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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LENDA DO CASTELO DE MONTINHOSO / J. W. Rochester
A LENDA DO CASTELO DE MONTINHOSO / J. W. Rochester

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

   

 

O CONVITE Um escuro dia de Abril estendia-se por sobre a formosa Vila Pawlosk, nos arredores de São Petersburgo, Rússia. Durante dois dias consecutivos tinham caído fortes aguaceiros alternados de neve. As ruas estavam quase que intransitáveis. A bruma cinzenta tudo envolvia, e, sob o vento glacial, curvavamse as árvores desfolhadas.
Na plataforma da pequena estação da Vila, juntavam-se pessoas tiritantes de frio, aguardando a passagem do trem de S. Petersburgo. Quando o comboio parou, de um dos compartimentos de primeira classe desceu, elegante, homem de cerca de vinte e oito anos de idade. Era um desses personagens cuja aparição nunca passa despercebida.
Figura alta, esbelta, rosto fino, um tanto pálido, cabelos negros como o azeviche. Perfeito tipo de italiano. Seus traços regulares e clássicos, tinha expressão um tanto dura e arrogante. O olhar frio daqueles olhos profundamente negros, jamais denunciariam o que ia no seu íntimo. Vagarosamente, ele encaminhou-se para a saída da galé. Parecia procurar alguém. Então destacou-se da massa de viajantes um jovem louro que, apressadamente se dirigiu a ele, estendendo a mão -- Aqui estás, hein Pawel? Foste muito amável em vir. Eu estava imaginando que em virtude do mau tempo cancelasse a viagem. -- Não, não sou tão melindroso! Respondeu o recém-chegado.
Além disso, o convite de Larissa Arkadjewna foi tão amável, que não me era possível recusar. -- Sim. Tu sabes, titia não cabe em si de contente desde que te viu na residência do general Twertinoff e soube que eras Pawel Borisowitsch, o sobrinho de sua melhor amiga de colégio, e, o herói de uma série de misteriosas aventura sobrenaturais.

 

 

 

 

 

 

