender reforma alheia. Nossa Santa Madre é tolerante demais para com as faltas e abusos. Assim, nem o clericato nem o sacerdócio podem ser dados a homens estropiados ou disformes. Ora, um dia destes vi certo Padre Pedro, que trabalha com o Cardeal Caetani, e que tem dois polegares na mão esquerda.

“Pequena perfídia contra nosso velho inimigo!”, disse consigo Poitiers.

— Fiz indagações — continuou Duèze. — Ao que parece, existe uma legião de coxos, manetas, eunucos, que escondem sua infelicidade sob um hábito e recebem os benefícios da Igreja. Iremos expulsá-los de nosso meio, sem, conduto, apagar sua falta, reduzi-los à miséria e, quem sabe, impeli-los para junto dos hereges de Toulouse ou de outras confrarias de espiritualistas? Permitamos, de preferência, que se resgatem.

O velho prelado estava falando perfeitamente a sério. Sua imaginação havia tomado ímpeto desde seu encontro com o Padre Pedro, e arquitetara, durante suas últimas noites, todo um sistema muitíssimo preciso, com o qual contava poder redigir um memorial, que submeteria — disse ele, modestamente — ao próximo papa.

Tratava-se da instituição de uma Penitenciaria Santa, que acarretaria para a Santa Sé as rendas sobre as absolvições em todos os assuntos. Os padres estropiados poderiam obter quitação à razão de tantas libras por dedo que faltasse, o dobro por um olho perdido, outro tanto pela ausência de um ou dois testículos. Aqueles que tivessem mutilado a si mesmo em sua virilidade, pagariam mais caro. Das enfermidades do corpo Duèze passava às da alma. Os bastardos que tivessem escondido a condição de seu nascimento, os clérigos que houvessem recebido tonsura embora fossem casados, os que se casavam secretamente depois da ordenação, como acontecia com freqüência, os que viviam sem se casar em companhia de mulher, os bígamos, os incestuosos, os sodomitas, todos seriam taxados na proporção de suas faltas. As freiras que se tivessem dado ao deboche com vários homens, dentro ou fora de seus conventos, seriam submetidas a uma reabilitação particularmente cara (9).

— Se a instituição dessa penitenciaria — declarou Duèze — não render cem mil libras no primeiro ano, eu quero ser...

Ia dizer “quero ser queimado”, mas deteve-se a tempo.

Poitiers pensava: “Ao menos, se ele fôr eleito, não terei preocupações com as finanças papalinas”.

Mas, apesar de todas as manobras de Duèze e apesar do apoio que Poitiers lhe dava sub-repticiamente, o conclave continuava a marcar passo.

Ora, as notícias de Paris eram bastante más. Gaucher de Châtillon, fazendo frente comum com o Conde d’Evreux e Mafalda d’Artois, esforçava-se por limitar as ambições de Carlos de Valois. Apesar disso, este último morava no palácio da Cité, onde tinha a Rainha Clemência à sua mercê. Administrava os negócios como entendia, expedia para as províncias instruções contrárias às que Poitiers enviava de Lião. Por outro lado, o Duque de Borgonha chegara a Paris no dia 16 de junho, para ali fazer com que fossem reconhecidos os seus direitos. Sabia-se apoiado pelos vassalos de seu imenso ducado. A França tinha, pois, três regentes. Aquela situação não podia durar muito, e Gaucher suplicava a Filipe que voltasse a Paris.

No dia 27 de junho, depois de um conselho restrito, ao qual assistiram o Conde de Forez e o Conde de La Voulte, o jovem príncipe resolveu pôr-se a caminho o mais cedo possível, e mandou que reunissem o trem de bagagem de sua escolta. Ao mesmo tempo, lembrando-se que nenhum ofício solene fora ainda celebrado pelo descanso da alma de seu irmão, ordenou que grandes missas fossem ditas no dia seguinte, antes de sua partida, em todas as paróquias da cidade. Todo o pessoal do alto e do baixo clero devia assistir a tais ofícios, a fim de se associar às preces do regente.

Os cardeais, sobretudo os cardeais italianos, exultavam. Filipe de Poitiers via-se obrigado a deixar Lião, sem tê-los dobrado.

— Êle disfarça a fuga sob as pompas do luto — disse Caetani — mas, de qualquer maneira, parte, o maldito! Entretanto, estava certo de nos ter vencido! Antes de um mês, eu vos asseguro, estaremos de volta a Roma.

 

                             AS PORTAS DO CONCLAVE

OS CARDEAIS são personagens importantes que não devem ser confundidos com a arraia miúda do clero. O Conde de Poitiers ordenara que lhes fosse reservada, para o serviço fúnebre em memória de Luís X, a igreja do convento dos frades Pregadores, chamada igreja dos Jacobinos (10), a mais bela, mais vasta, depois da primacial São João, e também a melhor fortificada. Os cardeais não viram em tal escolha senão uma homenagem normal à sua dignidade. Nenhum deles faltou à cerimônia.

Eram apenas vinte e quatro e, entretanto, a igreja estava repleta, pois cada cardeal viera escoltado por toda a sua casa, capelão, secretário, tesoureiro, clérigos, donzéis, criados, carregadores de cauda e de tochas: perto de seiscentas pessoas, no total, reunidas entre as pesadas colunas brancas.

Raramente missa fúnebre terá sido acompanhada com tão pouco recolhimento. Era a primeira vez, depois de muitos meses, que os cardeais, que viviam em residências separadas e organizados em grupos de uma mesma facção, encontravam-se todos reunidos. Alguns deles havia mais de dois anos que não se viam. Vigiavam-se, espiavam-se, comentavam, uns e outros, os respectivos gestos e aparências.

— Vistes? — cochichavam. — Orsini acaba de cumprimentar o Frédol mais moço... Stefaneschi conversou por um momento com Mandagout... Será que vão se aproximar dos provençais?... Mas Duèze não tem boa cara, envelheceu muito...

Com efeito, Duèze, esforçando-se para disciplinar seu andar saltitante de velho rapaz, adiantava-se em passos lentos e respondia vagamente aos cumprimentos, como homem desapegado do inundo.

Guccio Baglioni, em trajo de donzel, fazia parte de seu séquito. Deveria falar apenas italiano e dizer ter vindo diretamente de Siena.

“Talvez eu tivesse feito melhor, dizia Guccio, se me tivesse colocado sob a proteção do Conde de Poitiers. Porque hoje, sem dúvida, voltaria com ele para Paris e poderia indagar de Maria, de quem não tenho notícias há tantos dias. Enquanto, agora, vejo-me dependendo desta raposa velha, a quem prometi o dinheiro de meu tio, mas que nada fará por mim enquanto esse dinheiro não chegar. E meu tio não responde ... E dizem que em Paris tudo está transformado... Maria, Maria, minha bela Maria!... Será que não vai pensar que a abandonei? Talvez neste momento esteja me odiando! Que terão eles feito?”

Via a jovem seqüestrada por seus irmãos, em Cressay, ou em algum convento para jovens arrependidas. “Se passar mais uma semana assim, fugirei para Paris.”

Várias vezes Duèze olhou para trás, com ar subitamente atento.

— Temeis algo, Monsenhor? — perguntou-lhe Guccio.

— Não, nada temo — respondeu o cardeal, pondo-se novamente a observar disfarçadamente seus vizinhos.

O rosto magro, cortado por um nariz comprido e adunco, os cabelos voando como chamas em torno de seu solidéu vermelho, o temível Cardeal Caetani não escondia seu triunfo. O catafalco, símbolo da morte de Luís X, correspondia, em seu espírito, ao boneco de cera, transpassado de alfinetes, sobre o qual fizera praticar a bruxaria. Os olhares que trocava com o pessoal de seu séquito, o Padre Pedro, o irmão Bost e o clérigo Andrieu, seu secretário, eram olhares de vitória. Tinha desejo de dizer a todos os presentes: • “Eis, Monsenhores, o que acontece a quem provoca a vingança dos Caetani, que já eram poderosos no tempo de Júlio César”.

Os dois irmãos Colonna, de forte queixo redondo, cortado por uma covinha vertical, pareciam guerreiros disfarçados em prelados.

O Conde de Poitiers não economizara os chantres. Havia uma boa centena deles fazendo ressoar suas vozes, acompanhadas pelos órgãos, cujos foles eram manejados com vigor por quatro homens. Música estrondosa, real, rolava sob as abóbadas, saturava o ar com vibrações, envolvia o aglomerado dos presentes. Os membros do pequeno clero podiam tagarelar impunemente entre si, e os donzéis rir zombeteiramente de seus senhores. Seria impossível, a três passos de distância, discernir o que se dizia, e menos ainda o que se passava nas portas.

O ofício terminou: os órgãos e os chantres calaram-se, os batentes da porta principal foram abertos. Luz alguma, entretanto, penetrou na igreja.

Houve um momento de estupefação, como se algum milagre houvesse, durante a cerimônia, obscurecido o sol. Depois, os cardeais compreenderam, e furiosos clamores levantaram-se. Uma parede recente tapava a porta principal. O regente, durante a missa, tinha mandado emparedar todas as saídas. Os cardeais estavam aprisionados.

Foi um belo alvoroço: prelados, cônegos, padres, criados, misturados uns aos outros, corriam em todos os sentidos como ratos apanhados na armadilha. Os donzéis subiam aos ombros uns dos outros, içando-se até os vitrais, e gritavam:

— A igreja está cercada por todos os lados de soldados armados.

— Que vamos fazer, que vamos fazer? — gemiam os cardeais. — O regente enganou-nos!

— Por isso é que nos ofereceu música tão forte!

— É um atentado contra a Igreja. Que vamos fazer?

— Vamos excomungá-lo — gritou Caetani.

— E se ele nos matar de fome, ou nos mandar massacrar?

Os dois irmãos Colonna e o pessoal de seu partido já se haviam armado com pesados candelabros de bronze, com bancos e bastões de procissão, decididos a vender caro a sua existência. Italianos e gascões já tinham começado a lançar-se censuras mútuas.

— Vede bem que a culpa é vossa — gritavam os primeiros. — Se tivésseis recusado vir a Lião! ... Bem sabíamos que seríamos vítimas de uma traição.

— Se tivésseis eleito um dos nossos, não estaríamos aqui a estas horas — replicavam os segundos. — A culpa é vossa, maus cristãos!

Estavam quase a chegar às vias de fato.

Uma única porta não fora inteiramente murada. Tinha sido deixada passagem suficiente para um homem, mas naquela estreita abertura eriçava-se uma verdadeira moita de piques, mantidos pelos guantes de ferro. Os piques ergueram-se, e o Conde de Forez, de armadura, seguido de Bermond de Ia Voulte e de algumas outras couraças, penetrou na igreja. O grupo foi acolhido com uma explosão de ameaças e de grosseiras injúrias.

Os braços cruzados sobre o punho de sua espada, o Conde de Forez esperava que a agitação se acalmasse. Era homem poderoso, cheio de coragem, insensível às ameaças como às súplicas, profundamente chocado com o exemplo que havia dois anos vinham dando os cardeais, e pronto a tudo para executar as instruções do Conde de Poitiers. Seu rosto rude, cortado pelas rugas, aparecia pela abertura do elmo.

Quando os cardeais e seus homens cansaram-se de vociferar, sua voz elevou-se, clara, martelada, propagando-se por sobre todas as cabeças, até o fundo da nave.

— Monsenhores, estou aqui por ordem do regente da França, para notificar-vos de que deveis tratar, daqui por diante, unicamente da eleição de um papa, e dar-vos a saber que daqui não saireis enquanto esse papa não fôr eleito. Cada um dos cardeais conservará junto de si apenas um capelão e dois donzéis ou clérigos de sua escolha, para seu serviço. Todas as outras pessoas podem retirar-se.

Os gascões e provençais não se mostraram menos indignados do que os italianos.

— Isto é uma felonia — exclamou o Cardeal de Pélagrue. — O Conde de Poitiers jurou-nos que nem mesmo precisaríamos ficar em clausura, e foi a esse preço que aceitamos vir ter com ele em Lião.

— O Conde de Poitiers — respondeu João de Forez — dava, então, a palavra do rei da França. Mas o rei da França não mais existe, e hoje o que vos trago é a palavra do regente.

Indignação unânime sacudiu o auditório. As invectivas, em italiano, em francês e em provençal, mesclavam-se. O Cardeal Duèze deixara-se tombar num confessionário, a mão sobre o coração, como se sua idade avançada não pudesse suportar tal golpe, e fingia associar-se aos protestos com murmúrios inaudíveis. Arnaldo d’Auch, o cardeal camerlengo, prelado barrigudo e sangüíneo, avançou para o Conde de Forez, e declarou-lhe em tom ameaçador:

— Messire, um papa não pode ser eleito em tais condições, porque violais a constituição de Gregório X, que obriga o conclave a reunir-se na cidade onde morreu o papa.

— Nela estáveis, Monsenhor, já há dois anos, e vos dispersastes sem ter eleito o papa, o que é contrário à constituição. Mas se porventura desejais ser reconduzidos a Carpentras, para lá vos faremos levar, com boa escolta, em carros fechados.

— Não devemos nos reunir sob ameaça de força!

— Por isso é que setecentos homens armados, Monsenhor, estão lá fora, guardando-vos, fornecidos pelas autoridades da cidade, a fim de .garantir vossa proteção e vosso isolamento... tal como prescreve á constituição. Sire de la Voulte, que aqui está e que é de Lião, foi encarregado de velar por isso. Messire, o regente manda também comunicar-vos que, se no terceiro dia não conseguirdes entrar em acordo, só recebereis como alimentação um prato por dia e, a partir do nono dia, só tereis pão e água... como está igualmente dito na constituição de Gregório. E que, enfim, se pelo jejum não receberdes luz, mandará destruir o teto e ficareis expostos às intempéries.

Bérenger Frédol, o mais velho, interveio:

— Messire, submeter-nos a tal tratamento é tornar-se culpado de homicídio, porque alguns de nós não resistirão. Vede Monsenhor Duèze já completamente abatido e que terá necessidade de atenções.

— Ah! Sem dúvida! Sem dúvida! — declarou, em voz fraca, Duèze. —- Eu não poderei suportar esse tratamento.

— Deixai, deixai — exclamou então Caetani. — Estais vendo bem que estamos tratando com animais ferozes e mal cheirosos. Sabei, porém, Messire, que em lugar de elegermos um papa, vamos excomungar-vos, a vós e ao vosso perjuro.

— Se vos reunirdes para excomungar, Monsenhor Caetani — respondeu, calmamente, o Conde de Forez — o regente poderia comunicar ao conclave o nome de certos feiticeiros e bruxos, que seria conveniente colocar à frente da fornada.

— Não estou compreendendo — disse Caetani, batendo imediatamente em retirada — o que vem fazer aqui a feitiçaria, pois que é do papa que nos devemos ocupar.

— Eh! Monsenhor! Entendemo-nos bem. Fazei, pois, saírem as pessoas que não vos são úteis no momento, porque não haveria víveres que chegassem para alimentar tanta gente.

Os cardeais compreenderam que toda á resistência seria vã e que aquela couraça, transmitindo-lhes, em voz cortante, as ordens do Conde de Poitiers, não se dobraria. Atrás de João de Forez, homens armados começavam já a entrar, um a um, pique em punho, e a se alinharem no fundo da igreja.

— Usaremos astúcia, pois que não podemos usar força — disse a meia voz Caetani aos italianos. — Finjamos submeter-nos, já que no momento não podemos fazer outra coisa.

Cada um deles escolheu em seu séquito os três servidores mais fiéis, os que julgava serem os melhores conselheiros, os mais finos na intriga ou mais aptos para prestar-lhes os serviços corporais nas difíceis condições materiais em que se iam encontrar. Caetani conservou junto de si o Frade Bost, Andrieu e Pedro, o padre de polegar bífido, isto é, os homens que tinham participado no embruxamento de Luís X. Preferia vê-los encerrados com ele do que arriscá-los à confissão pela tortura ou pelo dinheiro. Os Colonna conservaram consigo quatro donzéis, que tinham punhos de magarefes. Cônegos, clérigos, porta--tochas e caudatários começaram a sair, um por um, diante da ala de homens armados. Seus senhores, de passagem, sopravam-lhes recados :

— Manda contar a meu irmão, o bispo... Escreve em meu nome a meu primo de Got... Parte imediatamente para Roma...

No momento em que Guccio Baglioni dispunha-se a entrar na fila dos que saíam, Duèze estendeu sua mão magra para fora do confessionário onde jazia, abatido, e agarrou o jovem italiano pela cota, murmurando-lhe :

— Fique, pequeno, fique junto de mim. Estou certo de que me serás útil.

Duèze sabia, por experiência própria, que os podêres do dinheiro não são negligenciáveis num conclave: para ele, era uma sorte inesperada poder conservar ali um representante dos bancos lombardos.

Uma hora mais tarde, na igreja dos Jacobinos, havia apenas noventa e seis homens, destinados a ali ficarem enquanto vinte e quatro entre eles não se pusessem de acordo para escolher um só. Os soldados, antes de se retirarem, tinham trazido braçadas de palha, que seriam o leito, sobre a própria pedra, dos mais poderosos prelados do mundo. Algumas bacias foram transportadas para dentro, destinadas à toilette, e água, em grandes jarros, ficou à sua disposição. Os pedreiros, sob os olhos do Conde de Forez, tinham acabado de murar a última saída, deixando apenas, a meia altura, um pequeno vão quadrado, trapeira suficiente para a passagem dos pratos, mas insuficiente para a passagem de um homem. Em toda a volta da igreja, os soldados haviam retomado suas companhias, dispostos de três em três toesas em duas filas, uma encostada à parede e olhando para a cidade, outra voltada para a igreja, e vigiando os vitrais.

Cerca de meio-dia, o Conde de Poitiers pôs-se a caminho para Paris. Levava em seu séquito o delfim de Viennois e o delfinzinho, que dali por diante viveria em sua corte, a fim de familiarizar-se com sua noiva de cinco anos.

Àquela hora os cardeais receberam sua primeira refeição. Era dia magro, e eles não tiveram carne.

 

                       DE NEAUPHLE A SAINT-MARCEL

CERTA MANHÃ do início de julho, bem antes do alvorecer, João de Cressay entrou no quarto de sua irmã. O rapagão trazia uma candeia que deitava fumaça. Tinha lavado a barba e estava usando sua melhor cota de cavalgar.

— Levanta-te, Maria — disse ele. — Partes esta manhã.

Pedro e eu vamos conduzir-te.

A jovem sentou-se em sua cama:

— Partir?... Mas, como?... É hoje que devo partir?...

Tinha o espírito enevoado pelo sono e olhava para seu irmão, com seus grandes olhos de um azul sombrio, fixamente, sem compreender. Maquinalmente, jogou sobre o ombro seus longos cabelos, espessos e sedosos, onde passavam reflexos dourados.

João de Cressay contemplava sem entusiasmo algum a beleza de sua irmã, como se esta fosse um pecado.

— Faz um embrulho de teus trapos, porque para cá não voltarás tão cedo.

— Mas para onde ides levar-me? — perguntou Maria.

— Vais ver.

— Mas ontem... por que não me disse isso ontem?

— Para que tivesses tempo de nos pregar uma outra de tuas peças?... Vamos, apressa-te: quero estar a caminho antes que nossos servos nos vejam. Já nos cobriste bastante de vergonha, e não há necessidade que eles murmurem ainda mais.

Maria não respondeu. Havia um mês que sua família não a tratava de outra maneira nem se dirigia a ela em outro tom. Levantou-se, um pouco pesada pela gravidez de cinco meses, cujo peso, por pequeno que fosse, surpreendia-a sempre ao saltar da cama. À luz da candeia deixada por João, preparou-se, lavando o rosto e o peito, e enrolou rapidamente os cabelos. Percebeu que suas mãos tremiam. Para onde a levavam? Para que convento? Pôs no pescoço o relicário de ouro que Guccio lhe dera, e que vinha, segundo ele dissera, da Rainha Clemência. “Até hoje, estas relíquias protegeram-me bem pouco”, pensou. “Terei feito mal as orações que lhes devo?” Dobrou juntos um vestido e algumas roupas de baixo, um vestido sem mangas e toalhas de banho.

— Deves cobrir-te com tua capa de capuz grande — recomendou-lhe João, que tornou a entrar por um instante em seu quarto.

— Mas vou morrer de calor! — disse Maria. — Aquela capa é para o inverno.

— Tua mãe quer que caminhes com o rosto coberto. Obedece e apressa-te.

No pátio, o outro irmão, Pedro, selava os dois cavalos.

Maria sabia bem que aquele dia havia de chegar. De certa forma, apesar da angústia que tinha no coração, não sofria demasiadamente, pois chegara a desejar a partida. Por muito triste que fosse o convento, seria mais suportável do que os agravos e censuras diariamente repetidos. Pelo menos, estaria sozinha com sua infelicidade. Pelo menos, não precisaria suportar os furores de sua mãe, acamada por causa de uma congestão, desde que o drama rebentara, e que maldizia a filha de cada vez que aquela lhe levava uma tisana. Depois do que, era preciso chamar com urgência o barbeiro de Neauphle, para que ele viesse retirar uma pinta de sangue negro da gorda castelã. Por seis vezes, em menos de duas semanas, haviam sangrado a senhora Eliabel, e não parecia que tal tratamento acelerasse a volta de sua saúde.

Maria era tratada por seus dois irmãos, principalmente por João, como uma criminosa. Ah! Sem dúvida! Antes o claustro, mil vezes. Mas, no fundo de uma clausura, poderia ter um dia notícias de Guccio? Esta era sua obsessão, seu pior temor pela sorte que a esperava. Seus malvados irmãos afirmavam-lhe que Guccio fugira para o estrangeiro.

“Eles não querem confessar-me”, dizia ela consigo mesma, “mas mandaram-no para uma masmorra. Não é possível, não é possível que me tenha abandonado! Ou então voltou para cá, a fim de salvar-me, e é por isso que estão com tanta pressa de levar-me daqui, para matá-lo depois. Eu devia ter concordado em ir embora com ele! Não o quis ouvir para não magoar minha mãe e meus irmãos, e eis que cheguei ao pior, esperando fazer o melhor.”

Sua imaginação fazia-a ver todas as formas possíveis de catástrofes. De vez em quando, chegava a desejar que Guccio tivesse realmente fugido, deixando-a entregue à sua má sorte. Sem ninguém a quem pedir conselho ou ao menos compaixão, não tinha outra companhia senão a do filho que trazia no ventre. Mas era preciso reconhecer que aquela existência ainda era de bem pouco auxílio, a não ser pela coragem que lhe inspirava.

No instante de partir, Maria de Cressay perguntou se podia dizer adeus à sua mãe. Pedro subiu ao quarto onde estava a senhora Eliabel, mas dali partiram tais gritos soltados pela viúva, à qual as sangrias ainda não tinham tirado de todo a voz, que Maria compreendeu a inutilidade de seu pedido. Pedro tornou a descer, o rosto triste, as mãos afastadas, num gesto de impotência.

— Ela me respondeu que não tinha mais filha — disse ele.

E Maria pensou, uma vez mais: “Melhor teria eu feito, se fugisse com Guccio. Tudo isto é culpa minha. Devia ter ido com ele”.

Os dois irmãos cavalgaram suas montarias e João de Cressay tomou a irmã na garupa, porque seu cavalo era o melhor, ou, antes, o menos mau dos dois. Pedro cavalgava o pequeno poldro cabeceador, que produzia um ruído de lima com as narinas, e sobre o qual, no mês precedente, os dois irmãos tinham feito uma tão bela entrada na capital.

Maria lançou os olhos, pela última vez, para o pequeno solar de onde jamais saíra desde que nascera, e que, na meia-luz de uma alvorada insegura, revestia-se já da tonalidade cinzenta de uma recordação. Todos os instantes de sua vida, desde que abrira os olhos, estavam inscritos entre aquelas paredes e naquela paisagem: seus brinquedos de menina, a surpreendente descoberta de si mesma e do mundo, que cada criatura faz por sua vez, dia após dia... a diversidade infinita das ervas num campo, a estranha forma das flores e o pó maravilhoso que elas trazem no coração, a doçura da penugem que os patinhos novos têm no ventre, os reflexos do sol sobre as asas das libélulas... Deixava ali todas as horas que passara vendo-se crescer, ouvindo-se sonhar, todas as épocas de seu rosto, que tantas vezes contemplara na água transparente do Mauldre, e aquele grande deslumbramento de viver que sentia às vezes, deitada de bruços no meio do prado, procurando os presságios na forma das nuvens e imaginando Deus presente no fundo do céu... Passou diante da capela onde repousava, sob uma laje, o corpo de seu pai, e onde o monge italiano casara-a secretamente com Guccio.

— Abaixa teu capuz — ordenou-lhe seu irmão João.

Passado o rio, apressou o passo do cavalo e, imediatamente, o de Pedro começou a cabecear.

— João, não vamos depressa demais? — disse Pedro, designando Maria com um movimento de cabeça.

— Ora essa! A má semente tem raízes fundas — disse o mais velho, como se, maldosamente, desejasse um acidente.

Mas suas esperanças foram ludibriadas. Maria era jovem, robusta, feita para a maternidade, e percorreu as dez léguas de caminho entre Neauphle e Paris sem demonstrar o menor sinal de indisposição. Sentia os rins moídos, abafava de calor, mas não se queixou. De Paris só viu, sob seu capuz, o chão das ruas, a parte baixa das casas e os ombros das pessoas. Quantas pernas! Quantos calçados! Gostaria muito de levantar seu capuz, mas não ousava fazê-lo. O que a surpreendia era o ruído, o imenso zumbir da cidade, as vozes dos pregoeiros, dos vendedores de todas as mercadorias, dos barulhos característicos dos ofícios. Em certas passagens, a turba era tão densa que as montarias custavam a abrir caminho. Passantes esbarravam nas pernas de Maria. Enfim, os cavalos detiveram-se. Fizeram descer a jovem, que estava cansada e coberta de poeira, autorizando-a a despir a capa.

— Onde estamos? — perguntou Maria, contemplando com surpresa o pátio de uma bela morada.

— Na casa do tio do teu lombardo — respondeu João de Cressay.

Alguns instantes mais tarde, um olho aberto e outro fechado, messer Tolomei contemplava os três filhos do falecido sire de Cressay, sentados em fileira diante dele, João, o barbudo, Pedro, o glabro, e ao lado sua irmã, um tanto retraída, a cabeça baixa.

— Lembrai-vos, messer Tolomei — dizia João — de que nos fizestes uma promessa...

— Sem dúvida, sem dúvida, — respondeu Tolomei — e vou cumpri-la, não duvideis disso.

— Mas compreendei que precisais cumpri-la depressa. Compreendei que, depois do rumor feito em torno desta vergonha, nossa irmã não mais pode morar conosco. Compreendei que não ousamos aparecer nas casas da vizinhança, e que nossos próprios servos zombam de nós, quando passamos, e que será pior ainda quando o pecado de nossa irmã fôr visível em seu corpo.

Tolomei tinha uma resposta na ponta da língua: “Mas, meus rapazes, fôstes os causadores de todos esses rumores! Ninguém vos obrigava a lançar-vos como furiosos contra Guccio, amotinando o burgo todo de Neauphle e anunciando vosso infortúnio melhor do que o pregoeiro público o faria”.

— Além disso, nossa mãe não se restabelece desta desgraça: amaldiçoou sua filha e o vê-la faz com que recrudesça sua cólera, a ponto de temermos que ela estoure... Compreendei...

“Este palerma, como todas as pessoas que insistem para que a gente as compreenda, não deve ter grande peso no cérebro. Quando a língua secar, ele se calará!... Mas o que eu compreendo muitíssimo bem, dizia consigo o banqueiro, é que o meu Guccio tenha ficado com a cabeça adoidada por causa desta bela jovem. Até aqui não lhe dei razão, mas desde que ela entrou, mudei de pensar. E se minha idade permitisse uma coisa dessas acontecer-me ainda, sem dúvida eu teria me comportado mais loucamente ainda do que ele. Que belos olhos, que belos cabelos, que bela pele... um verdadeiro fruto da primavera! E como parece suportar corajosamente sua infelicidade, porque, afinal, os dois outros gritam como se eles é que tivessem sido violados! Mas é para ela mesma, pobre menina, que o sofrimento é maior! Tem, com certeza, uma boa alma. Que lástima, haver nascido sob o mesmo teto em que nasceram estes dois tolos, e como eu gostaria que Guccio pudesse desposá-la às claras, e que ela viesse morar aqui, dando à minha velhice a alegria de contemplá-la!”

Não tirava os olhos dela. Maria levantava os seus para o velho, e baixava-os imediatamente, inquieta quanto ao que ele poderia pensar a seu respeito e quanto àquela insistência em observá-la.

— Compreendei, messer, que vosso sobrinho...

— Oh! Quanto a êsse, renego-o, deserdei-o já! Se ele não tivesse fugido para a Itália penso que eu o mataria com minhas próprias mãos. Se ao menos pudesse saber onde foi esconder-se... — disse Tolomei, deixando a fronte cair nas mãos, como que abatido.

E, ao abrigo do pequeno anteparo de suas mãos, fazendo de forma que só a moça o visse, levantou por duas vezes sua pesada pálpebra, habitualmente tombada. Maria percebeu, então, que tinha um aliado, e não pôde conter um suspiro. Guccio estava vivo, Guccio estava em lugar seguro, e Tolomei sabia onde. Que lhe importava, agora, o claustro!

Não mais ouviu o falatório de seu irmão João, que, aliás, poderia recitar de cor. O próprio Pedro de Cressay calava-se, com ar de vaga lassidão. Deixava que seu irmão mais velho se persuadisse de que agira bem; deixava-o falar da honra do sangue e das leis da cavalaria, para justificar a enorme tolice de ambos.

Quando, saindo de seu pequeno solar arruinado, de seu pátio que cheirava a estéreo tanto no inverno como no verão, os irmãos Cressay viram a moradia principesca de Tolomei, os brocados, os vasos de prata, quando sentiram sob seus dedos os entalhes delicados das poltronas e respiraram aquela atmosfera de riqueza, de abundância, que flutuava pela casa toda, foram forçados a reconhecer que sua irmã não teria sido mal contemplada se tivessem deixado que ela seguisse sua inclinação. O irmão mais novo estava sinceramente arrependido. “Ao menos um entre nós estaria bem provido, e todos teríamos aproveitado com isso”, dizia ele consigo. Mas o barbudo, de espírito obtuso, sentia aumentar seu rancor, e fora tomado por um mesquinho sentimento de inveja. “Por que teria ela, pelo pecado, direito a tanta riqueza, enquanto nós temos vida tão pobre?”

Maria também não era insensível àquele luxo que a rodeava, que a deslumbrava, e não fazia senão avivar suas penas.

“Se ao menos Guccio tivesse uma pontinha de nobreza”, pensava ela, “ou se ao menos nada tivéssemos nesse sentido! Que quer dizer, afinal, a cavalaria? Uma coisa que faz sofrer tanto, pode ser boa? E a riqueza não é também uma espécie de nobreza? Entre fazer trabalhar os servos e fazer trabalhar o dinheiro, onde está a diferença?”

— Não vos inquieteis de forma alguma, meus amigos — disse, enfim, Tolomei — e confiai em mim para tudo. É dever dos tios reparar as faltas dos maus sobrinhos. Consegui, graças às minhas altas amizades, que vossa irmã seja acolhida no convento real de moças em São Marcelo. Estais satisfeitos?

Os dois irmãos Cressay entreolharam-se e sacudiram a cabeça em movimento aprobatório. O convento das Clarissas do faubourg São Marcelo gozava do mais alto prestígio entre os estabelecimentos religiosos femininos. Ali entravam quase que unicamente jovens da nobreza. E era ali que, às vezes, escondiam as bastardas da família real. O ódio de João de Cressay tombou de uma só vez, acalmado pela vaidade de casta. E para bem mostrar que os Cressay não eram inferiores àquela honra que faziam à sua irmã culpada, apressou-se a acrescentar:

— Muitíssimo bem, muitíssimo bem, pois a abadêssa é um tanto aparentada conosco, segundo penso. Nossa mãe mais de uma vez apontou-a como exemplo.

— Assim, tudo está ótimo — disse Tolomei. — Irei levar vossa irmã, daqui a pouco, a messire Hugo de Bouville, o antigo camareiro-mor...

Os dois irmãos inclinaram-se um pouco em suas cadeiras, como prova de consideração pelo citado.

— ... do qual obtive esse favor — continuou Tolomei — e esta noite, eu vos prometo, ela entrará para o convento. Podeis, pois, voltar com a paz no coração. Mandarei notícias.

Os dois irmãos nada mais queriam: desembaraçavam-se de sua irmã e consideravam que bastante haviam feito, entregando-a aos cuidados de outrem. O silêncio do convento ia cair sobre aquele drama, do qual, dali por diante, em Cressay, só se poderia falar em voz baixa, ou, mesmo, deixar inteiramente de falar.

— Deus te guarde e inspire em ti o arrependimento — disse João à irmã, à guisa de adeus.

Despediu-se muito mais calorosamente de Tolomei, agrade-cendo-lhe o trabalho a que se dava. Por pouco teria censurado a Maria o tormento que ela causava àquele excelente homem.

— Deus te guarde, Maria — disse Pedro, comovido.

Teve um movimento para beijar a irmã, mas sob o olhar severo do mais velho, não terminou o gesto. E Maria viu-se só com o gordo banqueiro de pele morena, de boca carnuda e com um olho fechado, que, por estranho que parecesse, era seu tio.

Os dois cavalos saíram do pátio e ouviu-se diminuir as fungadelas do poldro marrador, último ruído de Cressay afastando-se de Maria.

— Agora, vamos para a mesa, minha filha. A hora de jantar não é hora de chorar — disse Tolomei.

Ajudou a jovem a tirar a capa sob a qual sufocava. Maria teve um olhar surpreendido, reconhecido, porque aquela era a primeira prova de atenção e mesmo de simples cortesia que tinham para com ela, havia muitas semanas.

“Ora essa, eis um tecido que é de minha casa”, disse consigo Tolomei, vendo o trajo que ela trazia.

O lombardo era negociante em especiarias do Oriente, ao mesmo tempo que banqueiro: os ensopados onde mergulhava com elegância os dedos, as carnes que retirava delicadamente dos ossos, aos pedacinhos, estavam impregnadas de perfumes exóticos, apetitosos. Mas Maria não mostrava desejo de comer, e mal provou os pratos do primeiro serviço.

— Êle está em Lião — disse, então, Tolomei, levantando a pálpebra esquerda. — No momento não pode sair de lá, mas pensa em vós e conserva-se fiel.

— Não está preso? — perguntou Maria.

— Não, não é precisamente isso. Encontra-se encerrado, mas de forma alguma isso se relaciona com o que toca a vós, e partilha seu cativeiro com tão altos personagens que nada temos a temer quanto à segurança dele. Tudo me leva a crer que sairá da igreja onde está ainda mais importante do que ali entrou.

— A igreja? — perguntou Maria.

— Não posso dizer-vos nada mais.

Maria não insistiu. Guccio encerrado numa igreja em companhia de pessoas assim tão importantes que não podiam ser citadas... tal mistério ultrapassava seu entendimento. Mas na vida de Guccio já tinham surgido várias circunstâncias misteriosas, e que não eram estranhas à admiração que a jovem lhe votava. A primeira vez em que o vira, não chegava ele da Inglaterra, onde fora prestar serviço à Rainha Isabel? Não se tinha ausentado depois, duas vezes, e longamente, para ir a Nápoles, a serviço da Rainha Clemência, que lhe dera o relicário de São João Batista que ela trazia ao pescoço?

“Darei ao nosso filho o nome de João ou de Joana... e pensarão que é por causa de meu irmão mais velho.” Se Guccio estava encerrado àquela hora, devia ser ainda por causa de alguma rainha. Maria maravilhava-se ao ver que, entre tantas princesas poderosas, Guccio continuava a preferi-la, a ela, pobre moça do campo. Guccio vivia. Guccio amava-a: nada mais lhe era necessário para que lhe voltasse o prazer de viver, e ela tornou ao prato com todo o apetite de uma jovem de dezoito anos, que estivera viajando desde a madrugada.

Tolomei, que sabia dirigir-se facilmente aos mais altos barões, aos pares do reino, aos jurisconsultos, aos arcebispos, de há muito perdera o hábito de falar às mulheres, sobretudo a uma mulher jovem. Trocaram poucas palavras, portanto. O velho banqueiro olhava com encantamento aquela sobrinha que lhe caíra do céu, e que ia lhe agradando cada vez mais, de minuto em minuto.

“Que lástima”, pensava ele, “ter de metê-la no convento! Se Guccio não tivesse ficado encerrado no conclave, eu mandaria esta bela menina para Lião. Mas que faria em tal lugar, sozinha e sem apoio? Ora, da forma pela qual as coisas caminham, os cardeais, segundo dizem, não se mostram muito próximos de ceder... E se eu a conservasse aqui, esperando a volta do meu sobrinho? Eis o que me agradaria. Mas não, não posso fazer isso: pedi a Bouville que agisse em favor dela. Que figura faria eu agora, pondo de parte as providências que ele tomou? E se, além disso, a abadêssa é prima dos Cressay, e aqueles palermas têm a idéia de lhe pedir notícias da moça?... Vamos, não percamos a cabeça, por nossa vez. Ela irá para o convento...”

— Mas não por toda a vida — disse ele, continuando em voz alta. — Não se trata de fazer-vos freira. Aceitai sem muitas queixas esses poucos meses de reclusão. Eu vos prometo que, quando a criança nascer, hei de arranjar vossos negócios para que possais viver feliz com meu sobrinho.

Maria tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios. Êle ficou constrangido: a bondade não fazia parte de sua natureza, e seu ofício não o habituara às expressões de gratidão.

— Preciso, agora, entregar-vos aos cuidados do Conde de Bouville — disse ele.

Da Rua dos Lombardos ao palácio da Cité o caminho não era muito longo. Maria percorreu-o ao lado de Tolomei, num estado de maravilhada surpresa. Jamais vira uma cidade grande, e o movimento da multidão sob o sol de julho, a beleza das casas, a abundância de lojas, a cintilação das vitrinas dos joalheiros, todo aquele espetáculo transportava-a para uma espécie de encantamento. “A felicidade, a felicidade”, dizia ela consigo, “de viver aqui, e que homem amável é o tio de Guccio, e que bênção estar ele disposto a proteger-nos. Oh! Sim! Como suportarei sem me queixar o tempo que tiver de passar no convento!” Passaram pela Pont-au-Change e entraram na Galeria Capelista, atravancada com os seus balcões.

Tolomei, só pelo prazer de ouvi-la agradecer de novo e para ver um sorriso descobrir os belos dentes de Maria, não pôde deixar de comprar-lhe uma esmoleira de cinto, bordada com pequenas pérolas.

— É da parte de Guccio. Afinal é preciso que eu o substitua! — disse-lhe ele, ao mesmo tempo que calculava, pensando que num atacadista teria obtido o mesmo objeto pela metade do preço.

Tomaram, em seguida, a grande escadaria do palácio. Assim, por ter errado com um jovem lombardo, Maria de Cressay penetrava na morada real, onde seu pai e seus irmãos, apesar de seus trezentos anos de cavalaria e dos serviços prestados à realeza nos campos de batalha, jamais teriam pensado em entrar.

Reinava no interior do palácio aquela desordem dentro da qual cada um toma atitudes importantes, aquele estado de agitação que marcavam imediatamente os lugares onde se encontrasse o Conde de Valois. Tendo cruzado corredores, galerias e salas sucessivas, onde, de uma para outra, Maria de Cressay sentia-se como que diminuída de estatura, Tolomei e a jovem chegaram a uma parte um pouco retirada, atrás da Santa Capela, e dando para o Sena e a Ilha dos Judeus. Uma guarda de gentis-homens em cotas de armas barrou-lhes a passagem. Ninguém devia penetrar nos aposentos reservados à Rainha Clemência sem autorização dos curadores. Enquanto iam procurar o Conde de Bouville, Tolomei e Maria esperaram, junto de uma janela.

— Foi ali, estais vendo, que queimaram os Templários — disse Tolomei, designando-lhe a ilha.

O gordo Bouville chegou, sempre equipado como para a guerra, o bandulho rolando sob o tecido de aço, e o passo firme como se fosse comandar um assalto. Mandou que a guarda se afastasse. Tolomei e Maria atravessaram de início uma sala onde sire de Joinville dormia, sentado numa cátedra. Seus dois escudeiros, junto dele, jogavam xadrez em silêncio. Depois, os visitantes passaram para o alojamento do Conde de Bouville.

— Madame Clemência vai-se restabelecendo? — perguntou Tolomei a Bouville.

— Chora menos — respondeu o curador — ou antes, mostra menos suas lágrimas, como se lhe corressem diretamente para a garganta. Mas ainda se conserva duramente aturdida.

Depois, o calor aqui não é nada bom para o estado dela, e causa-lhe freqüentes vertigens e tonturas.

“Assim, a rainha da França está aqui ao lado”, pensou Maria com intensa curiosidade. “Talvez eu lhe vá ser apresentada... Como ousarei falar-lhe de Guccio?”

Assistiu, em seguida, à longa conversa, que, aliás, pouco compreendeu, entre o banqueiro e o antigo camareiro-mor. Quando pronunciavam certos nomes baixavam a voz, ou então afastavam-se alguns passos, e Maria proibia a si própria ouvir-lhes os cochichos.

O Conde de Poitiers, chegando de Lião, estava sendo anunciado para o dia seguinte. Bouville, que desejara tanto a volta dele, agora já não sabia se isso seria um bem ou um mal. Porque Monsenhor de Valois resolvera ir imediatamente ao encontro de Filipe, em companhia do Conde de La Marche. E Bouville mostrou a Tolomei, por uma janela que dava para os pátios, os preparativos daquela partida. Por seu lado, o Duque de Borgonha, instalado em Paris, fazia com que seus próprios gentis-homens montassem guarda em torno de sua sobrinha, a pequena Joana de Navarra. O Tesouro estava vazio. Mau vento de revolta soprava pela cidade, e aquela rivalidade de regentes poderia terminar nas piores calamidades. Segundo a opinião de Bouville, a Rainha Clemência devia ter sido nomeada regente, rodeada por um conselho da coroa composto de Valois, Poitiers e do Duque de Borgonha.

Por muito interessado que estivesse pelos acontecimentos, Tolomei tentou, por duas vezes, trazer Bouville ao assunto preciso de sua visita.

— Sem dúvida, sem dúvida, vamos velar bem por esta senhorita — respondia Bouville, voltando imediatamente às suas preocupações políticas.

Tolomei tinha tido notícias de Lião? O camareiro tomara familiarmente o banqueiro pelos ombros e falava-lhe quase encostando ao rosto dele o próprio rosto. Como? Guccio estava encerrado com o conclave, em companhia de Duèze? Ah! Que rapaz hábil! Tolomei tinha a intenção de comunicar-se com seu sobrinho? Se recebesse notícias, ou se pudesse enviá-las, não deixasse de preveni-lo. O moço poderia ser um informante precioso. Quanto a Maria...

— Claro, claro — disse o curador. — Minha mulher, que é pessoa capaz, e muito ativa, fêz tudo quanto era preciso. Podeis ficar tranqüilo.

Chamaram Madame de Bouville, mulherzinha magra, autoritária, de rosto riscado pelas rugas verticais, e cujas mãos secas jamais estavam em repouso. Maria, que até então sentira-se em segurança entre o gordo Tolomei e o gordo Bouville, teve imediatamente uma impressão desagradável, e ficou inquieta.

— Ah! Sois vós a pessoa cujo pecado devemos esconder — disse Madame de Bouville, examinando-a com olhos sem benevolência. — Estais sendo esperada no convento das Clarissas. A abadêssa mostrara pouca solicitude e mostrou ainda menos quando eu lhe disse vosso nome, porque é, não sei através de que laços, de vossa família, e vosso comportamento não lhe agradou. Enfim, os favores de que goza messire Hugo, meu esposo, pesaram muito na questão. Fiz um pouco de barulho e o abrigo vos será dado. Antes que anoiteça, irei levar-vos até lá.

Falava depressa e não era fácil interrompê-la. Quando parou para retomar fôlego, Maria respondeu-lhe, com muito respeito, mas também com muita dignidade no tom:

— Madame, eu não estou em estado de pecado, porque me casei diante de Deus.

— Vamos, vamos — replicou Madame de Bouville — não façais com que as pessoas se arrependam das bondades que tiveram convosco. Agradecei, pois, àqueles que se esforçam por ajudar-vos, em vez de vos mostrardes enfatuada.

Foi Tolomei quem agradeceu em nome de Maria. Quando esta viu o banqueiro a ponto de partir, foi tomada por um tão completo sentimento de desgosto, de solidão, de desamparo, que se atirou aos braços de Tolomei, como se ele fosse seu pai.

— Dai-me notícias da sorte de Guccio — murmurou-lhe ao ouvido — e fazei com que saiba que morro de saudades dele.

Tolomei foi-se, e os Bouville igualmente desapareceram. Durante toda a tarde Maria ficou na antecâmara deles, não ousando mover-se e não tendo outra distração a não ser a de assistir, pelo vão da janela aberta, à partida de Monsenhor de Valois e de sua escolta. O espetáculo, por um momento, arrancou-a ao seu desgosto. Jamais vira cavalos tão belos, tão lindos arneses, tão formosos trajos, e em tal quantidade. Pensava nos camponeses de Cressay, vestidos de farrapos, as pernas envolvidas em tiras de pano, e dizia consigo mesma que era bem estranho possuírem todos os seres uma cabeça e dois braços, e, tendo sido criados por Deus à sua imagem, parecerem pertencer a raças tão diferentes, quando julgados pelos trajos.

Jovens escudeiros, vendo aquela moça de grande beleza ocupada em contemplá-los, dirigiram-lhe sorrisos, e, mesmo, atiraram-lhe beijos. Subitamente, todos se movimentaram em torno de um personagem inteiramente coberto de prata, que parecia impor-se muitíssimo, e que tomava ares de soberano. Depois, a tropa abalou, e o calor da tarde desceu pesadamente sobre os pátios e os jardins do palácio.

Lá para o fim do dia, a Senhora de Bouville veio buscar Maria. Acompanhadas por alguns criados e montadas em mulas de silhão, isto é, equipadas com albardas onde se sentavam de lado, os pés pousados sobre uma prancheta, as duas mulheres atravessaram Paris. Havia aglomerações à porta das tavernas, gritos. Uma rixa tinha estalado entre os partidários do Conde de Valois e o pessoal do Duque de Borgonha, recentemente chegado, e que se embriagavam com resolução. Os sargentos da ronda, a golpes de maça, restabeleciam a ordem.

— A cidade está nervosa — disse Madame de Bouville. — Não me surpreenderia se amanhã tivéssemos motim.

Saíram de Paris pelo monte Santa Genoveva e pela porta São Marcelo. O crepúsculo tombava sobre os arrabaldes.

— Quando eu era jovem — disse Madame de Bouville — não se viam aqui mais de umas vinte casas. As pessoas já não sabem onde morar, na cidade, e constróem sem cessar nos campos.

O convento das Clarissas era rodeado por alto muro branco, que encerrava as construções, os jardins e os pomares. No muro, uma porta baixa, e junto da porta, construída na espessura da pedra, uma roda. Uma mulher que caminhava ao longo do muro, a cabeça coberta com capuz, aproximou-se da roda, e ali depositou rapidamente um embrulho que tirou de sob a capa. Gemidos escaparam-se do embrulho. A mulher fêz girar o tambor de madeira, puxou o sino, e, vendo que alguém se aproximava, fugiu.

— Que fêz ela? — perguntou Maria.

— Acaba de abandonar ali um filho sem pai — disse Madame de Bouville olhando para Maria com ar severo. — É assim que eles são recolhidos. Vamos, caminhai.

Maria instigou sua mula, pensando que também ela poderia ter sido forçada, em dias próximos, a depor seu filho numa roda. Considerou sua sorte, então, como ainda bem invejável.

— Eu vos agradeço, madame, por terdes tido tanto cuidado comigo — murmurou, com lágrimas nos olhos.

— Ah! Enfim, uma palavra amável! — respondeu Madame de Bouville.

Alguns instantes mais tarde a porta abria-se para elas, e Maria desapareceu no silêncio do convento.

 

                       AS PORTAS DO PALÁCIO

NAQUELA mesma noite o Conde de Poitiers encontrava-se J. 1 no castelo de Fontainebleau, onde devia dormir: era a última etapa antes de Paris. Acabava de cear em companhia do delfim de Viennois, do Conde de Sabóia e dos membros de sua numerosa escolta, quando vieram anunciar-lhe a chegada de seu tio, o Conde Valois, de seu irmão, o Conde de La Marche, e de seu primo Saint-Pol.

— Que entrem, que entrem imediatamente — disse Filipe de Poitiers.

Mas não foi ao encontro de seu tio. E quando aquele, com andar marcial, o queixo erguido, e as vestes empoeiradas, apareceu, Filipe contentou-se em levantar-se, sem fazer o menor movimento em direção dele, e esperou. Valois, um tanto confuso, ficou de pé junto da porta, por alguns segundos, contemplou os presentes, e como Filipe insistisse em conservar-se imóvel, viu-se forçado a adiantar-se. Todos se calavam observando-os. Quando Valois já estava bastante perto dele, o Conde de Poitiers tomou-o pelos ombros, e beijou-o nas duas faces, o que podia parecer um gesto de bom sobrinho, mas que, vindo de um homem que não se movera de seu lugar, era antes um gesto de rei.

Esta atitude irritou Carlos de La Marche, que pensou: “Fizemos todo esse caminho para receber tal acolhida? Afinal, estou em pé de igualdade com meu irmão. Por que se permite ele tratar-nos com tal sobranceria?”

Expressão amarga, ciumenta, deformava um tanto o belo rosto de traços regulares, mas sem inteligência.

Filipe estendeu-lhe os braços: La Marche não teve outro remédio senão trocar um breve abraço com seu irmão, mas, para dar-se importância e tentar afirmar, também ele, sua autoridade, disse, designando Valois:

— Filipe, aqui tendes nosso tio, o mais velho da coroa. Estamos certos de que entrareis em entendimento com ele, para que lhe caiba o governo do reino. Porque o reino estaria perigando muito se ficasse à espera da chegada de uma criança que ainda não nasceu, que não saberá, portanto, governar, e que, seja como fôr, será estrangeira pelo lado de sua mãe.

A frase era ambígua, pouco hábil. Podia significar que o Conde de La Marche desejava ver seu tio na regência até o nascimento do filho póstumo de Luís X, ou até a maioridade daquela criança, se fosse um filho. Mas podia, também, trair ambições mais vastas em Valois. La Marche devia ter repetido incorretamente as palavras inculcadas pelo tio. Alguns termos, naquela declaração, fizeram Filipe franzir os sobrolhos. Valois tentava apoderar-se da coroa.

— Nosso primo de Saint-Pol está conosco — continuou Carlos de La Marche — para dizer-vos que também é essa a opinião dos barões.

Filipe deixou tombar sobre ele um olhar bastante desdenhoso.

— Eu vos agradeço, meu irmão, pelo vosso conselho — respondeu, friamente — e por terdes feito tão grande viagem a fim de trazer-mo. E acho que deveis estar tão cansado como eu. E as boas decisões não devem ser tomadas no momento da fadiga. Proponho, pois, que vamos dormir e que decidamos amanhã, entre nós, com o espírito repousado. Boa noite, Monsenhores. Raul, Anseau, Adão, acompanhai-me, eu vos peço...

E saiu da sala, sem mesmo ter oferecido hospedagem a seus visitantes, sem mesmo preocupar-se com a maneira pela qual iriam acomodar-se para dormir.

Seguido por Adão Héron, por Raul de Presles e Anseau de Joinville, dirigiu-se para os aposentos reais. O leito, que não tinha sido ocupado desde que o Rei de Ferro nele expirara, estava feito, os lençóis arranjados. Filipe fazia questão de ocupar aquele quarto. Fazia, sobretudo, questão de que nenhum outro o ocupasse.

Adão Héron dispunha-se a despi-lo.

— Acho que não me despirei esta noite — disse Filipe de Poitiers. — Adão, envie um dos meus donzéis a messire Gaucher de Châtillon, para lhe informar que amanhã pela manhã estarei na porta do Inferno. Depois, mande-me meu barbeiro, imediatamente, pois quero chegar com boa aparência... e mande preparar vinte cavalos para meia-noite, mas somente depois que meu tio deitar-se. E a ti, Anseau — acrescentou ele, voltando-se para o filho do senescal de Joinville, homem já idoso — eu encarrego de prevenir o Conde de Sabóia e o delfim, para que não sejam surpreendidos e não pensem que desconfio deles. Fiquem aqui até pela manha, e quando meu tio perceber que parti, rodeiem-no bastante, a fim de atrasar-lhe a viagem. Façam ainda, com que perca tempo no caminho.

Tendo ficado a sós com Raul de Presles, pareceu mergulhar em silenciosa meditação, que o jurisconsulto evitou perturbar.

— Raul — disse ele, por fim — trabalhaste dia após dia junto de meu pai, e conheceste o rei melhor do que eu próprio. Numa ocasião destas, como agiria ele?

— Faria o que ides fazer, Monsenhor, posso garantir-vos, e não vo-lo digo por lisonja, mas porque realmente penso assim. Tive grande amor por nosso sire Filipe, e suportei muitos sofrimentos depois da morte dele, de tal forma que só vos sirvo por causa da vossa semelhança absoluta com ele.

— Ai de mim, ai de mim, Raul, bem pouco sou comparado a meu pai. Êle podia seguir seu falcão nos ares, sem jamais perdê-lo com os olhos, e eu tenho a vista curta. Torcia sem esforço uma ferradura entre os dedos. Não me legou sua força nas armas, nem aquela aparência física que revelava a toda a gente ser ele um rei.

