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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LENDA DA RAINHA NEGRA / Yvonne Whittal
A LENDA DA RAINHA NEGRA / Yvonne Whittal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

A força de um poder milenar poderia reconciliar John e Christie?
Christie aspirou o ar perfumado da noite, olhando pensativa para a barraca onde John dormia. Por um momento, o desejo louco de ir até lá a assaltou. Mas não podia: depois de cinco anos separados, nenhuma esperança restava. A não ser...
Ansiosa, Chris procurou no bolso o medalhão que pertencera à lendária rainha Indlovukazi. E se os poderes mágicos daquele talismã do amor ainda existissem?

 


CAPÍTULO I

Christie Olson tremia ao segurar o envelope amarelo que trazia o selo oficial da universidade. Estava ansiosa para descobrir o conteúdo da carta, mas, por alguma razão, sentia-se um pouco amedrontada. Aquele emprego não lhe era assim tão necessário como era para os outros candidatos. No entanto, acompanhar uma expedição de estudantes de arqueologia por um mês parecia uma aventura, principalmente para ela, que levava uma vida insípida como secretária em uma firma de contabilidade de Johannesburgo.
Algumas noites atrás, Sammy Peterson fora o primeiro a notar-lhe a intranqüilidade, quando a levara para jantar:
- Você passou três preciosos anos de sua vida diante de uma máquina de escrever, e, no entanto, é teimosa demais para admitir que errou. O que você precisa, Chris, é do brilho de um palco e do desafio de um estúdio de gravação.
Christie sorriu com ironia para o homem corpulenta e calvo, de baixa estatura, que tragava o charuto com grande prazer. Apesar do contrato dela ter acabado há três anos, Sammy Peterson ainda a considerava sua propriedade particular.
- Não desiste mesmo, não é? - ela observou.
- Esqueceu que a encontrei dedilhando seu violão e cantando por uma ninharia num barzinho de terceira categoria? Eu a transformei numa estrela, Christie, e agora quer que eu fique de braços cruzados vendo sua carreira, construída com tanto carinho, ir por água abaixo.
- A escolha foi minha, Sammy.
- Você estava abalada quando decidiu largar tudo, e o culpado é John Venniker!
- Não vamos falar sobre John.
O rosto de Christie se transformou numa máscara de frieza.
Sammy Peterson a conhecia o suficiente para saber que tinha ido longe demais na ânsia de convencê-la a voltar. Porém, ele não era do tipo de homem que desistia com facilidade.
- Eu tenho um novo contrato pronto, esperando por você. Se mudar de idéia, tudo o que tem a fazer e assiná-lo - ele disse ao deixá-la em casa.
As palavras de Sammy ainda soavam, incômodas. Ele a fizera lembrar que um ano depois de deixar o orfanato precisara encarar o mundo sozinha. Naquela época, não tinha conseguido achar nenhum emprego permanente, e, em absoluto desespero, aceitara trabalhar em um bar, servindo os fregueses de dia e cantando à noite. E fora exatamente naquele local que Sammy a havia encontrado, dando-lhe a grande chance de tornar-se cantora profissional.
Era verdade que, às vezes, ela sentia saudades da agitação do palco e da emoção de gravar um disco novo, mas o preço pelo reconhecimento tinha sido alto demais. Quando o contrato com Sammy terminara, ela deixara parte da própria vida para trás, prometendo nunca mais revivê-la.
Voltando à realidade do seu lar, ainda com a carta nas mãos tensas, procurou trazer os pensamentos para o presente. O passado estava morto e enterrado, não valia a pena perder tempo com recordações amargas. Rasgou o envelope. Dentro havia uma única folha. Os olhos de Christie deslizaram sobre as primeiras linhas e um intenso brilho de felicidade iluminou-lhe o rosto. Tinha conseguido o emprego! Por alguns momentos, o choque foi tão intenso que simplesmente ficou contemplando as palavras, como num transe. Quando poderia sonhar que obteria o emprego? Pelo que se lembrava, os outros candidatos pareciam muito mais capacitados e experientes para uma expedição arqueológica.
Christie se deixou cair numa cadeira e fechou os olhos por um instante, antes de ler o segundo parágrafo:
"O professor da universidade e sua equipe desejam deixar Johnnesburgo no dia 17 de fevereiro, e é necessário que entre em contato conosco o quanto antes, para que possamos discutir os acertos finais".
Quanta ironia... John uma vez a convidara para uma excursão até o local de escavações nas ruínas de Pompéia, na Itália, porém, ela se vira forçada a recusar por causa de outros compromissos. Agora, estaria acompanhando um arqueólogo e seu grupo de estudantes numa viagem até o norte de Transvaal.
John. Christie não queria pensar em John Venniker, mas as lembranças tumultuavam-lhe a mente como uma tempestade em alto-mar.
Haviam se conhecido depois de um show na casa de amigos comuns, e Christie se sentira imediatamente atraída por aquele arqueólogo alto, esbelto e de olhos incrivelmente azuis. A atração fora mútua, e um mês depois se casavam, apesar dos protestos de Sammy Peterson. Ela estava com vinte anos, os olhos brilhavam com o sucesso, e, pela primeira vez na vida, havia se apaixonado. Porém, a felicidade durou pouco.
John era muito possessivo, e não escondia a insatisfação com as exigências da carreira da esposa. Insistira em levá-la para a Itália, e Christie se vira dividida entre o amor pelo marido e a lealdade a Sammy Peterson. Em vez de receber apoio e compreensão de John, fora obrigada a escolher entre ele e a profissão. Na época, faltavam ainda dois anos para que o contrato com a companhia de Sammy terminasse, além de sessões de gravação marcadas e uma longa turnê pelo país, que não podia ser cancelada. Não houvera como escapar desses compromissos, e, depois de seis meses, curtos e tempestuosos, a relação dos dois desmoronava. O divórcio foi tão rápido quanto o casamento. John viajou sozinho para a Itália, e, pelo que ela sabia, nunca mais retornara.
Christie deixou as lembranças de lado. Cinco anos depois, a dor era a mesma do dia em que ele saíra furioso do apartamento. Quanta angústia e solidão sufocadas ao longo dos anos...
Christie suspirou profundamente, voltando para o presente. Lá fora escurecia, e as luzes do apartamento espaçoso e bem mobiliado foram acesas. Passar a infância em meio a pobreza tinha lhe ensinado como ser cuidadosa com o dinheiro. Agora, com as economias guardadas, ela podia se permitir pequenos luxos. Entretanto, não havia nada de pomposo naquela atmosfera serena e confortável onde vivia.
Christie preparou algo para comer antes de se entregar a um banho reconfortante de espuma. Assistiu à televisão por algum tempo, e então resolveu ir para a cama. Na manhã seguinte precisaria estar na universidade, onde ia discutir os acertos finais da viagem. Os próximos dias seriam inteiramente dedicados à compra de roupas adequadas para a aventura. Eles na certa acampariam num lugar distante da civilização, e o guarda-roupa dela não era apropriado para o clima do norte de Transvaal.
Ao entrar no quarto, o espelho na parede captou a graça e a leveza de seus movimentos. Christie não gostava muito de ficar diante do espelho. Achava que seus olhos eram grandes demais e a boca, muito larga, desconhecendo o fato de que suas feições, de beleza inigualável, provocavam uma atração irresistível nos homens. A possibilidade de um novo romance jamais fizera parte de seus planos. Desde o divórcio com John, havia adotado uma personalidade fria e indiferente, que só Sammy Peterson conseguia compreender. Ser magoada uma vez já fora o bastante.

Era uma manhã quente de fevereiro, e, depois de uma semana frenética de preparativos, Christie estava tomada pelo cansaço.
O motorista de táxi tirou-lhe a mochila do bagageiro, enquanto ela remexia a bolsa, procurando a carteira. Depois de ter pago a tarifa, viu-se sozinha no campus da universidade.
Um microônibus, dois caminhões espaçosos e um jipe estavam estacionados a uma pequena distância dali. Christie mal podia conter a ansiedade. Não havia dúvidas de que aquele era o lugar que lhe tinham indicado na entrevista.
Um grupo de alunos sentados à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção. Falavam sobre a expedição, e o clima de expectativa não podia ser mais contagiante
Christie começava a pensar que sua presença não tinha sido notada, quando um jovem moreno, de olhos verdes, se aproximou.
- Você deve ser a senhorita Olson. - Recebeu-a com um sorriso amigável.
- Sou eu mesma.
- Meu nome é Dennis de Villiers - ele cumprimentou com entusiasmo. - Quer me dar a bagagem para eu pôr no caminhão junto com a nossa?
- Obrigada.
Christie permitiu que o rapaz levasse a mochila até o caminhão de carga, mas não deixou de lembrar que, a partir daquele momento, teria de ser responsável por si mesma.
- Venha, vamos nos juntar ao resto do grupo - disse ele, depois de acomodar tudo no veículo
Dennis a apresentou aos quinze alunos, dos quais três eram garotas. Uma delas de imediato atraiu-lhe a atenção! Érica, de cabelos muito claros, possuía uma chama de rebeldia nos olhos escuros que a interessou profundamente.
- Você já deve ter reparado que o clima entre nós é bastante informal. - Dennis sorriu, virando-se para ela. - Qual é o seu primeiro nome?
- Christie - ela respondeu.
- Havia uma cantora muito popular alguns anos atrás chamada Christie - Érica comentou. - Meu irmão era louco por ela, e comprou todos os seus discos.
- É mesmo? - Christie se mostrou desinteressada. Porém. Érica não desistiu.
- Não faço a menor idéia do que tenha lhe acontecido. Simplesmente desapareceu.
- Talvez sua popularidade tenha caído - Chris sugeriu, tentando colocar um ponto final na conversa.
- Não acredito. Se tivesse acontecido isso, meu irmão saberia, pois trabalhava na gravadora dela.
Christie começou a se sentir bastante embaraçada, até que a conversa foi interrompida por Dennis.
- Lá vem o professor!
Ela seguiu os olhares, curiosa, mas, de repente, empalideceu, sentindo o coração disparar. Não podia acreditar no que via. O homem caminhando em direção a eles era John Venniker! Passado e presente entraram em conflito, fazendo com que a muralha de frieza e indiferença que Christie construíra ao redor de si desmoronasse. Ela permaneceu ali como uma estátua, o rosto sem cor, enquanto o resto do grupo se amontoava em volta dele.
Quando aqueles olhos azuis e penetrantes encontraram os dela, a vida começou novamente a agitar-lhe o coração. John ordenou aos estudantes que se preparassem para partir, e então se aproximou. Chris nunca havia sentido tanta vontade de fugir, mas as pernas se recusavam a dar um passo. A poucos metros de distância, ele estacou e ficou a observá-la.
Alto, loiro e esbelto, John ainda parecia o mesmo, exceto por um leve tom grisalho nos cabelos, dando-lhe um ar de maturidade. Passado o choque, ela começou a reparar em outros detalhes. As feições bem marcadas estavam mais acentuadas, os olhos mais profundos, e os lábios mais rígidos. De um certo modo, a mudança acentuara-lhe a masculinidade. O olhar repleto de sarcasmo deixou-a apavorada.
- O destino deve achar graça em fazer nossos caminhos se cruzarem mais uma vez. Porém, quero deixar uma coisa bem clara: se soubesse que viria a esta expedição, insistiria para que indicassem outra pessoa no meu lugar.
A voz familiar estava carregada de aspereza, despertando em Christie um sentimento a muito esquecido, o ódio.
- E se eu soubesse que você estaria no comando da expedição, teria desistido na mesma hora.
- Já que esses são os termos de nossa conversa, quero ainda lhe esclarecer uns detalhes, antes de deixarmos o campus. As próximas quatro semanas serão difíceis para todos nós. Portanto, não vá esperando nenhum privilégio. Todos devem ajudar nas tarefas, inclusive cozinhar, e tudo isso se aplica a você também. - O tom era autoritário e ameaçador.
Christie se sentiu indignada com tamanho insulto. Como ele poderia duvidar da capacidade e disposição dela para os trabalhos difíceis? Mesmo quase explodindo de raiva, manteve a calma e perguntou com frieza:
- Mais alguma coisa, senhor?
- Por enquanto, não. Depois veremos...
Se aquilo era um desafio, já estava aceito.
- Em que veículo vou viajar?
- No primeiro caminhão, com Dennis de Villiers.
- Obrigada. Posso ir agora?
Não houve resposta. Depois de se encararem em silêncio por alguns instantes, John simplesmente deu-lhe as costas, caminhando em direção ao jipe. Chris continuou a observá-lo, pousando os olhos nas pernas musculosas cobertas pela calça caqui, nos quadris estreitos e ombros largos. Era difícil acreditar que já houvera intimidade entre eles. Mais uma vez, as lembranças tumultuavam-lhe a mente. Lembranças dos seis meses de convivência com aquele homem, marcados por muito amor e felicidade, até que suas profissões distintas acabaram por separá-los. Nada mais poderia ter salvado o casamento.
Christie voltou à realidade, e se dirigiu ao caminhão onde se encontrava Dennis de Villiers, à frente do volante. Sentou-se ao lado dele, batendo a porta com uma violência desnecessária, como se naquele gesto pudesse descarregar a raiva que sentia por John.
- Ei! As moças viajam no microônibus!
- O professor me disse para viajar aqui, e eu não tenho nada contra isso.
- Ele deve estar ficando louco! Você não pode viajar nesta lata velha!
- Tudo bem. Para mim tanto faz. - Ela suspeitava que John planejava dificultar-lhe a vida ao máximo nas semanas seguintes. A viagem desconfortável no caminhão séria apenas o começo.
- Se você insiste, tudo bem, mas eu ainda acho que... - O barulho do motor de um Triumph interrompeu-o ao passar pelo caminhão, indo parar perto do jipe de John.
- Parece que vamos ter de esperar mais um pouco para partirmos - Dennis observou, impaciente.
A mulher que desceu do carro era alta, loira, e mesmo a distância se notava sua beleza admirável. John saudou-a com um sorriso encantador. A estranha beijou-lhe o rosto, provocando a irritação de Christie.
- Ela vai se juntar a nós?
- Pelo amor de Deus... Nem pense numa coisa dessas - Dennis respondeu, ajeitando o retrovisor. - Seria um desastre, acho que não consegue mover uma palha sem a ajuda de outra pessoa - concluiu, irônico.
Christie não conseguia tirar os olhos daquela jovem elegante envolvida numa discussão seria com John.
- É aluna daqui?
- Não. Sonia Deacon é mulher de um manda-chuva da região das minas. Ela tem dado em cima do professor desde que ele chegou, há seis meses.
Dennis, sem querer, falara demais. Mas não era com John que Christie se preocupava. Sonia Deacon parecia lhe implorar algo, mas a expressão dele se mostrara inflexível e resoluta quando negou com um gesto de cabeça.
- Ela parece aborrecida com alguma coisa - observou Christie.
- Sônia é uma mulher bastante possessiva; aposto que não gostou da idéia de ser deixada sozinha, enquanto o professor estiver fora.
Christie reparou no comportamento firme de John. Ele ouvia sem se alterar. Finalmente, Sônia Deacon deu-se por vencida e entrou no carro, furiosa. O Triumph fez uma arrancada, dando meia-volta.
Ela e Dennis trocaram olhares atônitos, até que John se aproximou, com uma irritação flagrante estampada no rosto...
- Vamos andando! Já perdemos muito tempo - ele avisou Dennis. Em seguida, deu ordem de partida aos outros veículos que se encontravam atrás do caminhão. Alguns instantes depois, todos já estavam na estrada para Pretória.
Dennis não tinha brincado quando chamou o caminhão de "lata velha". O assento era duro e machucava a cada buraco na estrada. À medida que avançavam para o norte, o calor tornava-se insuportável. O ritmo do comboio muito lento fazia as horas parecerem dias. Depois de passarem por Pretória, houve uma parada em Potgietersrus para o almoço. Christie procurou a companhia das três garotas do grupo na tentativa de evitar John. A simpatia por Érica aumentou: a garota se revelou uma pessoa extrovertida e agradável, o que também se aplicava a Sandra e Valerie.
Depois daquelas horas de viagem sob forte calor, o restaurante mais parecia um oásis. Porém a jornada teria de prosseguir em breve, e Christie desanimou diante do sol ardente.
- Mike vai trocar de lugar com você. Poderá viajar conosco no microônibus, Christie - Valerie disse, apontando para um rapaz loiro a pouca distância.
Christie estava a ponto de aceitar o novo arranjo, quando percebeu que John ouvira cada palavra de Valerie, e agora esperava a resposta dela com um ar zombeteiro e desafiador.
- Obrigada pela preocupação, Valerie, mas acho melhor não contrariarmos as ordens do professor. Ele parece muito mal-humorado e ia ficar uma fera se descobrisse a troca.
Sandra, a mais tímida das três garotas, não conseguiu conter o embaraço ao perceber a presença de John perto dali, e sussurrou:
- Aposto que o professor ouviu tudo o que você disse.
Christie gostaria de dizer "bem-feito", mas preferiu dar de ombros, indiferente.
- É mesmo?
Sandra confirmou com um gesto de cabeça, e, em seguida, veio a voz de John, potente e áspera, por trás de Christie.
- Todos em seus veículos: vamos partir!
Christie voltava ao caminhão quando foi segura por mãos fortes e forçada a encarar o homem que há pouco desafiara, e que agora a olhava de modo ameaçador.
- Mais um desses comentários sobre mim aos estudantes, e eu a mando de volta para Johannesburgo - ameaçou John.
A hostilidade entre eles apenas começava. Ela pensou: "Essa é a minha chance de sair daqui!", mas, por alguma razão, se viu pedindo desculpas.
O jeito familiar de John não lhe saía da mente, quando subiu no veículo com calma e se acomodou no banco. Apesar da irritação profunda, não conseguia tirar os olhos dele.
O caminhão ameaçou cair em pedaços quando Dennis deu a partida e seguiu o jipe à frente deles.
- O professor não é mau sujeito - o rapaz observou, como se tivesse presenciado o episódio entre ela e John.
- Estou certa que não - Chris respondeu seca, imediatamente se arrependendo por isso. Se quisesse esconder o passado, teria que ser mais cuidadosa. - Nunca fui uma boa acompanhante de viagem, e o calor me deixa ainda mais nervosa.
- Tudo bem, não se preocupe, é difícil para todos nós - Dennis reconheceu e, depois disso, caíram no silêncio.
O comboio deixou a estrada principal e seguiu a noroeste.
Christie nunca viajara por aquelas terras, e a paisagem a impressionou. As montanhas iam ficando para trás, e a estrada acompanhava as elevações do terreno, descendo em vales onde a vegetação ao longo dos rios era verde e fértil.
O calor aumentava a cada instante. Christie sentia a garganta seca e as roupas grudadas ao corpo. Dennis parecia estar em condições tão precárias quanto ela. O suor escorria livremente em ambos os rostos.
- Até onde temos que ir? - ela perguntou, tirando os óculos escuros e enxugando o rosto com um lenço.
- Mais uns cinqüenta quilômetros, acho.
Ela suspirou, perguntando a si mesma se sua coluna seria a mesma depois da viagem. Cinqüenta quilômetros não teriam o menor problema numa estrada asfaltada, mas aquela era de cascalho, e eles viajavam sob uma nuvem de poeira, provocada pelo jipe à frente. A situação ainda se tornava pior para os que vinham atrás do caminhão.
Entardecia quando chegaram a Dialsdrif, uma cidade pequena, com um pouco mais de seis lojas e alguns casebres próximos a imensas árvores centenárias. O jipe diminuiu a velocidade ao entrar na localidade, e os outros veículos fizeram o mesmo. Todos esperavam que a passagem por ali fosse curta, mas John sinalizou uma parada perto das lojas.
Não foi preciso insistir para que todos esticassem as pernas fora dos veículos. Christie nunca tinha visto tantas pessoas cansadas ao mesmo tempo. John, no entanto, era uma exceção. Ela sempre se impressionava pela extraordinária vitalidade e energia, e não pôde deixar de admirá-lo quando ele se aproximou dos alunos. Todo o resto do grupo perdera a disposição, mas John ainda parecia o mesmo de quando havia deixado o campus.
- Esta é a última cidade antes de perdermos contato com a civilização. Alguém virá para cá uma vez por semana para buscar mantimentos ou qualquer outra coisa que precisarmos. Se tem gente aqui que precisa de algo, é melhor comprar agora. Só têm meia hora. - Depois do aviso, ele pousou o olhar em Christie.
- Que tal uma bebidinha bem gelada? - Dennis a convidou.
- Ótima idéia, parece que não bebo há séculos! Que tal aquela cantina?
- Christie!
Ela empalideceu, e levou algum tempo para conseguir encarar John. Ele nunca a chamara por Christie, nem mesmo nos momentos de raiva.
- Trouxe chapéu? - John perguntou com aspereza.
- Não, eu, eu...
- Então é melhor comprar um - ele completou, brusco. - O sol pode tornar a vida bem difícil nesta parte do país.
Christie emudeceu. Enquanto ele a levava até a cantina, o leve toque da mão forte nas suas costas parecia queimá-la. Mas John não se demorou ao seu lado; logo em seguida se dirigiu até o refrigerador, apanhou uma cerveja e foi para um canto do balcão.
Com os estudantes ali, a cantina parecia minúscula. Christie tinha os pensamentos voltados para John, cujo toque ainda a perturbava. Será que ele continuava se preocupando com ela ou apenas evitava a possibilidade de ser incomodado? Com um suspiro, ela experimentou um chapéu de abas largas, sentindo que cada movimento que fazia era seguido de longe por John. Para fugir àquela observação indiscreta, apanhou uma lata de refrigerante na geladeira e foi se recostar numa das árvores frondosas. Após alguns instantes, ele a seguiu, parando na sua frente.
Christie tentou ignorá-lo. Abriu a latinha e bebeu com grande prazer. Porém John não era o tipo de homem que alguém poderia simplesmente fazer de conta que não existia; ele se fez presente enquanto permanecia ali, imóvel, com as mãos no cós do jeans, de uma maneira casual. Porém não havia nada casual no modo como a encarava, medindo-a dos pés à cabeça, numa tentativa deliberada de provocação.
Acabou conseguindo perturbá-la. Um calor sufocante queimou o rosto de Chris, e, por algum motivo infantil, quase desabou em lágrimas. Felizmente, o ódio veio depressa em seu auxílio. Há alguns anos, ele a fizera chorar muito e Christie não iria começar tudo de novo, só porque se sentia desprezada e humilhada.
- O que aconteceu à sua carreira fabulosa? - O sorriso dele acentuava o sarcasmo da pergunta.
- Meu contrato terminou há três anos. Perdi o interesse pela carreira como cantora e fui trabalhar como secretária num emprego que não tinha nada a ver com música.
- Parece que você tem passado todos esses anos como o centro das atenções. - John não desistia da provocação.
- Esta observação prova que nunca me conheceu direito.
Não era a primeira vez que se confrontavam, e Chris viu novamente um traço de fúria no rosto dele.
- Que diabos você está fazendo aqui? - John perguntou, ameaçador.
- É diferente de tudo que já fiz antes. - Christie simulou uma tranqüilidade que não sentia. - Além disso, me pareceu uma grande aventura.
- Os alunos não estão aqui para uma aventura. Esta expedição é uma parte importante do curso e é bom que se lembre disso - avisou John, com desprezo. Ele estava tão próximo, que Chris recuou, encostando-se mais ao tronco da árvore.
Quando, finalmente, ele a deixou sozinha, ela se surpreendeu ao descobrir que tremia. Nunca tivera medo de John, mas agora notava nele uma certa violência, que não existira durante o casamento Começou a temer as próximas semanas. John faria de tudo para lhe tornar a vida insuportável.
CAPÍTULO II