-- Isso é exagero!! Nunca tive quaisquer aventuras misteriosas! Apenas tem me sucedido certas coisas extra-normais, aliás pouco agradáveis, sobre as quais falei
à sua tia. Os dois jovens alcançaram a saída da estação. Tomaram um lugar no carro que os aguardava. -- Espero, Jorge, que tua tia não tenha convidado muita gente
disse Paulo depois de um breve silêncio. -- Naturalmente que não. E quem há de vir, com este tempo?! Quando me dirigi à estação para esperar-te havia apenas dois
convidados. Um primo de meu tio, Dionid Petrowitsh Tonilim, digo-te de passagem, um ativo partidário do ocultismo, e a afilhada de minha tia, a Senhorinha Samburoff.
Como vês, os convivas são poucos. Nesse momento, estacionaram defronte à Vila Bakulim, um imenso edifício cheio de sacadas e rodeado por um vasto jardim. O major
Bakulim fixara residência definitiva na belíssima vila, muito embora o regimento em Barskoje Selo. Os dois jovens penetraram no limiar onde um criado despiu-lhes
os abrigos para, em seguida, conduzi-los a um imenso salão, distintamente guarnecido de pesados reposteiros de veludo verde e tapetes que, com as vivas labaredas
que dançavam na lareira, davam ao aposento um cunho de tranqüila distinção. Apesar do crepúsculo, não haviam ainda acendido as luzes, e tão somente o fogo vivo iluminava
a pequena sociedade reunida ao redor da lareira. Numa poltrona alta, achava-se a dona da casa, uma senhora de meia idade cujo exterior ainda apresentava os traços
de antiga beleza. Nos seus grandes olhos azuis, lia-se uma expressão de bondade, e cabelos prematuramente embranquecidos, circundavam-lhe o rosto fino e inteligente.
O Major Bakulim estava de pé, por trás da poltrona da esposa, escutando a palestra travada entre esta e seu primo. Os dois senhores já tinham ultrapassado os quarenta
anos. Ambos possuíam semblantes jovens, eram altos e bem conformados. Pareci-
am-se muito, com a única diferença que Dionid Tonilim era calvo, e não possuía a mobilidade de seu primo. Um pouco
distante, afundada numa poltrona, sem tomar parte na conversa, estava Valéria Nikolajewna Samburoff, uma formosa moça de dezoito anos de idade. Seu rosto, bem desenhado,
era coroado por abundante cabeleira louro-raio-de-sol. Os seus grandes olhos castanho-escuros, destacavam-se, singularmente dos cabelos dourados. Há um ano, morrera-lhe
o pai, e ela trazia luto. O vestido negro, de crepe chinês, assentava-lhe maravilhosamente sobre o corpo esbelto. À entrada dos jovens, com a costumeira gentileza,
Larissa ergueu-se para cumprimentá-los. Apresentou Pawel ao esposo e ao primo mas quando quis apresentá-lo à afilhada, calou-se subitamente, fitando Valéria cheia
de susto. A moça ficou pálida como o linho. Erguendo-se vagarosamente, olhava Pawel com os olhos cheios de pavor e ódio. Ela vacilou, e teria caído se o major não
a amparasse a tempo, deitando-a num divã. -- Valja querida, o que tens? Perguntava Larissa nervosa, umedecendo a testa e as mãos da afilhada com Água de Colônia.
Jorge voltava trazendo um vidro de sal volátil. Pawel Borisowitsch não se movera do lugar em que estava. Fitava Valéria atentamente, tão pálido quando ela. O que
se passara com ele? Seu coração contraíra-se e ele sentira-se atordoado. Um frio glacial percorreu-lhe o corpo. Valéria, envergonhada, ergueu-se. -- Desculpa-me,
madrinha, por te ter assustado tanto. Não sei o que me sucedeu... Senti tonturas de repente, e uma estranha sensação, como se uma mão gelada me agarrasse pela garganta!
Parecia que ia me asfixiar... Mas agora estou bem, outra vez. -- Tu és excessivamente nervosa, Valéria! disse o major toma um copo de Marsala e ficarás mais forte!
Apresentou-lhe um copo de vinho que Valéria esvaziou. -- Bem... agora podemos, finalmente, fazer a tua apresentação, Pawel Borisowitsch disse Larissa Querida Valja,
permita que te
apresente o Barão Rothschild. Ele é sobrinho de Helena Alexandrowna e primo de tua amiga Lolo. Enquanto todos ocupavam-se
de Valéria, também o Barão conseguira vencer a sensação de vertigem que o acometera ao defrontar a senhorita. Ele inclinou-se diante de Valéria que agora o fitava
sorridente, e lhe perguntava pela saúde de sua tia e prima. Em breve tinham encetado uma animada palestra. Enquanto decorreu o jantar, a conversa foi animada e descuidosa.
Depois de terem servido o café no salão, despediu-se o major que havia sido convidado por um amigo. O pequeno grupo reuniu-se à roda de uma mesa, e a dona da casa,
Larissa, falou em tom solene: -- Meus prezados amigos, estamos agora em completa liberdade. Meu esposo, seja-lhe perdoado, infelizmente é um céptico. Não se interessa
absolutamente por aquilo em que nós, por assim dizer, observamos. Aqui o nosso Dionid Petrowistch, porém, é um ocultista experimentado. Ele tem sido e trabalhado
muito nessa ciência misteriosa que é a chave do além, e obteve grandes resultados. Eu também me ocupo desde há anos, com a ciência secreta, e adquiri, mesmo, uma
volumosa biblioteca. Não gosto, porém, de assistir a sessões, pois é muito raro encontrar-se um bom médium. Quanto a Jorge e Valéria, ambos interessam-se também,
e desejam aprender ainda alguma coisa. -- Sim, de novo observa-se em todas as rodas e sociedades um interesse positivo pelo ocultismo disse Dionid Tonilim muitos
ainda consideram, é certo, as ciências ocultas como um brinquedo engraçado. Outros, porém, mais sérios, penetram conscienciosamente nessa literatura, constatando
que muita vez estamos cercados, realmente, de mistérios extraordinários e quase sempre perigosos quando nos surgem à vista. Somente é útil investigarmos esses mistérios
até um certo limite, que nos é dado. -- Minha madrinha contou-me, Senhor Barão, que a vossa vida é, de certa maneira, um encadeamento de acontecimentos misteriosos.
Contai-nos alguma coisa a respeito, naturalmente se não for segredo! disse Valéria, dirigindo-se ao Barão. --
Com efeito, muita coisa que não posso explicar, tão somente talvez porque eu, no que se refere ao ocultismo, seja completamente leigo, tem me acontecido. Quem sabe
se Larissa ou Dionid, que têm experiência, estejam em condições de me explicar alguma coisa?! Mas não são em verdades aventuras, e eu temo que fiques desiludida
respondeu o Barão de Rotschild sorrindo. -- Não, Não! Jorge contou-me que o senhor tem realmente, interessantes e às vezes até comoventes sonhos e visões retrucou
Valéria insistindo. -- Sim, alguma coisa é verdadeiramente fora do comum. Como minha mãe me contava, ela, pouco antes do meu nascimento; teve sonhos singulares.
De uma feita foi maltratada por um pesadelo horrível. Parecia-lhe que tinha um filho adulto, e que alguém tentava amputarlhe a mão. Quis defendê-lo, quis afastá-lo,
mas não o conseguiu. Suas vestes prendiam-se a uma freira. De repente, a mão do filho, amputada, estava presa à mão de outrem. Minha mãe gritou tão aterrorizada,
que acordou meu pai. Só com grandes esforços conseguiu ele despertá-la do sonho. Estava como que sob a ação de um ataque cataléptico, coberta de um suor gélido.
O médico afirmou que se tratava da impressão de algum romance exagerado que ela lera, mas a mim, mamãe confessou que jamais lera qualquer coisa que pudesse ter provocado
semelhante sonho. Esse pesadelo, que ela mais tarde narrou-me, ficou focado para sempre em minha memória e deixou-se também os seus vestígios. Pawel arregaçou um
pouco a manga do paletó e mostrou um traço que lhe circundava o pulso. Cheios de curiosidade todos observaram atentamente extraordinário capricho da natureza. --
A aparição desta marca, prosseguiu Rothschild, foi simplesmente como o resultado de uma forte impressão que afeta uma mãe em gestação e muitas vezes se torna visível
no corpo da gestante. Talvez seja exato, talvez não! Singular é que eu, em determinados dias,
tenho sonhos semelhantes aos de minha mãe. Assim é que, em trajes de monge, vejo-me em lugares completamente desconhecidos.
Com um rancor horrível, caminho então, através de longos corredores e imensas salas de um castelo que nunca vi, às tontas, de um para outro lado, sem poder desviar
os olhos do informe coto do meu braço, pois falta-me uma mão até a altura do traço vermelho que acabo de mostrar-vos. Muitas vezes ouço remotos cantos religiosos
e sinto dedos gelados abarcarem-me o punho. Depois entro a caminhar de novo, sem destino, tendo a impressão de estar arrastando um pesado fardo atrás de mim. Não
vejo esse fardo mas possuo a convicção de que se trata de um cadáver. Por muito fragmentados que sejam esses sonhos, são, contudo, tão claros, tão cheios de vida
que me interrogo se não são fantasmas o que vejo. Os médicos que consultei em segredo, garantiram sempre que isso provinha de um excessivo nervosismo. Tive que tomar
toda sorte de banhos; segui, conscienciosamente, as prescrições médicas, mas foi tudo em vão. Portanto, conforme: todas as aparências, outra deve ser a causa dessas
manifestações. -- Sim, Pawel, essa outra coisa é a força do passado que pesa sobre nós e que tantos negam! observou Dionid Tonilim. Pois os destinos do passado,
que muitas vezes reportam a séculos remotos, desempenham, em nossa vida atual, um papel muitas vezes funesto e terrível. Rotschild estremeceu: -- Dionid Tonilim,
as tuas palavras lembram-me um encontro que tive há anos em Paris. Achava-me numa pequena roda de partidários do espiritismo que promoviam uma sessão. Como médium
atuava uma senhorinha muito jovem, que, ao que parecia, tinha uma faculdade especial para isso. Como ela desse resposta às perguntas de algumas pessoas, resposta
essas que produziam, positivamente, fortes impressões, também eu resolvi interrogá-la sobre a causa de meus sonhos e das minhas visões. Mas nem bem tinha deposto
a minha mão na sua, fui repelido bruscamente. Quase ininteligivelmente disse: "O seu carma não foi ainda esgotado. O último ato de um drama horrível
não foi ainda representado. As sombras do passado ainda se erguerão à sua frente". Nada mais a médium quis dizer,
por mais que lhe suplicasse. -- Mas a resposta é suficientemente clara. Pesa sobre ti um crime qualquer, praticado no passado. Carma é, segundo a doutrina indiana,
a retribuição, a recompensa por qualquer coisa má ou boa, realizada em pensamentos ou por atos. Essa retribuição, mais cedo ou mais tarde, sempre alcança o culpado,
numa de suas vidas. Talvez persiga-o, também, uma execração de vingança. Se esse passado fosse conhecido, poderíamos libertar-te dele, mas como não o conhecemos,
apenas um conselho te posso dar: ora por ti e pela vítima do crime. Somente a prece poderá auxiliar-te contra uma vingança, quiçá terrível! -- Agradeço-te o conselho,
Dionid. Reconheço quão leigo eu sou nas questões de ocultismo e lamento-o profundamente. Com muito prazer eu leria obras sobre o assunto, para instruir-me nesse
sentido! Disse Rothschild. -- Com grande prazer, Pawel, quero por à tua disposição todos os meus livros sobre essa ciência. Disse Larissa. Especialmente um deles
quero dar-te. Creio que há de interessar-te extraordinariamente: Destinos do Passado e suas influências sobre o Presente. É um livro muito ilustrativo, e maravilhosamente
escrito. Enquanto Rothschild agradecia, Larissa observou que o rosto do Barão fizera-se extremamente pálido, e que ele fazia um supremo esforço por dominar sua emoção.
Depois mudaram o tema da conversação. -- Como estará passando Helena Alexandrowna? -- Há cerca de duas semanas recebi carta de tia Helena. Escreveu que Mischa e
Lolo estavam completamente restabelecidos, mas que os médicos aconselhavam a permanência por mais um ano, na Itália. Tia Helena está muito satisfeita com sua estadia
na península. O clima faz muito bem a todos, e os ares são maravilhosamente puros. Agora ela procura uma vila nas montanhas, e me convidou a ir tam-
bém, gozar minha licença em sua companhia. Aceitei, naturalmente, o convite. Espero receber em breve o seu endereço.
Nesse momento, abriu-se a porta e um criado entregou à senhora um envelope. Larissa leu o endereço e sorriu: -- Falou-se no diabo, apontou seu rabo! A carta vem
da Itália, e, provavelmente, estarei logo em condição de poder dizer-te, prezado Barão o desejado endereço. Depois de ter lido as primeiras linhas, Larissa soltou
uma gargalhada. -- Helena é realmente incorrigível! Imaginai, ela descobriu agora um castelo qualquer, antiqüíssimo, nos Apeninos. Espera fixar, ali, a sua residência.
Mas, ouvi o que ela escreve a respeito: "Sinto-me no sétimo céu, querida Larissa! Aluguei casualmente um castelo antiqüíssimo, muito bem situado. Afigura-te um verdadeiro
ninho de salteadores, com torres e torreões, com ruínas claustrais à beira de um profundo despenhadeiro, com uma belíssima vista para o vale. O ar daqui.é tão puro
e claro!!! Todo o edifício está ainda conservado, possui riquíssimos móveis, tudo ainda da Idade Média. Montinhoso é, realmente, um castelo encantado. Dizem que
por aqui vivem espectros maus. Isso, porém, não me impressionou, pois não acredito em semelhantes baboseiras. O meu cepticismo é, neste sentido, incurável. É que