Falando, olhava obstinadamente para o leito.

Em Lião, sentia-se regente, com plena segurança. Mas, à medida que se aproximava da capital, aquela certeza, sem que ele desse mostras disso, abandonava-o um tanto. Raul de Presles, como se respondesse a perguntas não formuladas, disse:

— Não temos precedente na situação em que nos encontramos, Monsenhor. Há dias já que debatemos bastante esse assunto. Nas condições de enfraquecimento em que se encontra o reino, o poder será daquele que tiver autoridade para tomá-lo. Se conseguirdes isso, a França não sofrerá.

Pouco depois retirou-se, e Filipe se deitou, os olhos fixos na pequena lâmpada que pendia entre as cortinas. O Conde de Poitiers não sentia constrangimento algum, mal-estar algum, ao se encontrar naquele leito cujo último ocupante fora um cadáver. Ao contrário, ali absorvia forças, e tinha a impressão de fluir para a forma paterna, de tomar-lhe o lugar, de reocupar as dimensões dele sobre a terra. “Pai, voltai a mim”, orava ele. E mantinha-se imóvel, as mãos cruzadas sobre o peito, oferecendo seu corpo à reencarnação de uma alma que havia vinte meses se fora.

Ouviu passos no corredor, vozes, e seu camareiro respondeu, sem dúvida, a alguém do séquito do Conde de Valois, que o Conde de Poitiers repousava. O silêncio tombou sobre o castelo. Um pouco mais tarde, o barbeiro chegou com a bacia, as navalhas e as toalhas quentes. Enquanto o barbeava, Filipe de Poitiers recordava, naquele mesmo quarto onde toda a corte estivera reunida, as últimas recomendações de seu pai a Luís, que tão pouco em conta as levara: “Pesai, Luís, o que é ser rei da França. Procurai saber o mais depressa possível qual é o estado de vosso reino”.

Quando meia-noite se aproximava, Adão Héron veio adverti-lo de que os cavalos estavam prontos. Quando o Conde de Poitiers saiu do quarto, tinha a impressão de que vinte meses acabavam de ser abolidos, e de que ele retomava as coisas onde elas estavam por ocasião da morte de seu pai, como se as tivesse recolhido diretamente, em sucessão.

Uma lua propícia iluminava a estrada. A noite de julho, toda estrelada, parecia-se ao manto da Santa Virgem. A floresta exalava seus perfumes de musgo, de humo e de fetos: vivia no frêmito secreto dos animais. Filipe de Poitiers montava um excelente cavalo, cujo passo poderoso apreciava. O ar fresco chicoteava-lhe as faces, que o barbeiro tornara sensíveis.

“Seria uma pena, pensava, deixar um país tão bom em mãos tão más.”

A pequena tropa saiu da floresta, atravessou Ponthierry a galope e, ao nascer do dia, parava nos recôncavos de Es-sones, para dar fôlego aos cavalos e comer alguma coisa. Filipe devorou aquela refeição sentado sobre um marco de pedra do caminho. Parecia sentir-se feliz. Tinha apenas vinte e três anos, sua expedição tomava um ligeiro ar de conquista, e dirigia-se em tom alegremente amistoso aos seus companheiros de aventura. Aquela alegria, rara no príncipe, fortaleceu-lhes o ânimo.

Entre prima e tércia chegava ele à porta de Paris, no momento em que soavam os sinos ásperos dos conventos circunvizinhos. Encontrou ali Luís d’Evreu e Gaucher de Châtillon que o esperavam. O condestável tinha a fisionomia dos maus dias e convidou imediatamente o Conde de Poitiers a ir ao Louvre.

— E por que não irei imediatamente para o palácio da Cité? — perguntou Filipe.

— Porque os senhores de Valois e de La Marche mandaram seus soldados ocupar o palácio. No Louvre, tereis as tropas reais, que estão todas subordinadas a mim, quero dizer, a vós, com os besteiros de messire de Galard... Será preciso, porém, agir pronta e resolutamente — acrescentou o condestável — a fim de chegarmos antes dos nossos dois Carlos. Se me derdes ordem, Monsenhor, mandarei tomar o palácio.

Filipe sabia que os minutos eram preciosos e calculava ter, pelo menos, seis a sete horas de avanço sobre Valois.

— Nada quero empreender sem saber, antes, se o que se fizer será bem visto pelos burgueses e pelo povo da cidade — respondeu.

E assim que entrou no Louvre mandou chamar no Parlatório dos Burgueses, mestre Coquatrix, mestre Gentien e alguns dos altos notáveis, bem como o preboste Guilherme de La Madeleine, que desde março sucedera ao preboste de Ploye-bouche.

Em algumas palavras Filipe fêz-lhes sentir a importância que atribuía à burguesia de Paris e aos homens que dirigiam as artes de fabricação e os negócios. Os burgueses sentiram-se honrados, e, sobretudo, tranqüilizados. Desde a morte de Filipe, o Belo, não mais tinham ouvido tal linguagem, e embora se tivessem queixado daquele rei por muitas vezes, quando governava, não cessavam agora de lamentar-lhe o desaparecimento. Foi Godofredo Coquatrix, comissário para as moedas falsas, coletor de subvenções e subsídios, tesoureiro das guerras, fornecedor das guarnições, visitador dos portos e passagens do reino, advogado do Tribunal de Contas, quem respondeu. Suas funções vinham do tempo de Filipe, o Belo, que chegara, mesmo, a dotá-lo com uma renda hereditária, tal como se fazia para os grandes servidores da Coroa. E ele jamais prestara contas de sua administração (11). Temia que Carlos de Valois, que sempre fora hostil à promoção dos burgueses aos altos postos — e bastante o provara com Marigny — o destituísse de suas funções para espoliá-lo da enorme fortuna que adquirira. Coquatrix assegurou ao Conde de Poitiers, dando-lhe dez vezes o título de “messire regente”, o devotamento da população parisiense. Sua palavra tinha alto valor, pois que ele era todo--poderoso no Parlatório, e bastante rico, também, para pagar, se houvesse necessidade, todos os truões da cidade, levando-os ao motim.

A notícia da volta de Filipe de Poitiers se havia espalhado rapidamente. Os barões e cavaleiros que lhe eram favoráveis acorreram ao Louvre, a começar pela Condèssa Mafalda d’Artois, pessoalmente prevenida.

— Como vai minha querida Joana? — perguntou Filipe à sua sogra, abrindo-lhe os braços.

— Esperamos que dê à luz a qualquer momento.

— Irei vê-la, assim que termine o que tenho de fazer.

Depois entrou em confabulações com seu tio Luís e com o condestável.

— Agora, Gaucher, podeis marchar contra o palácio. Tratai, se possível, de terminar tudo até ao meio-dia. Fazei, entretanto, todo o possível para evitar sangue. Usai mais da intimidação do que da violência, pois eu não gostaria de entrar no palácio saltando por cima de cadáveres.

Gaucher foi tomar a frente de sua companhia de homens armados, que reunira no Louvre, e marchou para a Cité. Ao mesmo tempo mandava o preboste chamar, no bairro do Templo, os melhores carpinteiros e serralheiros.

As portas do palácio estavam fechadas. Gaucher, tendo a seu lado o grão-mestre dos besteiros, mandou pedir entrada. O oficial de guarda, mostrando-se a uma trapeira acima da porta principal, respondeu que não podia abrir sem a autorização do Conde de Valois ou do Conde de La Marche.

— Terá que abrir para mim, ainda que sem autorização — respondeu o condestável — porque desejo entrar e colocar o palácio em estado de receber o regente, que virá logo depois de mim.

— Não podemos.

Gaucher de Chátillon levantou-se um pouco sobre seu cavalo.

— Então, nós mesmos abriremos — disse ele.

Fêz sinal a Pedro du Temple, carpinteiro real, para que se aproximasse, escoltado pelos seus operários, que traziam serras, pinças, e grandes alavancas de ferro. Ao mesmo tempo, os besteiros, metendo o pé numa espécie de estribo colocado no ponto mais alto de seus arcos, entesavam as armas, encaixavam a flecha no entalhe, e colocavam-se em posição de visar as ameias e seteiras. Os archeiros e piqueiros, unindo seus escudos, formavam enorme carapaça em torno e acima dos carpinteiros. Nas ruas adjacentes, basbaques e moleques amontoavam-se, a respeitosa distância, para ver o cerco. Era, aquela, uma linda distração que lhes ofereciam, e da qual poderiam falar durante muitos dias.

— ... eu estava lá, tão certo como estar falando agora contigo... Vi o condestável puxar sua comprida espada... Mais de dois mil, com certeza, mais de dois mil eram eles.

Enfim, Gaucher, com a voz de comando que usava nos campos de batalha, gritou, pela viseira erguida de seu elmo:

— Messires que estais aí dentro, os mestres da carpintaria e da serralheria vão fazer saltar as portas. Vede, também, os besteiros de messire de Galard, que cercam o palácio por todos os lados. Ninguém poderá escapar. Convido-vos, pela última vez, a abrir-nos a portar, porque, se não vos entregardes, sereis decapitados, todos, por muito nobres que sejais. O regente não vos dará quartel.

Depois, baixou a viseira, o que queria dizer que não mais discutiria.

Devia reinar um belo pânico lá dentro, porque, mal os operários colocaram as alavancas sob as portas, estas abriram-se sobre si mesmas. A guarnição do Conde de Valois rendia-se.

— Era tempo de que vos submetêsseis à sensatez — disse o condestável, tomando posse do palácio. — Ide para vossas casas ou para a casa de vossos senhores: não vos aglomereis, e não sereis perseguidos.

Uma hora mais tarde, Filipe de Poitiers ocupava os apartamentos reais. Imediatamente, tomou medidas de segurança. O pátio do palácio, habitualmente aberto para o povo, foi fechado, guardado militarmente, e os visitantes cuidadosamente selecionados. Aos capelistas, que tinham o privilégio de vender na grande galeria, pediu-se que fechassem provisoriamente suas lojas.

Quando os Condes de Valois e de La Marche chegaram a Paris, compreenderam que tinham perdido a partida.

— Filipe ludibriou-nos detestàvelmente — disseram.

E apressaram-se a ir para o palácio negociar sua submissão, já que não tinham outra saída. Ali encontraram, em torno do Conde de Poitiers, numeroso grupo de senhores, burgueses e homens da Igreja, entre os quais o arcebispo João de Marigny, sempre disposto a colocar-se ao lado do mais forte.

— Êle não durará. Tem pouca segurança própria e procura apoiar-se em homens das classes inferiores — disse Valois a Carlos de La Marche, a meia voz, constatando, com despeito, a presença de Coquatrix, de Gentien e de outros notáveis.

Apesar disso, tomou aspecto melhor para adiantar-se até seu sobrinho e apresentar-lhe desculpas pelo incidente daquela manhã.

— Meus escudeiros de guarda de nada sabiam, e tinham recebido ordens severas... por causa da Rainha Clemência...

Esperava uma resposta sòlidamente grosseira, e desejava-a, quase, pois seria, aquele, um pretexto para entrar em luta aberta contra Filipe. Mas este último não lhe forneceu as vantagens de uma pendência, e respondeu-lhe, no mesmo tom:

— Tive que agir daquela maneira, lamentando-o muito, meu tio, para evitar as maquinações do Duque de Borgonha, a quem a vossa partida deixara o campo livre. Recebi notícias durante a noite, em Fontainebleau, a esse respeito. Não quis acordar-vos, entretanto.

Valois, para tornar menor sua derrota, fingiu receber como exata a explicação e esforçou-se, mesmo, por mostrar boa cara ao condestável, que considerava o autor de toda a maquinação.

Carlos de La Marche, menos hábil na dissimulação, conservava os dentes cerrados.

O Conde d’Evreux fêz, então, a proposta que combinara com Filipe. Enquanto este último fingia ocupar-se com questões de serviço, junto do condestável e de Mille de Noyers, num canto da sala, Luís d’Evreux disse:

— Meus senhores, e vós todos, Messires, aconselho, para o bem do reino e para evitar-lhe funestas perturbações, que nosso bem-amado sobrinho Filipe tome posse do governo, com o consentimento de todos nós, e que realize as tarefas reais em nome de seu sobrinho por nascer, se Deus quiser que a Rainha Clemência dê à luz um filho. Aconselho, ainda, que uma assembléia de todos os homens de prol do reino se junte, assim que se possa reunir, com os pares e os barões, para aprovar nossa decisão e jurar fidelidade ao regente.

Era a réplica exata da declaração feita na véspera por Carlos de La Marche, ao chegar a Fontainebleau. Mas a cena fora preparada por melhores artistas. Arrastada pelos fiéis do Conde de Poitiers, a assistência aprovou por aclamações. Imediatamente, Luís d’Evreux, repetindo o gesto que tivera em Lião o Conde de Forez, veio colocar suas mãos entre as de Filipe.

— Eu vos juro fidelidade, meu sobrinho — disse ele, dobrando o joelho.

Filipe ergueu-o, e, beijando-o, disse-lhe ao ouvido:

— Tudo vai às maravilhas. Muitíssimo obrigado, meu tio.

La Marche, desesperado, furioso com o êxito de Filipe, engrolou :

— O rei... Êle pensa que é mesmo o rei.

Mas Luís d’Evreux já se voltara para Carlos de Valois, e dizia-lhe:

— Perdão, meu irmão, por ter passado por cima de vosso direito.

Valois nada mais tinha a fazer, a não ser prestar obediência. Aproximou-se, com as mãos estendidas. O Conde de Poitiers deixou-as no ar.

— Far-me-eis a graça, meu tio, de tomar parte no meu conselho — disse ele.

Valois empalideceu. Na véspera, assinava os decretos, apondo-lhes seu sinête. Hoje ofereciam-lhe, como grande honra, um lugar num conselho, ao qual, por direito, ele pertencia.

— Também haveis de entregar-nos as chaves do Tesouro — acrescentou Filipe, baixando a voz. — Bem sei que está quase vazio. Desejaria, ao menos, que não se esvaziasse ainda mais.

Valois teve um movimento de recuo. O que lhe pediam era seu completo desapossamento.

— Meu sobrinho, não posso fazer isso — respondeu. — Preciso mandar pôr as contas em dia.

— Fazeis assim tanta questão de pôr em ordem essas contas, meu tio? — disse Filipe, com ironia apenas perceptível. — Então, seríamos forçados a examiná-las, e a examinar também a gestão dos bens tomados a Enguerrand de Marigny.

Entregai-nos, pois, as chaves, e daremos quitação de vossas contas.

Valois compreendeu a ameaça.

— Seja, meu sobrinho, mandarei que vos entreguem agora mesmo as chaves.

Filipe, então, estendeu as mãos para receber a homenagem de seu mais poderoso rival.

O condestável de França por sua vez aproximava-se.

— Agora, Gaucher — murmurou-lhe Filipe — precisamos nos ocupar do Borguinhão.

 

                         AS VISITAS DO CONDE DE POITIERS

O CONDE de Poitiers não alimentava ilusões. Acabava de colher uma primeira vitória, espetacular, rápida, mas sabia que seus adversários não se desarmariam tão facilmente.

Mal recebeu de Monsenhor de Valois um juramento de fidelidade que era apenas de boca, Filipe atravessou o palácio para ir cumprimentar sua cunhada Clemência. Estava acompanhado de Anseau de Joinville e da Condêssa Mafalda. Hugo de Bouville, vendo Filipe, desatou a chorar e caiu de joelhos, beijando-lhe as mãos. O antigo camareiro, embora fizesse parte do conselho dos pares, tinha se abstido de aparecer na reunião daquela tarde. Não deixara seu posto nem largara sua espada durante aquelas últimas horas. O assalto do palácio, levado a efeito pelo condestável, o alvoroço e a partida dos homens do Conde de Valois, tinham submetido seus nervos a dura prova.

— Perdoai-me, Monsenhor, perdoai-me esta fraqueza: é a alegria de vos ver de volta — dizia, molhando com suas lágrimas os dedos do regente.

— Não vos desculpeis, meu caro, não vos desculpeis — respondeu Filipe.

O velho Joinville não reconheceu o Conde de Poitiers. Nem mesmo reconheceu seu próprio filho, e quando lhe repetiram três vezes que um e outro estavam diante dele, confundiu-os, e inclinou-se, cerimoniosamente, diante de Anseau.

Bouville abriu a porta do quarto da rainha. Mas, como Mafalda se dispusesse a seguir Filipe, o curador, recuperando sua energia, exclamou:

— Somente vós, Monsenhor, somente vós!

E tornou a íechar a porta no nariz da condêssa.

A Rainha Clemência estava pálida, cansada, e visivelmente alheia às preocupações que agitavam tão fortemente a côrte e a população de Paris. Não pôde, vendo o Conde de Poitiers avançar para ela com as mãos estendidas, evitar um pensamento: “Se me tivessem casado com ele, hoje eu não seria viúva. Por que Luís? Por que não Filipe?” Proibia a si própria tal espécie de perguntas mentais, que lhe pareciam outras tantas censuras ao Criador todo-poderoso. Nada, porém, nem mesmo a devoção, poderia proibir uma viúva de vinte e três anos de se perguntar por que razão os outros jovens, os outros maridos, estavam vivos!

Filipe informou-lhe de sua tomada da regência, e assegurou-lhe seu inteiro devotamento.

— Oh! Sim, meu irmão, oh! sim! — murmurou. — Ajudai-me!

Queria dizer, sem saber como expressar-se: “Ajudai-me a viver, ajudai-me a defender-me do desespero, ajudai-me a trazer ao mundo esta nova vida que agora é a minha única tarefa sobre a terra”. E acrescentou:

— Por que nosso tio Valois fèz-me deixar, quase à força, minha casa de Vincennes? Luís dera-me aquela morada, com seu último suspiro.

— Desejais voltar para lá? — perguntou Poitiers.

— Ë o meu único desejo, meu irmão! Ali, eu me sentirei mais forte. E meu filho nascerá mais perto da alma de seu pai, no lugar em que ele deixou a terra.

Filipe não tomava decisão alguma, mesmo de importância secundária, sem reflexão. Desviou os olhos dos véus brancos que enquadravam o rosto de Clemência, e olhou, através da janela, para a flecha da Santa Capela, cujas linhas, à sua miopia, apareciam um tanto incertas e desmanchadas, como uma grande haste de pedra e ouro, e em cujo cimo a flor-de-lis real dava a impressão de expandir-se.

“Se eu lhe der essa satisfação”, pensava o príncipe, “ela ficará grata, passará a considerar-me seu defensor, e em tudo se conformará com as minhas decisões. Por outro lado, meus adversários terão menos facilidade de se aproximar dela em Vincennes do que aqui, e lhes será mais difícil servir-se dela contra mim. Aliás, nesse estado de sofrimento em que está, Clemência não seria útil a ninguém”.

— Desejo, minha irmã, satisfazer-vos em tudo — respondeu. — Assim que a assembléia dos homens de prol tenha confirmado minha posição, o primeiro cuidado de minha parte será levar-vos novamente para Vincennes. Estamos numa segunda-feira, a assembléia, para a qual pedi urgência, vai reunir-se, sem dúvida, na sexta-feira. Penso que no próximo domingo podereis assistir à missa em vossa casa.

— Eu sabia, Filipe, que éreis um bom irmão. Vosso regresso é o primeiro consolo que Deus me concede.

Ao sair do apartamento da rainha, Filipe encontrou sua sogra, que o esperava. Tivera uma discussão com Bouville, e andava de cá para lá, sozinha, com seu grande passo masculino, pisando as lajes da galeria, sob o olhar desconfiado dos escudeiros de guarda.

— Então, como está ela? — perguntou Mafalda a Filipe.

— Devota e resignada, e bem digna de dar um rei à França — respondeu o Conde de Poitiers, de forma que suas palavras pudessem alcançar todos os ouvidos em derredor.

Depois, a meia voz, acrescentou:

— Não acredito que, no estado de saúde em que se acha, consiga levar a criança a termo.

— Esse seria o melhor presente que ela nos poderia fazer, e as coisas se tornariam mais fáceis de arranjar — respondeu Mafalda, no mesmo tom. — E depois, é preciso acabar com toda essa desconfiança e com todo esse aparelhamento de guerra que a rodeia. Desde quando os pares do reino não têm acesso junto da rainha? Também eu enviuvei, que diabo, e podiam chegar-se até mim, para tratar de negócios do governo!

A envenenadora indignava-se, sinceramente, ao ver que as medidas gerais de prudência podiam relacionar-se com ela.

Filipe, que ainda não tinha visto sua mulher desde que chegara, acompanhou Mafalda ao palácio d’Artois.

— Vossa ausência tem afetado muito minha filha — disse Mafalda. — Mas ireis encontrá-la encantadoramente viçosa. Ninguém acreditaria que está em vésperas de dar à luz. Também eu fui assim, quando grávida, alerta até o último dia!

O reencontro do Conde de Poitiers e de sua esposa foi comovido, embora sem lágrimas. Joana, muito pesada, movia--se com dificuldade, mas dava a impressão completa de saúde e felicidade. A noite descera, e a luz das velas, propícia à cútis, disfarçava sobre o rosto da jovem os sinais de seu estado. Usava vários colares de coral vermelho, famoso por sua ação benéfica nos partos.

Foi em presença de Joana que Filipe tomou realmente ciência dos êxitos já obtidos, e concedeu-se a satisfação consigo mesmo. Tomando a esposa nos braços, disse-lhe:

— Creio, minha doce amiga, que posso chamar-vos, daqui por diante, a senhora regente.

— Permita Deus, meu belo sire, que eu vos dê um filho — respondeu ela, abandonando-se um pouco contra o corpo magro e robusto de seu marido.

— Deus levará seus favores ao máximo — murmurou-lhe Filipe ao ouvido — se permitir que ele só nasça depois de sexta-feira.

Depressa uma discussão entabulou-se entre Mafalda e Filipe. A Condêssa d’Artois achava que sua filha devia ser transportada imediatamente para o palácio e partilhar, ali, dos apartamentos de seu marido. Filipe mantinha opinião contrária e desejava que Joana se conservasse no palácio d’Artois. Oferecia vários argumentos, muito bons em si, mas que não descobriam o fundo de seu pensamento, e que, aliás, não convenceram Mafalda. O palácio podia vir a ser, nos dias que se seguiriam, local de assembléias violentas e tumultos prejudiciais a uma parturiente. Por outro lado, Filipe considerava mais apropriado esperar que Clemência tivesse voltado para Vincennes antes de instalar Joana no palácio.

— Mas olhai para ela, Filipe! — exclamou Mafalda. — Amanhã talvez não se possa mais locomover. Não desejais, então, que vosso filho nasça no palácio?

— É exatamente isso que eu gostaria de evitar.

— Francamente, não vos compreendo, meu filho — dizia Mafalda, sacudindo as espáduas robustas.

Aquela controvérsia cansava Filipe. Havia trinta e seis horas que ele não dormia, tinha percorrido na noite anterior quinze léguas a cavalo e vivido a seguir o dia mais difícil, mais movimentado de toda a sua vida. Sentia que a barba estava crescendo, que suas pálpebras, de vez em quando, tendiam a fechar-se. Mas estava resolvido a não ceder. “Minha cama”, pensava ele. “Que me obedeçam, e que eu possa ir para minha cama!”

— Ouçamos, então, a opinião de Joana. Que desejais nesse caso, minha amiga? — perguntou ele, seguro da docilidade de sua mulher.

Mafalda tinha uma inteligência masculina, vontade masculina, e constante preocupação de confirmar o prestígio de sua raça. Joana, natureza completamente diferente, fora habituada pelo destino a jamais encontrar-se no ápice dos acontecimentos. De início noiva do Turbulento, fora dada em seguida, numa espécie de troca, ao segundo filho de Filipe, o Belo, passando, assim, ao lado das coroas de Navarra e de França. No caso da Torre de Nesle, se havia servido aos amores de suas cunhadas, roçara pelo adultério, sem cometê-lo. No castigo, a reclusão perpétua lhe fora evitada. Estava mesclada a todos os dramas, mas sem jamais tomar neles a parte preponderante. Por um espécie de elegância, mais do que por precaução moral, os excessos repugnavam-lhe. O ano que passara na fortaleza de Dourdan tinha acentuado sua prudência. Era fina, sensível, hábil, e sabia manejar com oportunidade essa arma perfeitamente feminina: a submissão.

Adivinhando que a insistência de Filipe apoiava-se em fortes razões, silenciou um pequeno movimento de legítima vaidade, e disse:

— É aqui, minha mãe, que desejo dar à luz. Sentir-me-ei melhor aqui.

Não lhe importava exageradamente que seu quarto filho nascesse no palácio, ou alhures. Filipe agradeceu-lhe com um sorriso. Sentado na grande cadeira de encosto reto, as pernas estendidas e cruzadas, perguntou os nomes das matronas e parteiras que deviam assistir Joana em seu parto, querendo saber do onde vinha cada uma, e se podiam merecer toda a confiança. Recomendou que as fizessem prestar juramento, precaução que habitualmente só era tomada nos partos reais.

“Que bom marido, como tem cuidado comigo!”, pensava Joana, ouvindo-o.

Filipe exigiu, também, que assim que a Condêssa de Poitiers tivesse as primeiras dores, as portas do palácio d’Artois fossem fechadas. Ninguém deveria sair, com exceção de uma única pessoa, que seria encarregada de levar-lhe a notícia do nascimento.

— ... Vós — disse ele, designando a bela Beatriz d’Hirson, que assistia à conversa. — Serão dadas ordens ao meu camareiro para que possais ir ter comigo a qualquer momento, mesmo que eu esteja em conselho. E se houver gente em torno de mim, dai-me a notícia em voz baixa, sem dizer uma palavra a quem quer que seja... se fôr um filho. Confio-me a vós, pois recordo que já me servistes bem.

— Mais ainda do que pensais, Monsenhor — respondeu Beatriz, inclinando ligeiramente a cabeça.

Mafalda lançou um olhar furioso a Beatriz. Aquela donzela, com seus ares dolentes, sua falsa ingenuidade, seus sorrisos audazes, causava-lhe tremores. Beatriz continuava a sorrir. Tais movimentos fisionômicos não escaparam a Joana que, todavia, evitou fazer qualquer pergunta. Entre sua mãe e a primeira donzela havia uma espessura de segredos, que ela preferia não tentar atravessar.

Inquieta, voltou os olhos para o marido. Mas este último de nada se apercebia. A nuca apoiada ao encosto de sua cadeira, acabava de adormecer bruscamente, fulminado pelo sono das vitórias. Em seu rosto anguloso, e habitualmente severo, instalara-se uma expressão de atenta doçura, na qual seria possível reencontrar a criança que fora. Joana, comovida, aproximou-se a passos cautelosos e veio pousar-lhe na fronte um beijo muito leve.

 

                         O FILHO DA SEXTA-FEIRA

JÁ NO DIA seguinte o Conde de Poitiers começou a preparar a reunião de sexta-feira. Se dela saísse vencedor, ninguém mais poderia, durante longos anos, contestar-lhe o poder.

Enviou mensageiros e correios montados, para convocar, conforme ficara convencionado, todos os homens de prol do reino — todos, com efeito, que não se encontrassem a mais de dois dias de viagem a cavalo. O que permitia, por um lado, não deixar a situação arruinar-se, e, por outro lado, eliminaria certos grandes vassalos, cuja hostilidade Filipe poderia recear, tais como o Conde da Flandres e o rei da Inglaterra.

Ao mesmo tempo, confiava a Gaucher de Châtillon, a Mille de Noyers e a Raul de Presles, o cuidado de prepararem o regulamento da regência, que seria submetido à assembléia. Apoiando-se em normas já estabelecidas, fixaram os princípios seguintes: o Conde de Poitiers administraria os dois reinos, com o título provisório de regente, administrador e guardião, e receberia todos os rendimentos reais. Se a Rainha Clemência desse à luz um filho, esse filho naturalmente seria rei, e Filipe conservaria a regência até a maioridade de seu sobrinho. Se Clemência, entretanto, tivesse uma menina... todas as dificuldades começavam com essa hipótese. Pois, nesse caso, e com toda a justiça, a coroa devia pertencer à pequena Joana de Navarra, primeira filha do Turbulento. Mas seria ela, realmente, sua filha? Era a pergunta que a corte e todo o reino faziam. Sem os amores da Torre de Nesle, sem o escândalo e o julgamento de Pontoise, os direitos daquela criança não poderiam ser discutidos, e, na ausência de herdeiro varão, ela teria que ser proclamada rainha da França. Entretanto, fortes suspeitas pesavam sobre a menina, suspeitas às quais Carlos de Valois, particularmente, dera corpo, ao agenciar o segundo casamento de Luís X, coisa de que Filipe não deixou de tirar partido, naquela circunstância. A proximidade das datas, entre o início dos amores culposos de Margarida e o nascimento de Joana, era perturbadora. Perturbadora, também, a aversão que Luís sempre mostrara por aquela criança e o afastamento em que a mantivera. Não era, pois, sem razão que se cochichava a seu propósito.

— É a filha de Filipe d’Aunay.

Assim, o caso da Torre de Nesle, deformado de época para época pela imaginação popular, tornar-se-ia uma espécie de intriga mítica, uma lenda de amor, de vício, de crime e de horror; aquele caso bastante simples de adultério apresentava, em sua realidade, dois anos depois de ter estourado, grave problema dinástico e ia modificar o curso natural da monarquia francesa.

Alguém propôs decidir, desde então, que a coroa seria, de qualquer maneira, para a criança que Clemência tivesse, fosse menina ou menino.

Filipe de Poitiers fechou a cara àquela sugestão e encontrou bons argumentos para afastá-la. Sem dúvida, as suspeitas que envolviam Joana de Navarra eram fortemente fundamentadas, mas não havia prova alguma formal. Nem a mãe de Margarida, a velha Agnes, viúva de Borgonha, nem seu filho Eudes IV, o atual duque, poderiam concordar com aquela brutal evicção de sua sobrinha. Todos os inimigos do poder real, a começar pelo Conde da Flandres, não deixariam de tomar o partido dela, para servir interesses pessoais. Em pouco tempo a França correria o risco de uma guerra civil, a guerra das duas rainhas.

— Nesse caso — disse Gaucher de Châtillon — decretemos, apenas, que as filhas mulheres não terão direito à coroa. Deve haver algum costume sobre o qual possamos nos apoiar.

— Infelizmente, meu cunhado — respondeu Mille de Noyers — já o procurei, pois a vossa idéia também me ocorreu, mas nada foi encontrado nesse sentido.

— Que se continue a procurar. Entregai esse encargo aos vossos amigos, os advogados da Universidade e do Paramento. Essas pessoas encontram costumes para tudo, e no sentido desejado, quando se dão a esse trabalho. Remontam até Clóvis para provar que devem partir-vos a cabeça, grelhar --vos em pé ou cortar-vos melhor.

— É verdade — disse Mille — que não mandei pesquisar tão longe. Só pensei nos costumes reais do grande Hugo para cá. Seria preciso ir buscar mais remotamente, mas não creio que encontremos alguma coisa até sexta-feira.

Obstinado, e misógino como todo bom militar, o condestável, sacudindo seu queixo quadrado e apertando as pálpebras de tartaruga, continuou:

— Na verdade, seria loucura deixar uma mulher subirao trono! Podeis imaginar, por acaso, dama ou donzela comandando exércitos, impura todos os meses, grávida todos os anos?

E fazer frente aos vassalos, quando não são sequer capazes de silenciar os ardores de sua natureza? Não, eu não concebo tal coisa, e deporia imediatamente a minha espada. Monsenhores, eu vos digo, a França é reino demasiado nobre para se transformar em roca, e cair em mãos femininas. As flôres-de-lis não podem ser fiadas.

Essa última frase, se não foi adotada no mesmo momento, impressionou fortemente os espíritos, e não deixaram de utilizá-la mais tarde (12).

Filipe de Poitiers deu sua aprovação a uma redação bastante tortuosa, que postergava consideravelmente as decisões a tomar.

— Façamos com que as perguntas sejam feitas, mas sem que nos caiba dar as respostas — disse ele. — E atrapalhemos um pouco as coisas, a fim de que nelas cada qual pense ver surgir o seu próprio interesse.

Portanto, se a Rainha Clemência tivesse uma filha, Filipe conservaria a regência até a maioridade de sua sobrinha mais velha, Joana. Somente nessa data seria regulamentada a devolução da coroa, ou em benefício das duas princesas, que repartiriam entre si França e Navarra, ou em benefício de uma das duas, que conservaria a união dos reinos, ou em benefício de nenhuma das duas, no caso de renunciarem ambas aos seus direitos, ou ainda, se a assembléia dos pares, convocada para debater o assunto, considerasse que uma mulher não poderia reinar sobre o reino da França. Nesse caso, a coroa iria ao mais próximo parente do sexo masculino do último rei... quer dizer, para Filipe. Assim, sua candidatura estava pela primeira vez oficialmente lançada, mas submetida a tantas resoluções prévias, que aparecia, principalmente, como solução eventual de compromisso e arbitragem.

Esse regulamento, submetido individualmente aos principais barões favoráveis a Filipe, recebeu a aprovação deles.

Apenas Mafalda demonstrou estranha reticência em relação a um ato que, realmente, preparava a ascensão de seu genro e sua filha ao trono da França. Algo na redação do documento a contrariava.

— Não poderíeis — disse ela — declarar simplesmente: “se as duas filhas renunciarem aos seus direitos...” sem falar em submeter à assembléia dos pares se as mulheres podem ou não reinar?

— Ora, minha mãe! — respondeu-lhe Filipe — nesse caso elas não renunciarão. Os pares, dos quais fazeis parte, são a única assembléia de recurso. De início eram os eleitores do rei, como os cardeais o são do papa, ou os palatinos do Imperador, e foi assim que escolheram Hugo, nosso ancestral, que era duque de França. Se agora não elegem mais, é porque há trezentos anos nossos reis têm tido filhos para se sentarem no trono (13).

— É um costume que vem do acaso! — replicou Mafalda.

— Estais, com vosso regulamento, servindo lindamente às pretensões de meu sobrinho Roberto. Vereis como ele não deixará de usá-lo para tentar receber novamente o meu condado.

Não pensava senão em sua querela sucessória de Artois, e a França já não estava em sua mente.

— Costume do reino não é costume de feudo, minha mãe. E conservareis melhor vosso condado tendo vosso genro como rei do que com os argumentos dos juristas.

Mafalda submeteu-se, sem se convencer, entretanto.

— Aí está a gratidão dos genros — disse a Beatriz d’Hirson, um pouco mais tarde. — Envenenamos um rei para deixar-lhe o lugar, e imediatamente começa a agir só pela sua cabeça, sem levar nada mais em conta!

— É que ele não sabe exatamente, Madame, o que vos deve, nem como nosso sire Luís partiu de pés juntos.

— E ele não o deve saber, meu Deus! — exclamou Mafalda, tocando vivamente, através de sua veste, a relíquia de São Druão, como fazia de cada vez que falava em seus crimes.

— Afinal, era seu irmão, e meu Filipe tem curiosos movimentos de justiça. Segura a língua, por favor, segura a língua!

Nesses dias, Carlos de Valois, ajudado por Carlos de La Marche e Roberto d’Artois, agitava-se muitíssimo, dizendo em toda parte, e fazendo repetir o que dizia, que era loucura confirmar o Conde de Poitiers na regência, e mais ainda considerá-lo como herdeiro presuntivo. Filipe e sua sogra tinham feito inimigos demais, e a morte de Luís servia demasiado bem os seus interesses, agora confessados, para que aquela morte suspeita não fosse obra dêles. Valois, êsse sim, oferecia outras garantias, e julgava-se o único capaz de aplainar as dificuldades do reino. Estava nos melhores termos com o rei de Nápoles, e garantia poder acalmar qualquer perturbação que viesse do lado de Clemência. Era o único da família real que conservara, apesar das guerras, relações com o Conde da Flandres. Tendo servido o papado romano, gozava da confiança dos cardeais italianos, sem os quais não se podia eleger um papa, apesar desses maus processos, que consistiam em encerrar o conclave entre quatro paredes. Os antigos Templários recordavam-se que ele jamais aprovara a supressão da sua Ordem, e também por êsse lado Valois poderia pesar muito.

Quando Filipe soube desta campanha, encarregou seus familiares de responder que era bem estranho ver o tio do rei apoiar-se, para reclamar o poder, nas suas boas relações com os adversários do reino, e que se se desejasse ver o papa em Roma, e a França na mão dos angevinos, dos flamengos e do Templo ressuscitado, bastaria oferecer depressa a coroa ao Conde de Valois.

Enfim, chegou a sexta-feira decisiva, na qual a assembléia deveria reunir-se. Ao alvorecer, Beatriz d’Hirson apresentou-se no palácio e foi imediatamente introduzida no quarto do Conde de Poitiers. A primeira donzela estava um tanto ofegante, por ter corrido desde a Rua Mauconseil. Filipe ergueu-se sobre os travesseiros.

— Homem? — indagou.

— Homem, Monsenhor, e bem forte — respondeu Beatriz, batendo os cílios.

Filipe vestiu-se apressadamente e precipitou-se para o palácio d’Artois.

— As portas, as portas! Que as portas se conservem fechadas! — disse ele, mal entrou. — Atenderam direito as minhas ordens? Ninguém saiu, a não ser Beatriz? Que o mesmo se faça o dia inteiro.

Depois, atirou-se para as escadas. Tinha perdido aquela rigidez e aquela compunção às quais forçava seu temperamento.

O “quarto da parturiente”, tal como era de uso nas famílias principescas, tinha sido suntuosamente decorado. Altas tapeçarias, com flores e papagaios, as belas tapeçarias de Arras, das quais a Condêssa Mafalda se orgulhava tanto, recobriam inteiramente as paredes. O chão estava juncado de flores, íris, rosas e margaridas, sobre as quais se pisava. A parturiente, pálida, os olhos brilhantes e o rosto ainda desfeito, repousava num grande leito rodeado de cortinas de seda, sob os lençóis brancos, que se arrastavam pelo chão no comprimento de uma vara. Nos cantos do quarto estavam dois pequenos leitos, também providos de cortinas de seda, um destinado à parteira juramentada, outro para a vigilante do berço.

O jovem regente dirigiu-se diretamente para o berço de aparato, e inclinou-se muito a fim de ver bem o filho que acabava de nascer. Horrível, e entretanto, enternecedor, como todos os recém-nascidos em suas primeiras horas de vida, avermelhado, enrugado, os olhos colados e a boca babando, com uma bem minguada mecha de cabelos louros apontando em seu crânio alvo, o bebê dormia ainda um sono de embrião, e parecia, dentro das faixas apertadamente enroladas que o envolviam até os ombros, uma pequena múmia.

— Então eis aí o meu pequeno Filipe (14) que eu desejava tanto e que chega em tão boa hora — disse o Conde de Poitiers. Somente então aproximou-se de sua esposa, beijou-a nas faces e disse-lhe, em tom de profunda gratidão:

— Muitíssimo obrigado, minha amiga, muitíssimo obrigado. Deste-me uma grande alegria, e isso apaga para sempre em meu pensamento nossos desentendimentos de outrora.

Joana segurou a longa mão do marido, levou-a aos lábios e acariciou com ela seu rosto.

— Deus nos abençoou, Filipe: Deus abençoou nosso reencontro do outono — murmurou.

Usava ainda seus colares de coral.

A Condêssa Mafalda, as mangas arregaçadas sobre os ante-braços guarnecidos de espessa penugem, assistia à cena com ar triunfante. Bateu no próprio ventre com um gesto enérgico.

— Ah! Meu filho! — exclamou. — Não vos tinha dito? São bons ventres, os de Artois e Borgonha.

Falava naquilo como nos méritos de éguas de cria. Filipe voltou ao berço.

— Não se poderia despi-lo, para que eu o visse melhor? — perguntou.

— Monsenhor — respondeu a parteira — não é aconselhável. Os membros da criança são muito tenros e precisam conservar-se enfaixados tanto quanto possível, para fortalecê-los e impedi-los de entortarem. Mas não deveis ter receio algum, Monsenhor, porque nós o esfregamos bem com sal e mel, e o envolvemos em rosas piladas, para lhe retirar o humor pegajoso. E a boca foi untada com mel por dentro, para dar-lhe apetite e doçura. Podeis estar certo de que está sendo bem cuidado.

— E a vossa Joana também, meu filho — acrescentou Mafalda. — Mandei que lhe passassem no corpo um bom ungüento, misturado ao excremento de lebre, para lhe apertar o ventre, segundo a receita de mestre Arnaldo de Villeneuve.

Fazia questão de tranqüilizar o genro quanto à qualidade de seus prazeres futuros.

— Mas minha mãe — disse a parturiente — eu pensava que essa receita fosse só para mulheres estéreis.

— Bah! O excremento de lebre é bom para tudo — replicou a condêssa.

Filipe continuava a contemplar seu herdeiro.

— Não vos parece que se assemelha bastante com meu pai, o grande rei? — perguntou. — Tem dele a testa, e também o queixo...

— Talvez um pouco — falou Mafalda. — A verdade, quando eu o vi ainda há pouco, é que encontrei nele uns traços de meu falecido e bravo Oto... Que tenha a força de alma e de corpo de todos os dois, eis o que lhe desejo.

— É sobretudo convosco, Filipe, que ele se parece — disse Joana, docemente.

O Conde de Poitiers endireitou o corpo, com certo orgulho.

— Agora compreendeis melhor minhas ordens, minha mãe — disse ele — e por que vos peço que mantenhais as portas fechadas. Ninguém deve saber que tenho um filho, porque diriam que fabriquei o regulamento de sucessão propositadamente para lhe assegurar o trono, depois de mim, se Clemência não tiver filho homem. E sei de muitos, a começar pelo meu irmão Carlos, que recalcitrariam, vendo suas esperanças cortadas tão cedo. Se quiserdes, pois, que esta criança tenha sua oportunidade de chegar a rei algum dia, nem uma palavra a quem quer que seja, daqui a pouco, na assembléia.

— É verdade! Temos a assembléia! Esse rapazinho aí quase me fazia esquecer! — exclamou Mafalda, estendendo a mão para o berço. — Mal tenho tempo de me vestir, e comer alguma coisa para estar disposta ao ataque. Sinto-me com o estômago vazio, pois acordei muito cedo. Filipe, far-me-eis companhia. Beatriz, Beatriz!

Bateu palmas e reclamou um pâté de solha, ovos cozidos, queijo branco com especiarias, doce de nozes, pêssegos e vinho branco de Château-Chalon.

— É sexta-feira, dia magro — disse ela.

O sol, aparecendo por sobre os tetos da cidade, inundou de luz aquela família feliz.

— Come um pouco. O pâté de solha não te pesará — disse Mafalda à sua filha.

Depressa Filipe levantou-se, para ir dar a última demão nos preparativos da assembléia, cuja hora se aproximava.

— Minha querida, hoje não virão cumprimentar-vos — disse a Joana, mostrando as almofadas dispostas em semicírculo em torno da cama, para os visitantes. — Mas amanhã tereis muitíssimas visitas.

No momento em que ia sair, Mafalda agarrou-o pela manga.

— Meu filho, pensai um pouco em Branca, que continua em Château-Gaillard. É a irmã de vossa esposa.

— Pensarei, pensarei. Tratarei de melhorar-lhe a sorte.

E afastou-se, levando na sola do calçado um dos íris do quarto da parturiente.

Mafalda tornou a fechar a porta.

— Vamos, aias do berço, cantarolai um pouco! — exclamou.

 

                             A ASSEMBLÉIA DAS TRÊS DINASTIAS

DO FUNDO de seus aposentos, a Rainha Clemência percebia o grande movimento de senhores e gente de prol chegando à assembléia, e o tumulto de suas vozes nos pátios e sob as abóbadas.

A reclusão de quarenta dias, imposta à rainha pelo luto, terminara na véspera, e Clemência, ingenuamente, pensava que a data da reunião fora escolhida propositadamente para que lhe fosse dado presidi-la. Tinha feito seus preparativos para esta reaparição solene, com interesse, curiosidade, impaciência, mesmo. E parecera-lhe, nos dias precedentes, que ia recuperando o gosto de viver. Mas, no último momento, um conselho de boticários e médicos, entre os quais os médicos pessoas do Conde de Poitiers e da Condêssa Mafalda, tinha proibido uma fadiga que considerava perigosa para o estado da rainha.

Todos pareciam achar correta aquela posição, pois ninguém, na verdade, preocupava-se em fazer valer os direitos de Clemência à regência, nem sequer seu direito de estar a ela associada. Entretanto, já que procuravam tão obstinadamente, na história do reino, os precedentes em que se pudessem inspirar, não podiam deixar de recordar Ana da Rússia, viúva de Henrique I, partilhando o governo com seu cunhado Beaudoin de Flandres “por aquela qualidade indelével que lhe fora conferida pela sagração”, ou, mais próximo ainda, a Rainha Branca de Castela, tão presente em todas as memórias (15).

Mas o Delfim de Viennois, cunhado de Clemência, que era o melhor indicado para defender-lhe as prerrogativas, ficara inteiramente do lado de Filipe, desde que tinham assinado o contrato de casamento entre seus filhos.

Carlos de Valois, que se apresentava como grande protetor de sua sobrinha, não se comprometeu mais do que até aí em seu favor. Tinha muito que fazer em seu próprio benefício.

Quanto ao Duque Eudes de Borgonha, que ali estava, como há um mês vinha declarando, para sustentar os direitos de sua irmã Margarida e vingar-lhe a morte, não podia senão ser hostil em tudo a Clemência.

Tendo ficado por muito poucos meses no trono para ali tornar-se conhecida e chegar a tomar ascendência sobre os grandes barões, estes já não a consideravam senão como a sobrevivente de um reinado rápido, perturbado e calamitoso sob vários aspectos.

— Ela não trouxe sorte para o reino — diziam da rainha.

E se ainda existia como futura mãe, deixara de existir como soberana.

Encerrada numa ala do prédio, ouvia decrescerem as vozes: a assembléia entrava na sala do Grande Conselho, cujas portas foram fechadas.

“Meu Deus, meu Deus”, pensava ela, “por que não fiquei em Nápoles! “

E começou a soluçar, pensando em sua infância, no mar azul, naquele povo buliçoso, barulhento, generoso, compassivo para com a dor, seu povo, que sabia amar tão bem.

Durante esse tempo, Mille de Noyers lia o regulamento da sucessão.

O Conde de Poitiers tinha tido o cuidado de não se rodear de qualquer dos atributos da majestade real. Sua poltrona estava instalada no centro de um estrado, mas não deixara que a ornamentassem com um dossel. Êle próprio estava vestido com um trajo escuro, sem nenhum ornamento, embora o luto oficial tivesse terminado. Parecia dizer: “Monsenhores, estamos aqui em conselho de trabalho”. Simplesmente, os três sargentos-maceiros que caminhavam diante dele na entrada, tinham ficado de pé, atrás de sua cadeira. Assegurava assim o exercício da soberania, sem, todavia, pretender estar investido dela. Mas tinha mandado preparar cuidadosamente a sala, designando o lugar de cada qual, através de seus camareiros, segundo um cerimonial ao mesmo tempo assaz rígido e arbitrário, que não deixou de impressionar os presentes, pois encontraram ali as maneiras de Filipe, o Belo.

À sua direita, Filipe fizera sentar Carlos de Valois, e imediatamente depois dêste, Gaucher de Châtillon, para ter em mão o ex-imperador de Constantinopla, e isolá-lo de seu clã. Filipe de Valois fora relegado para seis fileiras depois de seu pai. À sua esquerda o regente havia colocado seu tio Luís d’Evreux, e só depois dêste vinha seu irmão Carlos de La Marche. Impedia, assim, que os dois Carlos pudessem entender-se durante o curso da reunião, retomando a palavra que lhe tinham dado quatro dias antes.

Mas a atenção do Conde de Poitiers voltava-se principalmente para seu primo, o Duque de Borgonha, que mantinha sob seus olhos, num ângulo do estrado, e que estava ladeado pela Condêssa Mafalda e pelo delfim de Viennois.

Filipe sabia que o duque ia falar em nome de sua mãe, a Duquesa Agnes, a quem a qualidade de última filha de Luís IX conferia, mesmo ausente, grande prestígio sobre os barões. Tudo quanto tocasse a lembrança do rei canonizado, do defensor da cristandade, do herói de Tunes, tudo quanto sua mão acariciara, era objeto de veneração. Todos os seres ainda existentes, que o tinham visto, que haviam recolhido suas palavras ou recebido sua afeição, estavam revestidos de caráter um tanto sagrado.

Seria suficiente a Eudes de Borgonha dizer: “Minha mãe, filha do senhor São Luís, que a abençoou antes de ir morrer em terra infiel...” — e o coração dos presentes se comoveria.

Assim, a fim de inutilizar tal manobra, Filipe ia tirar de seu jogo uma peça importante e totalmente inesperada: Roberto de Clermont, o outro sobrevivente dos onze filhos do santo, o sexto, o último filho. Já que se desejava a caução de São Luís, ele a apresentaria.

A presença de Roberto, Conde de Clermont, tomava aspecto miraculoso, pois a última de suas raras aparições na corte remontava a mais de cinco anos. Sua existência estava quase esquecida, e, quando dele se lembravam, ninguém ousava falar disso senão em voz baixa.

Com efeito, o tio-avô Roberto era louco, desde que, com a idade de vinte e quatro anos, recebera na cabeça um golpe de maça. Loucura frenética, mas intermitente, com longos períodos de acalmia, que tinham permitido a Filipe, o Belo, servir-se dele, às vêzes, para missões decorativas. Aquele homem não era perigoso pelo que dizia, pois mal falava. Era perigoso pelo que podia fazer, porque nada jamais assinalava a explosão de uma de suas crises, atirando-o, de gládio na mão, sobre seus familiares, contra os quais era subitamente tomado de ódio assassino (16). Era, então, espetáculo muito penoso, ver senhor de tão nobre raça e de tão bela aparência — porque, com sessenta e dois anos ele tinha ainda aspecto majestoso — fender os móveis, rasgar as tapeçarias, e perseguir as serviçais, supondo que fossem seus adversários em torneio.

O Conde de Poitiers mandara que o sentassem na outra ala do estrado, na posição correspondente à do Duque de Borgonha, e próximo de uma porta. Dois escudeiros monumentais estavam a curta distância, encarregados de agarrá-lo ao menor alarma. Êle deixava vagar um olhar desdenhoso, entediado, ausente, que subitamente se fixava num rosto, com a dolorosa inquietação das lembranças que não se encontram mais, e depois extinguia-se. Todos observavam-no muito, e sua presença causava constrangimento.

Junto do demente estava sentado seu filho, Luís I de Bourbon, que era coxo, o que sempre o incomodara para o ataque em combate, mas não para fugir, tal como provara na batalha de Courtrai. Desengonçado, defeituoso e covarde, Bourbon, em compensação, tinha pelo menos um cérebro claro, e acabava de prová-lo tomando o partido de Filipe de Poitiers.

Desta origem admirável, tomada tanto da cabeça quanto das pernas, devia provir a longa linhagem dos Bourbons.

Assim, naquela assembléia do dia 16 de julho de 1316, encontravam-se reunidos os três ramos capetos, que iriam reinar durante cinco séculos ainda sobre a França. As três dinastias podiam contemplar-se, em seu fim ou em sua origem: a dos Capetos diretos, que se extinguiria bem depressa, com Filipe de Poitiers e Carlos de La Marche. A dos Valois, que, com o filho de Carlos, se prolongaria durante treze reinados; enfim, a dos Bourbons, que não apareceria no trono senão com a extinção dos Valois, quando se tornaria necessário remontar mais uma vez à descendência de São Luís para designar um rei. Cada ruptura de dinastia seria acompanhada de guerras esgotantes, devastadoras.

Pela combinação sempre surpreendente entre os atos dos homens e o imprevisto do destino, a história da monarquia francesa, com suas grandezas e seus dramas, devia decorrer do regulamento de sucessão que messire Mille, jurisconsulto, acabava de ler naquele instante.

Alinhados em bancos ou encostados às paredes, os barSes, os prelados, os advogados do Parlamento e os delegados dos burgueses de Paris tinham escutado atentamente.

“Tenho um filho! Tenho um filho, e eles só o saberão amanhã”, dizia consigo o Conde de Poitiers, que acreditava não ter trabalhado senão para si mesmo e para aquele filho. E preparou-se para sustentar o ataque inevitável do Duque de Borgonha. Ora, o assalto veio de outro lado.

Havia um homem, naquela assembléia, cuja resistência nada poderia vencer, que não se recordava do dinheiro com que o tinham comprado, que a nobreza do sangue não impressionava, porquanto também pertencia à melhor, que não se inclinava diante da força, porque podia, com seus braços, derrubar um cavalo, sobre o qual combinação alguma surtia efeito senão as que ele mesmo arquitetava, e que o próprio espetáculo da demência deixava indiferente. Esse personagem era Roberto d’Artois. Foi ele, assim que Mille de Noyers terminou a leitura, que se levantou para iniciar o combate, sem haver combinado com ninguém.

Como cada qual, naquele dia, exibia sua família, Roberto d’Artois tinha levado sua mãe, Branca da Bretanha, uma mulher pequenina, de rosto fino, cabelos brancos, membros franzinos, que parecia sentir-se constantemente estupefata por ter dado à luz uma tal maravilha de gigante.

Firme sobre suas botas vermelhas, os polegares passados , sob seu cinturão de prata, Roberto d’Artois lançou:

— Eu me sinto admirado, Monsenhores, ao ver que nos oferecem um novo regulamento de regência, fabricado em todos os pontos propositadamente, quando existia um, ditado pelo nosso último rei.

Os olhares voltaram-se para o Conde de Poitiers e alguns entre os presentes perguntaram a si próprios, com inquietação, se não haveria algum testamento de Luís X, que tivesse sido escamoteado.