O acampamento estava a meia distância entre uma montanha escarpada e o rio Mogalakwena.
O primeiro dia foi para adaptação ao novo ambiente. Érica, Sandra e Valerie dividiram uma barraca e os homens ocuparam três. Christie obteve uma só para si, sem saber se era para se sentir privilegiada, ou isolada do resto do grupo. John também ficou com uma barraca, que servia tanto de centro de operações como quarto de dormir.
Um desvio no curso do rio Mogalakwena, auxiliado por um afloramento de rochas, criava uma piscina natural onde todas podiam se banhar com segurança. Também havia água potável para uma semana. O alimento era mantido num refrigerador a gás, e as refeições, preparadas num fogãozinho ou numa fogueira. Tudo estava muito bem organizado, ao contrário do que Christie esperava. Entretanto, ainda lhe parecia estranho comer a céu aberto, os sons noturnos proporcionando, uma atmosfera bastante primitiva. Todos, exaustos na primeira noite, foram para cama muito cedo, e dormiram em seguida, exceto Christie. O saco de dormir não substituía a cama confortável no apartamento em Johannesburgo.
O silêncio na tenda dava-lhe a impressão de que era a única pessoa viva sobre a face da Terra. Com medo de ficar acordada a noite inteira, esforçou-se para relaxar e, finalmente, caiu num sono profundo, só acordando na primeira claridade da manhã seguinte.
As escavações começariam na face rochosa da montanha, onde havia uma caverna natural que poderia ter sido habitada por uma das antigas tribos africanas.
Com um bloco de anotações e um lápis, vestida com roupas leves, Christie seguiu com o grupo. Havia imaginado que iria apenas observar o trabalho dos outros e tomar apontamentos, mas viu logo que estava redondamente enganada.
John deu instruções bem claras a todos, e ela se viu ajudando no transporte do equipamento, antes das escavações começarem.
À medida que o tempo passava, o calor e a umidade aumentavam, e a equipe entendeu por que John vestira short em vez de calça comprida. Ele acabou tirando a camiseta, e agora expunha o tórax musculoso ao sol. Enquanto os rapazes o imitavam, as garotas se limitavam a sofrer em silêncio.
- Amanhã venho de biquíni - declarou Érica, enquanto caminhavam para o acampamento na hora do almoço. - Não quero mais ver roupa na minha frente.
À tarde, o grupo não voltou ao local de escavação, reunindo-se para discutir as atividades do dia seguinte, fazendo perguntas e tomando notas do que achava importante. Depois se dispersaram deixando Christie e John a sós.
Ela estava nervosa e não sabia o que esperar. Tentava a todo custo não olhar para ele, mas era quase impossível ignorar aquele torso nu e atlético. John continuava tão atraente quanto antes...
Lembranças perturbadoras voltaram-lhe à mente, transportando-a para os momentos de prazer que haviam partilhado. Quantas vezes não descansara a cabeça naquele peito largo, acariciara o corpo de John, que vibrava de desejo por ela, numa urgência que a enlouquecia de paixão! Será que ele se lembrava dela da mesma maneira?
Entretanto, os olhos dele se encontravam vazios de qualquer emoção, exceto aspereza. Não podendo suportar a tensão, Chris se levantou e fez menção de se afastar.
- Onde você pensa que vai? - John perguntou.
Chris parou e se virou para encará-lo, com naturalidade fingida.
- Precisa de alguma coisa?
John se aproximou com calma.
- Ainda tem muito trabalho a ser feito. Venha comigo.
Ele caminhou em direção à barraca, e Christie se viu sem outra alternativa que não segui-lo. Ainda levava consigo o caderno de anotações, no qual registrara de manhã as ocorrências mais importantes. John lhe indicou uma cadeira e começou a ditar alguns dados de forma tão rápida que ela quase não conseguiu acompanhá-lo.
- Leia para mim - ele pediu, ao terminar a frase.
Christie imediatamente obedeceu. No entanto, ao chegar num item que contradizia as informações anotadas pela manhã, parou, intrigada.
- Você não tinha dito que a história da África do Sul data do século dezessete? Como é que agora acabou de falar que há quase um milhão de anos já havia tribos vivendo aqui?
- Uma coisa não tem nada com a outra. - Ele se sentou e acendeu um cigarro. - A história oficial da África do Sul data do século dezessete, quando os primeiros exploradores e colonos europeus começaram a escrever sobre esta região. Porém, a nossa tarefa é descobrir e reconstituir as atividades do homem nos tempos pré-históricos.
- Desculpe. - Christie percebeu de imediato que ainda tinha muito que aprender. A única maneira de se livrar do constrangimento que sentiu pela própria desinformação foi se interessar pelo assunto. - Espera encontrar alguma coisa interessante por aqui?
- Talvez... embora o proprietário destas terras ache que perdemos nosso tempo.
Enquanto falava, um sorriso aliviou um pouco as feições rígidas de John. Isto bastou para derreter outra camada de gelo no coração de Christie. Mas ela não podia ceder emocionalmente. Não queria correr o risco de abrir certas portas que decidira trancar para sempre. Se não tomasse cuidado, a amargura e a desilusão voltariam à tona. Melhor do que ninguém, tinha consciência de como amar era doloroso.
- Como os seus alunos irão reagir se todos os esforços forem inúteis? - perguntou, tendo em mente apenas o interesse cada vez maior pelo projeto.
- Com naturalidade, acredito. Estão ganhando experiência e prática, esses são os objetivos principais desta expedição.
- Entendo... - Mais uma vez, Chris se sentiu uma tola e baixou os olhos.
- Mais alguma pergunta?
- Não - ela negou com um gesto de cabeça, os cabelos castanhos balançando ao redor do rosto.
- Então sugiro que continue de onde parou.
- Desculpe - disse ela, reconhecendo o tom de repreensão na voz de John. Durante cinco minutos leu em voz alta o que havia escrito.
O silêncio que se seguiu entre ambos foi interrompido apenas pelo canto dos pássaros nas árvores, e ao longe, pela risada dos alunos.
Christie fez o possível para não mostrar o nervosismo crescente, e, quando arriscou um olhar para cima, seus olhos castanhos se arregalaram frente ao semblante furioso de John.
- Por que você me olha desta maneira? - perguntou com a voz tensa.
John jogou o toco do cigarro longe e pôs-se de pé. Havia uma raiva imensa nas ações dele, muito mais visível naquele olhar ameaçador.
- Houve uma época em que eu daria tudo para que você me acompanhasse numa expedição.
- E agora eu significo um incômodo do qual você gostaria de se livrar! É isto que tenta me dizer? - Chris perguntou, lutando para ocultar a mágoa.
- Exatamente, senhorita Olson!
Foi como um golpe súbito no coração de Christie. Uma dor profunda, familiar.
- Você me odeia tanto assim, John?
- Ódio? Não. - A voz dele era segura. - Sinto uma indiferença total por você. O que eu odeio mesmo é ter que trazer o passado para o presente.
Indiferença, passado e ódio. Aquelas palavras cortaram como punhal, fazendo sangrar as velhas feridas. Chris precisou de um grande esforço para conter as lágrimas.
- É uma observação bastante incoerente, vindo de um arqueólogo como você - retrucou, querendo que sua voz soasse irônica.
- Eu estava falando como pessoa, não como profissional, e você sabe muito bem disso!
Enquanto olhava com espanto para aquele John tão mudado, o calor dentro da tenda começou a sufocá-la.
- Acho que ainda não lhe ocorreu que eu também posso estar achando a situação insuportável.
- Não duvido disso, porém, fico feliz em deixar bem claro meus sentimentos por você. - Autoritário e arrogante, John continuou a instruir Christie: - Vai encontrar todo o material necessário naquela caixa embaixo da mesa. Bata um original e duas cópias das notas que ditei a você, e depois deixe aqui neste arquivo sobre a mesa.
- Sim, professor - ela respondeu, desafiante e ao mesmo tempo espantada.
Com um gesto brusco, ele deu-lhe as costas e saiu, deixando-a sozinha.
Indiferença, passado e ódio. As palavras continuavam incomodando-a terrivelmente. No decorrer dos anos, havia construído uma fortaleza ao redor do coração para se proteger da dor. No entanto, bastara aquele reencontro para que tudo fosse por terra. "Maldito seja, John Venniker, por voltar à minha vida e remexer nas feridas que ainda não tinham cicatrizado." Podia suportar qualquer coisa vinda de John, menos indiferença. Esta deixava na boca um gosto amargo, que nada no mundo conseguiria melhorar.
Christie procurou deixar tais pensamentos de lado. Apanhou papel e carbono, e puxou uma cadeira. Talvez no trabalho conseguisse esquecer a decepção sofrida há pouco. Levou algum tempo para se acostumar com a máquina e, finalmente, conseguiu se concentrar e datilografar as notas que John lhe tinha dado.
Uma hora mais tarde, Chris acabava de bater a última folha de papel. Um pouco distante dali, os alunos ainda conversavam. De repente, ela ouviu passos de alguém se aproximando. Era Dennis.
- Nós vamos até o rio para um mergulho. Não quer ir conosco, Chris? - perguntou, observando-lhe o rosto vermelho e as roupas molhadas de suor.
Ela daria tudo por um banho naquela água fresquinha, mas ainda precisava revisar as folhas, checando os erros de datilografia.
- Sinto muito, Dennis, mas ainda tenho muito trabalho pela frente.
- Ora, vamos lá, Christie. Estou certo de que o professor não se importaria se parasse por alguns instantes.
- Isso é o que você pensa, Dennis.
Christie se voltou na direção da voz de John e um olhar dele bastou para que ela se sentisse culpada
- Lembre-se de que a srta. Olson está aqui a trabalho, e não em férias - continuou John.
- Mas, professor...
- E ela também não veio aqui para diverti-lo, sr. Villiers.
- Professor, eu só queria...
- Já chega! Não ouviu o que eu falei?
Uma mistura de surpresa e aborrecimento se estampou no rosto de Dennis, que, sem emitir mais nenhuma palavra, seguiu o grupo em direção ao rio.
Christie lamentou o incidente. John não devia ter descarregado sua raiva em Dennis!
- Você não precisava ser tão hostil, o moço estava apenas...
- Não preciso de ninguém para me dizer como devo tratar meus alunos - ele gritou antes que Chris terminasse de falar.
- A minha intenção não era interferir, mas se quer descarregar o mau humor em alguém, é melhor que o faça em mim e não em Dennis, que só quis ser um pouco gentil.
- Isso aqui não é nenhuma feira da bondade. Você veio para trabalhar durante um certo número de horas. Depois que cumprir o horário, faça da sua vida o que bem entender!
- Sei, sei. - Se pudesse, Chris esganaria o ex-marido. - Isso quer dizer que eu vou ter um período livre, não é? - O sarcasmo na pergunta era mais do que evidente. Mas, quando viu os olhos dele falseando de fúria, se arrependeu.
- Veja bem como fala comigo, Christie Olson. Se tentar diminuir minha autoridade com os alunos, não sei do que sou capaz!
- O que vai fazer, professor Venniker? Me matar? - O instinto dizia-lhe para tomar cuidado, mas Chris insistiu em desafiá-lo com um sorriso cínico.
- Não me provoque!
- É estranho como nunca percebi antes esse seu instinto assassino...
As feições tensas de John se tornaram ainda mais enrijecidas.
- Continue me provocando, Christie, e vai viver o bastante para se arrepender - John vociferou, afastando-se em direção ao rio.
Christie permaneceu imóvel, chocada. John não era um estranho, e, no entanto, ela não o conhecia direito. Mas podia entender-lhe o aborrecimento por saber que ela o acompanharia na viagem; tinha sentido o mesmo ao ver que John seria o líder.
Só não entendia o ódio profundo que o ex-marido lhe dedicava. Por quê? Na verdade, tinha mais direito ao ódio do que John; um dia ele a havia forçado a uma escolha...
Apesar do calor na barraca, um arrepio corria pelo corpo de Christie. Sua intuição lhe dizia que existia alguma coisa errada! John não poderia ter alimentado um sentimento tão profundo sem nenhum motivo. Algo acontecera sem que ficasse sabendo. Mas... o que seria? Precisava descobrir, e John era a última pessoa a quem poderia fazer tal pergunta.
Sammy Peterson? Sim, falaria com Sammy tão logo voltasse a Johannesburgo...
Christie teve muita dificuldade para se concentrar de novo, mas, finalmente, conseguiu ler as folhas datilografadas, checando os erros.
Anoitecia, e ela esperava com ansiedade o momento em que poderia tomar um banho refrescante no rio.
Os alunos voltavam felizes para o acampamento, quando ela avistou John. Tinha o cabelo molhado caindo pela testa, e o sorriso familiar iluminava-lhe as feições sérias. Chris sentiu um aperto no coração, como que anunciando a chegada de um sentimento que não estava preparada para receber.
No entanto, essa emoção durou pouco. No momento em que os olhares de ambos se encontraram, o sorriso no rosto de John desapareceu para dar lugar a uma máscara de frieza. Ela se voltou depressa para colocar as folhas no arquivo sobre a mesa. Ouvia os passos dele cada vez mais próximos e começou a tremer. Sentia os nervos à flor da pele. Se John a agredisse, seria capaz de perder o controle. De repente, não suportando mais, se precipitou para o interior de sua própria barraca, tensa.
John era a única pessoa sobre a face da Terra que conseguia fazê-la sofrer. Reconhecendo isso, viu-se frente a frente com a verdade nua e crua: nunca deixara de amá-lo. Para se sentir segura, quisera acreditar, a todo custo, que o odiava. Conseguira expulsá-lo da mente, mas o coração se recusara a esquecê-lo.
Christie suspirou profundamente e se sentou sobre o saco de dormir enrolado num canto. Olhou para os lados, mas tudo o que viu foram as feições ásperas de John que a perseguiam até nos pensamentos. A explosão veio de uma vez. Desesperada, desabou num choro convulsivo. Foram necessários vários minutos para que se recobrasse e deixasse a barraca, levando um sabonete e uma toalha para tomar banho no rio. Entretanto, mais uma vez a voz rude de John a surpreendeu:
- Quer fazer o favor de me dizer para onde está indo?
Chris se virou com calma, adotando a expressão indiferente que já se acostumara a usar.
- Parece óbvio, não?
- Não, não me parece óbvio. Você se esqueceu de consultar o quadro de tarefas. É a sua vez de ajudar a preparar a comida.
Cansada e com o orgulho ferido, Christie recorreu à ironia como única saída.
- Certamente eu tenho tempo para tomar um banho rápido antes de cumprir meus deveres. Será que um pequeno atraso vai deixá-lo muito aborrecido?
- Eu deixei bem claro, quando chegamos aqui, que o quadro de tarefas tinha que ser rigorosamente cumprido.
- Você deixou claro que teríamos certas tarefas em alguns dias, e eu não me oponho a isso. O que me incomoda é não gozar de alguns privilégios que todos os outros possuem. Não sou uma escrava que trabalha toda vez que você estala o chicote, sabia?
- Você se esquece de uma coisa: sou pago para estalar o chicote, e você, para trabalhar - ele respondeu implacável, virando-se e caminhando em direção à sua própria tenda.
Christie rangia os dentes de tanto ódio. Ia voltando para guardar a toalha e o sabonete, quando encontrou Sandra, com um sentimento de culpa no rosto.
- Sinto muito. Christie, eu não pretendia ouvir a conversa com o professor - desculpou-se, vendo a companheira atirar com raiva a toalha sobre a mochila. - Vim conversar um pouco com você e não pude deixar de ouvir.
- Não faz mal - Chris assegurou com uma calma que contrariava seu íntimo.
- Não consigo entender por que o professor está sendo tão injusto com você, mas, mesmo assim, posso tomar seu lugar na cozinha esta noite, se quiser tomar um banho - Sandra se ofereceu gentilmente. Christie, no entanto, recusou com um gesto de cabeça.
- Posso muito bem deixar o banho para amanhã cedo.
Um ar de incerteza passou pelos olhos de Sandra enquanto estudava a reação de Christie, mas, em seguida, deu de ombros e foi se juntar ao resto do grupo. Chris lavou o rosto e as mãos numa bacia antes de ir preparar a refeição daquela noite.
Mike, um rapaz loiro e alto, seria o parceiro dela. Ele cortou a lenha e acendeu o fogo, mostrando-se um assistente de grande valor. Assumiu o controle da situação todas as vezes que a viu atrapalhada. Para Chris, cozinhar carne e verduras no apartamento em Johannesburgo parecia muito mais fácil.
John não saiu da tenda até ser chamado para o jantar.
Ele só havia mudado a camiseta. Chris sentiu o coração bater mais forte enquanto as lembranças voltavam à tona. John sempre conseguira lhe provocar uma atração irresistível, e agora, cinco anos depois, a simples presença dele ainda tinha o poder de afetá-la. Sentiu as pernas fraquejarem apenas com o olhar que o ex-marido lhe lançou do outro lado da mesa. Rezava para que ele não percebesse o tremor das mãos quando lhe colocou comida no prato esmaltado que segurava diante dela. Entretanto, o sorriso irônico nos lábios de John mostrava que seus esforços eram inúteis. Ele tinha plena consciência de que a incomodava muito, e ela estava furiosa consigo mesma por não conseguir esconder o desconforto.
Naquela mesma noite se iniciou um ritual que prosseguiria por toda a estada no acampamento. Os utensílios de cozinha foram lavados e guardados na tenda de suprimentos. Depois disso, todos estavam livres para se reunir em torno da fogueira e discutir os eventos do dia.
Um ruivo alto e sardento começou a tocar violão, dedilhando com suavidade uma melodia familiar a Christie. A música não seria tão incômoda, se ele não tivesse errado tanto, mas parecia que só os ouvidos sensíveis de Christie perceberam o fato.
- Vamos lá, Alan, toque alguma coisa para todos nós cantarmos - Dennis sugeriu, e Alan levou adiante um coro animado numa velha canção: Mona Lisa.
Foi com pesar que Christie seguiu a letra da música. John uma vez lhe confessara que aquele sorriso misterioso no rosto dela, na primeira vez que se viram, o fizera apelidá-la de Mona Lisa. Será que ele ainda se lembrava? Arriscou um olhar na direção dele, mas John tinha o rosto voltado para outro lado, como se fingisse não reconhecer aqueles versos entoados por todos.
"Monstro", ela praguejou entre dentes. Não era justo que se lembrasse tanto dos pequenos detalhes que um dia uniram os dois, enquanto ele parecia indiferente a tudo.
O coro conseguia mais animação e entrosamento a cada música, mas Christie permanecia em silêncio, cabisbaixa. No entanto, quando Alan tocou uma de suas músicas prediletas, Chris encontrou os olhos escuros de John fitando-a zombeteiros. No final da melodia, por um momento, ela temeu que o ex-marido fosse revelar a todos seu passado como uma artista famosa e respeitada.
Mas isso não aconteceu. Uma expressão de estranheza sombreou o rosto de John antes de ele se virar e desaparecer na escuridão. "Será que havia percebido a súplica silenciosa com que o olhara?", pensou Chris. Qualquer que fosse a resposta, a sensação de alívio foi grande quando ele deixou o animado grupo em volta do fogo.
Depois de algum tempo, ela desejou boa-noite a todos e procurou a privacidade de sua tenda. Lavou o rosto e se enfiou no saco de dormir. O som das vozes cantando, algumas desafinadas, não a incomodava, mas também não conseguia adormecer. Pensava em John, nos sentimentos por ele, e sobre o que teria lhe alimentado um ódio tão terrível.
Reconstruiu exaustivamente as semanas finais em que estiveram juntos, antes de ele ir para a Itália. Haviam discutido sobre os compromissos profissionais dela, que acabariam por separá-los algum tempo depois. No fim, John a forçara a escolher entre a carreira e o casamento. Chris se vira obrigada a optar pela carreira, e John havia feito as malas.
- Eu não piso mais aqui, portanto, é melhor você pedir o divórcio - ele dissera ao deixar o apartamento.
Depois disso, nada mais havia acontecido. Pelo menos, nada que ela conseguisse lembrar naquele momento. Aguardara por três meses, torcendo para que aquelas palavras tivessem sido pronunciadas da boca para fora. Quatro meses se passaram... nada! Foi aí que Sammy Peterson a convenceu de que seria inútil continuar esperando por uma ilusão. Christie pediu o divórcio, John não contestou. Depois de algumas semanas, viu-se livre de um casamento que acreditava eterno. Recuperara o sobrenome de solteira, Olson, e, durante os meses dolorosos, apoiara-se em Sammy, enquanto tentava esquecer a todo custo que um dia tinha conhecido um homem como John Venniker.
Qual a razão para cultivar tanto ódio, um ódio que parecia ferver como um vulcão dentro dele? John quisera o divórcio e fora exatamente isso que ela lhe dera. Por quê, então, tanto desprezo?
Não, ele não a odiava, Chris pensou. Dissera que o que sentia por ela era indiferença total. Neste caso, por que a presença dela provocava-lhe tanta cólera?
Inútil tentar entender o comportamento de John. Os pensamentos se atropelavam, deixando-a exausta.
Uma hora depois, o acampamento estava silencioso, mas a insônia persistia. Christie passou quase a noite inteira se debatendo no saco de dormir.
Levantou-se antes do dia amanhecer e tomou a trilha que conduzia ao rio. Fazia muito calor e Chris tirou a roupa antes de cair na correnteza fria e límpida. Nadou por um instante, deliciando-se com a sensação refrescante da água vindo de encontro ao seu corpo nu.
Depois de uma noite em claro, aquele banho a fazia se sentir nova em folha. Quando o sol começou a refletir os primeiros raios dourados na superfície da água, Chris apanhou o sabonete deixado sobre a pedra, ensaboou todo o corpo e lavou os cabelos. Mergulhou várias vezes, enxugou-se e começou a vestir as roupas. Nunca se sentira tão disposta!
O corpo esbelto e macio estava queimado, os seios eram pequenos e firmes, e as pernas, longas e bem desenhadas. Porém, ela hão se preocupava com a aparência física enquanto vestia o short e a blusa listrada. Pensava em John.
Sempre se considerara imune a tudo e a todos, mas vê-lo novamente tinha mostrado que as coisas não eram bem assim... Amá-lo pela primeira vez fora um prazer, mas agora seria uma agonia. Não significava mais nada para ele. Em todos os gestos. John mostrava-lhe como era idiota por tentar alimentar um amor que não existia mais. O destino fora cruel ao trazê-lo de volta depois de tanto tempo, e só Deus sabia quanto sofrimento estava por vir.
De repente, pressentindo que não se encontrava mais sozinha, voltou-se bruscamente. Gelou no mesmo instante.
O alvo de suas preocupações estava a poucos passos dali, encostado numa árvore e de braços cruzados. O short cáqui realçava-lhe os quadris esbeltos, acentuando a forma das coxas e pernas. Os olhos claros apreciavam-na com uma insolência deliberada. Quando Chris percebeu que os seios continuavam à mostra, bem aos olhos de John, enrubesceu. Seu rosto ardia, e ela depressa levantou as duas alças da blusa para se proteger.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso sensual, deixando-a ainda mais irritada. Naquele instante, Chris o odiava. Ele não tinha o direito de invadir-lhe a privacidade, colocando-a em desvantagem.
CAPÍTULO III

Christie não se conformava com a impertinência de John. Como ele pudera permanecer ali, observando-lhe?
- Há quanto tempo está aí? - perguntou, de costas, para abotoar a blusa com os dedos trêmulos.
- O suficiente - veio a resposta humilhante, enquanto ela calçava as sandálias e ajeitava os cabelos.
Christie esperou um momento até se acalmar e poder encarar John.
- Eu pensei que esta parte do lago fosse proibida aos homens.
- No que diz respeito a você e eu, essa regra não existe, Christie. - Ele sorriu, irônico, e examinou-a dos pés à cabeça, como se ainda estivesse nua.
- É aí que você se engana, professor! Eu tenho tanto direito à privacidade quanto as outras garotas.
- Acho sua falsidade difícil de engolir, e ao mesmo tempo engraçada.
- Não vejo graça nenhuma - ela respondeu com uma calma forçada, enquanto apanhava suas coisas para voltar ao acampamento.
- Ora, vamos lá, Christie. - Ele deu uma risada sarcástica. - Você não espera que eu acredite que sou o único homem que já a viu nua, não é?
Christie olhava para ele sem saber o que dizer. Não podia ignorar o insulto que havia naquele comentário, tentou falar, se defender de alguma maneira, mas o choque parecia ter selado-lhe os lábios.
- Gostaria de saber quantos homens tiveram o prazer de levá-la para cama e saborear seu corpo delicioso. - John persistiu com um sorriso malicioso, aproximando-se cada vez mais. - Se bem me lembro, Sammy Peterson não a deixava em paz por um único segundo. Não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que ele era um de seus amantes.
Christie empalideceu com a agressão. O relacionamento entre ela e Sammy Peterson sempre fora marcado pela amizade e respeito. Ele era como um pai, tratando-a com muito carinho, apoiando-a nos momentos difíceis. Entretanto, John se referia a Sammy de modo sujo e vulgar.
- Você é repugnante! - explodiu finalmente, furiosa.
- É mesmo? - As feições de John se tornaram ainda mais rígidas. - Pois então, deixe-me mostrar o quanto posso ser repugnante.
Christie foi agarrada pelas mãos habilidosas de John e forçada a ir de encontro ao seu corpo vigoroso e másculo. O choque do contato inesperado enfraqueceu-lhe as pernas. Os dedos ágeis seguraram-lhe a nuca, até os rostos se tocarem. Os lábios de John se cravaram nos lábios dela com tal força, que Chris gemeu em protesto e agonia. O sabonete e a toalha caíram no chão enquanto ela se debatia desesperadamente.
As mãos do ex-marido passeavam com calma pelas suas costas, aumentando-lhe ainda mais a angústia e a vontade de livrar-se daqueles braços poderosos.
John soltou-a bruscamente. Chris se afastou, pálida e trêmula. Limpou os lábios úmidos e doloridos com a mão, encarando-o com ojeriza. Entretanto, deparou-se com o mesmo sorriso cruel.
- Não mereço ser insultada desta forma - desabafou para se defender, e ele tornou a rir, cínico.
Foi a gota d'água. Chris apanhou a toalha e o sabonete, retirando-se dali o mais rápido possível. Estava profundamente magoada, e daria tudo para apagar da memória a sensação de ter sido tocada por John. Aquilo tinha sido humilhante; ela se sentira como uma mercadoria barata à disposição de todos.