apenas reconheço aquilo que posso ver, apalpar e investigar. Quem sabe se os fantasmas de Montinhoso combinaram entre si roubar a minha convicção?! Para ti, porém,
minha querida Larissa, que és crente e que estás em íntima comunicação com os seres do outro mundo, está a calhar este castelo. Por isso tomo a liberdade de, por
meio desta, convidar-te a virem aqui, naturalmente em companhia de Valéria. Lolo pede insistentemente que tragas a sua amiguinha. Creio que as jovens raparigas não
se aborrecerão, tanto mais que convidei a vir, também, o meu sobrinho Pawel Rothschild, um homem amável e delicado. Tu gostarás dele, com toda a certeza. Quase que
me esquecia de escrever-te, também, que temos aqui um alcaide perfeita corporização de um homem medieval. Sua mulher, Savéria, sabe relatar lendas que dão para
arrepiar os nossos cabelos. Infelizmente não posso aprender perfeitamente as suas histórias, pois ela fala num dialeto itálico que me é estranho e que muito di-
ficilmente compreendo. O papel principal é desempenhado por uma aparição, IL SPETTRO, e que, provavelmente, significa:
um fantasma, que peregrina pelo parque asselvajado em busca de um certo Paulo, o Maledetto Maledetto ledetto. Creio que por detrás desse fantasma esconde-se alguma
criada que talvez tenha brigado com o amante! Tu acreditarás desde logo, naturalmente, que esse espírito está chamando Paulo do além-túmulo. Se tudo isso não te
animar a vir, nada mais poderei fazer nesse sentido. Mas estou convencida de que não poderás resistir à tentação, e virás. Helena Larissa pôs a carta de lado. --
Helena tem razão! Realmente esse Montinhoso me atrai sobremaneira, e eu preciso ir vê-lo, haja o que houver! Quem sabe se conseguiremos doutrinar os espíritos que
por lá erram, e até mesmo livrar o pobre Paulo? Que dizes, Pawel? -- Espero apenas que esse fantasma não esteja a chamar por mim. Caso contrário não iria, absolutamente,
para lá! respondeu Rothschild. -- Ah! Não! É, provavelmente, algum nóbile italiano que chama o infeliz. Havemos de libertá-lo. E tu Valja, também irás conosco!
Ou tens medo? -- Sabes, madrinha, eu não temo os fantasmas! Além disso, desde há muito alimento o desejo de conhecer a Itália. Também já vai para dois anos que Lolo
e eu não nos vemos... -- Ótimo, iremos então a Montinhoso. Tu, Dionid Tonilim, irás nos fazer muita falta. Teus conselhos e tuas experiências... Só mesmo muito a
contragosto podemos dispensar-te num lugar tão misterioso! disse Larissa. Dionid Tonilim sorriu significativamente. -- Talvez que também eu não fique muito longe
de vós. Minha cunhada e meu irmão estão, presentemente, em Florença, onde pretendo passar uma parte do verão. Devo partir em princípios de Maio, de sorte que estaremos
na Itália na mesma época. Se for preciso, esta-
rei ao vosso inteiro dispor, com os meus conselhos. Além disso, sou bastante íntimo de Helena Alexandrowna, e não
deixarei de fazer-lhe uma visita. -- Como tudo coincide! Então poderemos promover sessões em conjunto! Oh! Como será interessante... bradou Larissa satisfeita.
-- Sim, muito interessante! murmurou Dionid Tonilim. Eu, naturalmente, também gosto muito de fazer investigações nesse terreno. Mas não ignoro, e isso não deveis
nunca esquecer, Larissa, que a teoria e a prática têm demonstrado quão perigosas são tais investidas para os que nelas tomam parte. Os lugares tidos e havidos por
cenários de crimes e desgraças, são quase sempre possuídos por algo de funesto e perigoso. Os curiosos que tentam penetrar esses mistérios, assemelham-se aos descuidados
que descobrem cavernas pestilentas sem saber quais os venenos que podem estar ocultos. Disse o Barão que, se por lá perambulavam fantasmas, esses possivelmente manifestar-se-iam
agradecidos pelo interesse que se lhes dispensassem, objetivando auxiliá-los. Depois do chá, o major regressou e com Dionid sentou-se à mesa de xadrez. Em companhia
de Jorge a anfitriã passou à biblioteca para procurar os livros prometidos ao Barão. Valéria e Rothschild ficaram sozinhos, no salão. A lâmpada, recoberta por um
globo de cristal vermelho, iluminava levemente o ambiente. Numa ampla poltrona, cujo espaldar ensombrava-lhe o rosto, estava Valéria. Durante segundos, o seu olhar
permaneceu fixo no rosto do Barão, que se encostara na lareira. Um sentimento incerto, hostil, dominava-a. Via aquele homem pela primeira vez na vida, contudo, ele
não lhe parecia estranho. Onde fora que vira esse perfil característico e esses recurvos cantos de lábios? E mais aqueles olhos escuros, de cujas profundezas refletia-se
alguma coisa de cruel e astuciosos?
Não pôs em dúvida que aquele homem fosse capaz de toda traição para com uma mulher. Tudo nele era repugnante, mesmo
a voz que às vezes soava tão desprezível, tão desdenhosa!... Seria casado? Essa lembrança produzia-lhe uma dor involuntária. Um inexpugnável sentimento de ciúmes
acometeu-a, ao pensar que uma mulher pudesse ter direitos sobre ele. Seus olhos buscaramlhe a mão. Nenhum anel de ouro, apenas um grande solitário coruscava com
todas as cores do arco-íris, no seu dedo mínimo. Tão perdida estava Valéria nos seus pensamentos, que nem mesmo percebia que também Rothschild observava-a atentamente.
Ela era bela! Muito mais bela do que todas as mulheres que encontrara até então... Contudo, havia algo de desagradável no seu todo... O fogo da lareira, que naquele
momento levantava novas labaredas, iluminava o rosto de Valéria, e ele assustou-se com a expressão cruel e vingativa que subitamente alterara os graciosos traços
da moça. Um sentimento de medo e de aversão dominou-o. Era mais uma das singularidades do seu ser. Havia épocas em que era tomado de horror pelo sexo feminino, em
que um sentimento inexplicável e de invencível repugnância o afastava de qualquer contato com mulheres. A semi-obscuridade da sala aumentava as sensações desagradáveis
que apoderaram-se dele. Resolutamente, comprimiu um botão existente nas proximidades, e uma luz brilhante projetou-se na sala pelo candelabro central. Essa luz radiante
trouxe o Barão de volta à realidade, e ele envergonhou-se, de repente, de sua fraqueza. "Meus nervos parecem não estar bem em ordem! Afigurou-se-me estar tomando
parte num funeral". Esse pensamento veio-lhe no momento em que viu Valéria erguer-se subitamente, enrubescendo até a raíz: do cabelo. Mas Rothschild era suficientemente
mundano para adaptar-se logo à situação. -- Perdoa-me, Valéria, por te haver arrancado tão bruscamente dos teus pensamentos. Esta obscuridade na sala, acrescida
do uivar
da tempestade lá fora, parecia-me adequada a nossa indisposição de ânimos, depois da conversa sobre fantasmas e
espíritos. Sorridente, ele aproximou uma cadeira à poltrona da jovem e sentou-se. -- Fizeste muito bem, acendendo a luz, Pawel! Também eu me sentia sob a desagradável
impressão dessas histórias. Talvez que a obscuridade fosse a única culpada disso! Nos tempos que correm, em que todas as pessoas são nervosas, buscava-se sempre
uma explicação para esse nervosismo em coisas sobrenaturais. -- Estou, afinal, constantemente envolvido nessa atmosfera carregada de nervosismo, o que, em vista
dos meus sonhos, não é, certamente estranhável. Mas, as minhas histórias parecem ter produzido em ti, Valéria uma funesta impressão... -- Oh! não! Eu, de certa maneira,
não tenho saúde. Titia Larissa e Dionid Tonilim são até de opinião que eu seja uma sofredora, no sentido de nossa última palestra, isto é, que esteja provavelmente
sofrendo sob qualquer influência do passado. -- Uma sofredora? Como se manifesta isso? indagou, sorrindo Rothschild. -- Eu, Pawel, desde a infância estou sujeita
a síncopes muito estranhas. Quase já é letargia o que me afeta. Meu pai, e especialmente minha mãe, sofrem muito com isso. Durante horas, permaneço num estado cataléptico
do qual ninguém e nada me podem despertar. Pelo contrário, quanto maiores tentativas fazem para me despertar, tanto mais profunda se torna a letargia... Ultimamente,
procurou-sé um hipnotizador, que aconselhou minha mãe a deixar-me, nessas ocasiões, entregue a mim mesma, pois que assim despertaria mais depressa. E ele teve razão.
Só que me sinto, depois de desperta, estranhamente fatigada. -- Sofre desses ataques muito frequentemente? -- Não. Mais ou menos cinco ou seis veres por ano. Geralmente
o ataque principia de tardezinha, à noite, ou antes do nascer do sol. Sinto-o aproximar-se. A princípio sobrevem-me um estremecimento
pelo corpo, que pouco a pouco se transforma num calafrio. Depois sinto-me tonta e vou perdendo mansamente os sentidos.
-- E depois, lembras-te do que sucedeu contigo durante o estado letárgico? Tens sonhos? Quis saber o Barão com um interesse insinuante de agradar. -- Sim, são porém
geralmente sonhos tão sem nexo, que na minha opinião não podem, absolutamente, ter relações com o espiritismo. Vejo longos corredores, salas decoradas em estilo
medieval e, às vezes, um castelo antigo. A mim mesma, porém, tudo isso explico pelo fato de ter uma especial predileção pelas velhas construções em ruínas, pelas
antigas pinturas e pelas lendas românticas. Por isso mesmo é que eu me alegro à idéia de poder visitar Helena Alexandrowna, ver o castelo e conhecer as suas lendas.
E se me permitissem desejaria imensamente investigar-lhe os desvãos, os porões... disse Valéria com vivacidade. Nisso voltaram Larissa e Jorge, com alguns livros,
e interromperam a conversação. -- Os livros que te prometi estão aqui, Paulo. São obras sérias e eu te recomendo que lhe dediques toda a tua atenção, especialmente
e em primeiro lugar a esta: DESTINOS DO PASSADO. Rothschild agradeceu a Larissa; imediatamente folheou o livro e meneou a cabeça. -- Acreditais sinceramente que
nós não vivemos apenas uma vez? perguntou. Que significação poderia ele ter para a nossa vida terrena, toda voltada para as coisas materiais? -- Tu te enganas
sobremaneira, prezado Barão! A passagem de nossa alma para um outro corpo, depois de nossa morte, serve para nosso aperfeiçoamento e para a remissão de nossos erros
anteriores. É lamentável que não entendas isso, justamente tu que não deverias ter motivos de dúvida; o passado deu-te, por intermédio do bracelete encarnado, uma
prova positiva da sua força. O Barão sorriu incrédulo.
-- A ciência dá a esse bracelete uma explicação muito simples e prosaica. Afinal não combato, também, a possibilidade
de uma outra explicação para o caso, por mais inverossímil que possa parecer. -- Valéria, vieram chamar-te! Disse Jorge que pouco antes se havia retirado e então
regressava. Valéria ergueu-se e despediu-se. -- Adorável menina! murmurou Larissa Arkadjenowna. Amoa de todo o coração. É tão boa quanto bela! Rothschild não respondeu.
Estava tão absorvido na leitura de uma página do livro, que parecia ter esquecido tudo. A risada franca de Larissa fê-lo levantar os olhos. -- Oh! Perdoa-me! O livro
parece ser realmente interessante! Ele ergueu-se, consultando o relógio. -- Infelizmente preciso ir agora, se não quiser perder o trem. Inclinou-se e beijou a mão
da anfitriã. Amavelmente Larissa convidou-o a voltar para conversarem mais vezes sobre ocultismo. Precisavam, além disso, combinar melhor a viagem à Itália, em visita
a Helena Alexandrowna. Pouco antes do Barão se despedir, o major e Dionid Tonilim tinham regressado ao salão. Depois que o Pawel saiu, Larissa quis saber: -- Dize-me
Dionid Tonilim, por que motivo observas o Barão tão estranhamente enquanto lia? Viste nele alguma coisa de extraordinário? Tonilim passou a mão pela testa e falou:
-- Suponho que no passado do Barão deve haver alguma coisa de terrível. Parece-me que de todos os lados, sombras o envolvem! Como se livrará delas, é um enigma para
mim e ser-lhe-á bem difícil. É certo que ainda não vejo claramente, mas creio que a realização do carma não está muito longe. Direi mais: parece-me que entre o Barão
e Valéria, existe uma aliança misteriosa, da qual nenhum dos dois, naturalmente, tem consciência. A senhora Bakulim, que acreditava nas faculdades clarividentes
de Tonilim, fitou-o inquieta. O velho ocultista era realmente um excên-
trico: rico, solteiro e independente, ocupara-se, principalmente, com a Arqueologia, depois com o Ocultismo. Estivera
na Pérsia, no Egito e na Índia, onde vivera mais de dez anos, e de onde, conforme supunha-se, trouxera a .sua faculdade de clarividência. -- Escuta, Dionid, se minha
sobrinha Valéria está de algum modo sobrecarregada de qualquer passado fatal, será talvez melhor não levá-la comigo à Itália, não? Estará em constante contacto com
Rothschild, e isso poderá ser-lhe perigoso. Tonilim sorriu enigmaticamente. -- Não te martirizes inutilmente com pensamentos negros, Larissa. O que tem de ser, será!
Seria mais fácil remover de seu lugar a pirâmide de Quéops do que desviar a realização do carma, quando houver chegado o seu tempo. Deixa que os acontecimentos sigam
seu curso, não te coloques entre o martelo e a bigorna.