— Não vejo, meu primo — disse Filipe de Poitiers — de que regulamento quereis falar. Estáveis presente nos derradeiros momentos de meu irmão, com muitos outros senhores que aqui estão, e ninguém jamais me fêz saber que ele tenha manifestado qualquer vontade a esse respeito.

— Mas o caso, meu primo — disse Roberto, com ar malicioso — quando eu falo em “nosso último rei”, não estou me referindo a vosso irmão Luís X, que Deus guarde!... mas de vosso pai, nosso bem-amado sire Filipe... que Deus também o guarde! Ora, o Rei Filipe tinha resolvido, escrito e feito jurar solenemente seus pares que, se ele viesse a morrer antes que seu filho fosse homem bastante para exercer o governo, as tarefas reais e o cargo da regência seriam entregues a Monsenhor Carlos, seu irmão, Conde de Valois. Portanto, meu primo, já que nenhum outro regulamento foi feito depois desse, é bem esse, parece-me, o que se deve aplicar.

A pequena Branca da Bretanha aprovava com a cabeça, sorria com uma boca sem dentes e passeava os olhos vivos e brilhantes, convidando seus vizinhos, com esse olhar, a aprovarem a intervenção de seu filho. Não havia palavra pronunciada por aquele vociferador, processo mantido por aquele chicaneiro, violência, madraçaria ou estupro cometido por aquele biltre, que ela não aprovasse e admirasse, como a revelação de um prodígio vivo. A velha senhora recebeu, num bater de pálpebras, o agradecimento silencioso do Conde de Valois.

Filipe de Poitiers, um tanto inclinado sobre o braço de sua poltrona, agitou lentamente a mão.

— Admiro-me, Roberto — disse ele — admiro-me ao ver-vos hoje tão solícito na atenção à vontade de meu pai, quando obedecestes tão pouco à sua justiça, quando ele era vivo.

Com a idade estão surgindo em vós os bons sentimentos, meu primo! Podeis ficar tranqüilo. É precisamente a vontade de meu pai que nos esforçamos para respeitar. Não é verdade, meu tio? — acrescentou ele, voltando-se para Luís d’Evreux.

Luís d’Evreux, que estava exasperado, havia seis semanas, com as manobras de seu meio irmão Valois e de seu cunhado d’Artois, não se privou do prazer de colocá-lo em seu lugar.

— O regulamento sobre o qual vos estribais, Roberto, vale como princípio, mas não indefinidamente, para a pessoa. Por que, se dentro de cinqüenta ou de cem anos, semelhante acidente acontecer novamente à coroa, não será meu irmão Carlos quem irá procurar reger o reino... por muito que eu lhe deseje longa vida. Mas enfim — exclamou com uma força de voz rara naquele homem calmo — nosso senhor Deus não fêz Carlos eterno expressamente para que ele se atire ao trono de cada vez que o lugar esteja vago. Se é ao irmão de mais idade que deve pertencer a regência, então é Filipe o designado, e eis por que, no outro dia, nós lhe prestamos homenagem. Não torneis, pois, a trazer à discussão o que já está resolvido.

Pensou-se que Roberto estava dominado. Era conhecê-lo mal. Avançou dois passos, baixou levemente a cabeça, oferecendo a larga nuca aos raios de sol que atravessavam os vitrais. Sua sombra estendia-se sobre as lajes, como uma ameaça, até os pés do Conde de Poitiers.

— As vontades do Rei Filipe — retrucou — nada continham em relação às filhas reais, nem que tivessem de renunciar a seus direitos, nem que a assembléia dos pares devia decidir se podiam reinar.

Um movimento de aprovação fêz-se sentir imediatamente do lado dos senhores de Borgonha, e o próprio Duque Eudes exclamou :

— Falaste bem, meu primo. Era exatamente isso que eu próprio ia reclamar!

Branca da Bretanha tornou a lançar em tôrno de si pequenas olhadelas faiscantes. O condestável começava a agitar-se em sua cadeira. Ouviram-no resmungar, e os que o conheciam já previam o estouro.

— Desde quando — disse o Duque de Borgonha, levantando-se — essa novidade foi introduzida nos nossos costumes? Desde ontem, penso eu! Desde quando as filhas, se viessem a faltar filhos, deveriam ser privadas das possessões e coroas de seu pai?

O condestável levantou-se, por sua vez.

— Desde o tempo, Messire duque — disse ele, com lentidão premeditada — que certa filha não dá mais ao reino a garantia de ser realmente nascida daquele pai, do qual desejam fazê-la herdar. Sabei, enfim, o que por aí se diz, e que meu primo Valois muitas vezes nos repetiu em conselho restrito. A França é um país muito belo e muito grande, Messire duque, para que se possa, sem que os pares hajam deliberado, entregar a coroa a uma princesa que não se sabe se é filha de rei ou de escudeiro.

Silêncio terrífico tombou sobre a assembléia. Eudes de Borgonha ficara lívido. Seu conselheiro, Guilherme de Mello, que a duquesa Agnes a ele associara, soprava-lhe ao ouvido palavras que o duque não ouvia. Pensaram que ele se fosse lançar sobre Gaucher de Châtillon, e este o esperava, suas forças reunidas, o busto para a frente, os punhos fechados. Embora o condestável tivesse trinta anos mais do que seu adversário e fosse meia cabeça mais baixo, não parecia temer o choque, e podia ser considerado vencedor. Foi contra Carlos de Valois que a cólera do Duque de Borgonha se descarregou em palavras.

— Assim, sois vós, Carlos — exclamou — vós, que procurastes minha outra irmã para esposa de vosso filho primogênito, que aqui vejo, sois vós que vos tendes entregue dessa forma ao trabalho de infamar uma morta?

— Ah! Meu caro! — disse Valois — no que se refere a infamar, a Rainha Margarida, que Deus lhe perdoe os pecados, não teve necessidade de meu auxílio!

E para Gaucher de Châtillon, a meia voz, acrescentou:

— Que necessidade tínheis de me meter no assunto? — E vós, meu cunhado — continuou Eudes, voltando-se dessa vez para Filipe de Valois — aprovais as vilanias que ouço?

Mas Filipe de Valois, que estava a alguns passos dali, embaraçado na própria altura e procurando em vão com os olhos o conselho de seu pai, apenas ergueu os braços num gesto de impotência, contentando-se em dizer:

— É preciso confessar, meu irmão, que o escândalo foi grande!

A assembléia começava a sussurrar. Do fundo da sala vinham ruídos de discussões, certos senhores sustentando a bastardia de Joana, e outros defendendo-lhe a legitimidade. Carlos de La Marche, constrangido, pálido, abaixava a cabeça, evitando os olhares, como de cada vez que se falava naquele miserável caso. “Margarida está morta e Luís morreu também”, dizia ele consigo, “mas minha mulher Branca ainda está viva e eu continuo a trazer na testa a minha desonra.”

Nesse momento, o Conde de Clermont, a quem ninguém mais prestava atenção, começou a dar sinais de agitação.

— Eu vos desafio, Messires, eu vos desafio a todos! — gritou o último filho de São Luís, levantando-se.

— Mais tarde, meu pai, mais tarde, iremos ao torneio — disse-lhe Luís de Bourbon, que fêz sinal, ao mesmo tempo, aos dois escudeiros gigantescos para que se aproximassem e preparassem os braços.

Roberto d’Artois contemplava, encantado consigo próprio, o tumulto que provocara.

O Duque de Borgonha, apesar dos esforços que Guilherme de Mello fazia para orientar sua cólera, gritou ainda a Carlos de Valois:

— Também eu desejo, Carlos, que Deus perdoe à minha irmã Margarida seus pecados, se ela os cometeu, mas desejo menos que perdoe a seus assassinos!

— Isso são mentiras que ouvistes, Eudes — replicou Valois — e sabeis muito bem que vossa irmã morreu de remorsos na prisão.

E lançou uma olhadela a Roberto d’Artois, para se certificar se havia feito algum movimento.

Agora que o Conde de Valois e o Duque de Borgonha estavam profundamente desavindos, sem possibilidade alguma de acertarem as causas tão cedo, Filipe de Poiters estendeu a mão, num gesto de apaziguamento.

Mas Eudes não queria saber de paz. Não estava ali para manter tal coisa, bem pelo contrário.

— Já ouvi demais insultar a Borgonha hoje, meu primo — disse ele. — Faço-vos saber que não vos reconheço como regente, e mantenho diante de todos os direitos de minha sobrinha Joana.

Depois, fazendo sinal aos senhores borguinhões para que o seguissem, deixou a sala.

— Monsenhores, messires — disse o Conde de Poitiers — foi exatamente isto que nossos jurisconsultos esforçaram-se por evitar, deixando ao conselho dos pares, para mais tarde, se houver oportunidade, o cuidado de resolver a questão das filhas. Porque se a Rainha Clemência der um varão ao reino, tôda esta querela fica sem objeto.

Roberto d’Artois estava ainda diante do estrado, as mãos nas ancas.

— Pelo que entendi, então, meu primo — exclamou — daqui por diante, como costume de França, o direito de sucessão das mulheres é contestado. Peço, pois, que me seja devolvido meu condado de Artois, que foi indevidamente entregue a minha tia Mafalda, conhecida por ter corpo de mulher, coisa que, penso eu, alguns senhores podem testemunhar. E enquanto não me tiverdes feito justiça, não aparecerei no vosso conselho.

Com isso, dirigiu-se para a porta lateral, seguido por sua mãe que corria em passinhos miúdos, orgulhosa dele e orgulhosa também de si própria.

A Condêssa Mafalda agitou sua mão para Poitiers, com um gesto que significava: “Aí está! Eu bem tinha dito!”

Antes de transpor a porta, Roberto, passando por trás do Conde Clermont, murmurou-lhe perversamente no ouvido:

— Às lanças, primo, às lanças!

— Cortai as cordas! Clamai pela batalha! (17) — gritou Clermont, levantando-se.

— Porco malfazejo, que o diabo te destripe! — lançou Luís de Bourbon a Roberto.

Depois, disse a seu pai:

— Ficai mais tempo conosco. As trombetas ainda não soaram.

— Ah! Ainda não soaram? Pois que soem! Está ficando tarde — disse Clermont.

Esperava, os olhos vagos, os braços afastados do corpo.

Luís de Bourbon, claudicando, dirigiu-se para o Conde de Poitiers e confiou-lhe em voz baixa que era preciso apressar-se. Filipe aprovou com a cabeça.

Bourbon voltou para junto do doente, tomou-lhe a mão e disse-lhe :

— A homenagem, meu pai, agora é a homenagem.

— Ah! Sem dúvida! A homenagem.

O coxo conduzindo o demente, atravessaram o estrado.

— Monsenhores — disse Luís de Bourbon — eis meu pai, o mais antigo do sangue de São Luís, que aprova o regulamento em todos os seus pontos, reconhece messire Filipe como regente, e jura-lhe fidelidade.

— Sim, Messires, sim — disse Roberto de Clermont.

E Filipe tremeu, pensando no que ele poderia pronunciar. “Vai chamar-me Madame e pedir-lhe minha écharpe.”

Mas Clermont continuou, com voz forte:

— Eu vos reconheço, Filipe, porque sois o melhor designado de direito, e porque sois o mais sensato. Que do céu a alma santa de meu pai vele por vós e vos auxilie a manter a paz do reino e a defender nossa santa fé.

Um movimento de estupefação feliz percorreu a assembléia. Que se passava, pois, na cabeça daquele homem, para que oscilasse assim, sem transição, do delírio à razão, do ridículo à grandeza?

Pôs muita lentidão, muita nobreza, no ajoelhar-se diante de seu sobrinho-neto, estendendo as mãos. Quando se levantou e voltou-se, tendo recebido o abraço, seus grandes olhos azuis estavam nadando em lágrimas.

A assembléia inteira se pôs de pé e fêz uma longa ovação aos dois príncipes.

Filipe estava reconhecido como regente por todo o reino, com exceção de uma província, a Borgonha, e de um homem só, Roberto d’Artois.

 

                             OS NOIVOS BRINCAM DE PEGADOR

AS GRANDES assembléias dos barões apresentavam, num ponto pelo menos, uma semelhança com as modernas conferências internacionais. O participante que deixava a sala das reuniões com grande estardalhaço, para protestar contra uma decisão, nem por isso, desde que insistissem um tantinho com ele, deixava de aceitar o convite para sentar-se, em seguida, à mesa com seus adversários. Foi o que fêz o Duque de Borgonha, a quem Filipe enviou um mensageiro para expressar-lhe seu aborrecimento pelos incidentes daquela manhã, e assegurar-lhe sua afeição, lembrando-lhe que contava muito com a sua companhia.

O jantar fora organizado no castelo de Vincennes, cujo estado o regente quisera verificar, antes de entregá-lo a Clemência, e para onde tinha mandado transportar o mobiliário necessário ao banquete. Tôda a côrte para lá se transferiu e sentou-se diante das mesas armadas sobre cavaletes e cobertas com grandes toalhas brancas, entre as vésperas altas e baixas, isto é, cerca de cinco horas da tarde.

A presença do Duque de Borgonha tornou ainda mais notória a ausência de Roberto d’Artois.

— Meu filho desmaiou ao sair do palácio, de tal modo se atormentou com o que ali ouviu — disse Branca da Bretanha.

— Roberto desmaiou? Realmente! — disse Filipe de Poitiers. — Espero que não se tenha ferido, tombando de tamanha altura! Tranqüilizo-me, porém, pois não vos vejo muito inquieta.

Em compensação, ninguém demonstrou espanto pela ausência do Conde de Clermont, que seu filho reconduzira apressadamente para casa, mal as homenagens terminaram. Ao contrário, felicitaram muito o Duque de Bourbon pela bela impressão que seu pai causara, deplorando que a sua doença — nobre doença, aliás, pois vinha de um acidente de armas — não lhe permitisse participação mais freqüente nos negócios do reino.

A refeição começou, portanto, dentro de relativo bom humor. O condestável tinha sido colocado bastante longe do Duque de Borgonha, e ambos evitavam trocar olhares. Valois perorava por conta própria.

O mais espantoso, naquele jantar, era a quantidade de crianças que a ele assistia. Porque Eudes de Borgonha tinha imposto, como condição para sua vinda, que sua sobrinha Joana de Navarra estivesse presente, reparação do ultraje que lhe fora feito na assembléia, e o Conde de Poitiers fizera questão de trazer suas três filhas, o que levou o Conde de Valois a se fazer acompanhar dos últimos rebentos, provenientes de seu terceiro casamento, e o Conde d’Evreux a fazer o mesmo em relação a seu filho e sua filha, que ainda estavam na idade em que se brinca com fantoches. O delfim de Viennois trouxera o pequeno Guigues, noivo da terceira filha do regente, e o Duque de Bourbon viera com seus três filhos... Fazia-se enorme confusão com os nomes de batismo. As Brancas e as Isabéis, os Carlos e os Filipes pululavam. Quando algum gritava: “Joana!” seis cabeças voltavam-se ao mesmo tempo.

Todos aqueles primos estavam destinados a casarem-se entre si, para servir às combinações políticas de seus pais, que tinham sido, por sua vez, casados da mesma forma, na mais estreita consangüinidade. Quantas dispensas teriam de pedir ao papa, para conseguir que os interesses territoriais passassem à frente das leis da religião e das mais elementares precauções de saúde! Quantos outros coxos, quantos outros dementes em perspectiva! A única diferença entre a descendência de Adão e a do Capeto era que na segunda ainda evitavam a união de irmão e irmã.

O delfinzinho e sua noiva, a pequena Isabel de Poitiers, que muito em breve seria chamada apenas Isabel de França, davam um espetáculo do mais comovente entendimento. Comiam no mesmo prato, e o delfinzinho escolhia para sua futura esposa os melhores pedaços do ensopado de enguia, remexendo atentamente no molho, e metendo-lhos na boca à força, lambuzando-lhe todo o rosto. Os outros pequenos invejavam-nos muito, por já terem uma situação de casal. Na casa do regente iam preparar para eles seu pequeno palácio pessoal, com seu criado a cavalo, com seu criado a pé, e suas aias.

Joana de Navarra nada comia. Sabia-se que sua presença no banquete fora imposta, e como as crianças adivinham rapidamente os sentimentos de seus pais e exageram as suas demonstrações, todos os primos daquela infeliz órfã afastavam-se dela. Joana era a menor, pois tinha apenas cinco anos. Apesar de ser loura, começava a mostrar numerosos traços de semelhança com sua mãe, Margarida de Borgonha, na testa convexa, nas maçãs proeminentes. Criança solitária, que não sabia brincar, vivendo entre domésticos nos aposentos sinistros do palácio de Nesle, jamais tinha visto tanta gente reunida, nem ouvido tantos gritos. Olhava com mescla de admiração e receio aquela orgia de vitualhas que iam sendo constantemente colocadas sobre as enormes mesas, rodeadas por grandes comedores. Sentia perfeitamente que não gostavam dela. Quando fazia uma pergunta, ninguém respondia e, embora tão nova, sua capacidade de julgar era bastante desenvolvida, e o espírito suficientemente sutil, para que ela não cessasse de repetir consigo mesma: “Meu pai era rei, minha mãe era rainha: morreram, e ninguém mais fala comigo”. Jamais chegaria a esquecer aquele jantar de Vincennes. À medida que o tom das vozes subia, que os risos cruzavam-se, a tristeza da pequena Joana, seu desamparo naquele banquete de gigantes, tornavam-se mais pesados. Luís d’Evreux, que, de longe, viu-a prestes a chorar, gritou a seu filho:

— Filipe! Cuida um pouco de tua prima Joana (18).

O pequeno Filipe quis, então, imitar o delfinzinho, e meteu na boca da menina um pedaço de esturjão com molho de laranja, de que não gostou e que cuspiu na toalha.

Quando os escanções serviam cerimoniosamente os vinhos a todos os convivas, ficou logo evidente que toda aquela gente miúda vestida de brocado iria ficar doente, e, antes do sexto serviço, mandaram o grupo infantil brincar nos pátios. Aconteceu àqueles filhos de reis o que acontece a todas as crianças do mundo, por ocasião das refeições festivas: ficaram privados dos pratos de sua preferência, dos doces, das pastelarias, e outras sobremesas.

Mal terminou o banquete, Filipe de Poitiers tomou o Duque de Borgonha pelo braço e disse-lhe que desejava conversar em particular com ele.

— Vamos comer nossos confeitos um pouco afastados, meu primo. Vinde conosco, meu tio — acrescentou, voltando-se para Luís d’Evreux — e vós também, messire de Mello.

Levou os três homens para uma saleta vizinha, e enquanto serviam o vinho doce, com amêndoas e confeitos, começou a explicar ao Duque de Borgonha o quanto desejava chegar a um acordo, e quais eram as vantagens do regulamento de regência.

— Foi por saber que os ânimos estão muito exaltados presentemente — disse — que eu quis adiar as decisões finais até a maioridade de Joana. Daqui até lá serão passados dez anos, e sabeis tanto quanto eu que em dez anos as opiniões mudam bastante, mesmo quando não seja apenas pela morte daqueles que professavam as mais violentas entre elas. Supus, pois, prestar-vos serviço, ao agir dessa maneira, e penso que compreendestes mal minhas intenções. Já que Valois e vós não podeis, no momento, conciliar-vos, entrai cada qual num acordo comigo.

O Duque de Borgonha conservava-se carrancudo. Não era homem inteligente e temia sempre estar sendo enganado, o que, aliás, acontecia-lhe freqüentemente. A Duquesa Agnes, que não se deixava cegar pelo amor maternal, julgava com clareza o filho, e fizera-lhe, antes que ele partisse para o banquete, sólidas recomendações:

— Cuidado para que não te enganem. Não fales antes de teres pensado, e se nada pensares, cala-te e deixa falar messire de Mello, que tem o espírito mais fino que o teu.

Eudes de Borgonha, com trinta e cinco anos, investido do título e das funções de duque, vivia ainda no terror de sua mãe, e pensava no momento em que teria de justificar-se diante dela. Não ousou responder abertamente aos avanços de Poitiers.

— Minha mãe, a duquesa, mandou-vos uma carta, meu primo, na qual vos dizia... que dizia aquela carta, messire de Mello?

— Madame Agnes pedia que lhe fosse dada a guarda de Madame Joana de Navarra, e admira-se, Monsenhor, por não ter ainda recebido a vossa resposta.

— Como podia eu responder, meu primo? — respondeu Filipe, dirigindo-se sempre a Eudes, como se Mello desempenhasse apenas entre eles o papel de um intérprete de língua estrangeira. — Tratava-se de uma decisão que somente poderia ser tomada pelo regente. Só hoje estou em condições de atender com justiça esse pedido. Quem vos diz, meu primo, que pretendo recusar? Penso que levareis vossa sobrinha convosco, quando voltardes, não é verdade?

O duque, muito surpreendido por ter encontrado tão pouca resistência, olhou para Mello, e seu rosto parecia dizer: “Mas aqui está um homem com o qual podemos nos entender!”

— Com a condição, meu primo — continuou o Conde de Poitiers — com a condição, naturalmente, de que vossa sobrinha não se case sem meu consentimento. Isso é coisa evidente: o assunto interessa demasiadamente à coroa, e não poderíeis dispensar nossa opinião para dar esposo a uma jovem que pode vir a tornar-se, um dia, a rainha da França.

A segunda parte da frase ajudou a primeira a passar. Eudes acreditou, realmente, que a intenção de Filipe era coroar Joana, se a Rainha Clemência não tivesse filho varão.

— Sem dúvida, sem dúvida, meu primo — disse ele. — Quanto a esse ponto, estamos bem dispostos a concordar.

— Então, nada mais nos separa e vamos assinar um belo acordo — disse Filipe.

Sem esperar mais nada, mandou chamar Mille de Noyers, perito em redigir aquele tipo de tratado.

— Messire Mille — disse ele, quando o jurisconsulto entrou — escrevei sobre o velino, o seguinte: “Nós, Filipe, par e Conde de Poitiers, regente dos dois reinos pela graça de Deus, e nosso bem-amado primo, magnífico e poderoso senhor Eudes IV, par e Duque de Borgonha, juramos pelas Sagradas Escrituras prestar-nos bons serviços e manter leal amizade... ” Essa é a idéia, messire Mille, em linhas gerais, que eu estou dando...

“E por essa amizade que nos juramos, decidimos, em comum, que Madame Joana de Navarra...”

Guilherme puxou o duque pela manga e disse-lhe uma palavra ao ouvido, pela qual o duque compreendeu que se estava deixando ludibriar.

— Eh! Mas, meu primo, minha mãe não me tinha autorizado a reconhecer-vos como regente!

Logo chegaram a um impasse. Filipe só consentia em confiar à duquesa a guarda da menina se o duque reconhecesse seus podêres. Chegava mesmo a garantir para Joana seus direitos de posse sobre Navarra, Champanha e Brie. Mas o outro obstinava-se. Sem um compromisso formal em relação à coroa, recusava qualquer acordo com a regência.

“Se não houvesse o Mello, que é astuto”, dizia consigo o Conde de Poitiers, “Eudes já teria capitulado.” Fingiu-se cansado, esticou as compridas pernas, cruzou os pés um sobre o outro, esfregou o queixo.

Luís d’Evreux observava-o, perguntando a si próprio como iria seu sobrinho arranjar-se naquele caso. “Vejo para muito breve lanças se agitando do lado de Dijon”, pensava esse homem sensato. Estava a ponto de intervir, para dizer: “Vamos, cedamos quanto aos direitos sobre a coroa”, quando Filipe perguntou de súbito ao borguinhão:

— Vejamos, meu primo, não desejais casar-vos?

O outro arregalou os olhos, pensando, de início, pois não era muito perspicaz, que Filipe estava pretendendo dar-lhe Joana de Navarra como noiva.

— Já que acabamos de jurar amizade eterna — continuou Filipe, como se tivesse tomado como realizado o que constava daquelas linhas inacabadas — e com isso, meu caro primo, destes-me um grande apoio, eu gostaria, por minha vez, de retribuir-vos o belo gesto, e teria prazer em duplicar nosso laço afetivo através de parentesco mais chegado. Por que não vos casais com minha filha primogênita, Joana?

Eudes IV olhou para Mello, depois para Luís d’Evreux, depois para Mille de Noyers, que esperava, cálamo em riste.

— Mas, meu primo, que idade tem ela? — perguntou o duque.

— Tem oito anos, meu primo — respondeu Filipe, que, depois de uma pausa, acrescentou: — Ela poderá ter, também, o condado de Borgonha, que nos vem de sua mãe.

Eudes levantou a cabeça, como um cavalo que sentisse o cheiro da aveia. A reunião das duas Borgonhas, o ducado e o condado, constituía o sonho dos duques hereditários, desde o tempo de Roberto I, neto de Hugo Capeto. Reunir a corte de Dôle à de Dijon, unir os territórios que iam de Auxerre a Pontarlier, e de Mâcon a Besançon, ficar com uma das mãos na França e a outra em direção do Santo Império, pois que o condado era palatino, era transformar a miragem em realidade. E não seria preciso mais para que os borguinhões se pusessem a sonhar em reconstituir, em seu benefício, o império de Carlos Magno.

Luís d’Evreux não pôde evitar a admiração que sentiu pela audácia de seu sobrinho. Num jogo que parecia perdido, era enorme o novo lance que fazia naquele momento. Visto mais de perto, porém, o raciocínio de Filipe podia ser compreendido sem dificuldade: o que estava propondo, afinal, eram apenas as terras de Mafalda. Tinham dado Artois a esta última, a expensas de Roberto, para que ela largasse o condado. Este, por sua vez, escorregara para as mãos de Filipe, como dote de sua esposa, a fim de que ele pudesse postular na eleição imperial. Agora, Filipe cobiçava a coroa da França ou, pelo menos, a regência durante dez anos. Tinha, portanto, menos razões para se interessar pelo condado, com a condição de que passasse às mãos de um vassalo, e esse era o caso.

— Poderei ver a senhora vossa filha? — perguntou Eudes, sem hesitar, sem mesmo pensar em reportar-se à sua mãe.

— Pudestes vê-la ainda há pouco, meu primo, no banquete.

— Sem dúvida, mas não olhei bem para ela... quero dizer, não a vi sob esse ponto de vista.

Mandaram buscar a filha mais velha do Conde de Poitiers, que estava brincando de pegador com suas irmãs e as outras crianças da família (19).

— Que querem comigo? Deixem-me brincar! — disse a menina, que perseguia o delfinzinho para o lado das cavalariças...

— Monsenhor vosso pai chama-vos — disseram-lhe.

Ela ainda tomou o tempo necessário para agarrar o pequeno Guigues, gritando-lhe: “Peguei!” E seguiu, mal-humorada, descontente, o camareiro, que a levou pela mão.

Ainda toda ofegante, as faces úmidas, os cabelos tombando sobre o rosto, e com seu vestido recamado todo coberto de poeira, assim apresentou-se a seu primo Eudes, que era vinte e sete anos mais velho. Uma meninazinha, nem feia nem bonita, ainda magricela, e que de forma alguma suspeitava que seu destino se confundia, naquele instante, com o destino da França... Há crianças que mostram muito cedo o ar que irão ter quando adultos. Naquela nada se via. Via-se apenas, em auréola, o condado de Borgonha.

Uma província é coisa bela, mas ainda assim é preciso que a mulher não seja disforme. “Se não tiver pernas tortas, aceito”, dizia consigo o duque borguinhão. Tinha razão para desconfiar daquele tipo de surpresa, pois sua segunda irmã, mais moça do que Margarida, dada a Filipe de Valois, não tinha os calcanhares da mesma altura (20). À presente animosidade dos Valois para com a Borgonha, aquela claudicação não era de todo estranha! O duque pediu, pois, sem que isso parecesse surpreender ninguém, que levantassem o vestido da menina para que ele pudesse ver-lhe os pés. A menina não tinha coxas nem panturrilhas gordas, pois saíra ao pai. Mas os ossos eram bem retos.

— Tendes razão, meu primo — disse o duque. — Será uma boa forma de selarmos nossa amizade.

— Estais vendo? — falou Poitiers. — Não é melhor assim do que ficarmos armando querelas? De agora em diante hei de chamar-vos meu genro.

E abriu-lhe os braços. O genro era doze anos mais velho do que o sogro.

— Vamos, minha filha, ide, por vossa vez, beijar vosso noivo — disse Filipe à menina.

— Ah! Êle é meu noivo? — perguntou a pequena.

Endireitou-se, orgulhosa, mas acrescentou:

— Oh! Mas ele é maior do que o delfinzinho!

“Como agi bem no mês passado”, dizia consigo Filipe, “dando ao delfim apenas minha terceira filha, e guardando esta, que podia dispor do condado!”

O Duque de Borgonha teve que erguer sua futura esposa até seu rosto, para que ela pudesse depositar ali um grande beijo molhado! Depois, uma vez colocada novamente no chão, a menina partiu para o pátio, anunciando altivamente às outras crianças:

— Estou noiva!

Os brinquedos foram interrompidos.

— E não é um noivo como o teu — disse à irmã, designando o delfinzinho. — O meu é grande como vosso pai.

Depois, vendo a pequena Joana de Navarra, que se mostrava amuada, um pouco de lado, lançou-lhe:

— Agora, vou ser sua tia.

— Por que minha tia? — perguntou a órfã.

— Porque serei a esposa de teu tio Eudes.

Uma das últimas filhas do Conde de Valois, que tinha sete anos apenas, mas que já estava habituada a tudo repetir, precipitou-se para o castelo, encontrou seu pai que conspirava em companhia de Branca da Bretanha e de alguns senhores de seu partido, e contou-lhe o que acabava de ouvir. Carlos levantou-se, empurrando a cadeira para trás, e atirou-se, como um touro, para o aposento onde estava o regente.

— Ah! meu caro tio, sois bem-vindo — exclamou Filipe de Poitiers. — Eu ia justamente mandar chamar-vos para que fósseis testemunha de nosso acordo.

E estendeu-lhe o documento cuja redação Mille de Noyers terminara assim:

“... para assinar aqui, com todos os nossos parentes, as convenções que acabamos de fazer com nosso bom primo de Borgonha, e pelas quais estamos integralmente de acordo.”

Semana amarga para o ex-imperador de Constantinopla, que não teve outro remédio senão ceder. Depois dele, Luís d’Evreux, Mafalda d’Artois, o delfim de Viennois, Aimé de Sabóia, Carlos da La Marche, Luís de Bourbon, Branca de Bretanha, Guy de Saint-Pol, Henrique de Sully, Guilherme d’Harcourt, Anseau de Joinville e o condestável Gaucher de Châtillon, apuseram seus sinêtes ao pé das convenções.

O tardio crepúsculo de julho tombava sobre Vincennes. A terra e as árvores estavam ainda impregnadas do calor do dia. A maior parte dos convivas tinha partido.

O regente foi andar um pouco sob os carvalhos, em companhia de seus familiares mais devotados, os que o seguiam desde Lião e lhe haviam assegurado a vitória. Gracejavam um tanto a propósito da árvore de São Luís, que não se conseguia encontrar. Subitamente, o regente disse:

— Monsenhores, doce alegria está em meu coração: minha amada esposa deu hoje à luz um filho.

Respirou profundamente, com felicidade, com delícia, como se o ar do reino da França realmente lhe pertencesse.

Sentou-se sobre o musgo, as costas apoiadas a um tronco, e contemplava o recorte da folhagem contra o tom rosado do céu, quando o condestável Gaucher de Châtillon chegou a grandes passadas. Trazia, novamente, o rosto sombrio.

Trago-vos, Monsenhor, má notícia — disse ele.

— Já? — falou o regente.

O Conde Roberto pôs-se a caminho de Artois, ainda há pouco.

               O Artois e o Conclave

 

                              A CHEGADA DO CONDE ROBERTO

UMA DÚZIA de cavaleiros, vindos de Doullens e conduzidos por um gigante vestido com cota de armas vermelho-sangue, atravessou a galope a aldeia de Bouquemaison e parou no ponto mais alto da estrada. De lá, a vista alcançava um vasto planalto de campos de trigo, cortado de valetas e bosques de faias, e que descia, em patamares, na direção de um horizonte circular de florestas distantes.

— Aqui começa o Artois, Monsenhor — disse um dos cavaleiros, sire João de Varennes, dirigindo-se ao chefe do grupo.

— Meu condado! Eis, enfim, o meu condado — disse o gigante. — Eis minha boa terra que há catorze anos não piso.

O silêncio do meio-dia estendia-se sobre os campos esmagados pelo sol. Ouvia-se o ofegar dos cavalos, arquejando depois do esforço feito, e o vôo dos zangões, bêbedos de calor.

Roberto d’Artois saltou bruscamente de sua montaria, cujas rédeas atirou a seu criado Lormet, e subiu pelo talude, pisando a relva e entrando no primeiro campo. Seus companheiros ficaram imóveis, respeitando a solidão de sua alegria. Roberto avançava com seu passo colossal através das espigas, já pesadas e côr-de-ouro, que lhe alcançavam a altura das coxas. Com a mão, acariciava-as, como o pêlo de um cavalo dócil ou os cabelos de uma amante loura.

— Minha terra, meu trigo! — repetia.

Viram-no, de repente, abater-se sobre o campo, deitar-se nele, espojar-se e rolar loucamente entre as gramíneas, como se desejasse confundir-se com elas. Mordia as espigas, em grandes dentadas, para encontrar no âmago do grão o sabor leitoso que tem um mês antes da colheita. Nem mesmo sentia que esfolava os lábios, nas barbas do frumento. Embriagava-se de céu azul, de terra seca e do perfume das hastes rangedoras, fazendo, sozinho, devastação comparável à que faria um bando de javalis. Levantou-se, soberbo, e todo amarrotado. Voltou para junto de seus companheiros brandindo um punhado de espigas.

— Lormet — ordenou ao seu criado — desacolcheta minha cota, desata os cordões da minha broigne (21).

Quando isso foi feito, insinuou o punhado de espigas de trigo sob sua camisa, junto à pele.

— Juro por Deus, Monsenhores — disse, com voz estrondosa — que estas espigas não deixarão meu peito enquanto não tiver reconquistado meu condado até o derradeiro campo, até a última árvore. Agora, é a guerra!

Tornou a montar e lançou seu cavalo em galope firme.

— Não achas, Lormet — gritou, ao vento da corrida — que a terra aqui tem melhor som, sob as patas de nossos cavalos?

— Sem dúvida, sem dúvida, Monsenhor — disse aquele assassino de coração terno, que partilhava todas as opiniões de seu senhor e rodeava-o de cuidados de ama. — Mas vossa cota está solta. Diminuí um pouco a marcha, para que eu possa apertá-la.

Cavalgaram um momento assim. Depois, o planalto desceu bruscamente, e ali Roberto descobriu, à sua espera, monstruosa massa de couraças enfileiradas num prado e cintilando ao sol, um exército de mil e oitocentos cavaleiros, que tinham vindo recebê-lo. Jamais esperara que àquele encontro comparecessem tantos partidários seus.

— Oh! Varennes! Fizeste um belo trabalho, meu caro — exclamou Roberto, deslumbrando.

Assim que os cavaleiros de Artois o reconheceram, imenso clamor levantou-se de suas fileiras:

— Bem-vindo seja nosso Conde Roberto! Longa vida ao nosso gentil senhor!

E os mais solícitos atiraram seus cavalos ao encontro dele. As joelheiras de ferro esbarravam umas contra as outras, as lanças oscilavam, como outro campo de espigas.

— Ah! Caumont, Souastre! Reconheço-vos pelos escudos, companheiros — dizia Roberto.

Pela viseira levantada de seus elmos, os cavaleiros mostravam os rostos onde o suor escorria, mas que apareciam expansivos de belicosa alegria. Muitos dos pequenos sires do campo estavam usando velhas armaduras, fora de moda, herdadas de um pai ou de algum tio-avô, e que eles próprios haviam adaptado ao seu tamanho: trabalho feito nos solares. Antes que a noite viesse, estariam feridos nas juntas e teriam o corpo coberto de crostas sangrentas: todos, aliás, traziam na bagagem de seus criados um pote de ungüento preparado por sua mulher, e faixas de pano para as ataduras.

Os olhos de Roberto contemplavam amostras da moda militar do último século, todas as formas de elmos e capacetes. Algumas daquelas lorigas e muitos daqueles montantes tinham estado nas cruzadas. Elegantes da província haviam arranjado penachos de penas de galo, de faisão ou de pavão, e outros traziam sobre a cabeça um dragão dourado. Havia um que atarraxara, mesmo, sobre seu capacete de ferro, uma mulher nua, o que lhe atraía muitos olhares.

Todos tinham pintado recentemente os escudos curtos, onde brilhavam em cores vivas os signos de suas armas, simples ou complicados, segundo o grau de antigüidade de sua nobreza, os mais simples pertencendo, naturalmente, às mais velhas famílias.

— Saint-Venant, Longvillers, Nédonchel — dizia João de Varennes, apresentando os cavaleiros a Roberto.

— Vosso fiel, Monsenhor, vosso fiel — dizia cada um, ao ser pronunciado seu nome.

— Fiel, Nédonchel... fiel, Bailiencourt... fiel, Picquigny... — respondia Roberto, passando diante deles.

A alguns jovenzinhos empertigados e todos orgulhosos por estarem aparelhados para a guerra pela primeira vez, Roberto prometeu armá-los cavaleiros, pessoalmente, se se mostrassem valentes nas próximas lutas.

Depois, resolveu nomear ali mesmo dois marechais, como para as hostes reais se fazia. Escolheu, em primeiro lugar, sire de Hautponlieu, que trabalhara ativamente para reunir aquela nobreza barulhenta.

— E, a seguir, ficarei com... vejamos... tu, Beauval! — anunciou Roberto. — O regente tem um Beaumont como marechal: eu terei um Beauval!

Os pequenos senhores, apreciadores dos trocadilhos e calem-burgos, aclamaram, rindo, João de Beauval, que assim foi designado por causa de seu nome.

— E agora, Monsenhor Roberto — disse João de Varennes — que caminho desejais tomar? Iremos primeiro a Saint-Pol, ou diretamente para Arras? O Artois é inteiramente vosso, e só tendes que escolher.

— Qual é o caminho que leva a Hesdin?

— Este em que estais, Monsenhor, e que passa por Frévent.

— Pois bem, quero ir, em primeiro lugar, ao castelo de meus pais.

Um movimento de inquietação manifestou-se entre os cavaleiros. Era bem desastroso que o Conde d’Artois, já na sua chegada, quisesse ir imediatamente a Hesdin.

— É que, Monsenhor... — disse Souastre, o que tinha no elmo uma mulher nua ‘— ... é que o castelo não está bem em estado de vos receber.

— Por quê? Ainda está ocupado por sire de Brosse, que meu primo, o Turbulento, colocou lá?

— Não, não! Fizemos João de la Brosse fugir, mas também, de passagem, estragamos um tanto o castelo.

— Estragastes? — disse Roberto. — Por acaso o incendiastes?

— Não, Monsenhor, não. As paredes estão bem firmes.

— Mas fizestes ali uma boa pilhagem, não é verdade, meus lindinhos? Pois bem! Se é apenas isso, agistes bem. Tudo quanto pertence a Mafalda, a rameira, Mafalda, a porca, Mafalda, a dissoluta, pertence-vos, Monsenhores, e eu vos entrego em partilha.

Como não amar um suserano assim generoso! Os aliados tornaram a urrar que desejavam longa vida para o seu gentil Conde Roberto, e o exército da revolta pôs-se a caminho de Hesdin.

Chegaram no fim da tarde diante das catorze torres da cidadela dos Condes d’Artois, onde só o castelo ocupava a superfície gigantesca de doze “medidas”, ou seja, perto de cinco hectares.

Quantos impostos, trabalhos e suor custara à gente humilde das redondezas este fabuloso edifício, destinado, segundo lhes tinham dito, a protegê-los das desgraças da guerra! As guerras sucediam-se, mas a proteção mostrava-se pouco eficaz, e, como sempre se batiam pelo castelo, a população preferia enfurnar-se nas casas de taipa, pedindo a Deus que a avalanche passasse de lado.

Não havia muita gente na rua para festejar o senhor Roberto. Os habitantes, já bastante escarmentados com o saque da véspera, escondiam-se. Apenas os mais covardes saíram para vociferar um pouco, mas suas aclamações eram bem magras.

As redondezas do castelo constituíam espetáculo bem pouco agradável: a guarnição real, enforcada nas seteiras, começava a cheirar um tanto à carniça. Na porta grande, chamada Porta dos Frangos, a ponte levadiça estava baixada. O interior exibia aspecto de desolação: nas adegas escorria vinho das cubas rebentadas, e aves domésticas, mortas, espalhavam-se por toda a parte. Dos estábulos ouvia-se subir o mugido sinistro das vacas, que não tinham sido ordenhadas, e sobre os tijolos que pavimentavam os pátios internos, luxo muito raro para a época, lia-se a história do massacre recente, em grandes poças de sangue coagulado.

Os edifícios que serviam de moradia à família d’Artois contavam cinqüenta apartamentos, dos quais nenhum fora poupado pelos ‘bons aliados de Roberto. Tudo quando não tinha sido retirado para ir decorar os solares da vizinhança, fora quebrado ali mesmo.

Desaparecera da capela a grande cruz de prata dourada, o busto de São Luís contendo um fragmento de osso e alguns cabelos do rei. Desaparecera o cálice de ouro, de que Ferry de Picquigny se apropriara, e que seria posteriormente encontrado, vendido por ele, numa loja parisiense. Desaparecidos os volumes da biblioteca e o tabuleiro de xadrez, de jaspe e calce-dônia. Com os vestidos, os penteadores e a roupa branca de Mafalda, os pequenos senhores se haviam munido de belos presentes para suas amantes, e arranjado para si próprios, a bom preço, quentes noites de gratidão. Da própria cozinha tinham sido removidas as reservas de pimenta, gengibre, açafrão, canela (22)...

Pisava-se sobre louça em cacos, sobre brocados rasgados. Só se viam cortinas despencadas nos leitos, móveis fendidos, tapeçarias arrancadas. Os chefes da revolta, um tanto embaraçados, seguiam Roberto em sua visita. Mas o gigante, a cada descoberta, estalava num riso tão amplo, tão sincero, que logo sentiram-se reanimados.

Na sala dos escudos, Mafalda mandara levantar, contra as paredes, estátuas de pedra representando os Condes e Condêssas d’Artois, desde sua origem até ela. Todos os rostos pareciam-se um pouco, mas o conjunto mostrava belo aspecto.

— Aqui, Monsenhor — fêz sentir Picquigny, que tinha a consciência bastante pesada — não quisemos pôr a mão em coisa alguma.

— E fizestes mal, meu caro — respondeu Roberto — porque nessas estátuas há pelo menos uma cabeça que não me agrada. Lormet! Traze-me uma boa maça!

Empunhando a pesada maça, fê-la girar três vezes sobre a cabeça e atingiu, com enorme golpe, o rosto de Mafalda. A estátua vacilou sobre seu soco e a cabeça, separando-se do pescoço, foi rebentar sobre as lajes.

— Que aconteça outro tanto à cabeça viva, depois que todos os aliados de Artois tenham urinado sobre ela — exclamou Roberto.

Para quem gosta de destruir, tudo está no começar. A maça pesava agradavelmente na mão do gigante vestido de escarlate.

— Ah, minha tia, boa rameira, despojaste-me de Artois porque este aqui que me engendrou...

E fêz voar a cabeça de seu pai, o Conde Filipe.

— ... fêz a tolice de morrer antes deste aqui...

E decapitou seu avô, o Conde Roberto II.

— ... e eu vou viver entre essas estátuas que mandastes fazer para honrar a vós mesma, quando não tínheis esse direito!

Abaixo! Abaixo! Meus avós! Recomeçaremos tudo e não será com dinheiro roubado.

As paredes tremiam, os fragmentos de pedra juncavam o chão.

Os barões de Artois calavam-se, o fôlego suspenso diante daquele furor que os ultrapassava de longe na arte da violência. Como, realmente, não obedecer com paixão a tal chefe?

Quando terminou de decapitar sua raça, o Conde Roberto III atirou sua maça contra os vitrais de uma janela, e disse espreguiçando-se :

— Agora, estamos mais à vontade para conversar...

Messires meus companheiros, meus bons fiéis, quero que em todas as cidades, prebostados e castelanias que vamos libertar do jugo de Mafalda e de todos os seus Hirson desgraçados, fiquem inscritos os agravos que cada qual tiver contra ela, e que se registrem suas maldades, a fim de podermos mandar contas exatas a seu genro, Messire Portas-Fechadas... porque aquele homem, onde aparece, fecha tudo, as cidades, o conclave, o Tesouro... a Messire Curto-de-Vista, nosso bom senhor Filipe, o Zarolho (23), que se diz regente, e pelo bem do qual tomaram-nos, há catorze anos, este condado, a fim de que ele pudesse engordar à custa da Borgonha! Que o animal estoure, com as tripas amarradas no pescoço!

O pequeno Geraldo Kiérez, homem hábil em chicana e processos, que defendera diante do rei a causa dos barões contra Mafalda, tomou então a palavra, e disse:

— Há um agravo, Monsenhor, que interessa não somente Artois, mas todo o reino, e talvez ao regente não seja indiferente saber como morreu seu irmão, Luís X.

— Com mil demônios, meu Geraldo, também pensas o que penso? Tens prova de que também nesse caso minha tia entrou com sua astúcia?

— Prova, prova, mesmo, Monsenhor, não se tem propriamente: mas a suspeita é forte, com certeza, e pode ser sustentada pelos testemunhos. Conheço em Arras uma dama que se chama Isabel de Fériennes e seu filho João, ambos vende dores de artigos de bruxaria, que forneceram a uma certa senhorita d’Hirson, a Beatriz...

— Quanto a essa, meus companheiros, eu vos farei um dia presente dela — disse Roberto. — Conheço-a, e a julgar apenas pelo seu olhar, deve ser um regalo para as coxas!

— Os Fériennes forneceram-lhe, pois, para Madame Mafalda, veneno bom para matar cervos, duas semanas antes da morte do rei. O que servia para os cervos poderia servir igualmente para o rei.

Os barões mostram, pelos seus risos gorgolejados, que tinham apreciado aquele jogo de palavras em toda a sua extensão.

— De qualquer forma, tratava-se de veneno para quem usa chifres — insistiu Roberto. — Deus guarde a alma do chifrudo do meu primo!

Os risos subiram de tom.

— E isso parece tanto mais verdadeiro, Messire Roberto, se considerarmos que a dama de Fériennes gabou-se, no ano passado, de ter fabricado o filtro que produziu a reconciliação de messire Filipe, a quem chamais zarolho, e madame Joana, a filha de Mafaida...

— ... dissoluta como a mãe, e que fizestes mal, meus barões, em não terdes sufocado como a uma víbora, quando a tivestes à vossa mercê, aqui mesmo, no outono passado — disse Roberto. — Preciso dessa Fériennes e de seu filho. Tratai de mandá-los apanhar assim que chegarmos a Arras. Agora, vamos comer, porque esta viagem causou-me apetite. Que matem o maior boi dos estábulos e o assem inteiro; que esvaziem o tanque das carpas de Mafalda e que nos tragam o vinho que não acabastes de beber.

Duas horas depois, tendo morrido o dia, toda aquela bela companhia estava embriagada de rolar. Roberto mandou Lormet, que agüentava muito bem a mistura dos vinhos, apoderar-se rapidamente na cidade, com uma boa escolta, de quantas moças fossem necessárias para contentar a disposição licenciosa dos barões. Não se prestava grande atenção ao fato de serem mães de família ou donzelas as mulheres que iam arrancar aos seus leitos. Lormet tangeu para o castelo um rebanho em cami-sola de dormir, balindo de pavor. Nos quartos devastados de Mafalda realizou-se um belo sabá. Os urros das mulheres tornavam ardorosos os cavaleiros, que se atiravam ao assalto como se carregassem contra infiéis, rivalizando em proezas no passatempo, e abatendo-se três sobre a mesma presa. Roberto puxou para si, pelos cabelos, os mais belos pedaços, sem fazer grandes cerimônias para despi-las. Como pesava mais de duzentas libras, suas conquistas perdiam até mesmo o fôlego para gritar. Durante esse tempo, Souastre, que tinha deixado extraviar seu belo elmo, mantinha-se dobrado, os punhos sobre o coração, e vomitava como gárgula durante um temporal.

A seguir, aqueles valentes, um após o outro, começaram a roncar. E um homem, sozinho, teria cortado os gasnetes, sem fadiga, a toda a nobreza de Artois.

No dia seguinte, um exército de pernas bambas, línguas saburrosas e cérebros enevoados pôs-se a caminho para Arras, onde Roberto havia resolvido instalar sua administração. Apenas ele parecia tão viçoso quanto uma sôlha saída do rio, o que conquistou para o gigante, definitivamente, a admiração de suas tropas. O caminho foi entrecortado de paradas, pois Mafalda possuía naquelas paragens alguns outros castelos, cuja vista reacendia a coragem dos barões.

Quando, entretanto, no dia de Santa Madalena, Roberto chegou a Arras, a dama de Fériennes tinha desaparecido.

                               O LOMBARDO DO PAPA

EM LIÃO, os cardeais continuavam encerrados. Tinham acreditado que chegariam a cansar o regente, e entretanto, sua reclusão durava havia um mês. Os setecentos soldados do Conde de Forez continuavam a montar guarda em torno da igreja e do convento dos Frades Pregadores. Se, para respeitar as aparências, o Conde Savelli, marechal do conclave, trazia sempre consigo as chaves, elas não serviam para grande coisa, pois só se aplicavam a portas muradas.

Os cardeais, dia após dia, tinham transgredido as constituições de Gregório, e isso com a consciência tanto mais tranqüila, quanto tinham sido coagidos a se reunir. Não deixavam de dizer tal coisa, dia após dia, ao Conde de Forez, quando este último passava sua cabeça coberta com um capacete pelo estreito orifício que servia para a entrada dos víveres. Ao que, dia após dia, o Conde de Forez replicava que a ele competia fazer respeitar a lei do conclave. Esse diálogo de surdos poderia durar muito tempo.

Os cardeais já não se alojavam todos juntos, como fora prescrito, pois, embora a nave dos Jacobinos fosse grande, a vida de cem pessoas ali, sobre simples montes de palha, bem depressa tornara-se insuportável. A pestilência que se instalara nas primeiras noites, era pouco apropriada para a eleição de um papa. Os prelados tinham ido, pois, para o convento que comunicava com a igreja, e ficava no mesmo recinto. Expulsando os frades, acomodaram-se três em cada cela, o que não era muito mais confortável. Os donzéis tinham ocupado à força um dormitório, e os capelães a hospedaria, que já não recebia viajantes.

O regime alimentar decrescente não continuara a ser aplicado, pois, se o fizessem, haveria ali apenas uma reunião de esqueletos. Os cardeais mandavam, pois, buscar algumas gulodices de fora, que diziam destinadas ao abade. O segredo das deliberações fora teimosamente violado: cartas entravam e saíam do conclave, todos os dias, insinuadas dentro dos pães ou entre os pratos vazios. A hora das refeições tinha-se tornado a hora do correio, e a correspondência que pretendia regulamentar a sorte da cristandade mostrava-se bem manchada de gordura.

De todas essas faltas o Conde de Forez havia prevenido o regente, que respondera no sentido de deixar que as coisas continuassem como estavam. “Quanto mais faltas e inobservâncias cometerem”, declarava Filipe de Poitiers, “em melhores condições estaremos para usar de severidade, quando tomarmos essa decisão. Quanto às cartas, fingi que as deixais seguir, abrindo-as ao passarem, sempre que vos fôr possível, a fim de me informar sobre o conteúdo.”

Assim, contaram-lhe que quatro candidaturas tinham falhado, mal foram propostas: em primeiro lugar a de Arnaldo Nouvel, antigo abade de Frontfroide, a respeito do qual o Conde de Poitiers fêz saber claramente a João de Forez “que não o achava amigo bastante do reino ,da França”, depois as candidaturas de Guilherme de Mandagout, Cardeal de Prenestre, de Arnaldo de Pélagrue e de Bérenger Frédol, o mais velho, Gascões e provençais derrotavam-se mutuamente. Soube-se, também, que o temível Caetani começava a desgostar uma parte dos italianos e mesmo seu primo Stefaneschi, pela baixeza de suas intrigas e pela audácia demente de suas calúnias.

Não tinha ele proposto, como um gracejo — mas sabia-se o que valia o riso em sua boca! — que evocassem o diabo, deixando-lhe o cuidado de designar um papa, já que Deus parecia renunciar a fazer sua escolha?

Ao que Duèze, com sua voz segredada, tinha respondido: — Não seria a primeira vez, Francisco, que Satanás teria assentado entre nós.

Quando Caetani pedia uma vela, diziam que não era para iluminar, mas para proceder, com a cera, a uma bruxaria.

Até o momento de seu internamento, os cardeais tinham feito oposição uns aos outros, por motivos de doutrina, de prestígio ou de interesse. Mas, vivendo um mês juntos no desconforto de um espaço restrito, tinham começado a odiar-se por motivos pessoais, razões quase que físicas. Alguns deles mostravam-se desleixados; não se haviam barbeado nas últimas quatro semanas e entregavam-se a todas as liberdades da natureza. Já não era prometendo dinheiro ou benefícios eclesiásticos que tal candidato procurava arranjar maior número de votos, mas partilhando suas rações com os glutões, ato formalmente proibido. Então, as denúncias corriam de ouvido a ouvido:

— O camerlengo comeu outra vez três pratos de seu partido — murmurava-se.

Se os estômagos, através dessas compensações, quase conseguiam satisfazer-se, o mesmo não acontecia com a castidade a que certos cardeais pouco hábito tinham de submeter-se, e que começava a azedar furiosamente o gênio de alguns deles. Entre os provençais circulava um gracejo:

— Monsenhor d’Auch, sofre pela abstinência de carne, e os monsenhores Colonna sofrem de abstinência e de carne.