- Alguma coisa errada? - perguntou Valerie, bem na entrada da tenda, o sol da manhã clareando-lhe os cabelos castanhos. - Você parecia aborrecida ao chegar no acampamento há alguns minutos, e ainda está bastante pálida.
- Só uma dor de cabeça, não é nada grave - Chris respondeu, forçando um sorriso.
- Quer tomar alguma coisa? Estou certa de que o professor tem alguns analgésicos no estojo de primeiros socorros.
"Oh, essa não", Christie disse a si mesma. Só faltava John descobrir que fora tão desagradável a ponto de ela precisar de medicamentos!
- Tenho aspirina na mochila. De qualquer forma, obrigada.
- Não precisa mesmo de nada? - Valerie insistiu, sem se convencer de que era apenas uma dor de cabeça.
- De nada mesmo, obrigada - Chris procurou forças para sorrir, mas não as encontrou.
A garota hesitou por um momento, porém acabou decidindo tomar alguma providência.
- Vou ver se acho alguma coisa para você.
Christie não deixou a barraca até ter certeza de que se acalmara por completo. Tomou duas aspirinas por precaução, e penteou os cabelos ainda úmidos, notando que o acampamento começava a ganhar vida, e o aroma de ovos com bacon, sendo preparados no fogão à gás, chegou até ali. Com um suspiro, mirou-se no espelho do estojinho de maquilagem, vendo que a cor do rosto já tinha voltado ao normal. No entanto, ainda se sentia torturada.
John conversava com alguém a uma pequena distância dali, e a idéia de encará-lo novamente a assustou. Por que o ex-marido a insultara tão injustamente? Qual a razão daquela ânsia em magoá-la?
John estaria se vingando por ela ter colocado a carreira acima do casamento? Talvez ele não fosse tão indiferente como dissera. Essas idéias eram absurdas, e não havia tempo para reconsiderá-las. O cozinheiro escalado tocava a sineta indicando que o café estava pronto.
John sequer olhou para ela, e durante toda a manhã, adotou um comportamento frio e impessoal. Os alunos estavam cavando e examinando cada partícula que removiam do solo. No entanto, algumas nuvens densas anunciaram uma tempestade, e o grupo se viu obrigado a guardar o material e voltar ao acampamento.
Durante o almoço o céu escurecia cada vez mais, e o soar dos trovões estava mais perto a cada segundo. Os utensílios de cozinha já tinham sido guardados quando os primeiros pingos de chuva caíram, pesados. Relâmpagos cortaram o céu, seguidos por uma série de estrondos que faziam a terra tremer. A chuva caiu com tanta força que provocou uma correria geral em direção às barracas. Uma hora depois, Christie se encontrava enfiada no saco de dormir, a cabeça debaixo do travesseiro, por causa do som ensurdecedor dos trovões.
A tempestade passou e, inesperadamente, o sol voltou a brilhar no horizonte. A terra estava fresca e macia quando Christie deixou a tenda para ir até a de John. Torcia para não ter de passar o resto do dia em frente à máquina de escrever. Porém, como John mesmo havia dito, ela não se encontrava ali numa viagem de férias.
Quando entrou, ele repousava tranqüilamente numa cadeira, envolvido numa leitura. Olhou para ela de forma indiferente, e, então, dispensou-a com um gesto. Christie permaneceu parada no lugar, sem acreditar que ele estava lhe dando a tarde livre.
John encarou-a de novo, impaciente.
- Se não sair daqui em dois segundos, mudo de idéia e arranjo alguma coisa para você fazer.
- Obrigada, já estou saindo. - Chris deu-lhe as costas e se afastou tão depressa que quase deu um encontrão em Dennis.
- Ei, calma! Do que você está fugindo? - ele brincou, detendo-a por um instante.
- Do trabalho. Não preciso fazer nada esta tarde.
- Que ótimo. - Ele sorriu, satisfeito. - Eu pensava em dar uma volta para explorar as redondezas...
- Se isso é um convite, aceito - ela respondeu animada, pensando que seria ótimo ficar fora do alcance de John.
De mãos dadas, os dois caminharam em direção ao local da escavação.
Christie examinou o rosto de Dennis várias vezes. O rapaz seguia cabisbaixo, enquanto ela erguia o rosto para o céu azul e límpido, respirando deliciada o ar cheirando a mato.
- Você procura algo em particular, Dennis, ou apenas quer conhecer melhor o local?
- Sempre fui muito curioso; adoro observar tudo em detalhes. Mas prefiro fazer isso sozinho do que acompanhado por doze ou mais colegas.
- Então você espera encontrar algum tesouro?
- Uma tempestade tão forte como a que tivemos há pouco quase sempre arrasta uma camada de terra. Quem sabe o que eu posso encontrar?
- O proprietário do terreno acha que vocês estão perdendo tempo. - Ela repetiu a informação de John.
- Talvez... Mas acho que nunca fizeram uma escavação para saber, não é?
- Você é sempre tão otimista?
- Não diria bem otimista...
- Entusiasta, então?
- Quase isto. - Dennis riu, animado. Depois adotou uma expressão solene para comentar: - O professor é um dos maiores arqueólogos, e grande conferencista. Eu me daria por satisfeito, se chegasse aos pés dele.
Christie não cabia em si de tanta surpresa. Era difícil acreditar no que acabara de ouvir.
- Você o admira muito, não é?
- Nós todos o admiramos. Ele possui um conhecimento de arqueologia que deixa muitos de seus colegas para trás, e, além disso, nunca se gaba das próprias façanhas. O que sabemos sobre ele é o que temos lido nas revistas especializadas... O professor tem escrito alguns artigos fantásticos que nos ajudam muito em nossos estudos.
Christie ficou abismada ao descobrir que sabia tão pouco a respeito do homem com que fora casada. Sabia que ele era um arqueólogo de alguma reputação, mas não imaginara que fosse tão importante.
Entristeceu-se por pensar que o relacionamento entre ela e John poderia ter sido diferente. Não era o momento, entretanto, de lamentar o passado.
Mais à frente, Dennis inspecionava uma depressão causada pela erosão do solo.
- Ei, Christie, venha dar uma olhada nisto - A voz excitada trouxe-a para o presente - Acho que estivemos escavando no lugar errado.
A grama molhada e pontiaguda espetava as pernas dela quando se dirigiu à extremidade da depressão. Uma parte do relevo tinha sido carregada durante a tempestade, e alguns objetos se destacaram para revelar o que parecia ser um tesouro.
- Aquilo vai ter que ser removido com o máximo cuidado. Agora, dê uma olhada aqui. - Dennis ajoelhou, usando os dedos para remover a lama ao redor de um objeto estranho que sobressaía do solo vermelho.
- O que é isso?
- Se não me engano, é um antigo elmo de ferro. Desça mais um pouco. Me dê a mão que eu te ajudo.
Não foi preciso chamar duas vezes. O entusiasmo de Dennis acabou por contagiar Christie e ela foi fazer companhia ao rapaz em meio à lama.
Juntos e com bastante cuidado, cavaram em torno do objeto, até conseguir tirá-lo do solo. Chris sentou-se, observando o companheiro. O rosto dele se mostrava radiante de orgulho e felicidade. Seria assim que John se comportava toda vez que achava algo interessante? Aquelas feições ásperas também se suavizavam com tão intensa felicidade?
Passaram algum tempo examinando o que poderia ter sido um capacete de guerra.
- Quantos anos daria a isso, Dennis?
- Mil... talvez menos. O professor deve saber ao certo se é uma relíquia da Idade do Ferro ou não.
Com cuidado, o jovem deixou o elmo de lado, e continuou cavando na área da descoberta. Christie se pôs a trabalhar um pouco adiante. Ela não esperava encontrar nada, mas quando os dedos finalmente tocaram em algo sólido e macio, não conseguiu esconder a excitação.
- Encontrei mais alguma coisa - sussurrou, o coração batendo mais forte enquanto ia tirando a terra devagar. - Parece um vaso de barro.
- Tome cuidado ao segurá-lo. Por mais fácil que pareça, não force para retirá-lo do solo, ou poderemos destruir algo de grande valor arqueológico.
- Não acha melhor pedir ao professor Venniker para se juntar a nós? - ela perguntou, deixando a tarefa da retirada do objeto para Dennis.
- Sim, é uma boa idéia. Vá chamar o resto do grupo.
Ela subiu por uma das paredes da depressão, as sandálias escorregando e os dedos afundando na lama para se firmar. Deteve-se por um instante na borda, e sorriu para Dennis.
- Este foi seu dia de sorte.
- Só porque você estava comigo.
- Obrigada - Chris sorriu de novo, lisonjeada. - Digamos que o meu charme teve alguma coisa a ver com isto...
No entanto, apesar da brincadeira, ela voltou apreensiva para o acampamento. Não queria cultivar um relacionamento mais sério com Dennis. Ele se mostrara gentil e prestativo desde o momento em que se conheceram, e ela tivera a sorte de compartilhar daquele achado arqueológico. Porém, tudo que podia oferecer ao rapaz era uma simples amizade, nada mais. Não desejava magoá-lo com uma conversa franca, mas, se fosse preciso, não hesitaria.
John ainda permanecia no mesmo lugar onde o deixara. O livro estava aberto sobre as pernas, mas ele tinha a cabeça pendida para trás e os olhos estavam fechados.
- John? - ela chamou baixinho.
As pálpebras se levantaram no mesmo instante. Um olhar crítico examinou-a da cabeça aos pés e foi aí que Christie percebeu o estado em que se encontrava. As pernas e mãos estavam sujas de barro, e as roupas imundas. Ela ficou vermelha e teve vontade de fugir, mas se controlou a tempo.
- Dennis achou algo numa depressão logo abaixo do local de escavações. Pediu para que você e o resto do grupo fossem para lá.
Imediatamente a ironia desapareceu dos olhos de John. Ele fechou o livro, deixou-o de lado e pôs-se de pé.
- Vamos.
Os alunos foram reunidos e, tendo Christie como guia, dirigiram-se ao local em ritmo acelerado. Alguns comentavam sobre a aparência lastimável da guia, outros duvidavam da importância da descoberta. John se manteve em silêncio até chegarem ao lugar onde Dennis conseguira, finalmente, retirar o vaso do solo.
Um clima de grande expectativa contagiou os alunos quando amontoaram à beira do barranco os objetos encontrados, e John tomou conta da situação, valendo-se da experiência. Dennis olhava para ele, orgulhoso, esperando por um sinal, uma ordem, e quando esta veio, o elmo e o vaso foram entregues ao professor. John examinou-os e deixou-os circulando entre os alunos. Deu uma atenção bem maior ao vaso que, infelizmente, tinha perdido um pedaço da borda.
- É da Idade do Ferro, não é, professor? - Dennis perguntou em meio a vozes excitadas.
- Parece que sim, mas não podemos ter certeza disso até fazermos um estudo mais detalhado.
John mais uma vez examinou o vaso, retirando crostas de terra de algumas partes gravadas. Em seguida instruiu:
- Marque o local exato onde você encontrou estes objetos, e deixe aquela parede intacta. Vamos cobrir esta parte da depressão com uma lona, e trazer o equipamento de manhã para começarmos as escavações o mais rápido possível.
Christie ficou um pouco afastada do grupo, com a atenção voltada para John. Os dedos longos acariciavam gentilmente o vaso enquanto ele o examinava. Um sorriso tímido ameaçava iluminar-lhe o rosto, dando a impressão de que tentava, inutilmente, esconder o próprio entusiasmo. Ao cumprimentar Dennis, que havia se aproximado, mostrou-se animado e satisfeito.
- Bom trabalho, rapaz.
- Foi Christie quem achou o vaso, professor - o rapaz esclareceu, chegando-se a ela e abraçando-a, excitado.
- Talvez também se torne uma arqueóloga - John ironizou, depois de observar os braços do jovem, demorando-se na cintura dela. Porém, no momento seguinte, se desinteressou de Chris, dirigindo a palavra apenas a Dennis. - Vamos voltar para o acampamento e então você poderá trazer alguns colegas para ajudá-lo com a lona.
- Sim, senhor. - Dennis sorriu, deixando-a livre.
A exaltação contagiava a todos no acampamento. O que começara como simples excursão para adquirir experiência e prática iria se tornar um cuidadoso trabalho em busca de relíquias que, na certa, datavam de mil anos. A descoberta de Dennis mostrou que o proprietário das terras estava redondamente enganado quando considerara perda de tempo aquela pesquisa arqueológica.
Christie se sentia tão entrosada com o resto do grupo, que tudo que tinha acontecido foi temporariamente esquecido. Ela cantarolava quando se dirigia ao lago. Tomou um banho e aproveitou para lavar as roupas sujas de barro. Depois vestiu uma bermuda e camiseta.
Quando retornou, viu John trabalhando na tenda. Com a ajuda de uma escova macia, removia com cuidado a lama que ainda restava no pote de barro. Havia uma concentração intensa nas feições dele.
Movida pela curiosidade, Chris entrou na barraca, e, quando olhou para o vaso, descobriu por que ele se mostrava tão entretido que nem se dera conta de que não estava mais sozinho. A gravura que ia aos poucos aparecendo não era comum; representava um elefante majestoso, imponente, e seus servos ajoelhados e de cabeças baixas.
- É um desenho estranho - ela falou e John se voltou ao ouvir-lhe a voz, com um olhar frio e impessoal.
- Começo a acreditar que a lenda de Indlovukazi é bem mais real do que muita gente imagina.
- Que lenda é essa?
- Você realmente se interessou, ou só quer ser educada?
- Claro que estou interessada - ela retrucou, ignorando o tom de sarcasmo na voz de John. Puxou uma cadeira e se acomodou, decidida. - O nome Indlovukazi não tem alguma coisa a ver com elefantes?
- Traduzindo ao pé da letra significa "o grande elefante fêmea". O incrível é que a líder da tribo era considerada por seu povo como sendo tão forte e corajosa como um elefante. Indlovukazi na verdade significa "rainha".
- Muito interessante...
- A lenda a descreve como uma mulher baixinha e delicada... Engraçado, não é? O nome não combinava com ela. - Ele sorriu ao colocar o vaso sobre a mesa. Em seguida acendeu um cigarro.
- É o desenho que o faz pensar que essa história é mais do que uma lenda? - Chris perguntou, cada vez mais interessada.
- Isso, e mais algumas informações que obtive nestes anos. Conheci um velho negro, Aaron, cujos ancestrais viveram aqui por séculos. Ele acha que o quartel-general de Indlovukazi ficava naquela caverna acima do local de escavações. Isto tudo é pura suposição, mas desconfio que existe algum fundo de verdade... Você possui algo que pode ter pertencido a ela.
Christie se lembrou do pequeno medalhão de marfim que John lhe dera logo após o casamento. Os sulcos presentes em toda sua extremidade lembravam galhos entrelaçados, e, no centro, via-se claramente a imagem de um homem.
- Você se refere àquele artefato de marfim que me deu? - Um pouco sem jeito, recordou como havia demonstrado pouco interesse pelo presente, na ocasião.
- Ele mesmo. O avô de Aaron encontrou-o na caverna, e passou-o ao neto, juntamente com a lenda. Os nativos daquela época acreditavam que a rainha, que era negra, fosse uma deusa com poderes sobrenaturais. Para eles, sempre foi inadmissível que tal mulher tivesse um marido ou que experimentasse as emoções de um simples mortal. Quando teve filhos, todos pensaram que ela engravidara através dos próprios poderes.
- É óbvio que não foi assim...
- Mais que óbvio, não? - John sorriu, irônico. - Indlovukazi era uma mulher negra como todas as outras, e, não querendo contrariar os costumes do povo, manteve um caso às escondidas. A lenda diz que ela e o amante se amavam tanto que Indlovukazi pediu a um escultor que fizesse dois medalhões de marfim, idênticos, a não ser pela imagem no centro. Um trazia a imagem de um homem, o outro de uma mulher. Ela guardou o primeiro para si, como um símbolo do amante, e deu-lhe o outro, como um símbolo dela mesma. Acreditavam que, desse modo, estariam para sempre juntos espiritualmente. A lenda diz também que ela dotou os medalhões de alguma magia, de forma que os dois seriam amantes enquanto possuíssem aqueles amuletos.
- Nunca se separaram? - Christie indagou, ofegante, como se tomasse parte daquela história de amor.
- Infelizmente sim - John respondeu, tragando o cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. - Descobriram que a rainha enganava seu povo, e o amante foi morto pelos fanáticos enfurecidos.
- E ela?
- Despojada do poder que exercia como rainha da tribo, e sem o amante, cometeu suicídio se colocando na frente de um elefante desenfreado.
- Oh, que coisa horrível. - A imagem de Indlovukazi desiludida, caminhando para a morte, impressionou Christie.
- Talvez não seja tão terrível se você acreditar que, na morte, será livre para se juntar a seu amante.
- É, talvez não. - Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, depois perguntou; - Por que Aaron deu o medalhão de marfim a você?
- Ele não tem filhos, e sabia que eu estava muito interessado no medalhão e na lenda que o cercava. Aaron me fez prometer que o entregaria à mulher com quem me casei.
A mulher com quem me casei. Foi uma escolha infeliz de palavras. Deveria ter sido a mulher que eu amava. Christie percebeu um detalhe que ignorara há cinco anos. Em nenhum momento durante a vida em comum, John lhe dissera que a amava... Começou a pensar se o amor estivera alguma vez entre as emoções que ele sentia por ela.
- Você não me contou muita coisa sobre o medalhão quando me presenteou. Apenas disse que formava um par, e que um dia esperava encontrar o outro que faltava - Chris acusou, escondendo a dor das recordações.
- Se não me falha a memória, há cinco anos você não parecia tão interessada.
- Não é verdade, eu... - O sentimento de culpa a deixou constrangida. - É... reconheço que, naquela época, estava muito ocupada.
- Ocupada com Sammy Peterson e várias sessões de gravação para um disco novo, não é?
- Sinto muito, John.
- Não quero que se desculpe, Christie, apenas queria que se lembrasse dos fatos.
Chris percebeu que naquele momento qualquer tentativa de se defender seria inútil. A discussão foi interrompida pelo soar da sineta, chamando-os para o jantar.
Desviou os olhos de John e apanhou as roupas molhadas do chão antes de se levantar. Saiu da tenda com a cabeça erguida, sentindo-lhe o olhar acusador a acompanhá-la. Ao entrar no lugar em que se encontrava alojada, teve vontade de romper em lágrimas. John estava certo. Ela sempre mostrara pouco interesse pelo trabalho dele, e o envolvimento com a carreira não era desculpa para tanta negligência. O medalhão de marfim jazia no fundo da caixa de jóias, esquecido por mais de cinco anos.
Somente agora descobria-lhe o significado: era um símbolo de amor, mas que, sozinho, não representava nada. Exatamente como ela não representava nada para John.
CAPITULO IV
Durante a segunda semana, e sob a orientação de John, os alunos conseguiram resgatar vários achados de muito interesse. Um deles, em particular, provocou uma onda de excitação entre o grupo. Era um colar de pepitas de ouro. Jazia intacto no solo, como devia estar mil anos antes, mas o fio de couro que unia as pedras com o tempo se desintegrara. Os alunos derreteram cera e a derramaram num recipiente raso para um molde provisório. Depois de retiradas da terra, as pepitas foram colocadas na cera, na seqüência exata em que haviam sido encontradas.
Aquilo poderia ter pertencido a Indlovukazi? O coração de Christie bateu mais forte com essa possibilidade, e o interesse crescente pela arqueologia era como uma chama queimando intensamente dentro dela. Sem a permissão ou aprovação de John, de manhã entregava-se de corpo e alma às escavações. À tarde, batia à máquina as notas que eram ditadas por ele, nas pausas da discussão do grupo sobre as relíquias encontradas.
No sábado pela manhã, John pegou o jipe e foi até Dialsdrif com um dos rapazes, para comprar alimentos frescos para a semana seguinte. No resto daquele dia e no domingo todos aproveitaram para lavar as roupas no rio e para descansar.
Na manhã de domingo, um velho negro chegou ao acampamento e conversou com John por algum tempo. Somente depois de ele partir é que Christie descobriu que se tratava de Aaron.
O ancião estivera lá para avisar ao grupo que tinha visto uma cobra nas proximidades, e que esta havia desaparecido antes que conseguisse matá-la.
A idéia de uma cobra se arrastando pelos arredores deixou-os apavorados. Procuraram em cada barraca, mas não acharam nada. Acreditavam que ela ficaria afastada do acampamento, uma vez que tais répteis não possuíam o hábito de se aproximar de pessoas. Já era um consolo, e o assunto foi esquecido.
Christie, depois de almoçar, resolveu deitar um pouco. Mal fechou os olhos e caiu num sono profundo e sem interrupções.
Dormiu como uma pedra. Anoitecia, e já soprava uma brisa mais fria quando ela despertou com a sensação de alguma coisa roçando-lhe a pele. Abriu os olhos, relutante em encarar a nova realidade que a envolvia, e de repente reconheceu John, de pé na entrada da tenda. De início, pensou que sonhasse. Entretanto, ele estava incrivelmente pálido, e Chris percebeu que havia alguma coisa errada. O que ele fazia ali, parado? Preparava-se para levantar quando algo lhe chamou a atenção, e baixou os olhos. O que viu foi suficiente para deixá-la paralisada de terror.
- Não se mexa! - A voz de John ordenou com suavidade, mas apreensiva. - Pelo amor de Deus, não mova um único músculo!
O pânico trouxe um torpor que a deixou imóvel, enquanto os olhos aterrorizados fixavam a serpente que se arrastava sobre as suas pernas, em direção à coxa direita. Tinha uma cor cinza, um comprimento enorme, o corpo frio e escamoso.
- John, faça alguma coisa! - sussurrou, quase desmaiando de pavor.
- Se eu tentar distrair a atenção dela, pode ficar furiosa e descontar em você - ele explicou com calma, descartando a possibilidade de fuga. - É uma mamba negra, perigosíssima.
Esta última informação não foi nada animadora. O coração de Chris batia feito louco, seu rosto estava pálido, e gotas de suor escorriam-lhe pela testa. No entanto, permaneceu firme, incapaz de desviar os olhos daquela língua que entrava e saía da boca da mamba, como se o réptil estivesse se divertindo.
A cobra começou a subir pelas coxas de Christie, que não podia mais suportar aquele toque frio e rastejante. Queria estar usando calça comprida em vez de shorts. Apesar do arrepio, conseguiu não tremer. Fora avisada para não se mexer, mas se a cobra se aproximasse do rosto, tinha certeza de que não ia agüentar o pavor e, na certa, gritaria.
John conversava com ela, murmurando palavras de coragem e estímulo. Chris não podia entender o que ele dizia, mas o som da voz dele dava-lhe forças para continuar imóvel... Cada segundo de agonia parecia uma eternidade.
Quando a mamba levantou a cabeça perto do rosto dela, Chris quase perdeu os sentidos. Não conseguia mais controlar a onda de tremor por todo o corpo, e parecia que a serpente captava essas vibrações, ao balançar a cabeça para frente e para trás, de forma ameaçadora, sibilando, agitada.
- Você está indo bem... não vai demorar muito agora.
Christie usava de todas as forças para permanecer paralisada. Naquele instante, um único movimento poderia ser fatal.
A cabeça da víbora começou a baixar lentamente, e o corpo gélido se arrastou no braço que ainda repousava sobre a almofada. Ela fechou os olhos momentaneamente, sem saber por quanto tempo mais poderia resistir.
Então, como por milagre, tudo se acabou. A mamba se arrastou para o chão, e John se moveu com a velocidade de um raio, quase decepando a cabeça do réptil com um facão.
Christie foi parar no canto mais afastado da tenda. Não tinha a mínima idéia de como chegara até lá, mas percebeu que tremia inteirinha, quando John levantou a cobra pela cauda. Era quase tão comprida quanto a altura dele. Uma mistura de alívio e desconforto deixou-a anestesiada enquanto ele se livrava do réptil.
Depois, John olhou para Chris, tão pálido quanto ela. Movida por um impulso do momento, ela se atirou naqueles braços fortes em busca de abrigo. John abraçou-a em silêncio, até desaparecerem-lhe os tremores, e assim continuou quando as últimas lágrimas de desabafo escorreram pelo rosto de Christie.
Depois do pesadelo do qual fora vítima, as mãos dele acariciando-lhe os cabelos sedosos traziam uma sensação de conforto e paz. Sentia-se completamente relaxada ao lado de John. Havia uma aura familiar no calor daquele corpo, no aroma da colônia masculina que ele usava. Abraçou-o com mais força e fechou os olhos ao pensar no que poderia ter lhe acontecido, se ele não estivesse lá.
- Maldita seja, Christie! - ele murmurou de repente, aproximando o rosto e cravando os lábios em sua boca.
Ela se entregou por inteiro àquele beijo ardente, delirante, enquanto o mundo girava à sua volta. A mente confusa se via dividida em duas metades: uma dizia-lhe para tomar cuidado, enquanto a outra preferia aquela paixão desenfreada ao ódio selvagem com o qual a beijara antes.
John a soltou bruscamente, deixando-lhe um vazio nos lábios. Chris soube o motivo dessa aspereza quando ouviu vozes do lado de fora.
Um segundo depois. Dennis e Alan entravam na barraca com Érica e Valerie logo atrás. Christie permaneceu imóvel, ainda tonta, enquanto quatro pares de olhos observavam ambos com expressões ansiosas, pedindo por uma explicação.
- Aquela é a cobra de que Aaron estava falando esta manhã? - Dennis quebrou o silêncio, apontando para fora.
- Sinceramente, eu espero que sim - John respondeu, - Em todo o caso, é melhor continuarmos prevenidos até termos certeza de que esta mamba não trouxe companheiras.
- Onde você achou este... este monstro? - Érica indagou.
Alan levantou o réptil para mostrá-lo a vários outros alunos que se amontoaram na entrada da tenda Christie estremeceu ao avistar o corpo cinza e comprido que rastejara sobre ela. A sua reação não escapou aos olhos de John.
- Eu a encontrei na tenda da srta. Olson - ele disse aos outros. - Alan, livre-se dela, por favor. Acho que a srta. Olson já sofreu o bastante por hoje.
John permaneceu ali até se certificar de que sua instrução fora seguida, e então deixou o local, fazendo Christie se sentir abandonada.
- Tudo bem, Chris? - Dennis perguntou com apreensão, colocando-lhe o braço sobre os ombros. - Você está tão pálida...
- Eu... eu estou bem - ela mentiu. - O que mais preciso neste instante é de um bom banho.
- Nós acompanharemos você - ofereceram-se Érica e Valerie, deixando Dennis um tanto deslocado. Apanharam toalhas e se apressaram em direção ao lago, antes que escurecesse.
A idéia de ter que voltar para o local onde quase fora atacada pela cobra dava-lhe arrepios na espinha. Chris tinha certeza de que nunca mais passaria outra noite tranqüila naquela barraca. As garotas pareciam sentir que ela não desejava ficar sozinha, e fizeram-lhe companhia na tenda enquanto vestia uma calça leve e um suéter fresco. A conversa rolava solta, com muitas risadas, e Christie se sentia grata a elas por tentarem fazê-la esquecer o susto.
Naquela noite, quando todos se sentaram em volta da fogueira para acompanhar o violão de Alan, Chris se demorou mais tempo do que de costume. Estava com medo. O que aconteceria se houvesse outra cobra, e John não chegasse a tempo de ajudá-la? Estremeceu com a hipótese, e pensou em pedir a alguém que a acompanhasse, mas não poderia suportar um sorriso irônico do ex-marido.
Aos poucos, os estudantes foram se retirando, e Christie percebeu que se continuasse ali sentada até que todos se fossem, seu nervosismo se evidenciaria. Para evitar que isso acontecesse, levantou-se, disse boa-noite, e teve que forçar os passos para chegar à tenda. Estava suando frio e sentindo arrepios por todo o corpo quando levantou a cobertura e entrou. Os dentes rangiam a ponto do queixo doer, e, enquanto procurava pela caixa de fósforos, podia sentir o suor escorrer mais intensamente pelo rosto. Os dedos tremiam tanto que ela teve dificuldade até para acender a vela. Quando, finalmente, conseguiu, deu uma boa olhada em volta. Havia muitas sombras e cantos escuros onde não conseguia ver nada Por isso, tirou as roupas depressa, colocou o pijama e apressadamente entrou dentro do saco de dormir.
Apagou a vela, mas sabia que não ia conseguir adormecer. Ficou com os olhos abertos até o cessar das vozes e a certeza de que todos tinham ido dormir. Mesmo assim, o sono não vinha. Prestou atenção a qualquer som que indicasse que ela não se encontrava sozinha, na esperança de poder conversar com alguém. O corpo estava tão tenso que os músculos começaram a doer, e as pernas a formigar.
Christie não tinha idéia de quanto tempo havia decorrido enquanto tentava juntar coragem suficiente para fechar os olhos. Acendeu um fósforo para olhar o relógio. Mais de uma hora se passara, uma hora forçando os ouvidos em busca de uma alma viva, de um intruso indesejado. Estremeceu novamente ao pensar no que poderia ter acontecido caso John não aparecesse para salvá-la da serpente.
- Isso e ridículo! - disse a si mesma, nervosa.
Vestiu a calça e o suéter em cima do pijama, e se sentou para calçar as sandálias. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o chão frio sob os pés. Tinha motivos de sobra para estar tensa, e um pouco de ar fresco talvez a deixasse mais calma. Afastou a porta da tenda e arriscou um passo para fora, aspirando profundamente o ar perfumado da noite.
A lua estava cheia, cintilando num céu repleto de estrelas, e a terra refletia um brilho prateado que tornava possível visualizar até as árvores mais distantes. Alguma coisa se moveu à direita, e o coração de Chris tomou um ritmo acelerado. Virou o rosto naquela direção, e viu John, de pé, na entrada da tenda dele. Fumava um cigarro, olhando para ela.
Christie encarou-o em silêncio. Não tivera a intenção de procurar a companhia dele, mas gostaria de ir até onde John se encontrava para bater um papo. Porém, hesitava. Depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, foi ele quem tomou a iniciativa. Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a sola do sapato, antes de se aproximar.
- Não consegue dormir?
- Não, não consigo. - Chris riu, apreensiva. - Sei que é ridículo, mas fico arrepiada só de pensar em fechar os olhos e dormir ali dentro.
- É uma reação natural.
Aquela resposta, desprovida de ironia, deixou-a surpresa e sem saber o que fazer, pois não esperava nenhuma compreensão da parte de John. Aos poucos, começou a relaxar.
- Ainda não lhe agradeci pelo que fez esta tarde.
- Esqueça - ele interrompeu, segurando-lhe o braço. - Nós dois precisamos de uma bebida; venha comigo.
Conduziu-a até o alojamento dele, de um jeito tão natural que Chris foi incapaz de protestar. Puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou, nervosa, enquanto John acendia uma vela. Depois, ele pegou uma garrafa e dois copos, e serviu um pouco de bebida em cada um.
Christie o observava, notando a camisa desabotoada e para fora da calça, revelando os quadris estreitos e o peito largo. Os cabelos loiros caíam na testa, despenteados, dando-lhe uma aparência juvenil. Quando percebeu que John parecia um tanto aborrecido e tenso, sentiu-se culpada.
- Desculpe, John. Não tive a intenção de causar-lhe nenhum incômodo.
- Beba isto.
- O que é? - Chris, cautelosa, evitou o toque dos dedos dele ao segurar o copo.
- Brandy.
- Obrigada, eu não...
- Beba, vai ajudar! - ele insistiu, impaciente.
Christie aproximou o copo da boca. O cheiro já era o suficiente para fazê-la torcer o nariz. Com o primeiro gole, engasgou e tossiu, até lhe saírem lágrimas dos olhos. Tudo em volta começou a girar, enquanto as enxugava com a mão. Quando, finalmente, conseguiu respirar de novo, murmurou:
- Tem um gosto horrível!
- Beba tudo até a última gota - John ordenou, tomando um gole do próprio copo, - Vai acalmar os nervos.
- Vai acabar me deixando tonta, isso sim...
- Se deixá-la tonta, vai poder considerar como uma parte da aventura que procurava quando se candidatou a este emprego - ele ironizou.
- Você está se tornando repugnante de novo - Chris observou. Aquele calor inebriante dava-lhe uma certa ousadia.
- Não disse que queria fazer alguma coisa diferente?
- Sim... mais ou menos isso... mas não incluía um encontro assustador com uma cobra, ou ficar bêbada no meio da noite.
- É o inesperado que torna a vida mais excitante. - Os lábios dele se curvaram num sorriso cínico. - Você não sabia disso?
- Estou aprendendo agora.
- Não vai tomar o resto da bebida?
Chris começou a ficar enjoada e quase foi de encontro à mesa quando se inclinou para deixar o copo vazio.
- Mais brandy?
- Não, obrigada. Acho que meus nervos já estão em ordem. Só gostaria de dizer o mesmo sobre minha cabeça.
- Você nunca teve estômago para bebidas alcoólicas - ele lembrou, esvaziando o copo.
- É verdade. - Chris riu, ainda lúcida para reparar que a voz estava meio tom acima. - Uma taça de champanhe já é o suficiente para me deixar alegre.
- Eu sei.
Aquelas duas palavras bastaram para encher a mente de Christie de lembranças que preferia esquecer para sempre. Lembrou-se do dia do casamento, e de como estava nervosa, apesar de muito apaixonada por John. Naquela noite, no quarto do hotel, ele pedira uma garrafa de champanhe. Depois de uma taça, ela começara a rir sem motivo algum, o que John tinha achado muito divertido. Os risos cessaram, mas o álcool também a deixara desinibida para se entregar de corpo e alma à magia do amor.
Com calor e embaraçada pela recordação daqueles momentos, Christie pôs-se de pé de uma vez, cometendo um grave erro. Estava agora tão perto de John que teve os sentidos afetados pelo aroma penetrante da colônia masculina. A bebida conseguira baixar-lhe as defesas, e era melhor sair dali antes que cometesse alguma tolice.
- Eu acho que devia...
- Por que você cortou o cabelo? - ele perguntou de modo inesperado.
- Os cabelos compridos faziam parte da imagem que Sammy queria projetar de mim. Quando o contrato terminou, tratei de me livrar de tudo que lembrasse a "cantora".
A masculinidade de John ainda era tão perigosa como uma droga, e Chris sabia que, se quisesse sair, teria que escapar o mais rápido possível.
- Obrigada pelo drinque; acho que agora vou dormir.
Afastou-se, quase derrubando a cadeira de tanta pressa, mas John a deteve.
- Vou com você até sua barraca.
- Não é necessário - ela protestou, o coração aos pulos em resposta à proximidade dos corpos. - A lua está cheia, e eu posso ver muito bem no escuro. - Adiantou-se para fugir, mas, antes de conseguir dar o primeiro passo, foi detida mais uma vez pelo braço forte e caloroso.
- Você está tremendo.
Aquilo não a surpreendeu. Sentia o corpo inteiro estremecer ao pressentir a ameaça. Mas gaguejou, inocente:
- Eu não consigo imaginar por quê.
- Não consegue? - Os dedos ágeis e fortes de John levantaram-lhe o rosto. Uma chama intensa queimava nos olhos azuis dele, provocando-lhe arrepios na espinha. - Acho que nós dois sabíamos muito bem que algo desse tipo aconteceria cedo ou tarde. Não há por que lutar contra isso.
Ela gostaria de dizer que não estava entendendo, mas não era verdade. Nenhum dos dois podia afirmar que não havia mais nada entre eles, pois a atração física continuava, e tão forte como há cinco anos atrás. Para Christie, a atração era ainda maior. Ela lutara contra aquilo, negara, mas agora não conseguia mais ignorar. Ainda amava aquele homem com quem tinha sido casada.
John murmurou-lhe algo incompreensível, enlaçando-a pela cintura. Não havia mais como escapar, Chris pensou. Os braços dele envolviam-na completamente. As mãos lhe percorriam as curvas suaves em carícias apaixonadas, puxando-a de encontro ao corpo, fazendo-a estremecer de desejo.
Um calor delicioso se espalhou por todo o corpo de Chris, e se a razão ainda lhe dizia para resistir, ela não estava escutando. Deixou as emoções fluírem, e correspondeu ao beijo, as mãos subindo pelo peito de John até chegarem à nuca.
Ele recuou um pouco e, por um terrível instante, ela pensou que seria rejeitada. Entretanto, ele a levantou nos braços, carregando-a até a parte da tenda que servia de dormitório. Os lábios voltaram a se tocar num beijo caloroso quando a colocou no chão. Chris ainda estava com os braços no pescoço dele quando sentiu, sob o suéter, as mãos fortes lhe acariciarem os seios.
- John! - gemeu, a intimidade no toque familiar deixando-a indefesa. - Isto é loucura!
- Eu quero você de qualquer jeito...
- Amanhã vai se odiar... - ela avisou, lembrando-se dos momentos em que fora vítima daquela fúria que ainda não conseguia compreender.
- Provavelmente sim - ele sussurrou, a boca roçando-lhe o pescoço. - Mas neste instante não me importo nem um pouco.
- Oh, John! - Chris suspirou hesitante, quando ele lhe tirou o suéter, apressado.
O zíper da calça não ofereceu resistência, e ele despiu-a por completo, colocando-a no colchonete inflável. As sandálias foram atiradas para longe, e então John começou a tirar as próprias roupas antes de se juntar a Chris.
O contato com o corpo másculo e ardente a fez vibrar, despertando-lhe emoções há muito sufocadas. Estranhamente, ela se sentiu como alguém que chegava em casa depois de uma longa e cansativa viagem.
Acariciou os cabelos dele pelo prazer de sentir como eram macios, e procurou-lhe os lábios para se unirem num beijo profundo e repleto de desejo.
As mãos de John lhe exploraram o corpo, os dedos roçando-lhe a pele nos pontos mais sensíveis; depois, os lábios ardentes abandonaram-lhe a boca, seguindo numa trilha de beijos pelos ombros macios, e em direção aos seios, fazendo-a sentir arrepios de prazer.
Com a boca e a língua, brincou com a ponta dos mamilos rosados, até que ela quase não conseguisse suportar tanta volúpia. Por um breve instante, uma dúvida a perturbou, a vaga idéia de que no dia seguinte não teriam coragem de se olhar nos olhos. No entanto, a troca de carícias íntimas era tão extasiante, que a coerência e a lucidez foram deixadas de lado.
Naquele instante, apenas o prazer e a vontade de se deixar levar pelas emoções valiam.
A chama tênue da vela projetava sombras sobre aqueles corpos entrelaçados, nus e sedentos de amor. Chris, mergulhando numa explosão de sensações, decidiu não pensar em mais nada que não fosse o homem amado,
- John... - murmurou com a voz rouca de prazer, que aumentava a cada carícia. - Faz... tanto tempo.
- Você me deseja? - ele perguntou, não menos excitado com as sensações que despertava nela.
- Você sabe que sim.
- Eu quero ouvir... Diga, Chris. Diga que me quer.
- Eu quero você - ela disse, enquanto lhe beijava suavemente o pescoço e os ombros, experimentando a pele úmida e salgada com a ponta da língua.- Eu quero muito você.
- Quantos homens passaram por sua vida nestes cinco anos?
- Não houve nenhum... - Chris fechou os olhos, inebriada, pensando se aquilo tudo não seria um sonho.
- Espera mesmo que acredite nisso?
Ela abriu os olhos devagar, sem entender direito por que John insistia em questioná-la.
- É a pura verdade... eu juro!
- Acho que acredito em você. - Os olhos azuis brilharam na penumbra.
- John, por favor! - ela implorou, as mãos envolvendo os ombros largos e o corpo tenso, numa ânsia que já estava se tornando insuportável. - Não me torture desse jeito!
Aquela súplica pareceu diverti-lo. Ele riu, mas era uma risada um pouco amarga, que Chris não teve tempo de analisar, pois, em seguida, viu-se de novo prisioneira de tantos beijos e carícias que não pôde mais conter os gemidos de prazer.
Era como se ele estivesse redescobrindo todos os seus segredos, cada região sensível, cada carícia favorita. Só quando o ultimo mistério foi redescoberto é que eles se entregaram ao delírio que lhes incendiava os corpos. Chris sonhara com aquele momento desde que se separaram, e agora compensava tantos anos de amor e desejos reprimidos.
Os dois chegaram ao êxtase ao mesmo tempo, como sempre havia sido antes. Depois, um se aconchegou aos braços do outro, ouvindo os corações baterem descompassados.
- Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você, Chris.
Era tudo o que John conseguia dizer? O desapontamento quebrou o encanto que envolvia Chris e a fez voltar bruscamente à realidade. Quando ele rolou para o lado, algum tempo depois, ela estava outra vez mergulhada em dúvidas e incertezas.
- Houve muitas mulheres, John?
- Algumas - ele admitiu, sentando-se de costas para ela.
Dominada por uma súbita e incontrolável vontade de chorar, Christie levantou e se vestiu com rapidez, sem olhar para o ex-marido. Um silêncio pesado dominou o ambiente.
- Sou um homem normal, Christie. Você acha que eu me tornaria celibatário depois de nosso casamento terminar? - ele explodiu, impaciente.
Ela não pôde retrucar, mas nem por isso se deu por vencida. Encarou-o furiosa:
- Sonia Deacon é uma dessas mulheres?
- Isso não é da sua conta! - foi a resposta áspera.
John havia conseguido magoá-la bem mais do que podia imaginar. Lágrimas de ódio e humilhação brotaram-lhe nos olhos, mas, de alguma forma, Chris conseguiu sair de cabeça erguida e correr para a barraca, onde só então extravasou o desespero.
CAPÍTULO V