2
O BARÃO Pawel Rothschild morava na doga inglesa, em casa de seu tio, um homem velho, muito rico do qual era o único herdeiro. O velho barão de Rothschild era um
déspota declarado; solteiro, sofria de gota e não freqüentava a sociedade. Não se privava, porém, de coisa alguma. Mantinha um secretário que se encarregava da correspondência,
lia-lhe os jornais e servia de parceiro nas partidas de xadrez. Duas vezes por semana, recebia três velhos amigos para jogo de cartas. Eram dois generais e um senador.
Esta era a única distração que o velho Barão a si se proporcionava. Em fins de maio de cada
ano, ele partia, com o secretário e um criado de quarto, para uma estação de banhos no estrangeiro, de onde regressava
em outubro. Pawel, o único filho de um irmão, a ele se dedicava muito pouco. O futuro herdeiro ocupava, na casa, cinco cômodos muito bem mobiliados, e recebia do
tio, anualmente, cinco mil rublos. O velho Barão, porém, já lhe dissera que não pagaria um real de dívidas suas. Se as contraísse, estaria dando provas de não ser
capaz de bem administrar a herança; nesse caso, preferiria legar sua fortuna a instituições pias. Contudo, o velho Barão até então não tivera motivo para censurar
o sobrinho. Pawel ocupava, num dos ministérios, um lugar honroso e bem remunerado, levava uma vida regular, e nunca se ouvira falar nem mesmo de um laço mais estreito
de amores como o têm, em sua maioria, os jovens da sociedade. Cerca de dois anos antes do início de nossa narrativa, a vida do jovem Rothschild não estava tão bem
regularizada. Murmurava-se sobre grandes perdas que sofrera em jogos de azar. Mas como não se encontravam provas quaisquer que corroborassem essas insinuações, em
breve foram esquecidas. Desde então, Pawel se tornara mais retraído, passava a maior parte do seu tempo de folga em casa, e o tio observou que uma ruga se formara,
profundamente, na testa do sobrinho. O velho Barão, porém, não tinha por hábito andar especulando, e como o moço pautasse regularmente a vida, sem contrair dívidas,
sentia-se satisfeito. Eram dez horas da noite quando Pawel chegou em casa, de volta de sua visita a Pawlosk. Entregou os livros ao criado, e trocou de roupa. --
Vou ao clube. Diga isso ao meu tio se ele perguntar por mim. Tomou uma carruagem e fez-se conduzir a uma confeitaria elegante onde comprou uma grande caixa de confeitos
e frutas cristalizadas. Em seguida dispensou o cocheiro e chamou um auto. O carro pôs-se em movimento em direção da porta Marwanch. Taciturno e pensativo, o Barão
recostou-se nas almofadas. Pensava na formosa senhorinha que há bem pouco vira na residência dos Bakulim. Aquela
cabecinha dourada, adornada por fascinantes olhos, parecia-lhe tentadora. Nunca encontrara um ser feminino que
tivesse exercido sobre sua pessoa uma impressão tão simpática. Ela, porém, produzia-lhe ao mesmo tempo, estranhas sensações de aversão e medo. Imerso em seus pensamentos
não notava a paisagem desolada da região, que, por esse tempo, o auto alcançava: ruas vazias e sem calçamento, casebres baixos de madeira, e, de vez em quando, uma
árvore despida. Nenhuma alma à vista. Somente quando o carro estacionou diante de uma casa isolada, rodeada por uma alta sebe, ele voltou a si. O portão estava fechado.
Rothschild ordenou ao chofer que esperasse. Teve que puxar várias vezes por uma sineta, antes que um velho servo viesse abrir-lhe o portão. Com passos rápidos atravessou
um pátio pequeno, calçado de pedras, em direção à casa. Era esta de aspecto pouco convidativo. De dois andares, mas sem os costumeiros balcões, não fazia justiça
à beleza. Todas as janelas, com exceção de uma, no segundo andar, estavam às escuras. Uma velhota asseada veio abrir-lhe a porta e iluminar a escada que levava ao
segundo pavimento. Numa pequena antecâmara; ela parou, e Rothschild seguiu sozinho até a sala imediata. Esta era espaçosa, clara e elegante. Um piano, belos móveis,
flores e peças contendo porcelanas finas, enchiam o aposento. Quase que ao mesmo tempo que Rothschild por outra porta, uma senhora entrava na mesma sala. Com uma
exclamação de alegria, dirigiu-se a ele, abraçandoo. Era jovem, esbelta, de estatura mediana. Seu rosto apresentava finos traços. Os olhos tinham um ar oriental,
e os seus cabelos negros que caíam-lhe até os quadris, faziam contraste com a palidez de suas faces. -- Até que em fim vieste, Paulo! Durante toda uma semana estive
a tua espera... murmurou trêmula. Rothschild beijou-a levemente sobre a testa e libertou-se de seus braços. Esse movimento, e o beijo indiferente, demonstravam
que não pretendia corresponder às manifestações da senhora.
-- Sabes, querida Dina, que não sou um homem livre. Meu tio não passa muito bem de saúde e eu mesmo tenho muito
que fazer. Precisas acostumar-te com as circunstâncias. Afinal não posso vir aqui todos os dias... Com o tempo despertaria a atenção do povo! Puxou uma cadeira e
sentou-se. Nisso, a porta abriu-se, e a velha que o recebera introduziu uma mesinha de chá com um pequeno samovar, vinho e pratos frios. Involuntariamente, a jovem
ergueu-se. Lançou um olhar apaixonado ao homem que tão friamente correspondera à sua saudação, e, contendo a custo as lágrimas, foi preparar o chá. -- Como está
teu pai? perguntou Rothschild em tom indiferente e sem notar-lhe aparentemente, a excitação. -- Está doente de novo. A gota pegou-o outra vez. O médico deseja que
vá para o Cáucaso e passe o inverno na Criméia. Precisa sair de qualquer modo de S. Petersburgo; não suporta o clima daqui! Deve partir para o sul. Quer levar-me
consigo, mas eu não desejo viajar agora... Suplicante, ela fitou o Barão. -- Diga isso a papai. Faça-me esse favor, diga que é teu desejo que eu permaneça aqui!
Um ligeiro rubor cobriu o rosto de Rothschild. -- Por quê? Acho muito razoável que vás com teu pai, para o sul! O que perderias com isso? -- Sim, mas eu não poderia
ver-te se fosse embora... Lágrimas embargavam-lhe a voz. -- Querida Dina, de uma vez por todas proíbo-te quaisquer cenas! disse Rothschild com impaciência. Tu
sabes perfeitamente quais foram os motivos que me levaram ao casamento contigo. Sabes também, perfeitamente, que não te adaptas à sociedade que freqüento, embora
tenhas recebido uma certa ilustração... e finalmente sabes que nunca tive o menor interesse por ti! Mas teu pai e tu mesma, aproveitastes de minha situação angustiosa.
Sabíeis que eu tinha que ocultar minhas dívidas de jogo para não perder a herança do tio. Como um
mendigo foi que me encontrei diante de vós por causa da uns miseráveis cinqüenta mil rublos. Só ao preço de um
casamento contigo pude obter o dinheiro. Mas também tu aceitaste minhas condições! Sem piedade declaraste concordar em conservar esse casamento secreto até a morte
de meu tio! Tu mesmo te declaraste resolvida a conservar o segredo, a jamais te apresentares em parte alguma como minha esposa! Meu tio nunca me perdoaria o casamento
com a filha de um agiota. Se toda essa história vier à luz, se eu for deserdado, farei com que uma bala me atravesse o crânio. Compreendes-me agora? Não é aos olhos
do mundo que eu oculto o meu casamento contigo, pois não tenho que dar satisfações a quem quer que seja, sobre o meu proceder. Apenas a minha segurança pecuniária,
o meu futuro, me levam a tanto. Por outro lado, não te entendo! O que te falta? De que podes te queixar? Dou-te o suficiente para que te vistas, para que vivas opulentamente,
visito-te todas as vezes que posso... que queres mais? Contenta-te em seres minha esposa, e se paciente até que publicamente possas denominar-te assim. E agora não
oponhas mais resistência ao desejo de teu pai! Além disso -- essa viagem me vem a propósito: as minhas visitas aqui podem tornar-se conhecidas. Sê prudente e deixa
de soluçar! Prometo-te até ir, no próximo inverno, ao sul, por oito ou dez dias, a visitar-te. Realmente, Dina, não há razão alguma para irritação. Fica antes tranqüila,
e sobretudo, guarda bem o nosso segredo. Há de chegar, finalmente, o dia em que possas chamar-te, diante de todos, a Baronesa Rothschild. Acabrunhada, Dina ouviu
o esposo. Prostrou-se junto da cadeira dele e apoiou a cabeça cansada no espaldar. -- És sempre tão cruel e áspero comigo! Nunca, nunca me alegras com uma palavra
amável, com meiguice! disse soluçando. Oh! Se eu tivesse adivinhado tudo isso antes! Não teria cogitado em ser tua esposa! Continuou a soluçar baixinho. Com olhar
de ódio, Rothschild fitou aquela que se ajoelhara junto dele. Pareceu-lhe naquele momento,
que ela lhe impedia o caminho que levava à outra, à loura mulher de olhos meigos e brilhantes. Auxiliou Dina a
levantar-se e acomodou-a numa cadeira. -- Arrependes-te do passo dado muito tardiamente, minha querida. Não desejo recriminar-te por isso! Eras jovem, encontravas-te
sob o jugo de uma fatal paixão por mim. O teu sentimento de honra feminil não te disse que não nos devemos impor a uma pessoa que não nos ama. Eu, porém, aproveitei-me
da situação de então sem refletir! Contudo, de minha parte, desisti, desde o momento em que me prendi a ti, ou melhor, em que tive que me prender a ti, de toda a
felicidade, do amor, do futuro! Como um condenado é que suporto esse castigo. Pode-se, é certo, obrigar uma pessoa a dar o seu nome, mas nunca o coração. Mas, basta
de cenas! Preciso voltar para casa, e tu mesma és culpada de não termos melhor aproveitado o pequeno lapso de tempo de nossa reunião. Por enquanto, pois, até à vista.
Na semana vindoura tornarei aqui para me informar do dia de tua partida e despedir-me de ti... Dina levantou a cabeça e fitou o esposo. Em sua voz manifestouse um
tom de profunda tristeza: -- Não te incomodes em vir mais uma vez aqui. Minha partida importa-te pouco e eu não posso aceitar um sacrifício de tua parte. Também
não é preciso que continues a enviar-me dinheiro. Meu pai me dará o que necessito. Partirei, como desejas, em sua companhia e de nenhum modo embaraçarei a posse
de tua fortuna. Já há dois anos suporto essa situação deprimente, esta vida indigna, tuas grosserias e crueldade! Mas de uma coisa fica certo: nunca, a menos que
me mates, dar-te-ei a liberdade. Ela ergueu-se de um salto e encostou-se à mesa. -- Sim? Realmente? Retrucou o Barão.
Ele sorriu sarcasticamente mostrando os dentes alvos como pérolas: Não desejas, portanto, dar-me o beijo de despedida!
Porque hás de encarar tudo isto tão tragicamente? Fitando Dina fixamente, o desprezo saltava de seus olhos. Aquele homem, um joguete de nervos martirizados, perseguido
por sonhos e visões desagradáveis, que temia as igrejas e os quartos vazios, que fugia às mulheres e ao amor, que sabia o que a vida de si exigia, aquele homem conhecia
o seu poder em face do sexo oposto, mas era mesquinho para com ele. Desta vez, porém, iludira-se, certamente. A mulher, ferida até o âmago, e que amava ilimitadamente
o esposo, não o olhava mais. Ela pôs as mãos à cabeça e fugiu da sala... Rothschild permaneceu um instante no aposento, e saiu apressadamente, para a rua. Escondida
atrás de uma cortina, Dina observava o homem que deveria ser seu companheiro. Um minuto depois, o motor entrou em movimento, anunciando a partida. Ela caiu numa
poltrona e cobriu o rosto com as mãos, dando liberdade às suas lágrimas. Um homem velho, metido num robe de veludo negro, entrou arcando no aposento. Seu rosto esperto
e enérgico estava muito pálido. Condoído, ficou olhando para Dina. Pôs-lhe a mão sobre a cabeça: -- Não chores, Dina! Vês? Eu sempre te disse que esse homem somente
nos traria desventuras. Agora nada mais podemos modificar... Mas esperemos em Deus que tudo um dia há de ser melhor! E quanto às palavras sobre tua origem, há de
saber um dia que esta não é tão obscura quanto se supõe. Muita coisa será, com o tempo, explicada. Eu não me calo em atenção ao tio dele ou à herança, mas por um
motivo muito diferentes, sobre o qual nem mesmo a ti posso falar por enquanto qualquer coisa. Consola-te, minha infeliz! És ainda jovem, tens a vida toda à tua frente...
Também tu encontrarás um dia a felicidade. Por estes dias, partiremos daqui, e uma vez distantes, numa outra região, entre pessoas estranhas, tudo será mais suportável.
Dina abraçou-se ao pai, e aos poucos tranqüilizou-se.
-- Eu te agradeço, querido pai, às tuas palavras! Sim, a vida é longa e está, ainda, à minha frente... Oh! Se ao
menos eu pudesse arrancar esse amor deprimente do meu coração, pisá-lo, esmagá-lo, como eu seria feliz então! -- Querer quer dizer poder! Não te esqueças disto.
Mas agora vamos dormir. Precisas descansar. Também para mim já é tarde... Dina inclinou-se, impulsivamente; sobre uma cesta junto da cama, e ergueu um cachorrinho.
Abraçou-o ternamente, mimando-o com delicadeza. -- Meu Biju! Tu me amas em recompensa pelo alimento que te dou! Mas aquele a quem dei minha alma, despreza-me, odeia-me.
Ah! se eu pudesse aprender a odiá-lo da mesma forma que ele me odeia, para me vingar... X X X Somente depois de meia noite Rothschild regressou à casa. Vestiu um
pijama e dirigiu-se à copa, onde faria a ceia. Devorou uns pastéis com apetite, tomou um copo de Bordeaux, e comeu algumas frutas. Dispensou o criado, e recolheu-se
ao quarto. Estendido numa chaise-longue. Aprofundou-se na leitura dos livros que trouxera. Havia se acalmado completamente, e fruía aquela satisfação relativa a
si mesmo e ao mundo, que sempre experimentava ao encontrar-se em seus aposentos. Estes eram guarnecidos com estilo, e faziam, realmente, muito boa impressão. Todas
as minudências eram custosas e belas. Em primeiro lugar, Rothschild tomou o livro especialmente recomendado por Larissa: DESTINOS DO PASSADO. Com grande interesse
leu o prólogo. "Dirijo-me ao leitor sincero, não prevenido. Seria dever de todos pensar, com um máximo de objetividade, na sua vida e na de seus semelhantes, e,
de certa maneira, esmiuçá-las. Então encontrariam sem dúvida, apoio seguro à doutrina da Peregrinação das Almas! Sempre se encontram, na vida presente,
os vestígios do passado. A maioria dos encontros com nossos semelhantes não são meras obras do acaso... O destino
coloca-nos frente a frente àqueles que por intermédio dos quais somos submetidos a esta ou aquela provação, ou temos que purgar um erro do passado. O corpo e os
sentidos não são capazes de reconhecer o objetivo desses encontros, mas o nosso corpo astral, a nossa alma, reconhece os amigos e os inimigos antigos. Então. estremece
alguma coisa em nós, sob a influência de uma corrente elétrica, produzindo boas ou más impressões. Uma pessoa nos atrai involuntariamente, nos é simpática, outra,
pelo contrário, repelimos. Muitas vezes não sabemos como nos portar diante desses sentimentos, o que devemos fazer para escapar de um perigo que, muito possivelmente,
nos ameaça. Só uma possibilidade temos, e nela sempre encontraremos refúgio: a Prece! A prece é uma fonte cristalina que nos fornece forças e na qual devemos beber
para iluminar o nosso caminho vital! Em primeiro lugar devemos procurar determinar qual é a paixão ou as paixões que nos dominam, pois estas são sempre heranças
do passado. Pelas nossas paixões não somente estragamos muitas vezes a nossa vida, como sacrificamos a nossa honra, a consciência e a oportunidade de conhecermos
a felicidade. As nossas paixões nos absorvem, por assim dizer, totalmente, e nos fecham o caminho do futuro luminoso! Cada um de nós conhece os seus denominados
pontos fracos. Uma voz interior constantemente nos segreda: isto é um calcanhar de Aquiles, este é o teu ponto vulnerável, este é o limiar sobre o qual tropeças
e por causa dele deixaste de vencer a prova a que foste submetido! Mas quando conhecemos o nosso inimigo interior, não será nosso dever subjugá-lo para de novo não
cairmos sob seu domínio e de novo não cometermos faltas? O homem é fraco, e muito estreita é a senda sobre a qual, envolto em sombras,
caminha. Por isso não deverá nunca deixar de reparar seus erros; e não acumular dívidas que tornariam o seu destino,
caminho do irrevogável carma, ainda mais espinhoso". O livro caiu da mão de Rothschild e ele mergulhou num profundo silêncio. O que acabara de ler confirmava o que
havia de anormal em sua vida. Sempre de novo os mesmos sonhos, as mesmas aparições, quase sempre numa mesma época do ano, à mesma hora da noite... Aquele medo horrível
de defrontar cadáveres, aquela aversão por cânticos eclesiásticos ou dobres de sinos!!! E depois o inexplicável: se já vivera realmente, onde e quando? Estaria Valéria
Nikolajewna que tão extraordinária e profunda impressão exercera sobre seu espírito, também relacionada à sua vida de antanho, à vida vivida talvez há séculos e
séculos? A primeira vista ela não lhe parecera estranha! À sua presença, sentira-se acometido de uma singular sensação. E porque haveria Valéria de ter sentido coisa
semelhante? Porque o seu repentino desmaio quando ele se apresentara à sua frente? Possivelmente, o subconsciente da moça também o reconhecera! Nele despertou, então,
um indomável desejo de encontrar a chave do passado perdido, de iluminar o pretérito misterioso. -- Não! Livros semelhantes a este devem ser lidos à luz do dia!
pensou. Deitou-se, e dormiu profundamente, sem sonhar.