Pois os dois irmãos Colonna, figuras atléticas e melhor construídos para a couraça do que para a sotaina, abordavam os donzéis pelos corredores do convento, prometendo-lhes boa absolvição.

Uns atiravam aos outros, sem cessar, os velhos agravos:

— Se não tivésseis canonizado Celestino... se não tivésseis renegado Bonifácio... se não tivésseis consentido em sair de Roma... se não tivésseis condenado os Templarios...

Acusavam-se mutuamente de fraqueza no defender a Igreja, de ambição e venalidade. Ouvindo os cardeais falarem uns com os outros, era de acreditar que nenhum deles merecesse sequer uma paróquia no campo.

Apenas Monsenhor Duèze parecia insensível ao desconforto, às intrigas e às maledicências. Havia dois anos embrulhava tão bem as coisas entre seus colegas que não tinha mais necessidade de se meter em coisa alguma, e podia deixar as perversas máquinas que colocara na cabeça de cada um deles fazerem sozinhas a sua tarefa. Com o pouco apetite que tinha, a fraqueza da ração pouco o incomodava. Escolhera, para partilhar sua cela, os dois cardeais normandos ligados aos provençais, Ni-colau de Fréauville, antigo confessor de Filipe, o Belo, e Miguel du Bec, pois àqueles dois ninguém empurrava para a frente, e eram fracos demais para constituírem um partido. Ninguém os temia, e sua instalação em companhia de Duèze não podia tomar aspecto de conjura. Aliás, Duèze via pouco seus dois companheiros. A uma hora certa ele passeava pelo claustro do convento, geralmente apoiado ao braço de Guccio, que não cessava de lhe recomendar:

— Monsenhor, não caminheis tão depressa! Vede, custa-me seguir-vos, com esta perna rígida que me ficou daquele acidente em Marselha, quando caí da nave da Rainha Clemência... Sabeis muito bem que vossas possibilidades, a acreditar no que ouço, serão tanto mais fortes quanto mais fraco parecerdes.

— É verdade, é verdade, bem pensado — respondia o cardeal, que se esforçava, então, para inclinar o pescoço, dobrar o joelho e disciplinar seus setenta e dois anos.

O resto do tempo lia ou escrevia. Tinha conseguido arranjar o que lhe era mais necessário neste mundo: livros, velas e papel. Quando vinham adverti-lo de que havia uma reunião no coro da igreja, fingia abandonar com desgosto seus trabalhos, arrastava-se até sua estala, e ali, deleitando-se ao ouvir seus colegas injuriarem-se ou cumularem-se de perfídias, contentava-se em murmurar:

— Rezo, meus irmãos, rezo para que Deus nos inspire a escolha mais digna.

Os que o conheciam bem achavam-no bastante modificado. Parecia repleto de virtudes cristãs, muitíssimo dado às mace-rações, oferecendo exemplo de benevolência e caridade. Quando comentavam isso com ele próprio, Duèze respondia, simplesmente, acompanhando seu murmúrio com um gesto de desencanto :

— A aproximação da morte... Ë mais do que tempo para que eu me prepare!

Mal tocava na escudela das refeições e mandava-a levar a qualquer um de seus colegas, desculpando-se da falta contra a regra com a invocação de preocupações de saúde. Assim, Guccio chegava com os braços carregados junto do camerlengo, que prosperava como um boi de engorda, e dizia-lhe:

— Monsenhor Duèze mandou-me trazer-vos isto. Achou-vos mais magro, esta manhã.

Dos noventa e seis prisioneiros, Guccio era um dos que se comunicavam mais facilmente com o exterior: pudera com efeito estabelecer rapidamente ligação com o agente do banco Tolomei em Lião. Através daquele estafêta encaminhavam-se não só as cartas que Guccio enviava a seu tio, como também o correio mais secreto que Duèze destinava ao regente. Àquelas cartas era poupada a humilhação do estágio entre pratos gordurosos: passavam dentro de livros indispensáveis aos piedosos estudos do cardeal.

Duèze, com efeito, não tinha outro confidente senão o jovem lombardo, cuja astúcia o servia cada dia mais. A sorte de ambos estava estreitamente ligada, porque se um queria sair papa daquele convento superaquecido pelo verão, o outro desejava partir o mais depressa possível, e poderosamente protegido, a fim de socorrer sua bela. Guccio, todavia, sentia-se um tanto tranqüilizado a respeito de Maria desde que Tolomei lhe escrevera estar velando por ela como um verdadeiro tio.

No início da última semana de julho, quando Duèze viu seus colegas bem cansados, bem abatidos pelo calor, e irremediavelmente erguidos uns contra os outros, resolveu oferecer-lhes a comédia que vinha meditando havia muito tempo, e que tinha ensaiado cuidadosamente com Guccio.

— Arrastei bastante os pés? Jejuei bastante? Minha fisionomia estará bastante abatida? — perguntava ele a seu donzel improvisado. — E os meus confrades estarão bastante fartos de si próprios para se deixarem levar a uma decisão pela fadiga?

— Sim, Monsenhor, penso que estão maduros.

— Então, vá, meu jovem companheiro, comece a dar trabalho à sua língua. Quanto a mim, acho que vou deitar-me e não me levantarei mais.

Guccio começou a andar entre os servidores dos outros cardeais, dizendo que Monsenhor Duèze estava muito esgotado, que parecia doente, e que seria de temer, diante de sua idade avançada, que não saísse vivo daquele conclave.

No dia seguinte, Duèze não apareceu na reunião quotidiana, e os cardeais murmuraram entre si, cada qual repetindo com seus, os rumores que Guccio fazia correr.

No dia seguinte, o Cardeal Orsini, que saía de violenta altercação com os Colonna, encontrou Guccio e perguntou-lhe se era verdade que Monsenhor Duèze estava mesmo tão enfraquecido.

— Oh! É verdade, Monsenhor, e bem vedes que tenho a alma dilacerada — respondeu Guccio. — Sabeis que meu bom senhor deixou até de ler? Isto é o mesmo que dizer que bem pouco caminho agora lhe resta para deixar também de viver.

Depois, com aquele ar de audácia ingênua, que sabia assumir com muito propósito, acrescentou:

— Se estivesse em vosso lugar, Monsenhor, saberia bem o que fazer. Elegeria Monsenhor Duèze. Assim, poderíeis sair deste conclave, finalmente, e organizar outro à vossa vontade, assim que ele morresse, o que, eu vos repito, não tardará muito.

É uma oportunidade que talvez chegueis a perder, dentro de uma semana.

Naquela mesma noite, Guccio viu Napoleão Orsini em conciliábulo com Stefaneschi, que era Orsini pelo lado materno, Albertini de Prato e Guilherme de Longis, isto é, com todos os italianos favoráveis a Duèze. No dia seguinte, o mesmo grupo fechou-se como que espontaneamente no claustro, aumentado pelo espanhol Luca Flisco, meio irmão de Tiago II de Aragão, e Arnaldo de Pélagrue, o chefe do partido gascão. Guccio passando junto deles, ouviu um dos cardeais dizer:

— E se non muore?

— Peccato... mas se morrer amanhã, ficaremos mais seis meses aqui, com certeza.

Imediatamente, Guccio passou uma carta para seu tio, recomendando que comprasse da companhia Bardi todos os créditos que aquele banco possuía sobre Duèze. “Podereis obtê-los sem trabalho pela metade de seu valor, porque o devedor é dado como agonizante, e o credor pensará que estais louco. Comprai mesmo oitenta libras por cem, pois o negócio, como vos digo, será bom, ou não sou mais vosso sobrinho.” Aconselhava, além disso, a Tolomei, que viesse pessoalmente a Lião, o mais cedo que lhe fosse possível.

No dia 29 de julho o Conde de Forez remeteu oficialmente ao cardeal camerlengo uma carta do regente. Para ouvir sua leitura, Duèze consentiu em deixar seu catre. Mais foi mais carregado do que mesmo caminhou até a assembléia.

A carta do Conde de Poitiers era severa. Pormenorizava todas as faltas cometidas contra o regulamento de Gregório. Lembrava a promessa feita de demolir o teto da igreja. Chamava aos brios os cardeais, a propósito de suas discórdias e sugeria--lhes, se não podiam chegar a uma conclusão, que conferissem a tiara ao mais velho entre eles. Ora, o mais velho era Duèze.

Quando este ouviu tais palavras, agitou os braços num gesto de moribundo, e falou, com voz apenas perceptível:

— Ao mais digno, meus irmãos, ao mais digno! Que poderíeis fazer com um pastor que não tem mais forças para conduzir a si próprio, e cujo lugar é antes no Céu, se o Senhor ali quiser acolhê-lo, do que aqui em baixo?

E pediu que o levassem de nôvo para sua cela, estendeu-se em sua cama, e virou-se para a parede. Guccio conhecia-o realmente bem, para saber que os movimentos que lhe sacudiam os ombros eram provocados pelo riso e não pelos soluços da agonia.

No dia seguinte, Duèze pareceu recuperar um pouco as forças: um enfraquecimento constante demais poderia ter despertado suspeitas. Mas, quando veio uma recomendação do rei de Nápoles, que secundava a do Conde de Poitiers, o ancião começou a tossir de maneira lamentável. Estava em condições bastante tristes, para ter apanhado um resfriado com tamanho calor.

As negociações continuavam firmes, pois todas as esperanças não se haviam ainda extinguido. Entre os vinte e quatro cardeais não houve nenhum, sem dúvida alguma, mesmo dos menos bem colocados, que não dissesse consigo mesmo, em determinado momento: “Por que não eu?”

No público que afluía para Lião, atraído pela esperança de uma próxima decisão, instalava-se a opinião de que não havia instituições perfeitas, e que todas se valiam, igualmente viciadas pelas ambições humanas. O sistema eletivo que servia ao provimento do trono de São Pedro não se mostrava melhor do que o costume da hereditariedade para o trono da França.

O Conde de Forez, porém, começava a mostrar-se mais rude. Agora mandava revistar ostensivamente os víveres, que reduzira, aliás, a um serviço por dia, e confiscava a correspondência, quando não a devolvia para o interior.

No dia 5 de agosto, Napoleão Orsini conseguira aliar aos partidários de Duèze, o próprio Caetani, assim como alguns membros do partido gascão. Os provençais começaram a farejar o perfume da vitória.

Viram, no dia 6 de agosto, que Monsenhor Duèze poderia contar com dezoito votos, isto é, com dois votos mais do que a famosa maioria absoluta, que em dois ou três anos ninguém conseguira reunir. Os últimos dissidentes, vendo que a eleição ia se fazer apesar deles, temendo vir a sofrer penalidades pela sua obstinação, tomaram o partido de afetar reconhecer as altas virtudes cristãs de Monsenhor Duèze, e declararam-se dispostos a dar-lhe seus sufrágios.

No dia seguinte, 7 de agosto de 1316, decidiram votar (24). Quatro escrutinadores foram designados. Duèze apareceu, carregado por Guccio e seu segundo donzel.

— Êle não pesa muito — murmurava Guccio aos cardeais que o viam passar e que se afastavam com uma deferência onde já se esboçava a escolha que tinham feito.

— Pois que assim o quereis, Senhor, pois que assim o quereis... — suspirava Duèze diante do papel onde ia inscrever o seu voto.

Alguns minutos mais tarde, era proclamado papa por unanimidade, e seus vinte e três rivais faziam-lhe uma ovação.

Aquele papa iria tornar-lhes a vida dura durante dezoito anos!

Guccio adiantou-se para ajudar a carregar o raquítico ancião, que se tornara a suprema autoridade do Universo.

— Não, não, meu filho — disse Duèze. — Vou esforçar-me para caminhar sozinho. Possa Deus sustentar os meus passos.

Os imbecis acreditaram, então, que estavam testemunhando um milagre, enquanto outros compreendiam que tinham sido ludibriados.

Entretanto, o camerlengo já havia queimado na chaminé os papéis dos votos, cuja fumaça branca anunciava ao mundo um novo pontífice. As pancadas dos alviões começaram a retinir contra os muros de tijolos que fechavam a grande porta. Mas o Conde de Forez era prudente. Assim que soltaram o número suficiente de pedras, ele próprio insinuou-se pela abertura.

— Sim, sim, meu filho, sou mesmo eu — disse-lhe Duèze, que tinha corrido até a porta em seu passinho rápido.

Então, os pedreiros acabaram de derrubar o muro. Os dois batentes foram abertos, e o sol, pela primeira vez depois de quarenta dias, penetrou na igreja dos Jacobinos.

Grande multidão esperava no adro: gente humilde, burgueses de Lião, cônsules, senhores e observadores das cortes estrangeiras, todos puseram-se de joelhos. Um homem gordo, de pele azeitonada e com um olho fechado, encaminhava-se para a frente, junto do Conde de Forez. Apanhou a barra do manto do papa para levá-la aos lábios, e foi sobre a sua cabeça grisalha que tombou a primeira bênção daquele que se iria chamar dali por diante João XXII.

— Zio Spinello — exclamou Guccio, vendo o homem gordo ajoelhado.

— Ah! Sois o tio! Gosto muito de vosso sobrinho, meu filho — disse Duèze ao banqueiro, fazendo-lhe sinal para que se levantasse. — Êle serviu-me fielmente, e quero conservá-lo a meu lado. Beijai-o, beijai-o!

Guccio saltou ao pescoço de Tolomei.

— Comprei tudo, como me disseste, e a seis por dez — murmurou-lhe imediatamente Tolomei, enquanto Duèze continuava a abençoar a multidão. — Esse papa deve-nos agora muitos milhares de libras. Bel lavoro, figlio mio. És um verdadeiro sobrinho do meu sangue.

Alguém, atrás deles, mostrava um nariz tão comprido quanto o dos cardeais. Era o signor Bocácio, principal viajante dos Bardi.

— Ah! Então, estavas lá dentro, mascalzone? — disse êle a Guccio. — Se eu tivesse sabido disso, não teria vendido.

— E Maria? Onde está Maria? — perguntou Guccio a seu tio, ansiosamente.

— Tua Maria vai bem. É tão bela quanto tu és malicioso, e se o pequeno lombardo que lhe estufa o ventre sair a ambos, fará seu caminho pelo mundo. Mas vai depressa, meu rapaz! Estás vendo que o Santo Padre te chama.

 

                           AS DÍVIDAS DO CRIME

O REGENTE Filipe fazia questão absoluta de assistir à sagração do papa que tinha feito, colocando-se, assim, na posição de defensor da cristandade.

— Custou-me bastante trabalho — dizia. — É justo, portanto, que agora me ajude a fortalecer meu governo. Quero estar em Lião para a sua coroação.

Mas as notícias do Artois não deixavam de ser inquietadoras. Roberto tomara Arras, Avesnes e Thérouanne sem dificuldade, e continuava a conquistar a região. Em Paris, Carlos de Valois, sub-repticiamente, dava-lhe mão forte.

Fiel à tática de envolvimento que era nele inspiração natural, o regente começou por trabalhar nas regiões limítrofes do Artois, a fim de evitar que a revolta se propagasse. Escreveu aos barões da Picardia, lembrando-lhes a fidelidade que deviam à coroa da França, dando-lhes, cortêsmente, a entender que não toleraria vê-los de qualquer maneira faltar com seus deveres. E um contingente ponderável de tropas e sargentos de armas foi enviado aos prebostes, para vigilância da região. Aos flamengos, que, ao fim de um ano, ainda faziam chalaça a propósito da miserável cavalgada do” Turbulento, perdendo seu exército, na lama, Filipe propôs novo tratado de paz, em condições bastante vantajosas para eles.

— Nesta confusão que temos necessidade de pôr em ordem, será preciso perder um pouco, para salvar o todo — explicou o regente aos seus conselheiros.

Embora seu genro, João de Fiennes, fosse um dos primeiros tenentes de Roberto, o Conde da Flandres, sentindo que jamais teria tão boa ocasião de arranjar um tratado, consentiu nos entendimentos e conservou-se neutro, portanto, nos negócios do condado vizinho.

Filipe havia fechado, assim, praticamente, todas as portas do Artois. Mandou então Gaucher de Châtillon para negociar diretamente com os chefes dos revoltosos e assegurar-lhes as boas intenções da Condêssa Mafalda.

— Compreendei-me bem, Gaucher: não deveis armar discussões com Roberto — recomendou ele ao condestável — porque isso seria reconhecer os direitos que ele reclama. Continuamos a considerá-lo privado do Artois, tal como meu pai julgou. Ides, apenas, pôr em ordem um conflito que coloca a condêssa contra seus vassalos, e no qual, Roberto, a nossos olhos, nada tem a fazer. Fingi ignorá-lo.

— Na verdade, Monsenhor — disse o condestável — quereis que em tudo triunfe vossa sogra?

— Absolutamente, Gaucher. Absolutamente, uma vez que ela abusou de seus direitos em muitos casos, como eu o acredito. É que a dama Mafalda é muitíssimo arrogante e julga que toda a gente veio ao mundo apenas para servi-la até a última moeda da bolsa e a última gota de suor! Quero a paz — continuou o regente — e para tanto, que cada qual receba eqüitativamente o que lhe é devido. Sabemos que a burguesia das cidades mantém-se favorável à condêssa, porque essa burguesia está sempre em contenda com a nobreza, enquanto os nobres esposaram a causa de Roberto a fim de dar apoio aos próprios agravos. Vede, pois, se essas reclamações têm fundamento e tratai de atendê-las, sem que isso venha a atingir as prerrogativas da Coroa. Assim, esforçai-vos por afastar os barões de nosso turbulento primo, mostrando-lhes que podem obter de nós, pela justiça, muito mais do que pela violência.

— Sois de excelente julgamento, Monsenhor, sois, sem dúvida alguma, de excelente julgamento. Não pensei que me fosse dado, na velhice, servir com tanta satisfação um príncipe tão sensato, que não tem a terça parte da minha idade.

Ao mesmo tempo, o príncipe mandava pedir ao papa, pelo Conde de Forez, que retardasse um pouco a sua coroação. Duèze, por muito legítima que fosse sua pressa em ver a eleição que o fizera papa confirmar-se com a sagração, aceitou complacente-mente um adiamento de duas semanas.

Mas, passadas as duas semanas, o caso de Artois estava longe de resolver-se e o acordo com os flamengos não podia ser ratificado antes do dia 1.° de setembro. Filipe, então, mandou pedir novamente ao papa, dessa vez pelo delfim de Viennois, um outro adiamento da cerimônia. Duèze, porém, com grande surpresa do regente, mostrou-se de súbito muito firme, e quase brutal, fixando, irrevogàvelmente, para 5 de setembro, a sua coroação.

Fazia questão daquela data por motivos que conservava em segredo e que, aliás, escapavam ao julgamento comum. Com efeito, num dia 5 de setembro de 1300, fora sagrado bispo de Fréjus. Na primeira semana de setembro de 1309 tinha sido coroado seu protetor, o Rei Roberto de Nápoles, e se uma falsificação da caligrafia real lhe permitira obter a cadeira episcopal de Avinhão, fora no dia 4 de setembro de 1310 que sua manobra tivera êxito.

O novo papa mantinha bom comércio com os astros, e sabia servir-se das passagens do sol para organizar as etapas de sua ascensão.

“Se Monsenhor, o regente da França e de Navarra, que tanto amamos”, foi a resposta dele, “encontra-se impedido, pelos deveres do reino, de estar a nosso lado nesse dia solene, sentiremos muito sua ausência, mas, já não temendo obrigá-lo a fazer viagem excessivamente longa, iremos receber a tiara na cidade de Avinhão.”

Filipe de Poitiers assinou o tratado com os flamengos na manhã de 1° de setembro. No dia 5, pelo alvorecer, chegava a Lião, acompanhado pelo Conde de Valois e pelo Conde de La Marche, que não quisera deixar em Paris, longe de sua vigilância, bem como por Luís d’Evreux.

— Fizeste-nos correr a passo de mensageiro, meu sobrinho — disse Valois, desmontando.

Não tiveram senão o tempo necessário para vestir os trajos especiais preparados para a cerimônia, e que tinham sido encomendados pelo tesoureiro Godofredo de Fleury. O regente usava um trajo aberto, de tecido flor-de-pessegueiro, forrado com duzentos e vinte e seis peles de ventre de menu-vair (25). Carlos de Valois, Luís d’Evreux, Carlos de La Marche e Filipe de Valois, que também estava na festa, tinham recebido, cada qual, de presente, um trajo de camocas, forrado da mesma maneira.

Em Lião, que se mostrava toda embandeirada, era grande a aglomeração popular para admirar o desfile.

Tiago Duèze chegou à igreja primacial São João a cavalo, precedido pelo regente de França e diante de um mar de pessoas ajoelhadas. Todos os sinos da cidade repicavam. As rédeas da montaria pontificai eram levadas de um lado pelo Conde d’Evreux e do outro pelo Conde de La Marche. A monarquia francesa enquadrava de perto o papado. Seguiam-se os cardeais, o chapéu vermelho colocado acima da capa, e preso sob o queixo com cordões amarrados. As mitras dos bispos cintilavam ao sol. Foi o Cardeal Orsini, descendente do patriciado romano, quem colocou a tiara sobre a cabeça de Duèze, filho de um burguês de Cahors.

Guccio, bem colocado na catedral, admirava seu senhor. O pequenino ancião de queixo delgado, ombros estreitos, que quatro semanas atrás acreditavam agonizante, suportava sem dificuldade os pesados atributos sacerdotais que lhe conferiam. Os ritos faraônicos daquela interminável cerimônia que o colocava tão acima de seus semelhantes, e fazia dele o símbolo da divindade, agiam sobre a sua pessoa quase que a despeito dela própria, e espalhavam-lhe sobre os traços uma imprevista majestade, impressionante e mais evidente à medida que a liturgia se desenrolava. Entretanto, ele não pôde esconder um ligeiro sorriso quando lhe calçaram as sandálias pontificais.

“Scarpinelli! Eles me chamavam Scarpinelli... o cardeal sapatinhos... “, pensava ele. “Faziam-me passar por filho de remendão. Agora, quem usa os sapatinhos sou eu... Senhor! Nada mais tenho a desejar. Nada mais me resta senão governar bem.”

E a isso dedicou-se, naquele mesmo dia, fazendo com que o regente conferisse a seu irmão, Pedro Duèze, títulos de nobreza, antes que ele próprio nomeasse cardeais cinco sobrinhos seus, o que iria fazer dois anos depois.

O ato de enobrecimento que o próprio Filipe de Poitiers ditou no fim da cerimônia, se era destinado a honrar o Santo Padre através de seu irmão, testemunhava também espantosa disposição de espírito por parte do jovem príncipe. “Não são os bens de família” — tinha ele escrito — “nem as riquezas de fato, nem as outras atenções da sorte, que possuem títulos no concerto das qualidades morais e das ações meritórias. São coisas que certo acaso concede aos que merecem como aos que não merecem, que chegam tanto para os dignos como para os indignos. Em compensação, cada qual se manifesta como filho de suas obras e de seus próprios méritos, enquanto não tem importância alguma a fonte de onde provimos, se é que sabemos, realmente, de quem provimos...”

Mas o regente não viajara tanto nem dera ao novo papa tais demonstrações de estima para nada obter em troca. Entre aqueles dois homens, que meio século de idade separava... “sois a alvorada, Monsenhor, e eu o poente”, costumava dizer Duèze a Filipe... havia, desde o primeiro encontro, uma afinidade secreta e uma cumplicidade permanente. João XXII não esquecia as promessas de Duèze, nem o regente olvidava as do Conde de Poitiers. Às primeiras palavras do regente, em relação aos beneíícios eclesiásticos, cuja primeira anuidade devia pertencer ao Tesouro, o novo papa lhe disse que os documentos estavam prontos para ser assinados. Mas, antes que os selos fossem apostos, Filipe teve uma conversa particular com Carlos de Valois.

— Meu tio — perguntou — tendes alguma queixa de mim?

— Evidentemente, não, meu sobrinho — disse o ex-imperador de Constantinopla.

Como seria possível dizer cara a cara, a uma pessoa, fosse ela quem fosse, ser sua própria existência o único agravo que se tinha contra ela?

— Então, meu tio, se não tendes de que vos queixar, por que me prejudicais? Eu vos tinha garantido, quando me entregastes as chaves do Tesouro, que não vos seriam pedidas as contas, e mantive minha palavra. Jurastes-me homenagem e fidelidade, mas não mantívestes vossa fé, meu tio, pois sustentais a causa de Roberto d’Artois.

Valois fêz um gesto negativo.

— Estais calculando mal, meu tio — continuou Filipe — porque Roberto vai custar-vos caro demais. Êle nada tem em matéria de dinheiro, e seus recursos são representados apenas pelas rendas que o Tesouro lhe paga, e que eu acabo de cortar. Será a vós, pois, que ele vai pedir subsídios. Onde ireis encontrá-los, pois que já não manejais as finanças do reino? Vamos, não vos abespinheis, não precisais enrubescer nem deixar-vos levar por palavras grosseiras, das quais vos arrependereis, pois quero o vosso bem. Dei-me a certeza de que desamparareis um pouco Roberto e eu, por meu lado, vou pedir ao Santo Padre que as anatas de Valois e de Maine vos sejam entregues diretamente e não ao Tesouro.

Entre o ódio e a cobiça, o coração de Valois esteve por um instante dilacerado.

— A quanto montam essas anatas? — perguntou ele.

— Vão de dez a treze mil libras por ano, meu tio, porque serão compreendidos nelas os benefícios que não foram recebidos nos últimos tempos de meu pai e durante todo o reinado de Luís.

Para Valois, sempre endividado, levando um trem de vida real, e prometendo dotes monumentais a fim de melhor casar suas filhas, dez a treze mil libras por ano representavam, senão a salvação definitiva, pelo menos a salvação provisória.

— Sois um bom sobrinho, e compreendeis minhas necessidades — respondeu ele.

As notícias mandadas por Gaucher de Châtillon eram satisfatórias; assim Filipe voltou a Paris por pequenas etapas, pondo em ordem vários assuntos pelo caminho e fazendo uma última parada em Vincennes, para levar a Clemência a bênção do novo papa.

— Sinto-me feliz — disse a rainha — por ter o nosso caro Duèze tomado o nome de João, pois também escolhi esse nome para meu filho, devido a um voto que fiz, durante a tempestade, na nave que me trouxe para a França.

Parecia continuar, como sempre, estranha aos problemas do poder, e ocupada apenas com as lembranças de sua vida conjugal e as preocupações da maternidade. A estada em Vincennes dava a impressão de ser conveniente para a sua saúde. Recuperara seu bonito rosto, e mostrava, com as formas do sétimo mês, ter adquirido a trégua que aparece, às vezes, no fim das gestações difíceis.

— João não é bem o nome para o rei da França — disse o regente. — Nunca tivemos um João.

  • — Meu irmão, estou lhe dizendo que foi um juramento que fiz.

— Então, havemos de respeitá-lo... Se f ôr um menino, chamar-se-á, pois, João I.

No palácio da Cité, Filipe encontrou sua esposa perfeitamente feliz, mimando o pequeno Luís Filipe, que gritava com tôda a força de suas oito semanas.

Mas a Condêssa Mafalda, mal teve conhecimento do regresso de seu genro, chegou do palácio de Artois, de mangas arregaçadas, como uma fúria.

— Ah! Como sou traída, meu filho, quando vos ausentais!

Sabeis o que foi maquinar em Artois aquele velhaco que é o vosso Gaucher?

— Gaucher é condestável, minha mãe, e ainda há pouco não o consideráveis absolutamente um velhaco. Que vos fez êle?

— Considerou-me culpada! — gritou Mafalda. — Condenou-me em tudo. Vossos enviados entendem-se como compadres de feira com os meus vassalos. Resolveram que não voltarei para Artois... estais entendendo bem, eu Mafalda, proíbem-me de voltar ao meu condado!... antes assinar aquela péssima paz que recusei a Luís, em dezembro passado. Querem, além disso, que eu devolva não sei que taxas que, segundo eles, recebi indevidamente!

— Tudo isso parece-me justo. Meus enviados seguiram bastante fielmente minhas ordens — respondeu calmamente Filipe.

A surpresa deixou Mafalda interdita por um momento, a boca entreaberta, os olhos arregalados. Depois, recomeçou, gritando ainda mais fortemente.

— Justo? Pilhar meus castelos, enforcar meus sargentos, destruir minhas colheitas! E são vossas ordens, então, essas de amparar meus inimigos! Vossas ordens! Eis de que bela maneira pagais tudo quanto fiz por vós!

Uma grossa veia arroxeada intumescia-se em sua testa, e Filipe pensou que naquela noite ela deveria fazer-se sangrar.

— Não vejo, minha mãe, que, além de me terdes dado vossa filha, tenhais feito tanto por mim a ponto de que me seja necessário lesar meus súditos e comprometer, para proveito vosso, a paz do reino.

Entre a prudência e o furor, Mafalda hesitou um segundo. Mas a palavra empregada por seu genro, “meus súditos”, que era palavra de rei, prevaleceu sobre tudo.

— E ter matado teu irmão — disse ela, avançando para êle — nada representa, então?

Dez semanas de segredo tão ardentemente guardado tinham estalado num ímpeto.

Filipe não teve sobressalto, não soltou grito algum mas, simplesmente, correu a fechar as portas e a assegurar-se, com seus olhos míopes, de que não havia gente por ali que pudesse ter ouvido. Aferrolhou as portas, retirou as chaves e meteu-as em seu cinto. Mafalda ficou assustada, e mais ainda quando viu o rosto com que ele se adiantava em sua direção.

— Fôstes vós, então — disse ele, a meia voz — e o que se cochicha no reino é verdade!

Mafalda enfrentou-o, de acordo com sua natureza, que era a de atacar.

— E quem quedeis que fosse, meu genro? A quem pensais dever a graça de ser regente e de poder um dia, talvez, apropriar-vos da Coroa? Vamos! Não tomeis ar assim tão ingênuo. Vosso irmão havia confiscado Artois. Valois excitava-o contra mim, e vós estáveis em Lião, ocupando-vos do papa... sempre êsse papa que infalivelmente se mete em meus negócios! Não vos mostreis hipócrita a ponto de dizer que me reprovais! Não tínheis ternura alguma por Luís e gostastes bem que eu vos tivesse fornecido seu lugar ainda quente, temperando um bocadinho os confeitos que ele comeu. Mas não esperava que fósseis pior do que ele.

Filipe tinha-se sentado, cruzara as mãos compridas e refletia.

“Tínhamos mesmo que chegar a isto, um dia ou outro”, pensava Mafalda. “Talvez seja um bem, num certo sentido: agora tenho-o nas mãos.”

— Joana sabe? — perguntou subitamente Filipe.

— Não sabe de coisa alguma. Isso não é negócio para mulheres.

— Quem sabe, além de vós?

— Beatriz, minha primeira donzela.

— É muito — disse Filipe.

— Ah! Não deveis tocar naquela moça! Tem família poderosa.

— Sem dúvida alguma, uma família que vos torna muito querida em Artois! E além dessa Beatriz? Quem vos forneceu o tempero, como dizeis?

— Uma bruxa de Arras, que nunca vi, mas que Beatriz conhece. Fingi querer desembaraçar-me dos cervos que infestavam meu parque, e tive o cuidado de mandar matar uma porção deles.

— Será preciso encontrar novamente essa mulher... — disse Filipe.

— Compreendei, agora — falou Mafalda — que não podeis, de modo algum, abandonar-me? Porque se acreditarem que me deixais sem apoio, meus inimigos vão retomar coragem, as calúnias redobrarão...

— As maledicências, minha mãe, as maledicências — retificou Filipe.

— ... e se me acusarem do que sabeis, o peso recairá sobre vós, porque irão dizer que fiz aquilo para vos dar vantagem, e talvez mesmo por ordem vossa.

— Eu sei, minha mãe, eu sei. Já pensei nisso tudo.

— Lembrai-vos, Filipe, que arrisquei a salvação de minha alma nessa empresa. Não deveis ser ingrato!

Filipe teve, então, um dos seus raros acessos de cólera.

— Ah! Isso é demais, minha mãe! Não tardareis a pedir que eu vos venha beijar os pés por terdes envenenado meu irmão! Se eu soubesse que teria a regência a esse preço, jamais, estais entendendo, jamais a teria aceitado! Reprovo o assassínio. Não temos necessidade de matar, nunca, para chegarmos ao fim que nos propomos. Esse meio é de má política, e eu vos ordeno, por todo o tempo que fôr vosso suserano, que não useis mais dele.

Um momento, ele teve a tentação da honestidade. Reunir o conselho dos pares, denunciar o crime, pedir castigo... Mafalda, que o adivinhou agitado por esses pensamentos, passou instantes penosos.

Filipe, entretanto, jamais se deixava levar pelos seus impulsos, mesmo virtuosos. Agir assim seria lançar o descrédito sobre sua mulher e sobre si próprio. E de que acusações seria capaz Mafalda, para defender-se ou para perder com ela quem não a defendera? A ocasião, para muitos, seria excelente para reabrir a questão da regência e da sucessão. Filipe já fizera muito pelo reino e sonhara muito com o que iria fazer para que desejasse correr o risco de se ver privado do poder. Seu irmão Luís, afinal, fora mau rei, e, além disso, um assassino... Talvez fosse a vontade da Providência punir o assassino com o assassínio, colocando a França em melhores mãos.

— Deus vos julgará, minha mãe, Deus vos julgará — disse êle. — Eu apenas desejaria evitar que as chamas do inferno, por vossa causa, começassem a nos lamber ainda em nossa vida.

Tenho, portanto, que pagar as dívidas de vosso crime e, não podendo meter-vos numa masmorra, sou forçado, com efeito, a amparar-vos... Vossa maquinação foi bem feita. Messire Gaucher receberá, depois de amanhã, novas instruções. Não vos escondo que elas me pesam.

Mafalda quis beijá-lo, mas ele repeliu-a.

— Mas podeis ficar sabendo — disse ele — que daqui por diante aquilo que eu comer será provado três vezes, e na primeira dor de estômago que me incomode um pouco, vossas horas de vida estarão por um fio. Rezai, pois, pela minha saúde.

Mafalda baixou a cabeça.

— Eu vos servirei tanto, meu filho — disse ela — que acabareis por amar-me novamente.

 

               “JÁ QUE É PRECISO QUE NOS RESOLVAMOS PELA GUERRA...”

NINGUÉM compreendeu, e menos que ninguém Gaucher de Châtillon, a reviravolta de Filipe na questão de Artois. O regente, desautorizando bruscamente seus enviados, declarou inaceitável a conciliação que tinham preparado, e exigiu a redação de novas convenções mais favoráveis a Mafalda. O resultado não se fêz esperar. As negociações foram rompidas, e os que tratavam delas do lado de Artois, representando o elemento moderado da nobreza, reuniram-se imediatamente ao clã dos furiosos. Sua indignação era extrema, o condestável zombara deles, traíra-os. De agora em diante a força seria o único recurso.

O Conde Roberto triunfava.

— Já não vos dissera muitíssimas vezes que não se pode falar com aqueles falsos? — repetia a todos.

Seguido de todo o seu exército, marchou de novo sobre Arras.

Gaucher, que se encontrava na cidade apenas com uma pequena escolta, mal teve tempo de fugir pela porta de Péronne, enquanto Roberto entrava pela porta Saint-Omer, com todos os estandartes ao vento, as trombetas tocando. Por um quarto de hora apenas, deixou de ser aprisionado o condestável da França. Aquela aventura passou-se no dia 22 de setembro. Naquela mesma data Roberto mandou à sua tia a seguinte carta:

À mui alta e nobre dama Mafalda d’Artois, Condêssa de Borgonha, Roberto d’Artois, cavaleiro. Corno injustamente me privastes de meu direito ao condado de Artois, o que muito me contraria e é para mim peso diário, coisa que não quero e não posso mais sofrer, faço-vos saber que vou pôr ordem neste caso e recuperar o que me pertence o mais cedo que me fôr possível.

Roberto não era grande epistológrafo, e as gradações da finura de expressão não constituíam seu forte. Ficara muito satisfeito com a carta, porque expressava bem o que queria dizer.

O condestável, quando chegou a Paris, vinha mal-humorado e também não pesou suas palavras ao se encontrar face a face com o Conde de Poitiers. A pessoa do regente não o intimidava. Tinha visto aquele jovem nascer e molhar suas fraldas: disse-lhe tudo claramente, acrescentando que ele tinha feito mau uso de um bom servidor e de um parente fiel que contava vinte anos de comando nos exércitos do reino, mandando-o tratar garantias que a seguir renegava.

— Passei até o dia de hoje, Monsenhor, por homem leal, cuja palavra, uma vez comprometida, não podia ser posta em dúvida. Fizeste-me fazer o papel de traidor e ladrão. Quando sustentei vossos direitos à regência, pensava reencontrar em vós um pouco de meu rei, vosso pai, com o qual até aqui tínheis manifestado semelhança. Vi que me enganei cruelmente. Caístes assim tanto sob tutela de mulher para que mudeis agora de opinião como de cota?

Filipe esforçou-se para acalmar o condestável, acusando-se de haver julgado mal a questão, no início, e de ter dado instruções erradas. Nada adiantaria transigir com a nobreza de Artois enquanto Roberto não fosse derrotado. Roberto constituía um perigo para o reino, e um perigo para a honra da família real. Não fora o instigador daquela campanha de calúnias que designava Mafalda como envenenadora de Luís X?

Gaucher sacudiu os ombros.

— E quem acredita nessas tolices? — exclamou.

— Vós não acreditais, Gaucher, vós não — disse Filipe

— mas outros abrem bem os ouvidos, contentes bastante por nos prejudicarem assim. E amanhã irão dizer que eu, que vós, tivemos parte nessa morte que querem mostrar como suspeita.

Mas Roberto vem de dar o passo em falso que eu esperava.

Vede o que escreveu a Mafalda...

E deu ao condestável a carta de 22 de setembro.

— Nessa carta — recomeçou o regente — ele rejeita a decisão que, em 1309, meu pai fêz o Parlamento tomar. Até esta data apenas amparava os inimigos da condêssa. Presentemente, vem de entrar em revolta contra a lei do reino. Voltareis para Artois.

— Ah! Não, Monsenhor! — exclamou Gaucher. — Acabo de fazer muito má figura. Precisei fugir de Arras como um javali velho perseguido pelos cães, sem mesmo ter tido tempo para urinar. Fazei-me a graça de escolher outro para essa questão.

Filipe juntou as mãos diante da bôca. “Se tu soubesses, Gaucher”, pensava ele, “se tu soubesses como é duro para mim enganar-te! Mas se te confessasse a verdade tu me des-prezarias ainda mais!” E repetiu, obstinado:

— Voltareis para Artois, Gaucher, por mim, e porque vo-lo peço. Levareis convosco vosso cunhado, messire Milles, e, desta vez, uma boa tropa de cavaleiros, bem como gente das comunas, recebendo reforços na Picardia. E intimareis Roberto a comparecer diante do Parlamento para prestar contas de seu comportamento. Ao mesmo tempo, fornecereis auxílio em dinheiro e homens armados aos burgueses das cidades que se nos conservarem fiéis. E se Roberto não se submeter, tomarei então providências para obrigá-lo a isso de outra maneira... Um príncipe é um homem como qualquer outro, Gaucher — prosseguiu Filipe, tomando o condestável pelos ombros. — Pode errar no princípio, mas erro maior seria obstinar-se nele. O ofício de reinar aprende-se, como todos os ofícios, e eu ainda tenho o que aprender. Perdoai-me pelo mau papel que vos obriguei a representar.

Nada emociona tanto um homem idoso quanto a confissão de inexperiência feita por um mais moço, sobretudo se esse último é seu superior, socialmente. Sob suas pálpebras de tartaruga, o olhar de Gaucher velou-se um pouco.

— Ah! Ia me esquecendo — continuou Filipe. — Resolvi que sereis o tutor do futuro filho de Madame Clemência... nosso rei, pois, se Deus quiser que seja um menino... e seu segundo padrinho, depois de mim (26).

— Monsenhor, Monsenhor Filipe... — disse o condestável emocionadíssimo.

E refugiou-se nos braços do regente, como se tivesse sido ele o faltoso.

— Como madrinha — disse ainda Filipe — decidimos, com o acordo de Madame Clemência, a fim de pôr um paradeiro em todos esses rumores perversos, que será designada a Condêssa Mafalda.

Oito dias depois o condestável punha-se outra vez a caminho.

Roberto d’Artois, como era de prever, recusou submeter-se à intimação, e continuou a fazer distúrbios, à frente de sua horda de couraças. O mês de outubro, entretanto, não foi bom para ele. Era guerreiro violento, mas não se mostrava bom estrategista, atirava suas expedições sem ordem, um dia para o norte, no dia seguinte para o sul, segundo a inspiração do momento. Reitre antes dos reitres, condottiere antes dos condottieri, estava melhor preparado para se pôr a serviço alheio, como força de guerra — o que, aliás, iria fazer quinze anos mais tarde, em proveito da Inglaterra — do que para comandar pessoalmente. No condado que considerava seu, conduzia-se como em território inimigo, levando a vida selvagem, perigosa, frenética, que era de seu agrado. Regozijava-se com o terror causado pela sua aproximação, mas não via o ódio que deixava sobre seus passos. Corpos demais enforcados em galhos, homens decapitados em quantidade excessiva, muitíssima gente enterrada viva, em meio de grandes risos cruéis, excesso de moças violentadas, que conservavam na pele as marcas das cotas de malha, porção imensa de incêndios: eis os marcos de seu caminho. As mães diziam às crianças, para mantê-las sossegadas, que iam chamar Monsenhor Roberto. Mas se alguém anunciava a presença dele naquelas paragens, agarravam imediatamente junto de suas saias toda a petizada, e corriam a refugir-se na floresta mais próxima.

As cidades protegiam-se com barricadas. Os artífices, instruídos com o exemplo das comunas flamengas, aguçavam suas facas, e os escabinos mantinham contacto com os emissários de Gaucher. Roberto gostava das batalhas em campo aberto, e detestava a guerra de sítio. Os burgueses de Saint-Omer ou de Calais fechavam-lhe as portas no nariz; ele dava de ombros, dizendo :

— Voltarei outro dia, e rebentarei com todos vós.

E ia divertir-se mais longe.

Mas o dinheiro começava a rarear. Valois não mais atendia os pedidos, e suas raras mensagens só continham bons sentimentos e exortações à sensatez. Tolomei, o caro banqueiro Tolomei, também se fazia de surdo. Estava viajando... seus funcionários não tinham ordem... O próprio papa metia-se na questão: tinha escrito pessoalmente a Roberto e a muitos barões de Artois, lembrando-lhes seus deveres...

Certa manhã, no fim de outubro, o regente, por ocasião do conselho, declarou com a grande tranqüilidade com que costumava acompanhar suas decisões:

— Nosso primo Roberto já zombou por muito tempo de nosso poder. Já que é preciso que nos resolvamos pela guerra, levaremos, pois, contra ele, a auriflama de Saint-Denis, no último dia deste mês, e como messire Gaucher está ausente, a hoste, que eu próprio conduzirei, será colocada sob o comando de nosso tio...

Todos os olhares voltaram-se para Carlos de Valois, mas Filipe continuou:

— ... de nosso tio, Monsenhor d’Evreux. Entregaríamos de boa vontade essa tarefa a Monsenhor de Valois, que deu provas de ser grande chefe de guerra, se ele não tivesse de ir para suas terras do Maine, a fim de receber, ali, as anatas da Igreja.

— Eu vos agradeço, meu sobrinho — respondeu Valois — pois sabeis o quanto gosto de Roberto e quanto, embora desaprovando sua revolta, que é uma grande tolice de obstinado, seria desagradável para mim precisar erguer armas contra ele.

O exército que o regente reuniu para se dirigir a Artois, em nada se parecia à hoste desmesurada que seu irmão, seis meses antes, tinha enterrado na Flandres. A força agora reunida compunha-se de tropas permanentes e de recrutamentos feitos no domínio real. Os pagamentos eram elevados: trinta soldos por dia para os fidalgos que tinham companhia de pendão, quinze soldos para os cavaleiros, três soldos para os peões. Foram convocados não apenas os nobres, mas os plebeus também. Os dois marechais, João de Corbeil e João de Baumont, chamado o Desramado, senhor de Clichy, reuniram as companhias de vassalos. Os besteiros de Pedro de Galard já estavam preparados. Godofredo Coquatrix, havia duas semanas, recebera secretamente instruções para tratar dos transportes e dos fornecimentos.

No dia 30 de outubro, Filipe de Poitiers empunhou a auriflama de Saint-Denis. No dia 4 de novembro estava em Amiens, de onde enviou imediatamente seu segundo camareiro, Roberto de Gamaches, escoltado por alguns escudeiros, portando ao Conde de Artois uma derradeira intimação.

 

             A HOSTE DO REGENTE FAZ UM PRISIONEIRO

O RESTÔLHO das colheitas, que já iam distanciadas, apodrecia, pardacento, sobre os campos argilosos e despidos. Pesadas e sombrias nuvens rolavam no céu do outono, e dir-se-ia que lá para o fundo, na extremidade do planalto, o mundo acabava. O vento, um tanto acre, soprando em baforadas curtas, trazia ressaibo de fumaça.

Diante da aldeia de Bouquemaison, no mesmo lugar onde, três meses antes, o Conde Roberto entrara em Artois, o exército do regente dispusera-se em ordem de combate, e os pendões tremulavam na ponta das lanças, numa frente de cerca de meia légua.

Filipe de Poitiers, rodeado dos principais oficiais, encontrava-se no centro, a alguns passos da estrada. Tinha cruzado as mãos enluvadas de ferro sobre o punho da sela e trazia a cabeça descoberta. Um escudeiro, colocado atrás dele, carregava--lhe o elmo.

— Foi então aqui que ele te afirmou que viria render-se? — perguntou o regente a Roberto de Gamaches, que naquela manhã voltara de sua missão.

— Aqui mesmo, Monsenhor — respondeu o segundo camareiro. Êle escolheu o local... “No campo, junto do marco que é rematado por uma cruz... “, disse-me. Assegurou que estaria aqui à hora da tércia.

— E tens certeza de que nestas redondezas não existe outro marco rematado por uma cruz? Porque ele seria bem capaz de nos pregar uma peça, indo apresentar-se noutro lugar, para que constatassem que eu não me encontrava ali... Achas, realmente, que virá?

— Penso que sim, Monsenhor, pois me pareceu muito abalado. Descrevi-lhe vossa hoste, e fiz sentir, também, que Monsenhor condestável estava nos limites da Flandres e nas cidades do norte, e que ele seria apanhado como entre duas pinças, sem mesmo poder fugir pelas portas. Entreguei-lhe, enfim, a carta de Monsenhor de Valois, aconselhando-o a render-se sem combate, pois só poderia ser batido, e informando-lhe estardes tão indignado contra ele que seria para temer, no caso de o tomardes pelas armas, que lhe mandásseis cortar a cabeça. O que pareceu abatê-lo muito.

O regente inclinou um tanto seu comprido busto sobre o pescoço de seu cavalo. Decididamente, não gostava de usar aqueles trajos de guerra, cujas vinte libras de ferro pesavam-lhe sobre os ombros e impediam-no de esticar-se.

— Então, retirou-se com os barões — prosseguiu Gamaches — e não sei, realmente, o que disseram entre si. Mas compreendi que alguns o censuravam, enquanto outros suplicavam-lhe que não os abandonasse. Então, o Conde Roberto voltou para junto de mim e deu-me a resposta que vos trouxe, assegurando-me que respeitava demais o senhor regente, para desobedecer-lhe fosse no que fosse.

Filipe de Poitiers continuava incrédulo. Aquela submissão demasiado fácil o inquietava e fazia-lhe temer uma armadilha. Franzindo as pálpebras, contemplava a paisagem triste.

-— O local seria bastante bom para contornar nossa posição e atacar-nos pelas costas, enquanto estamos aqui parados, à espera! Corbeil! Desramado! — disse ele, dirigindo-se a seus dois marechais. — Mandai alguns dos fidalgos de pendão fazer um reconhecimento das duas alas, e ordenai que revistem os fossos, para assegurar-vos de que não há tropa nenhuma oculta por ali, nem avançando pelos nossos caminhos de retaguarda. E quando a tércia soar no campanário, se Roberto não se apresentar — acrescentou, para Luís d’Evreux — havemos de nos pôr em marcha.

Depressa, porém, ouviram-se gritos nas fileiras das companhias.

— Aí está ele! Aí está ele!

O regente tornou a apertar as pálpebras, mas nada viu.

— Em frente, Monsenhor! — disseram-lhe. — Bem na direção do pescoço do vosso cavalo, na crista!

Roberto d’Artois chegava sem companheiros, sem escudeiro, sem mesmo um criado. Avançava a passo, ereto sobre seu imenso cavalo, e parecia, naquela solidão, ainda maior do que era. Sua alta silhueta destacava-se, avermelhada, contra o céu de tormenta, e a ponta da sua lança enganchava-se nas nuvens.

— Ainda é uma forma de zombar de vós, Monsenhor, isso de aparecer dessa maneira.

— Ora! Que zombe! Que zombe de mim! — respondeu Filipe de Poitiers.

Os cavaleiros enviados para reconhecimento voltavam a galope, assegurando que as circunvizinhanças estavam perfeitamente tranqüilas.

— Pensei que ele fosse mostrar-se mais encarniçado na desesperança — disse o regente.

Um outro, querendo mostrar arrogância, teria, sem dúvida, avançado sozinho para aquele homem sozinho. Filipe de Poitiers, entretanto, tinha outra concepção de sua dignidade, e não era um gesto de cavalaria que lhe importava fazer, mas um gesto de rei. Esperou, pois, sem se mover de um passo que fosse, que Roberto d’Artois, todo enlameado, todo afogueado, parasse diante dele.

O exército inteiro retinha o fôlego, e só se ouvia o retinir dos freios na boca dos cavalos.

O gigante atirou sua lança ao chão. O regente contemplou a arma deitada sobre o restôlho, e nada disse.

Roberto desatou da sela seu elmo e seu montante, e atirou-os para junto da lança, no chão.

O regente continuava calado. Não levantara os olhos para Roberto, mantendo seus olhos presos às armas, como se esperasse outra coisa.

Roberto d’Artois resolveu descer do cavalo, avançou dois passos e, com os nervos fremindo de cólera, terminou por dobrar um joelho em terra, a fim de encontrar os olhos do regente.

— Nobre primo... — exclamou, abrindo os grandes braços.

Mas Filipe deteve-o.

— Meu primo, não tendes fome? — perguntou.

E como o outro, que esperava uma grande cena, com troca de palavras nobres, soerguimento, abraço e perdão, ficasse inteiramente estupefato, Filipe acrescentou:

— Vamos, subi para a sela, e sigamos o mais depressa possível para Amiens, onde vos ditarei a minha paz. Marchareis a meu lado, e comeremos no caminho... Héron! Gamaches!

Apanhai as armas de meu primo.

Roberto d’Artois demorava-se a montar a cavalo, e olhava em tôrno de si.

— Que procurais? — perguntou-lhe ainda o regente.

— Não procuro coisa alguma, Filipe. Contemplo este campo, para jamais esquecê-lo.

Colocou a mão sobre o peito, no lugar em que podia sentir, sob a broigne, o saquinho de veludo no qual havia encerrado, como se fossem uma relíquia, as espigas agora reduzidas a pó, que colhera naquele mesmo lugar, em certo dia de verão. Um sorriso cheio de soberba passou por seus lábios.

Quando começou a trotar ao lado do regente, recuperou seu aprumo habitual.

— Reunistes um belo exército, meu primo, para fazer apenas um prisioneiro — disse ele, em tom de zombaria.

— A tomada de vinte tropas de pendão, meu primo — respondeu Filipe, no mesmo tom — não me daria hoje o mesmo prazer que me dá a vossa companhia... Dizei-me, pois, o que vos levou a render-vos tão depressa, porque, enfim, embora o número seja maior do meu lado, sei que não é coragem que vos falta!

— Pensei que, ao nos enfrentarmos numa guerra, iríamos fazer sofrer demais a gente pobre.

— Eis que vos mostrais subitamente sensível, Roberto — disse Filipe de Poitiers. — Não me consta que nestes últimos tempos vossas manifestações caridosas contem-se em quantidade.

— Nosso Santo Padre, o Papa, houve por bem escrever-me, para recordar-me meus deveres.

— E devoto também, agora! — exclamou o regente.

— Meditei muito a respeito da carta desse bom papa... que foi eleito com tanta facilidade, segundo me disseram. E como os seus termos pareciam-se bastante às vossas intimações, resolvi mostrar-me, ao mesmo tempo, súdito leal e bom cristão.

— Coração, religião e lealdade! Estais bem mudado, meu primo!

Ao mesmo tempo, olhando para o grande queixo do gigante, Filipe dizia consigo mesmo: “Caçoa, caçoa: daqui a pouco estarás menos animado, quando souberes que paz irei impor-te!”

Mas, diante do conselho que foi reunido assim que chegaram a Amiens, Roberto conservou a mesma atitude. Aceitou tudo quanto lhe pediram, sem se rebelar, sem fazer chicana, a ponto de parecer que nem mesmo ouvia a leitura que lhe faziam do tratado.

Comprometia-se a devolver “todos os castelos, fortalezas, terras senhoriais e todas as coisas que tivesse tomado ou ocupado”. Dava garantia da restituição de todos os lugares tomados pelos seus partidários, declarava tréguas com Mafalda até as próximas Páscoas. Nesse entretempo a condêssa daria conhecimento de sua vontade, e a corte dos pares se pronunciaria sobre os direitos das duas partes. O regente, por ora, governaria diretamente Artois, pondo ali os guardas, oficiais e castelões que desejasse. Enfim, até a decisão dos pares, as rendas do condado seriam recebidas pelo Conde d’Evreux e... pelo Conde de Valois.