Na manhã de segunda-feira, Christie acordou, com muita dor de cabeça e com o corpo todo dolorido, A princípio, não conseguiu entender o motivo, depois se lembrou de cada detalhe íntimo e embaraçoso que acontecera entre ela e John na noite anterior. Fora uma tola ao se deixar levar pelas emoções, e agora ia pagar o preço de tanta tolice. Sentia-se perdida, impotente, e não tinha a mínima idéia de como encará-lo nas duas semanas que ainda os esperavam.
Os alunos estavam fazendo hora pelo acampamento, enquanto o café da manhã era preparado. Christie se levantou e despejou água na bacia no canto da tenda. Lavou o rosto e escovou os dentes, tentando fazer com que também os sentimentos confusos que a invadiam sumissem junto com a água. Porém, eles persistiam, insistentes, para lembrá-la de como havia sido estúpida. Odiava John, mas também odiava a si mesma por ter caído numa armadilha emocional que ela própria construíra. Tinha se deixado levar pelo amor que ainda sentia por aquele homem. Para John, entretanto, ela fora apenas uma entre várias mulheres que levara para a cama naqueles últimos anos. "Eu já tinha esquecido como era bom fazer amor com você'"...
Talvez aquelas palavras devessem ser encaradas como um elogio. Em vez disso, aquilo a deixara com a sensação de que tudo não passara de uma aventura, um impulso de momento.
Christie suspirou, chegando à conclusão de que a única coisa boa sobre a noite anterior foi tê-la feito esquecer a serpente e o medo de dormir sozinha.
A sineta soou para anunciar que o café já estava pronto e Chris se preparou psicologicamente para sair e encarar John. Avistou-o de costas para ela, falando com Dennis e Mike, enquanto esperavam a vez de serem servidos. Ao passar ao lado dele, recebeu um olhar frio e indiferente que a deixou perturbada. Encaminhou-se para o fim da fila, tentando se acalmar.
"Leve na esportiva! Mantenha a calma!", avisou a si mesma. Contudo, quando se lembrou das perguntas que John lhe fizera em meio às carícias, um ódio tempestuoso tomou conta dela. Movida pela paixão, dissera-lhe tudo que ele queria saber. Para ele, não havia mais dúvidas de que fora o primeiro e único homem a possuí-la. O fato, na certa, reforçara-lhe o ego. Agora devia estar satisfeitíssimo com a descoberta.
Christie fervia de ódio. Se John queria vingança, tinha conseguido o objetivo, mas ela nunca o perdoaria por fazê-la se sentir humilhada.
E foi aquele ódio que a ajudou a suportar o dia cansativo em meio ao calor e a poeira. Com o auxílio de uma escova e uma pequena pá, auxiliou os alunos a buscarem mais evidências sobre um povo que vivera ali mil anos atrás. O pior de tudo foi ter que ficar sozinha com John, enquanto ele lhe ditava as anotações referentes às descobertas do dia. A mente dela inevitavelmente se fixava na noite anterior, invocando o que havia ocorrido. Precisou de um esforço tremendo para ficar sentada com calma na tenda dele, enquanto John andava de um lado para o outro, agitado.
Diversas vezes naquela manhã ele a fitara de modo estranho, como fazia agora. Chris podia sentir o peso dos olhos penetrantes, ansiosos para que ela os encontrasse. No entanto, teimou em fitar apenas o caderno. A tensão foi tanta que acabou por deixá-la exausta e indisposta quando ficou sozinha para datilografar as notas.
As roupas de Christie estavam encharcadas de suor quando ela puxou a última folha de papel da máquina de escrever. Ansiava, a todo custo, por um banho refrescante no rio, e não se sentia disposta a discutir com John quando ele se voltou e, deliberadamente, barrou-lhe a passagem, ao ver que ela se preparava para sair.
- Onde você vai? - ele perguntou, mantendo o ar inquisidor de sempre.
- Acabei o serviço, e ia dar um mergulho no lago. Tem mais algum trabalho, professor?
- Não me chame de professor!
- É o que você é, não?
- Dane-se, Christie! - John gritou com fúria diante da ironia da resposta. Depois, fez um esforço visível para se controlar. - Sobre a noite passada...
- Não quero falar nisso! - Chris o interrompeu seca, cerrando os punhos com tanta força, que as mãos doeram. - Foi algo que nunca deveria ter acontecido, e eu vou me arrepender pelo resto da vida por...
- Você pode se arrepender quanto quiser... Mas eu não.
- Tinha certeza de que você não se arrependeria. Afinal, conseguiu se vingar. Espero que esteja satisfeito.
- O que aconteceu na noite passada não foi nenhuma vingança, Chris.
- O que foi, então? Uma manifestação de seu incurável narcisismo?
- Afinal, sobre o que está falando? - John perguntou com aspereza, agarrando-a pelo braço e forçando-a a encará-lo quando, mais uma vez, Chris tentava deixar o local.
- E ainda pergunta? Depois do inquérito da noite passada, obteve muitas respostas satisfatórias, não? - Ela se desvencilhou com um safanão. - Você deve estar tão cheio de si, que eu fico surpresa que não esteja flutuando no ar.
- Em nome de tudo o que é sagrado, Christie, quer se acalmar para discutirmos a situação de forma racional e sensata? - As mãos dele tentaram alcançá-la novamente, mas Chris se manteve a uma distância segura.
- Eu não tenho a mínima vontade de discutir qualquer coisa com você. Nem agora, nem no futuro.
- Suponho, então, que a noite anterior não passou de uma diversão breve e agradável para você. - O rosto dele endureceu e os olhos a fuzilaram.
- Pense como quiser!
- Quase acreditei que a noite passada... Não, deixe para lá. Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor...
Os olhos de Christie se encheram de lágrimas. Ela se encontrava de costas para John, tentando esconder o desespero e, ao ouvir aquelas palavras, afastou-se o mais rápido possível. Precisava fugir dele, antes de cometer um erro maior e convencer-se de que estivera enganada, que não fora por vingança que... Não, não podia confiar naquele homem. Não podia mais esquecer que ele havia partido logo na primeira crise no casamento.
Já no interior de sua barraca, Christie tomou duas aspirinas; a cabeça latejava como se alguém estivesse dando-lhe golpes com um martelo. Em seguida, se dirigiu ao rio com a toalha no ombro. Cada passo era uma pontada profunda de dor. Ao chegar à margem, mergulhou sem ao menos tirar as roupas. O frescor contra o corpo foi aos poucos aliviando-lhe os pesares.
Quando saiu da água, sentia-se exausta, mas a dor felizmente tinha passado. Depois de se trocar, sentou-se nas pedras por algum tempo, mirando o espaço, indiferente às nuvens avermelhadas que cortavam o céu do entardecer. Queria se ver livre dos pensamentos desencontrados e das emoções tão fortes, mas não podia encontrar paz de espírito enquanto a voz de John insistisse em ecoar-lhe na mente.
"Fui um idiota em pensar que houve algum significado especial em fazermos amor..."
O que estaria por trás daquelas palavras? O que ele estivera tentando lhe dizer? Oh, Deus, se ao menos conseguisse entender...
Se Christie imaginava que John fosse abordá-la mais uma vez com a intenção de discutir o relacionamento deles, estava redondamente enganada. Depois daquela vez, passou a lhe dirigir a palavra apenas quando se fazia absolutamente necessário; quando não, tratava-a como se ela não existisse.
Christie devia se dar por satisfeita, mas, em vez disso, sentia-se infeliz e solitária. Foi então que começou a valorizar a amizade que Dennis lhe oferecera desde o início da viagem. Às vezes, a presença dele chegava a aliviar a tensão entre ela e John; o rapaz podia fazê-la rir, mesmo quando só havia tristeza no coração dela.
O ritmo das escavações se acelerou. Havia pouco tempo para Christie pensar nos próprios problemas; a numeração e registro de cada item encontrado era um trabalho estafante. Ao mesmo tempo, sua participação ativa nas tarefas e a expectativa por alguma descoberta significativa ajudavam a passar os dias com uma rapidez incrível.
- Acho que o professor procura alguma coisa específica - sugeriu Dennis certa noite, quando estava a pouca distância do resto do grupo em volta do fogo.
Christie encarou-o com interesse.
- Será, Dennis? Por quê?
- É só um pressentimento... Por acaso ele não lhe disse nada a respeito?
- Nenhuma palavra - Chris assegurou, pousando os olhos em John, que fumava um cigarro recostado a uma árvore. - O meu relacionamento com o professor não inclui troca de confidências.
- É, eu reparei - O comentário bem-humorado tinha um tom pessoal, e ela rapidamente voltou ao assunto anterior.
- Não tem mesmo idéia do que ele procura?
- Não, mas eu acho que é alguma coisa que vai comprovar a teoria de que este território uma vez pertenceu a Indlovukazi, a lendária rainha tribal.
- Pensei que já havíamos encontrado evidências suficientes para confirmar a teoria dele.
- Eu também, mas tenho quase certeza de que ele não ficará satisfeito até achar o que procura. - Dennis baixou a voz enquanto falava e se inclinou na direção de Christie, como se conspirassem. - Você já reparou como o professor examina cada fragmento, quando fica peneirando as partículas?
- Percebi, sim - Chris respondeu pensativa, pela primeira vez levando a sério aquela conversa. - O que ele está procurando na certa deve ser pequeno...
- Ou, então, podem ser fragmentos de um objeto maior.
- Por que não lhe pergunta do que se trata? - Chris indagou, enlaçando, com os braços, as pernas dobradas, e repousando o queixo nos joelhos.
- Já perguntei, mas a resposta não me levou a lugar nenhum.
- O que ele disse?
- Riu e disse que a minha imaginação era muito fértil.
Christie refletiu por um momento e, então, sorriu, bem-humorada.
- Talvez seja verdade.
Dennis empurrou-lhe o braço com a mão numa resposta brincalhona, e a conversa terminou quando Alan apanhou o violão e começou a tocar suavemente.
Christie se pôs de pé para se juntar ao grupo em volta do fogo, e, por um instante, seus olhos encontraram os de John. Foi suficiente para sentiu-se perturbada e aborrecida pelo resto da noite: ele parecia furioso.