3
VALÉRIA E A VIAGEM Valéria passara uma noite inquieta. Da casa dos Bakulim, ela regressara, excitada, para o seu lar, mas ocultara essa excitação perante os seus.
Pretextando sobre dores de cabeça, recolhera-se imediata-
mente a seu quarto. Valéria tinha um irmão, que era oficial, e uma irmã de catorze anos. Indubitavelmente, porém,
era ela a favorita da família. Todos a amavam ternamente, satisfaziam os seus desejos e se orgulhavam de sua beleza. Apesar de sua pouca idade, vários pedidos de
casamentos já lhe tinham sido dirigidos, pedidos que ela, desprezando as admoestações de sua mãe, recusara. Nenhum dos pretendentes correspondia ao ideal com que
sonhava, ao homem que deveria ser o seu esposo. Estava convencida que um dia, sem dúvida, encontraria esse ideal. Entretanto, sentia uma extraordinária sensação
de pavor à lembrança de encontrar-se com o herói de seus sonhos. Bastava ver um homem de rosto pálido, cabelos e olhos escuros, para sentir, desde logo, uma inquietação
martirizante, que somente de pouco a pouco abandonava-a. Os ataques singulares que sofria, também desempenhavam importante papel em sua vida. A recordação desses
sonhos, somente lhe surgiam na mente algumas particularidades que sempre se repetiam; todos os demais sucessos envolviam-se em trevas. Especialmente clara se havia
impresso em sua mente a lembrança de um aposento em estilo gótico, e nele, sobre um estrado, um leito amplo. Era coberto por um dossel azul, apoiado por colunas
torneadas. Recordava-se também de um banco de pedra de onde podia ver um profundo vale e um lago. Sobre esse banco, muitas vezes assentava-se, ao seu lado, um belo
mancebo de traços italianos. Seu rosto era pálido, tinha os cabelos negríssimos, ondulados, dos quais uma mecha teimosa sempre dançava sobre a testa, olhos negros,
de expressão apaixonada. Parecia-lhe sentir beijos incendiados, ouvir uma cativante voz, e então tudo desaparecia de repente... O jovem falava como lhe parecia,
em italiano, e esse fato despertava nela uma saudade doentia por aquele país, que ainda não conhecia. Estudara o italiano e dominava corretamente a língua. Lia,
de preferência, autores peninsulares, e estudara a história daquele país.
Os Samburoff eram ricos, e podiam dar à filha uma educação múltipla e aristocrática. O talento pictural de Valéria
fora descoberto e adestrado, e ela em breve alcançara o grau de certa aptidão prematura, a fama de incomum pintora de retratos. Foi assim que conseguiu também, depois
de um dos seus ataques, pintar o retrato do herói dos seus sonhos que, medrosa escondera aos olhares de sua mãe e dos irmãos. Quando Rothschild entrara, na noite
anterior, em casa dos Bakulim ela julgara estar encontrando o original de sua pintura em carne e osso. Fitava fixamente o Barão, sem poder acreditar em seus olhos,
quando lhe fugiram os sentidos. Assim que chegara a casa, fora buscar o retrato e pusera-se a estudá-lo em todos os seus traços. Sem dúvida, aquele rosto, que pintara
pela recordação das manifestações dos seus sonhos, era o rosto do Barão de Rothschild. Cada traço a posição dos olhos, a expressão dura dos cantos da boca, tudo
coincidia! E quanto mais se aprofundara na contemplação do retrato, tanto mais sentira crescer a paixão mesclada de ódio selvagem, que há tanto invadira-a. Contudo,
parecia-lhe ter um direito especial sobre aquele homem. -- Estou perdendo a razão! Ou... encontrei o meu destino, um destino horrível demais! Murmurou. O seu coração
contraíra-se receoso. Respirando com dificuldade, escondera o retrato misterioso, e martirizada por desencontrados pensamentos, deitara-se, mas para não encontrar
repouso. Por muito tempo não fora capaz de conciliar o sono. No dia seguinte, ao almoço, a governanta notou que Valéria parecia doente. A senhora Samburoff interrogou-a
cheia de cuidados: tivera outra vez o costumeiro ataque? -- Geralmente ficas nervosa depois deles! Acrescentara. -- Não, mamãe! Tive enxaqueca e dormi mal, nada
mais! Valéria respondera. Estava convencida de que ninguém compreendia a sua enfermidade e aborrecia-se sempre, com as prescrições médicas. Era maltratada, ora
com banhos frios ora com banhos demasiado quentes, proi-
biram-lhe toda e qualquer leitura, e até ao teatro não podia mais ir, depois que tivera um ataque durante uma representação.
Por todos os motivos Valéria ocultara tanto quanto era possível, os seus ataques, e não gostava que falassem deles. O irmão de Valéria, Anatólio, contava vinte e
dois anos. Servia no corpo dos atiradores da guarda. Externamente, parecia-se sobremaneira com a irmã. Os dois irmãos estimavam-se muito, eram os melhores amigos.
Quando Anatólio perguntou a Valéria como decorrera a noite em casa da tia, ela falou-lhe de seu encontro com o Barão de Rothschild. -- Uma personalidade que me é
muito antipática, esse Pawel! Todas as nossas damas estão enfeitiçadas por ele, mas eu não posso suportá-lo! Confessou Anatólio. -- Oh! Ele dá-me a impressão de
ser um perfeito cavalheiro. É sobrinho de Helena Alexandrowna. Retrucou Valéria. -- Não, Valéria, não foi isso que eu quis dizer. Seu tio é um milionário, e não
negligenciou ministrar-lhe uma educação requintada. Ele cursou o Liceu de oficiais, de onde conhece também o meu amigo Gregório de Walke. Este contou-me um dia que
Rothschild recebeu, na escola, a alcunha de BÓRGIA, o ESPECTRO, porque é sonâmbulo. Dizem que muitas vezes, durante a noite, subia à estufa, ou até ao telhado, de
onde, com muita dificuldade, e com perigo de vida, tiravamno. Durante essas peregrinações noturnas dizia coisas confusas, e chegavam a afirmar que falava em italiano.
Outras vezes, gritava por uma tal de Giovana, ou cantava salmos latinos. Os colegas temiam-no, mas tudo isso não pode passar de tontices. Ele é, sem dúvida, um homem
direito e um bom partido como único herdeiro de seu riquíssimo tio. Mas é-me antipático! Espero, Valja, que não te enamores dele... desse Bórgia. No entretanto,
dizem que é um inimigo declarado das mulheres, um amigo da solidão! Concluiu Anatólio sorrindo. Ao ouvir pronunciar o nome Giovana, Valéria, estremecera. Em seus
sonhos, muitas vezes julgara ter ouvido esse nome, ainda que. não soubesse a quem era dirigido aquele apelativo.
-- Podes estar tranqüilo, Anatólio, que não tenho, em verdade, a menor intenção de namorar Rothschild. Ademais,
tens razão, ele traz em si qualquer coisa que repele. Com isso deram por terminado o assunto, e a conversa girou em torno da próxima viagem à Itália. Como a Senhora
Samburoff conhecesse o ardente desejo da filha e tendo em vista a opinião do médico, não fêz oposição à viagem. Os facultativos tinham-se declarado francamente de
acordo com a mudança de ares. Esperavam disso os maiores benefícios para Valéria. Negócios urgentes porém, chamavam à Senhora Samburoff à sua propriedade nas proximidades
de Moscou, e assim ficara resolvido que partiria na companhia de sua filha menor, imediatamente. Quanto a Valéria, esta permaneceria, até a data de sua partida para
a Itália, na residência de sua tia e madrinha. Cerca de duas semanas depois, pôde Larissa hospedar a sua favorita Valéria. Dois quartos bem instalados numa torre
da Vila, foram postos à disposição da hóspede. Daí, tinha a moça um belíssimo panorama sobre o parque e o lago. O tempo, como costuma ser em S. Petersburgo, havia
mudado repentinamente. O sol brilhava morno, e uma aragem cariciosa, perfumada, tornava agradável a permanência no parque e nos terraços. Alguns dias depois de sua
chegada à casa dos Bakulim, achava-se Valéria sentada no terraço, diante do cavalete que sustentava o retrato de seu irmão Anatólio, que pretendia oferecer de presente
à genitora. Larissa partira para a cidade, a fim de fazer compras, e estava sendo esperada a todo o momento. Foi aí que anunciaram a Valéria, o Barão de Rothschild!
A moça não o tornara a ver, depois do primeiro encontro e de novo sentiu-se tomada da mesma sensação de desconforto e aversão à entrada da visita. Dominando-se
a custo, recebeu-o com algumas palavras amáveis. Rothschild desculpou-se por coincidir a sua visita com a ausência da Sra. Bakulim e acrescentou que recebera de
sua tia uma carta em que tratava da viagem à Itália, e cujo conteúdo desejava comunicar a Larissa.
-- Creio, Pawel, que minha tia regressará a qualquer instante. Dize-me: escreve Helena outra vez sobre o castelo
encantado? Quis saber Valéria. Esse castelo interessa-me extraordinariamente. Ela observava Rothschild com atenção e notou que seu rosto, à luz do dia, parecia
quase de cera transparente. "Como ele parece doente! Pensou ela Talvez tenha após si, e outra vez, uma peregrinação noturna"... O olhar de Rothschild buscava-a.
-- Tia Helena, certamente escreve sobre Montinhoso. Ela está quase que fanática por esse castelo. Afirma ter já visto algo, como que um fogo-fátuo, que adejava sobre
uma ponte. E as pessoas do lugar logo lhe narraram uma lenda que fala sobre a chama errante. Contam existir por ali, alhures, uma capela mortuária, de cujo altar
a heroína da lenda derrubou a imagem da Virgem Santa. Enquanto essa imagem não for recolocada no seu lugar, a alma da pecadora seguirá perseguida pela desgraça e
peregrinará sem descanso. -- Céus, como tudo isto é interessante! Exclamou Valéria deslumbrada. Com que imenso prazer eu não iria descobrir essa capela para recolocar
a Virgem no seu altar, e, com o auxílio de Tonilim, restituir à inquieta pecadora a sua paz. O Barão sorriu imperceptivelmente. -- Sim, tudo isto é, realmente, muito
interessante. Sinto-me, também, atraído para lá, desejoso de descobrir esses segredos. Todavia... digo a mim mesmo se não seria mais certo, e melhor, deixar que
os mortos repousem em suas tumbas, não revolver o passado, em suma. A chegada de Larissa interrompeu a conversa sobre fantasmas. A palestra generalizou-se, e o assunto
não pode deixar de ser a viagem. Na presença de todos, Larissa comunicou que seu esposo, ao contrário do que prometera, não poderia acompanhá-los até Milão. Assuntos
inesperados e inadiáveis, exigiam a sua presença na Criméia. Jorge tão-pouco perderia ir. Tudo isso era extremamente desagradável às duas senhoras, pois viam-se
sem companheiro para a viagem. Na-
turalmente, desde logo, Rothschild prontificou-se à acompanhá-las. Tanto mais que pretendia aceitar o convite da
tia, Larissa aceitou, agradecida, o oferecimento. E passaram-se os dias. Rothschild tornou-se um hóspede constante dos Pawlosk. Ele não pode evitar que os fios misteriosos
que o levavam para Valéria, se tornassem cada dia mais fortes. Mas os sentidos que o aproximavam, imperceptivelmente, eram enigmáticos e difíceis de analisar. Os
olhos negros do Barão tinham aprisionado Valéria completamente contra a sua vontade, e nenhum outro homem mais entrava em suas cogitações. Mas quando Rothschild
chegava, só a sua presença ou um contacto casual com ele, eram suficientes para que se enchesse de susto. Nessas ocasiões, se seguisse os impulsos instintivos, sairia
correndo para longe. Os sentimentos de Rothschild não eram menos extraordinários: oscilavam entre a paixão, a aversão e um movimento de fuga apavorada. Nenhum dos
dois podia compreender a dimensão de seus sentimentos, e tudo atribuíam exclusivamente à superexcitação de nervos. Uma semana antes da partida para a Itália, Valéria
foi a S.Petersburgo. Sua mãe havia regressado por alguns dias de sua propriedade, afim de fazer as últimas compras, os preparativos de viagem e despedir-se da filha.
Apesar de satisfeita, à perspectiva das muitas visitas de despedida, das compras e da arrumação de malas, não pode Valéria fugir a um nervosismo febril e doentio.
Tinha um pressentimento seguro de que aquela viagem se faria sob o influxo de uma má estrela, que nunca mais voltaria para casa e nem tornaria a ver os seus. Na
última noite que passou em S.Petersburgo, não conseguiu pregar os olhos, Como que vindos de muito longe, ouvia os sons de cantos fúnebres e sentia o rosto bafejado
por uma aragem glacial. Seus nervos não encontravam repouso. Durante toda a manhã seguinte, chorou ininterruptamente, abraçando e beijando a mãe e o irmão. A senhora
inquieta, propôs-lhe partisse junto com a progenitora à propriedade ancestral, a fim de refazer-se, esquecendo a viagem à pe-
nínsula. Valéria, porém, não aceitou o alvitre. Receava magoar Larissa. Finalmente, Anatólio conseguiu tranqüilizá-la.
Prometeu ir pessoalmente buscá-las, findos dois meses em Montinhoso. Já dentro do comboio, a sensação de terror afetou-a mais uma vez. Não pode conter as lágrimas,
e só a custo conseguiu a genitora acalmá-la um pouco. Rothschild reservara lugar no mesmo vagão. Foi convidado por Larissa a passar para o compartimento reservado
por ela. Gostosamente aceitou o convite, Num momento, pensativo, observou Valéria, e involuntariamente pensou numa passagem de Destinos do Passado, que firmara-se
em sua memória: A maioria dos encontros com nossos semelhantes não é mera obra do acaso. O destino coloca-nos frente a frente aqueles por intermédio dos quais somos
submetidos a esta ou aquela provação, ou temos que purgar um erro do passado. Estas palavras convenciam-no, cada vez mais, de que a Providência levava-o ao lugar
em que qualquer coisa de terrível, qualquer coisa de funesto, esperava-o. Com grande força de vontade, conseguiu, afinal, liberta-se de tais pensamentos. "Esta menina
é excessivamente nervosa, e com suas lágrimas está também atacando os meus nervos!" Pensou ele e esforçou-se, zangado com sua própria excitabilidade, por exibir
uma aparência mais jovial. Para distrair as senhoras, ofereceu-lhes confeitos, e iniciou uma conversa mais pueril. A viagem arrebatou os dois jovens de seus tétricos
pensamentos. Em Milão, Valéria já se encontrava outra vez alegre, e gozou o panorama da bela cidade. Rothschild era um guia amável e jeitoso, que dispunha também
da necessária dose de humor e vivacidade para tornar interessante e divertida a visita aos monumentos dignos de serem vistos. A viagem, os passeios, as empresas
em comum, levaram os três a uma relativa camaradagem. Concordaram em visitar Florença somente no regresso, e seguiram diretamente para Montinhoso, a residência de
Helena. Numa pequena estação entre Florença e Modena, deixaram o trem, e foram prazerosamente recebidos por Miguel Muranoff, filho de Helena.
-- Uma carruagem está a vossa disposição, mas o último trajeto para Montinhoso terá de ser feito a cavalo. A estrada
é íngreme demais... Quando deixarmos a estrada, enveredaremos por um atalho. Encontrareis uma região fabulosamente medieval! Dizia Mischa, alegremente. A viagem
foi morosa. O caminho tornava-se cada vez mais íngreme. Afora isso, encontrava-se em péssimo estado de conservação. Mas os viajantes nem percebiam os solavancos
do carro tão embebidos iam nas belezas naturais. Quanto mais avançavam, mais selvagem e romântica tornava-se a região. A mata fechada, cobria montes e vales e, ora
à direita, ora à esquerda, profundos desfiladeiros bordejavam o caminho. Larissa estava encantada. -- Como foi possível a Helena encontrar este ninho de coruja?
Já estamos agora a bem três horas de caminho e ainda não topamos viva alma. -- Isto tudo é, realmente; maravilhoso! Disse Mischa. Logo chegaremos a uma pequena
vila de cerca de dois mil habitantes. De lá, então, não estaremos distantes de Montinhoso. No máximo ainda uma hora de viagem. Mamãe leu num jornal florentino um
anúncio em que pintavam este castelo de um modo singularmente belo. Pusemo-nos a caminho e ela, desde o primeiro momento, esteve tão entusiasmada com esta bela região,
com o velho castelo e a sua quase patriarcal criadagem, que o alugou imediatamente. E como dizem estar agora à venda, quase temo que finalmente o compre. Logo estaremos
na cidadezinha, que, em suma, não difere de outras centenas de pequenas cidades italianas: ruas estreitas e tortuosas, crianças sujas que brincam e esmolam de permeio
a alguns monges, mulheres e vilões curiosos.