Ouvindo aquela última cláusula, Roberto compreendeu a que preço fora comprada a defecção de seu aliado principal. Mas mesmo então nada deixou transparecer e assinou o documento completo.

Aquela submissão excessiva começava a inquietar o regente. “Que golpe estaria maquinando como retribuição do que recebe agora?”, dizia Filipe consigo.

Como estava com pressa de voltar a Paris, para o parto da rainha, deixou a seus dois marechais, com uma parte das tropas assoldadas, o cuidado de ir render o condestável em Artois e de velar, no local, pela execução do tratado. Roberto assistiu, sorrindo, à partida dos marechais.

Seu cálculo era simples. Vindo render-se só, evitara que suas tropas fossem destruídas. Fiennes, Souastre, Picquigny e outros iam continuar uma guerrazinha de perturbações e desgaste. O regente não poderia armar todas as quinzenas uma expedição daquelas: o Tesouro não agüentaria tal coisa. Roberto tinha, pois, vários meses de tranqüilidade diante de si. No momento, preferia voltar para Paris, e achava muito oportuna a ocasião que lhe forneciam para essa volta. Pois podia muito bem acontecer que dentro em breve não houvesse mais regente, nem houvesse mais Mafalda.

Com efeito — e era essa a verdadeira razão de seu sorriso — Roberto tinha tornado a encontrar a dama de Fériennes, fornecedora de venenos da Condêssa de Artois. Encontrara-a, mandando seguir dois espiões do regente, que também a procuravam. Isabel de Fériennes e seu filho tinham sido presos quando vendiam o material necessário a um encantamento. O pessoal de Roberto suprimira os espiões do regente, e agora a feiticeira, depois de ter ditado bela e completa confissão, estava guardada num castelo de Artois.

“Terás motivo para ficar bem contente, meu primo”, dizia consigo Roberto, olhando para Filipe, “quando eu mandar João de Varennes trazer aquela mulher, para apresentá-la no conselho dos pares, a fim de que diga como mandaste assassinar teu irmão! E nem mesmo o teu caro papa poderá fazer coisa alguma nesse caso!”

Durante toda a viagem o regente conservou Roberto a seu lado; nas paradas comiam na mesma mesa, e à noite, nos conventos ou nos castelos reais, dormiam em quartos contíguos, e os numerosos servidores do regente cercavam Roberto, trazendo-o sob estreita vigilância. Mas comendo, bebendo e dormindo junto do inimigo, não se pode evitar certos sentimentos humanos com relação a ele. Os dois primos jamais haviam conhecido semelhante intimidade. O regente não parecia ver com particular rigor a pessoa de Roberto, pelas fadigas e despesas que lhe ocasionara, e dava, mesmo, a impressão de divertir-se com os pesados gracejos do gigante, e com seus ares de falsa franqueza.

“Um pouco mais, e ele vai gostar realmente de mim, o velhaco!”, dizia Roberto consigo. “Como eu o engano, como eu o engano bem!”

Na manhã do dia 11 de novembro, quando chegavam à porta de Paris, Filipe parou subitamente seu cavalo.

— Meu bom primo, há dias, em Amiens, deste-vos como garantia da entrega a meus marechais de todos os castelos. Ora, venho de saber, com desgosto, que vários de vossos amigos não obedecem ao tratado e recusam-se a entregar as cidadelas que ocupam.

Roberto sorriu, e fêz um gesto de impotência com as mãos.

— Ficastes como penhor do cumprimento — repetiu Filipe.

— Pois sim, meu primo, assinei tudo quanto desejastes.

Mas como me privastes de todo poder, os vossos marechais é que devem impor a obediência.

O regente afagou, pensativamente, a nuca de seu cavalo.

— É verdade, Roberto — disse ele — que costumais chamar-me, freqüentemente, Filipe Portas-Fechadas?

— É verdade, meu primo, é verdade — disse o outro, rindo. — Ao que parece, sabeis servir-vos muito bem das portas para governar.

— Pois bem, meu primo — disse o regente — ireis, então, instalar-vos na prisão do Châtelet, e ali ficareis até que o último castelo de Artois me seja entregue.

Roberto, pela primeira vez depois de sua rendição, empalideceu um tanto. Todo o seu plano ruía, e a dama de Fériennes não lhe poderia servir tão cedo.

                 Do Luto à Sagração

 

                             UMA AMA PARA O REI

JOÃO I, rei da França, filho póstumo de Luís X, o Turbulento, e da Rainha Clemência da Hungria, nasceu na noite de 13 para 14 de novembro de 1316, no castelo de Vincennes.

A notícia foi imediatamente proclamada, e os senhores vestiram seus trajos de seda. Nas tavernas, os vagabundos e os bêbados, para os quais todos os acontecimentos eram pretextos para beber, começaram desde meio-dia a embriagar-se e vociferar. E os negociantes de objetos finos, ourives, comerciantes de sedas, fabricantes de lãs preciosas e passamanarias, vendedores de especiarias, de peixes raros e de produtos de ultramar, esfregaram as mãos, calculando as despesas que os regozijos iriam acarretar.

As ruas sorriam. As pessoas abordavam-se, dizendo: — Então, meu compadre, temos um rei!

Os parisienses sentiam-se animados, e as mulheres de vida airada, de cabelos louros, bem cedo se arranjaram naquele dia, apesar do vento que se metia em corrente, por trás de Notre-Dame, nas sórdidas vielas onde um edital de São Luís as havia confinado.

Na hospedaria do convento das Clarissas, Maria de Cressay, quatro dias antes, tinha dado à luz um meninozinho, que pesava bem suas oito libras, prometendo ser tão louro quanto a mãe, e que mamava, de olhos fechados, com a voracidade de um cãozinho recém-nascido.

A todo o momento, noviças encapuçadas de branco entravam na cela de Maria para contemplar-lhe o rosto radioso enquanto aleitava o filho, para olhar aquele seio róseo, abundante, florescente, para admirar, elas que estavam destinadas a uma virgindade definitiva, o milagre da maternidade representado naquela mulher cheia de vida.

Pois se acontecia, às vezes, que uma freira pecasse, isso não se dava tão freqüentemente como o asseguravam os verse-j adores em suas canções, e um recém-nascido no convento das Clarissas não era, apesar de tudo, coisa comum.

Reinava grande animação na casa, naquele dia, pois o esmoler havia comunicado o nascimento do rei. A alegria da cidade penetrava até mesmo na clausura.

— O rei chama-se João, como meu filho — dizia Maria.

Via naquilo um presságio feliz. Toda uma geração iria nascer e receber o nome de batismo do rei, tanto mais atraente quanto era novo para a monarquia. A todos os pequenos Filipes, a todos os pequenos Luises, sucederia uma infinidade de pequenos Joões, através do reino. “O meu é o primeiro”, pensava Maria.

O precoce crepúsculo do outono começava a descer, quando uma jovem freira entrou na cela:

— Dama Maria — disse ela — a madre abadêssa manda chamar-vos ao parlatório. Alguém vos procura.

— Quem é?

— Não sei, não vi. Mas penso que ides partir.

O sangue subiu às faces de Maria.

— É Guccio! É Guccio! É o pai... — explicou às noviças. — É meu esposo que nos vem buscar, com certeza.

Fechou a abertura de seu corpinho, enrolou vivamente os cabelos, olhando-se na vidraça da janela que lhe servia de escuro espelho, colocou o manto sobre os ombros, hesitou um instante diante do berço colocado no chão. Desceria com a criança, para oferecer imediatamente a Guccio a maravilhosa surpresa?

— Vede como dorme, o anjinho — disseram as noviças. -— Não o acordeis, que poderia resfriar-se. Correi: nós tomaremos conta dele.

— Não o tireis do berço, não toqueis nele! — recomendou Maria.

Descendo a escada, já ia torturada pela inquietação maternal. “Contanto que não comecem a brincar com ele e não o deixem cair!” Mas seus pés voavam para o parlatório, e ela admirava-se de sentir-se tão leve.

Na sala branca, decorada apenas com um grande crucifixo e dois círios que duplicavam as formas de sombras imensas, a madre abadêssa, com as mãos cruzadas dentro das mangas, falava com a Senhora de Bouville.

Vendo a mulher do curador, Maria sentiu mais que uma decepção: teve a certeza imediata, inexplicável, absoluta, de que aquela pessoa seca, de rosto cortado por rugas verticais, lhe trazia desgraça.

Outra que não fosse Maria contentar-se-ia em pensar que não gostava da Senhora de Bouville; mas em Maria de Cressay todos os sentimentos tornavam-se apaixonados, e ela dava a suas simpatias ou a suas aversões a força de sinais do destino. “Estou certa de que vem me maltratar”, disse a moça consigo.

Com seu olhar agudo, sem benevolência, a senhora de Bouville examinava-a dos pés à cabeça.

— Há apenas quatro dias destes à luz — exclamou — e estais viçosa e rosada como uma eglantina! Eu vos felicito, minha bela, pois já pareceis disposta a recomeçar. Deus, na verdade, trata com muita misericórdia aos que desprezam seus mandamentos e parece reservar as provas para as mais merecedoras. Pois acreditais, ma mère — continuou a Senhora de

Bouville, voltando-se para a abadêssa — que nossa pobre rainha teve dores durante trinta horas? Seus gritos ainda ressoam nos meus ouvidos. O rei apresentou-se de nádegas, e foi preciso que o retirassem a ferros. Por pouco não morria, e a mãe também. Foi o desgosto sofrido pela rainha com a morte do esposo que causou isso tudo, e para mim, considero milagre que a criança tenha chegado a nascer. Mas quando o destino quer, é preciso confessar que tudo corre mal! Eudelina, a roupeira... sabeis muito bem...

A abadêssa confirmou discretamente, com um movimento de cabeça. Mantinha no convento, entre as pequenas noviças, uma menina de onze anos que era filha natural do Turbulento e de Eudelina.

— ... ela ajudava muito a rainha, e Madame Clemência queria-a constantemente à sua cabeceira — continuou a Senhora de Bouville. — Pois bem! Eudelina partiu um braço, caindo de um escabêlo e tiveram que levá-la para o Hospital. E agora, para completar, também a ama que tinham escolhido, e que há uma semana estava à espera, viu seu leite secar de repente. Fazer-nos isso em semelhante ocasião! Pois a rainha, é evidente, não se acha em condições de amamentar: está tomada de febre. Meu pobre Hugo vira, revira, esfalfa-se, e não sabe como fazer, pois esses negócios não são para os homens. Quanto ao sire de Joinville, que não tem mais vista alguma nem qualquer resto de memória, tudo quanto se pode desejar a seu respeito é que não expire em nossos braços. Em outras palavras, ma mère, estou sozinha para providenciar tudo.

Maria de Cressay perguntava-se por que a tornavam assim confidente dos dramas reais, quando a Senhora de Bouville, continuando sua tagarelice, disse, aproximando-se dela:

— Felizmente, tenho cabeça e lembrei-me, a propósito, desta moça que trouxe para cá, e que já devia ter tido seu filho... Sem dúvida amamentais bem e vosso filho prospera a olhos vistos, não é verdade?

Parecia censurar à jovem mãe sua boa saúde.

— Vejamos isso de mais perto — acrescentou.

E com mão prática, como se sopesasse frutas no mercado, apalpou os seios de Maria. Esta teve um movimento de repulsa que a fêz dar um salto para trás.

— Podeis muito bem amamentar dois — disse a Senhora de Bouville. — Vinde, pois, comigo, minha boa pequena, para dar vosso leite ao rei.

— Não posso, Madame! — exclamou Maria, antes mesmo de saber como poderia justificar sua recusa.

— E por que não o poderíeis? Por causa de vosso pecado?

Sois ainda assim de família nobre e, depois, esse pecado não impede que sejais rica de leite. Será uma forma de vos redimirdes um pouco.

— Eu não pequei, Madame, eu sou casada!

— Sois a única a afirmar tal coisa, minha pobre pequena!

Antes de mais nada, se fósseis casada, não estaríeis aqui! E, aliás, a questão não é essa. Precisamos de uma ama...

— Não posso, porque justamente espero meu esposo que deve vir buscar-me. Êle mandou-me dizer que o papa prometeu-lhe ...

— O papa!... O papa!... — exclamou a mulher do curador. — Mas ela perdeu o juízo, por minha palavra! Pensa que está casada, pensa que o papa está se preocupando com ela... Cessai de nos contar vossas tolices e não blasfemeis contra o nome do nosso Santo Padre. Vireis para Vincennes imediatamente.

— Não, Madame, não irei — replicou Maria, com obstinação.

A cólera subiu à cabeça da pequena Senhora de Bouville, que segurou Maria pelo alto de seu vestido e começou a sacudi-la.

— Vejam só a ingrata! Dá-se ao deboche, deixa-se engravidar! Cuidamos dela, evitamos que caia nas mãos da justiça, colocamo-la no melhor convento, e quando vimos pedir-lhe que sirva de ama ao rei da França, a sirigaita recalcitra! Que boa súdita temos! Compreendeis que vos oferecem uma honra, pela qual as maiores damas do reino se bateriam?

— Ora, Madame! — respondeu-lhe Maria, em pleno rosto.

— Por que não vos dirigis, então, a essas grandes damas que são mais dignas do que eu?

— Ë que não pecaram no momento oportuno, as tolas!

E, aliás, por que estou me dando ao trabalho de responder?

Já falamos bastante, tratai de seguir-me.

Se o tio Tolomei ou o Conde de Bouville em pessoa, tivessem vindo fazer a Maria de Cressay o mesmo pedido, ela aceitaria segui-los sem dúvida alguma. Seu coração era generoso e a jovem ter-se-ia oferecido para amamentar qualquer criança, num momento de aflição. Com maiores razões, portanto, amamentaria o filho da rainha. O orgulho, o interesse também, levariam-na a isso tanto quanto a bondade. Ama do rei, sendo Guccio donzel do papa, todas as suas dificuldades seriam anuladas e teria fortuna feita. Mas a mulher do curador não soubera agir com inteligência. Porque a tratavam, não como uma mãe feliz, mas como uma delinqüente, não como uma mulher digna, mas como uma serva, porque continuava a ver na Senhora de Bouville uma mensageira da má sorte, Maria esquecia-se de pensar e obstinava-se. Seus grandes olhos azul-escuros brilhavam de mêdo e de indignação.

— Conservarei meu leite para meu filho — disse.

— É o que vamos ver, malvada! Pois que não obedeceis espontaneamente, vou chamar os escudeiros que me esperam e que vos levarão à força.

A madre abadêssa interveio. O convento era um asilo e não podia aceitar a idéia de que o violassem.

— Não vos asseguro que aprove a conduta da minha parente — disse ela — mas Maria foi entregue à minha guarda...

— Por mim, ma mère! — exclamou a Senhora de Bouville.

— Não é uma razão para vir constrangê-la, dentro destas paredes. Maria só sairá por sua livre vontade, ou por ordem da Igreja.

— Ou por ordem do rei! Porque sois um convento real, ma mère, não vos esqueçais disso. Estou agindo em nome de meu esposo. Se quereis uma ordem do condestável, que é tutor do rei e que acaba de voltar para Paris, ou então uma ordem do próprio regente, messire Hugo irá pedir que a assinem. Isso nos fará perder três horas, mas serei obedecida.

A abadêssa tomou a Senhora de Bouville à parte e deu-lhe a conhecer que o que Maria dissera a propósito do papa não era inteiramente falso.

— E que me importa! — disse a Senhora de Bouville. — É a vida do rei que devo assegurar e só disponho dela.

Saiu, chamou seus homens de escolta e mandou que agarrassem a rebelde.

— Sois testemunha, Madame — disse a abadêssa — que não estou de acordo com esse rapto.

Maria, debatendo-se através do pátio, entre dois escudeiros que a arrastavam, gritava:

— Meu filho! Quero meu filho!

— É verdade — disse a Senhora de Bouville. — Precisamos deixá-la apanhar o filho. Rebelando-se dessa maneira levou-nos a esquecer de tudo.

Alguns minutos depois, Maria, tendo reunido rapidamente suas roupas, e mantendo o recém-nascido apertado contra o peito, cruzava soluçando os portais da hospedaria.

Fora, duas liteiras atreladas esperavam.

— Vejam! — disse a Senhora de Bouville. — Viemos buscá-la de liteira, como se fosse uma princesa, e ela grita e põe mil embaraços.

Envolvida pela noite, sacudida pelo trote das mulas durante mais de uma hora, numa caixa de madeira e tapeçaria com cortinas que se sacudiam e que deixavam entrar o frio de novembro, Maria dava graças a seus irmãos por terem-na obrigado a vestir o grande manto quando partira de Cressay. Sofrerá bastante calor, sob o tecido pesado, chegando a Paris! “Então, jamais sairei de lugar algum sem desgraças e sem lágrimas?”, dizia consigo mesma. “Que terei feito para que se encarnicem assim contra mim?”

O recém-nascido dormia, envolto nas grandes pregas do manto. Sentindo aquela pequena vida, inconsciente e tranqüila, aninhada no côncavo de seu peito, Maria, lentamente, recuperava a razão. Ia ver a Rainha Clemência, havia de falar-lhe de Guccio. Mostrar-lhe-ia o relicário. A rainha era jovem, bela, compassiva para com os infortúnios... “A rainha... é o filho da rainha que vou amamentar!”... pensava Maria, compreendendo, enfim, tudo quanto havia de estranho e inesperado naquela aventura que a autoridade agressiva da Senhora de Bouville só lhe mostrara sob um aspecto odioso...

O ranger de uma ponte levadiça que baixavam, o passo surdo dos cavalos sobre a madeira dos pranchões, depois o estrépito das ferraduras sobre as pedras de um pátio... Maria foi convidada a descer, passou entre soldados armados, seguiu um corredor de pedra, mal iluminado, viu aparecer um homem gordo de cota de malhas, no qual reconheceu o Conde de Bouville. Em torno de Maria cochichavam sem cessar e ela ouviu a palavra “febre” pronunciada muitas vezes. Fizeram-lhe sinal para caminhar na ponta dos pés, e um reposteiro foi levantado.

Apesar da doença, os costumes, na câmara da parturiente, tinham sido respeitados. Mas, como a estação das flores já havia passado, pelo quarto só se via uma tardia folhagem amarelada, que começava a apodrecer sob as pisaduras. Em torno do leito, cadeiras haviam sido dispostas para os visitantes que não viriam. Uma parteira esfarelava entre os dedos algumas ervas aromáticas. Na lareira, sobre tripés de ferro, ferviam decoctos acinzentados. O aposento estava iluminado apenas pelas chamas da lareira e pela lamparina de azeite, colocada sobre o leito.

Do berço, instalado a um canto, não vinha ruído algum.

A Rainha Clemência jazia sobre a cama, deitada de costas, as coxas levantadas pela dor, sob os lençóis. As maçãs do seu rosto estavam vermelhas, os olhos brilhantes. Maria viu, principalmente, a imensa cabeleira dourada, espalhada sobre os travesseiros, e aquele olhar ardente, que não parecia ver o que contemplava.

— Tenho sede... muita sede... — gemia a rainha.

A parteira cochichou para a Senhora de Bouville:

— Teve tremores por mais de uma hora, e seus dentes castanholavam. Seus lábios ficaram roxos, como no rosto dos mortos. Pensamos que fosse morrer. Fizemos-lhe uma boa fricção em todo o corpo, e então a pele começou a ferver, como estais vendo. Suou tanto que será preciso mudar-lhe os lençóis.

Mas não encontramos as chaves da rouparia, que estavam com Eudelina.

— Eu vo-las darei — respondeu a Senhora de Bouville.

Levou Maria para um quarto vizinho, onde o fogo também estava aceso.

— Ficareis instalada aqui — disse.

Trouxeram o berço real. Entre todas as roupas que o envolviam, mal se via o rei. Tinha o nariz minúsculo, pálpebras espessas e fechadas, e dormitava, franzino, em plácida imobilidade. Era preciso chegar muito perto dêle, para ter a certeza de que respirava. De vez em quando fazia uma leve careta, uma contração dolorosa que dava algum relevo a seus traços.

Diante daquele pequeno ser, cujo pai morrera, cuja mãe talvez fosse morrer, e que dava ele próprio tão poucos sinais de vida, Maria de Cressay sentiu-se tomada de intensa piedade. “Eu o salvarei, eu farei com que fique grande e forte!”, pensou.

E como não havia senão um berço, deitou seu próprio filho ao lado do rei.

 

                         DEIXEMOS DEUS AGIR

HÁ VINTE e quatro horas que a Condêssa Mafalda estava tomada de cólera.

Diante de Beatriz d’Hirson, que a ajudava a vestir-se para o batismo do rei, deixava explodir sua raiva e seu despeito.

— Quem poderia acreditar, sabendo do lastimoso estado de Clemência, que ela chegaria ao termo de sua gravidez? Outras mais fortes abortam antes. Mas, não; ela agüentou seus nove meses! A criança bem podia ter nascido morta, não podia? Qual! seu rebento vive. Podia, ao menos, ser uma menina, não é verdade? Mas, não; havia de ser um rapaz! Valeu a pena, minha pobre Beatriz, termos feito tanto e corrido tão grandes perigos, que aliás ainda não estão afastados, para sermos ludibriadas dessa maneira?

Pois Mafalda estava, agora, profundamente convencida de ter assassinado o Turbulento para dar a seu genro e à sua filha a coroa da França. Quase lamentava não ter matado a esposa junto com o marido, e todo o seu ódio voltava-se agora para o recém-nascido que ainda não chegara a ver, para o bebê do qual seria madrinha dentro de poucos minutos, e cuja existência mal desabrochada punha um freio às suas ambições.

Poderosa entre os poderosos, riquíssima, despótica, Mafalda tinha verdadeira natureza de criminosa. O assassínio era o seu meio predileto para torcer o destino em seu proveito: gostava de afagar o projeto, aspirar-lhe a lembrança; dali retirava a excitação dos terrores, os deleites da astúcia, a alegria dos secretos triunfos. Se um primeiro assassinato não tivera todo o resultado com que contara, começava a acusar a sorte de injustiça e a tomar-se de piedade por si própria, procurando muito naturalmente a nova cabeça que se erguia diante dela, para abatê-la.

Beatriz d’Hirson, adiantando-se aos pensamentos da condêssa, disse lentamente, baixando os cílios longos:

— Guardei, Madame, um pouco daquela boa farinha que vos serviu tão bem para os confeitos do rei, nesta primavera.

— Fizeste bem, fizeste bem — respondeu Mafalda. — Mais vale estar sempre prevenida: temos tantos inimigos!

Beatriz, embora tivesse boa altura, levantou os braços para arranjar as fitas sob o queixo da condêssa e colocar-lhe o manto sobre os ombros.

— Tereis a criança nos braços, Madame. Talvez não haja tão cedo outra ocasião... — disse. — É um pó, apenas, como sabeis, e mal se pode percebê-lo sobre o dedo.

Falava com voz suave, tentadora, como se se referisse a uma gulodice.

— Ah, não! — exclamou Mafalda. — Durante um batismo, não. Isso nos traria desgraça!

— E por quê? Seria uma alma sem pecado que devolveríeis ao céu.

— E depois, sabe Deus como meu genro receberia a coisa. Não me esqueci ainda da sua fisionomia, quando o esclareci sobre o fim de seu irmão, e a espécie de frieza com que me trata depois disso... Há muita gente, gente demais, acusando-me em voz baixa. Um rei por ano é o bastante. Suportemos, por ora, esse que acaba de nascer.

Foi uma cavalgada mesquinha, quase clandestina, a que partiu para Vincennes para fazer de João I um cristão. E os barões, que haviam preparado seus trajos de gala, esperando o convite para uma grande cerimônia, ficaram decepcionados.

A doença da rainha, o fato de ter o nascimento ocorrido fora de Paris, a névoa do inverno e, enfim, a pouca alegria que o regente experimentava pelo fato de ter um sobrinho, tudo se conjugava para que o batismo fosse despachado rapidamente, sem formalidades.

Filipe chegou a Vincennes acompanhado de sua esposa Joana, Mafalda, Gaucher de Châtillon e alguns escudeiros encarregados de segurar os cavalos. Não se dera ao trabalho de prevenir o resto da família. Aliás, Valois percorria seus feudos para conseguir dinheiro. Evreux conservara-se em Amiens para terminar a questão de Artois. Quanto a Carlos de La Marche, Filipe tivera com ele, na véspera, violenta altercação. La Marche, em honra do nascimento do rei, pedira a seu irmão o pariato, assim como um acréscimo de seu apanágio e de suas rendas.

— Ora, meu irmão! — respondera Filipe. — Eu sou apenas o regente, e só o rei poderá dar-vos o pariato... quando atingir a maioridade.

As primeiras palavras de Bouville, acolhendo o regente no antepátio do solar, foram para perguntar:

— Ninguém tem armas, Monsenhor? Ninguém traz adaga, estilete, ou misericórdia*?

Não se podia saber se essa dúvida referia-se ao pessoal da escolta ou aos próprios padrinhos.

— Não tenho o hábito, Bouville — respondeu o regente — de me fazer seguir por escudeiros armados.

Bouville, tímido e obstinado ao mesmo tempo, pediu aos escudeiros que permanecessem no primeiro pátio. Aquele zelo na prudência começou a agastar o regente.

— Aprecio, Bouville — disse ele — o cuidado com que velastes pelo ventre da rainha. Não sois mais curador, entretanto, e a mim próprio e ao condestável corresponde, agora, velar pelo rei. Deixamos-vos o encargo, mas não deveis abusar dele.

— Monsenhor! Monsenhor! — balbuciou Bouville — não tinha a intenção de ofender-vos. Mas dizem tanta coisa no reino... Enfim, quero que vejais quanto sou fiel à minha tarefa e como compreendo a honra que representa para mim.

Era pouco hábil na dissimulação e não podia deixar de olhar meio de lado para Mafalda, baixando imediatamente os olhos.

“Positivamente, todos e cada um suspeitam e desconfiam de mim”, pensou a condêssa.

Joana de Poitiers fingia nada perceber. Gaucher de Châtillon, que estava fora do assunto, rompeu o constrangimento, dizendo:

— Vamos, Bouville, não nos deixeis gelar aqui. Entremos, pois.

Foram para junto da cabeceira da rainha, e as notícias dadas pela Senhora de Bouville foram bastante alarmantes: a febre continuava a devorar a doente, que se queixava de atrozes dores de cabeça, e era a todo o momento sacudida pelas náuseas.

— Seu ventre recomeça a estufar, como se ainda não tivesse dado à luz — explicou Madame de Bouville. — Não consegue dormir, suplica que mandem parar os sinos que lhe soam nos ouvidos, e fala-nos sem parar, como se não se dirigisse a nós, mas a sua avó, Madame de Hungria, ou ao Rei Luís, seu falecido esposo. É uma lástima ouvi-la perder assim a razão, sem conseguir que se cale.

Vinte anos de ofício de camareiro junto a Filipe, o Belo, tinham dado ao Conde de Bouville longa experiência das cerimônias reais. Quantos batismos já não tinha organizado?

Os objetos rituais foram trazidos aos presentes. Bouville e os dois gentis-homens da guarda prenderam ao pescoço compridas toalhas brancas, cujas pontas mantinham estendidas diante de si para cobrir, um, a bacia cheia de água benta, outro, a bacia vazia e, o terceiro, a taça que continha o sal.

A parteira que trouxera a criança ao mundo tomou a coifa de batismo com que se cobriria a cabeça da criança depois da unção.

Depois, adiantou-se a ama, trazendo ao colo o rei.

“Oh! Que bela moça!”, pensou o condestável.

A Senhora de Bouville tinha encontrado para Maria um vestido de veludo rosa, com um pouco de pele na gola e nos punhos, e fizera a jovem ensaiar longamente os gestos que teria de fazer. O bebê estava enrolado num manto duas vezes maior do que ele próprio, sobre o qual tinham pousado um véu de seda violeta, que tombava até o chão como uma cauda.

Dirigiram-se todos para a capela do castelo. Escudeiros abriam a marcha, levando círios acesos. O senescal de Joinville vinha por último, amparado e ainda assim cambaleante. Apesar disso, saíra um pouco de seu torpor habitual, pois o recém--nascido chamava-se João, como ele próprio.

A capela estava forrada com tapeçarias e a pedra da pia batismal fora ornamentada com veludo violeta. Ao lado, encontrava-se uma mesa onde tinham colocado um forro de menu-vair recoberto com uma toalha fina. Sobre a toalha, almofadas de seda. Algumas estufas com brasas não bastavam para dissipar a úmida friagem.

Maria depôs a criança sobre a mesa, para despi-la. Atenta, a fim de não errar, tinha o coração batendo e mal conseguia distinguir os rostos em torno dela, de tal forma sentia-se emocionada. Jamais imaginara que ela, moça expulsa da casa de sua família, seria indicada para representar papel tão importante no batismo de um rei, entre o regente da França e a Condêssa d’Artois. Deslumbrada pela modificação da sorte, estava agora cheia de gratidão pela Senhora de Bouville, e já lhe pedira desculpas pela insubmissão da véspera.

Desenrolando as faixas, ouviu o condestável perguntar qual era o seu nome e de onde vinha: sentiu-se corar.

O capelão da rainha soprara quatro vezes sobre o corpo do recém-nascido, como nos quatro braços de uma cruz, para tirar dele o demônio, pela virtude do Espírito Santo. Depois, cuspindo sobre o próprio dedo indicador, passara-lhe a saliva nas narinas e nas orelhas, para significar que ele não devia ouvir as vozes do diabo, nem respirar as tentações do mundo e da carne.

Filipe e Mafalda levantaram o reizinho, um pelas pernas e a outra pelos ombros. O regente, com seus olhos míopes, observava com insistência o minúsculo sexo da criança, aquele verme rosado que punha por terra toda a sua inteligente combinação sucessória, aquele símbolo irrisório da lei dos varões, aquele ínfimo e intransponível obstáculo entre ele a coroa.

“Seja como fôr”, pensava Filipe, para consolar-se, “serei regente durante quinze anos. Em quinze anos muitas coisas podem acontecer: eu próprio estarei vivo, dentro de quinze anos? E esta criança viverá até então?”

Mas regência não é realeza.

A criança conservara-se bastante calma e mesmo sonolenta, durante os ritos preliminares. Não fêz ouvir sua voz senão quando o mergulharam inteiramente na água... Nessa ocasião, porém berrou francamente, quase sufocando, e suas lágrimas misturaram-se à água do batismo. Por três vezes, enquanto os outros padrinhos e madrinhas, Gaucher, Joana, os Bouville, o senescal, estendiam suas mãos sobre o pequeno corpo nu, foi mergulhado, a princípio com a cabeça voltada para o oriente, depois para o norte, depois para o sul, a fim de representar o desenho da Cruz (27).

Saindo do banho glacial, a criança acalmou-se e aceitou pacificamente o Santo Crisma com que lhe ungiram a fronte. Colocaram-no sobre as almofadas, e Maria de Cressay começou a secá-lo, enquanto os presentes juntavam-se mais perto da estufa cheia de brasas.

Subitamente, a voz de Maria de Cressay encheu a capela:

— Senhor! Senhor! Êle está morrendo! — gritou ela.

Todos se atiraram para a mesa. O rei-bebê tinha tomado uma coloração azulada, que escurecia de instante a instante, chegando quase a tornar-se negro. Tinha o corpo rígido, os braços crispados, a cabeça torcida, e os olhos revirados mostravam apenas a esclerótica.

Mão invisível sufocava aquela vida sem consciência, rodeada pelos círios vacilantes e pelas frontes ansiosamente inclinadas.

Mafalda ouviu uma voz murmurar:

— Foi ela.

Levantou os olhos e encontrou os do casal de Bouville.

“Quem terá dado o golpe, para me acusar?”, perguntou a si própria.

Entrementes, a parteira tirara a criança das mãos trêmulas de Maria e esforçava-se para reanimá-la.

— Não é certo que vá morrer, não é certo — disse.

O recém-nascido conservou-se assim rígido, esticado e escuro, por perto de dois minutos que pareceram infinitos. Depois, bruscamente, foi sacudido por convulsões violentas, projetando a cabeça em todos os sentidos. Os membros retorciam--se e jamais seria possível acreditar que tal força pudesse percorrer corpo tão franzino. O capelão persignou-se, como se estivesse em presença de manifestação diabólica, e começou a recitar a oração dos agonizantes. A criança careteava, babava: seu aspecto enegrecido desaparecera, para dar lugar a uma palidez gelada, não menos assustadora. Por um momento pareceu acalmar-se, urinou no vestido da parteira, e pensaram que estivesse salva. Depois, imediatamente, a cabeça dela tombou. Ficou mole, inerte, e dessa vez todos julgaram, realmente, que tivesse morrido.

— Estava justamente no momento de ser batizado,— disse o condestável.

Filipe de Poitiers tirava de suas mãos as gotas quentes, tombadas dos círios.

Subitamente, o pequeno cadáver agitou os pés, soltou uns gritos, fracos ainda mas quase alegres, e seus lábios animaram-se como um movimento de sucção. O rei estava vivo e queria mamar.

— O demônio debateu-se bem, antes de lhe sair do corpo — disse o capelão.

— Não é freqüente — disse a parteira — que as convulsões tomem uma criança assim tão cedo. Isso foi porque nasceu com a ajuda de ferro: é coisa que acontece, às vezes. Depois, faltou-lhe o leite da ama durante muitas horas...

Maria de Cressay sentiu-se culpada. “Se em lugar de discutir com a Senhora de Bouville eu tivesse vindo imediatamente ...”, pensou a moça.

Ninguém, evidentemente, procuraria a razão daquilo na imersão em água fria, nem faria alusão à boa hereditariedade da família, aos capengas, aos dementes, aos epilépticos que floresciam naquela gloriosa árvore.

As razões apresentadas pela parteira e, particularmente, a pressão exercida pelos fórceps sobre o cérebro da criança eram, aliás, suficientes.

— Acha que ele poderá sofrer outros ataques? — perguntou Mafalda.

— É muito de temer, Madame — respondeu a parteira. •—-Nunca se sabe quando vai vir esse mal, nem como termina.

— Pobre pequeno! — falou Mafalda, em voz bem alta.

Levaram o rei ao castelo e separaram-se sem alegria.

Filipe de -Poitiers não descerrou os lábios durante todo o caminho da volta. Chegando a Paris, deixou sua sogra segui-lo e fechar-se com ele.

— Por pouco, ainda agora, serieis rei, meu filho — disse-lhe ela.

Filipe não respondeu.

— Na verdade, depois do que vimos, ninguém irá espantar-se se aquela criança morrer por estes dias — continuou.

O regente continuava a calar-se.

— Se ele viesse a desaparecer, serieis, todavia, obrigado a esperar a maioridade de Joana de Navarra.

— Ah, não, minha mãe. Ah, não! — respondeu viva mente Filipe. — Não mais estamos ligados, de agora em diante, pelo regulamento de julho. A sucessão de Luís está fechada.

Será a do pequeno João que se abrirá, então. Entre meu irmão e mim terá havido um rei, e eu serei o herdeiro de meu sobrinho.

Mafalda olhou para ele com admiração: “Êle maquinou isto durante o batismo!”

— Sempre sonhastes ser rei, Filipe, confessai-o — disse ela. — Quando éreis criança, já cortáveis galhos para fabricar cetros!

Êle levantou um pouco a cabeça e sorriu para a sogra, deixando que se passasse um momento de silêncio. Depois, tornando a mostrar-se grave:

— Já sabeis, minha mãe, que a dama de Fériennes desapareceu de Arras, e também os homens que eu tinha enviado para raptá-la e pô-la em condições de não poder falar? Ao que parece, ela deve estar sendo mantida em segredo em qualquer dos castelos de Artois, e dizem que os vossos barões, naquela região, gabam-se disso.

Mafalda pôs-se a imaginar o que significaria tal advertência. Quereria Filipe apenas preveni-la dos perigos que corria? Ou provar-lhe que cuidava dela? Seria uma forma de confirmar a proibição que lhe fizera de recorrer ao veneno? Ou, pelo contrário, fazendo alusão à fornecedora, dava-lhe a entender que ela podia considerar-se com as mãos livres?

— Novas convulsões poderiam bem levá-lo — insistiu Mafalda.

— Deixemos Deus agir, minha mãe, deixemos Deus agir — disse Filipe, finalizando a conversa.

“Deixar Deus agir... ou deixar-me agir?”, pensou a Condêssa d’Artois. “Êle é prudente, a ponto de evitar enodoar a alma, mas compreendeu muito bem... Aquele grande idiota do Bouville é que me vai dar mais trabalho.”

Desde aquele momento a imaginação dela começou a movimentar-se. Mafalda tinha um crime em perspectiva, e o fato de ser a futura vítima um recém-nascido não deixava de excitar-lhe o espírito, tanto quanto se se tratasse do mais feroz adversário.

Começou uma campanha cuidadosa, pérfida. O rei não nascera viável, dizia a toda a gente, descrevendo, com lágrimas nos olhos, a cena penosa do batismo.

— Pensamos que tivesse morrido ali mesmo, diante de nós, e bem pouco faltou para isso. Perguntei ao condestável, que estava presente, como eu: nunca vi messire Gaucher que, afinal, é tão corajoso, tão forte, empalidecer tanto... Todos, aliás, poderão julgar quanto é fraco o reizinho, quando ele for apresentado aos barões, como manda o costume. Nem mesmo sabemos se já não estará morto e se escondem de nós o fato.

Essa apresentação já está tardando muito, sem que nos dêem uma razão para a demora. Messire de Bouville, ao que parece, opõe-se ao ato, porque a infeliz rainha... Deus a proteja!... estaria passando cada vez pior. Mas, enfim, a rainha não é o rei!

Os familiares de Mafalda, como seu primo Henrique de Sully e seu chanceler Teodorico d’Hirson, ajudavam a espalhar suas palavras.

Os barões começaram a alarmar-se. Com efeito, por que adiavam assim a apresentação solene? O batismo às escondidas, as pretensas recusas de Bouville, o silêncio impenetrável mantida em torno de Vincennes, tudo estava rodeado pelo mistério.

Rumores contraditórios circulavam. O rei estava enfermo e não queriam mostrá-lo. O Conde de Valois fizera raptar e levar secretamente a criança real para Nápoles, a fim de colocá-la em segurança. A rainha não estava doente, tinha voltado para sua pátria.

— Se ele morreu, que no-lo digam — murmuravam alguns.

— O regente fêz com que desaparecesse! — asseguravam outros.

— Que dizeis? O regente não é capaz de uma coisa dessas.

Mas ele desconfia de Valois.

— Não é o regente. É Mafalda. Ela prepara seu golpe e talvez mesmo já o tenha dado. Repete demais que o rei não pode viver!

Enquanto os maus ventos sopravam outra vez sobre a corte, enquanto todos se enervavam em conjeturas odiosas, em suspeitas de infâmias, com as quais cada um sentia-se enlameado, o regente conservava-se impenetrável. Absorvia-se na administração do reino, e se lhe vinham falar em seu sobrinho, respondia falando de Flandres, Artois ou da arrecadação dos impostos.

Na manhã do dia 19 de novembro, crescendo a irritação, numerosos barões e advogados do Parlamento vieram em delegação procurar Filipe, pedindo-lhe com vigor, admoestando-o quase, a fim de que consentisse na apresentação do rei. Os que esperavam resposta negativa ou dilatória já tinham um clarão mau nos olhos.

— Mas eu desejo, Monsenhores, desejo tanto quanto vós essa apresentação — disse o regente. — Fazem oposição até a mim mesmo: é o Conde de Bouville que se recusa ao ato.

Depois, voltando-se para Carlos de Valois, que voltara na antevéspera de seu condado do Maine, onde refizera suas finanças, perguntou-lhe :

— Sois vós, meu tio, pelos interesses de vossa sobrinha a Rainha Clemência, quem impede Bouville de nos mostrar o rei?

O ex-imperador de Constantinopla, não compreendendo de onde lhe vinha aquela arremetida, ficou rubro e exclamou:

— Mas, por Deus misericordioso, meu sobrinho, onde fôstes buscar semelhante coisa? Jamais pedi nem desejei tal atitude!

Nem mesmo vi Bouville, nem dele recebo recados há várias semanas. E voltei a Paris de propósito para essa apresentação.

Gostaria, muito ao contrário, que a fizessem e que voltassem a agir segundo os costumes de nossos pais, coisa que está custando muito.

— Então, Monsenhores — disse o regente — somos todos do mesmo conselho e da mesma vontade... Gaucher! Vós, que estivestes presente ao nascimento de meu irmão... é a madrinha quem deve apresentar a criança real aos barões?

— Sem dúvida, sem dúvida, é a madrinha — respondeu Valois, agastado por terem feito apelo a outra competência sobre um ponto do cerimonial. — Eu estive em todas as apresentações, Filipe: na vossa, que foi pequena, pois éreis o segundo, como na de Luís e em seguida na de Carlos. E meus filhos também foram apresentados, por causa das minhas coroas. Sempre a madrinha.

— Então — disse o regente — vou mandar dizer imediatamente à Condêssa Mafalda que deve assumir a seguir essa responsabilidade e dar ordem a Bouville para nos abrir Vincennes.

Montaremos a cavalo ao meio-dia.

Para Mafalda, era a ocasião esperada. Não quis senão Beatriz para vesti-la, e colocou uma coroa na cabeça. O assassínio de um rei valia bem aquilo.

— Quanto tempo achas que o pó levará para fazer efeito numa criança de cinco dias?

— Isso eu não sei, Madame — respondeu a primeira donzela. — Sobre os cervos de vossos bosques o resultado produziu-se numa noite. O Rei Luís resistiu perto de três dias...

— Terei sempre, como recurso — disse Mafalda — aquela ama que vi outro dia, bela moça, na verdade, mas que se ignora de onde vem e que ninguém sabe quem colocou lá. Os Bouville, sem dúvida...

— Compreendo-vos, Madame — disse Beatriz sorrindo.

— Se a morte não parecer natural, poder-se-ia acusar essa moça e esquartejá-la.

— Minha relíquia, minha relíquia — disse Mafalda inquieta, apalpando o próprio peito. — Ah! sim está aqui, graças a Deus.

Quando saía do quarto, Beatriz murmurou-lhe:

— Cuidado, Madame, não vos assoeis, por distração.

 

                     AS ASTÚCIAS DE BOUVILLE

ACENDEI grandes fogos — ordenava Bouville aos criados. — Que as lareiras ardam até rebentar para que o calor se espalhe pelos corredores.

Ia de aposento em aposento, paralisando o serviço quando pretendia ativá-lo. Corria à ponte levadiça para inspecionar a guarda, mandava espalhar areia nos pátios, ordenava logo depois que a varressem, pois formava lama, vinha verificar fechaduras que não seriam usadas. Toda aquela agitação destinava-se apenas a disfarçar sua própria angústia. “Ela vai matá-lo, ela vai matá-lo”, repetia.

Num corredor esbarrou com sua esposa:

— A rainha? — perguntou.

Tinham administrado os últimos sacramentos a Clemência, poucas horas antes.

Aquela mulher, cuja beleza, em dois reinos, passava por lendária, estava desfigurada, devastada pela infecção. O nariz apertado, a pele amarelada, marcada de placas vermelhas do tamanho de moedas de duas libras, exalava um cheiro horroroso. Sua urina tinha estrias de sangue, e a respiração fazia-lhe cada vez mais penosa. Gemia sob dores intoleráveis, que a atacavam na nuca e no ventre, e estava completamente delirante.

— É uma febre quarta -— disse a Senhora de Bouville. — A parteira assegura que, se ela passar o dia de hoje, poderá salvar-se. Mafalda ofereceu-se para mandar o Senhor de Pavilly, seu médico pessoal (28).

— De forma nenhuma, de forma nenhuma — exclamou Bouville. — Não deixemos ninguém que pertença a Mafalda introduzir-se aqui.

A mãe moribunda, a criança ameaçada e mais de duzentos barões que iam chegar, com suas escoltas! Que bela, desordem haveria logo mais, e como a ocasião facilitaria o crime!

— A criança não pode ficar no quarto vizinho ao da rainha — falou Bouville. — Ali não posso mandar entrar homens armados em quantidade suficiente para velar por ela, e é muito fácil alguém insinuar-se atrás das tapeçarias.

— É tempo de pensarmos nisso. Onde queres pô-la?

— No quarto do rei, onde se pode interditar todas as entradas.

Olharam-se, e tiveram o mesmo pensamento. Era o aposento onde o Turbulento morrera.

— Manda preparar o quarto e ativar o fogo — insistiu Bouville.

— Seja, meu amigo, vou obedecer-te. Mas ainda que pusesses cinqüenta escudeiros em torno do quarto, não poderias impedir que Mafalda leve o rei nos braços, para apresentá-lo, pois ela é a madrinha.

— Estarei perto dela.

— Sim, mas se está resolvida, há de matá-lo sob teu nariz, meu pobre Hugo. E tu nada verás. Uma criança de cinco dias quase não se debate. Ela aproveitará um momento de movimentação para meter-lhe uma agulha na moleira, para dar-lhe veneno a respirar, ou para estrangulá-lo com um cordão.

— Então, que queres que eu faça? — exclamou Bouville.

— Não posso declarar ao regente: “Não queremos que vossa sogra leve o rei porque tememos que ela o mate!”

— Não, não podes fazer isso! Só nos resta pedir por ele a Deus — disse a Senhora de Bouville, afastando-se.

Bouville, desamparado, foi para o quarto da ama.

Maria de Cressay dava de mamar às duas crianças ao mesmo tempo. Tão voraz uma quanto a outra, agarravam-se ao alimento, com seus dedinhos moles, e mamavam ruidosamente. Generosa, Maria dava ao rei o seio esquerdo, que era considerado o mais farto.

— Que tendes, messire? Pareceis tão perturbado — perguntou ela a Bouville.

O homem estava diante dela, apoiado sobre sua espada alta, as mechas brancas e pretas de seu cabelo tombando-lhe nas faces, a pança empurrando a cota de malhas, arcanjo sexagenário incumbido da difícil guarda de uma criancinha.

— É tão fraco, nosso pequenino sire, é tão fraco! — disse, tristemente.

— Mas não, messire, ele se desenvolve bem, pelo contrário Vede, está quase alcançando o meu. E todos esses remédios que me dão, produzem-me um pouco de enjôo, mas parecem fazer bem ao menino (29).

Bouville aproximou sua grande mão, tanada pelas rédeas dos cavalos e pelos punhos das armas, e acariciou cuidadosamente o pequeno crânio onde se formava uma penugem loura.

— É que este não é um rei como os outros... — murmurou.

O velho servidor de Filipe, o Belo, não sabia como expressar o que sentia. Tão longe quanto o podiam levar suas lembranças, e mesmo as lembranças de seu pai, a monarquia, o reino, a França, tudo quanto fora a razão de suas funções e o objeto de seus cuidados, confundia-se numa longa e sólida cadeia de reis, adultos, fortes, vigorosos, exigindo devotamento, dispensando honras.

Durante vinte anos, havia avançado a poltrona onde se sentava um monarca diante do qual a cristandade tremia. Jamais poderia imaginar que a cadeia pudesse, tão depressa, ficar reduzida àquele ínfimo elo rosado, de queixo lambuzado de leite, que com uma só mão seria possível quebrar.

— A verdade — disse — é que ele está se recuperando.

Sem essa marca deixada pelos ferros, e que já se vai apagando, seria preciso olhá-lo de perto para distingui-lo do vosso.

— Oh! não! Messire. O meu é mais pesado. Não é mesmo, João segundo, que és mais pesado?

Corou bruscamente, e explicou:

— Como os dois chamara-se João, eu chamo o meu de João segundo. Talvez não devesse...?

Bouville, com um movimento maquinai de cortesia, acariciou a cabeça do segundo bebê. Seus olhos iam de um ao outro.

Maria pensou que o olhar obstinado do gordo gentil-homem estava sendo atraído pelos seus seios, e corou ainda mais. “Quando, então”, disse consigo mesma, “deixarei de enrubescer a propósito de tudo? Não é coisa desonesta, nem provocante, amamentar!”

Naquele momento a Senhora de Bouville entrou, trazendo as roupas para vestir o rei. Bouville chamou-a a um canto e murmurou-lhe :

— Acho que arranjei um meio.

Conversaram em voz baixa durante alguns instantes. A Senhora de Bouville sacudia a cabeça, refletia, e por duas vezes olhou em direção de Maria.

— Pede-lhe tu mesmo — disse, enfim. — De mim ela não gosta.

— Maria, minha filha, ides prestar um grande serviço ao nosso reizinho, ao qual já vos apegastes — disse ele. — Eis que os barões vêm para que o rei lhes seja apresentado, mas nós tememos o frio que lhe pode fazer mal, por causa das convulsões que teve no dia do batismo. Podeis imaginar o efeito, se ele começasse de repente a torcer-se como naquele dia! Depressa diriam que sua vida é precária, como seus inimigos espalham. Nós, barões, somos homens de guerra, e gostamos que o rei dê provas de robustez, mesmo quando muito jovem. Vosso filho é mais gordo e tem aparência mais bela. Gostaríamos de apresentá-lo em lugar dele.

Maria, um tanto inquieta, olhou para a Senhora de Bouville, que se apressou a dizer:

— Nada tenho com isso. A idéia foi de meu esposo.

— Não será pecado, Messire, fazer isso? — perguntou Maria.

— Pecado, minha filha? Mas é virtude proteger seu rei.

E não será a primeira vez que se apresenta ao povo uma criança sólida em lugar de um herdeiro franzino — assegurou Bouville, mentindo pela boa causa.

— Não poderão perceber?

— E como perceberiam? — exclamou a Senhora de Bouville. — Ambos são louros; nessa idade as crianças se parecem, e se transformam de um dia para o outro. Quem, afinal, conhece o rei? Messire de Joinville nada enxerga, e o condestável entende mais de cavalos do que de recém-nascidos.

— A Condêssa d’Artois não irá espantar-se por não ver mais os sinais dos ferros?

— Sob a touca e a coroa, como poderia vê-los?

— E, além disso, o dia não está muito claro. Vai ser quase necessário acender círios — acrescentou Bouville, designando a janela e a luz tristonha de novembro.

Maria não opôs mais resistência. No fundo, a idéia daquela substituição honrava-a e nos desígnios de Bouville só via as melhores intenções. Teve prazer em vestir seu filho de rei, enfaixando-o com seda, envolvendo-o na capa azul semeada de flôres-de-lis de ouro e pondo-lhe a touca sobre a qual estava cosida minúscula coroa, peças do enxoval que fora preparado antes do nascimento.

— Como vai ficar belo, o meu Joãozinho -— dizia Maria.

— Uma coroa, Senhor! Uma coroa! Terás que devolvê-la ao teu rei, bem o sabes, terás que devolvê-la!

Sacudia o filho, como uma boneca, diante do berço de João I.

— Vede, sire, vede vosso irmão de leite, vosso servidorzinho que vai tomar vosso lugar para que não vos resfrieis!

E pensava : “Quando eu contar tudo isto a Guccio... Quando lhe disser que seu filho é irmão de leite do rei, e que foi apresentado aos barões... Que vida estranha temos, e que eu não trocaria por nenhuma outra! Como fiz bem em amá-lo, ao meu lombardo!”

Sua alegria foi cortada por um longo gemido, que vinha do aposento ao lado.

“A rainha, meu Deus...”, pensou Maria. “Eu me esquecia da rainha!”

Um escudeiro entrou, anunciando que o regente e os barões aproximavam-se. A Senhora de Bouville apoderou-se do filho de Maria.

— Vou passá-lo para o quarto do rei — disse ela — e tornarei a levá-lo para lá, depois da cerimônia, até que a corte parta. Maria, não vos movereis daqui até que eu volte, e se alguém aqui entrar, apesar da guarda que vamos colocar lá fora, afirmai que a criança que fica convosco é a vossa.

 

                         “SIRES, VÊDE O REI!”

OS BARÕES mal conseguiam manter-se todos na grande sala. Falavam, tossiam, mexiam-se e começavam a impacientar-se por terem que ficar tanto tempo de pé. As escoltas haviam invadido os corredores para aproveitar o espetáculo; cachos de cabeças aglomeravam-se em todas as aberturas.

O senescal de Joinville, que só fora despertado no último momento, para poupar-lhe as forças, estava à porta do quarto do rei, em companhia de Bouville.

— Sereis vós quem anunciará, Messire senescal — disse este último. — Sois o mais antigo companheiro de São Luís, e a vós cabe a honra.

Doente de angústia, o rosto inundado de suor, Bouville pensava :

“Eu não poderia... eu não poderia anunciar. Minha voz me trairia!”

Viu surgir no fundo do corredor sombrio a Condêssa Mafalda, gigantesca, parecendo ainda maior por causa da coroa e do pesado manto de aparato. Jamais Mafalda dera-lhe a impressão de ser mais alta, mais terrífica.

Atirou-se para o quarto, e disse à esposa:

— Chegou o momento.

A Senhora de Bouville dirigiu-se ao encontro da condêssa, cujo passo sólido soava pelas lajes, e entregou-lhe o fardo leve.

O lugar estava sombrio: Mafalda não olhou para a criança muito de perto. Achou, simplesmente, que tinha ganho peso, depois do batizado.

— Oh! Nosso reizinho prospera! — disse ela. — Eu vos felicito, minha cara.

— Velamos muitíssimo por ele, Madame, pois não queremos incorrer nas censuras de sua madrinha — respondeu a Senhora de Bouville, com sua melhor voz.

“Era tempo, sem dúvida alguma”, pensou Mafalda. “Êle está passando bem demais.”

A luz que tombava da abertura da porta mostrou-lhe o rosto do antigo camareiro.

— Por que transpirais tanto, Messire Hugo? — perguntou ela. — Não está fazendo calor hoje, afinal.

— É por causa desses fogos todos que mandei acender... Messire regente quase não me deu tempo para preparar tudo.