Alguns dias depois, a escova e a pá de Christie tocaram num pote na parede da depressão. Nas outras vezes, ela deixara a remoção dos objetos a cargo das mãos habilidosas dos alunos, mas, de repente, sentiu uma vontade estranha de removê-lo por si própria. Trabalhou com cuidado, consciente de que um movimento desastroso poderia quebrar o objeto. O sol quente tornava as coisas mais difíceis, e Chris pareceu levar horas para conseguir removê-lo da terra. As mãos tremiam com uma excitação inexplicável, quando, finalmente, o teve entre os dedos. Ao revirá-lo, ouviu um som seco de objetos batendo no interior. Tentou levantar a tampa, mas seu primitivo dono o deixara bem selado para preservar-lhe o conteúdo.
- Vai precisar de um canivete e uma escova para quebrar o selo - Dennis aconselhou, correndo os dedos por entre a tampa e a boca do pote.
Christie hesitou, em dúvida se deveria encarregar-se de uma tarefa tão delicada sozinha. Ao mesmo tempo, experimentava um inusitado ciúme de imaginar outra pessoa o abrindo.
- Acha que posso fazer isso?
- Você encontrou o pote. - Dennis sorriu, emprestando-lhe o canivete. - Portanto, acho que o privilégio de abri-lo é todo seu.
Parecia um desafio e, de fato, era. Christie saiu de lá com o objeto de cerâmica protegido contra o corpo. Olhou para John, que se encontrava envolvido numa discussão com alguns alunos. Depois de estender um pedaço de lona à sombra de uma árvore, começou a executar a difícil tarefa de quebrar o selo sem danificar o achado.
Mais uma vez, trabalhou com o máximo cuidado, usando, alternadamente, o canivete e a escova. Se forçasse a tampa, esta poderia ficar reduzida a pedaços. Por isso, apesar da grande expectativa, deixou a pressa de lado. Sentia uma estranha excitação crescendo dentro de si, deixando-a mais determinada a descobrir o que se escondia ali por séculos.
Muito tempo se passou enquanto ela raspava e escovava a cerâmica. O canivete foi afundando cada vez mais na fenda entre a tampa e a extremidade. Mas era muito difícil continuar. Finalmente, quando pensava em desistir, a tampa se moveu um pouquinho.
Ao largar do canivete e apanhar a escova para remover a terra do selo, o coração pulava dentro do peito e a mão tremia. Para ter certeza de que não sonhava, passou mais uma vez a ponta da lâmina em volta da tampa, e teve a grata surpresa de perceber que não se enganara.
Nervosa e agitada, deu uma olhada ao redor. Já estava quase na hora de voltar ao acampamento para o almoço. Os alunos guardavam as ferramentas, embora John ainda examinasse os minúsculos fragmentos de pedra e barro que tinham ficado na peneira.
Ela teria que se apressar, havia pouco tempo agora. "Mas... tempo para quê?", perguntou a si mesma, confusa. Sem esperar pela resposta, usou a ponta do canivete, levantando a tampa. Então, inclinou o pote para esvaziar o conteúdo sobre o pedaço de lona.
Por um terrível momento, Christie sentiu falta de ar e um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, enquanto olhava para os objetos espalhados. Cercado por quatro dentes de leão e um pequeno capacete de ferro estava um medalhão de marfim com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro. Era uma réplica exata do medalhão que havia ganhado de John, exceto pela figura de uma mulher esculpida no centro. Era o medalhão que Indlovukazi dera ao amante como símbolo de seu amor, e Christie percebeu, de repente, que era aquilo o que John procurava com tanta ansiedade.
Tocou o medalhão com os dedos, reverente. Havia ficado amarelado por causa do tempo, porém estava muito bem conservado.
- É hora de voltarmos - soou a voz de John perto deles e, num gesto precipitado, Chris guardou a relíquia no bolso do short.
Apesar de não ter sido vista por ninguém, sentia-se culpada. Com pressa, juntou os outros objetos, devolvendo-os ao pote, e cuidadosamente recolocou a tampa.
John se encontrava a uma certa distância, observando o horizonte, distraído, mas, ao ouvir passos, virou-se imediatamente.
Seu olhar foi atraído como um ímã pelo pote.
- Onde você achou isto?
- Na depressão. Marquei o local e registrei a descoberta - ela explicou com ansiedade.
John tomou-lhe o pote e examinou-o. Quando a encarou de novo, os olhos falseavam de ódio.
- Quem lhe deu permissão para quebrar o selo?
- Eu dei - Dennis respondeu, aparecendo por trás dela. - E não acredito que algum de nós poderia ter feito um trabalho melhor - acrescentou, percebendo que a tampa ainda se encontrava em perfeitas condições.
As feições de John endureceram, mas não os contrariou.
- Você examinou o conteúdo? - perguntou a Christie.
- Sim, examinei.
Ele fez um gesto para que ela estendesse a lona no chão e lhe mostrasse o que achara.
- O dono deste pote parece ter sido muito sentimental - observou, enquanto via os objetos espalhados na lona. - Me parece que guardou os dentes do primeiro leão que matou, e também o elmo utilizado na caça.
John se sentou, examinando cada peça detalhadamente. Depois, olhou para cima e percebeu o nervosismo de Christie.
- Foi tudo que encontrou no pote?
O medalhão de marfim parecia queimar dentro do bolso dela. Sua mente dizia para devolver o que não lhe pertencia, mas, por alguma razão, mentiu.
- Foi.
John continuou a encará-la, e ela teve a impressão horrível de que a culpa aparecia estampada em seu rosto. Nunca aprendera a mentir, e ficou horrorizada com o que fazia.
- Estranho... - ele quebrou o silêncio. - Que eu saiba, nessas tribos as pessoas só colocavam alguma coisa num pote lacrado, se quisessem escondê-la. Eu não vejo por que o dono deste aí resolveu ocultar um sinal de sua bravura.
"Ele sabe! Está na cara que sabe!". Christie pensou desesperada. Abriu a boca para confessar o roubo, mas Dennis se adiantou:
- Talvez fosse um homem modesto.
- O homem primitivo nunca se preocupava com a modéstia - John retrucou. - Muito pelo contrário. Se quisesse ser aceito como adulto pela comunidade, era importante que exibisse a bravura e coragem de que era capaz.
- Neste caso, professor, ele era mesmo um sentimental, como você disse - Dennis concluiu, encolhendo os ombros.
- É, deve ter sido. - John concordou com um sorriso forçado, quando recolheu os objetos e se levantou. - Vamos voltar.
Nenhum dos três conversou a caminho do acampamento. Christie foi direto para a barraca lavar o rosto e as mãos antes do almoço. Depois, enfiou os dedos no bolso do short para se certificar de que a relíquia de marfim ainda se encontrava ali.
Permaneceu imóvel, os dedos apalpando o medalhão, e foi então que percebeu e encarou a verdade. No fundo, alimentava a ilusão de que o destino seria complacente e lhe daria uma oportunidade para entregar o achado a John como um símbolo do amor...
As pernas estavam bambas, e o corpo todo tremia quando ela se juntou aos outros para almoçar. Parecia-lhe loucura imaginar que se depararia com tal oportunidade. E a idéia de reencarnar as ações de Indlovukazi, não menos insana, pois John não a amava. Os medalhões deveriam pertencer a duas pessoas que se amassem. Talvez estivesse esperando, como uma boba, que os poderes da lendária rainha ainda fossem ativos em pleno século vinte e lhe trouxessem John de volta... Tudo não passava de um sonho ridículo. Entretanto, o coração sabia muito bem que era exatamente o que esperava. Parecia loucura, mas o amor por John se tornara tão intenso que Chris queria se apegar a qualquer réstia de esperança.
Enquanto almoçava, ela, mais uma vez, tocou o medalhão de marfim. Teria que pensar num lugar apropriado para escondê-lo, mas, no momento, não havia local mais seguro do que o próprio corpo.

Os últimos dois dias foram cansativos, e quando, na última noite, se reuniram em volta da fogueira, o clima de tristeza por ter que partir estava presente nas canções melancólicas que cantavam. Enquanto Alan dedilhava as cordas do violão, Christie viu a irritação habitual no rosto de John.
Os olhares dos dois se encontraram por cima da fogueira, e alguma coisa avisou-a para tomar cuidado. Apesar de intuir o perigo, Chris não imaginava o que estaria por vir.
- Gostaria de fazer uma sugestão - John falou em voz alta para Alan. - Empreste o violão a Christie e deixe-a cantar para nós algumas de suas canções.
Ela foi colhida de surpresa pela revelação inesperada. Sentiu um frio no estômago ao se transformar no alvo das atenções.
O peso de tantos olhares deixou-lhe a mente entorpecida no silêncio que se seguiu. Odiava John por ter feito aquilo. Na certa, ele sentia um prazer enorme em revelar a todos o que ela tentara esconder. Quis se levantar e sair correndo dali, mas antes disso o violão já estava em seu colo.
- Eu sabia! - Érica quebrou o silêncio com a voz excitada. - Desconfiei, o tempo todo, de que você fosse a cantora que meu irmão adora, mas as fotografias dos discos nunca lhe fizeram justiça. Além do mais, o cabelo curto me deixou confusa.
- Pare de falar, Érica, e deixe-a cantar - alguém a repreendeu com bom humor.
O grupo ficou em silêncio novamente, e Christie olhou para o instrumento nos braços com um nervosismo incomum.
- Não sei se posso...
- Ora, vamos lá, Chris, é a nossa última noite juntos - Érica insistiu. - Cante uma de suas músicas favoritas.
Havia nos olhos de John um desafio que Christie não podia ignorar. Num impulso, decidiu responder com outro desafio. Escolheu uma música que compusera logo depois de conhecê-lo e que tinha um significado especial para ambos.
O clima era de expectativa quando os dedos experientes tocaram os primeiros acordes da música. A mudança na expressão de John indicou que reconhecera a canção. A melodia era suave e, colocando intimidade na voz terna e vibrante, ela cantou:
Na primeira vez que nos tocamos percebi.
Não podia existir mais ninguém, só você
Seus olhos encontraram os meus olhos
E a certeza se fez:
Aquele não seria um simples caso de amor.
Desconhecia o amor, meu amor.
E junto com ele toda uma vida, minha vida
E você me ensinou, meu querido
A saber que os sonhos são possíveis
A querer emoções proibidas.
Longe ou perto de mim
Vida afora será sempre assim:
Teu sorriso acompanhando o refrão
Entoando a minha canção.
Acredite, acredite, por favor
O nosso encontro não foi um simples caso de amor.
Do começo ao fim da música, Christie foi ouvida com atenção pela pequena platéia emocionada. Houve um silêncio geral quando a voz emudeceu na última nota, e então o silêncio explodiu em pedidos de "Mais um, mais um"!
Ela ficou surpresa ao sentir que os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e quando procurou por John constatou que ele não se encontrava mais com o grupo. Não o vira sair, mas aquela ausência confirmava que ele não se importava mais com as palavras de amor.
- Mais uma, Christie! Só mais uma música! - a pequena platéia insistia, mas ela se sentia muito emocionada para cantar.
- Não - Dennis entrou em cena ao perceber o que acontecia com Chris. Tomando-lhe o violão, devolveu-o para Alan. - Temos uma longa viagem pela frente, e amanhã vamos acordar cedo.
Apesar dos protestos, o grupo em volta da fogueira foi se dispersando e Dennis acompanhou Christie até a tenda. Os olhos dela ainda procuravam por John, mas ele havia sumido.
- Aquela música... - Dennis quebrou o silencio. - Você a escreveu para alguém, não foi?
- Sim - Chris tentava desfazer o no da garganta enquanto o olhar buscava a silhueta familiar de John.
- Foi para alguém como... o professor?
- O que você está tentando dizer? - O corpo endureceu e, pela primeira vez, ela prestou atenção em Dennis.
- Naquela tarde, quando descobrimos as primeiras relíquias - Dennis olhou para baixo e chutou uma pedra, demonstrando embaraço - eu estava perto da tenda do professor, quando o ouvi dizer que tinha lhe dado alguma coisa anos atrás, pela qual você demonstrou pouco interesse.
O medalhão de marfim. Chris automaticamente colocou a mão no bolso do short, mas ele não se encontrava mais lá. Tinha sido guardado entre suas roupas íntimas, e permaneceria escondido até poder ser acrescido ao outro.
- Então agora você sabe que o professor Venniker e eu já nos conhecíamos antes de nos encontrarmos no campus da universidade... - ela observou, forçando naturalidade.
- Mas existe alguma coisa maior entre você e ele, não é? - O rapaz a encarou, notando-lhe a surpresa e a indecisão. - Sinto muito, Christie, mas quando descobri que você e o professor já se conheciam, não pude deixar de lembrar como eram hostis um com o outro, no início da viagem. Continuei observando e... já percebi como você olha para ele.
"Oh, céus!", Chris resmungou interiormente, querendo saber se o seu comportamento fora tão transparente também para as outras pessoas.
- Quando você cantou aquela música, e quando vi como o professor reagia, percebi que a relação de vocês foi muito além de uma simples amizade.
- Como ele reagiu? - Chris não pôde deixar de perguntar,
- Ficou furioso, e antes da música terminar, caminhou em direção ao lago. - O rapaz fez uma pausa. - Se importa em me contar o que aconteceu entre vocês?
- É uma longa história, Dennis... - O cansaço esgotara-lhe todas as forças, e ela suspirou profundamente. - Um outro dia, talvez...
- Isso quer dizer que eu vou poder vê-la quando voltarmos a Johannesburgo?
- Você tem sido um amigo e tanto nestas quatro semanas - ela respondeu, não querendo se comprometer, e então se despediu. - Boa noite, Dennis.
Ela o viu partir e então afastou a porta da tenda para entrar. Só depois de muito tempo de reflexão conseguiu dormir.
Aquela era a última noite no acampamento.
CAPITULO VI

As barracas foram desarmadas, o equipamento guardado nos caminhões de carga e as peças arqueológicas muito bem embaladas e protegidas no microônibus, para uma viagem segura. Nada permaneceu para indicar que ali existira um acampamento, exceto pelas pegadas na areia e as cinzas da fogueira da noite anterior. Com um nó na garganta, Christie deu uma boa olhada no local. No outro dia, aquilo não passaria de uma lembrança, mas, como todas as outras, ficaria guardada para sempre.
- Você vem comigo - John ordenou-lhe, quando ela se preparava para entrar no caminhão ao lado de Dennis, e Chris não se dispôs a discutir ou questionar a decisão inesperada. Acompanhou-o em direção ao jipe estacionado à sombra. Colocou a mochila no banco de trás, e John foi direto para o volante, impaciente. Quando Christie se sentou ao lado dele e fechou a porta, deu a partida. O ruído do motor do jipe funcionando era o sinal para que os outros veículos fizessem o mesmo. Ela se acomodou no assento, lutando contra o aperto no coração. Queria chorar, mas nunca tomaria tal atitude na frente de John.
O grupo precisaria enfrentar outro dia quente e cansativo, e a viagem para Johannesburgo ia levar horas. A camisa branca de John estava aberta até a cintura, e a calça cinza contornava-lhe as pernas musculosas. As mãos fortes descansavam de leve no volante, e quando Christie arriscou um olhar ligeiro para o rosto dele viu um perfil áspero e sério. Era triste, pensou, estar tão perto de alguém, e, ao mesmo tempo, tão distante. Se ao menos as coisas fossem diferentes...
- Sinto muito sobre a noite passada - ela se sentiu na obrigação de dizer, quando trocavam a trilha acidentada por uma estrada de cascalho. - Não devia ter escolhido uma canção que o faria se lembrar de um período em sua vida que gostaria de esquecer.
- Não fale mais nisso! - John afastou o pedido de desculpas, adquirindo uma expressão fria ao mudar a marcha e pisar com força no acelerador. - A razão pela qual quis que viajasse comigo foi para conversarmos sobre Dennis.
- Dennis? - Chris perguntou, armando as defesas.
- Ele ainda tem muitos anos de estudo pela frente. - Os lábios curvaram-se num sorriso cínico. - É muito novo e inexperiente para você.
- E o que você quer dizer com isso, John? - ela indagou, a ponto de explodir.
- Deixe-o em paz, Christie. É um aluno brilhante, e eu não quero ver-lhe o futuro estragado por alguém como você.
- Ei, espere um momento! - Os olhos de Chris estavam carregados de ódio quando ela o encarou. - Fala como se eu tivesse planos para seduzi-lo e acabar com a vida dele!
- Sinto muito se lhe dei essa impressão. - John apertou o volante com força. - Mas o rapaz tem capacidade para se tornar um dos maiores arqueólogos do país, e eu não quero que alguma coisa, ou alguém, prejudique o futuro dele.
- Acho que Dennis já é bem crescidinho para tomar conta de si mesmo. Afinal de contas, porque está tão preocupado assim?
- O pai de Dennis é um arqueólogo, além de ser meu amigo, e tenho muito respeito e admiração por ele.
- E essa grande amizade poderia terminar se, por acaso, todos ficassem sabendo que o filho dele se envolveu com sua ex-esposa? - ela completou com sarcasmo.
- Dane-se, Christie! - John reagiu com tal violência, que ela se encolheu no pequeno espaço do jipe. - Não é nada disso!
- Então, por que você fala como se eu estivesse cometido um crime por fazer amizade com Dennis?
- Dennis quer mais que uma simples amizade - John lançou-lhe um olhar curto, irritado, - Se ainda não percebeu isto, então é mais ingênua do que eu pensava,
Christie sentiu a raiva e a indignação desaparecerem. Era verdade. Havia percebido o interesse de Dennis por ela, e sabia que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
- Tudo bem! - resolveu enfrentar a situação. - Eu reconheço que ele tem uma queda por mim, mas sei também que vai passar. Só não quero magoá-lo com um golpe duro e doloroso.
- É preferível acabar com a situação de uma vez por todas, do que tentar prolongar-lhe a dor e o sofrimento.
- Obrigada pelo conselho, mas prefiro resolver as coisas a meu modo, se e quando for necessário.
- Pois bem, mas, se atrapalhar os estudos dele de alguma forma, terá de se ver comigo.
O aviso foi feito de forma tão clara e direta que não houve como contestar. Ela, porém, não se deu por vencida.
- Sim senhor, professor Venniker - Chris reagiu à ameaça com ironia, mas se arrependeu em seguida ao perceber como John tinha ficado furioso.
Depois disso eles não falaram mais nada, exceto o necessário, e Christie se recostou confortavelmente no banco, os óculos escuros sobre o nariz fino e delicado. Fazia calor, e o cansaço era inevitável. A conversa com John a deixara mais perturbada do que pensava, e esperava que assim que estivesse de volta à cidade os sentimentos de Dennis esfriassem. Não existia nenhuma intenção da parte dela de interromper-lhe os estudos, como John havia dito, e também não queria feri-lo, mas, se isso fosse preciso, teria que ser feito.
Uma outra dúvida atormentava-lhe a mente. Veria John de novo? Pensou em Sônia Deacon, loira e bonita, e uma dor profunda se instalou no seu coração. Sonia estaria esperando por ele, e John, na certa, ansiava para voltar aos braços da loira. "Por que acreditar no contrário?", Chris se torturava. Não havia nenhum obstáculo que mantivesse Sonia afastada de John...
Dessa vez, o sofrimento de perder John seria maior, concluiu, angustiada. Olhava-o de vez em quando, e a expressão taciturna parecia inalterada. Impossível conversar com ele, ou, então, achar um assunto que pudessem dialogar sem rancor. Os quilômetros foram percorridos num silêncio glacial.
Pararam para almoçar em Nyistroom. A falsa descontração entre o grupo dava um tom de tristeza geral à medida que a expedição ia chegando ao fim. Christie se juntou às três garotas para um bate-papo, assim que viu Dennis se aproximando.
A última parte da viagem pareceu bem mais rápida do que a primeira, e Christie sentiu um aperto no coração ao avistar os primeiros arranha-céus de Johannesburgo. A hora de dizer adeus se aproximava, mas ela não estava preparada para isso.
- Você quer uma carona até o apartamento? - John quebrou o silêncio perto do campus da universidade.
Christie levou um tempo para controlar a voz e responder.
- Pode me deixar no ponto de ônibus mais próximo.
- Bom, aí tem um ponto de ônibus - ele anunciou alguns segundos depois, parando no acostamento. O resto do comboio fez o mesmo.
- Obrigada - Chris murmurou, saltando do jipe e apanhando a mochila no banco de trás.
- Ei, Christie! - Dennis desceu do caminhão e correu em direção a ela. - Não peguei seu endereço.
Os olhos dela encontraram os de John enquanto o rapaz se aproximava. Mas Chris decidiu ignorar mais uma ameaça do ex-marido.
- Meu número está na lista telefônica, ligue de vez em quando.
Christie foi se despedir do resto do grupo, e, depois de muitos abraços e lágrimas, viu-se novamente diante de John. O ônibus já a esperava, e tudo que havia planejado dizer desapareceu-lhe da mente.
- Acho que é hora de dizer... adeus - falou baixinho.
- Gostaria que soubesse que seus serviços foram de grande valor.
Por um terrível momento ela pensou que John se referisse à noite em que fizeram amor, e não aos serviços como secretária. Tratou de apanhar a bagagem para subir no ônibus, antes que ele lhe notasse o desapontamento.
Sentou-se perto da janela e acenou um adeus para todos.
Assim que chegou em casa, Christie tomou um longo banho. Depois do pijama que vestira nas semanas anteriores, a camisola de seda caía-lhe bem sobre a pele perfumada. Secou os cabelos e se sentou na cama com a caixa de jóias nas mãos.
Aguardara ansiosamente pelo momento em que pudesse satisfazer a curiosidade sem ser perturbada, e o coração batia mais forte com a expectativa. Levantou a tampa e remexeu o conteúdo até sentir um objeto circular e achatado. Pegou e observou o medalhão de marfim que John lhe dera cinco anos atrás. Chris deslizou a outra mão por baixo do travesseiro, apanhou um lenço e abriu-o com cuidado. Ali estava o outro medalhão encontrado. Colocou-os lado a lado, sentindo de novo a mesma excitação. Eram idênticos, exceto pela figura no centro, e pertenciam um ao outro.
Christie pegou um saquinho de veludo azul e os guardou. Talvez um dia tivesse com quem compartilhar aquelas relíquias, mas, no momento, pertenciam somente a ela.
Depois de quatro semanas de esforço físico, era difícil se acostumar à tranqüilidade habitual. Precisava achar outro emprego, mas, ao mesmo tempo, pensava em tirar um fim de semana para fugir de tudo e decidir o que fazer da vida. Saber que John se encontrava em Johannesburgo não facilitava a situação, uma vez que os pensamentos estavam sempre voltados para ele. Não adiantava ter esperanças de voltar a vê-lo. Naquela noite em que tinham feito amor, percebera que ainda o atraía fisicamente, mas, depois, ele deixara bem claro que não existia mais nada entre os dois. Havia dito que era um homem normal... Se ela ainda duvidava do teor daquelas palavras, John havia reafirmado sua indiferença quando reagira de forma tão brusca à música cantada em volta da fogueira.
Ela não significava mais nada para ele.
As velhas cicatrizes do passado voltaram a sangrar, e, mais uma vez, Christie sentiu a dor de perder o único homem que amara em toda a vida. Não fazia sentido esperar por um milagre, mas o coração frágil ainda parecia alimentar esperanças de que um dia John voltaria.

Três dias após o retorno a Johannesburgo, Christie recebeu um cheque pelo correio e uma mensagem da universidade agradecendo os serviços prestados. Parecia que com este pagamento todo contato com John tinha sido cortado, e a angústia foi tão intensa que as lágrimas não paravam de escorrer-lhe pelo rosto.
Sammy Peterson telefonou para dar-lhe boas-vindas e convidou-a para almoçar, mas Chris recusou. Ela o conhecia o suficiente para adivinhar que, por trás daquele convite, estaria mais um contrato "tentador e irrecusável".
Christie estava trancada em casa há mais de uma semana quando a campainha tocou um pouco depois das seis da tarde. Ao abrir um vão da porta, ficou surpresa em encontrar Dennis com um sorriso encabulado.
- Eu achei melhor vir até aqui do que lhe falar ao telefone. Você se importa?
- Não, claro que não - ela assegurou, soltando a corrente de segurança e abrindo totalmente a porta. - Entre, por favor.
A calça jeans e a camisa pólo vermelha faziam-no parecer bem diferente daquele estudante de arqueologia que Christie conhecera. Ela imaginou que também devia parecer diferente aos olhos de Dennis.
- Você já tem algum compromisso para esta noite? - o rapaz perguntou.
- Não, não tenho.
- Isto é ótimo, porque conheço uma pizzaria que faz as melhores pizzas em Johannesburgo, - O entusiasmo foi substituído por hesitação. - Você gosta de pizzas, não gosta?
- Adoro. - Ela sorriu animada.
- Então aceita o convite?
Christie vacilou, sem saber o que fazer. O aviso de John ainda a perturbava, mas, naquele momento, não queria magoar Dennis.
- Volto em um minuto - prometeu, deixando-o na sala de estar enquanto retocava a maquilagem e apanhava a bolsa.
A pizzaria se encontrava lotada, mas Dennis conseguiu uma mesa num canto afastado. O aroma tentador das pizzas e do café feito na hora a fez admitir que estava com fome, e quando Dennis fez o pedido, ela ficou com água na boca. Sentiu-se um pouco embaraçada e começou a lhe fazer perguntas sobre os estudos e os testes com os achados arqueológicos. O entusiasmo do jovem pelo assunto era flagrante em cada gesto e palavra sobre as atividades recentes.
As pizzas foram servidas, e os dois comeram em silêncio. Christie sentiu que alguma coisa preocupava Dennis. Ele sorria toda vez que os olhares se encontravam, fingindo estar à vontade. Havia, entretanto, uma angústia crescente no rosto dele.
- Posso pedir outra xícara de café para você? - ele perguntou quando o movimento no restaurante já havia diminuído bastante.
- Não, eu ainda não terminei o meu, obrigada.
Dennis olhou-a pensativo, e, depois de um momento de indecisão, observou:
- Você não me perguntou nada sobre o professor.
- O que tem ele? - ela indagou, desconfiada.
- Desde que chegamos daquela viagem, tem estado muito deprimido.
Christie se revelou surpresa e, ao mesmo tempo, preocupada.
- Você espera que eu faça alguma coisa em relação a isto?
- Houve um tempo que ele era alguém especial na sua vida.
- Mas isso foi há muito tempo.
- Não vai me falar a respeito?
Dennis encarou-a com expectativa, mas Chris negou com um gesto de cabeça. Não queria discutir o casamento com John com ninguém, muito menos com Dennis. O assunto era muito pessoal... e doloroso.
- Existe alguma chance de você e o professor ficarem juntos de novo?
- Nenhuma chance - ela admitiu, tentando disfarçar os olhos úmidos.
- Então, que tal se você e eu...
- Não! - Christie interrompeu depressa ao perceber o que o rapaz diria. Não havia outra saída senão usar de firmeza.
- Não? - Os olhos de Dennis mostravam perplexidade e decepção quando ele se inclinou na direção de Christie. - Desse jeito... e sem nenhum motivo justo?
Ela se odiava por fazê-lo sofrer daquele jeito e, tomada por remorso, colocou a mão sobre a dele.
- Dennis, você é muito bom, e eu gosto muito da sua amizade, mas nunca poderá haver mais do que isto entre nós.
- Você ainda ama o professor Venniker?
- Acho que esse é um problema meu - ela respondeu com frieza, mas a expressão no rosto do jovem fez com que amenizasse a voz. - Por favor, Dennis, não me obrigue a magoá-lo, porque essa seria a última coisa no mundo que gostaria de fazer.
- Só me responda uma pergunta, Christie, e então eu não a perturbarei novamente. O que houve de errado entre você e o professor?
"Tudo", ela quis dizer, mas isso levaria a outras perguntas, e não estava disposta a discutir os erros que cometera.
- Foi um conflito entre nossas carreiras - respondeu evasiva. - A profissão dele levou-o por um caminho, e a minha, por outro.
Aquilo era um resumo perfeito e verdadeiro da situação, Christie pensou quando saíram da pizzaria. A carreira de John o levara para a Itália, enquanto a dela para uma excursão pelo país. A distância física e mental entre os dois havia tornado a reconciliação impossível.
Ao deixá-la no apartamento, Dennis perguntou esperançoso:
- Vou te ver novamente?
- Não acho muito aconselhável...
- Isso significa que não quer me ver nunca mais? - ele perguntou cabisbaixo.
- Quero que se concentre nos estudos, Dennis. - Ela acariciou-lhe o rosto com os dedos, numa atitude maternal. - Se não tiver nada mais importante para fazer, então será bem-vindo, para uma xícara de café e um bate-papo.
Mais tarde, Christie refletiu se a oferta não tinha sido um pouco insensata, mas ela não havia conseguido encarar a tristeza no rosto de Dennis, e o sorriso do jovem ao perceber que não era de todo rejeitado não deixava de ser uma recompensa. Mas, no fundo, estava infeliz por ele, e também se sentia culpada. Nada fizera para atraí-lo, mas isso não a deixava de consciência tranqüila.