4
O CASTELO Num velho albergue, os viajantes tomaram uma ligeira refeição, repousaram por algum tempo, e depois prosseguiram o caminho a cavalo. A estrada tornara-se
quase a pique, desenhando intermináveis curvaturas, apresentando sempre belos e novos panoramas. Quanto mais se aproximavam do castelo, tanto mais inquieto tornava-se
Rothschild. Seu coração pulsava irregularmente, a garganta apertava-lhe como que estrangulada, e nas fontes sentia a mais dolorosa das pressões. A própria Valéria
sentia um indefinível peso ao longo dos membros, um torpor, um estremecimento em todo o corpo. Por esse tempo, a pequena caravana alcançava um desfiladeiro. No seu
ponto mais estreito viam-se ainda restos de antigas construções, que, provavelmente, em tempos idos, vedavam o acesso ao castelo. Depois veio uma curva forte pela
direita e um panorama cativante se apresentou. Os cavaleiros achavam-se sobre um grande pátio. À direita, erguiam-se montanhas íngremes recobertas de matas, e à
esquerda estendia-se um profundo vale, em cujo centro abria-se um lago liso como um espelho. No ponto sobranceiro desse pátio, erguia-se o antiqüíssimo castelo de
salteadores, com seus muros maciços e suas torres quadradas: uma fortaleza protegendo dos inimigos os seus habitantes. -- Como é maravilhoso isto! Gritou Larissa!
Mas interrompeuse imediatamente, assustada. Pelo amor de Deus, Valja, o que é que tens? Valéria erguera-se ereta da sela e, com os olhos muito abertos, transbordantes
de um horror incomensurável, fitava o castelo. Com os lábios trêmulos somente pode balbuciar ainda: -- Foi aqui! Eu reconheço tudo outra vez... E sem sentidos escorregou
da sela para trás. Teria caído da montaria se Miguel não a
tivesse socorrido. Também Rothschild aproximou-se rapidamente, auxiliando a tirarem-na da sela e deitando-a sobre
a relva. -- Certamente foi o calor que exerceu o seu efeito sobre os nervos fracos da pobre menina! Como a levaremos ao castelo se não despertar do ataque? Perguntou
ansiosa Larissa. -- Não se inquiete, senhora! Já fomos vistos de lá. Mamãe e Lolo, e mais algumas pessoas já vêm ao nosso encontro, e nos ajudarão. Foi nesse momento
que se acercaram Helena Muranoff com sua filha, o velho castelão, sua mulher e um criado. A satisfação do encontro, foi turbada pelo sucedido a Valéria. Lolo especialmente
inquietouse bastante, e somente se deu por satisfeito quando lhe explicaram que o mal da amiga fora provocado pelo calor e a fadiga. Com o auxílio do castelão, os
dois senhores conduziram a moça desfalecida ao castelo, onde logo conduziram-na aos aposentos que lhe tinham sido reservados. Já despida por Larissa, e deitada,
ela despertou, e abriu interrogadora os olhos. Helena trouxe-lhe um refresco, e em breve a donzela readormecia profundamente. As senhoras acalmaram-se e dirigiramse
ao salão, onde os cavalheiros já as aguardavam. Tomaram então uma refeição farta, finda a qual Helena conduziu-os ao terraço. Desse local tinha-se uma vista esplêndida
do vale e o lago e algumas ruínas circundadas de árvores seculares. -- Estas ruínas são de um antigo convento que há muitos anos foi destruído pelo fogo e não reconstruído
explicou Helena sorrindo maliciosamente. Creio que o verdadeiro motivo que obstou a reconstrução foi o medo supersticioso aos fantasmas. Pois que, tanto quanto
se pode averiguar, as paredes exteriores continuam ainda muito sólidas, e os interiores não seria difícil reconstruir-se. Mas esta região não tem boa fama. Dizem
que traz infortúnios aos que a habitam. E quando, um dia, um raio caiu sobre o convento, os supersticiosos monges aproveitaram-se dessa manifestação da força do
céu como pretexto para fuga e deixaram o edifício entregue às chamas. Mais tarde se estabeleceram nas proximidades da pequenina cidade.
-- Só o convento ou também o castelo tem fama de assombrado? Perguntou Rothschild que se acalmara da inicial perturbação.
Também o castelo, naturalmente! Apressou-se Helena em responder. E este até mais de que o convento. A aparição dos espectros começou já há muitos anos, depois
que se deu aqui qualquer fato horripilante, cujas minúcias ninguém deseja saber exatamente mas que, em geral, admite-se ter sido extraordinariamente horripilante...
-- Faze-me um favor, titia. Se conheces qualquer coisa que seja, dessa história, conta-ma. Pediu Pawel. Já as tuas cartas despertaram em mim um vivo interesse
por este castelo Undolfo e seus mistérios. -- O que ouvi do castelão e sua mulher contarei com muito prazer. O velho Bernardino sabe quase tudo no terreno da lenda
sobre este castelo. Há mais de três séculos o cargo de alcaide vem pertencendo à sua família, passando de pai a filho. Cada um conta ao outro, certamente, o que
sabe. Fundadora e proprietária deste castelo de salteadores, é a estirpe dos Condes de Montinhoso. Oriundos de Modena, foram outrora riquíssimos e considerados.
A parte mais antiga do castelo foi construída, mais ou menos por volta do século XIV. Pouco a pouco, foi se construindo esta e aquela parte, até que em fins do século
XIV, deu-se o acontecimento há pouco referido, que soterrou a fama e a consideração do castelo e de seus proprietários. A partir de então, os Montinhoso foram perseguidos
pelo infortúnio. A maioria deles faleceu na primeira juventude ou sucumbiu em desastres. A fortuna do clã desapareceu, e os portadores do nome Montinhoso tornaram-se,
de geração em geração, sempre excêntricos. Uma androfobia quase inacreditável afastava-os de quaisquer relações com outras pessoas de suas condições. O último Montinhoso
faleceu há cerca de sete anos passados, com a idade de 95 anos. A maior parte de sua vida, cerca de 50 anos, passou-a neste castelo em completa solidão e afastamento.
Ele lia e estudava a história da família, colecionando todas as lendas e histórias que se teceram em torno do castelo e seus habitantes. Por sua morte, o castelo
passou às mãos de seu primo, o Marquês Bianco.
Este, até agora, não pôs o pé aqui; não quer saber deste terrível ninho e procura vendê-lo. Essa venda, por sinal,
está anunciada há sete anos. Até o momento, porém não se apresentou candidato à compra. Sem considerar que esta propriedade não produz renda nenhuma, pois que seus
melhores terrenos já foram de há muito vendidos, os prováveis compradores são afastados pela má fama que pesa sobre o castelo em virtude dos supostos fantasmas.
O italiano, como é sabido, é por demais supersticioso. Assim, o Marquês espera um estrangeiro milionário, a quem a posição romanesca do castelo apaixone sem cogitações
de valor e rendas. Rothschild escutava atentamente e interrompeu: -- Mas quem é o herói ou a heroína do drama desenrolado aqui! Não será isso conhecido? E que pecado
terá sido o dele? -- Bernardino evita o quanto possível, falar disso. Se tem medo, ou vergonha, não sei. De Savéria, sua mulher, porém, ouvi que o personagem dessas
lendas é um certo conde, Paulo de Montinhoso, que reunia e representava um tipo de Dom Juan e César Bórgia. Algumas mulheres, como é de supor-se, estão também envolvidas
nas legendas, e uma delas chamava-se Giovana. De todas, uma foi morta por Paulo a pancadas, outra, dizem, estrangulada, e uma terceira ludibriada. Então, as almas
dessas vítimas, e ainda outras, passaram a perseguilo neste castelo. Mais tarde internou-se ele num convento mas também aí não encontrou, certamente, a tranqüilidade
pois seu espírito ainda peregrina por aí, incessantemente, e só será liberto quando todas as suas vítimas, ou melhor, quando todos os espíritos dessas vítimas se
tenham aqui reunido e reconciliado. Helena terminou a exposição. Nessas histórias haverá, com certeza, um fundo de verdade! Disse Lolo. Quando estávamos aqui há
alguns dias, deu-se um fato singular. O dia tinha sido muito quente e por isso gozávamos a frescura da noite, depois do jantar, aqui no terraço. Savéria nos relatava
justamente essa história quando ouvimos de repente, dentre as árvores, Um murmúrio e depois uma voz feminina, estrangulada na garganta,
que gritava: Paulo, Paulo, Maledetto! Depois veio o ruído como que do baque de um corpo humano sobre o solo. Savéria
tremia como se tivesse febre e repetia incessantemente: "Il spétro, il spétro". Mischa correu ao jardim e esquadrinhou os recantos todos, sem encontrar qualquer
coisa. De minha parte vivo suplicando a Deus que todos esses espíritos inquietos se reencontrem finalmente, e perdoem-se, para que também nós possamos ter paz. Lolo
sacudiu-se toda, involuntariamente, movida de horror. -- Eu te digo, Pawel, inda agora perpassa-me um calafrio pela espinha quando me lembro disso! E não rias como
mamãe, que não acredita em nada! Acrescentou meio zangada. Quando um ser invisível grita como se tivesse sendo estrangulado por outro, podem os nossos cabelos
de fato eriçarem-se! Rothschild sorriu sutilmente. -- De fato, Lolo! Se são espíritos ou fantasmas, podem mesmo arrepiar a gente! Prometo-te ocupar-me cuidadosamente
desse assunto. Pediremos a Dionid Tonilim o seu concurso. Larissa também estará, certamente, do nosso lado. Com nossas forças reunidas, haveremos de levar tranqüilidade
a esses lúgubres malfeitores. Assim o espero, ao menos. Arrepender-se-ão de suas ações e subirão, finalmente, ao paraíso. E poderemos gozar a nossa permanência em
Montinhoso com paz e segurança. Todos riram aliviados, depois dessas palavras do Barão. -- Também não somos todos como Lolo, que tem medo de fantasmas! Disse Helena.
A mim, por exemplo, eles não incomodam. Investigar todos os mistérios daqui não será muito fácil, porque foram tomadas grandes precauções no sentido de afastar os
curiosos indesejáveis. Assim é que um sucessor de Paulo mandou fechar a entrada da grande sala de recepções e de alguns outros aposentes. Quantas são as salas fechadas
não se sabe, mas a avaliar-se pelo comprimento do muro, que se estende ao longo do jardim, deve ser um bom número. Também as janelas estão em parte muradas, e em
parte guarnecidas de grades intransponíveis. A parte inferior do muro é de tijolos, e atrás
desses tijolos estão, sem dúvida, as entradas. Mas árvores e arbustos envolveram de tal maneira, tão densamente,
esse muro, que parece quase impossível a passagem. Mischa subiu algumas vezes às árvores, para ao menos tentar ver através das janelas. Mas não pôde ver nada. Possivelmente
estarão fechadas pela parte de dentro. Em todo o caso seria preciso adquirir-se Montinhoso para então romper, sem empecilhos, todas as portas e janelas, invadindo-se
assim o castelo encantado! Concluiu Helena fitando rapidamente o sobrinho. Rothschild silenciara, e parecia abstraído por seus pensamentos. Distraidamente respondeu
apenas às perguntas de Lolo e Miguel. Com prazer aceitou o convite para ir ao pequeno terraço, do qual se ouviram os gritos fantasmagóricos. Fez ainda passeio ao
reder das muralhas, e somente pouco antes da ceia, regressou à companhia dos outros. Finda a refeição, desculpou-se, e, acompanhado de Miguel, procurou o seu quarto.
Depois de dispensar o companheiro, inspecionou a nova habitação. O quarto era grande, e recebia a luz por uma alta janela gótica. Além da cama e do lavatório, todos
os demais móveis eram antiqüíssimos. As cadeiras, de encosto em estilo renascença, eram cobertas por um brocado antigo, entremeado de ouro. Sobre a lareira, sobre
as portas do armário, sobre os encostos das cadeiras, ainda se conservavam as armas dos Montinhoso. As paredes, revestidas de tapeçarias, estavam ornadas de custosos
gobelins. Diante de um desses trabalhos, encostava-se uma console com figuras de porcelana e vasos. Rothschild aproximou-se da janela e acomodou-se numa cadeira
de espaldar alto e entalhado. O panorama era o mesmo que vira do terraço. Outra vez teve à sua frente o profundo e formoso vale com o seu lago, as encostas recobertas
de matas e as ruínas do convento. Apoiou-se sobre o peitoril da janela e gozou da belíssima paisagem. Durante esse tempo, trabalhava o seu cérebro em algo a cujo
respeito ele próprio não estava ainda bem lúcido. Uma disposição nostálgica acometeu-o, e ele, de preferência, teria chorado. Tudo quanto via ali, parecia-lhe tão
conhecido, sobretudo o quarto e a paisagem que tinha diante dos olhos! No local em que o castelo avançava até bem próximo
da montanha, deveria existir, ao que imaginava, um pequeno caminho conduzindo ao alto. A sua fantasia situou aí
um banco de pedra, e próximo dele, uma gruta que o homem ou a própria natureza escavara na rocha. Dessa gruta deveria partir um caminho empedrado em direção ao convento.
Respirando com dificuldade, Rothschild ergue-se. A atmosfera do quarto oprimia-o, cortava-lhe a respiração. Tinha desejos de certificar-se se os seus sentidos o
traíam, se aquele banco e aquela gruta existiam apenas em uma fantasia ou materialmente. Saiu vagarosamente do aposento. Com uma segurança espantosa, percorreu toda
a ala em completa escuridão. Caminhando ao longo da parede que circundava o castelo, alcançou o caminho e após, ascendendo, ao tope onde, duvidando de seus olhos
encontrou o banco de pedra. " Com as sobrancelhas contraídas correu os olhos ao seu redor. -- Falta ainda que eu encontre a gruta! Murmurou. Quis erguer-se, mas
as pernas negaram-se. Uma sensação de tonturas acometeu-o, despertando nele a sensação da queda num abismo. Pouco a pouco a incerteza foi deixando-o, e em breve
sentiu-se restabelecido. Apenas um ligeiro desassossego permaneceu consigo. Subitamente, julgou ouvir passos leves e apressados. Um ruído de seda farfalhando, obrigou-o
a elevar os olhos. Um frio glacial perpassouo quando distinguiu uma figura feminina envolta em sombrias cores. Mas sob o capuz das vestes singulares, ele reconheceu
o amável semblante de Valéria. Cheia de um amor jubiloso, ela fitou-o, não oferecendo resistência quando atraiu-a a si, enchendo a sua boca de beijos escaldantes.
-- Até que enfim, tu também estás aqui, Giovana! Eu temia a tua ausência! Balbuciou ele. Não sabia ao menos porque chamava-se assim, Giovana, e não Valéria, e também
não cogitava em se tinha o direito de estreitá-la nos seus braços. -- Eu te havia prometido que viria... Paulo! Oh! Sei agora que seremos felizes... Disse Valéria
mansamente.
-- Sim, Giovana, tu tens razão! A felicidade está mais próxima de nós, agora, que antes... Vem, pai Anselmo já
espera por nós. É preciso que estejamos de volta à casa, antes que o galo cante!... Enlaçou-a e, apressadamente, seguiram o caminho empedrado que conduzia ao convento.
Através de uma obscura passagem de heras, chegaram a uma porta que, por si só, abriu-se diante deles. Passaram por ela e encontraram-se numa capela. Uma frouxa claridade
iluminava o altar. A frente deles, postavam-se vários vultos embuçados. Sobre os degraus do altar, encontrava-se um sacerdote, cujo rosto era encoberto pelo capuz
abaixado, do seu hábito de monge. Quando Rothschild e sua companheira curvaram-se à sua frente, iniciou-se o ofício divino. Um dos vultos encapuzados adiantou-se
e afastou a capa de sobre os ombros de Valéria. Rothschild viu-a num vestido branco, num vestido de noiva de véu entremeado de prata, com um toucado de pérolas entrelaçando-lhe
os cabelos. Quando o sacerdote colocou os anéis nupciais guarnecidos de rubis e ouro, nos dedos dos nubentes, um calafrio gelado percorreu o corpo do Barão, e, como
que despertando de um sonho, reconheceu a singular dualidade de seu ser. O que lhe sucedera? Estava embriagado ou estava louco? O que significa aquela encenação
misteriosa, e o que desejavam os vultos embuçados metidos em seculares hábitos? A cerimônia terminou finalmente. Os recém-casados de tão extraordinária maneira,
ergueramse da posição genuflexa. Esquecido de tudo quanto o cercava, Rothschild tomou Valéria nos seus braços. Nesse mesmo instante todavia, a donzela desfêz-se
no ar e desapareceu. No extremo da capela, porém, abriu-se uma porta, e dessa aproximaram-se muitos monges, todos com círios acesos a destra. Caminhavam aos pares,
e entoavam cantochões monótonos. Seguia-os, conduzido por homens vestidos de negro, um caixão mortuário aberto, no qual, semelhante a uma estátua de alabastro, jazia
um corpo de mulher. Era Valéria ou... Giovana! Perplexo, Rothschild olhava a procissão. Como que atraído por um secreto poder, aproximou-se do esquife e debruçou-se
sobre a morta. Ouviu então o ressoar de um grito horripilante:
-- Perjuro! Assassino! E a mão fria da morta segurou-o pelo pulso. Meio alucinado de horror, ele caiu de joelhos,
e apenas sentiu um vento gelado e depois, o nada...