Olharam-se de frente, cada qual passando, com isso, por um mau momento.

— Vamos, então — disse Mafalda — abri passagem para mim.

Bouville ofereceu seu braço ao velho senescal e os dois curadores dirigiram-se lentamente para a sala grande. Mafalda seguia-os, alguns passos atrás. Era o momento favorável entre todos, e que ela se arriscaria a não encontrar mais. O passo em que o senescal caminhava permitia-lhe usar seu tempo muito bem. Sem dúvida, havia escudeiros e donzelas de serviço encostados ao longo das paredes, e todos eles, tinham, na penumbra, os olhos voltados para a criança. Mas quem se aperceberia de gesto tão breve e tão natural?

— Vamos, apresentemo-nos bem — disse Mafalda ao bebê coroado em seu regaço. — Honremos o reino, e não babemos.

Tirou o lenço de sua esmoleira, e enxugou rapidamente os làbiozinhos molhados. Bouville tinha virado a cabeça para trás, mas o gesto já fora feito, e Mafalda, escondendo o lenço no côncavo da mão, fingia arranjar o manto da criança.

— Estamos prontos — disse ela.

As portas da sala abriram-se e fêz-se silêncio. Mas o senescal não via a porção de rostos que estavam em sua frente.

— Anunciai, Messire, anunciai — disse Bouville.

— A quem devo anunciar? — perguntou Joinville.

— O rei, ora, o rei!

— O rei... — murmurou Joinville. — É o quinto que vou servir, sabeis?

— Sem dúvida, sem dúvida, mas anunciai — repetiu Bouville, nervoso.

Mafalda, atrás deles, enxugava mais uma vez, para maior certeza, a boca do bebê.

Sire de Joinville, tendo clareado a garganta com alguns pigarros, decidiu-se, enfim, a pronunciar, com voz bastante clara e grave:

— Meus Sires, vede o Rei! Vede o Rei, meus Sires!

— Viva o Rei! — responderam os barões, soltando o grito que desde o enterro do Turbulento vinham retendo.

Mafalda avançou diretamente para o regente e para os membros da família real reunidos em torno dele.

— Mas ele é forte... é rosado... é gordo... — diziam os barões, à sua passagem.

— Que história foi essa de nos dizerem que o menino era fraquinho e não poderia viver? — falou Carlos de Valois a seu filho Filipe.

— Ora! A raça de França é sempre bem valente! — disse Carlos de La Marche para imitar seu tio.

O filho do lombardo comportava-se bem, bem demais, na opinião de Mafalda. “Não poderia ele chorar, torcer-se um pouco?” E disfarçadamente, procurava beliscá-lo através do manto. As faixas, porém, eram espessas e a criança só deixava ouvir um ligeiro gorgolejar, bastante feliz. O espetáculo que se oferecia a seus olhos azuis parecia agradar-lhe. “O miseràvelzinho! Daqui a pouco é capaz de cantar. Cantará menos esta noite... A não ser que o pó de Beatriz se tenha alterado, ao contacto do ar...”

Gritos levantavam-se do fundo da sala:

— Não o estamos vendo! Queremos admirá-lo!

— Tomai-o, Filipe — disse Mafalda para o genro, estendendo-lhe o bebê. — Tendes os braços mais compridos do que os meus, mostrais o rei a seus vassalos.

O regente segurou o pequeno João pelo busto, levantando-o acima de sua cabeça, para que cada qual pudesse contemplá-lo à vontade. Subitamente, Filipe sentiu correr pelas mãos um líquido viscoso e quente. A criança, tomada de soluços, vomitava o leite que mamara meia hora antes, mas um leite que se tornara esverdeado e misturado com bile. Seu rosto tomou a mesma coloração, depois passou rapidamente a um tom mais escuro, indefinível, inquietante, enquanto ela torcia o pescoço para trás.

Vasta exclamação de angústia e desapontamento levantou-se do grupo dos barões.

— Senhor, Senhor — exclamou Mafalda — recomeçam as convulsões!

— Tomai-o — falou vivamente Filipe, entregando-lhe a criança nos braços, como se fosse um embrulho perigoso.

— Eu sabia! — lançou uma voz.

Era Bouville. Estava roxo, e seu olhar ia, encolerizado, da condêssa para o regente.

— Sim, tínheis razão, Bouville — disse este último — era cedo demais para apresentar esta criança doente.

— Eu sabia... — repetia Bouville.

Mas sua mulher puxou-o vivamente pela manga, a fim de evitar que cometesse uma tolice irreparável. Seus olhos encontraram-se, e Bouville acalmou-se. “Que ia eu fazer? Estou louco”, pensou. “Temos o verdadeiro.”

Mas se tudo tinha sido combinado a fim de afastar o crime para outra cabeça, nada fora previsto para o caso em que o crime fosse verdadeiramente cometido.

Mafalda também estava tomada de aflição. Não esperava que o veneno agisse tão depressa. Pronunciava palavras que pretendiam ser tranqüilizadoras.

— Acalmai-vos, acalmai-vos! No outro dia também pensávamos que ia morrer, e depois, bem o sabeis, voltou a si. É doença de criança, que impressiona mas não dura. A parteira! Chamem a parteira — disse, correndo todos os riscos para provar sua boa fé.

O regente mantinha as mãos sujas separadas do corpo, e olhava-os com medo e nojo, sem ousar tocar em coisa alguma.

O bebê estava azulado e sufocava.

Na desordem e alvoroço que se seguiram, ninguém soube muito bem o que fazia, nem como as coisas se tinham passado. A Senhora Bouville lançou-se para o quarto da rainha, mas quase ao chegar deteve-se, pensando: “Se chamar a parteira ela verá que a criança foi trocada, e que essa não tem a marca dos ferros. Que não lhe tirem a touca, que não lhe tirem a touca!”

E voltou, correndo, enquanto os presentes já refluíam para o quarto do rei.

Para a criança não era mais necessária a assistência de parteira alguma. Sempre envolta em seu manto coberto de flôres-de-lis, a minúscula coroa de banda, jazia como um destroço sobre o leito imenso, coberto de seda.

Os olhos brancos, os lábios escuros, as faixas sujas e as vísceras rompidas, o bebê que acabavam de apresentar a todos como o rei da França deixara de existir.

 

                         UM LOMBARDO EM SAINT-DENIS

E AGORA, que vamos fazer? — perguntavam-se os Bouville.

Viam-se presos em sua própria armadilha.

O regente não se atardara em Vincennes. Reunindo os membros da família real, pedira-lhes que tornassem a montar e o escoltassem até Paris, onde reuniria imediatamente o conselho. No momento em que deixava o solar, Bouville tinha tido um último ímpeto de coragem.

— Monsenhor!... — exclamara, agarrando pela brida a montaria do regente.

Filipe, entretanto, imediatamente o detivera.

— Está bem, está bem, Bouville. Agradeço-vos a parte que tomais em nossa aflição. Nada vos censuramos, podeis crer.

São as leis da natureza humana. Mandarei transmitir-vos minhas ordens para os funerais.

E o regente partiu, pondo-se a galope assim que transpôs a ponte levadiça. Em tal marcha, os que o acompanhavam não tiveram muita possibilidade de refletir pelo caminho.

A maior parte dos barões seguira com ele. Tinham ficado apenas alguns, menos importantes, os desocupados, que se demoravam formando pequenos grupos e comentando o acontecido.

— Estás vendo? — disse Bouville à esposa. — Eu devia ter falado naquele mesmo momento. Por que me impediste?

Estavam de pé, num vão de janela, cochichando e mal ousando confiar um ao outro os seus pensamentos.

— A ama? — perguntou Bouville.

— Cuidei disso. Levei-a para meu próprio quarto, que fechei a chave, e coloquei dois homens à porta.

— Ela não desconfia de nada?

— Não.

— Mas será preciso dizer-lhe.

— Esperemos que todos tenham ido embora.

— Ah! Eu devia ter falado — repetiu Bouville.

O remorso de não ter seguido seu primeiro ímpeto o torturava. “Se eu tivesse gritado a verdade diante de todos os barões, se eu tivesse fornecido ali mesmo a prova...” Para tanto, teria sido necessário que ele tivesse outra natureza, que fosse homem da tempera do condestável, por exemplo, e sobretudo que não tivesse por trás de si sua esposa, a puxá-lo pela manga...

— Mas como poderíamos saber — disse a Senhora de Bouville — que Mafalda conseguiria levar avante seu plano tão bem, e que a criança iria morrer sob os olhos de todos?

— No fundo — murmurou Bouville — teríamos feito melhor apresentando o verdadeiro e deixando que o destino se cumprisse.

— Ah! Bem te havia dito!

— Sim, confésso-o. Fui eu quem teve a idéia, e foi uma má idéia.

Pois, agora, quem acreditaria neles? Como e a quem poderiam declarar que tinham ludibriado a assembléia de barões colocando uma coroa na cabeça do filho de uma ama? Em seu ato houvera sacrilégio.

— Sabe a que nos arriscamos, agora, se não guardamos silêncio? — disse a Senhora de Bouville. — A que Mafalda nos mande envenenar também.

— O regente estava combinado com ela, tenho certeza. Quando limpou as mãos, depois que a criança vomitou sobre elas, atirou o pano ao fogo, eu bem vi... Faria com que fôssemos levados à justiça, por felonia em relação a Mafalda.

A preocupação mais grave do casal era, agora, concernente à própria segurança.

— E a toilette da criança? — perguntou Bouville.

— Eu mesma a fiz, com uma das mulheres, enquanto acompanhavas o regente à saída — respondeu a Senhora de Bouville. — E agora quatro escudeiros velam junto dela. Desse lado nada há a temer.

— E a rainha?

— Recomendei a todos que nada lhe dissessem, para não agravar seu mal. Aliás, ela não me parece estar em condições de compreender o que se passou. E ordenei às parteiras que não se afastassem da sua cabeceira.

Pouco depois, o camareiro Guilherme de Seriz chegou de Paris para dizer a Bouville que o regente acabava de se fazer reconhecer rei pelos seus tios, seu irmão, e os pares presentes. O Conselho fora rápido.

— Quanto aos funerais de seu sobrinho — disse o camareiro — nosso Sire Filipe resolveu que seriam feitos o mais cedo possível, a fim de não afligir demasiado longamente o povo com esse novo falecimento. Não haverá exposição, e como estamos na sexta-feira, e no domingo não se pode fazer inumação, o corpo será conduzido amanhã para Saint-Denis. O embalsamador já está a caminho. Deixo-vos, Messire, pois o rei recomendou-me que voltasse bem depressa.

Bouville deixou-o partir sem acrescentar uma palavra sequer. “O rei... o rei...”, repetiu consigo.

O Conde de Poitiers era rei. Um pequeno lombardo ia ser levado a Saint-Denis... e João I estava vivo.

Bouville foi ter com sua esposa.

— Filipe foi reconhecido — disse-lhe. — Que vai ser de nós, com esse rei que nos fica nos braços?

— Precisamos fazê-lo desaparecer.

— Ah, não! — exclamou Bouville, indignado.

— Não se trata disso. Estás perdendo a cabeça, Hugo! — replicou a Senhora de Bouville. — Quero dizer que será preciso escondê-lo.

— Mas ele não reinará.

— Pelo menos poderá viver. E talvez um dia... Sabe-se lá!

— Mas, como escondê-lo? A quem confiá-lo, sem despertar suspeitas? Antes de mais nada, é necessário que continue a ser amamentado.

— A ama... Só podemos nos valer da ama — disse a Senhora de Bouville. — Vamos falar com ela.

Tinham sido bem inspirados quando resolveram esperar a partida dos últimos barões, antes de irem confessar a Maria de Cressay que seu filho estava morto. Porque o uivo que ela soltou chegou a atravessar os muros do solar. Aos que o ouviram e quedaram-se gelados, foi explicado que o grito viera da rainha. Ora, a rainha, apesar do seu estado de inconsciência, erguera o corpo em sua cama, perguntando:

— Que está acontecendo?

O próprio senescal de Joinville, do fundo de seu torpor, estremeceu àquele som:

— Estão matando alguém, por aí — disse ele. — Foi um grito de degolado que eu ouvi...

Durante todo esse tempo, Maria repetia, incansável:

— Quero vê-lo! Quero vê-lo!

Bouville e sua mulher foram obrigados a agarrá-la à força, a fim de evitar que a jovem se atirasse, semilouca, através do castelo.

Durante duas horas esforçaram-se por acalmá-la, por consolá-la, e, sobretudo, para se justificarem, recomeçando dez vezes explicações que ela não compreendia.

Bouville podia afirmar-lhe que não tinha querido aquilo, que fora obra criminosa da Condêssa Mafalda... As palavras inscreviam-se inconscientemente na memória de Maria, de onde ressurgiriam mais tarde. No momento, porém, não tinham significação.

A jovem cessava um instante de chorar, olhava direito para a frente, depois, bruscamente recomeçava a gemer como um cão sobre o qual um carro passou.

Os Bouville chegaram realmente a pensar que ela estava perdendo a razão. Esgotaram todos os argumentos: graças àquele sacrifício involuntário, Maria tinha salvo a vida do verdadeiro rei de França, descendente de ilustre linhagem...

— Sois jovem — dizia a Senhora de Bouville — tereis outros filhos. Qual é a mulher que nunca em sua vida perdeu um filho recém-nascido?

E passou a citar-lhe os gêmeos de Branca de Castela e todos os pequenos desaparecidos da família real nas últimas três gerações. Entre os Anjou, os Courtenay, os Bourgogne, os Châtillon, os próprios Bouville, quantas mães periodicamente enlutadas e que, entretanto, terminavam felizes, entre vasta prole! Em cada doze ou quinze filhos que uma mulher dava à luz, dificilmente sobrevivia mais do que a metade.

— Mas eu compreendo — continuava a Senhora de Bouville. — O primeiro é o mais duro de suportar.

— Não, não o compreendeis! — gritou, enfim, Maria, entre soluços. — Esse, esse eu não poderei jamais substituir.

O bebê que acabavam de matar era o filho do amor, o filho de um desejo mais violento e de uma fé mais forte do que todas as leis do mundo e suas coações: era o sonho cujo preço ela pagara com dois meses de insultos e quatro de convento, o presente perfeito que se preparava para oferecer ao homem que escolhera, a planta miraculosa sobre a qual esperava ver florescer, em todos os dias de sua vida, seus amores contrariados e maravilhosos.

— Não, não podeis compreender! — gemia. — Não fôstes expulsa por vossa família, por causa de um filho. Não, não terei outro!

Quando se começa a descrever a própria desgraça, a expô-la em termos inteligíveis, é que já foi admitida por nós. Ao despedaçamento, ao esmagamento quase físico, seguia-se lentamente o segundo estágio da dor, a cruel contemplação.

— Eu sabia, eu sabia, quando não queria vir para aqui, que a desgraça me esperava!

A Senhora de Bouville não ousava responder.

— E que dirá Guccio quando souber? — disse Maria. — Como poderei contar-lhe?

—- Êle não deverá saber jamais, minha filha! — exclamou a Senhora de Bouville. — Ninguém deve saber que o rei está vivo, porque os que erraram o golpe não hesitariam em atacar uma segunda vez. Mesmo vós correis perigo, porque estáveis combinada conosco. Será preciso que guardeis isso como segredo, até que sejais autorizada a revelá-lo.

E, a seu marido, cochichou:

— Vai buscar os Evangelhos.

Quando Bouville voltou com o grande livro que fora buscar na capela, conseguiram obter de Maria que pousasse a mão sobre ele e jurasse guardar silêncio absoluto, mesmo em relação ao pai de seu filho morto, mesmo em confissão, sobre o drama que acabava de se passar ali. Só Bouville ou sua mulher poderiam desligá-la do juramento.

No estado em que estava, Maria consentiu em jurar tudo quanto lhe pediram. Bouville prometeu-lhe uma pensão, mas bem pouco lhe importava o dinheiro!

— E, agora, deveis conservar convosco o rei da França, minha filha, e dizer a todos que é o vosso — acrescentou a Senhora de Bouville.

Maria rebelou-se. Não queria mais tocar na criança em lugar da qual seu filho fora assassinado. Não queria mais ficar em Vincennes. Queria fugir, não importava para onde, e morrer.

— Depressa morrereis, não tenhais dúvida, se abrirdes a boca. Mafalda não tardaria a mandar-vos envenenar ou apunhalar.

— Não, nada direi, eu vos prometo. Mas deixai-me, deixai-me partir!

— Partireis, partireis. Mas não deixeis que ele também pereça. Bem vêdes que a criança tem fome. Amamentai-o pelo menos hoje — disse a Senhora de Bouville, pondo-lhe nos braços o filho da Rainha Clemência.

Quando Maria sentiu a criança contra o seio, suas lágrimas redobraram. Era forte demais, a dor que sentia no outro braço vazio.

— Ficai com ele. Será como o vosso — insistiu a Senhora de Bouville. — E quando chegar a ocasião de colocá-lo no trono, sereis honrada na corte, a seu lado: sereis sua segunda mãe.

Uma mentira a mais nada lhe custava. Aliás, não seriam as honras prometidas pela mulher do curador que tentariam Maria, mas a presença da pequenina vida que tinha no regaço e sobre a qual iria fazer, inconscientemente, uma transferência de maternidade.

Pousou os lábios sobre a cabeça penugenta do bebê e, com um gesto que se tornara maquinai, abriu seu corpinho, murmurando :

— Não, não posso deixá-lo morrer, meu pequeno João... meu pequeno Joãozinho...

Os Bouville deram um suspiro de alívio. Tinham ganho a partida, pelo menos naquele momento.

— Ela já não deverá estar em Vincennes, amanhã, quando vierem buscar a criança — disse, muito baixinho, a Senhora de Bouville a seu marido.

No dia seguinte, prostrada, e deixando que a Senhora de Bouville decidisse tudo, Maria foi reconduzida com a criança ao convento das Clarissas.

Madame de Bouville explicou à madre abadêssa que Maria tivera um grande choque cerebral com a morte do reizinho, e que seria preciso não levar em conta as coisas loucas que ela pudesse dizer.

— Fêz-nos bastante medo, pois urrava, e não reconhecia sequer seu próprio filho.

A Senhora de Bouville exigiu que a jovem não recebesse visita alguma, e que a deixassem ficar na maior calma, no maior silêncio.

— Se alguém se apresentar para falar com ela, que não deixem entrar e mandem prevenir-me.

Naquele mesmo dia, dois lençóis, guarnecidos com as flôres-de-lis de ouro, dois lençóis da Turquia bordados com as armas da França e oito varas de cendal preto foram mandados a Vincennes, para o enterro do primeiro rei da França que usara o nome de João. E realmente foi apenas uma criança que se chamava João, que partiu, encerrada num cofre tão pequeno que não consideraram necessário colocá-lo num carro, pousando-o, simplesmente, sobre a alabarda de uma mula.

Mestre Godofredo de Fleury, tesoureiro do Palácio, anotou em seu registro as despesas dos funerais, que custaram cento e onze libras, dezessete soldos e oito dinheiros.

Não foi organizado o longo cortejo ritual, nem se realizou cerimônia alguma em Notre-Dame. O séquito dirigiu-se imediatamente para Saint-Denis, onde a inumação foi feita logo depois da missa. Ao pé da estátua jacente de Luís X, ainda toda branca, muito recente em sua pedra de pouco talhada, abrira-se uma fossa estreita, e por ali fizeram descer, para que ficasse entre as ossadas dos soberanos da França, o filho de Maria de Cressay, demoiselle de Ile-de-France, de Guccio Baglione, negociante sienense.

Adão Héron, o primeiro camareiro e mordomo do palácio, adiantou-se para a beira da pequena sepultura, e disse, olhando para seu senhor Filipe de Poitiers:

— O Rei morreu, viva o Rei!

O reinado de Filipe V, o Longo, começara: Joana de Borgonha tornava-se rainha da França, e Mafalda d’Artois triunfava.

Somente três pessoas sabiam, no reino, que o verdadeiro rei vivia. Uma jurara segredo sobre as Sagradas Escrituras, e as duas outras tremiam, receando que tal segredo não fosse mantido.

Todos os soberanos que daquele sábado, 20 de novembro de 1316, em diante, reinaram sobre a França, não passaram de uma longa linhagem de involuntários usurpadores.

 

                   A FRANÇA EM MÃOS FIRMES

PARA conquistar o trono, Filipe V tinha usado, dentro das instituições monárquicas, de um processo eterno, que em linguagem moderna chamamos golpe de Estado.

Vendo-se, pela autoridade de sua pessoa e pelo apoio do clã que o rodeava, investido, de fato, das principais funções reais, fizera homologar, pela assembléia de julho, um regulamento de sucessão que poderia favorecê-lo, eventualmente, mas somente depois de longos prazos, e da aplicação de cláusulas prévias. Surgia, com o desaparecimento do reizinho, o acontecimento propício: Filipe, imediatamente, pondo de parte a legalidade que ele próprio estabelecera, apropriava-se da coroa sem mais observar prazos nem cláusulas prévias.

Um poder obtido em semelhantes condições estaria ameaçado, pelo menos em seu início.

Ocupado inteiramente em consolidar sua posição, Filipe não teve quase tempo de saborear sua vitória nem de se contemplar em seu sonho realizado. Bem estreito era o pico a que ele acabava de subir.

As línguas trabalhavam muitíssimo, através do reino, e a desconfiança espalhava-se. O punho do novo rei era bastante conhecido, e todos quantos corriam o risco de sofrer-lhe o peso reuniram-se em torno do Duque de Borgonha.

Este último correu a Paris a fim de contestar a designação de seu futuro sogro. Exigia a convocação do conselho dos pares e o reconhecimento de Joana de Navarra como rainha.

Dessa vez Filipe deixou de usar de astúcias. Para a regência, oferecera sua filha e o ducado de Borgonha. Para conservar o reino ofereceu separar as duas coroas, da França e de Navarra, tão recentemente reunidas, e deixar o pequeno reinado pirenaico à duvidosa filha de seu irmão.

Mas se Joana era considerada digna de reinar sobre Navarra, era também digna de reinar sobre a França. Pelo menos, o Duque Eudes assim entendeu, e recusou-se a ceder. Iriam, então, à prova da força.

Eudes tornou a partir a galope para Dijon, de onde lançou, em nome de sua sobrinha, uma proclamação a todos os senhores de Artois e da Picardia, de Brie e de Champanha, convidando-os a recusar obediência a um usurpador.

Dirigiu-se no mesmo sentido ao Rei Eduardo II da Inglaterra, que, apesar dos esforços de sua esposa Isabel, apressou-se a envenenar a rixa, tomando o partido dos borguinhões. Em todos os desentendimentos que surgiram no reino da França, o rei inglês via a perspectiva de emancipar a Guyenne.

“Foi então a isto que eu cheguei, denunciando o adultério de minhas cunhadas!”, pensava a Rainha Isabel.

Vendo-se assim ameaçado ao norte, a leste, a sudoeste, outro que não Filipe, o Longo, poderia ter desistido. Mas o novo rei sabia que dispunha de muitos meses: o inverno não era época para guerra, e seus inimigos esperariam a primavera, se resolvessem levantar seus exércitos. O mais urgente, para Filipe, era fazer-se coroar e revestir-se da indelével majestade da sagração.

Quis, de início, marcar a cerimônia para a Epifania: o dia de Reis parecia-lhe de bom augúrio, e tratava-se, também, da data que seu pai escolhera para a sua própria sagração. Disseram-lhe que os burgueses de Reims não teriam tempo para preparar tudo, e concordou com um adiamento de três dias. A corte partiria de Paris no dia 1° de janeiro, e a sagração teria lugar no domingo, 9.

Desde Luís VIII, primeiro rei não eleito em vida de seu predecessor, jamais se vira herdeiro do trono precipitar-se tão depressa para Reims.

A consagração religiosa, entretanto, parecia ainda insuficiente, aos olhos de Filipe: queria acrescentar-lhe algo que impressionasse de maneira nova a consciência popular.

Tinha meditado com freqüência nos ensinamentos de Egidio Colonna, o preceptor de Filipe, o Belo, homem que formara o pensamento do Rei de Ferro. “Falando de forma absoluta” — escrevera Egidio Colonna em seu tratado sobre os princípios da realeza — “seria preferível que se elegesse o rei. Apenas os apetites corrompidos dos homens e sua maneira de agir, tornam preferível a hereditariedade à eleição.”

— Quero ser rei com o consentimento de meus súditos — disse Filipe, o Longo — e só me sentirei realmente digno de governar a esse preço. E já que os grandes não comparecem, darei a palavra aos pequenos.

Seu pai mostrara-lhe o caminho, convocando, nas horas difíceis de seu reinado, assembléias onde todas as classes, todos os “estados” do reino se encontravam presentes. Resolveu que duas assembléias desse gênero, ainda maiores do que as precedentes, entretanto, seriam realizadas, uma em Paris, para a langue d’oïl, outra em Bourges, para a langue d’oc, nas semanas que se seguiriam à sua sagração. E pronunciou as palavras “Estados Gerais”.

Os jurisconsultos foram postos a polir os textos que seriam apresentados aos Estados, para que fosse ratificada, pelo voto popular, a ascensão de Filipe ao trono. Recomeçaram a usar, naturalmente, os argumentos do condestável, isto é, que o lis não podia fiar a lã e que o reinado era nobre demais para cair em mãos femininas. Usaram outros mais estranhos, tais como afirmar que entre o venerado São Luís e Madame Joana de Navarra contavam-se três intermediários sucessórios, enquanto que entre São Luís e Filipe só havia dois.

O que fêz, aliás, com muito direito, o Conde de Valois exclamar :

— Nesse caso, por que não eu, que só estou separado de São Luís por meu pai?

Enfim, os conselheiros do Parlamento, aguilhoados por messire de Noyers, exumaram, sem muita fé, o velho código de costumes dos Francos Sálios, anterior à conversão de Clóvis ao cristianismo. Aquele código nada continha quanto à transmissão dos podêres reais. Era uma compilação de jurisprudência civil e criminal, bastante mal feita, e, além disso, pouco compreensível, pois tinha mais de oito séculos. Breve indicação estipulava que a herança das terras se fazia pela divisão igual entre os herdeiros varões. Era tudo.

Não foi preciso mais para que alguns doutores em direito secular construíssem sobre aquilo sua demonstração, sustentando a tese pela qual estavam sendo pagos. A coroa de França só poderia ir para os varões, pois a coroa implicava na posse de terras. E a melhor prova de que o código sálico tinha sido aplicado desde sua origem não estava no fato de que só homens se haviam sucedido? Assim, Joana de Navarra podia ser eliminada sem que a acusação de bastardia, improvável aliás, fosse sequer apresentada.

Os doutores eram senhores de seus engrimanços, e ninguém lembrou-se de objetar-lhes que a dinastia merovíngia não tivera sua origem nos Sálios, mas nos Sicambros e Bructeros. E ninguém foi, naquele momento, olhar no texto aquela famosa lei sálica, que inventaram, fingindo a ela referir-se, e que ia fazer fortuna na História, depois de ter arruinado o reino através de cem anos de guerra.

O adultério de Margarida de Borgonha custaria caro à França.

Mas, no momento presente, o poder central não estava inativo: Filipe já reorganizava a administração, chamava os grandes burgueses para seu conselho, e criava seus “cavaleiros seguidores”, forma de agradecer os que, desde Lião, o haviam servido sem tréguas.

Resgatou de Valois a oficina que fabricava moedas em Mans, antes de resgatar as outras dez espalhadas pela França. Dali por diante, toda a moeda que circulasse no reino seria cunhada apenas pelo rei.

Lembrando-se das idéias de João XXII, quando este último era apenas o Cardeal Duèze, Filipe preparou uma reforma do sistema de multas penais e direitos de chancelaria. Os notários depositariam no Tesouro, todos os sábados, as somas que tivessem em caixa, e o registro dos atos seria submetido a tarifas decretadas pela Câmara de Contas (30).

O mesmo que fêz nas chancelarias, fêz nas alfândegas, nos prebostados, capitanias das cidades e recebedorias de finanças. Os abusos e malversações, que tinham tido livre curso desde a morte do Rei de Ferro, foram reprimidos. Em todas as camadas sociais, em todas as atividades nacionais, em todos os tribunais de justiça, nos portos, nos lugares de mercados e feiras, sentiu-se, compreendeu-se, que a França tinha sido retomada por mãos firmes... mãos de vinte e três anos.

As fidelidades só são obtidas com benefícios. O advento de Filipe foi acompanhado de grandes Iarguezas.

O velho senescal de Joinville fora reconduzido ao seu castelo de Wassy, onde declarara desejar morrer. Sabia que estava realmente no fim. Seu filho Anseau, que desde Lião não se afastara de Filipe, disse, um dia, a esse último:

— Meu pai assegurou-me que coisas estranhas se haviam passado em Vincennes, quando da morte do reizinho, chegando-lhe aos ouvidos rumores inquietantes.

— Eu sei, eu sei — disse Filipe. — Também a mim certos fatos, naqueles dias, pareceram surpreendentes. Quereis saber qual a minha impressão, Anseau? Não quero dizer mal de Bouville, pois não tenho prova alguma. Mas, às vezes, pergunto a mim mesmo se meu sobrinho já não estaria morto, quando chegamos a Vincennes, e se não nos teriam apresentado outra criança.

— Por que teria ele feito tal coisa?

— Não sei... Medo de censuras, receio de ser acusado por Valois ou por outros. Porque aquela criança, afinal, estava sob a vigilância integral dele, e Bouville recusava-se obstinada mente a mostrá-lo... recordai-vos. Bem, repito que isto não passa de uma impressão, que em nada se fundamenta... Seja como fôr, agora é tarde demais.

Fêz uma pausa, e acrescentou:

— Anseau, mandei registrar-vos no Tesouro para um dom de quatro mil libras, e isso vos provará bastante a minha gratidão pelo auxílio que sempre me prestastes. E, se no dia da sagração, meu primo, o Duque de Borgonha não estiver presente para prender-me as esporas, como acredito que não estará, podereis incumbir-vos dessa tarefa. Sois cavaleiro nobre bastante para tanto.

O ouro foi sempre o melhor metal para fechar as bocas. Filipe, porém, sabia que a certos homens agradava que o fecho levasse ornatos de ourivesaria.

Restava acertar o caso de Roberto d’Artois: Filipe felicitava-se pela idéia de ter mantido seu perigoso primo na prisão, durante os últimos acontecimentos. Mas não podia conservá-lo indefinidamente no Châtelet. Uma coroação é acompanhada quase sempre de atos de clemência e da outorga de mercês.

Sob intervenção obstinada de Valois, Filipe fingiu mostrar-se bom príncipe.

— É para vos satisfazer, meu tio — disse ele — que Roberto será posto em liberdade...

Deixou a frase em suspenso, e pareceu fazer um cálculo.

— ... Mas três dias somente depois de minha partida para Reims — acrescentou — e não terá o direito de se afastar de Paris mais que vinte léguas.

 

                      TANTOS SONHOS DESMORONADOS!

EM SUA ascensão real, Filipe, o Longo, não tinha somente passado por cima de dois cadáveres: deixava ainda, no rasto de seus passos, dois outros destinos arruinados, duas mulheres esmagadas: uma, a rainha; outra, obscura.

No dia seguinte aos funerais do falso João I em Saint-Denis, Madame Clemência da Hungria, cuja morte todos esperavam, tinha voltado, muito fracamente, à consciência e à vida. Um dos remédios mostrara-se, enfim, eficaz, e a febre e a infecção retiravam-se de seu corpo, como para deixar lugar a outros sofrimentos. As primeiras palavras que a rainha pronunciou foram para pedir seu filho, que mal tivera tempo de entrever. Sua lembrança mostrava-lhe um corpinho nu, que friccionavam com água de rosas e depositavam num berço.

Quando lhe deram a saber, com mil cuidados, que não podiam mostrar-lho, murmurou:

— Morreu, não é verdade? Eu o sabia. Eu o sentia, em minha febre... Também isso tinha de acontecer...

Não teve a reação fulminante que temiam. Ficou prostrada, sem lágrimas, tendo no rosto aquela expressão de trágica ironia que aparece em certas pessoas, ao fim de um incêndio, diante das cinzas fumegantes de sua morada. Seus lábios entreabriram-se como que para rir, e durante alguns segundos pensaram que ela enlouquecera.

A desgraça tivera requintes de encarniçamento sobre ela, e havia regiões mortas naquela alma, onde a sorte podia ferir com redobrados golpes, sem mais extrair sofrimento.

Quem suportou o pior foi sem dúvida Bouville, condenado a uma atitude mentirosa de consolador impotente. Cada palavra de amizade que a rainha lhe dedicava fazia-o torcer-se de remorsos.

“O filho dela está vivo, e eu não devo dizer-lhe tal coisa. Quando penso que lhe poderia dar tão grande alegria!”

Por vinte vezes, a piedade e, mesmo, a simples honestidade quase levaram a melhor sobre ele. Mas a Senhora de Bouville, conhecendo sua alma fraca, jamais o deixava a sós com a rainha.

Pôde, pelo menos, aliviar um pouco a alma, acusando Mafalda, a verdadeira culpada.

A rainha ergueu os ombros. Que lhe importava a mão de que as forças do mal se tinham servido para atingi-la?

— Fui devota, fui boa, pelo menos acredito ter sido — dizia ela. — Esforcei-me por seguir os mandamentos da religião e para corrigir os que me eram caros. Jamais desejei mal a ninguém. E Deus ocupou-se em martirizar-me mais do que a qualquer de suas criaturas... Ora, vejo os maus vencerem em tudo.

Não se revoltava, nem blasfemava, também: constatava, simplesmente, uma espécie de erro monumental.

Seu pai e sua mãe tinham sido levados pela peste quando ela tinha apenas dois anos. Enquanto todas as princesas de sua família, ou quase todas, encontravam casamento desde que se faziam núbeis, esperara um partido até a idade de vinte e dois anos. O que lhe fora oferecido, inesperado, parecia o mais alto do mundo. Diante daquele casamento com a França ela chegara deslumbrada, completamente tomada por um amor irreal, e cheia de todas as boas intenções. Mesmo antes de desembarcar em seu novo país, correra perigo no mar. Ao fim de algumas semanas, descobria que tinha casado com um assassino e sucedido a uma rainha estrangulada. Depois de dez meses, estava viúva e grávida. Imediatamente afastada do poder, tinham--na seqüestrado, sob o pretexto de defendê-la. Acabava de se debater, durante oito dias, às portas da morte, para saber, mal saída daquele inferno, que seu filho morrera, envenenado sem dúvida, como seu marido o fora.

Seria possível imaginar destino mais persistente e mais funesto?

— A gente de minha terra acredita na má sorte. Têm razão. Não devo tomar qualquer iniciativa.

Amor, caridade, esperança! Esgotara todas as reservas das virtudes que possuía, ao mesmo tempo que a fé se retirava dela. Para que as empregaria? Nada mais lhe restava a dar.

Tinha passado tais torturas, durante a doença, e de tal forma sentira as sensações da agonia, que ao reencontrar-se viva, respirando sem fadiga, alimentando-se, pousando os olhos sobre as paredes, os móveis, os rostos, aquilo lhe parecia coisa surpreendente, e dava-lhe as únicas emoções de que ainda era capaz sua alma, quase totalmente destruída.

À medida que prosseguia em sua lenta convalescença, e recobrava sua lendária beleza, a Rainha Clemência começava a manifestar gostos de mulher idosa e cheia de caprichos. Dir-se-ia que sob sua aparência admirável, sob seus cabelos de ouro, sob aquele rosto de retábulo, aquele peito nobre, aqueles membros fuselados, que dia a dia recobravam sua sedução, quarenta anos, de uma só vez, se tinham passado. Num corpo suntuoso, uma velha viúva reclamava da vida suas últimas alegrias. E devia reclamá-las durante onze anos.

Frugal até ali, tanto pela religião como por indiferença, a rainha depressa mostrou estranhas exigências de mesa, reclamando alimentos raros e dispendiosos. Coberta por Luís X de jóias, que desdenhara ao recebê-las, animava-se, agora, abrindo seus cofres de adornos preciosos, apaixonava-se enumerando as pedras que possuía, calculando-lhes o valor ou apreciando-lhes a lapidação ou a água. Convocava ourives, e, resolvendo, subitamente, modificar um engaste, desenhava com eles jóias que não teriam uso. Passava também longas horas com as roupeiras, e mandava comprar os mais caros tecidos do Oriente, que usaria em seguida, impregnados de perfumes.

Se, para sair de seus aposentos, usava o vestido branco que era o luto das viúvas, seus familiares surpreendiam-se, constrangidos, ao vê-la em seu quarto, encolhida junto da lareira, sob véus de transparência excessiva.

Sobrevivia sua generosidade de outrora, mas apenas sob a forma alterada de liberalidades absurdas. Os negociantes haviam contado isso uns aos outros, e sabiam que preço algum seria discutido. A avidez ganhava os serviçais. Oh! Sem dúvida, a Rainha Clemência era bem servida. Na cozinha, discutiam para saber quem lhe levaria uma bandeja, porque, diante de uma sobremesa ornamentada, de um leite de avelãs, de uma “água de ouro”, recentemente descoberta, onde o alecrim, o cravo-da-índia tinham sido bastante macerados em suco de romã, a rainha abria, subitamente, a mão cheia de moedas.

Logo quis ouvir cantar, e desejou que contos, poemas e romances fossem recitados por agradáveis bocas. Seu olhar, que se tornara frio, só anelava pousar sobre rostos jovens. Um ménestrel bem feito de corpo, de voz cálida, que a distraíra durante uma hora, e cujos olhos se haviam perturbado entrevendo-lhe o corpo sob os véus de Chipre, recebia com o que festejar pelas tavernas durante um mês.

Bouville alarmava-se com aquelas liberalidades, mas não pudera deixar de receber também os seus benefícios.

No dia 1° de janeiro, que continuava a ser a data dos cumprimentos e dos presentes, embora o ano oficial se iniciasse na Páscoa, a rainha deu a Bouville um saco bordado, contendo trezentas libras de ouro. O antigo camareiro exclamou:

— Não, Madame, por favor, eu não as mereci!

Mas não se pode recusar o dom de uma rainha, mesmo quando essa rainha arruína-se, e mesmo quando se está obrigado, diante dela, a uma odiosa mentira.

O infeliz homem, acossado pelo terror e pelos remorsos, encarava o momento próximo em que a rainha teria que fazer face a uma desastrosa situação financeira (31).

Naquele mesmo dia 1° de janeiro, Bouville recebeu a visita de messire Tolomei. O banqueiro achou o antigo camareiro espantosamente magro e encanecido. Bouville nadava dentro das próprias roupas, suas faces abatiam-se de cada lado do rosto. Tinha o olhar inquieto e, ao mesmo tempo, sua atenção parecia enfraquecida.

“Este homem”, pensou Tolomei, “está sendo roído por uma doença secreta, e não me surpreenderia que muito em breve lhe aparecesse um mal mortal. Preciso apressar-me a tratar dos negócios de Guccio.”

Tolomei conhecia os hábitos, e, tratando-se do ano novo, trouxera para Senhora de Bouville uma peça de tecido.

— ... para agradecer-lhe — disse ele — por todos os cuidados que tivera com aquela moça que acaba de dar um filho a meu sobrinho...

Também esse presente Bouville quis recusar.

— Ora, ora — insistiu Tolomei. — Aliás, eu gostaria de conversar um pouco convosco sobre esse assunto. Meu sobrinho vai voltar de Avinhão, onde nosso Santo Padre, o papa....

Tolomei persignou-se.

— ... reteve-o até agora para trabalhar nas contas de sua caixa particular. Êle virá buscar sua esposa e seu filho... Bouville sentiu todo seu sangue afluir-lhe ao coração.

— Um instante, Messer, um instante — disse ele. — Tenho aqui um mensageiro que me espera e ao qual devo dar uma resposta urgente. Fazei-me o favor de ter um pouco de paciência.

E desapareceu, com a peça de tecido sob o braço, a aconselhar-se com sua mulher.

— O marido volta — disse.

— Que marido? — perguntou a Senhora de Bouville.

— O marido da ama!

— Mas ela não é casada!

— Deve ser! Deve ser! Tolomei está aí. Toma: trouxe-te isto.

— Que quer ele?

— Que a moça deixe o convento.

— Quando?

— Não sei ainda. Brevemente.

— Então espera saber, nada prometas, e volta a dizer-me o que há.

Bouville reapareceu junto de seu visitante.

— Dizíeis, então, messer Tolomei?

— Eu vos dizia que meu sobrinho Guccio vai chegar, para retirar do convento, onde tivestes a bondade de lhes proporcionar abrigo, sua mulher e seu filho. Presentemente, eles nada mais têm a temer. Guccio traz uma carta do Santo Padre, e irá estabelecer-se em Avinhão, penso, pelo menos por algum tempo...

Gostaria bastante, entretanto, de conservá-los perto de mim.

Sabeis que ainda não vi este sobrinho-neto que ganhei? Estava viajando, visitando minhas agências, e só tive notícia do caso através de uma carta toda feliz da jovem mãe. Anteontem, mal cheguei, quis levar-lhe algumas gulodices, mas no convento das Clarissas dei com a porta fechada.

— É que nas Clarissas a regra é muito severa — disse

Bouville. — E, a vosso pedido, demos ordens muito estritas.

— Não lhe aconteceu nada de mal?

— Não... Messer. Nada que eu saiba. Eu vos teria advertido imediatamente — respondeu Bouville, que se sentia sobre brasas. — Quando deve chegar vosso sobrinho?

— Espero-o dentro de dois ou três dias.

Bouville olhou-o com ar apavorado.

— Peço-vos que me perdoeis novamente — disse ele — mas acabo de lembrar-me que a rainha tinha me mandado buscar um objeto, que não lhe levei. Já volto, já volto.

E eclipsou-se novamente.

“Com toda a certeza a moléstia dele é na cabeça”, pensou Tolomei. “Que satisfação, conversar com um homem que a cada momento sai fugindo! Contanto que não me esqueça aqui, por minha vez!”

Sentou-se sobre um cofre, lustrou a pele que rematava sua manga, e teve tempo para calcular, com uma diferença de dez libras, o preço do mobiliário que guarnecia o aposento.

— Aqui estou — disse Bouville, levantando um reposteiro. — Faláveis, então, em vosso sobrinho? Sabeis que simpatizo muitíssimo com ele? Foi um agradável companheiro em nossas viagens a Nápoles! Nápoles... — repetiu, enternecendo-se. — Se eu tivesse podido imaginar!... A pobre rainha, a pobre rainha...

Deixou-se tombar sobre o cofre, ao lado de Tolomei, e limpava com os dedos grandes as lágrimas provocadas pela lembrança.

“Vejam só! Agora ele chora nas minhas bochechas!”, pensou o banqueiro. E, em voz alta:

— Eu nada vos disse de todas essas novas desgraças. Compreendo demasiado bem quanto vos afligiram. Pensei muitíssimo em vós...

— Ah! Tolomei! Se pudésseis saber!... Foi pior do que imaginais. O demônio meteu-se na coisa...

Ouviu-se uma pequena tosse seca atrás da tapeçaria, e Bouville deteve-se de repente no déclive das confidencias perigosas.

“Essa é boa, alguém nos escuta”, pensou Tolomei, que se apressou a responder:

— Enfim, nesta aflição, um consolo ao menos nos foi dado.

Temos um bom rei.

— Sem dúvida, sem dúvida, temos um bom rei — repetiu Bouville, sem grande calor.

— Eu temia — recomeçou o banqueiro, fazendo um esforço para afastar seu interlocutor da tapeçaria suspeita — eu temia que o novo rei nos maltratasse, a nós, os lombardos. Mas nada disso. Parece, mesmo, que confiou as recebedorias de rendas, em certas senescalias, ao pessoal de nossas companhias... Quanto a meu sobrinho, que trabalhou muito, posso dizer-vos, gostaria que fosse recompensado de suas lutas encontrando sua querida e seu herdeiro já instalados em minha casa. Mandei preparar o aposento para os gentis esposos. Fala-se mal dos jovens do nosso tempo. Não se acredita que sejam capazes de sinceridade, nem de amor fiel. Esses dois amam-se muitíssimo, eu vos garanto.

Basta ler as suas cartas. Se o casamento não foi feito segundo as regras, não importa! Tornaremos a casá-los, e eu vos pedirei mesmo, se isso não vos ofende, que figureis como testemunha...

— É uma grande honra, ao contrário, uma grande honra, Messer — respondeu Bouville, olhando para o reposteiro como se ali procurasse uma aranha. — Mas há a família.

— Que família?

— Sim! A família da ama!

— A ama? — repetiu Tolomei, não entendendo mais nada.

Pela segunda vez a tossezinha fêz-se ouvir por trás da tapeçaria. Bouville mudou de aspecto, tartamudeou, gaguejou:

— É que, Messer... Sim, eu queria dizer... sim, eu queria contar-vos imediatamente... mas... a todo o momento interrom pido, acabei esquecendo... Ah! Sim, agora é preciso que vos diga... Fizemos um pedido à esposa de vosso sobrinho, pois, conforme assegurais, eles são casados... Bem, estávamos precisando de ama, e com boa vontade, com grande boa vontade, através de rogos de minha esposa, ela amamentou o reizinho,.. durante o pouco tempo — ai de nós — em que êle viveu.

— Então ela esteve aqui? Foi retirada por vós do convento?

— E tornamos a levá-la para lá! Constrangia-me dizer-vos isto... mas o tempo urgia. E, depois, tudo passou-se tão depressa!

— Mas, Messire, não vos envergonheis disso! Fizestes muitíssimo bem. A bela Maria! Então ela amamentou o rei?

Eis uma notícia surpreendente, e quanto é honrosa! Foi pena, somente, que não pudesse dar-lhe seu leite por mais tempo — disse Tolomei, que já lamentava todas as vantagens que poderia ter tirado de uma situação daquelas. —- Então, não vos é difícil fazê-la sair novamente?

— Oh! Não! Para que ela saia de vez será preciso o consentimento da família. Tornastes a ver a família dela?

— Nunca mais. Seus irmãos, que tinham feito tamanho barulho, deram-me a impressão de terem ficado muito satisfeitos por se verem livres dela, e nunca mais apareceram.

— Onde moram eles?

— Em sua propriedade, em Cressay.

— Cressay... Onde é isso?

— Perto de Neauphle, onde tenho uma agência.

— Cressay... Neauphle... muito bem.

— Na verdade, sois um homem estranho, Monsenhor, ouso dizer-vos! — exclamou Tolomei. — Confio-vos uma jovem, conto-vos tudo a respeito dela, ides buscá-la para amamentar o filho da rainha, ela vive aqui oito dias, dez dias...

— Cinco — precisou Bouville.

— Cinco dias — continuou Tolomei — e não sabeis de onde ela vem e quase ignorais como se chama!

— Sim, sei, sabia-o bem — disse Bouville, corando. — Mas há momentos em que minha memória falha.

Não podia correr pela terceira vez para junto de sua mulher. Por que não vinha ela socorrê-lo, em vez de ficar escondida atrás da tapeçaria, para repreendê-lo depois, se cometesse alguma tolice! A Senhora de Bouville tinha suas razões.

— Este Tolomei é o único homem que eu temo nesta questão — tinha dito ao marido. — Um nariz de Lombardo vale mais do que trinta cães de matilha. Se ele conversar a sós contigo, tolo como és, desconfiará menos, e eu poderei conduzir melhor o caso, depois.

“Tolo como és”... Ela tem razão, tornei-me um tolo, dizia consigo Bouville. “Enfim! Outrora eu soube falar aos reis, e tratar dos seus negócios. Negociei o casamento de Madame Clemência. Precisei ocupar-me do conclave e usar de astúcia para com Duèze...” Foi esse pensamento que o salvou.

— Vosso sobrinho, segundo me dizíeis, está munido de uma carta de ordem do Santo Padre? — falou. — Pois bem! Isso resolve tudo. Guccio é quem deve ir buscar sua esposa, mostrando essa carta. Assim, todos estaremos a coberto e não correremos o risco de sofrer censuras nem processos. O Santo Padre!

Que se pode exigir mais?... Dentro de dois ou três dias, não é verdade? Desejemos, pois, que tudo se passe pelo melhor.

E muitíssimo agradecido pelo belo tecido. Minha boa esposa, estou certo, irá apreciá-lo bastante. Até outra vez, Messer, e sempre às vossas ordens.

Sentia-se mais esgotado do que se tivesse feito uma carga, em combate.

Tolomei, deixando Vincennes, pensava: “Ou ele está mentindo, por uma razão que ignoro, ou está voltando à infância. Enfim, esperemos Guccio”.

A Senhora de Bouville, essa, não esperou. Mandou atrelar a liteira e correu ao faubourg São Marcelo. Ali, fechou-se com Maria de Cressay. Depois de lhe ter matado o filho, vinha exigir de Maria que renunciasse ao seu amor.

— Jurastes segredo sobre os Evangelhos — dizia a Senhora de Bouville. — Sereis, entretanto, capaz de mantê-lo diante desse homem? Teríeis força para viver com vosso esposo (consentia agora em adornar Guccio com essa qualidade) deixando-o crer que é pai de uma criança que não lhe pertence? É pecado esconder coisa tão grave do cônjuge! E quando conseguirmos fazer vitoriosa a verdade e viermos procurar o rei para colocá-lo no trono, que podereis dizer, então? Sois demasiado honesta, e muito nobre de sangue, para consentir em tamanha vilania.

Todas essas interrogações, Maria as tinha feito a si própria centenas de vezes, em todas as horas de sua solidão. Em nada mais pensava, e aquilo torturava-a. E a resposta, ela bem a conhecia! Sabia que no momento em que estivesse novamente nos braços de Guccio, nada poderia calar, não “porque era pecado” como dizia a Senhora de Bouville, mas porque o amor proibia-lhe a atrocidade de tal mentira.

— Guccio há de compreender-me, Guccio há de absolver-me. Êle saberá que aquilo se passou contra a minha vontade e há de ajudar-me a suportar o fardo. Guccio nada dirá, Madame, posso jurar por ele como por mim!

— Não se pode jurar senão por si próprio, minha filha.

E ainda mais tratando-se de um lombardo: pensais que ele se calaria! Irá obter vantagens com isso!

— Madame, vós o insultais!

— Não, eu não o insulto, minha cara, apenas conheço o mundo. Jurastes não falar, mesmo em confissão. É o rei da França que está sob vossa guarda, e só sereis libertada de vosso juramento quando o tempo fôr chegado.

— Por favor, Madame, retomai o rei, e libertai-me.

— Não fui eu quem vo-lo entregou, foi a vontade de Deus. É um depósito sagrado que tendes convosco! Teríeis traído Nosso Senhor Jesus Cristo, se Êle tivesse sido confiado à vossa guarda durante o massacre dos Inocentes?... Essa criança deve viver. Será preciso que meu esposo vos conserve sob sua vigilância, e que seja possível encontrar-vos a qualquer momento, e não que partais para Avinhão, como se pretende.

— Obterei, então, de Guccio que fiquemos onde quiserdes: eu vos garanto que ele não falará.

— Êle não falará porque não o vereis mais!

A luta, cortada pela hora da mamada do reizinho, durou quase uma tarde inteira. As duas mulheres batiam-se como animais tombados no fundo de uma armadilha. Mas a pequena Senhora de Bouville tinha os dentes e as garras mais fortes.

— E que ides fazer de mim, então? Ides encerrar-me aqui para toda a vida? — gemia Maria.

“Eu gostaria muito de fazer isso”, pensava a Senhora de Bouville. “Mas o outro vai chegar, com sua carta do papa...”

— E se vossa família consentisse em receber-vos? — propôs. — Penso que Messire Hugo conseguiria convencer vossos irmãos.

Voltar para Cressay, entre parentes hostis, acompanhada por uma criança que seria considerada como o filho do pecado, quando entre todas as crianças da França era a mais digna de honras... Renunciar a tudo, calar-se, envelhecer, nada mais tendo a fazer senão contemplar a monstruosa fatalidade, o désespérante desmantelo de um amor que coisa alguma deveria ter alterado. Tantos sonhos desmoronados!

Maria rebelou-se. Tornou a encontrar a força que a havia levado, contra as leis e contra sua família, para os braços do homem que escolhera. Bruscamente, recusou.

— Tornarei a ver Guccio, hei de pertencer-lhe, viverei com êle! — exclamou.

A Senhora de Bouville tamborilou, lentamente, nos braços de sua cadeira.

— Não tomareis a ver esse Guccio — respondeu ela — porque se ele se aproximar deste convento, ou de qualquer outro recinto fechado onde pudermos colocar-vos, e chegardes a lhe falar, um minuto que seja, esse minuto será o último para o vosso esposo. Meu marido, bem o sabeis, é homem enérgico e temível, quando se trata de proteger o rei. Se fazeis excessiva questão de tornar a ver esse homem, podereis contemplá-lo, mas com uma misericórdia entre os ombros.

Maria encolheu-se um pouco sobre si mesma. — Basta terem matado o filho — murmurou ela — não precisam matar também o pai.

— Só depende de vós — disse a Senhora de Bouville.

— Nunca pensei que na corte de França o assassinato fosse coisa tão fácil. E é essa a nobre corte que o reino respeita.

Preciso dizer-vos, Madame, que eu vos odeio.

— Sois injusta, Maria. Minha tarefa é árdua, e eu vos estou defendendo contra vós mesma. Escrevei o que vou ditar.

Vencida, desamparada, as têmporas em fogo e o olhar velado pelas lágrimas, ela traçou penosamente as frases que jamais acreditara poder escrever. A carta deveria ser levada à casa de Tolomei, a fim de que ele a entregasse a seu sobrinho.

Maria declarava sentir grande vergonha e horror pelo pecado que cometera. Queria consagrar-se à criança que era o fruto desse pecado, não mais recair nos erros da carne, e desprezar o homem que a seduzira. Proibia Guccio de tentar revê-la, onde quer que se encontrasse.