Alguns dias depois, o telefone tocou. Christie retirou o fone do gancho, esperando ouvir a voz profunda de John. Mais uma vez se enganara,
- Alô? Aqui quem fala e Sonia Deacon - A voz feminina parecia ronronar. - Suponho que John já deve ter lhe falado a meu respeito.
- Para falar a verdade, ainda não. - Christie sentiu vontade de acabar com a pompa de Sonia. - Entretanto, eu a vi naquela manhã ao deixarmos o campus da universidade na expedição para Transvaal; um dos alunos mencionou seu nome.
- Que coincidência!
- É mesmo?
- Talvez eu deva explicar a razão pela qual estou lhe telefonando.
- Gostaria muito.
- É sobre John.
A mente de Christie imaginou uma série de contratempos, cada um pior que o outro. Ele estaria doente? Era isso que Sonia Deacon tentava lhe dizer?
- O que aconteceu com John?
- Receio não poder lhe falar ao telefone. - Aquele suspense acabou por deixá-la frustrada. - Está livre amanhã de manhã?
- Estou.
- Conhece a Casa de Chá de Feodora, na rua Bree?
"Quem não conhece?'", Christie disse a si mesma. Quando essa casa de chá fora aberta, um ano atrás, tornara-se o assunto predileto das conversas. Era o lugar onde as mulheres ricas se reuniam para trocar entre si as fofocas mais recentes.
- É perto de Garlicks, não é? - Christie procurou uma confirmação desnecessária.
- Exatamente. Me encontre lá às onze.
A conversa terminou bruscamente. Christie ficou pensando no que havia de tão importante sobre John para que Sonia Deacon lhe telefonasse convidando-a para um chá. Ela estava bem mais do que curiosa, e essa curiosidade ou preocupação resultou numa noite sem sono, durante a qual tentou, sem sucesso, pôr as idéias em ordem. De madrugada, o cansaço acabou por vencê-la. Às sete e meia acordou com uma ansiedade que mal conseguia controlar.
CAPITULO VII

A Casa de Chá de Feodora combinava perfeitamente com a elegância das mulheres que a freqüentavam. O carpete vinho, grosso, abafou as pegadas de Christie quando entrou no local. Ela parou por um instante e procurou entre os vários rostos pela mulher que vira de longe algumas semanas atrás. Já começava a se sentir embaraçada quando um homem de paletó azul apareceu por trás do balcão.
- Posso arranjar-lhe uma mesa, madame?
- Estou aqui para me encontrar com Sonia Deacon.
- Por aqui, madame - ele gesticulou numa reverência, conduzindo-a por uma fileira de mesas previamente reservadas. Na última, Sonia aguardava Christie. O homem se curvou em reverência, voltando em seguida para a entrada.
- Você é bastante pontual. - Sonia sorriu, sem alterar a frieza nos olhos cinzentos. - Por favor, sente-se.
- Obrigada.
Elas ficaram frente a frente na pequena mesa redonda, uma examinando a outra com curiosidade e uma ponta de desconfiança.
- Tomei a liberdade de pedir um... ah, aí esta - Sonia quebrou o silêncio. Uma senhora trazia alguns biscoitos cremosos em delicada porcelana chinesa.
- Por favor, um biscoito? - Sonia sugeriu quando a mulher se afastou. - Ou precisa controlar o peso?
Christie percebeu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu ignorá-lo.
- Não, não tenho problema de engordar. Posso comer o que quiser.
- Você quer que eu coloque um pouco de leite? - Sonia sorriu ao servir o chá, tentando simular cordialidade.
- Sim, obrigada.
Uma xícara foi dada a Christie, e ela colocou açúcar antes de provar do biscoito. Era deliciosamente leve e macio, mas naquele momento, não conseguia apreciá-lo com gosto. Depois de uma noite praticamente em claro, não estava de bom humor, e podia perder a paciência a qualquer instante.
- Adoro vir aqui - Sonia comentou
- Receio não ser uma boa conhecedora de casas de chá - Christie afirmou um tanto contrafeita, colocando a xícara vazia de lado. - Olhe, srta. Deacon, poderíamos esquecer as formalidades e irmos direto ao assunto?
- Muito bem. - Sonia sorriu, os lábios curvando-se cinicamente, e os olhos frios encarando Christie. - Sei que você foi casada com John.
- Desconfiava mesmo que soubesse - Uma sombra passou pelo rosto de Chris.
- Também sei que nesta última expedição foi você quem viajou como secretária dele. Você mesma confirmou isto quando nos falamos pelo telefone a noite passada.
- Tudo isto é verdade. E você me disse que queria falar sobre John, mas até agora não descobri o motivo deste encontro.
- Estou aqui em nome de John, e ele quer que você desapareça da vida dele para sempre.
Christie levantou um pouco a cabeça, tão surpresa que custou a reencontrar a voz.
- Desculpe, acho que não ouvi muito bem.
- Ouviu claramente... Mas, se você quiser, posso repetir - A voz de Sonia soava áspera e ameaçadora. - Fique longe de John. Você pode ter sido casada com ele uma vez, mas isso não lhe dá o direito de aborrecê-lo com sua presença indesejável.
Christie teve de admitir a si mesma que havia alguma verdade na declaração de Sonia. John deixara bem claro que a sua presença na expedição era indesejada. Entretanto, nunca poderia imaginar que o ex-marido discutiria tais particularidades com Sonia Deacon, ou deixaria que alguém falasse por ele.
- Como você fala, até parece que ando correndo atrás de John por aí... - acabou protestando.
- E não foi para isso que se candidatou como secretária?
- Havia um anúncio no jornal, e eu me candidatei sem saber que John era o professor encarregado. Também não sabia que ele tinha voltado a Johannesburgo.
- Quer mesmo que eu acredite nesta história? - Sonia riu suavemente, um cinismo cada vez maior por trás daquele sorriso falso. - Acha que John acredita que tudo isso aconteceu por acaso?
- Vocês dois podem pensar o que quiserem. - Christie teve um acesso de raiva e quase perdeu a calma.
- Ainda está apaixonada por ele?
A pergunta foi tão rápida e direta que uma jovem ingênua poderia se atrapalhar e revelar seus sentimentos, sem querer. Christie, entretanto, encarou o olhar frio e calculista de Sonia com uma calma forçada e segura.
- Eu o respeito e admiro muito como arqueólogo, mas qualquer coisa que eu possa sentir por ele é problema meu.
- Em outras palavras, você ainda o ama. - Sonia recostou-se à cadeira, lançando-lhe um olhar frio e hostil.
A loira fazia de tudo para Christie perder o controle e reagir à provocação. Entretanto, naquele momento ela estava nervosa demais para sentir outra coisa além de repulsa à situação.
- Acho que você acabou de cumprir sua tarefa - Christie disse com frieza, embora as mãos torcessem a bolsa por baixo da mesa. - Já que o deseja tanto, John é todo seu. Não pretendo mais vê-lo.
- Ele ficará satisfeito ao ouvir isto - Sonia disse, com um sorriso triunfante iluminando-lhe os olhos.
- Tenho certeza que sim. - Christie levantou-se bruscamente. - Obrigada pelo chá, e adeus, srta. Deacon.
Quando deixou a casa de chá, muitos olhares curiosos a seguiram. Mesmo assim, Christie saiu de cabeça erguida e por nada no mundo deixaria transparecer a vontade profunda de desabar em lágrimas.
Entrou no Porsche azul e dirigiu até o apartamento. Já em casa, não fazia idéia de como teria chegado lá sem sofrer ou provocar um acidente. Sentia-se entorpecida e congelada, como se a dor tivesse se transformado num sólido bloco de gelo dentro dela. A água fervia na cafeteira. Preparou um café bem forte, bebendo-o de uma só vez.
Christie se refugiou no quarto e não deteve mais as lágrimas. Deixou-se cair na cama e disse adeus a seu louco e absurdo sonho de amor, enquanto soluçava até desabafar completamente.
Dois dias depois ela ainda sentia os efeitos do encontro com Sonia Deacon. Não estava disposta a receber ninguém, quando a campainha tocou. Abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia e, qual não foi sua surpresa, avistou a figura alta e elegante de John.
O que ele fazia ali? Uma visita? Não podia ser uma visita... Sonia havia assegurado que ficaria satisfeito se ela desaparecesse da vida dele. Também não era provável que John estivesse ali por causa de Dennis.
- O que você quer? - perguntou, a voz fria e insegura.
- Em primeiro lugar, gostaria de entrar, se você não se importa.
- Para quê?
- Para conversar com você, Chris.
- Nós não temos nada para conversar.
- Eu tenho algumas coisinhas que gostaria de esclarecer.
- Não estou interessada. - Ela recuou, querendo bater a porta na cara de John; entretanto, esta não fechou. Quando olhou para baixo, descobriu por quê. - Tire o pé daí!
- Não, até você prometer soltar o trinco de segurança e me deixar entrar. - Os olhos penetrantes atraíram os dela como um ímã. - Christie, se você não me deixar entrar, vou fazer um escândalo tão grande que os vizinhos nunca mais a deixarão em paz.
Christie encarou-o, os olhos queimando de ressentimento e ódio. Alguma coisa lhe dizia que ele não brincava. Ela se deu por vencida.
- Tudo bem... você ganhou.
- Assim é muito melhor. - John sorriu quando Chris soltou o trinco, deixando-o entrar. - Vejo que ainda tem a maior parte dos móveis que compramos juntos.
- Eu estou certa de que você não veio aqui para fazer um inventário, portanto, diga o que tem para dizer e vá embora.
- É sempre tão gentil assim com as visitas?
- Eu não estava disposta a receber visitas, e muito menos você - ela respondeu secamente, atraída pelos ombros largos sob a jaqueta bege e os quadris esbeltos na calça marrom. Aquela aura de masculinidade que o cercava parecia tão fascinante como sempre. Christie se pôs em guarda.
- O que você quer, John?
- Falar, só isso.
Sem esperar o convite, ele se instalou confortavelmente numa cadeira e esticou as pernas.
- Se veio aqui para reafirmar que quer se ver livre de mim, não precisa se preocupar - ela disse bruscamente, os olhos cheios de dor e raiva. - Já recebi a mensagem e entendi.
John franziu a testa.
- Eu não sei do que está falando.
- Mas é claro que sabe! - Chris quase gritou, o corpo tenso enquanto olhava para ele com as mãos na cintura. - Você estava tão preocupado que eu pudesse importuná-lo, que mandou Sonia me dar um recado. O que disse a ela, John? Contou que estava feliz com o fim da expedição e que esperava que eu tivesse o bom senso de me afastar de você? É por isso que ela marcou um encontro comigo? Para me avisar que queria se ver livre de mim? E por que você mesmo não me encarou para dizer tudo isso?
Ele empalideceu, ficando em silêncio por um instante. Depois respondeu, furioso:
- Se houve alguém que teve que te encarar para dizer isso foi Sonia. Eu lhe deixei bem claro há algumas noites que já era tempo de ela parar de me aborrecer e procurar outra pessoa.
- Você terminou o relacionamento com ela? - Parecia que o teto desabava sobre Christie.
- Exatamente.
Ela olhou para John, tentando descobrir o que se escondia atrás daquele rosto furioso.
- Não acredito.
- Eu também disse a ela que se tornava desagradável, e que eu tinha coisas mais importantes para pensar... como você - John continuou, recostando-se na cadeira. - Se não acreditar, o problema é seu.
- Eu acho que vou fazer café. - Confusa, Chris se dirigiu à cozinha, incapaz de raciocinar.
As idéias se atropelavam, uma mais absurda do que a outra, até que ela deixou de lado todos os pensamentos para se concentrar no que fazia.
John ainda estava no mesmo lugar quando ela retornou com uma bandeja. Christie se sentou na frente dele, mas não tentou quebrar o silêncio. Ainda sentia-se muito confusa, e as dúvidas perturbavam-lhe a mente.
- Fez um trabalho excelente para mim. - John surpreendeu-a com o elogio. - Estou muito grato, e falo também em nome dos alunos.
- Já me agradeceu, e sua gratidão não é necessária. Fui paga pelo trabalho, e apenas cumpri meus deveres - Christie respondeu ao servir o café.
- Fez mais do que cumprir seus deveres - ele a corrigiu com o habitual olhar irônico, e, por um momento, Chris pensou que se referia à noite em que fizeram amor. - Não fazia parte do emprego envolver-se nas escavações - John acrescentou.
- Por que você não me deteve?
- No começo, me divertia observando-a, curioso em saber quanto pó e calor você iria suportar. Admito que fiquei envergonhado por meu comportamento quando você me convenceu de que estava realmente interessada.
- Gostei de ter participado - ela confessou, relaxando um pouco. - Me sentia como uma criança na caça ao tesouro. A idéia toda me deixou fascinada, e mal conseguia esperar para redigir as notas.
- Gostou das minhas conclusões?
- Elas eram muito interessantes e instrutivas - Christie respondeu com sinceridade.
- Acho que você passou a ter um grande interesse pela arqueologia.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Digamos que uma ciência que sempre considerei morta e sem graça tornou-se muito mais viva.
"Caça ao tesouro". Suas próprias palavras ecoavam-lhe na mente enquanto bebiam café. Ela se lembrou do sentimento de culpa por ter escondido de John o outro medalhão de marfim. No fundo, suspeitava que ele sabia que o objeto se encontrava em seu poder. Seria esse o verdadeiro motivo daquela visita inesperada?
John se recostou na cadeira, despertando-a das lembranças e dúvidas, e acendeu um cigarro.
- Já encontrou outro emprego?
- Fiz algumas entrevistas, mas até agora não recebi nenhuma notícia - Chris respondeu com cuidado, colocando a xícara na bandeja e tentando desesperadamente parecer tranqüila. - Não tenho pressa.
- Planejo uma nova expedição para o próximo semestre - John comentou. Permaneceu pensativo por alguns segundos, e então perguntou-lhe: - Gostaria de participar como minha secretária?
- Não! - Chris respondeu num impulso. Logo caiu em si e se acalmou: - Não, obrigada, mas...
- Pensei que o seu interesse recente pela arqueologia fosse convencê-la a aproveitar a chance - John zombou, bebendo outro gole de café.
- Gostaria de ir, mas acho que quanto menos nos encontrarmos daqui para a frente, será melhor. Você não acha?
- Muito pelo contrário. Esperava que nós nos conhecêssemos mais - ele a contradisse.
- Por que esse interesse súbito, John? Quando nós nos encontramos no campus há seis semanas, você ficou furioso ao descobrir que eu seria a secretária. Depois, deixou bem claro que não me suportava.
- É mesmo?
- Sabe que sim. E só falava comigo quando era absolutamente necessário.
- Se não me falha a memória, nós tivemos muitas conversas interessantes.
- Conversas onde você fazia de tudo para me humilhar e insultar - ela lembrou-o com amargura. - E o que me diz daquela "indiferença total" que disse sentir por mim?
- Falei da boca para fora, num instante de raiva. Mais tarde, desmenti, não foi?
Christie suspirou profundamente. Dessa vez tinha certeza que ele se referia a algo que ela preferia esquecer. Oferecera-lhe pouca resistência, e John tinha se aproveitado disso. Porém, a culpa não fora só dele. Ela não havia precisado de muito estímulo para se entregar. Também dividia a culpa.
- Nós dois estávamos afetados pela experiência terrível com a mamba - ela disse por fim, estremecendo com a lembrança da cobra, e afastando o assunto com uma casualidade forçada. - Não significou coisa alguma.
- Não mesmo? - John apagou o cigarro e provocou-lhe arrepios com um olhar insinuante. - Acho que significou muito mais do que estamos preparados para admitir.
- Provou, talvez, que ainda estamos fisicamente atraídos um pelo outro, mas é só isso.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irônico.
- Não acha que isso já é um bom começo para um relacionamento firme e duradouro?
- Por acaso você está tentando sugerir que eu me torne sua... sua amante? - Chris perguntou, enrubescida e indignada.
- Vejo que a idéia não lhe agrada muito - ele sorriu bem-humorado.
- Não me agrada nem um pouco - Christie corrigiu de maneira áspera, levantando-se e dirigindo-se até a janela para respirar um pouco de ar puro.
- O que sugere então?
Ela já mostrara compostura e hospitalidade o bastante por uma tarde, e a presença dele começava a se tornar insuportável.
- Sugiro que termine o café e vá embora.
Houve um silêncio absoluto e tenso antes de ouvir John se levantar. Esperou pelo som do abrir e fechar da porta mas, em vez disso, ouviu passos atrás dela. Os nervos de Christie estavam à flor da pele, e o coração batia num ritmo louco, acelerado. Ficou presa entre ele e a janela, e não queria se virar para encará-lo. Precisava de tempo para controlar as emoções, se não quisesse deixar à mostra a dor e a decepção nos olhos úmidos.
- Christie... - A voz era terna e vibrante, e as mãos dele tocaram-lhe os ombros quase num carinho, fazendo com que uma onda de calor lhe percorresse todo o corpo. - Vamos conversar de forma séria e sensata, sem nos ferirmos ou insultarmos o tempo todo.
Encontravam-se tão próximos que Christie sentiu uma vontade imensa de voltar-se e abraçá-lo. Cada fragmento de ódio ou ressentimento dentro dela havia desaparecido, como se nunca tivessem existido.
- Acho que nos esquecemos de como conversar civilizadamente.
- Se fizéssemos um esforço mútuo, eu tenho certeza de que conseguiríamos - John murmurou, trazendo-a para mais perto e deixando-a repousar as costas no peito largo e aconchegante. Uma emoção familiar surgiu dentro dela ao senti-lo respirando contra seus cabelos.
- Conseguiríamos? De verdade?
- Podíamos começar tentando ser honestos um com o outro.
- Existe uma coisa que preciso saber. - A voz dela estava um pouco hesitante quando se virou e o encarou. - Por que demonstrava tanto ódio por mim?
- Vê-la de novo após tantos anos trouxe de volta toda a raiva e a amargura do passado. - John sorriu ao acariciar-lhe o rosto com os dedos. Os olhos dele, entretanto, davam a estranha impressão de que não falava toda a verdade. - Também me fez perceber que eu ainda a queria muito.
O amor não foi mencionado; nunca fora. Estivera tão apaixonada por ele que tinha acreditado que John a amara, também. Agora sabia que o amor dele só existia em sua própria imaginação. Naquela época, havia dito "eu quero você", e em seguida fizera o pedido de casamento, sabendo que não existia outra forma de levá-la para cama. Dessa vez, o casamento não era necessário. John ainda a queria fisicamente, e na certa acreditava que poderiam fazer amor todas as vezes que quisesse.
Christie não gostou do nó que se formou na garganta. Virou-se antes que John visse as lágrimas que tentava conter desesperadamente.
- Venho pensando em falar com você desde que voltamos. É importante chegarmos a um acordo amigável sobre nosso futuro, mas eu tenho estado ocupado com palestras, debates e com a análise dos objetos encontrados. - Ele fez uma pausa, virou-a e perguntou, aborrecido; - Christie, você esta me ouvindo?
Ela soluçou convulsivamente, encontrando o olhar inquisidor dele.
- Estou, estou ouvindo.
Os olhos dele exploraram-lhe o rosto, demorando-se na boca inquieta, que tremia enquanto lutava para controlar os sentimentos. Continuava a acariciar com gentileza os cabelos castanhos que agora já chegavam até os ombros.
- Não corte os cabelos de novo, Chris.
Christie estava emocionada demais para falar, enquanto o toque dos dedos dele contra seu rosto produzia sensações deliciosas.
John a conhecia demais. Sabia exatamente como excitá-la. Se não se afastasse dele agora, estaria perdida. Colocou as mãos contra o tórax musculoso, mas, ao invés de empurrá-lo. deslizou os dedos por entre os botões da camisa e tocou os pêlos dourados do peito. O calor da pele de John provocou-lhe uma nova corrente de emoções que a deixou totalmente impotente. Ele baixou a cabeça e, de repente, Christie ansiava o contato daquela boca macia e quente. Os lábios dele roçavam-lhe a pele e seduziam-na, atraindo os dela como um ímã, numa troca de beijos ardentes. Um raio de lucidez invadiu-lhe a mente quando percebeu o desejo desenfreado entre ambos. Se esperasse muito, seria incapaz de controlar as próprias emoções. Naquele momento, estava certa de uma coisa; não queria esse tipo de relação sem compromisso.
- Não, John! - Chris ofegava, quando repeliu-o com força. - Se nós vamos começar um novo relacionamento, então acho melhor irmos com calma.
Ele pareceu momentaneamente assustado, e então perguntou com bom humor:
- Com quanta calma você espera ir?
Christie se sentiu dividida. A mente pensava de forma racional, mas o corpo parecia ter vontade própria, e não via sentido em adiar o que considerava natural. Mas a razão acabou vencendo a batalha.
- Gostaria que nós dois estivéssemos certos de que é isto que realmente queremos - disse, sem coragem de encará-lo.
- Sei muito bem o que quero, Chris. Quanto tempo vai levar para você também descobrir?
- Não sei... Por favor, John, me dê um tempo para pensar!
- Se precisa de um tempo, não vou forçá-la a tomar uma decisão precipitada. Mas não demore muito, está bem?
- Vou tentar.
A voz dela foi um sussurro, um desabafo, e lágrimas embaraçosas escorreram-lhe pelo rosto. Christie esperava receber um comentário irônico, mas, em vez disso, John enxugou-lhe a face com os dedos e depois beijou-lhe os lábios com suavidade.
- Te vejo amanhã à noite - ele prometeu, e, com a jaqueta sobre o ombro, saiu e fechou a porta.
CAPITULO VIII