5
A COMPRA Aos primeiros raios de Sol nascente, Rothschild abriu os olhos e admirado, olhou ao seu redor. Estava deitado sobre o solo, junto ao banco. Um peso incrível,
sobre os membros abatia-o. Lançando mão de um supremo esforço ergueu-se, pondo-se logo em movimento. -- Assim terminarei por contrair qualquer moléstia ou inutilizar
para sempre os meus nervos, aliás já bem atacados. Murmurou de si para consigo. Correndo como em fuga, regressou ao castelo. Em seu quarto engoliu às pressas um
copo de vinho, deitou-se e adormeceu logo. Ao meio dia despertou desse sono. -- Deus do Céu com certeza todos já terão almoçado. O que dirá tia Helena? Vestiu-se
às pressas. No refeitório encontrou a dona da casa e Larissa. -- Muito bom dia, Pawel. Isto é que se chama dormir, hein? Parece que os fantasmas de Montinhoso não
te aborreceram! Disse Helena, cumprimentando-o. -- A senhora me desculpe, prezada tia, por aparecer tão tarde. Mas eu só pude dormir com muita dificuldade, e por
isso recuperei o sono pela manhã... Explicou Rothschild beijando, respeitosamente, as mãos das senhoras.
-- Bem, aqui tens o café. Assenta-te e toma-o. Quando vierem as nossas jovens damas, teremos a refeição completa.
Disse Helena, passando o café ao sobrinho. -- Permiti-me que pergunte como passa Valéria. Restabeleceu-se ela da vertigem de ontem? Perguntou Rotschild. -- Obrigada,
Respondeu Larissa. Graças a Deus dormiu bem e foi agora dar um passeio na companhia de Lôlo. Alguns minutos depois regressavam as jovens senhoritas, Lôlo corada,
alegre e sorridente, Valéria provocante num vestido branco com um ramo colorido de flores à cintura, mas um tanto pálida e de aspecto abatido. Quando encontrou Rothschild
corou ligeiramente e evitou fitá-lo. -- O seu aspecto não será o de quem também participou comigo o sonho do casamento? Pensou o Barão. Por Deus, interessantes
atrapalhações preparam-se se isso continuar assim. Mas de sua parte decidiu que não levaria esses pensamentos levianos a sério. Furtivamente pôs-se a observar Valéria,
e notou que cada vez que seus olhares tocavam-se, a moça vexava-se, e enrubescia. Involuntariamente, vieram-lhe à lembrança as palavras ouvidas no decorrer da noite:
"Perjuro! Embusteiro! Assassino!" Estremeceu. Não seria de fato um bígamo e um perjuro, se os sucessos noturnos não fossem apenas um sonho?! Extraordinário seria,
realmente, se Valéria tivesse tido o mesmo sonho. Se os espíritas têm razão e nós não vivemos apenas uma vez, então qualquer sucesso misterioso o prendia sem dúvida,
àquela senhorinha, que em seu sonho chamara Giovana... Depois do almoço fizeram um passeio em comum. Riccioto, o filho do alcaide, acompanhou-os. Uma grande parte
do castelo já estava bastante arruinada e inabitável. Num flanco mais ou menos conservado, via-se um longo corredor, do qual, um dos lados, era ocupado por uma seqüência
de celas, enquanto que o outro voltava-se para o jardim, abrindo-se em arcos góticos. Durante a visita às ruínas, Rothschild sentiu-se de novo invadido pela desagradável
sensação. Outra
vez tudo aquilo que estava vendo pela primeira vez, parecia-lhe conhecido e familiar. O longo corredor, com a arcada
gótica, parecia-lhe ser o mesmo vislumbrado através de seus sonhos. Quando penetraram no velho cemitério, que se estendia ao longo dos muros do antigo convento,
o Barão observou um pequeno cômoro que sobressaía da vegetação. Afastou os galhos e encontrou uma abertura, que, outrora, certamente prendera uma porta. Os degraus
de pedra, ainda bem conservados, conduziam, sem dúvida, a qualquer calabouço ou quiçá a uma catacumba. No percurso da escadaria, foi barrado por uma porta de ferro
que procurou, ainda que não visse nela quaisquer fechaduras, forçar, sem resultado. -- Este é o jazigo da família dos Condes de Montinhoso. Explicou Riccioto.
A porta está fechada. -- Admira-me que, pertencendo a uma estirpe desde há muito extinta, este jazigo não tenha ainda sido violado pelos ladrões! Observou Rothschild.
-- Não, senhor! De todos os moradores das cercanias, nenhum terá, por certo, o menor desejo de entregar sua alma ao diabo o que se daria, inevitavelmente se ouvisse
tocar em qualquer coisa deste lugar habitado por maus espíritos! Retrucou o jovem guia. -- Mas então sobre todos os Condes de Montinhoso pesa a excomunhão? Perguntou
Larissa. -- Chi Io sa? Todos foram homens rudes e maus. O último, é verdade, foi um homem bom, mas excêntrico. Como seu pai, também ele não quis ser sepultado neste
jazigo. As sepulturas de ambos encontram-se no cemitério público. Mas todos os outros condes, à exceção do Conde Paulo, o Maledetto, repousam aqui. Paulo tem um
jazigo separado! Disse Ricciotto. Em caminho de regresso, Larissa estendeu aos demais a sua admiração quanto à extraordinária firmeza com que a recordação deste
ou daquele episódio transcorrido há séculos, ficara gravado na memória do povo.
-- Mesmo os nomes dos heróis legendários são transmitidos de geração em geração! Quanto a Rothschild, estava de
tal maneira sob a influência, que não tinha senão um único desejo: saber o que continha a parte murada do castelo, o que havia naquelas lendas de realidade e de
invencionice, o que se passara aí, em verdade, e que parecia tão intimamente ligado ao curso do seu destino. Bem cedo amadureceu-lhe no espírito o plano de adquirir
o castelo Montinhoso se o preço não fosse muito elevado. Ainda que não pudesse, desde logo, dispor da necessária importância, muito embora herdeiro de milhões e
milhões não lhe parecia difícil entusiasmar o tio. Resolveu, então, escrever no dia seguinte, abordando o assunto. Depois do almoço, fez encilhar o cavalo, e, sob
pretexto de desejar visitar a igrejinha da vila, bem como efetuar pequenas compras, partiu. Era um princípio fundamental em Helena, conceder aos seus hóspedes a
mais ampla liberdade de ação. Chegando à cidadezinha, Rothschild dirigiu-se em primeiro lugar ao notário, do qual soube que o castelo, com tudo quanto lhe pertencia,
estava à venda pela insignificância de 50 mil liras. -- O marquês de Bianco, um homem rico, aliás, quer se ver livre dessa propriedade, que herdou e ficaria, naturalmente,
muito satisfeito que se encontrasse um comprador Disse o notário. Rothschild comunicou-lhe a sua inteira intenção de adquiri-lo; mas precisava, antes, obter o dinheiro
necessário. Pediu ao notário que não vendesse o castelo por enquanto, pois aguardava notícias da Rússia. Quando já tinha no bolso uma declaração nesse sentido, dirigiu-se
ao hotel, escrevendo daí uma carta detalhada ao tio. Pedia-lhe insistentemente, lhe concedesse a importância necessária à essa compra. "Com toda a franqueza, prezado
tio, essa compra é altamente interessante, pois o castelo, tanto quanto se pode ver, está literalmente abarrotado de maravilhosos móveis da Renascença, de pinturas
e tecidos de brocados. E como até agora não te dei motivo para estares
descontente comigo, espero, com toda certeza, que não me negarás este obséquio." Concluiu ele. Desde esse dia,
manifestou-se um grande nervosismo em Rothschild. Febrilmente ele aguardava a resposta do tio, e de dia a dia mais desejava ter Montinhoso por sua propriedade. Também
os seus singulares estágios de sonhos se manifestavam mais fortes. Estava convencido da dualidade do seu eu. Esse segundo eu, que lhe surgira do passado, tornava-o
escravo de uma outra. A sua vida normal, a sua existência momentânea, parecia-lhe sem consolo e vazia: enojava-o. A mesma dissensão manifestou-se também no seu convívio
com Valéria. Se a encontrava durante o dia, às refeições ou no decorrer dos passeios, ela infiltrava-lhe aversão e pensamentos hostis; tornava-se então breve e comedido.
Mas quando à noite encontrava-se a sós, no silêncio do seu quarto, das profundezas de sua alma erguia-se uma paixão escaldante para com a jovem, e vinha-lhe o desejo
de revelar-lhe esse sentimento. Também Valéria sentia-se sob o domínio do mesmo estado emocional. Durante o dia permanecia calma, palestrando admiravelmente com
Lolo e Miguel. À noite, porém, não encontrava sossego ante as perseguidoras imagens dos sonhos. Via sempre, à sua frente, o semblante do Barão, cujo olhar apaixonado
parecia querer penetrá-la. Muitas vezes supunha até mesmo sentir-lhe o hálito quente junto à face. Então assenhorava-se dela o sentimento de uma profunda inclinação
para com Rothschild, e não via barreiras à sua frente que pudessem servir de obstáculos à sua fuga na direção dele. E isso até que de novo se apoderava dela uma
forte aversão para com o homem, sobre cuja origem e caráter tão poucos esclarecimentos pudera obter. Cerca de três semanas haviam passado; Rothschild, sem intenção
especial, nada revelara acerca de sua visita ao notário. Quando, pois, chegou uma carta de seu tio capeando um cheque sobre o Banco de Florença, também a esse respeito
nada disse a ninguém. As conferências com o notário, ele conservou-as em segredo. A compra da propriedade foi levada a termo e faltavam apenas algumas formalidades
para torná-la efetiva. Somente depois de completamente liquidado, estando ele na posse completa do castelo, Rothschild
pretendia falar sobre o negócio. Queria surpreender a tia, que, então se tornaria sua hóspede! Uma noite em que todos se achavam no terraço chamaram a velha Savéria
e lhe pediram que relatasse as lendas que conhecia sobre Montinhoso. Não deveria, contudo, silenciar sobre as tradições que se referiam à parte murada do castelo.
Mas não foi possível arrancar muita coisa à velha. A presença de Rothschild parecia inquietá-la; de quando em vez lançava olhares tímidos sobre o rosto pálido do
Barão. -- Sim, se eu dispusesse de capitais um pouquinho maiores, compraria logo Montinhoso! Disse ele caçoando. Então iríamos penetrar livremente nos aposentos
misteriosos, levantar o véu do mistério que envolve este castelo. Estas salas são tão velhas e mofadas, que um pouco de ar e luz não lhes poderiam fazer mal. --
Escreve ao tio, Pawel. Disse Larissa Estou plenamente convencida de que ele não te negará esse pequenino favor. -- Se eu tivesse dinheiro disponível, Montinhoso
seria minha propriedade. Disse Helena. Mas espero, que, se Pawel tornar-se realmente o proprietário deste castelo encantado, não nos negará hospitalidade! Estou
ansiosa por penetrar no paraíso maldito, para além das portas e janelas muradas. Os fantasmas absolutamente não me amedrontam. -- Olha, Pawel, disse Lolo eu só
posso dar este conselho: se adquirires Montinhoso não franqueies as portas fechadas. Só Deus sabe quais os crimes aí cometidos! Eu não viveria aqui por dinheiro
nenhum, depois de abertas essas portas e janelas muradas. -- Tranqüiliza-te pequena Lolo! E carinhosamente Rothschild acariciou a prima. Se eu fosse proprietário
deste castelo, certamente escolheria um outro caminho para chegar à ala misteriosa. Já me tenho orientado minuciosamente. Por aí deve existir uma capela. Uma das
paredes laterais dessa capela, que é ligada à parede do castelo, oculta, positivamente, uma passagem secreta para a respectiva ala.
Afastando os galhos e os arbustos que são muito densos nesse lugar, e rompendo um pouco o muro, haveremos de por
força, encontrar a porta. Nem bem pronunciara essas palavras, e ouviram distintamente, um tanger de sinos, ao qual seguiu-se, em breve, lamentoso coro fúnebre. Todos
ergueram-se excitados. Mas, na escuridão não se podia ver nada. Através do silêncio que se estabeleceu somente ouvia-se, mais distintamente agora, o dobre angustiado
e os cânticos soturnos... De repente, cessou tudo. -- De onde virá isto? Perguntou Miguel, admirado. Sabes alguma coisa a respeito, Savéria? Há talvez alguma igreja
pelas vizinhanças... Mas Savéria estava incapaz de responder. Fantasticamente pálida, encostou-se à parede. Seus dentes entrechocavam-se como se estivesse com febre
alta. -- Mas, Savéria, como podes ser supersticiosa assim, a ponto de o mais leve ruído produzir-te semelhante excitação? Disse Helena. -- Não, signora, não é um
ruído inocente. Estes sinos não indicam boa coisa... Respondeu Savéria. -- Qual, tolices! Em qualquer igreja próxima repicam sinos. E isto já há de ter uma má significação?
Tenha vergonha, Savéria! -- Signora, em muitas milhas em derredor não existe nenhuma igreja. O meu bondoso e velho Signore, me disse muitas vezes: "Savéria, quando
nas ruínas do castelo ouvires os monges cantando o DE PROFUNDIS, e os sinos dobrarem, acautela-te. Isto quer dizer que todos aqueles que outrora aqui viveram, -estão
de volta! Novas lutas, paixões e blasfêmias se erguerão deles. Mas ninguém será capaz de desvendar os segredos do passado". -- Mas Savéria, como podem as criaturas
mortas e sepultadas há séculos, voltar de novo? Será possível que o teu falecido senhor tenha te levado a crer nessas tolices? Ou sofria ele de alguma mania? Perguntou
a incrédula Helena.
-- Oh! Não Signora, o Conde Taddeu não era louco, e sabia mais do que muita gente! Durante a sua vida, estudou
os artigos das crônicas da família. Era religioso, e Deus o fez, em compensação, clarividente! Ele me disse muitas vezes: "Eu vi e sei muitas coisas! Eu te digo:
quando eles voltarem, os que aqui viveram e pecaram outrora, quando se tornarem outra vez senhores deste infeliz castelo, sob o qual pesa a grande maldição, tudo
quanto dantes se deu, se repetirá. Estão marcados pela justiça, ainda não se arrependeram e não purgaram as suas faltas. Como isto se dará, não sei Signora. Mas
o meu Signore o sabia; e uma prova disto é o DE PROFUNDIS, o dobre dos sinos que há pouco ouvimos. Savéria inclinou-se perante os presentes e afastou-se depressa.
Seguiu-se um breve silêncio. Todos se encontravam sob a impressão dos estranhos sucessos, mesmo a céptica Helena, embora não o quisesse confessar nem a si mesmo.
Paulatinamente, a palestra em comum foi-se tornando tão viva como anteriormente. Depois, retiraram-se uns após outros. Em seu quarto, Valéria substituiu o vestido
por um elegante roupão, e soltou os cabelos. Como ainda não tivesse disposição para dormir, escreveu uma longa carta à mãe. Terminando. sentiu-se ainda bastante
disposta para ler um pouco. Alguns romances modernos que estavam sobre a mesa, não a atraíram, e ela dirigiu-se a uma estante colocada dentro de um nicho. Sobre
esta, achava-se uma série de livros antigos que despertaram o interesse da moça. Savéria lhe havia dito certa vez, que o quarto ocupado por ela fora o aposento predileto
do Conde Tadeu. Ali trabalhava e lia. Entre os antigos livros, existiam alguns que ele mandara imprimir, versando acerca das antigas crônicas. A LENDA DO CASTELO
DE MONTINHOSO, leu Valéria na lombada de um desses livros, encadernados de preto. A estante, colocada na parede, ao fundo do quarto, era construída de ébano e guarnecida
de custosos entalhes. Ela esvazioua completamente, e pareceu-lhe que estivesse encravada na parede. As paredes do nicho compunham-se de almofadas de ébano igualmente
entalhadas, que ao derredor das prateleiras, constituiam-se numa espécie de arco de porta com motivos singulares.
Entre folhas de videira, estilizadas, mostravam-se maravilhosas figuras de gnomos, e logo acima do nicho, servindo-lhe de cobertura, achava-se uma cavidade na qual
assentava-se um gnomo com um livro sobre os joelhos e uma tocha na mão. O livro que Valéria queria ler achava-se na prateleira superior. Como esta fosse muito alta
aproximou uma cadeira, na qual subiu. O livro era volumoso e de peso regular de modo que ela, para não perder o equilíbrio, sem querer, segurou-se à tocha que o
gnomo sustinha. Nem bem tocara-a, esta girou para um lado, ouviu-se um estalido e a estante moveu-se sobre gonzos invisíveis. Uma abertura negra teve Valéria à sua
frente. Com o correr da estante, porém, ela perdeu o apoio e caiu. Mas ergueu-se rapidamente, e, admirada, com o coração pulsando fortemente, observou a misteriosa
abertura no nicho. -- Somente o céu pode saber se esta porta não conduz à ala fechada do castelo! Talvez me seja dado desvendar os segredos antes que o Barão de
Rothschild, ou antes que um outro qualquer, consiga adquirir este castelo! Murmurou consigo mesma. Depois acendeu uma vela e preparou-se para examinar a obscuridade
reinante além da porta. Valéria transpôs os escuros umbrais e viu-se num corredor tenebroso que parecia sem fim; todavia poucos passos depois, bifurcava-se, e, à
direita, apresentaram-se-lhe degraus que conduziam para cima. Os assoalhos e degraus da escada estavam cobertos por espessa camada de pó. Junto da escada, Valéria
viu, deitada, uma velha lanterna esculpida. Ergueu-a e levou-a ao seu quarto, e somente então percebeu que, nela, ainda se encontrava uma grossa vela de cera vermelha.
Tirou-a, limpou a lanterna cuidadosamente, e, em seguida, acendeu a vela. -- Esta lanterna vai, por certo, prestar-me bons serviços. É realmente singular que numa
vela talvez multi-secular me deva alumiar nesta viagem de exploração. pensou.
Corajosa, voltou de novo ao nicho. Então pode certificar-se de que o corredor fora, outrora, iluminado por candelabros
pendentes do teto. Tanto quanto se podia ver, as paredes estavam cobertas de afrescos, representando cenas de caçadas. Pouco depois, terminava num saguão retangular.
A esquerda deste, havia uma escada descendente, e fronteira a esta, uma porta revestida de um reposteiro. Diante dessa porta Valéria parou um momento. Uma curiosa
hesitação apoderou-se dela. Nada encontrara de infundir pavor, e contudo não podia libertarse de uma certa inquietação. Resolvida, rapidamente afastou o reposteiro
e penetrou no espaço escuro. Alçou a lanterna e viu-se num grande salão, cujas janelas estavam fechadas por negras portadas. Das paredes, pendiam alguns quadros;
os móveis, dourados, estavam cobertos por grossas camadas de pó. De repente, Valéria notou numa das paredes, um quadro excepcionalmente grande. Curiosa, aproximou
a lanterna erguida. Um calafrio entorpecedor perpassou-a. A grande tela representava uma capela em cujo centro, sobre um catafalco, achava-se um esquife. No esquife,
dormia uma figura feminina, cujo semblante, tanto quanto Valéria pode observar, à frouxa iluminação, tinha inegavelmente traços de grande semelhança com os seus
próprios. Sobre os degraus diante do esquife, estava um homem de joelhos; seu rosto transfigurado pelo medo, assemelhava-se também imensamente, ao do Barão de Rothschild.
Os dedos da defunta abarcavam o seu punho. A luz bruxuleante da lanterna, o rosto do homem parecia singularmente vivo. Em sua excitação, Valéria julgou ouvir, distintamente,
um gemido e um riso doloroso. Um frígido golpe de vento soprou-lhe as faces. Ainda por um momento permaneceu imóvel; depois correu... Como que tocada por fúrias,
desceu as escadas e de novo viu-se no corredor. Como caça perseguida, continuou a correr, alcançou por fim um grande aposento onde, sob um dossel, encontrava-se
um rico leito. Como um relâmpago, alcançou-lhe a memória a consciência do engano de rumo. Viu uma porta. Em sua fechadura, a chave! Virou-a diversas vezes e tentou
forçá-la por fim. No mesmo ins-
tante, ouviu um barulho retinente de vidros e porcelanas em queda e em seguida a muito conhecida voz do Barão de
Rothschild: -- Com os diabos! O que será isto? Valéria gritou alto. A lanterna caiu-lhe das mãos, e, sem sentidos rolou ao solo...