Quis ao menos escrever, terminando: “Juro-vos não ter jamais outro homem na minha vida senão vós, e não me comprometer com ninguém mais”. A Senhora de Bouville recusou.

— Êle não deve suspeitar que ainda lhe tendes amor. Vamos, assinai, e dai-me essa carta.

Maria nem mesmo viu a pequenina mulher ir-se embora.

“Êle me odiará, vai desprezar-me, e não saberá nunca que fiz isso para salvá-lo!”, pensava, ouvindo bater a porta do convento.

 

                                   PARTIDAS

A CHEGADA ao sovar de Cressay, no dia seguinte pela manhã, de um mensageiro a cavalo, trazendo a flor-de-lis na manga esquerda e as armas reais bordadas na gola, produziu grande efeito. Trataram-no de Monsenhor, e os irmãos de Cressay, diante do breve bilhete que os chamava com urgência a Vincennes, acreditaram-se convocados para algum comando de capitania ou viram-se já nomeados senescais.

— Isso não seria de espantar — disse a dama Eliabel. — Teriam recordado, afinal, nossos méritos e os serviços que prestamos ao reino, há trezentos anos. Esse novo rei dá-me a impressão de compreender onde deve procurar homens de valor! Ide, meus filhos, vesti-vos com o que tendes de melhor, e apres-sai-vos a ganhar o caminho. Há, realmente, um pouco de justiça no céu, e isso nos consolará das vergonhas que vossa irmã nos fêz passar.

Estava mal recuperada de sua doença no verão. Tornara-se pesada, perdera sua bela atividade de outrora, e já não mostrava autoridade senão atormentando a criada da cozinha. Deixara em mãos de seus filhos a direção do pequeno domínio, que nem por isso ia melhor.

Os dois irmãos puseram-se, pois, a caminho, a cabeça cheia de esperanças ambiciosas. O cavalo de Pedro cabeceava tanto, ao chegar a Vincennes, que se poderia supor que era aquela a sua última viagem.

— Tenho que conversar convosco sobre coisas graves, meus jovens sires — disse-lhes Bouville, acolhendo-os.

E mandou oferecer-lhes vinho com especiarias e confeitos.

Os dois rapazes mantinham-se sentados na beirada de suas cadeiras, como caipiras, e mal ousavam levar aos lábios as grandes taças de prata.

— Ah! Eis a rainha que passa — disse Bouville. — Está aproveitando a melhoria do tempo para tomar um pouco de ar.

Os dois irmãos, com o coração batendo, esticaram o pescoço para perceber, através dos vidros esverdeados, uma forma branca, coberta com um grande manto, avançando a passos lentos, escoltada por alguns servidores. Depois, entreolharam-se, sacudindo a cabeça. Tinham visto a rainha!

— É de vossa jovem irmã que desejo falar-vos — recomeçou Bouville. — Estaríeis dispostos a levá-la de volta? Será preciso que vos diga, antes de mais nada, que ela amamentou o filho da rainha.

E explicou-lhes, com o mínimo de palavras possível, o que era indispensável que soubessem.

— Ah! Tenho também uma boa notícia para vós — continuou. — Aquele italiano que a engravidou... ela não quer mais revê-lo, nunca mais. Compreendeu sua culpa, e viu que uma jovem de sangue nobre não pode rebaixar-se casando-se com um lombardo, por muito bem feito que seja. Pois ele é um donzel encantador, devemos reconhecê-lo, e vivo de espírito...

— Mas, enfim, não passa de um íombardo — interrompeu a Senhora de Bouville que, dessa vez, assistia à conversação. — Um homem sem palavra nem fé, como provou.

Bouville baixou a cabeça.

“Também a ti preciso trair, meu amigo Guccio, meu gentil companheiro de viagem, eis aí! Terei que terminar meus dias renegando todos os que me tiveram amizade?”, pensava. Calou-se, deixando à sua mulher o cuidado de dirigir a operação.

Os irmãos estavam um tanto’ despeitados, o mais velho sobretudo. Tinham esperado maravilhas, e tratava-se apenas de sua irmã. Nenhum acontecimento lhes adviria senão através dela? Quase lhe tinham ciúmes. Ama de rei! E um alto personagem, como o camareiro, interessava-se pela sua sorte! Que teria imaginado tal coisa?

A tagarelice da Senhora de Bouville não lhes dava tempo de refletir.

— O dever do cristão — dizia ela — é auxiliar o pecador em seu arrependimento. Tratai de agir como gentis-homens.

Quem sabe se não foi pela vontade de Deus que vossa irmã deu à luz no momento necessário, sem grande proveito, infeliz mente, pois o reizinho morreu. Mas, enfim, ela ajudou-o muito. A Rainha Clemência, para mostrar seu reconhecimento, fará registrar em favor do filho da ama uma renda de cinqüenta libras, que serão recebidas anualmente de sua dotação. Além disso, um dom de trezentas libras de ouro lhe será feito neste momento. A soma aí está, num saco bordado.

Os dois irmãos Cressay mal puderam esconder sua emoção. Era a fortuna que lhes caía do céu, o modo de conseguirem levantar o muro que fechava o recinto de seu solar arruinado, a certeza de terem a mesa bem fornida o ano inteiro, a perspectiva de conseguirem, enfim, comprar armaduras e equipar alguns de seus servos como criados armados, a fim de poderem mostrar-se bem no recrutamento das tropas de pendão! Deles havia-se de falar nos campos de batalha (32)!

— Compreendei-me bem — precisou a Senhora de Bouville — é à criança que esses dons são feitos. Se ela fôr maltratada ou se alguma desgraça lhe acontecer, a renda, está claro, será suprimida. Pois o fato de ser o menino irmão de leite do rei confere-lhe uma distinção que deveis respeitar.

— Sem dúvida, sem dúvida, eu aprovo... já que Maria se arrepende — disse o irmão barbudo, pondo ênfase em sua solicitude — e pois que seu perdão nos é apresentado por pessoas tão altas como vós, Madame... devemos abrir-lhe os braços.

A proteção da rainha apaga seu pecado. E que daqui por diante, ninguém, seja nobre ou vilão, ouse rir-se diante de mim: corto-o ao meio.

— E nossa mãe? — perguntou o mais moço.

— Tenho certeza de convencê-la — respondeu João. — Sou o chefe da família desde que morreu nosso pai, é preciso não esquecer isso.

— Ides, é evidente, jurar sobre os Evangelhos — disse a Senhora de Bouville — que nada ouvireis ou repetireis do que vossa irmã possa dizer-vos ter visto enquanto esteve aqui, pois são assuntos da coroa, que devem conservar-se secretos. Aliás, ela nada viu : amamentou, eis tudo! Mas vossa irmã tem a cabeça um tanto extravagante e gosta de contar fábulas: provou-vos já isso... Hugo! Vai buscar os Evangelhos.

O livro santo de um lado, o saco de ouro do outro, e a rainha que passeava no jardim... Os irmãos Cressay juraram calar todas as coisas concernentes à morte do Rei João I, e velar, alimentar e proteger a criança que pertencia à sua irmã, assim como proibir a presença do homem que a seduzira.

— Ah! Juramos de todo o coração! Que nunca mais apareça! — exclamou o mais velho.

O mais novo mostrava menos convicção na ingratidão. Não podia deixar de pensar : “Ainda assim, sem Guccio...”

— Havemos, aliás, de nos informar, para saber se vos mantendes atentos ao vosso juramento — disse a Senhora de Bouville.

Ofereceu-se aos dois irmãos para acompanhá-los naquele mesmo momento ao convento das Clarissas.

— É muito trabalho para vós, Madame — disse João de Cressay. — Iremos sozinhos.

— Não, não, preciso ir também. Sem minha ordem, a madre abadêssa não deixará Maria sair.

O rosto do barbudo ficou sombrio. Refletia.

— Que tendes? — perguntou a Senhora de Bouville. — Vedes alguma dificuldade?

— É que eu queria... comprar antes uma mula, para que nossa irmã montasse.

Quando Maria estava grávida, ele fizera a moça viajar na garupa, de Neauphle a Paris. Agora, ela os enriquecia, e o irmão fazia questão de que sua volta se revestisse de dignidade. Depois, a mula que servia à dama Eliabel rebentara havia um mês.

— Que não seja essa a dúvida — disse a Senhora de Bouville — vamos dar-vos uma. Hugo! Manda selar uma mula.

Bouville acompanhou sua esposa e os dois irmãos Cressay até a ponte levadiça.

“Gostaria de estar morto”, pensava o infeliz homem, emagrecido, fremente, olhando para a floresta despida. “Assim cessaria de mentir e temer.”

“Paris!... Enfim, Paris!”, dizia consigo Guccio Ba-glioni, passando pela porta Saint-Jacques.

Paris estava melancólico e frio. O movimento da vida, como acontecia sempre, depois das festas do Ano Novo, parecia ter cessado e naquele janeiro mais do que de costume, em conseqüência da partida da corte.

Mas o jovem viajante, que voltava depois de seis meses de ausência, não via os véus de bruma presos aos telhados, nem os raros transeuntes transidos. Para ele, a cidade mostrara fisionomia de sol e de esperança, porque aquele “Enfim, Paris!”, que repetia como se fosse a canção mais feliz do mundo, queria dizer: “Enfim, vou rever Maria!”

Guccio usava manto forrado de pele, e capa de chuva, feita de lã de camelo. Sentia pesar à cinta uma bolsa à-cul-de-vilain (33), repleta de boas libras marcadas com o cunho do papa. Trazia na cabeça um elegante chapéu de feltro vermelho, levantado atrás e formando longa ponta sobre a testa. Era impossível estar melhor vestido para agradar, nem sentir maior impaciência de viver do que ele sentia.

Saltou da sela, no pátio da Rua dos Lombardos e, avançando sua perna, sempre um tanto rígida depois do acidente de Marselha, correu a atirar-se nos braços de Tolomei.

— Meu caro tio, meu bom tio! Vistes meu filho? Que tal é ele? E Maria, como passou nisso tudo? Que vos disse ela? Quando me espera ver?

Tolomei, sem uma palavra, entregou-lhe a carta de Maria de Cressay. Guccio leu-a duas vezes, três vezes... Diante das palavras: “Sabei que fui tomada de grande aversão pelo meu pecado e que não mais quero rever aquele que foi a causa da minha vergonha. Quero redimir-me dessa desonra...” — ele gritou:

— Não é verdade, não é possível! Ela não poderia ter escrito uma coisa destas!

— Não é a letra dela? — perguntou Tolomei.

— É.

O banqueiro pousou a mão no ombro do sobrinho.

— Se tivesse sido possível, eu te preveniria a tempo — disse. — Mas só anteontem recebi esta carta, depois de ter ido ver Bouville...

Guccio, o olhar ardente e fixo, os dentes cerrados, não o ouvia. Pediu o endereço do convento.

— No faubourg São Marcelo? Vou até lá! — disse ele.

Pediu seu cavalo, que mal tinham terminado de desselar, tornou a atravessar a cidade sem mais nada ver, e foi bater à porta das Clarissas. Ali, responderam-lhe que demoiselle de Cressay tinha partido na véspera, levada por dois gentis-homens, um dos quais usava barba. Não lhe adiantou brandir o sinête do papa, trovejar, fazer escândalo. Nada mais obteve.

— A abadêssa! Quero ver a madre abadêssa! — exclamou.

— Homens não podem entrar na clausura.

Terminaram por ameaçá-lo, dizendo que chamariam os sargentos da patrulha.

Sem fôlego, o rosto acinzentado, os traços contorcidos, Guccio voltou para a Rua dos Lombardos.

— Foram os irmãos, aqueles velhacos dos irmãos que a vieram buscar! — declarou ele a Tolomei. — Ah! Eu estive ausente por uma temporada grande demais. Que bela fé, a que ela me jurou e que não durou seis meses! Pois essas damas da nobreza, segundo nos contam nos romances, esperam dez anos pelos seus cavaleiros que estão na cruzada. Mas um lombardo, isto não é coisa que se espere! Pois é isso, meu tio, não é outra coisa! Tornai a ler os termos da carta! Só insultos e desprezos. Podiam obrigá-la a não me ver mais, não poderiam obrigá-la a esbofetear-me assim em plena face... Enfim, meu tio!

Estamos ricos, temos dezenas de milhares de florins. Os mais altos barões vêm implorar-nos para que paguemos suas dívidas, o próprio papa tomou-me como conselheiro durante o conclave, e aqueles rústicos camponeses cospem-me no rosto, do alto de seu castelo-forte de taipa, que cairia com um empurrão! Foi bastante que aparecessem aqueles dois gafentos, para que a irmã me repelisse. Que engano, pensar que uma mulher não é da mesma casta de seus parentes!

O desgosto, em Guccio, depressa se ia transformando em cólera e os ressentimentos do orgulho ajudavam-no a defender-se do desespero. Deixara de amar, mas não deixara de sofrer.

— Eu não compreendo — dizia Tolomei, desolado. — Parecia tão amorosa, tão feliz de pertencer-te... Eu nunca pensaria... Vejo, agora, por que Bouville mostrava-se tão constrangido no outro dia. Sabia algo com certeza. Mas, então, êle preveniu os irmãos, depois da minha visita... Entretanto, as cartas que eu dela recebi... Não compreendo. Queres que eu vá procurar novamente Bouville?

— Não quero nada, não quero mais nada! — exclamou Guccio. — Já importunei demais os grandes da terra, para que cuidassem daquela mulherzinha enganadora. Até mesmo ao papa cheguei a pedir proteção para ela... Amorosa, dizes? Acarinhou-te quando pensou que estava sendo repelida pelos seus e só via proteção entre nós. Entretanto, tínhamos casado! Não lhe faltava impaciência para dar-se a mim, mas não sem a bênção do padre. Disseste-me que passou cinco dias junto da Rainha Clemência, servindo de ama! Com certeza ficou de cabeça virada, vendo-se num trabalho que qualquer camareira poderia fazer em seu lugar. Também eu estive junto da rainha, e ajudei-a de outra forma! No meio da tempestade, salvei-a...

Já não ligava suas idéias, divagava em seu furor e, caminhando pelo aposento, a atirar a perna, já fizera bem um quarto de légua.

— Talvez se procurasses a rainha...

— Nem a rainha, nem ninguém! Que Maria volte a seu lugarejo lamacento, onde a gente enterra-se até os tornozelos no estrume. Com certeza arranjaram-lhe um marido, um boià marido, parecido com seus rústicos irmãos. Algum cavaleiro peludo e tresandante, que criará meu filho, o cornudo! Mesmo que ela agora viesse rojar-se a meus pés, eu não a quereria mais, estás ouvindo? Eu não a quereria mais!

— Acho que se ela entrasse agora, falarias de outra forma — disse Tolomei, suavemente.

Guccio empalideceu, e escondeu os olhos na palma das mãos. “Minha bela Maria...” Revia-a em seu quarto de Neauphle. revia-a bem próxima dele e observava os pontos dourados em seus olhos de um azul sombrio. Como seria possível que semelhante traição se dissimulasse em olhos tais?

— Vou embora, meu tio.

— Para onde? Voltas para Avinhão?

— Que belo papel faria eu lá! Anunciei a todo o mundo que voltaria com minha esposa, e atribuí-lhe todas as virtudes. O próprio Santo Padre será o primeiro a pedir-me notícias dela...

— Bocácio disse-me, um dia destes, que os Peruzzi vão sem dúvida arrendar a recebedoria das taxas da senescalia de Carcassonne...

— Não! Nem Carcassonne, nem Avinhão.

— Nem Paris, com certeza... — disse, triste, Tolomei.

A todo homem, por muito egoísta que tenha sido, chega um dia, no crepúsculo da existência, em que ele se sente cansado de trabalhar para si próprio. O banqueiro, depois de ter esperado a presença de uma bonita sobrinha e de uma família feliz em sua casa, via, de súbito, suas próprias esperanças apagarem-se e, em lugar delas, esboçar-se a perspectiva de longa velhice solitária.

— Não, eu quero partir — disse Guccio. — Nada mais desejo desta França que prospera à nossa custa e despreza-nos porque somos italianos. Que ganhei na França, pergunto-te?

Uma perna dura, quatro meses de hospital, seis semanas numa igreja, e, para terminar... isto! Eu deveria ter compreendido que esta terra de nada me serviria. Lembra-te! No dia seguinte da minha chegada, quase derrubei na rua o Rei Filipe, o Belo. Não foi um bom presságio! Sem falar das travessias de mar, nas quais por duas vezes quase morri, e de todo o tempo passado a contar bilhões* para os plebeus daquele burgo lamacento de Neauphle, porque acreditava ter-me apaixonado ali.

— Apesar de tudo, conseguiste algumas boas recordações — disse Tolomei.

— Bah! Na minha idade não se tem necessidade de recordações. Quero voltar para a minha cidade de Siena, onde não faltam belas jovens, as mais belas do mundo, segundo me afirmam toda vez que digo que sou sienense. Menos velhacas, em todo o caso, do que as daqui! Meu pai mandou-me para junto de ti, a fim de que eu aprendesse: penso que já aprendi bastante.

Tolomei abriu seu olho esquerdo, pois tinha um pouco de bruma sobre aquela pálpebra.

— Talvez tenhas razão — disse. — O desgosto passará mais depressa, quando estiveres longe. Mas nada deves lamentar, Guccio. O aprendizado que fizeste não foi mau. Viveste, correste pelos caminhos, conheceste as misérias dos pequenos e descobriste as fraquezas dos grandes. Estiveste junto das quatro cortes que dominam a Europa, as de Paris, Londres, Nápoles e Avinhão. Ficar encerrado num conclave foi coisa que não aconteceu a muita gente! Fizeste boa carreira nos negócios. Dar-te-ei tua parte, e a soma é bem agradável. O amor levou-te a fazer algumas tolices e deixas um bastardo no caminho, como alguém que tenha viajado muito... E não tens mais de vinte anos. Quando desejas partir?

— Amanhã, zio Spinello, amanhã, se não te opuseres... Mas voltarei! — acrescentou Guccio, em tom furioso.

— Oh! Eu espero que sim, meu rapaz! Espero que não vás deixar que o teu velho tio morra sem te rever!

— Voltarei, um dia, e raptarei meu filho. Pois é meu, afinal, tanto quanto dos Cressay! Por que haveria eu de deixá-lo para eles? Para que o criem em sua cavalariça, como a um cão de má raça? Eu o raptarei, estás ouvindo? E esse será o castigo de Maria. Sabes o que se diz em nossa terra: vingança de toscano...

Um grande estrépito, vindo do rés-do-chão, interrompeu-o. A casa de vigas de madeira tremia sobre seus fundamentos como se doze carros grandes de transporte tivessem entrado no pátio. Portas batiam.

O tio e o sobrinho dirigiram-se para a escada de caracol, que já ia sendo tomada por um ruído de assalto de guerra. Uma voz tonitroou :

— Banqueiro! Onde estás, banqueiro? Preciso de dinheiro.

E Monsenhor Roberto d’Artois apareceu no alto dos degraus.

— Olha bem para mim, banqueiro meu amigo: saio neste momento da prisão! — exclamou. — Acreditarias numa coisa destas? Meu primo, o doce, o melífluo, o zarolho... quero dizer, o rei, pois, ao que parece, ele o é... lembrou-se, enfim, que eu estava apodrecendo na prisão onde me atirara, e de volve-me ao ar livre, o amável rapaz!

— Sede bem-vindo, Monsenhor — disse Tolomei sem entusiasmo.

E inclinou-se sobre a escada, duvidando ainda que tal passagem de furacão pudesse ser obra de um só homem.

Baixando a cabeça para não esbarrar no lintel da porta, o Conde d’Artois entrou no gabinete do banqueiro e caminhou diretamente para um espelho.

— Olá! Mas estou com cara de defunto! — disse ele, tomando as faces com ambas as mãos. — Para dizer a verdade, com muito menos qualquer um enfraqueceria. Sete semanas, imagina, sem ver a luz do dia senão por uma trapeira recoberta com ferros cruzados, grossos como o membro de um burro! Duas vezes por dia üma chanfana que já produzia eólicas, antes de ser comida. Por felicidade, meu Lormet arranjava-se para passar-me pratos à moda dele, senão a esta hora eu não estaria vivo. E uma cama... nem falemos! Em consideração pelo meu sangue real, tinham-me feito a gentileza de uma cama. Tive que partir-lhe a guarda para poder esticar os pés! Paciência: tudo isso será levado à conta de meu caro primo.

Na verdade, Roberto não emagrecera uma onça sequer, e a reclusão pouca diferença fizera à sua sólida natureza. Se sua carnação mostrava-se menos viva, em compensação seus olhos cinzentos, côr de sílex, brilhavam mais maldosamente do que outrora.

— Bela liberdade, a que me dão! “Estais livre, Monsenhor” — continuou o gigante, imitando o capitão do Châtelet.

— “Mas... não podeis afastar-vos mais de vinte léguas de Paris; mas os aguazis do rei devem saber onde morais; mas a capitania d’Evreux, se fordes até vossas terras, deve ser advertida.” Em outras palavras: “Fica aqui, Roberto, batendo as ruas sob os olhos da patrulha, ou então vai mofar em Conches.

Mas nem um pé em direção de Artois, nem um pé em direção de Reims! Não querem saber de ti na sagração, principalmente na sagração! Bem poderias cantar ali algum salmo que não agradaria a todos os ouvidos!” E escolheram bem o dia, para relaxar a minha prisão. Nem muito cedo, nem muito tarde.

Toda a corte partiu: não há ninguém no Palácio, não há ninguém em casa de Valois... Êle abandonou-me, o primo!

E aqui estou, numa cidade morta, sem um liard na bolsa para cear hoje e para encontrar alguma rapariga com a qual expandir meu apetite amoroso! Porque há sete semanas, compreendes, banqueiro... não, tu não podes compreender. Isso é coisa que não deve incomodar-te mais. Repara, repara bem: eu me refocilara bastante em Artois, enquanto ali estive, para manter-me calmo durante algum tempo. E por lá deve estar em andamento um bom número de criadinhos que jamais virão a saber que poderiam dizer “vovô”, falando de Filipe-Augusto. Constatei, porém, uma coisa estranha, sobre a qual os doutores e filósofos deveriam meditar; por que há nos homens um membro que, quanto mais trabalho se lhe dá, mais trabalho ele reclama?

Deu uma gargalhada, fêz estalar uma cadeira de carvalho, sentando-se nela, e, subitamente, pareceu reparar na presença de Guccio.

— E vós, meu lindinho, como vão os vossos amores? — perguntou, o que, em sua boca, significava apenas “bom dia”.

— Meus amores! Falemos deles, Monsenhor! — disse Guccio, descontente ao verificar que uma violência maior do que a dele o havia interrompido.

Tolomei, com uma careta, fêz sinal ao Conde d’Artois, prevenindo que o assunto não era muito propositado, no momento.

— Então — disse d’Artois, com sua habitual delicadeza — uma bela vos deixou? Dai-me logo o endereço dela, que eu correrei até lá! Vamos, não tomeis esse ar triste. As mulheres são todas umas dissolutas.

— Sem dúvida, Monsenhor. Todas!

— Então! Folguemos, pelo menos, com as que o são francamente! Banqueiro, preciso de dinheiro. Cem libras. E levo teu sobrinho a cear comigo, para lhe tirar da cabeça as idéias negras. Cem libras!... Sim, eu sei, eu sei, já vos devo muito, e estais pensando que nunca chegarei a pagar-vos. Estais enganado. Muito em breve vereis Roberto d’Artois mais pode roso do que nunca. O Filipe pode bem enterrar a coroa até o nariz, porque eu não demorarei a fazer com que ela lhe salte da cabeça. Porque vou contar-te uma coisa que vale mais de cem libras, e que te servirá para teres cuidado com as pessoas às quais emprestas dinheiro... Qual é o castigo dos regicidas? Enforcamento, degolação ou esquartejamento? Assistireis, bem depressa, a um espetáculo agradável: minha gorda tia Mafalda, nua como uma prostituta, estirada por quatro cavalos, e suas tripas rolando na poeira. E seu genro, aquele texugo, estará com ela! É pena que não o possamos supliciar duas vezes. Porque mataram dois, os celerados. Eu nada disse enquanto estava no Châtelet, para que não viessem, uma bela noite, sangrar-me como a um porco. Mas pude manter-me ao corrente do que se passava. Lormet... sempre o meu Lormet, aquele excelente homem! Ouvi-me!

Depois de sete semanas de mutismo forçado, aquele terrível falador compensava-se, e só retomava o fôlego para falar ainda mais.

— Ouvi-me bem — continuou. — Um: Luís confisca a Mafalda o condado de Artois, para devolver-mo, e, imediata mente, Mafalda manda envenená-lo. Dois: Mafalda, para ficar a coberto, impele Filipe para a regência, contra Valois, porque este último teria mantido o meu direito. Terceiro: Filipe consegue que aceitem seu regulamento de sucessão, que exclui as mulheres da coroa da França, mas não da herança dos feudos, vede bem! Quatro: confirmado regente, Filipe* pode convocar a hoste que me desalojaria de Artois, quando eu já estava quase a reavê-lo inteiramente. Não sendo tolo, vim render-me sozinho. Mas a Rainha Clemência vai dar à luz, é preciso que tenham as mãos livres, e encarceram-me. Cinco: a rainha dá à luz um filho. Leve pecado! Fecham Vincennes, escondem a criança aos barões, conta-se que ela não é viável, entram em conchavo com alguma parteira ou ama, pelo pavor ou pelo suborno, e matam o segundo rei. Depois do que, vão fazer-se sagrar em Reims. Eis, meus amigos, como se obtém uma coroa. Tudo isso para não me devolverem meu condado de Artois.

À palavra “ama”, Tolomei e Guccio haviam trocado um breve olhar de inquietação.

— São coisas que toda a gente pensa — acabou d’Artois — mas que ninguém ousa reclamar, pela falta de provas. Acontece, porém, que eu tenho a prova! Vou apresentar, agora, certa dama que forneceu o veneno. Depois, será preciso fazer cantar um bocadinho, nos borzeguins de madeira, aquela Beatriz d’Hirson, que serviu de alcoviteira do diabo nesse belo jogo. É tempo de pôr fim a ele, senão todos seremos atingidos.

— Cinqüenta libras, Monsenhor. Posso dar-vos apenas cinqüenta libras.

— Avarento!

— É tudo o que sou.

— Seja. Ficas devendo-me, portanto, as outras cinqüenta libras. Mafalda há de pagar-te tudo isso, com juros.

— Guccio — disse, então, Tolomei — vem ajudar-me a contar cinqüenta libras para Monsenhor.

E retirou-se, com seu sobrinho, para o aposento vizinho.

— Meu tio — murmurou Guccio — acreditas que haja alguma verdade no que ele acaba de dizer?

— Não sei, meu rapaz, não sei, mas acho que tens, com toda a certeza, muita razão em querer partir. Não é bom estar misturado demais com esse negócio, que cheira mal. As maneiras estranhas de Bouville, a súbita fuga de Maria... Sem dúvida, não se pode levar em conta todas as agitações desse furioso, mas reparei, muitas vezes, que ele não passava jamais muito longe da verdade, quando se tratava de maldades: é mestre no assunto, e sente-lhe o cheiro à distância. Recorda o adultério das princesas: fêz com que fosse descoberto e já nos tinha prevenido. Tua Maria... — disse o banqueiro, balançando sua mão gorda num gesto de dúvida — talvez seja menos ingênua e menos franca do que tínhamos julgado. Há nisso tudo, sem dúvida, algum mistério.

— Depois de sua carta de traição, tudo se pode crer — falou Guccio, cujo pensamento extraviava-se em vinte direções diferentes.

—-Não creias em nada, não procures nada: parte. É um bom conselho.

Quando Monsenhor d’Artois viu-se de posse das cinqüenta libras, insistiu para que Guccio tomasse parte na pequena festa com que contava festejar sua libertação. Precisava de um companheiro, e preferiria embebedar-se com seu cavalo a ficar só.

Pôs tanta insistência naquilo, que Tolomei acabou por cochichar ao sobrinho:

— Vai, senão ele ficará ofendido conosco. Reprime tua língua, porém.

Guccio terminou, pois, o dia exaspérante numa taverna, cujo proprietário pagava tributo aos oficiais da patrulha para que o deixassem fazer um pouco de tráfico de lupanar. Tudo quanto ali se dizia, aliás, era repetida pelos aguazis.

Monsenhor d’Artois apresentou em suas melbortes disposições, insaciável no pichei de vinho, prodigioso de apetite, vociferando, desbocado, transbordante de ternura humana para com seu jovem companheiro, e erguendo as saias das raparigas para mostrar a todos o verdadeiro rosto de sua tia Ma-falda.

Guccio, estimulado com aquilo, não resistiu muito ao vinho. Os olhos brilhantes, os cabelos em desordem, e o gesto hesitante, gritava :

— Também eu sei coisas... Ah! Se eu quisesse falar...

— Fala, fala, pois!

— O papa... — disse ele. — Sei muito sobre o papa.

Subitamente, começou a chorar, verdadeiro rio, sobre o ombro de uma prostituta; depois, esbofeteou-a, porque via nela a imagem da traição feminina.

— Mas eu voltarei... e hei de raptar-lho!

— A quem? Ao papa?

— Não, o seu filho!

A noitada ia fazendo-se confusa, os olhares vacilavam, as raparigas fornecidas pelo dono do lupanar já quase não tinham roupa sobre a pele, quando Lormet aproximou-se de Roberto d’Artois, para dizer-lhe ao ouvido:

— Lá fora há um homem que vos espia.

— Mata-o! — respondeu negligentemente o gigante.

— Está bem, Monsenhor.

Assim a Senhora de Bouville perdeu um de seus criados, que pusera no rasto do jovem italiano.

Guccio jamais saberia que Maria, com o seu sacrifício, poupara-lhe, certamente, terminar seus dias de ventre para o ar, sobre a corrente do Sena.

Chafurdado num leito duvidoso, sobre os seios da rapariga que esbofeteara, e que se mostrava compreensiva em relação aos desgostos do homem, Guccio continuava a insultar Maria, e imaginava vingar-se dela, magoando uma carne mercenária.

— Tens razão! Eu também não gosto das mulheres, são todas umas mentirosas — dizia a prostituta, de cujos traços Guccio jamais se recordaria.

No dia seguinte, o chapéu enterrado até os olhos, os membros fatigados e a alma e o corpo igualmente enojados, Guccio tomava o caminho da Itália. Levava bem agradável fortuna, sob a forma de uma cambial assinada por seu tio, e que representava sua parte nos lucros dos negócios de que tratara naqueles últimos dois anos.

No mesmo dia, o Rei Filipe V e sua esposa Joana, bem como a Condêssa Mafalda, com todo o seu trem de casa, chegavam a Reims.

As portas do solar de Cressay já se haviam fechado sobre a bela Maria, que ali vivia, inconsolável, em perpétuo inverno.

O verdadeiro rei de França iria crescer ali, como um bastardozinho. Daria seus primeiros passos no pátio lamacento, entre os patos, rolaria pelos prados de íris amarelos, ao longo do Mauldre, naquele prado em que Maria, cada vez que por ele caminhasse, encontraria o rosto de seu sedutor sienense e a passagem fugaz de seus amores mortos. Manteria o juramento, e durante trinta anos guardaria seu segredo, para confiá-lo, enfim, em seu leito de morte, a um religioso espanhol que por ali viria a passar.

Maria de Cressay viera marcada por estranho destino. Amorosa condenada à solidão, e que em toda sua vida só deixaria seu lugarejo natal a fim de ser empurrada, inocente, impotente, para o núcleo de um drama dinástico, sua confissão, um dia, perturbaria a Europa*.

 

                     A VÉSPERA DA SAGRAÇÃO

AS PORTAS de Reims, rematadas com as armas reais, tinham sido pintadas de novo. As ruas estavam ornadas com tecidos brilhantes, tapetes e sedas, os mesmos, aliás, que haviam servido um ano e meio antes para a sagração de Luís X. Junto do palácio arquiepiscopal vinham de ser edificadas apressadamente três grandes salas de madeira: uma para a mesa do rei, outra para a mesa da rainha, e a terceira para os grandes oficiais, a fim de que toda a corte se banqueteasse.

Os burgueses de Reims, que estavam obrigados às despesas da sagração, achavam a carga um tanto pesada.

— Se começam a morrer tão depressa no trono — diziam — e todos os anos tivermos a honra de coroar um rei, acabaremos por fazer uma única refeição em doze meses, para a qual teremos de vender a última camisa! Clóvis, fazendo-se batizar aqui, já nos custou muito dinheiro! Se alguma outra cidade do reino quiser comprar a âmbula sagrada, estamos dispostos a fazer o negócio.

Aos constrangimentos da tesouraria juntava-se a dificuldade de reunir, em pleno inverno, as provisões suntuárias que tantas bocas exigiam. E os burgueses de Reims enumeravam oitenta e dois bois, duzentos e quarenta carneiros, quatrocentos e vinte e cinco vitelas, setenta e oito porcos, oitocentos coelhos e lebres, oitocentos capões, mil oitocentos e vinte gansos, mais de dez mil galinhas e de quarenta mil ovos, sem falar nos barris de esturjões que tinham mandado vir de Malines, dos quatro mil lagostins pescados em água fria, e salmões, solhas, tencas, bremas, percas e carpas, três mil e quinhentas enguias destinadas à fabricação de quinhentos pâtés. Dispunham de dois mil queijos, e esperavam que trezentos toneis de vinho produzido, felizmente, na região, seriam o suficiente para satisfazer tantas bocas sedentas, que se iriam banquetear durante três dias, ou mais.

Os camareiros, chegados antecipadamente para organizar a ordem dos festejos, mostravam exigências singulares. Pois não resolveram que seriam apresentadas, num só serviço, trezentas garças reais assadas? Esses oficiais assemelhavam-se bem a seu amo, a esse rei apressado, que encomendava sua sagração de uma semana para outra, por assim dizer, como se se tratasse de uma missa de dois liards, por intenção de uma perna quebrada!

Há dias já que os pasteleiros vinham montando suas fortalezas de massa de amêndoas, pintadas com as cores da França.

E a mostarda! Não tinham recebido a mostarda! Seriam necessários trinta e um sesteiros. Além disso, os convivas não iam comer na própria mão. Tinham feito muito mal em vender, a preço vil, as cinqüenta mil escudelas de madeira da sagração precedente: teria sido mais lucrativo lavá-las e guardá-las. Quanto às quatro mil bilhas, tinham sido quebradas ou roubadas. As roupeiras embainhavam às pressas duas mil e seiscentas varas de guardanapos, e podiam contar que a despesa total se elevaria a cerca de dez mil libras (34).

Para dizer a verdade, os habitantes de Reims não se saíram mal em suas contas, pois a sagração atraíra muitos mercadores lombardos e judeus, que pagavam taxas sobre suas vendas.

A coroação, com todas as cerimônias reais, passou-se num ambiente de quermesse. Era um espetáculo ininterrupto que se oferecia ao povo, naqueles dias, e todos vinham de longe para vê-lo. As mulheres faziam questão de vestir roupas novas; os elegantes não desprezavam as jóias; os bordados, os belos tecidos, as peles vendiam-se facilmente. A fortuna pertencia aos mais hábeis, e os lojistas que mostrassem um pouco de solicitude no servir à freguesia, podiam, numa semana, obter cinco anos de abastança.

O novo rei estava instalado no palácio arquiepiscopal, diante do qual a turba estacionava permanentemente, para ver os soberanos aparecer, e deslumbrar-se diante do carro da rainha, um carro forrado de escarlate.

A Rainha Joana, cercada pelas suas damas da nobreza, presidia, com agitação de mulher mimada pela sorte, à abertura de doze malas, quatro baús, um cofre de calçados, um cofre de especiarias. Seu guarda-roupa era, sem dúvida alguma, o mais belo que jamais teve uma dama de França. Um trajo especial fora previsto para cada dia, e quase para cada hora desta viagem triunfal.

Sob uma capa de tecido dourado, forrado de arminho, a rainha fizera sua entrada solene na cidade, enquanto que ao longo das ruas ofereciam aos esposos reais representações, mistérios e divertimentos. Na ceia da véspera da sagração, que teria lugar a seguir, a rainha apareceria com um vestido de veludo violeta rematado com menu-vair. Para a manhã da coroação tinha um trajo de tecido dourado da Turquia, um manto de escarlate e uma vasquinha acobreada. Para o jantar, um vestido bordado com as armas da França. Para a ceia, um vestido de tecido dourado e dois mantos de arminho diferentes.

No dií seguinte, usaria um vestido de veludo verde, a seguir um outro de camocas celeste, com romeira de petit-gris. Jamais, aparecia em público com o mesmo trajo ou com as mesmas jóias (35).

Aquelas maravilhas exibiam-se num quarto cuja decoração tinha sido também trazida de Paris: armações de seda branca bordadas com mil trezentos e vinte e um papagaios de ouro, e mostrando no centro as grandes armas dos Condes de Bor-gonha, com leões de goles. Dossel do leito, coberta e almo-fadas estavam ornadas com sete mil trevos de prata. No chão, haviam atirado tapetes com as armas da França e do Condado de Borgonha.

Várias vezes Joana entrara no aposento de Filipe, a fim de oferecer à sua admiração a beleza de um tecido, a perfeição de um trabalho.

— Meu caro Sire, meu bem-amado — exclamava — como me fazeis feliz!

Por pouco inclinada que fosse às demonstrações muito vivas, não podia evitar que seus olhos se umedecessem. Sua própria sorte deslumbrava-a, sobretudo quando recordava a época recente em que se encontrava na prisão, em Dourdan. Que prodigiosa reviravolta do destino, em menos de dezoito meses! Pensava em Margarida, a morta, pensava em sua irmã Branca de Borgonha, sempre encerrada em Château-Gaillard... “Pobre Branca, que tanto gostava dos enfeites. Como estaria alegre, hoje!”, pensava, experimentando um cinto de ouro, incrustado com rubis e esmeraldas.

Filipe estava preocupado, e os entusiasmos de sua esposa faziam-no ainda mais sombrio. Examinava as contas com seu tesoureiro-mor.

— Alegra-me bastante, minha querida, que tudo isso vos dê prazer — terminou respondendo. — Podeis ver, estou agindo como meu pai, que conheceste bastante seguro em suas despesas mas nunca demonstrando avareza quando se tratava da majes tade real. Mostrai bem essas belas roupas, porque elas são para o povo, que com seu trabalho as forneceu, tanto como para vós. E tende bastante cuidado com elas, pois tão cedo não podereis ter iguais. Depois da sagração, precisaremos fazer economias.

— Filipe — perguntou Joana — não quereríeis fazer alguma coisa neste dia por minha irmã Branca?

— Já fiz, já fiz. Está sendo novamente tratada como princesa, com a condição de não sair das muralhas do castelo em que está. É preciso que haja uma diferença, entre ela que pecou, e vós, Joana, que sempre fôstes pura e a quem acusaram falsamente.

Tinha pronunciado estas derradeiras palavras levantando para a esposa um olhar onde era possível ler mais preocupações pela honra real do que pela certeza do amor.

— Depois — acrescentou — seu marido só me dá aborrecimentos, neste momento. Mostra-se um mau irmão!

Joana compreendeu que seria inútil insistir, e que faria melhor se nunca mais tocasse naquele assunto. Enquanto Filipe fosse rei, havia de recusar-se a libertar Branca.

Joana retirou-se e Filipe recomeçou o estudo das longas folhas carregadas de cifras, que Godofredo de Fleury lhe apresentava.

As despesas não se limitavam apenas aos vestuários do rei e da rainha. Filipe recebera, na verdade, alguns presentes. Assim, o trajo de escumilha que usava naquele dia fora presente de sua avó Maria de Brabante, a viúva de Filipe II, e Mafalda oferecera o tecido de lã e seda, feito com fios de diversas cores, que serviriam para os trajos das princesinhas e do jovem Luís-Filipe. Mas isso tudo era pouca coisa, comparado ao resto.

O rei tinha precisado vestir novamente seus cinqüenta e quatro sargentos-de-armas e seu chefe, Pedro de Galard, mestre dos besteiros. Adão Héron, Roberto de Gamaches, Guilherme de Seriz, os camareiros, tinham recebido, cada um, dez varas de riscado de Douai, para que fizessem cotas de estilo arrojado. Henrique de Meudon, Furant de la Fouaillie, Jeannot Malgeneste, os monteiros, tinham ganho novo equipamento, assim como todos os archeiros. E como vinte cavaleiros iam ser armados depois da sagração, eram ainda vinte trajos a dar! Aqueles presentes em vestimentas constituíam a gratificação do costume, e o costume mandava, também, que o rei acrescentasse, ao cofre das relíquias de Saint-Denis, uma flor-de-lis de ouro, constelada com esmeraldas e rubis.

— Total? — perguntou Filipe.

— Oito mil quinhentos e quarenta e oito libras, treze soldos e doze dinheiros, Sire — respondeu o tesoureiro. — Talvez pudésseis pedir uma contribuição relativa a acontecimento festivo?

— Meu advento será mais festivo se eu não impuser novas taxas. Vamos agir de outra maneira — disse o rei.

Foi naquele momento que anunciaram o Conde de Valois. Filipe levantou as mãos para o teto:

— Eis o que tínhamos esquecido em nossas somas. Vereis, Godofredo, vereis! Esse tio vai custar-me mais caro, sozinho, do que dez sagrações. Vem negociar comigo. Deixai-me a sós com ele.

Ah! Como se mostrava esplêndido Monsenhor de Valois! Bordado, agaloado, duplicado de volume pelas peles, que se abriam sobre um trajo repleto de pedras preciosas! Se os habitantes de Reims não soubessem que seu novo rei era jovem e magro, teriam tomado aquele senhor pelo próprio soberano.

— Meu caro sobrinho — começou — estou bastante desgostoso... bastante desgostoso por vós. Vosso cunhado da Inglaterra não virá.

Há muito tempo, meu tio, que os reis de além Mancha não mais assistem às nossas sagrações - respondeu Filipe.

— Sem dúvida. Mas fazem-se representar por algum parente ou grão-senhor de sua côrte, para ocupar seu lugar de Duque da Guyenne. Ora, Eduardo não enviou ninguém, o que vem confirmar que não vos reconhece. O Conde da Flandres, que pensáveis ter engodado com o vosso tratado de setembro, também não veio, nem o Duque da Bretanha.

— Eu sei, meu tio, eu sei.

— Quanto ao Duque de Borgonha, nem falemos, pois bem sabíamos que não compareceria. Em compensação, sua mãe, nossa tia Agnes, acaba de fazer sua entrada ainda há pouco, e não suponho que venha trazer-vos precisamente seu apoio.

— Eu sei, meu tio, eu sei — repetia Filipe.

Aquela chegada imprevista da última filha de São Luís inquietava Filipe mais do que deixava transparecer. De início, pensara que a Duquesa Agnes vinha propor negociação, mas ela não mostrava pressa em se manifestar, e o rei decidira que não seria ele a dar o primeiro passo. “Se o povo, que me aclama quando apareço e considera-me digno de inveja, soubesse de quantas hostilidades e ameaças estou rodeado!”, dizia consigo.

— De maneira que não tendes nenhum dos seis pares leigos que devem sustentar amanhã vossa coroa — recomeçou Valois (36).

— Tenho, sim, meu tio. Esqueceis a Condêssa d’Artois... e vós mesmo.

Valois fêz um gesto brusco com o ombro.

— A Condêssa d’Artois! — exclamou. — Uma mulher para sustentar a coroa, quando vós mesmo, Filipe, tirastes vossos direitos apenas da evicção das mulheres.

— Sustentar a coroa não é colocá-la sobre a própria cabeça — disse Filipe.

— Mafalda deve ter ajudado muito em vossa ascensão ao trono, para que assim a engrandeçais! Ides aumentar o crédito que se dá a todas as mentiras que por aí circulam. Não falemos no passado, mas, enfim, Filipe, não era Roberto quem deveria figurar no assento de par, pelo Artois?

Filipe fingiu não prestar atenção às últimas palavras de seu tio.

— Seja como fôr, os pares eclesiásticos estão aqui — disse.

— Estão aqui, estão aqui! — falou Valois, sacudindo seus anéis. — Já são apenas cinco, quando deveriam ser seis. E que imaginais que vão fazer esses pares da Igreja, quando virem do lado do reino uma só mão, e que mão! — para coroar-vos?

— Mas, meu tio, não contais convosco?

Foi a vez de Valois ignorar a pergunta.

— Vosso próprio irmão está amuado — disse.

— É que Carlos, sem dúvida — falou suavemente Filipe — não sabe, meu tio, como estamos em boa concordância, e talvez acredite servir-vos, desservindo-me... Mas, tranqüilizai-vos: mandou avisar que chegará amanhã.

— Por que não lhe conferis o pariato? Vosso pai fez isso comigo, e vosso irmão Luís convosco. Assim, eu me sentiria menos só para sustentar-vos.

“Ou menos só para me trair”, pensou Filipe, que falou:

— É por Roberto ou por Carlos que vindes pedir? Ou desejais falar-me de vós mesmo?

Valois fêz uma pausa, ajeitou-se com firmeza em sua cadeira, olhou para o brilhante que cintilava em seu indicador.

“Cinqüenta... ou cem mil”, perguntava Filipe a si próprio. “Zombo dos outros, mas ele me é necessário, e sabe disso. Se recusa e faz escândalo, arrisco-me a ter de adiar a sagração.”

— Meu sobrinho — disse, por fim, Valois — sabeis bem que não recalcitrei, e que fiz, mesmo, grandes despesas com roupas e com séquito, para vos honrar. Mas, constatando que os outros pares estão ausentes, penso que vou retirar-me também. Que se diria, se vissem apenas a mim de vosso lado?

Que me comprastes, apenas.

— Eu deploraria muitíssimo tal coisa, meu tio. Mas, que quereis? Não vos posso obrigar a fazer o que vos desagrada. Talvez, tenha chegado a ocasião de renunciar a esse costume que manda os pares levantarem a mão sobre a coroa...

— Meu sobrinho! Meu sobrinho! — exclamou Valois.

— ... e se fôr preciso consentimento por eleição — continuou Filipe — talvez seja o momento de pedi-lo, não mais a seis grandes barões, mas ao povo, meu tio, que fornece homens para os exércitos e subsídios para o Tesouro. Será esse o papel dos Estados que vou reunir.

Valois não se pôde conter, e, saltando de sua cadeira, começou a gritar:

— Blasfemais, Filipe, ou estais perdendo por completo a cabeça! Já se viu acaso um monarca eleito pelos seus súditos?

Bela inovação, a de vossos Estados! Isso vem diretamente das idéias de Marigny, que nascera plebeu e que foi tão prejudicial para vosso pai. Digo-vos que se começarmos assim, dentro de cinqüenta anos o povo nos dispensará, e escolherá para rei qualquer burguês enriquecido, algum doutor do Parlamento ou salsicheiro que tenha feito fortuna no roubo. Não, meu sobrinho, não. Desta vez, estou realmente decidido: não sustentarei a coroa de um rei que só faz o que entende, e que deseja, além disso, que essa coroa, muito breve, seja pasto dos la-bregos.

Inteiramente congestionado, deambulava a grandes passos.

“Cinqüenta mil... ou cem mil?”, continuava a perguntar Filipe a si próprio. “Com que quantia será preciso feri-lo?”

— Seja, meu tio, não sustenteis nada — disse. – Mas permiti então que eu chame imediatamente meu tesoureiro-mor.

— Para quê?

— Para fazer com que modifique a lista das doações, que eu devia assinar amanhã, como sinal de jubiloso advento, e na qual estáveis em primeiro lugar, com... com cem mil libras.

A estocada alcançara o alvo. Valois ficou interdito, os braços afastados do corpo.

Filipe compreendeu que ganhara, e, por muito caro que lhe custasse aquela vitória, precisou esforçar-se para não sorrir diante do aspecto que lhe apresentava o rosto do tio. Este último, aliás, não demorou muito a sair de sua confusão. Fora detido num movimento de cólera, e retomou-o. A cólera, nele, era uma forma de tentar a perturbação do raciocínio alheio, quando o seu tornava-se fraco demais.

— Antes de mais nada, todo o mal vem de Eudes — lançou ele. — Eu o reprovo muito, e hei de escrever-lhe! E que necessidade tinham o Conde da Flandres e o Duque da Bretanha de tomarem o partido dele, e recusar vossa convocação? Quando o rei manda chamar-nos para sustentar sua coroa, devemos vir! Não estou aqui? Esses barões, na verdade, ultrapassam seus direitos. É assim, com efeito, que a autoridade arrisca-se a passar aos pequenos vassalos e aos burgueses. Quanto a Eduardo da Inglaterra, que fé pode merecer um homem que se comporta como mulher? Estarei, pois, a vosso lado, para dar-lhes uma lição. E o que contáveis dar-me, agora eu o aceito, por espírito de justiça. Porque é justo que aqueles que são fiéis ao rei sejam tratados de uma forma diferente daqueles que o traem. Governais bem. Esse... esse dom, que é uma prova de vossa estima por mim, quando ides assiná-lo?

— Agora, meu tio, se assim o desejardes... mas com data de amanhã — respondeu Filipe V.

Pela terceira vez, e sempre por meio de dinheiro, tinha amordaçado o Conde de Valois.

— Era tempo que se fizesse minha coroação — disse Filipe a seu tesoureiro, quando Valois foi embora — porque se tivesse que discutir ainda, penso que da próxima vez seria obrigado a vender meu reino.

E como Fleury se espantasse diante da enormidade da soma prometida:

— Tranqüilizai-vos, tranqüilizai-vos, Godofredo — acrescentou. — Ainda não determinei quando será feita essa doação.

Êle a receberá por pequenas frações, apenas... Mas poderá fazer empréstimos sobre ela... Agora, vamos cear.

O cerimonial indicava que, depois da refeição da noite, o rei, rodeado pelos seus oficiais e pelo cabido, fosse à catedral, para ali recolher-se e orar. A igreja estava já toda pronta, com suas tapeçarias penduradas, centenas de círios nos lugares, e o grande estrado erguido no coro. As preces de Filipe foram curtas, mas ainda assim passou tempo considerável recebendo instruções, uma última vez, quanto ao desenrolar-se dos ritos e dos gestos que teria de fazer. Foi verificar os fechos das portas laterais, assegurou-se das disposições de segurança, e perguntou qual seria o lugar de cada um.

— Os pares leigos, os membros da família real e os grandes oficiais, ficam sobre o estrado — explicaram-lhe. — O condestável fica a vosso lado. O chanceler fica ao lado da rainha. Esse trono, diante do vosso, é o do arcebispo de Reims, e as cadeiras dispostas em torno do altar-mor são para os pares eclesiásticos.

Filipe percorreu o estrado a passos lentos, abatendo, com a ponta do pé, um canto erguido do tapete.

“Como é estranho”, pensava. “Eu estava aqui, neste mesmo lugar, no ano passado, para a sagração de meu irmão... Não prestei, absolutamente, atenção a todos esses porme-nores.”

Sentou-se um momento, mas não no trono real. Temor supersticioso impedia-o de ocupá-lo já. “Amanhã, amanhã serei verdadeiramente o rei.” Pensava em seu pai, na linhagem de avós que o tinham precedido naquela igreja. Pensava em seu irmão, suprimido por um crime de que era inocente, mas de cujos benefícios gozava agora. Pensava no outro crime, cometido em relação à criança, crime que também não ordenara, sendo dele, entretanto, o cúmplice mudo, e quase o inspirador... Pensava em sua morte, em sua própria morte, e nos milhões de homens, seus súditos, nos milhões de pais, de filhos, de irmãos, que até lá governaria.

“Serão todos como eu, criminosos se tiverem ocasião, inocentes apenas por impotência, e prontos a se servirem do mal para realizar suas ambições? Entretanto, quando eu estava em Lião, só tinha desejos de justiça. Será assim mesmo?... A natureza humana é de tal maneira detestável, ou é a realeza que nos faz assim? O tributo que se paga para reinar, será o de descobrir-se a si próprio tão impuro e desonrado... Por que Deus nos fêz mortais, já que é a morte que nos torna detestáveis, tanto pelo medo que dela temos, como pelo uso que dela fazemos?... Talvez tentem matar-me esta noite.”

Olhava as vastas sombras que oscilavam nas altas ogivas, entre as colunas. Não sentia arrependimento, apenas ausência da felicidade de reinar.

“Eis o que sem dúvida chamam orar, e eis por que nos aconselham, na noite anterior à sagração, este estágio na igreja.”

Julgava-se lucidamente tal como era: um homem mau, com dotes de grande rei.

Não tinha sono, e teria, de bom grado, ficado ali, por muito tempo ainda, a meditar sobre si próprio, sobre o destino humano, sobre a origem dos nossos atos, e a fazer a si próprio as únicas grandes interrogações do mundo, para as quais jamais encontramos as respostas.

— Quanto tempo durará a cerimônia? — indagou.

— Duas horas completas, Sire.

— Vamos! Esforcemo-nos por dormir, pois precisamos estar dispostos para amanhã.

Mas, assim que chegou novamente ao palácio arquiepiscopal, entrou nos aposentos da rainha e sentou-se à beira da cama. Conversou com sua mulher sobre coisas sem interesse evidente: falava dos lugares na catedral, preocupava-se com os vestidos de suas filhas...

Joana estava já meio adormecida. Lutava para se conservar atenta, e discernia em seu marido grande tensão nervosa, uma espécie de angústia crescente, e contra a qual ele procurava proteção.

— Meu amigo — perguntou — quereis dormir junto de mim?

Êle pareceu hesitar.

— Não posso: o camareiro não está prevenido.

— Sois rei, Filipe — disse Joana, sorrindo. — Podeis dar ao vosso camareiro as ordens que vos aprouver.