A vida de Christie tomou novos caminhos nas semanas que se seguiram após a decisão de construir um novo relacionamento com John. Às vezes, ela chegava a acreditar que os poderes de Indlovukazi tinham resistido ao tempo para uni-los mais uma vez, como ela fizera com os medalhões de marfim. Talvez existisse realmente algo mágico neles. Era como se uma segunda chance lhe estivesse sendo dada, e cabia unicamente a ela tomar a decisão certa.
Christie encontrava John sempre que ele estava livre. Jantavam fora com freqüência e nos fins de semana iam ao teatro. Ela sabia que John tinha comprado uma casa num bairro elegante de Johannesburgo, mas nunca fora convidada para uma visita. Era como se existisse um acordo entre os dois: evitavam permanecer a sós em lugares onde poderia surgir algo mais forte ou íntimo no relacionamento. John concordara em respeitar-lhe o direito de tomar uma decisão e mantinha a palavra.
Era um período em que ambos queriam se conhecer melhor. Christie, porém, não precisou de muito tempo para descobrir que John não era o mesmo homem com quem havia se casado. Ele sempre demonstrava um certo cinismo, e isso a perturbava. Também haviam concordado em ser honestos um com o outro, mas nunca discutiam o passado ou as razões que haviam levado ao divórcio.
Christie tinha a sensação crescente de que era acusada de algo que sequer imaginava. Às vezes, encontrava John olhando para ela com uma expressão terrível nos olhos. Chegou a perguntar-lhe o que havia de errado, mas ele simplesmente sorria com cinismo e mudava de assunto. Esforçou-se para descobrir o suposto motivo da acusação, lembrando-se de cada momento vivido com ele, no passado e no relacionamento atual. Nada. O sentimento persistia, e acabava por torná-la frustrada e confusa.
A apreensão aumentava à medida que os dias passavam, como uma premonição de algo que estivesse por acontecer.
Certa noite, quando a campainha tocou, os temores de Chris foram confirmados.
- Sammy! - ela exclamou, olhando para o homem encorpado e calvo à sua frente. - É uma surpresa vê-lo aqui.
- Acha mesmo? - Ele sorriu ao entrar, com uma expressão crítica nos olhos. - Como diz o velho ditado; se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.
- Sinto muito, Sammy. Ultimamente ando muito ocupada.
- Esteve ocupada demais para visitar um velho amigo, mas não para jantar e ir ao teatro com seu ex-marido...
- Como descobriu sobre John? - ela perguntou surpresa.
- Contatos, querida, contatos... - E tornou a sorrir, triunfante, acendendo um de seus charutos favoritos. - Eu tenho muitos contatos nesta cidade e você sabe como as pessoas falam com facilidade...
Sim, ela sabia disso, e, apesar de não ter escondido o fato de que se encontrava com John, ficou aborrecida pela informação ter chegado até Sammy.
- Gostaria que as pessoas cuidassem de suas próprias vidas!
- Não fique nervosa, meu bem. Também ouvi rumores de que John Venniker era o líder da expedição à qual você se juntou.
- É verdade. - Christie já se acostumara àquele tipo de jogo, mas, dessa vez, foi pega de surpresa.
- Sabia disso quando se candidatou ao emprego?
Christie começou a ficar irritada. Já era a segunda vez em pouco tempo que alguém insinuava que ela sabia da presença de John na expedição, e tornava-se difícil agüentar tal desconfiança.
- Não, não sabia.
- Posso acreditar em você, Chris?
Havia sido fácil engolir a descrença de Sonia, mas a de Sammy era insuportável.
- Já menti para você, Sammy?
- Não, que eu possa me lembrar, meu bem - ele disse, tirando o charuto da boca e limpando os lábios com um lenço. - Mas sempre existe a primeira vez.
- Eu tinha certeza de que John ainda se encontrava fora do país, até vê-lo no campus da universidade! É a pura verdade e, se não quer acreditar, é problema seu!
- Está ficando nervosa de novo, mas até gosto quando esse nervosismo faz seus olhos brilharem, como acontecia no palco. Era tão cheia de vida cantando, que agora fico frustrado em ver que você simplesmente vegeta.
Christie segurou o riso diante do exagero.
- Eu estou muito bem assim.
- Ainda mais agora com John Venniker de volta, não é mesmo?
- Não quero discutir o assunto com você.
- Não seja tola de novo, querida. - Sammy riu. - Ele não é o homem ideal para você, e não vai pensar duas vezes para te abandonar de novo.
- Acho que cabe a mim decidir se devo ou não arriscar.
- Você não pensa seriamente em voltar para ele, pensa?
Christie se sentiu envergonhada por estar se divertindo às custas da aflição de Sammy, e respondeu com calma:
- Estou.
- Meu Deus! - ele exclamou, com a mão na testa. - Como você pode fazer isso comigo!
- O que você quer dizer, Sammy?
- Vai se prender outra vez a um homem que não sabe apreciar a arte... Ele tentará convencê-la a reprimir esse dom maravilhoso que Deus lhe deu.
"Fique calma", Christie disse a si mesma. Aquela declaração falsa e injusta a tinha deixado ainda mais furiosa. Não se lembrava de uma única ocasião em que Sammy dissera algo amável sobre John, mas também nunca expressara tão abertamente tamanha hostilidade por ele.
- John não teve nada a ver com a interrupção da minha carreira como cantora, se é isso que você quer dizer - ela falou em defesa do homem que amava. - Eu resolvi parar há três anos, e minha decisão não foi influenciada por ninguém em particular.
- Foi um erro.
- Eu não estou bem certa disso - ela murmurou, interrompendo a conversa para ir fazer café.
Ficar sozinha por alguns instantes era reconfortante, Sammy sempre fora prepotente, e ela nunca saía de um encontro com ele sem se sentir exausta. Conhecia Sammy o suficiente para saber que havia um novo contrato no bolso do paletó, e que, num dado momento, ele o apresentaria da forma mais dramática possível.
Christie levou a bandeja com café para a sala, e, enquanto o servia, fez o possível para que a conversa não tomasse o rumo que temia. Conseguiu, mas somente até Sammy terminar de bebê-lo.
- Christie, eu tenho alguma coisa para você. - Ele colocou a xícara vazia na mesinha, determinado, - Trata-se da grande oportunidade de sua vida.
Ela fez um gesto com as mãos, como se tentando afastar o inevitável.
- Se é outro contrato, eu não...
- Parece que leu meus pensamentos, querida - Sammy interrompeu-a, deixando o charuto no cinzeiro para tirar o documento do bolso do paletó cinza - Dessa vez, quero que preste muita atenção.
- Sammy, eu não estou...
- Espere eu terminar de explicar antes de recusá-lo logo de cara. Não existe mal nenhum em escutar, existe?
Não faria diferença se ela concordasse ou não com aquele teimoso e Christie não teve outro jeito, senão ceder.
- Vá em frente.
- O que eu tenho aqui é um contrato para a gravação de um disco anual nos próximos três anos. Agora, me diga sinceramente: é ou não é um bom negócio?
Havia alguma armadilha atrás daquilo. Sempre havia. Gravar um disco por ano não lhe tomaria muito tempo, mas uma coisa sempre levava a outra e, antes que pudesse evitar, se encontraria presa a uma série de compromissos.
- E a minha aparência pessoal?
- Poderá aparecer como quiser, e as turnês só serão marcadas com o seu consentimento.
Christie reagiu com desconfiança.
- Você disse a mesma coisa antes e, quando eu lhe pedi para cancelar aquela turnê para que eu pudesse acompanhar meu marido numa viagem, você se recusou e me mostrou uma cláusula que eu não tinha entendido ao assinar o contrato.
- Dessa vez vai ser diferente.
- É mesmo? - ela riu com ironia.
- Claro, meu bem - Sammy assegurou, inclinando-se para depositar o documento nas mãos dela. - Aqui está o contrato, dê uma boa olhada, leve ao seu advogado e então veja se vai aceitar ou recusar. Mas lembre-se de que oportunidades como esta só aparecem uma vez na vida.
Christie apanhou o contrato, esforçando-se para não jogá-lo na lata do lixo. Sabia que Sammy Peterson não a deixaria em paz se ela não prometesse, ao menos, ler o documento antes de rejeitá-lo.
- Vou ler, mas não prometo nada.
- Ótimo - ele sorriu, esfregando as mãos, satisfeito, como se Chris já tivesse concordado. - Sabia que você ainda tinha um pouquinho de juízo.
A campainha tocou pela segunda vez naquela noite, e Christie estremeceu. Aquele pressentimento de que algo estava para acontecer tornou-se ainda mais forte.
- Com licença - disse, deixando o documento de lado e se levantando.
Caminhou com dificuldade até a porta, como se sentindo o perigo de perto. Era John... não havia dúvida. Sabia, por experiências anteriores, que colocar aqueles dois homens no mesmo lugar seria desastroso. As mãos tremiam quando abriu a porta. Como tinha previsto, era realmente John.
- Eu não estava esperando você esta noite. - Chris sorriu, um tanto sem jeito.
John viu que ela não se encontrava sozinha, e perguntou com frieza:
- Atrapalho vocês dois?
- Não, claro que não - Christie assegurou depressa, puxando-o pelo braço. - Gostei de vê-lo.
Aquelas palavras eram a pura verdade. Chris esperava que a presença de John a ajudasse convencer Sammy de que não se interessava mais em ser uma cantora profissional. Contava também com que Sammy fosse embora antes que algo mais sério pudesse acontecer.
- Ah, professor Venniker! - Sammy se levantou sorrindo. - Agora que voltou ao país, era inevitável que nos encontrássemos novamente.
- Nunca me ocorreu que nos veríamos de novo - John respondeu com aspereza ao comentário irônico de Sammy. - Mas me esqueci de que continuaria se aproveitando do talento de Christie a todo custo.
Ela tentou acalmar o clima de tensão crescente entre os dois, pousando a mão no braço de John.
- John, por favor, não torne as coisas...
- Acho que comete um grande equívoco, professor Venniker - Sammy interrompeu-o bruscamente: - Se não fosse por mim, artistas com o talento de Christie acabariam desperdiçando a carreira em ambientes onde o valor artístico não é apreciado. E você é uma dessas pobres pessoas que não têm a menor sensibilidade para reconhecer o óbvio.
- Sammy! - Christie ficou chocada e revoltada com aquele insulto deliberado.
- Eu sei apreciar talento - John respondeu numa voz controlada, glacial. - Entretanto, não suporto os sanguessugas, que negam a Christie o direito de escolher a própria vida.
- Está me chamando de sanguessuga? - Sammy gritou, tirando o charuto da boca. - Eu? Sammy Peterson?
- Vocês dois parem com isso! - Christie tentou interferir, colocando-se entre eles, mas John a afastou.
- Sim, você não passa de um parasita - John continuou com a voz controlada. - Quer arrancar tudo de Christie, até ela não poder lhe oferecer mais nada e, quando chegar o momento, não hesitará em arruinar-lhe a vida.
- Arruinar-lhe a vida? - Sammy explodiu.
Christie pôde ver as veias saltando-lhe perigosamente na testa.
- Por favor, Sammy! - ela implorou, preocupando-se com a saúde dele.
- Eu a tirei de um barzinho insignificante, onde cantava todas as noites por uma ninharia, e a transformei numa das melhores cantoras que esse país já conheceu. Então você apareceu para estragar-lhe a vida com seu egoísmo.
- Sammy... John... - Christie fez uma última e desesperada tentativa de acabar com a discussão. - Querem parar com isso?
- Todo homem tem o direito de ser egoísta quando seu casamento está em jogo, e, considerando os fatos, acho até que fui muito tolerante. Christie e eu ficamos casados por seis meses, mas, se fosse juntar os dias que passamos juntos, não daria mais que três meses.
Christie se chocou com os cálculos de John. Ela nunca havia pensado daquela forma, mas era verdade. Podiam ter sido casados por seis meses, mas não passaram mais de três meses juntos. Tratava-se de uma descoberta alarmante...
- E tenho alguma culpa se suas carreiras seguiam por caminhos diferentes?
- Não, não tem culpa, mas poderia ter facilitado a situação.
Os dois homens se enfrentavam como lutadores numa arena.
John era fisicamente superior, Sammy mais esperto e perigoso, sabia como e onde ferir, e não hesitaria em fazê-lo.
- Se o casamento de vocês não deu certo, não tive nada com isso - Sammy acusou.
- Ora, cale a boca. - John se controlava para não atacar o outro homem.
Desesperada, Christie presenciava a troca de insultos, sem saber o desfecho daquela situação absurda.
- Sempre fiz o melhor para Christie e para a carreira dela - Sammy se defendeu.
- Fez mesmo? - John provocou.
Sammy ignorou-o e virou-se para encará-la.
- Eu não cuidei de você sempre? E agora, não acabei de assegurar-lhe o melhor contrato desde que o último terminou há três anos, querida?
- Contrato? - John pronunciou a palavra com asco, como se fosse algo repugnante.
- John... - ela começou, tentando, desesperadamente, explicar, mas não conseguiu encontrar as palavras certas.
- Leia! - Sammy estendeu o documento a John. - É uma oportunidade que Chris não pode perder, e, desta vez, a carreira dela terá um sucesso ainda maior do que antes.
Christie se sentiu prisioneira de um medo paralisante. Sammy distorcia os fatos, fazendo parecer que ela já tinha concordado em assinar o contrato. Quando encontrou o olhar acusador de John, teve a certeza terrível de que ele pensava exatamente o que Sammy queria que pensasse.
- Não quero ler coisa alguma! - John gritou, colocando o papel na mão de Sammy.
- John, eu... - De novo não conseguiu dizer nada. O ex-marido silenciou-a bruscamente com um gesto.
- Pelo jeito, cheguei no meio de uma discussão de negócios que não me diz respeito - ele disse e, virando-se para a porta, se despediu: - Boa noite.
O corpo trêmulo e entorpecido de Christie de repente reagiu, e ela se agarrou ao braço de John, tentando detê-lo.
- John, você não entende, eu...
- Esqueça, Christie! - ele gritou furioso, repelindo-a com impaciência. - Uma vez já fiquei em segundo lugar na sua vida e não pretendo que aconteça de novo.
John saiu batendo a porta. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer. Era como se tivesse assistido de novo à cena acontecida há mais de cinco anos.
- Precisava mostrar aquele contrato, Sammy? - perguntou aborrecida ao homem que a observava, triunfante. - Você tinha que mencioná-lo?!
- Era a melhor maneira de julgar o caráter dele, querida. Se John se preocupasse com você, ficaria feliz e satisfeito com sua carreira, mas, em vez disso, só pensou em si próprio.
- Oh, céus! - ela se lamentou, desabando numa cadeira escondendo o rosto pálido com as mãos. Se ao menos John tivesse lhe dado uma chance de esclarecer o mal-entendido...
- Não disse que ele era egoísta? - Sammy interrompeu-lhe os pensamentos com um comentário que ela ignorou. John podia ser acusado de muitas coisas, menos de egoísta.
- Ele nem me deixou explicar - Chris murmurou desconsolada, baixando as mãos e recostando-se à cadeira.
- Explicar o quê, meu bem?
Ela olhou para o rosto sorridente de Sammy e viu uma insensibilidade que nunca percebera antes. Sempre tinha imaginado que o agente se preocupava com ela como pessoa, mas estava começando a suspeitar de que havia uma verdade maior no que John dissera. Na certa, ele conhecia Sammy melhor do que ela. Desde o começo, só enxergava o que queria enxergar, e agora era tarde demais. "Tarde demais". As palavras injetaram-lhe ódio nas veias, deixando-a firme e decidida.
- Não vou assinar esse contrato, Sammy. - Apanhou o documento do chão e atirou-o nas mãos dele. - Não quero nem lê-lo.
- Meu bem, não seja precipitada - Sammy aconselhou, num tom paternal que só lhe aumentou a raiva. - Pense bastante e depois me dê uma resposta.
- Estou dando a resposta agora.
- Imagine... - Pessoas como Sammy nunca se davam por vencidas. - Vou deixar o contrato com você - ele concluiu, colocando o documento sobre a mesinha, e caminhando depressa para a porta.
- Nada disso! - ela explodiu, amassando e arremessando o contrato, que passou a poucos centímetros da cabeça dele, chocando-se contra a porta.
Sammy virou para encará-la com os olhos arregalados, incertos. Christie sabia que esse era um lado dela que ele nunca havia conhecido. Sempre fora gentil e fácil de ser manipulada.
- Não quero seu maldito contrato!
- Faça-me um favor, Christie - Sammy disse com delicadeza, apanhando o papel sobre o carpete e o desamassando. - Apenas leia, e eu lhe telefono daqui a alguns dias.
Ele colocou o documento na estante ao lado da porta e saiu, deixando-a finalmente sozinha.
Christie começou a tremer. Tremia tanto que teve dificuldade em fechar a porta e desusar o trinco de segurança. Nunca estivera tão furiosa e desapontada como agora. Sammy insultara John, colocando uma barreira entre ela e o homem que amava. John por sua vez devia ter lhe dado uma chance de se explicar. Em vez disso, chegara à conclusão errada, sem ao menos ouvi-la! Naquele momento desprezava tanto a Sammy quanto a John.
Quando foi dormir, ela ainda fervia de ódio. Ao apagar a luz, o ódio deu lugar à depressão, e ela se sentiu sozinha e miserável. Tinha que pensar, decidir o que fazer da vida, e precisava tomar uma atitude sem ser influenciada pelas emoções. Entretanto, a mente confusa e a indecisão deixaram-na sem sono até o amanhecer do dia seguinte.
CAPÍTULO IX

Dennis apareceu no apartamento de Christie uma semana depois e ficou chocado ao vê-la Pálida e com olheiras, ela o convidou a entrar. O rapaz seguiu-a até a cozinha para fazerem café. Chris ficou feliz com a visita, porque era alguém para conversar e dar risadas, mesmo que a vontade só fosse chorar.
Percebeu que Dennis seguia com atenção cada um de seus movimentos, mas não se surpreendeu. Apesar do uso de bastante maquilagem, não podia disfarçar o cansaço das noites em claro.
- Você esteve doente? - ele perguntou finalmente.
- Não, não estive. Não consigo dormir direito, só isso.
- Alguma coisa te preocupa?
- Nada em especial - ela respondeu sem muita convicção.
- Chris... - Dennis começou a falar enquanto ela servia o café -...Acho que às vezes conversar com um amigo ajuda. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. Entretanto, as feições delicadas tornaram-se sombrias e os olhos refletiram um profundo sofrimento. - Acho que preciso mesmo conversar com alguém, se não quiser enlouquecer.
- Vamos levar o café para a sala e então você me conta tudo - o jovem sugeriu, dando-lhe passagem.
Christie não queria importunar ninguém com seus problemas, muito menos Dennis, mas precisava desabafar e sentiu que podia confiar nele. Na sala, viu-se contando tudo desde a primeira vez que se encontrara com John, sem conseguir omitir nada, na tentativa de aliviar um pouco a dor. Se esperava que Dennis ficasse chocado ao descobrir que fora casada com John, se enganou. Ele recebeu a notícia com naturalidade, encorajando-a a continuar até contar sobre a discussão entre Sammy e John na semana anterior.
Dennis ficou pensativo e silencioso por alguns segundos e. então, perguntou:
- Você culpa o professor por pensar que ia assinar o contrato?
- Não, mas eu o culpo por não ter me dado nenhuma chance de explicar o que estava acontecendo.
- Talvez ele tenha tanto medo de ser magoado quanto você.
- Pode ser - ela concordou, refletindo sobre tal possibilidade. - Me sinto confusa, e não sei o que fazer.
- Já pensou em procurá-lo e explicar tudo?
- Telefonei para ele três vezes, mas nunca o encontrei em casa. Deixei um recado, pedindo que entrasse em contato comigo, e nada. Acho que já fiz o bastante, uma vez que ele estava errado por tirar conclusões precipitadas.
- Parece-me que o professor é orgulhoso e você também. Um de vocês terá que ultrapassar esse obstáculo, e esse alguém vai ter que ser você, Chris.
- E eu não tentei?
- Talvez não o suficiente, minha amiga. Eu acho que você e o professor não foram muito honestos um com o outro e, se o ama realmente, não pode deixar o orgulho se transformar num empecilho. - Os olhos verdes de Dennis encararam-na com desafio. - Precisa procurá-lo e esclarecer esse mal-entendido.
Christie chegara à mesma conclusão durante aquelas noites em claro, mas o medo e a insegurança fizeram-na desistir da idéia.
- E se ele me rejeitar?
- E se não rejeitar? Você poderia viver com a incerteza? Poderia suportar a idéia de que nem chegou a tentar?
Ela refletiu por um momento e teve de admitir que Dennis estava certo.
- O que você diz faz sentido, meu amigo, mas não acaba com meu medo.
- Se você deseja realmente alguma coisa, precisa vencer muitos obstáculos para consegui-la. Quanto você quer ao professor?
Christie não conseguiu responder à pergunta imediatamente. Dennis tinha feito uma pergunta que ela não tivera coragem de colocar a si mesma naqueles dias angustiantes. Agora era forçada a buscar uma resposta no fundo da alma.
- Eu o quero tanto que abandonei minha carreira há três anos, porque ela não significava nada sem ele. Eu sempre esperei que algum dia... de alguma forma... John voltasse para mim - disse por fim, sem conseguir conter o choro.
- Se você teve coragem de abandonar a carreira, não terá problemas para vencer o orgulho e o medo de enfrentá-lo.
Christie fitou-o com os olhos turvados de lágrimas. Era estranho como tudo voltava ao seu devido lugar. Fora preciso que alguém como Dennis a ajudasse a colocar as idéias em ordem e a fizesse perceber que a iniciativa precisava partir dela. Se John a rejeitasse, pelo menos teria o consolo de saber que havia tentado. No entanto, enquanto existisse uma chance de ele aceitar a explicação, haveria esperanças.
- Obrigada - ela murmurou quando Dennis se levantou para ir embora, e beijou-o no rosto.
Ele ficou bastante surpreso.
- Por que você está me agradecendo?
- Por tudo, mas, principalmente, por você ser meu amigo.
- Chris, me sinto envaidecido pela sua amizade. Mas gostaria que pensasse em só mais uma coisinha: será que deixar a carreira foi uma boa solução? Pelo que me consta, o professor não é o tipo de homem capaz de exigir isso de uma mulher. - Dennis sorriu e, antes de sair, acrescentou: - Pense muito nesse fato, por favor.
Christie foi deixada sozinha com muitas coisas para pensar. Quando John a deixara, cinco anos atrás, ela não teve escolha senão conformar-se. Dessa vez, entretanto, podia fazer algo. Devia procurá-lo e explicar que não tivera a intenção de assinar o contrato. Independentemente do que ele sentia por ela, tinha que contar-lhe que o amava.
Estava disposta a procurar John antes que a coragem a abandonasse. Eram oito e quinze, ainda havia tempo para ir até a casa dele, mas ela hesitou. O orgulho encontrou uma lista de fatores desfavoráveis, e Chris gastou alguns minutos lutando contra si mesma, enquanto lavava as xícaras de café. Tinha que ver John, salvar o relacionamento antes que fosse tarde demais...
Entrou no quarto, apressada para vestir um casaco e retocar a maquilagem. Explicar a John sobre o contrato ia ser fácil, mas para dizer-lhe que o amava ela precisaria de muita coragem.
Os dedos brincavam inconscientemente com o pingente de ouro sob o pescoço, e os olhos estavam fixos no espelho, quando uma idéia incrível passou-lhe pela mente. Os medalhões de marfim! Ela os levaria, e se desse a John o disco com a figura de uma mulher no centro, ele saberia o que tentava dizer.
A excitação aumentou-lhe a coragem e, com o saquinho de veludo azul no bolso do casaco, Christie deixou o apartamento e foi até a garagem onde o Porsche estava estacionado. Dirigiu pelas ruas bem iluminadas em direção ao bairro onde ele morava. Sabia o endereço, mas encontrar a casa em meio a tantas outras deixou-a concentrada e sem tempo para pensar no que ia dizer.
Decidiu estacionar diante do portão e caminhou até a entrada principal. Do jardim avistou um carro que não pertencia a John. Hesitou. Talvez devesse ter telefonado antes de aparecer de surpresa.
A indecisão fê-la parar nos pés da escada. Viera de tão longe para perder a viagem? Não sabia se ia ter coragem de voltar outro dia. Não... já havia perdido tempo demais, e não desperdiçaria um minuto sequer.
Christie subiu os seis degraus com o coração batendo num ritmo acelerado. As mãos tremiam quando apertou a campainha. Alguns segundos depois, um criado atendia.
- Eu gostaria de falar com o professor Venniker - ela anunciou.
Foi conduzida pelo hall espaçoso e carpetado, subiu por uma escada à direita e viu-se diante de uma porta entreaberta. O empregado bateu e entrou na sala.
- Uma moça deseja vê-lo, senhor.
Tremia nervosa, quando juntou toda a coragem e entrou. Entretanto, o choque deixou-a paralisada.
Sonia Deacon estava encostada à estante de livros do escritório, e John se encontrava próximo a ela, com um ar de irritação no rosto, como se a intromissão inesperada o aborrecesse. Christie sentiu uma dor tão intensa que mal pôde conter as lágrimas.
- Parece-me, querido, que você pode esquecer aquela noite calma e tranqüila que tanto desejava - Sonia quebrou o silêncio, repousando a mão no braço dele, como se quisesse dizer "ele é meu, não se esqueça".
- O que eu posso fazer por você? - John perguntou, com a voz fria e impessoal, como se falasse com uma estranha.
Christie tentou responder, mas nenhum som saiu dos seus lábios, e John dirigiu-lhe uma risada irônica.
- Você vai ficar aí parada a noite toda, sem me explicar por que invadiu minha casa?
Aquilo só podia ser um pesadelo, Christie pensou. No fundo de sua alma, sentiu uma porta se fechar definitivamente.
- Eu... eu esperava poder conversar com você sobre algo importante, mas... mas...
Sonia encarou-a com uma expressão inocente, que não disfarçava o brilho perigoso do olhar.
- Se estou atrapalhando, posso deixá-los a sós por um instante.
- Não será necessário - Christie disse.
- Bem, já que você insiste...
A única coisa que Chris queria naquele momento era sair dali o mais rápido possível. Entretanto, ainda precisava fazer uma coisa que tinha se prometido. Com um sorriso desajeitado, apanhou o saquinho de veludo no bolso do casaco e estendeu-o a John.
- Isto pertence a você. - Como ele não se movesse, Chris deixou o saquinho sobre a mesa, abandonando o que restava das esperanças e sonhos. - Adeus... e boa sorte - acrescentou. Depois virou-se e saiu.
Os passos precipitados de Christie no hall foram abafados pelo carpete, e ela estava fora de si quando bateu a porta e correu pelo jardim na escuridão. Os dedos tremiam tanto que levaram um bom tempo até ligar o motor do carro. Depois de dada a partida, arrancou a toda velocidade.
Ele mentira sobre Sonia! Esse pensamento torturava-lhe a mente enquanto dirigia com os olhos cheios de lágrimas. Ele mentira, e a fizera acreditar que havia uma chance de reconstituírem a vida em comum. Quanta ingenuidade...
A luz vermelha do semáforo a deteve num cruzamento, e Christie esperou impaciente enquanto um ódio profundo se apoderava dela, substituindo a dor. Nunca mais John teria a oportunidade de humilhá-la. Nunca mais.
O sinal mudou para verde e ela pisou no acelerador. Subitamente apareceu outro veículo atravessando a pista, da esquerda para a direita. Percebeu os faróis piscando à sua frente, mas os reflexos estavam retardados e o Porsche acabou colidindo com o outro carro.
Na ânsia de se afastar da casa de John, ela havia esquecido de colocar o cinto de segurança, e o impacto a arremessou contra o volante. De repente, tudo escureceu.
Christie só recobrou a consciência na manhã seguinte. Olhou assustada ao redor, percebendo que se encontrava num hospital. A principio, não conseguiu entender por que estava lá, e então recordou-se do acidente. Tivera um sonho no qual John segurava-lhe a mão ao lado da cama. Podia lembrar-se do rosto pálido e apreensivo dele, mas agora não havia ninguém no quarto, nem mesmo uma cadeira junto à cama. Aquela imagem só podia ter sido obra do seu subconsciente. Afinal, era difícil apagar da mente o homem que amava.
- Bom dia, senhora Venniker - uma voz alegre e animada a saudou, e ela olhou espantada para a enfermeira que se aproximava.
"Senhora Venniker"? O que significava aquilo?
- Como se sente esta manhã? - a enfermeira perguntou.
- Sinto dores por todo o corpo e minha cabeça está latejando.
- São os sintomas esperados, mas que vão passar em alguns dias - a enfermeira lhe assegurou, enquanto media a sua pressão.
- Não quebrei nada, quebrei?
- Você está com um pequeno corte na testa e algumas contusões que podem incomodar nos próximos dias.
Um termômetro foi colocado na boca de Christie, impedindo-a de falar, enquanto seu pulso era checado.
- Quando vou poder voltar para casa? - ela perguntou quando o termômetro foi retirado da boca.
- Daqui um ou dois dias, talvez. O médico quer ter certeza de que estará novinha em folha quando sair do hospital.
Christie levou a mão à testa, apalpando os curativos. A cabeça ainda doía bastante, mas, no momento, ela se ocupava com outra coisa.
- O que aconteceu às pessoas do outro carro?
- Só havia o motorista, que, felizmente, saiu sem nenhum arranhão. Seu marido disse para não se preocupar com o carro, ele vai cuidar de tudo.
- Meu... marido?
- Passou a noite toda do seu lado, e, se não tivesse insistido com ele para que fosse para casa descansar um pouco, ainda estaria aqui.
- Meu marido? - ela perguntou de novo, estarrecida.
- Sim, querida. - A mulher sorriu, paciente. - O professor Venniker.
- Oh, meu Deus!
Não fora sonho ou alucinação. John estivera sentado ao lado dela, pálido e apreensivo, a noite toda. Mas por quê?
- Você não está com amnésia, está? - a enfermeira brincou.
Alguma coisa explodiu dentro de Christie, levando-a a uma reação quase histérica.
- Se ele vier novamente, não quero vê-lo! Por favor, não o deixe entrar.
- Mas ele...
- Eu não quero vê-lo! - Chris sentiu uma dor intensa ao se inclinar para a frente. - Já disse que não quero vê-lo!
- Agora se acalme, meu bem - a enfermeira aconselhou, com as mãos nos ombros de Christie, para fazê-la encostar no travesseiro. - Não pode se aborrecer desse jeito.
- Não quero, não quero - Christie repetiu desesperada, afastando as mãos da enfermeira. Sofrera bastante por causa de John, e não seria humilhada de novo.
- Não vai vê-lo, se é isso o que deseja. Você tem a minha palavra - a enfermeira assegurou-lhe com calma, e Chris, finalmente, se recostou ao travesseiro.
- Gostaria de ter morrido! - ela se lamentou, e então rompeu num pranto aflito, entremeado de soluços.
A enfermeira aplicou-lhe um calmante. Minutos depois, Christie dormia profundamente.
Acordou depois de algumas horas. A cabeça estava mais leve, mas a mente continuava apreensiva até a enfermeira assegurar-lhe que John não entraria no quarto. Só então Chris ficou mais calma. Adormeceu de novo, só despertando à noite, para uma refeição ligeira. Depois de comer um pouco, voltou a dormir.
Christie acordou na manhã do segundo dia no hospital e viu ao seu lado a enfermeira que a examinara pela primeira vez.
- Sente-se melhor esta manhã, senhora Venniker?
Christie estava a ponto de protestar contra o "senhora Venniker", quando se deu conta do esforço que levaria para explicar sua situação.
- Muito melhor, obrigada.
- Você me deu um susto ontem de manhã, e eu tive que lhe aplicar um sedativo para acalmá-la - a mulher disse, enquanto lhe ajeitava as cobertas. - O médico vai vê-la daqui a pouco.
- Quero ir para casa. Você acha que ele vai me dar alta?
- Talvez, mas tenho um palpite que ele vai mantê-la aqui por outra noite.
A enfermeira não havia se enganado. Apesar de Christie insistir que já estava bem, o médico foi intransigente em afirmar que só lhe daria alta na manhã seguinte. Ela podia levantar e sentar numa cadeira, mas precisava ficar mais um tempo em observação.
Não adiantava discutir. Christie passou o dia folheando revistas em meio ao tédio. Encontrava-se num quarto para dois pacientes, mas a outra cama estava desocupada. Queria ficar sozinha, precisava pensar, mas a mente se afastava de tudo que causasse dor.
À noite, quando já havia se acomodado para dormir, uma voz familiar soou na porta:
- Posso entrar?
- Dennis! - Ela não pôde esconder a alegria de ter alguém com quem passar o tempo. - Puxe uma cadeira e sente-se!
O amigo a saudou com um sorriso simpático e com uma rosa branca nas mãos.
- Hum... Você não parece ter passado por uma trombada... Está com uma aparência ótima.
- É mesmo? - Chris aceitou o presente, aspirando o perfume da flor. - Você não acha que fiquei muito abatida?
- Está encantadora, Chris!
- Você quer é me deixar animada. - Ela sorriu bem-humorada.
- Naturalmente. - O jovem riu, puxando a cadeira para mais perto e se sentando. - Há um cartaz na entrada do hospital dizendo que os visitantes devem animar os pacientes.
- É sério?
- Não acredita em mim?
Christie riu quando o amigo tentou parecer ofendido.
- Não, eu não acredito.
- Garota prudente... Mas acredite: mesmo nessa roupa de hospital você está encantadora.
Ela olhou para o traje pouco atraente que usava, pensativa. Depois fitou o amigo de novo.
- Como você soube que eu estava aqui?
- O professor me contou; ele está muito preocupado com você.
- Está? - Chris se esforçou para dar um tom indiferente à voz. Evitou o olhar de Dennis e colocou a rosa num copo de água.
- Por que não quer vê-lo, Christie?
Ela tentou fugir do assunto, mas Dennis sabia ser persistente.
- Chris... olhe para mim. Eu fiz uma pergunta.
- Está bem. - Ela deu um suspiro. - John mentiu para mim sobre Sonia. Disse que tinha terminado o relacionamento com ela, mas a encontrei na casa dele quando fui procurá-lo. E John não me pareceu nada infeliz com a companhia...
Dennis franziu a testa.
- Você pode estar enganada.
- Duvido muito.
- Poderia existir uma razão totalmente diferente para Sonia estar lá naquela noite. O mínimo que pode fazer é dar ao professor uma chance de se explicar.
- Ele precisa aliviar a consciência pesada?
- Dê uma chance a ele, Christie.
- Sinto muito, Dennis, não posso fazer isso - ela respondeu com frieza. - Portanto, pode voltar e dizer ao "mestre" que falhou na missão.
- Ele não sabe que estou aqui.
Houve um silêncio desagradável enquanto Christie considerava tal informação.
- Desculpe, Dennis, isso não foi muito gentil de minha parte - ela acabou admitindo. - Não pude deixar de pensar que você tinha vindo aqui a pedido dele.
- O professor pode cuidar de seus próprios interesses. - Dennis disse com severidade e então acrescentou, sorrindo: - Mas eu achei que podia abrir o caminho para ele.
Christie encarou-o sem dizer nada por alguns segundos.
- Espero que John perceba que amigo maravilhoso ele tem - disse depois.
- Eu sou seu amigo também, Christie, - Dennis se inclinou e beijou-lhe o rosto. - Não se esqueça disso.
Um calor surgiu-lhe no peito pela primeira vez desde o acidente e, quando se viu sozinha, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Christie enxugou-as, furiosa. Não haveria mais lágrimas, não para John Venniker. Pela segunda vez na vida fora magoada por ele, mas isso não aconteceria novamente. Nenhum homem merecia tanto sofrimento.
CAPÍTULO X
Era bom voltar ao lar, mesmo sendo um apartamento vazio como aquele, e Christie suspirou satisfeita. Suas contusões ainda estavam doloridas, e o corte na testa latejava. Por isso, resolveu ficar na cama a maior parte do dia. Tentou ler, porém não conseguia se concentrar.
À noite, apesar de não estar com fome, preparou uma omelete com torradas, e forçou-se a sentar e comer. Assistiu um pouco de televisão, e foi tomar um banho antes de ir dormir. O jato quente de água pareceu aliviar-lhe a tensão nos músculos, e, após a ducha, sentiu-se mais tranqüila. A camisola de seda assentava-lhe bem melhor do que a roupa de hospital, e uma toalha de rosto deixou-lhe os cabelos praticamente secos.
Christie pretendia ir cedo para a cama, mesmo sabendo que não seria fácil dormir. O espelho captava um rosto pálido e cansado, e os olhos refletiam a dor e o sofrimento da alma. Conseguira sobreviver uma vez, e conseguiria novamente, disse a si mesma.
A campainha tocou, deixando-a irritada. Se fosse Sammy, não poderia ter aparecido num momento pior. Não se encontrava disposta a ouvir sobre contratos ou inventar uma desculpa qualquer para não assiná-los.
Atravessou a sala de estar e abriu a porta até onde o fecho de segurança permitia. O homem que ali estava não era Sammy.
Era John. O rosto se mostrava cansado, mas cheio de determinação.
- Abra, Christie, quero falar com você.
- Vá embora! - ela gritou, batendo-lhe a porta na cara e trancando-a, mas a campainha voltou a tocar, com mais insistência do que antes. O som agudo abalou-lhe os nervos, levando-a ao desespero. Abriu a porta novamente. - Quer fazer o favor de ir embora?
- Vou ficar tocando a campainha a noite inteira, se não me deixar entrar - ele ameaçou, mostrando que não brincava.
- Você é um... - ela engoliu o palavrão e soltou o trinco de segurança.
A porta foi escancarada e John se precipitou sala adentro.
- Nós dois temos explicações a nos dar, e algumas delas têm sido adiadas há muito tempo - anunciou, lançando-lhe um olhar ameaçador.
- Talvez esteja certo - Chris concordou, furiosa. - Pode começar me explicando por que eu fui admitida no hospital como "senhora Venniker", e como teve a ousadia de lhes dizer que era meu marido.
- Eles não me deixariam ficar com você a noite toda se eu não dissesse que era seu marido - John explicou, tirando o casaco e atirando-o na cadeira, como se pretendesse ficar por um bom tempo.
- Pensou que ficar comigo aliviaria sua consciência pesada?
- Se quer saber a verdade, me senti muito culpado por saber que poderia ter evitado o acidente se não fosse tão idiota. Você saiu de minha casa tão nervosa que eu a segui em meu carro, e me encontrava um pouco atrás de você quando aconteceu a colisão, Christie, você poderia ter morrido!
- Eu gostaria de ter morrido!
- Não diga isso! - A voz rouca e estranha repreendeu-a bruscamente - Eu gostaria de lhe explicar sobre Sonia.
- Explicar o quê? Você mentiu para mim, e isso não precisa de explicação.
- Ela não foi à minha casa naquela noite a meu convite. Ela havia ganho dois ingressos para o teatro, e queria que eu a acompanhasse, mas recusei. Eu lhe ofereci um drinque e Sonia já estava de saída quando você chegou.
Parecia uma explicação convincente, e ele também parecia sincero, mas, mesmo assim, Christie sabia que precisava ser cautelosa.
- Será que eu posso acreditar nisso?
- Se o nosso relacionamento significa algo para você, então tem que acreditar. Agora é a sua vez.
- Minha vez?
- Quero saber sobre o contrato que Sammy Peterson esfregou no meu nariz com tanta arrogância.
Christie estava nervosa e magoada demais para ceder ao que ele pedia; a mente se recusava a tocar na ferida. Entretanto, alguma coisa lhe dizia para não desperdiçar aquela última chance.
- Eu não o assinei.
- Isso não explica nada.
- Não o assinei porque nunca tive a intenção de assiná-lo - ela tentou novamente, sentando-se antes que as pernas fraquejassem. - Era mais um dos contratos que Sammy tem me oferecido nos últimos três anos, mas não estou interessada neles.
- Por que não?
- Porque eu não quero voltar à vida que costumava levar. - Chris desejava que ele sentasse em vez de olhá-la daquela forma ameaçadora. Era difícil explicar-lhe com clareza; John tornava as coisas mais difíceis. - Suponho que sua próxima pergunta será: onde achei o medalhão de marfim e por que não o dei para você antes.
- Estava naquele pote de cerâmica que você encontrou.
- Como sabia?
- Além de mim, você é a única pessoa que conhece a lenda sobre os medalhões. Deve ter percebido que eu estava procurando o outro. O pote era o lugar mais óbvio para ter sido escondido, e minha intuição me avisou que eu estava certo. - John se sentou no braço da cadeira de Christie e sorriu para ela - Você nunca soube mentir muito bem, Chris.
- Se você sabia o tempo todo... por que não falou nada?
- Cheguei à conclusão de que você devia ter uma razão muito importante para guardar o segredo. Vai me contar agora?
Ela teria coragem de arriscar tudo, inclusive o próprio orgulho, para revelar os sentimentos mais profundos àquele homem que a fizera sofrer tanto? Christie permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas de súbito percebeu que não havia outro caminho a não ser abrir o coração.
Enquanto pensava, não conseguia olhar para John. Pôs-se a caminhar pela sala em direção à janela. Afastou as cortinas e observou a rua iluminada, enquanto juntava todas as forças que lhe restavam.
- Tive a idéia absurda de que haveria uma certa mágica se eu juntasse os dois medalhões...
- E houve?
- Não, não houve.
- O que você esperava?
Christie sentiu que John se aproximava por trás e começou a tremer.
- Esperava que, no momento certo, poderia lhe dar o medalhão de marfim da mesma forma que Indlovukazi deu ao amante.
- Foi por isso que me procurou em minha casa naquela noite?
- Sim. - Ela riu, amargurada. - Eu lhe disse que era uma idéia absurda.
- Christie! - John murmurou, enlaçando-a pela cintura. - Você me ama?
Ela teve a impressão de que John não se dera por satisfeito, queria humilhá-la ainda mais, e o ódio surgiu como uma barreira para protegê-la.
- Quantas vezes eu já lhe disse que sim?
- Você nunca disse em tantas palavras.
- O que você quer de mim, John? - Chris se libertou do abraço e virou-se para encará-lo. - Uma declaração por escrito para pendurar na parede de sua casa, como um troféu.
- Christie... - Ele tentou alcançá-la, mas ela se afastou dele e da atração que ainda tinha o poder de enfraquecê-la.
- Vá embora e me deixe em paz!
- Não, não vou deixá-la em paz!
Um olhar de John foi o bastante para que ficasse apavorada.
Chris fugiu para o quarto, mas ele a seguiu, impedindo-a de fechar a porta. As mãos ágeis e fortes seguraram-na bruscamente, e os braços apertaram-na contra o corpo quente, másculo. Christie tentou gritar ao ver o rosto de John se aproximando, mas os lábios tão desejados pousaram em sua boca, abafando o protesto.
Christie teve a sensação inebriante de que o corpo e a mente giravam fora de controle. O ódio e o ressentimento desapareceram naquele beijo sensual.
- John... - murmurou, repousando a cabeça no peito largo. - Não fará diferença se você ficar ou for embora, porque meu amor por você será sempre o mesmo. Eu te amo, nunca deixei de te amar.
- Se o que você diz é verdade, então posso saber por que você estava tão decidida pelo divórcio há cinco anos?
Ela recuou, confusa, diante da pergunta inesperada.
- Foi você quem saiu de nosso apartamento me dizendo para providenciar o divórcio, pois não voltaria.
- Como pode omitir o fato de que eu lhe escrevi, e que você não teve a coragem de responder à minha carta pessoalmente?
- Carta? - Chris repetiu, sem entender nada. - Que carta?
- Aquela que eu escrevi uma semana depois de chegar à Itália - ele respondeu com frieza, mas quando viu que Chris continuava a encará-lo apalermada, ficou furioso. - Não finja que não sabe sobre a carta, e que não se recorda de ter mandado a secretária de Sammy enviar-me aquela nota seca. Não tinha mais interesse no casamento, e apreciaria se eu lhe desse o divórcio... era o que me comunicava, lembra?
- Não sei do que você está falando. Eu esperei que me escrevesse, pois achava que você não estava falando sério ao mencionar o divórcio. Esperei quatro meses até me convencer de que era verdade. - Ao ver que ele sorria com ironia, Christie pediu desesperada: - John, você tem que acreditar em mim!
- Gostaria muito, Christie, mas depois de passar cinco anos desiludido, é mais fácil chamá-la de mentirosa. - Os olhos carregados de ódio examinaram-lhe o rosto pálido e aflito e nesse instante alguma coisa pareceu colocar em dúvida suas convicções, pois as feições tensas relaxaram. - Tudo bem, digamos que você não recebeu minha carta. Mas, então, quem a interceptou?
- Eu... eu não sei, John.
- Diga-me exatamente o que aconteceu depois que eu fui para a Itália.
- Eu estava arrasada. Não queria viajar naquela turnê de seis semanas, mas tive que ir, e odiei cada momento dela. Voltei para casa esperando encontrar alguma notícia sobre você, mas não havia... nada.
- Quem guardou a correspondência enquanto você estava fora?
- Eu pedi para o zelador guardá-la para mim, e mandá-la para...
- O escritório de Sammy Peterson?
Não, não podia ser verdade. A idéia era tão absurda e repugnante que ela tratou de afastá-la.
- Sammy seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
- É melhor pensar bastante antes de descartar a possibilidade. Afinal, Sammy nunca gostou de mim, e não ficou contente quando nos casamos. Mais tarde, ele fez o possível para nos manter separados, você sabe disso. Então, por que ele não interceptaria a carta, mandando a secretária enviar a resposta em seu nome? Era muito fácil, e, comigo fora do caminho, você nunca descobriria a verdade.
Tudo aquilo fazia sentido, mas a mente de Christie ainda se recusava a acreditar.
- É uma acusação terrível! Sammy sabia o quanto eu amava você. Não poderia ter suportado aqueles quatro meses de angústia sem o apoio dele. Até sugeriu que um divórcio me ajudaria a aceitar a idéia de que você não se importava mais comigo.
- Sammy convenceu-a de que eu não me importava mais, e induziu-a a apressar o divórcio?
- Sim, ele me disse que era evidente que você queria a separação, e que eu era tola por me prender a...
A voz silenciou quando as evidências tornaram-se inquestionáveis, forçando-a a encarar a verdade. Ao voltar da turnê, ficara sabendo que a secretária de Sammy tinha sido demitida. Sammy mudara de assunto, informando-lhe que fora por causa de um desentendimento. Porém, a assistente dele contara que haviam discutido sobre alguma carta que ele forçara a moça a escrever. Na época, Christie não dera muita importância ao fato, e, a partir daquele momento, Sammy insistira para que providenciasse o divórcio. Muitas coisas começavam a fazer sentido agora, Christie se sentou na cama ao sentir as pernas trêmulas.
- Oh, John, começo a entender por que tinha a sensação de que era acusada de algo que desconhecia. Não me admira você ter me odiado tanto.
- Eu nunca te odiei - ele disse, sentando-se ao lado dela. - Foi um choque vê-la novamente quando eu menos esperava, e quando me lembrei do quanto me fez sofrer, aquela velha raiva voltou... Mas era só o outro lado da moeda, Chris. A raiva significava que eu não tinha te esquecido.
- Sinto muito. - Ela se esforçava para não chorar. - Tudo o que posso dizer é que sinto terrivelmente.
John acariciou-lhe o rosto e os cabelos sedosos.
- Você não ia ser tão insensível a ponto de pedir para alguém responder à carta, não é?
- Acredita agora que nunca cheguei a recebê-la?
- Acredito.
Os lábios dele pousaram em sua boca com a leveza de uma borboleta, excitando e provocando-lhe arrepios por todo corpo. O beijo acabou despertando em ambos um desejo insaciável, mas ainda havia algo que ela precisava saber. Afastou o rosto, para repousar a cabeça no peito quente e aconchegante.
- O que você escreveu naquela carta?
- Se eu ainda tivesse dúvidas sobre você tê-la recebido ou não, sua curiosidade já teria me convencido...
- Diga logo, por favor!
- Escrevi tudo que um homem diz quando percebe que agiu como um idiota. Expliquei que a decepção por não poder levá-la comigo tinha me deixado nervoso, que eu fora injusto ao fazê-la escolher entre nosso casamento e sua carreira, e que não queria o divórcio. Pedi desculpas pelo comportamento infantil, e prometi mandar-lhe uma passagem de avião se concordasse em juntar-se a mim quando fosse possível.
- Oh, John! - Ela abraçou-o emocionada, experimentando, ao mesmo tempo, uma alegria intensa, por estar ao lado do homem que amava, e ódio por Sammy, por ter lhes causado tanta dor. - O que vamos fazer agora?
- Bem, em primeiro lugar, eu quero lhe dar isso. - Os braços dele soltaram-na, e ele se levantou para tirar alguma coisa do bolso. Chris viu o medalhão de marfim na mão dele. John levou-o aos lábios e então colocou-o na palma da mão dela. Logo em seguida deu-lhe o saquinho de veludo. - Agora é a sua vez.
A mão de Christie tremia quando apanhou a bolsinha. Havia uma certa magia naquele momento, e a excitação cresceu quando pegou o outro medalhão, o que ela achara nas escavações. Levou-o aos lábios, como ele fizera, e colocou-o na mão dele.
- Isso significa o que eu estou pensando? - perguntou, trêmula.
- Significa que eu te amo, e que não existe ninguém além de você - John falou, emocionado, e os olhos dela se encheram de lágrimas de felicidade.
- Você nunca tinha me dito isso antes.
- Eu nunca consegui expressar meus sentimentos muito bem, mas estava convencido de que você sabia o tempo todo que eu a amava. - Ele sorriu com ternura enquanto lhe enxugava as lágrimas com a ponta dos dedos.
- Eu achava que você me amava até aquele episódio do... ora, deixe para lá! Bom, o que se deve fazer depois?
- Você coloca os medalhões num lugar seguro de modo que permaneçam juntos para sempre - ele instruiu, apanhando a bolsinha de veludo do chão.
Guardaram os medalhões dentro dela, e John colocou-a sobre a mesinha-de-cabeceira antes de abraçar Christie.
- Agora só falta você concordar em se casar comigo o mais rápido possível.
- Você quer mesmo se casar comigo? - ela perguntou incrédula.
- As pessoas dizem que um segundo casamento com a mesma mulher sempre dá certo - John brincou, os braços enlaçando-a enquanto a deitava na cama, deixando-a presa contra seu corpo másculo. - Vai se casar comigo, Christie?
- Sim... é claro que sim - ela sussurrou, tocando-lhe o rosto para ter certeza de que não estava sonhando. - Querido, eu te amo tanto!
- Chris, só tem uma coisinha que eu gostaria de te falar.
- O que é?
- Sabe, querida, acho o cúmulo você ter desistido da carreira...
- John, eu...
- Sei, sei tudo o que aconteceu, mas você é uma artista, e precisa cantar para o mundo a sua poesia.
- Mas Sammy me...
- Esqueça Sammy. - John afagava-lhe os cabelos. - Pode encontrar outro empresário a qualquer momento. Você tem talento, Christie, e é disso que o mundo precisa.
- Não sei, John, não sei se gostaria de voltar.
- Vai ter tempo para pensar no assunto, meu amor, muito tempo... Mas acredito que um dia ainda vou aplaudi-la de novo.
Eles se abraçaram com força e rolaram pela cama, sedentos de paixão. Chris acolheu o toque impaciente dos lábios de John enquanto ele beijava-lhe o pescoço e os seios descobertos.
- Eu a desejo, Christie, e não vou esperar até o casamento - ele disse, afundando o rosto por entre os seios firmes. - Posso amá-la esta noite?
- Eu não me lembro de você ter pedido na última vez - ela brincou, a voz rouca e ofegante quando ele a despiu.
- Eu ainda estava sob o choque do incidente com a mamba, e fiquei furioso comigo mesmo por amá-la tanto. Não pretendia fazer amor com você por vingança, mas acabou sendo assim, e eu me arrependi profundamente.
- John... - Chris gemeu quando as mãos dele deslizaram por dentro da calcinha rendada. - Isto é passado, vamos esquecê-lo. O nosso relacionamento não é um simples caso de amor...
- Um simples caso de amor... Quando você cantou aquela música em nossa última noite no acampamento, entrei em desespero, e tive que sair dali antes que alguém percebesse o que acontecia comigo.
- Querido...
- Pensei muito depois disso, e decidi que não ia deixar você sair de minha vida novamente.
- John - Chris murmurou, impaciente, contra os lábios dele. - Quero fazer amor com você.
John riu, feliz, e o som daquela risada era música nos ouvidos de Christie. Talvez, em algum lugar do passado, Indlovukazi sorrisse com eles.

 

 

                                                                  Yvonne Whittal

 

 

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