Êle levou algum tempo a decidir-se. Aquele jovem, que sabia, pelas armas ou pelo dinheiro, dominar seus mais poderosos vassalos, sentia constrangimento em informar seus servidores que ia, tomado de imprevisto desejo, partilhar o leito de sua esposa.

Enfim, chamou um dos camareiros que dormiam no aposento vizinho, e mandou que ele fosse prevenir Adão Héron de que não o esperasse naquela noite, nem se deitasse junto de sua porta.

Depois, entre as tapeçarias cheias de papagaios, sob os trevos de prata do dossel da cama, despiu-se, e insinuou-se sob os lençóis. E aquela grande angústia, da qual todas as tropas do condestável não podiam defendê-lo, porque era angústia de homem e não angústia de rei, acalmou-se ao contacto daquele corpo de mulher, contra aquelas pernas firmes e altas, aquele ventre dócil, aqueles seios cálidos.

— Minha amiga — murmurou Filipe, o rosto mergulhado nos cabelos de Joana — minha amiga, responde-me: tu me enganaste? Responde-me sem receio, pois mesmo que outrora me tivesse traído, podes considerar-te perdoada.

Joana estreitou os longos flancos, secos e robustos, onde a ossatura era sensível sob seus dedos.

— Nunca, Filipe, eu posso jurar-to — respondeu. — Estive tentada a fazê-lo, confesso-te, mas não cedi.

— Obrigado, minha amiga — murmurou Filipe. — Nada falta, pois, à minha realeza.

Nada faltava mais à sua realeza, porque ele, na verdade, era igual a todos os homens de seu reino: tinha necessidade de uma mulher, de uma mulher que fosse bem sua (37).

 

                         OS SINOS DE REIMS

ALGUMAS horas mais tarde, deitado num leito de cerimônia*, ornado com as armas da França, Filipe, vestido com um trajo longo de veludo vermelho, as mãos juntas à altura do peito, esperava os bispos que deveriam conduzi-lo à catedral.

O primeiro camareiro, Adão Héron, também suntuosamente vestido, mantinha-se de pé, junto do leito. A manhã pálida de janeiro espalhava no aposento seu clarão leitoso.

Bateram à porta.

— Quem procurais? — disse o camareiro.

— O rei.

— Quem o quer?

— Seu irmão.

Filipe e Adão Héron entreolharam-se, surpreendidos e descontentes.

— Bem, que entre — disse Filipe, soerguendo-se ligeiramente.

— Dispondes de bem pouco tempo, Sire... — fêz notar o camareiro.

O rei, com um bater de pálpebras, assegurou-lhe que a conversa não duraria muito.

O belo Carlos de La Manche usava um trajo de viagem. Acabava de chegar a Reims e só havia parado um momento para falar com seu tio Valois. Em seu rosto e em seus passos havia cólera.

Por muito irritado que estivesse, a visão de seu irmão, revestido de purpura e assim estendido em atitude hierática, impôs-se-lhe. Fêz uma pausa, os olhos arregalados.

“Como ele gostaria de estar em meu lugar!”, pensou Filipe. Depois, em voz alta:

— Então aqui estais, meu irmão. Agradeço-vos por terdes compreendido vosso dever e por tornardes mentirosas as más línguas, pois elas sustentavam que estaríeis ausente na cerimônia da minha sagração. Agradeço-vos. Agora, correi a vestir-vos, porque não podeis aparecer assim. Chegareis atrasado.

— Meu irmão — disse La Marche — antes preciso conversar convosco sobre coisas importantes.

— Coisas importantes ou coisas que vos importam? O importante, neste momento, é não deixar que o clero espere.

Dentro de alguns instantes os bispos virão buscar-me.

— Pois bem, terão um pouco de paciência! — exclamou Carlos. — Cada um por sua vez encontra vossos ouvidos para ouvi-lo, e disso tira proveito. Só a mim pareceis não levar em conta: desta vez haveis de ouvir-me.

— Então, conversemos, Carlos — disse Filipe, sentando-se à beira do leito. — Mas quero prevenir-vos que teremos de ser breves.

La Marche teve um movimento de cabeça que queria dizer: “Veremos, veremos”. Sentou-se, esforçando-se por estufar o peito e manter o queixo erguido.

“Esse pobre Carlos”, pensava Filipe, “quer imitar as atitudes de nosso tio Valois, mas não tem a sua envergadura”.

— Filipe — recomeçou La Marche — eu vos pedi, por muitas vezes, que me désseis o pariato, e aumentásseis meu apanágio assim como a minha renda. Pedi-vos ou não?

— Que família... — murmurou Filipe.

— E sempre fizestes ouvidos moucos. Agora, digo-vos pela última vez: vim a Reims, mas não assistirei a vossa sagração, dentro de alguns momentos, a não ser que tenha minha cadeira de par. Não sendo assim, volto.

Filipe olhou para ele por um momento, sem nada dizer, e, sob aquele olhar, Carlos sentiu-se diminuir, fundir-se, perder toda a segurança própria, e tôda a importância.

Diante de Filipe, o Belo, o jovem sentia, outrora, idêntica sensação da própria insignificância.

— Um instante, meu irmão — disse Filipe. Levantou-se e foi falar com Adão Héron, que se retirara para um canto do aposento.

— Adão — perguntou^ em voz baixa — os barões que foram buscar a âmbula sagrada na abadia de Saint-Remy já voltaram?

— Sim, Sire, e já estão na catedral, com o clero da abadia.

— Bem. Então, as portas da cidade... como em Lião.

E, com a mão, fêz três movimentos apenas perceptíveis, que significavam: as grades, as trancas, as chaves.

— No dia da sagração, Sire? — murmurou Héron, estupefato.

— Justamente, no dia da sagração. Providenciai.

O camareiro saiu e Filipe voltou para o leito.

— Então, meu irmão, que me pedíeis?

— O pariato, Filipe.

— Ah! Sim... o pariato. Pois bem, meu irmão, eu vo-lo concederei, eu vo-lo concederei de bom grado. Mas não imediatamente, pois proclamastes demais vosso desejo. Se eu cedesse assim, diriam que não o fiz voluntariamente, e sim coagido, e todos se sentiriam autorizados a comportar-se como vós. Sabei, pois, que não haverá mais apanágios criados ou aumentados antes que eu tenha promulgado uma ordenação que declarará inalienável qualquer parte do domínio real (38).

— Mas, enfim, não tendes mais necessidade do pariato de Poitiers! Por que não mo dais? Convinde que minha parte é insuficiente!

— Insuficiente? — exclamou Filipe, que começava a encolerizar-se. — Nascestes filho de rei, sois irmão de rei. Pensais, verdadeiramente, que a parte seja insuficiente para um homem de vosso cérebro, e para os méritos que tendes?

— Meus méritos? — disse Carlos.

— Sim, vossos méritos, que são pequenos. Porque é preciso que eu acabe por dizer-vos francamente, Carlos: sois um tolo! Sempre o fôstes, e não melhorastes com a idade. Quando éreis apenas uma criança, já parecíeis tão atoleimado a todos, de espírito tão pouco desenvolvido, que mesmo nossa mãe sentia desdém por vós, a santa mulher! Chamava-vos “o papalvo”. Lembrai-vos, Carlos: “o papalvo”. Isso éreis, e isso vos conservastes. Nosso pai dava-vos assento em nosso conselho: que aprendestes ali? Ficáveis embasbacado olhando as moscas, enquanto os negócios do reino eram discutidos, e eu me recordo que jamais foi ouvida uma palavra vossa que não provocasse um dar de ombros de nosso pai ou de messire Enguerrand. Acreditais, portanto, que eu faça assim tanta questão de tornar-vos mais poderoso, pelo belo auxílio que me iríeis dar, quando há seis meses não cessais de manobrar contra mim? Poderíeis ter obtido tudo por outro caminho. Pensais, então, que sois de natureza forte e contais ver os outros dobrarem-se diante de vós? Ninguém esqueceu a lamentável figura que fizestes em Maubuisson, quando vos puseste a balir: “Branca, Branca!” e a chorar vosso ultraje diante da corte.

— Filipe! Cabe-vos dizer-me isso? — exclamou La Marche, levantando-se, o rosto desfigurado. — Vós, cuja esposa...

— Nem uma palavra contra Joana! Nenhuma palavra contra a rainha! — cortou Filipe, com a mão levantada. — Sei que para prejudicar-me, ou para sentir-vos menos só em vosso infortúnio, continuais a enredar mentiras.

— Inocentastes Joana porque desejáveis conservar a Borgonha, porque, como sempre, fizestes passar vossos interesses antes de vossa honra. Também a mim, entretanto, talvez minha esposa infiel não tenha cessado de servir.

— Que quereis dizer?

— Quero dizer o que digo! — replicou Carlos de La Marche. — E também vos declaro que se me desejardes ver, daqui a momentos, na sagração, ali quero sentar-me numa cadeira de par. O pariato, ou vou-me embora!

Adão Héron tornou a entrar no aposento e advertiu o rei, com um movimento de cabeça, de que suas ordens tinham sido transmitidas. Filipe agradeceu-lhe da mesma maneira.

— Ide-vos, pois, meu irmão — disse. — Só uma pessoa me é necessária, hoje: o arcebispo de Reims, que deve sagrar-me. Sois arcebispo? Não sois. Logo, podeis ir-vos embora. Parti, se isso vos agrada.

— Mas por que — exclamou Carlos — por que nosso tio Valois obtém sempre o que quer, e eu nunca?

Pela porta entreaberta ouviam-se os cânticos da procissão que se aproximava.

“Quando penso que se eu viesse a morrer esse imbecil deveria ser regente!”, pensava Filipe. Pousou a mão no ombro do irmão:

— Quando tiverdes prejudicado o reino por tantos e tão longos anos como acontece com nosso tio, podereis exigir a mesma paga. Mas, graças a Deus, sois menos diligente na tolice!

Com os olhos, designou-lhe a porta, e o Conde de La Marche saiu, lívido, atormentado de raiva impotente, para esbarrar com um grande número de clérigos.

Filipe tornou a dirigir-se para o leito, e retomou a posição deitada, mãos cruzadas, pálpebras fechadas.

Bateram à porta. Dessa vez, eram os bispos, que batiam com suas cruzes.

— Quem procurais? — disse Adão Héron.

— O rei — respondeu uma voz grave.

— Quem o deseja?

— Os bispos pares.

Os batentes foram abertos e os bispos de Langres e de Beauvais entraram, de mitra na cabeça e relicário no pescoço. Aproximaram-se do leito, ajudaram o rei a levantar-se, apresentaram-lhe a água benta, e, enquanto ele se ajoelhava sobre um pequeno tapete de seda, fizeram a oração.

Depois, Adão Héron colocou sobre os ombros de Filipe um manto de veludo escarlate, semelhante ao de seu trajo. E, subitamente, estalou uma querela de precedência. Normalmente, o Duque-Arcebispo de Laon devia tomar lugar à direita do rei. Ora, a cadeira de Laon, na época, estava sem titular. O bispo de Langres, Guilherme de Durfort, supunha-se, devia substituir o ausente. Mas Filipe designou o bispo de Beauvais para ficar à direita. Tinha suas razões para isso: por um lado, o bispo de Langres havia acolhido com facilidade um tanto excessiva, em sua diocese, os antigos Templários, dando-lhes lugares de clérigos. Por outro lado, o bispo de Beauvais era um Marigny — parente do grande Enguerrand e de seu irmão, o arcebispo de Sens — e Filipe fazia questão de prestar homenagem, senão à pessoa, pelo menos ao nome que usava.

Assim, o rei encontrou-se com dois prelados à sua direita e nenhum à esquerda.

— Sou o arcebispo-duque, e eu é que devo ficar à direita — disse Guilherme de Durfort.

— A cadeira de Beauvais é mais antiga do que a de Langres — respondeu Marigny.

Seus rostos começavam a corar, sob as mitras. — Monsenhores, o rei decide — disse Filipe.

Durfort obedeceu e mudou de lugar.

“Mais um descontente”, pensou Filipe.

Desceram assim, entre as cruzes, os círios e a fumarada do incenso, até a rua, onde toda a corte, a rainha à frente, já se formara em cortejo. Caminharam até a catedral.

Imensos clamores levantavam-se à passagem do rei. Filipe estava bastante pálido e apertava seus olhos míopes. Parecia-lhe que a terra de Reims se tinha tornado dura, subitamente, sob seus pés: tinha a impressão de que caminhava sobre mármore.

Na porta principal da igreja, houve uma pausa para novas orações. Depois, num estrondejar de órgão, Filipe adiantou-se pela nave, em direção ao altar, dirigindo-se para o estrado, para o trono, onde, finalmente, sentou-se. Seu primeiro gesto foi para designar à rainha a cadeira preparada ao lado da sua.

A igreja estava repleta. Filipe via apenas um mar de coroas, de peitos e ombros bordados, de jóias e casulas brilhando sob os círios. Um firmamento humano estendia-se a seus pés.

Transportou o olhar para regiões mais próximas, e voltou a cabeça para a direita e para a esquerda, a fim de distinguir quem estava presente sobre o estrado. Ali estavam Carlos de Valois, e Mafalda d’Artois, monumental, cascateante de bordados e veludos. Ela sorriu-lhe. Luís d’Evreux estava um pouco mais afastado. Mas Filipe não via Carlos de La Marche, nem Filipe de Valois, que o pai parecia também procurar com os olhos.

O arcebispo de Reims, Roberto de Courtenay, que os ornamentos sacerdotais faziam pesado, levantou-se de seu trono fronteiro ao trono real. Filipe imitou-o, e veio prosternar-se diante do altar.

Todo o tempo que durou o Te-Deum, Filipe perguntou a si próprio: “Terão sido bem fechadas as portas? Minhas ordens terão sido fielmente cumpridas? Meu irmão não é homem para ficar no fundo de um quarto, enquanto eu estiver sendo coroado. E por que estará Filipe de Valois ausente? Que estarão me preparando? Eu devia ter deixado Galard lá fora, para estar em melhores condições de comandar seus besteiros”.

Ora, enquanto o rei assim se inquietava, seu irmão mais moço patinhava num charco.

Saindo, furioso, do aposento real, Carlos de La Marche se havia precipitado para o alojamento dos Valois. Não encontrara ali seu tio, que já partira para a catedral, mas apenas Filipe de Valois, acabando de preparar-se, e ao qual contara, quase sem fôlego, o que chamava a “felonia” de seu irmão.

Os dois primos tinham temperamentos muito semelhantes, com a diferença de ser Filipe de Valois maior e mais forte do que Carlos. Quanto ao espírito, completavam-se bem, em vaidade e tolice.

— Se é assim, também não assistirei à cerimônia, e parto contigo — declarara Valois, o jovem.

Com isso, trataram de reunir sua escolta e dirigiram-se altivamente para uma porta da cidade. Sua soberba teve de inclinar-se diante dos sargentos de armas.

— Ninguém entra e ninguém sai. Ordem do rei.

— Mesmo os príncipes de França?

— Mesmo os príncipes. Ordem do rei.

— Ah! Êle quer coagir-nos! — exclamara Filipe de Valois, que agora tomava o caso à sua conta. — Pois bem, ainda assim sairemos.

— Como queres sair, se as portas estão fechadas?

— Finjamos voltar para o meu alojamento, e deixa-me agir.

Daí seguiu-se uma empresa de garotos: os escudeiros do jovem Conde de Valois tinham sido enviados em busca de escadas, logo levantadas no fundo de um beco-sem-saída, em lugar onde os muros não pareciam estar guardados. E os dois primos, nádegas ao léu, fizeram a escalada, sem suspeitar que do outro lado os esperavam os pântanos do Vesle. Por meio de cordas desceram para o fosso. Carlos de La Marche perdeu pé no meio da água lamacenta e gelada, e se afogaria, se seu primo, que tinha-seis pés de altura e músculos sólidos, não o tivesse pescado a tempo. Depois, meteram-se, como cegos, pelos charcos. Já agora, para eles, não mais se tratava de renunciar ou não. Avançar ou recuar dava no mesmo. Arriscavam sua vida, e teriam ainda três grandes horas pela frente até conseguirem sair daquele tremedal. Os poucos escudeiros que os haviam seguido, patinhavam em torno deles, e não faziam cerimônia para amaldiçoá-los em voz alta.

— Se conseguirmos sair daqui — gritava La Marche para sustentar a coragem — sei bem para onde irei, sei bem. Para Château-Gaillard!

Valois, o jovem, banhado em suor, apesar do frio, mostrou uma cabeça estupefata, acima dos caniços apodrecidos.

— Tens ainda apego a Branca? — perguntou.

— Não, mas há coisas que poderei saber através dela. É a única, a última que nos pode dizer se a filha de Luís é bastarda, e se Filipe é cornudo, como eu! Com o testemunho dela, poderei, por minha vez, infamar meu irmão, e fazer com que a coroa seja dada à filha de Luís.

O som dos sinos de Reims, bimbalhando estrondosamente, chegava até eles.

— Quando penso, quando penso que é por ele que os sinos tocam! — dizia Carlos de La Marche, a metade do corpometida na lama e a mão estendida para a cidade...

Na catedral, os camareiros acabavam de despir o rei. Filipe, o Longo, de pé diante do altar, não tinha mais sobre o corpo senão duas camisas superpostas, uma de tecido fino, sobre a pele, e a outra de seda branca, ambas largamente abertas no peito e sob as axilas. O rei, antes de ser revestido das insígnias da majestade, apresentava-se à assembléia de seus súditos quase como um homem nu, e tomado de arrepios.

Todos os atributos da sagração estavam dispostos sobre o altar, sob a guarda do abade de Saint-Denis, que os trouxera. Adão Héron tomou das mãos do abade os chausses, longos calções de seda, bordados com flôres-de-lis, e ajudou o rei a vesti-los, assim como a calçar os sapatos, também de tecido bordado. Depois, Anseau de Joinville, na ausência do Duque de Borgonha, prendeu as esporas de ouro nos pés do rei e imediatamente retirou-as. O arcebispo abençoou a grande espada, que diziam ser a de Carlos Magno, e colocou-a à ilharga do rei, com o boldrié, recitando:

— Accipe hunc gladium cum Dei benedictione...*

— Gaucher, aproxima-te — disse o rei.

Gaucher de Châtillon adiantou-se, e Filipe, desfazendo-se do boldrié, entregou-lhe a espada.

Jamais condestável algum, em toda a história das sagrações, merecera mais sustentar, pelo seu soberano, a insígnia do poder militar. Aquele gesto, entre eles, era mais do que o cumprimento de um ritual. Trocaram um longo olhar: o símbolo confundia-se com a realidade.

Com a ponta de uma agulha de ouro, o arcebispo tomou, da âmbula sagrada, que lhe apresentava o abade de Saint--Remy, uma parcela do óleo que diziam enviado do céu, e, com o dedo, misturou-o com o crisma preparado sobre uma pátena. Depois, o arcebispo ungiu Filipe, tocando-o no alto da cabeça, no peito, entre os ombros, e nas axilas. Adão Héron tornou a cerrar os anèizinhos e ganchos que fechavam a túnica. A camisa do rei seria queimada mais tarde, porque tinha roçado pela santa unção.

O rei foi, então, vestido com os trajos tomados de sobre o altar: primeiro a cota de cetim vermelho, bordada com fios de prata, depois a túnica de cetim azul bordada com pérolas e semeada de flôres-de-lis de ouro, por cima da dalmática do mesmo tecido, e, ainda por cima, o soq, grande manto quadrado, acolchetado sobre o ombro direito com uma fíbula de ouro. De cada vez que uma peça era colocada, Filipe sentia seus ombros mais pesados. O arcebispo fêz a unção das mãos, insinuou no dedo de Filipe o anel real, colocou-lhe na mão direita o pesado cetro, a mão de justiça* na mão esquerda. Depois de uma genuflexão diante do tabernáculo, o prelado levantou, enfim, a coroa, enquanto o camareiro-mor começava a chamada dos pares presentes.

— Magnífico e poderoso senhor, o conde...

Exatamente nesse instante, uma voz alta, imperiosa, elevou-se pela nave:

— Pára, arcebispo! Não coroes esse usurpador: é a filha de São Luís quem te ordena.

Vasta movimentação percorreu a assistência. Todas as cabeças voltaram-se para o ponto de onde viera o grito. Sobrr o estrado e entre os oficiantes, trocavam-se olhares aflitos. As fileiras da assistência abriram-se.

Rodeada por alguns senhores, uma mulher de grande estatura, rosto ainda belo, queixo firme, olhos claros e encoleri-zados, com o diadema estreito e o véu das viúvas sobre a massa dos cabelos quase brancos, caminhava para o coro.

À sua passagem, as pessoas cochichavam:

— É a Duquesa Agnes: é ela!

Esticavam-se pescoços para vê-la. Havia surpresa ao constatar quanto ainda era jovem de aparência e firme de passo. Como era filha de São Luís, a idéia que faziam dela enquadrava-se no recuo dos tempos. Acreditavam-na uma antepassada, sombra completamente alquebrada em um castelo da Borgonha. Subitamente, ela aparecia tal qual era, mulher de cinqüenta e sete anos, ainda cheia de vida e de autoridade.

— Pára, arcebispo — repetiu, quando estava a alguns passos apenas do altar. — E ouvi, todos vós... Lede, Mello! — acrescentou, falando com seu conselheiro, que a acompanhava.

Guilherme de Mello desenrolou um pergaminho, e leu: — Nós, muito nobre dama Agnes de França, Duquesa de Borgonha, filha do Senhor São Luís, em nosso nome e no de nosso filho, muito nobre e poderoso Duque Eudes, dirigimo-nos a vós, barões e senhores aqui presentes, ou que estejam fora deste reino, para evitar que se reconheça como rei o Conde de Poitiers, que não é o herdeiro legítimo da coroa, e exigir que a sagração seja adiada até que tenham sido reconhecidos os direitos de Madame Joana de França e Navarra, filha e herdeira do falecido rei, e de nossa filha.

Sobre o estrado, a angústia aumentava, e começavam a distinguir-se rumores no fundo da igreja. A multidão aglomerava-se.

O arcebispo parecia embaraçado com a coroa, não sabendo se devia repousá-la sobre o altar ou continuar a cerimônia.

Filipe conservara-se imóvel, a cabeça nua, impotente, com quarenta libras de ouro e brocados pesando-lhe sobre os ombros, as mãos ocupadas com o Poder e a Justiça. Nunca se sentira tão desprevenido, tão ameaçado, tão sozinho. Um guante de ferro apertava-lhe o peito, bem no meio. Sua calma era assustadora. Fazer um só gesto, abrir a boca naquele instante, iniciar uma controvérsia, seria arriscar-se ao tumulto, e, sem dúvida, à derrota. Ficou imobilizado, entre a ganga de seus ornamentos, como se a batalha se passasse abaixo dele.

Ouviam-se os pares eclesiásticos cochicharem:

— Que devemos fazer?

O prelado de Langres, que não esquecia a humilhação sofrida naquela manhã, era de opinião que se interrompesse a cerimônia.

— Retiremo-nos, e discutamos o caso — propunha outro.

— Não o podemos, o rei já é o ungido do Senhor. É rei, coroai-o — replicou o bispo de Beauvais.

A Condêssa Mafalda inclinou-se para sua filha Joana, e murmurou-lhe :

— A velhaca! Merece rebentar, por causa disto.

Havia veneno no ar.

Com suas pálpebras de tartaruga, o condestável fêz sinal a Adão Héron para que recomeçasse a chamada.

— Magnífico e poderoso senhor Conde de Valois, par do reino — pronunciou o camareiro.

Toda a atenção refluiu, então, para o tio do rei. Se ele respondesse ao chamado, Filipe ganhara, porque seria a caução dos pares leigos, do poder real, que Valois traria consigo. Se recusasse, Filipe estava perdido.

Valois não mostrava grande solicitude, e o arcebispo, que, sendo um Courtenay, era seu parente por aliança, esperava, visivelmente, a sua decisão.

Filipe, então, esboçou, ainda assim, um movimento: virou a cabeça para seu tio, e o olhar que lhe lançou valia cem mil libras. Jamais a Borgonha pagaria o mesmo.

O ex-imperador de Constantinopla levantou-se, o rosto crispado, e veio colocar-se atrás de seu sobrinho.

“Como fiz bem em não me mostrar avaro com ele”, pensou Filipe.

— Nobre e poderosa dama Mafalda, Condêssa d’Artois, par do reino — chamou Adão Héron.

O arcebispo levantou o pesado círculo de ouro, rematado por uma cruz na parte da frente, pronunciando, enfim:

— Coronel te Deus.

Um dos pares leigos devia tomar imediatamente a coroa para sustentá-la sobre a cabeça do rei, e os outros pares pousariam ali apenas um dedo simbólico. Valois já estendia as mãos, mas Filipe, com um movimento de seu cetro, deteve-o.

— Sustentai vós a coroa, minha mãe — disse ele a Mafalda.

— Obrigada, meu filho — murmurou a gigantesca mulher.

Recebia, com aquela designação espetacular, o agradecimento pelo seu duplo regicídio. Tomava o lugar de primeiro par do reino, e a posse do condado de Artois lhe estava confirmada para sempre.

— Borgonha não se curva! — exclamou a Duquesa Agnes.

E, reunindo seu séquito, caminhou em direção à saída, enquanto, lentamente, Mafalda e Valois reconduziam Filipe a seu trono.

Quando ele ali sentou-se, seus pés repousando sobre a almofada de seda, o arcebispo depôs sua mitra e veio beijar o rei na boca, dizendo:

— Vivat rex in aeternum.

Os outros pares imitaram-lhe o gesto, repetindo:

— Vivat rex in aeternum.

Filipe sentia-se cansado. Acabava de ganhar sua última batalha, após sete meses de incessantes lutas para chegar àquele poder supremo, que de agora em diante ninguém mais poderia disputar-lhe.

Os sinos estrondejavam no ar, soando pelo seu triunfo. Lá fora, o povo ululava, desejando-lhe glória e longa vida. Todos os seus adversários tinham sido dominados. Possuía um filho para assegurar sua descendência, uma esposa feliz para partilhar de suas alegrias e desgostos, e o reino da França.

“Como estou cansado, tão cansado!”, pensava Filipe.

Àquele rei de vinte e três anos, que se impusera através de uma vontade tenaz, que aceitara as vantagens do crime e que possuía todas as características de um grande monarca, nada, em verdade, parecia faltar.

O tempo dos castigos ia começar.

 

NOTAS HISTÓRICAS

(1) Carlos de Valois (ver nossos volumes precedentes) se gundo filho de Filipe HT e de Isabel de Aragão, irmão mais novo de Filipe, o Belo, foi designado, com a idade de treze anos, pelo Papa Martinho IV, para receber o trono de Aragão, tirado de seu tio Pedro de Aragão, excomungado depois do massacre das Vésperas Sicilianas. Coroado, por formalidade, em 1284, no curso de uma desastrosa campanha levada a efeito por Filipe III, o Ousado, que devia morrer logo depois, Valois jamais chegou a ocupar seu trono, e a ele renunciou, definitivamente, em 1295.

Mais tarde, tendo desposado em segundas núpcias Catarina de Courtenay, herdeira titular do reino latino do Oriente, usou, de 1301 a 1313, o título de imperador de Constantinopla.

Os laços de família entre Carlos de Valois e Clemência da Hungria são, sem dúvida, dos mais complicados que jamais existiram: Valois era primo de Clemência, pois ambos descendiam, um pela terceira e outra pela quarta geração, do Rei Luís VIII da França. Era, também, duas vezes seu tio, por aliança, antes de mais nada por se ter casado em primeiras núpcias com Margarida d’Anjou-Sicilia, tia de Clemência, e, em seguida, porque tinha feito com que essa última se casasse com seu sobrinho Luís X.

Valois estava ainda ligado à família d’Anjou de outra forma, tendo casado em 1313 a primeira filha que tivera de Catarina de Courtenay, Catarina de Valois, com Filipe, príncipe de Tarento, irmão de sua primeira mulher. Dessa maneira, era tio-avô, por aliança, da Rainha Clemência.

Foi por ocasião do casamento Valois-Tarento que a coroa titular de Constantinopla, ligada à herança de Catarina de Valois, teve de ser abandonada por Carlos, em benefício de seu genro Filipe.

(2) Essas definições foram extraídas do Elixir dos filósofos, do Cardeal Tiago Duèze, Papa João XXII.

Destacam-se naquela obra, além de um léxico dos principais termos de alquimia, receitas curiosas, tais como esta, para “purificar” a urina de criança: “Toma-a, deita-a em pote, deixando-a repousar por três ou quatro dias; depois coa-a ligeiramente; deixa-a repousar de novo, até que a sujeira fique no fundo. Cozinha-a bem, e escuma-a até que ela se reduza à terça parte. Destila-a, depois, através de feltro e guarda-a em vasilha bem vedada, para evitar a corrupção do ar”,

(3) Foi somente em meados de seu pontificado, em 1325, que Tiago Duèze (João XXII) começou a sustentar em diversos sermões e estudos sua tese da visão beatífica. É possível supor, entretanto, que o problema de há muito o interessava.

Sua teoria foi objeto de apaixonados debates entre todos os teólogos da Europa, debates que duraram vários anos e quase produziram um cisma. A Universidade de Paris condenou as proposições de João XXII, e chegou-se a falar em depor aquele, a quem, por escárnio, chamavam “o Papa de Cahors”. Duèze retratou-se na véspera de sua morte, em seu leito de agonia, preocupado, sem dúvida, em preservar a unidade da Igreja. Tinha, então, noventa anos.

Entre outras teses que professou esse estranho e fascinante pontífice, devemos notar a que concerne ao poder legislativo dos papas. Para ele, um papa podia modificar toda a legislação instituída pelos seus predecessores. Considerava, com efeito, que os papas, sendo homens, são incapazes de tudo ver e de tudo prever, e, assim, seus regulamentos sofrem as conseqüências das modificações sobrevindas ao universo, necessitando novas regras de conduta.

João XXII pronunciou-se igualmente contra a Imaculada Conceição da Virgem Maria, considerando, todavia, que se Maria tinha sido concebida com o pecado original, Deus a purificara antes de seu nascimento, mas num momento, acrescentava, difícil de precisar.

Teria sido também ele, a seguir-se a opinião de Viollet-le-Duc, quem teria acrescentado à tiara a terceira coroa, da qual, realmente, não se encontram vestígios nas efígies dos papas anteriores ao seu reinado.

(4) Os senhores soberanos de Viennois usavam o nome de “delfim” por causa do delfim que ornava seu capacete e suas armas, daí a designação de Delfinado dado ao conjunto da região sobre a qual exerciam sua soberania, e que compreendia: o Grésivaudan, o Roannez, o Champsaur, o Briançonnais, o Am-brunois, o Gapençais, o Viennois, o Valentinois, o Diois, o Tricastinois, e o principado de Orange.

No início do século IV, a soberania era exercida pela terceira casa dos delfins de Viennois, a da Tour du Pin. Somente no fim ao reinado de Filipe VI de Valois, pelos tratados de 1343 e 1349, u Delfinado foi cedido por Humberto II à coroa da França, sob a condição de que o filho mais velho dos reis de França tomasse, dali por diante, o título de Delfim.

(5) A grande maioria dos autores dá o total de vinte e três cardeais para o conclave de 1314-1316. Anotamos vinte e quatro.

O partido dos “romanos” contava seis italianos: Tiago Co-lonna, Pedro Colonna, Napoleão Orsino, Francisco Caetani, Tiago Stefaneschi-Caetani, Nicolau Alberti (ou Albertini) de Prato; um angevino de Nápoles: Guilherme de Longis, e, enfim, um espanhol, Lucas de Flisco (às vezes chamado Fieschi) irmão do rei de Aragão. Esses cardeais eram criações anteriores ao pontificado de Clemente V e à instalação do papado em Avinhão. O chapéu cardinalício fôra-lhes conferido entre 1278 e 1303, durante os reinados de Nicolau III, Nicolau IV, Celestino V, Bonifácio VIII e Bento XI.

Todos os outros tinham sido criados por Clemente V. O partido chamado “provençal” compreendia: Guilherme de Man-dagourt, Béranger de Frédol, o velho, Béranger de Frédol, o jovem, Tiago Duèze, de Cahors, e os normandos Nicolau de Fréauville e Miguel du Bec.

Enfim, os gascões, em número de dez, Arnaldo de Pélagrue, Arnaldo de Fougères, Arnaldo Nouvel, Arnaldo d’Auch, Raimundo--Guilherme de Farges, Bernardo de Garves, Guilherme-Pedro Godin, Raimundo de Got, Vidal du Four e Guilherme Teste.

Em nossos volumes precedentes falamos na morte de Clemente V, na agressão de Carpentras e no conclave errante.

(6) Até meados do século XII, a cidade de Lião esteve sob o poder dos condes de Forez e de Roannez, sob a suserania puramente nominal do imperador da Alemanha.

A partir de 1173, o imperador tendo reconhecido ao arcebispo de Lião, primaz das Gálias, direitos soberanos, o Lyonnais foi separado do Forez e o poder eclesiástico passou a governar a cidade, com direito de justiça, de cunhar moeda e de recrutar tropas.

Esse regime desagradou à poderosa comuna de Lião, composta unicamente de burgueses e de negociantes, os quais, durante mais de um século, lutaram para se emancipar. Depois de várias revoltas infelizes, apelaram para o Rei Filipe, o Belo, que, em 1292, tomou Lião sob sua proteção.

Vinte anos mais tarde, em 1O de abril de 1312, um tratado, concluído entre a comuna, o arcebispado e o rei, reunia definitivamente Lião ao reino da França.

Apesar das reivindicações de João de Marigny, arcebispo de Sens, e que controlava a diocese de Paris, o arcebispo de Lião conseguiu conservar o primado das Gálias, única de suas prerrogativas que lhe foi assegurada.

No fim da Idade Média, Lião contava cerca de 24 taverneiros, 32 barbeiros, 48 tecelões, 56 costureiros, 44 peixeiros, 36 açougueiros, especieiros e salsicheiros, 27 sapateiros, 36 panificadores e padeiros, 25 hoteleiros, 87 notários, 15 ourives ou joalheiros, 2O mercadores de tecidos.

A cidade era administrada pela “comuna”, constituída de burgueses comerciantes, que nomeavam, no dia 21 de dezembro de cada ano, doze cônsules, sempre notáveis e escolhidos entre as famílias ricas. Esse corpo consular chamava-se “o sindical”.

(7) A família dos Varay, mercadores de tecidos e cambistas, era uma das mais antigas e das mais consideráveis do Lyonnais.

Trinta e um de seus membros usaram o título de cônsul, alguns foram freqüentemente reeleitos, e um deles chegou a sê-lo dez vezes. Contavam-se oito Varay entre os cinqüenta cidadãos que os lioneses escolheram para seus chefes, em 1285, a fim de lutar contra o arcebispo e obter a anexação à França.

(8) Os “cavaleiros seguidores”, criação de Filipe V no início de seu reino, eram nomeados pelo rei, a fim de o acompanharem e aconselharem: deviam estar junto dele em todas as viagens, mas não todos ao mesmo tempo.

Contam-se entre eles parentes próximos do rei, como o Conde de Valois, o Conde d’Evreux, o Conde de La Marche, o Conde de Clermont, os grandes senhores como os Condes de Forez, de Bolonha, de Sabóia, de Saint-Pol, de Sully, d’Harcourt e de Comminges; grandes oficiais da coroa, tais como o con-destável, os marechais, o chefe dos besteiros, assim como outros personagens, membros do conselho secreto ou do “conselho que governa”, jurisconsultos, administradores do tesouro, burgueses enobrecidos e amigos pessoais do rei. Registram-se nome como os de Mille de Noyers, Giraud Guette, Guy Florent, Guilherme Flotte, Guilherme Courteheuse, Martinho des Essarts, Anseau de Joinville.

Esses cavaleiros foram uma espécie de prefiguração dos “gentis-homens da Câmara”, instituídos por Henrique III, e que subsistiram até Carlos X.

(9) A igreja romana jamais vendeu, como pretendem seus adversários, absolvição. Fêz, entretanto, o que é bastante diferente, com que os culpados pagassem o preço das bulas que lhes eram entregues como atestados da absolvição da sua culpa.

Essas bulas eram necessárias porque, tendo sido público o crime ou o delito, era preciso fornecer prova de absolvição para ser novamente admitido aos sacramentos.

O mesmo princípio era aplicado, em direito civil, nas cartas de mercê e remissão, concedidas pelo rei. A entrega dessas cartas e sua inscrição nos registros eram taxadas. Esse uso, muitíssimo antigo, remontava aos costumes dos francos, antes mesmo de sua conversão ao cristianismo. A idéia de João XXII foi, com seu Livro de Taxas e com a instituição da Santa Penitenciaria Apostólica, codificar e generalizar esse uso, idéia que deveria trazer à Igreja somas consideráveis, tal como prova o estado muito florescente do tesouro pontificai, quando da morte daquele papa.

Os membros do clero não eram os únicos sujeitos a essas bulas. Havia taxas igualmente previstas para os leigos. As tarifas eram calculadas em gros, moeda que valia aproximadamente seis libras.

Assim, o parricldio, o fratricídio ou o assassinato de um parente, entre leigos, estavam taxados entre os cinco e sete gros, bem como o incesto, a violação de uma virgem, ou o roubo de objetos sagrados. O marido que espancara a mulher ou fizera com que abortasse, estava sujeito a pagar seis gros; e sete, se houvesse arrancado os cabelos da esposa. A multa maior, ou seja, de vinte e sete gros, referia-se à falsificação de cartas apostólicas, isto é, da assinatura do papa.

As taxas subiam com o tempo, paralelamente com a desvalorização da moeda.

Mas, ainda uma vez, não se tratava da compra da absolvição, e sim de um direito de registro, para fornecimento de provas autenticadas.

Os inúmeros panfletos consagrados a essa questão, e que circularam a partir da Reforma, para desacreditar a Igreja Romana, apoiaram-se todos nessa confusão voluntária.

E digno de nota, além disso, que na mesma ocasião em que João XXII instituía a Santa Penitenciaria, o Rei Filipe V, de seu lado, reorganizava o funcionamento da chancelaria real, e revisava suas tarifas.

(10) Os Frades Pregadores, ou Dominicanos, eram também chamados Jacobinos por causa da Igreja Saint-Jacques que lhes tinham dado, em Paris, e em torno da qual haviam instalado a sua comunidade.

O convento de Lião, onde se realizou o conclave de 1316, fora edificado em 1236, em terrenos situados atrás da casa dos Templários. O conjunto do mosteiro estendia-se da atual praça dos Jacobinos até a praça Bellecour.

(11) Godofredo Coquatrix (sem dúvida do termo coquatier, negociante de ovos e aves) casado antes com Maria La Marcelle, depois com Joana Gencien, conservou até sua morte, em 1321, todos os cargos que havia acumulado sob três reinados, sem jamais prestar contas deles. Foi somente o filho de Carlos de Valois, Filipe VI, quem, depois de 1328, resolveu pedir essa prestação de contas aos herdeiros de Godofredo Coquatrix. Teve que renunciar a isso e, finalmente, deu os filhos como quites da obrigação de justificar a administração de seu pai, em troca de uma soma de 15.00O libras, a título de compensação.

(12) Esses argumentos foram utilizados, de início, nos Estados Gerais de fevereiro de 1317; depois, por ocasião da morte de Filipe V e da de Carlos IV, quando a sucessão da coroa de França apresentou-se nas mesmas condições. Poucas dúvidas restam sobre o fato de ter o condestável Gaucher de Chatillon, que viveu e conservou seu cargo até 1329, desempenhado papel preponderante na evicção das mulheres.

(13) Esquecem, geralmente, o primitivo caráter eletivo da monarquia capetiana, que precedeu seu caráter hereditário ou, pelo menos, coexistiu com ele.

Quando da morte acidental do último carolíngio, Luís V, o Indolente, desaparecido aos vinte anos, após um reinado de alguns meses, os duques e os condes concordaram em eleger um entre eles. Escolheram Hugo, duque de França, cujo pai, conde de Paris, duque de França e de Borgonha, tinham exercido o governo de fato durante os últimos reinados.

Hugo Capeto (isto é, Hugo, o chefe, Hugo, o cabeça) associou imediatamente ao trono seu filho Roberto II, fazendo-o eleger como seu sucessor e sagrar, durante o ano de sua própria sagração. Aconteceu praticamente a mesma coisa durante mais cinco reinados, inclusive o de Filipe-Augusto. Assim que o filho mais velho do rei era designado herdeiro presuntivo, os pares tinham que ratificar essa escolha, e o novo eleito recebia a sagração ainda em vida de seu pai.

Só a partir de Luís VIII, duzentos e vinte e sete anos depois de Hugo Capeto, foi que se abandonou a formalidade da eleição prévia.

Luís VIII recebeu a coroa da França, por morte de Filipe-Augusto, no dia 14 de julho de 1223, exatamente como teria recebido a herança de um feudo. E foi a partir desse 14 de julho que a monarquia francesa tornou-se realmente hereditária.

No tempo da regência de Filipe, o Longo, o novo costume tinha, pois, menos de um século.

(14) Dá-se, geralmente, nas genealogias, o prenome de Luís ao filho de Filipe V, nascido em julho de 1316. Ora, nas contas de Godofredo de Fleury, tesoureiro de Filipe, o Longo, e que começou a redação de seus livros naquele mesmo ano, exatamente no dia 12 de julho, tomando suas funções, a criança é designada pelo nome de Filipe.

Outros genealogistas mencionam dois filhos, dos quais um teria nascido em 1315 e, portanto, teria sido concebido enquanto Joana de Borgonha estava presa em Dourdan, o que parece incrível quando se sabe dos esforços de Mafalda para reconciliar a filha com o genro.

A criança que foi fruto dessa reconciliação recebeu, provavelmente, diversos prenomes, entre eles os de Luís e Filipe e, tendo vivido pouco, os cronistas posteriores fizeram, sem dúvida, confusão.

(15) A tomada do poder por Branca de Castela não foi feita, aliás, sem dificuldades. Embora designada por um ato do Rei Luís VIII, seu marido, com tutôra e regente, Branca esbarrou com violenta hostilidade por parte dos grandes vassalos, a quem repugnava a idéia de que uma mulher pudesse exercer a guarda do reino.

“A França está se arruinando,

Senhores barões, escutai,

Pois que a mulher vai mandando”

escreveu Hugo de La Ferté. 254

Mas Branca de Castela era mulher de tempera bem diferente da de Clemência de Hungria. Além disso, era rainha há dez anos e tinha doze filhos. Venceu os barões, graças ao apoio do Conde Thibaud de Champanha, que lhe atribulam como amante. Dizia-se, mesmo, que ela se servira daquele homem para envenenar seu marido: nada, porém, permite dar caráter sólido a tal suspeita.

(16) Constata-se impressionante similitude entre a loucura de Roberto de Clermont e a que atacou Carlos VI, duas vezes seu sobrinho-segundo, na quinta geração, pelos homens, e na quarta, pelas mulheres.

Nos dois casos a demência teve início num choque produzido por armas, com traumatismo craniano em Clermont, sem traumatismo em Carlos VI, mas que determinou mania furiosa tanto num como noutro: mesmos períodos de crises frenéticas, seguidas de longos períodos de cura, onde o doente retomava comportamento e aparência normais. O mesmo gosto maníaco pelos torneios, que não podiam impedi-los de organizar, e nos quais apareciam, embora às vezes em estado de delírio. Clermont, demente e perigoso como era, ainda assim tinha autorização para caçar no conjunto de seu domínio real. Apresentou-se, mesmo, na hoste de Filipe, o Belo, durante uma das campanhas da Flandres, assim como Carlos VI, louco já há vinte anos, assistiu, durante seu reino, ao cêrco de Bourges e a todos os combates contra o Duque de Berry.

Clermont morreria no dia 7 de fevereiro de 1317, um mês depois da coroação de Filipe V.

(17) Gritos regulamentares que marcavam o início do torneio.

(18) As duas crianças deveriam casar-se, mais tarde, recebendo a coroa de Navarra.

(19) Os brinquedos e brincadeiras de crianças praticamente não variaram desde a Idade Média até os nossos dias. Já eram, então, bolas e balões feitos de couro ou de pano, arcos, piões, bonecas, cavalos de pau e malhas. Brincava-se de cabra-cega, de barra, de palhinhas, de pegador, de esconde-esconde, de pula-sela, bem como de fantoches. Os meninozinhos possuíam, quando de famílias ricas, imitações de armamentos, feitos sob medida: elmos de ferro leve, trajos de malha, espadas sem fio, ante passados das panóplias de generais e de cow-boys de nossos dias.

(20) A segunda filha de Agnes de Borgonha, Joana, casada com Filipe de Valois, futuro Filipe VI, coxeava, como seu primo-irmão Luís I de Bourbon, filho de Roberto de Clemont.

A claudicação existia apenas no ramo colateral dos Anjou, pois que o Rei Carlos II, avô de Clemência da Hungria, tinha o apelido de Coxo. Uma tradição, retomada, aliás, por Mistral nas Iles d’Or, diz que quando o embaixador do rei da França, portanto o Conde de Bouville, veio pedir Clemência em casamento para seu senhor, exigiu que a princesa se despisse diante dele, a fim de certificar-se de que possuía pernas retas.

O defeito de Joana de Borgonha era acompanhado de uma perversidade patológica que, assim que ela subiu ao trono, valeu-lhe o apelido de “a rainha má da França”, ou “a rainha coxa”.

A lista de suas vítimas é longa. Talvez tenham atribuído a Margarida de Borgonha (que, entre todas as taras da família, parece ter sido afetada apenas por uma excessiva sensualidade) grande parte das crueldades de sua irmã mais nova.

Entre outros exemplos, Joana tentou desembaraçar-se do Bispo João de Marigny, mandando preparar-lhe um banho envenenado. Fabricava, também, sentenças de morte, que selava com o sinête de seu marido, sem que esse último o soubesse. Filipe VI, tendo tomado conhecimento disso, certa vez, deu-lhe uma surra de vara, e com tamanha violência que quase a matou.

Quando ela morreu de peste, em 1349, o povo viu naquilo, com satisfação, o castigo do céu.

(21) A broigne era uma vestimenta de pele, de tecido ou de veludo, sobre a qual vinham costuradas malhazinhas de ferro, e que tinha substituído a cota de malhas propriamente dita. Por cima daquela broigne, e para reforçá-la, começaram a aparecer os elementos chamados “placas” — de onde vem o nome de armadura de placas — que eram partes unidas de metal, forjadas no feitio do corpo, e articuladas, à moda da cauda dos lagostins.

(22) Mafalda organizou uma lista minuciosa dos roubos e depredações cometidos em seu castelo de Hesdin, relatório que compreendia mais de cento e vinte e nove artigos.

Intentou um processo junto ao Parlamento de Paris, para ser indenizada, o que lhe foi parcialmente concedido pela sentença de 9 de maio de 1321.

(23) Dizia-se “zarolho” por “míope”. Filipe V foi chamado, Longo, o Grande ou, o Zarolho.

(24) Há três formas de eleição no conclave:

1º — Por escrutínio secreto, completado, se necessário, por um segundo escrutínio, chamado “de acessão”. A maioria deve ser de dois terços dos votantes.

2º — Por compromisso, se os cardeais entregam, unanimemente, a alguns dentre eles, o cuidado de designar o eleito em nome de todos.

3º — Por “inspiração” ou por “aclamação”.

Certos autores dizem que Tiago Duèze foi designado por compromisso. E: uma opinião que pode estar apoiada nas numerosas “negociações” de que foi objeto a sua eleição. Mas, na verdade, Duèze foi realmente eleito por voto regular, pois houve ali quatro escrutinadores, cujos nomes são conhecidos.

(25) O menu-vair era uma pele, cinzenta de um lado e branca do outro, produzida por uma espécie de esquilo. E o que se chama hoje petit-gris.

(26) Era de uso, então, nas famílias reais e principescas, dar às crianças numerosos padrinhos e madrinhas, às vezes alcançando o total de oito. Assim, Carlos de Valois e Gaucher de Châtillon estavam entre os padrinhos de Carlos de La Marche, o terceiro filho de Filipe, o Belo. Mafalda era madrinha daquele príncipe, como de muitas crianças da família. Sua designação para levar às fontes do batismo o filho póstumo de Luís X, não tinha, portanto, nada de surpreendente. Não a escolher é que teria parecido prova de desfavor.

(27) O batismo, naquela época, era sempre realizado no dia seguinte ao do nascimento.

A ablução por imersão total na água fria, foi praticada só até o início do século XIV.

Um sínodo, reunido em Ravena, em 1313, resolveu, pela primeira vez, que o batismo poderia ser dado também por aspersão, se houvesse escassez de água-benta ou se fosse de temer que a imersão completa comprometesse a saúde da criança.

Somente no século XV, entretanto, desapareceu verdadeiramente a prática da imersão.

Se acrescentarmos a essa forma de batismo as deploráveis condições de higiene em que se processavam os partos, em dificuldade compreenderemos o alto índice de mortalidade de recém-nascidos, na Idade Média.

(28) A Rainha Clemência tinha sido atingida, segundo tudo leva a crer, de febre puerpéral.

(29) Quando um recém-nascido apresentava sintomas de doença, não era a ele próprio que se administravam os remédios, e sim à ama-de-leite.

(30) Essas disposições visavam tanto o registro dos atos particulares como a outorga de patentes, autorizações de residência ou de comércio para estrangeiros, e os diplomas dos oficias reais. Se nos reportarmos à lei de 1321, notaremos, por exemplo, que os atos concernentes aos lombardos ou judeus estavam submetidos a idênticas tarifas: 11 soldos para uma carta de apêndice simples, 7 libras e 10 soldos para uma carta de duplo apêndice, e 9 libras, se os selos apostos sobre os ditos apêndices fossem de cera verde, côr reservada para o sinête real. As cartas de nomeação para cargos pagavam 51 soldos, para os bailios e senescais, 6 soldos para os aguazis e funções pequenas.

Mesmo os dons graciosos ou rendas concedidas pelo soberano deviam ser certificados através de documento taxado.

O papel timbrado, utilizado hoje pelos tabeliães, é uma sobrevivência daquele regulamento.

(31) Os sinais de desequilíbrio mental deviam acentuar-se rapidamente. João XXII, que sempre protegera Clemência, posto que era princesa d’Anjou (não chegara ele a conceder, quando soube de seu parto, vinte dias de indulgência a quem rezasse pela rainha e por seu filho?) foi forçado, no mês de maio seguinte, a admoestar por carta a jovem viúva, pedindo-lhe que vivesse apagadamente, na castidade, na humildade, que fosse sóbria à mesa, modesta em suas palavras como em seus trajos, e que não aparecesse apenas em companhia de gente jovem. Ao mesmo tempo, intervinha junto a Filipe para a fixação da dotação de viúva de Clemência, coisa que não foi feita sem dificuldade.

O papa escreveu ainda a Clemência, por várias vezes, exor-tando-a a reduzir suas despesas suntuárias e pedindo-lhe com firmeza que pagasse suas dívidas, em particular aos Bardi, de Florença. Finalmente, em 1318, ela precisou fazer retiro, por alguns anos, no convento de Santa Maria de Nazaré, junto de Aix, na Provença. Mas, antes de se enclausurar, foi obrigada, a fim de satisfazer as exigências de seus credores, a depositar suas jóias como penhor.

Quando morreu, dez anos mais tarde, em Paris, no Palácio dos Templários, que Filipe V lhe havia dado em troca do castelo de Vincennes, todos os seus bens foram vendidos em leilão.

(32) Os irmãos João e Pedro de Cressay seriam armados cavaleiros por Filipe VI, de Valois, vinte anos mais tarde, em 1346, no campo de Batalha de Crécy, na véspera da famosa derrota.

(33) Bourse-à-cul-de-vilain: chamava-se assim as bolsas de ventre redondo, e estreitas na boca. Eram muitíssimo ornamentadas, e os nobres ali levavam freqüentemente seu sinête, além de dinheiro.

Esses números foram extraídos das contas da sagração de Filipe VI, doze anos depois. Nem os preços nem as quantidades tinham variado muito. Em compensação, todos os pormenores do guarda-roupa, da decoração, que damos durante o capítulo, referem-se, de fato, à sagração de Filipe V, e foram tirados do livro de seu tesoureiro.

(35) Entendia-se por robe (vestido), em termos de enxoval, um trajo completo, composto de várias peças denominadas garnement, e todas do mesmo tecido. A robe de aparato compreendia: dois surcots (espécie de casaco que se usava sobre a cota, às vezes sem manga), um aberto e outro fechado; uma housse (capa inteiriça), uma garnache (manto longo), um chaperon (chapéu, capuz, guarnição para a cabeça, que variava de feitio de acordo com a situação social do portador) e um manto de atavio.

(36) Os eleitores de Hugo Capeto — daí o título de pares, isto é, iguais ao rei — tinham sido: o Duque de Borgonha, o Duque da Normandia, o Duque de Guyenne, o Conde de Champanha, o Conde da Flandres, o Conde de Toulouse.

Nenhum dos possuidores, hereditários ou titulares, dos seis partidos, estavam presentes à sagração de Filipe V.

(37) Alguns meses depois, em setembro de 1317, o papa escreveu ao confessor da rainha Joana para lhe dar poderes de absolvê-la “de todos os pecados que confessara três anos antes”. Parece duvidoso que Filipe V pedisse ao seu amigo Duèze essa absolvição oficial, se não acreditasse firmemente na inocência de sua esposa, pelo menos na parte que se referia ao adultério.

(38) Cinco séculos mais tarde, em seu discurso de 21 de março de 1817, diante da Câmara dos Pares e relativo a uma lei de finanças, Chateaubriand encontrou argumentos nesse de creto de Filipe, o Longo, promulgado em 1318, e pelo qual o domínio da coroa fora considerado inalienável.

 

                                                                                Maurice Druon  

 

                      

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