6
A DESCOBERTA Quando Rothschild chegou ao seu quarto, sentou-se, como gostava de fazê-lo, à janela, e caiu em profundo cismar. O que acabara de ouvir, o cântico fúnebre
e o dobre dos sinos, havia deixado em seu espírito uma profunda impressão. Embalde procurou uma explicação natural para esses sucessos. Seria, realmente, possível,
que o além pudesse tornar-se perceptível deste modo, e ser registrado pelos cinco sentidos de um mortal? Rothschild não sabia quanto tempo estivera assim, imerso
em conjecturas, quando um surdo rumor e pancadas na parede o despertaram. Admirado, ergueu-se, certificando-se de que os sons abafados vinham dum nicho da parede.
Viu uma porta aberta e ouviu um grito. Depressa removeu os cacos de vidro e louça com os pés e afastou, tanto quanto pode os escolhos. Depois tomou de um lampião
e forçou a passagem. Junto à porta, viu o corpo inanimado de Valéria, estendido sobre o solo. Vestida com um roupão branco, de mangas largas, parecia bela como uma
pintura. Seus cabelos dourados soltavam-se envolvendo-lhe a cabeça como uma aura. Dois passos além, estava a lanterna com o vidro partido. Rothschild colocou o lampião
sobre uma mesa que se achava próxima, ergueu Valéria e levou-a para o seu quarto. Deitando-a numa ampla poltrona, umedeceu-lhe a fronte com água de colônia. Alguns
minutos depois, Valéria voltava a si e abria vagarosamente os olhos. O Barão envolveu-a num
cobertor e deu-lhe a beber um copo de vinho. Viu Valéria as suas forças voltarem aos poucos. Rothschild aproximou
um banquinho, sentou-se junto dela e perguntou porque caminho havia conseguido penetrar nas dependências fechadas. -- Descobri a entrada por acaso. A curiosidade
levou-me a acender a lanterna e inspecionar as dependências misteriosas. Não tive medo até o momento em que eu vi aquele quadro horrível, em que a morta segura o
companheiro pelo punho. Supus ouvir um horrível gemido e um mais horripilante riso. Então não resisti e fugi. Valéria não disse nada quanto a grande semelhança notada
entre a morta o homem ajoelhado à sua frente e eles dois. Ambos se calaram. Rothschild empalideceu e recordou-se da primeira noite passada no castelo, quando tivera
um sonho igual, ou quiçá uma visão da mesma espécie. Valéria tocou-lhe a mão, e um suspiro desprendeu-se de seus lábios. -- Deixemos em paz o passado e não revolvamos
o pó; não tentemos o misterioso invisível. O Barão ergueu o rosto, e, com sincera admiração, contemplou-a. Esse olhar reconduziu Valéria ao presente; um intenso
rubor cobriu seu semblante. -- Preciso voltar ao meu quarto... Mas... Como hei de fazê-lo sem passar pelos escuros compartimentos? -- Nada temas, Valéria. Conduzir-te-ei
através do jardim e do pequeno terraço; possuo uma chave do portão. Antes disso, porém, te proporia vires comigo inspecionar o quarto vizinho. Não desprezemos esse
acaso que nos abriu os compartimentos misteriosos, sem aproveitá-lo. Depois de breve relutância, Valéria se declarou disposta; a curiosidade vencera nela todos os
outros sentimentos. Ao lado de Rothschild, já não temia nada. -- Espera um momento! Quero somente retirar o escolho do caminho e entrar sozinho primeiro! disse
o Barão. Alguns minutos depois ele regressou.
-- Seguem-se agora, Valéria. Os quartos são realmente bonitos. Provavelmente habitou-os, outrora, uma linda dona.
Encontrei dois candelabros de prata com velas, que acendi. Temos luz suficiente agora. Valéria esqueceu o medo e a situação um tanto singular em que se achava, e
seguiu Rothschild ao quarto misterioso. Sobre um estrado, achava-se um leito grande, onde se estendia um elevado dossel. Também aí os entalhos da cama e o brocado
das cobertas, estavam cobertos de densa camada de pó. Rothschild se munira de duas toalhas de rosto e limpava os entalhos. A cabeceira da cama encontraram uma pequena
mesa de mosaico com. algumas caixinhas. Um espelho veneziano, em moldura larga, fora embutido na parede. Acima dele, dois anjos pequenos seguravam candelabros de
três braços, contendo velas cor-de-rosa. Rothschild acendeu também estas, e o quarto todo brilhou com vívidas luzes. Valéria parecia pálida e nervosa, em meio do
quarto, e se aprofundara na contemplação do mesmo quadro que, de repente, pareceu-lhe extraordinariamente familiar. Todos aqueles objetos, ela julgava já os conhecer,
e até as pequeninas coisas não lhe eram estranhas. Na parede, entre a cama e a janela, deveria existir, assim lhe pareceu de súbito, um medalhão. -- Na caixinha
sobre a mesa de mosaico balbuciou ela para si mesma acha-se, à esquerda, dentro de um estojo de madrepérola, um retrato em miniatura. -- Provavelmente habitou
este quarto uma formosa castelã, talvez, até, quem sabe a de que fala a lenda! Disse Rotschild, removendo o pó. Observa este pequeno sapato; aqui estão também, um
leque e um xale bordado. Positivamente gostava ela de enfeitar-se. Valéria não respondia. Automaticamente aproximara-se da mesinha, e tomara entre as mãos o estojo
de madrepérola. Abriu-o e viu, sobre o estofo de cetim branco, um retrato redondo em miniatura, ornado de rubis e emoldurado de ouro. Representava um jovem em trajes
italianos antigos, com um barrete guarnecido de plumas sobre a cabeça. Esse rosto, porém, não era outro senão o do Barão; os traços
orgulhosos, e os olhos escuros, a mesma boca ironicamente sorridente. Quando Rothschild observou a perplexidade
de Valéria e a sua profunda emoção, aproximou-se e olhou por sobre os ombros dela. E quando, tão inesperadamente viu o seu retrato em trajes de cerca de três séculos
transcorridos, apoderou-se dele um mudo espanto, e um frio suor perlou-lhe a fronte. Parecia-lhe que um horripilante poder surgia do passado e tentava atraí-lo com
Valéria a tenebrosas profundezas. -- Paulo! Balbuciou Valéria nesse momento, como que alienada. Este brado perpassou o Barão como uma corrente elétrica. -- Saiamos
daqui. O ar é por demais pesado e impuro. E estamos também muito emocionados. Amanhã combinaremos tudo com sossego... Ele conduziu Valéria para fora, apagou as velas
e fechou a porta. -- Agora quero dar-te algumas gotas para os teus nervos excitados. Depois acompanhar-te-ei até o quarto. Valéria sorveu silenciosamente as gotas;
não disse mais nenhuma palavra. Calados chegaram ao outro aposento. Ela estava cama em sonho. Convulsivamente, segurava o medalhão de que, inconscientemente, se
apropriara. Rothschild fechou a porta. Quis ainda dizer: -- Durma bem, Giovana! Mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Valéria caiu numa poltrona; seus
olhos estavam muito abertos, e ela sentiu-se próxima de um desmaio. -- Paulo! Paulo! Fica comigo, não me abandones no meu infortúnio. Oh! meu Deus! Caímos nas garras
do passado! Gritou ela com força. Rothschild que ainda estava à porta, ouviu as palavras angustiosas e teve a horrível sensação de que mãos cadavéricas abarcavam
o seu punho. Voltou-se e correu tanto quanto os seus pés se podiam mover, para o seu quarto, onde coberto de suor, caiu sobre a cama.
-- Nas garras do passado! Isto mesmo! Senti agora mesmo que se pode estar alucinado sem se ter perdido o juízo!...
Levou as mãos trêmulas à cabeça... Somente aos poucos tranqüilizou-se. Tomou um copo de vinho e em breve adormeceu. Quando Rothschild despertou, já os raios solares
caíam em seu quarto, e ele respirou com prazer o ar montanhês fresco e puro. A luz clara do dia, as sombras dos acontecimentos noturnos perdiam os seus pavores,
mas em compensação, o desejo de conhecer todos os segredos do velho castelo era então maior do que dantes. Agora conhecia a entrada para os quartos murados. Pretendia,
com Valéria, conserválo em segredo perante todos, para que ninguém, além deles, penetrasse nos aposentos. Justamente naquele dia, precisava ir à vila para combinar
as últimas formalidades da compra. E se Valéria tivesse revelado a Lolo e a tia os sucessos noturnos? Seria, então, possível conservar o segredo? Resolveu por isso
falar com a moça imediatamente a respeito. Ainda era cedo. Pelo criado, soube que Miguel tinha ido à caça dos pombos e que as senhoras, com exceção de Valéria, ainda
não haviam aparecido. Muito satisfeito com essa informação, dirigiu-se Rothschild ao terraço onde encontrou a moça tomando a sua refeição matutina. Savéria servia-a,
e ao ver o Barão, apressou-se em preparar também a sua refeição. Quando viu Rothschild, Valéria corou ligeiramente. Este pediu licença para sentar-se junto dela.
-- Tenho um pedido a fazer-te, Valéria principiou ele. Se até agora não falaste a ninguém sobre a nossa descoberta, não o faças, eu te peço. Assinarei hoje, perante
o notário da vila, a escritura definitiva de compra deste castelo, e quero que também, a este respeito, ninguém venha a saber qualquer coisa. É que desejo mais tarde,
com todo sossego, inspecionar e examinar cômodo por cômodo. Quem sabe que segredos dormem em cada um deles! Miguel e Lolo, porém, são impacientes e curiosos, e levar-me-iam
a um apressamento prejudicial. -- Compreendo perfeitamente, Pawel, respondeu Valéria e saberei prezar o seu pedido. Ainda não falei a ninguém sobre as nos-
sas aventuras. Mas desejo impor uma condição: deixa-me partilhar dessa inspeção! Prometo não tocar em coisa alguma
e não importunálo com perguntas inúteis! Acrescentou sorrindo. Rothschild não pode deixar de reprimir um sorriso. -- Está combinado: inspecionaremos juntos. Em
minha companhia, nada terás a temer, e eu te permitirei tocar em tudo quanto te interessar. Poderás perguntar-me o que te aprouver! Às pressas tomou a sua refeição
para, sem demora, ir à vila. X X X Valéria voltou ao quarto. Era-lhe sumamente grato saber que ninguém, além dela participaria da descoberta do segredo. Fechou a
porta e retirou da valise o estojo de madrepérola. Era, sem dúvida, um objeto de valor magnífico e finíssimo. Uma grande ametista ornava a sua tampa. O seu interesse
principal, porém, localizava-se, naturalmente, no medalhão com o retrato. Mergulhou-se na. contemplação daquele semblante belo e pálido, ao qual ia tão bem o barrete.
Os grandes olhos negros pareciam perfurá-la, e fizeram com que seu coração batesse mais fortemente. Quanto mais fitava o retrato tanto mais sentia apertar-lhe o
desejo de penetrar outra vez naquele quarto misterioso. Ela não pode resistir à curiosidade, e resolveu que, à tarde, quando as senhoras costumavam repousar, visitaria
o castelo. Sabia que Lolo e Miguel pretendiam dar um passeio a cavalo, mas poderia pretextar enxaqueca para não participar dele. O Barão não regressaria antes da
noite, e, assim, teria algumas horas livres para a sua investigação. O acaso foi-lhe favorável. Lôlo e Miguel resolveram sair de casa. Também o castelão e sua mulher
ausentaram-se, dirigindo-se a cidade para realizar compras. Nem bem os jovens se haviam afastado, as senhoras se recolheram aos seus aposentos. Valéria, sem ser
observada, penetrou no quarto de Rothschild; seu coração batia com tal violência, que no caminho, teve que parar muitas vezes, para respirar. Podia contar com duas
horas de completa tranqüilidade, e essas bastavam
para contentar sua curiosidade. Rothschild havia removido o pesado etager para a parede fronteira, e, no nicho,
colocara uma pequena mesa. Valéria afastou a mesa, abriu a porta e penetrou no espaço escuro. Levava uma lâmpada elétrica de bolso, uma vela e um pano de pó. Com
as mãos trêmulas, acendeu os dois candelabros e principiou a examinar tudo minuciosamente. Por fim subiu os dois degraus que levavam ao leito e retirou deste uma
pesada coberta de brocado. Debaixo desta, estavam em desordem algumas almofadas e uma colcha azul claro com rosas bordadas. Tudo amarelecido e descorado. Depois
Valéria notou, com o coração palpitante, entre a cama e a janela, o crucifixo de ébano com a imagem do Cristo em prata, e o medalhão que pendia dele. Assim, pois,
se confirmava a sua visão do dia anterior. Como chegara a ter essas lembranças? Tratar-se-ia ainda de um acaso? Não! Esse conhecimento que tinha das coisas antes
que as visse, não significaria que conhecia tudo aquilo de uma estadia anterior naqueles compartimentos? Mas quando vivera naquela casa! Seria o terrível acontecimento,
de que falava a lenda, o seu próprio passado? Valéria ergueu a tampa de uma mala e encontrou nela maravilhosas rendas, tecidos e muitos pacotes de cartas amarelecidas.
Sobre uma cadeira, estava um bandolim. Frente à cama, observou ela uma estreita porta, meio encoberta por um pesado reposteiro. Abriu-a e, à luz da vela, viu, pelas
paredes, uma quantidade de armários e estantes. Provavelmente achava-se ali o vestuário. Na parede lateral desse quarto, existia outra porta em forma de arco. Também
essa porta Valéria transpôs. E viu-se, então, num cômodo redondo, cujas janelas estavam recobertas por espessas cortinas. Dava impressão de um quarto de banho. As
paredes eram ornadas de várias pinturas; ao lado, encontrava-se uma banheira de mármore. À sua frente, havia um banco coberto de veludo, e diante da janela, uma
penteadeira com espelho e moldura de prata, mais um sem-número de frasquinhos e vasos, pentes e escovas. Grande desordem reinava nesse quarto que, provavelmente,
fora abandonado inesperadamente. Toalhas de banho bordadas espalhavam-se ao léu. Na banheira viu esponjas ressequidas, ene-
grecidas pelo pó e pela idade. Foi sobre o solo, porém, que Valéria notou aquelas grandes manchas negras, que se
assemelhavam a grandes poças de sangue ressequido. Ao centro do quarto, existia uma mesa alongada coberta por um pano. Sob o pano, aparecia uma almofada com uma
depressão ao centro, como que produzida por uma cabeça. Ao lado da mesa havia um mocho e sobre este uma caixa contendo ferramentas cirúrgicas e bandagens. Todo o
ambiente parecia impregnado de forte odor. Oprimida, Valéria examinava aquele aposento que lhe parecia mais horripilante ainda que todos os outros vistos anteriormente.
Depois voltou ao vestuário e se pôs a examinar os armários. As chaves estavam ainda metidas nas fechaduras e foi muito fáci1 abri-las. De um dos armários, veio ao
encontro de Valéria uma nuvem de perfume e poeira. Estava guardada ali uma considerável coleção de vestidos de todas as cores. Em um outro armário encontrou roupa
branca; e numa canastra escura, sob uma tampa de vidro, um vestido branco de seda, com bordados em prata e um véu enfeitado de pérolas. O exame de todos esses objetos
tomou muito tempo e acalmou também os nervos de Valéria. Ela resolveu assim abrir mais uma porta: a que havia atrás da banheira. Por essa porta chegou a um outro
corredor, estreito, que conduzia a uma grande sala. Parecia ser um gabinete de trabalhos. Sobre a mesa, coberta por um pano de Veludo, achava-se um tinteiro de prata
e dois altos castiçais; folhas de pergaminho e penas de ganso espalhavam-se diante do tinteiro. Sobre os pergaminhos, fora esquecido um rolo grosso, amarrado, de
uma de cujas extremidades emergia um grande selo. Esse rolo trazia um endereço cujas letras, mal traçadas Valéria não pode compreender. A sua atenção voltou-se para
dois grandes quadros a ó1eo, suspensos, um ao lado do outro, na parede. Ela aproximou uma cadeira e tentou daí, tanto quanto possível, remover o pó que os empanava;
depois iluminou um deles com a lanterna elétrica, mas com um grito rouco retrocedeu. A pintura representava um balcão, do qual descortinava-se uma paisagem montanhesa.
Junto à balaustrada de mármore, postava-se uma figura feminina com um bandolim nos braços. O semblante
dessa mulher tinha, inegavelmente os seus próprios traços. O mesmo cabelo loiro dourado, o porte altivo e esbelto,
mãos idênticas; somente os olhos pareciam diferentes, negros, que se revelavam de apaixonada expressão, mais realçada ainda pelo traçado da boca rosada, onde um
sorriso brincava sonhadoramente. A diferença da cor dos olhos, não lhe pareceu, porém, essencial; nem observou-a fitando fixamente a extraordinária semelhança. --
Grande Deus! O que significará tudo isso! Eu e ele nós ambos, parece, estamos presentes aqui por toda parte murmurou com os lábios descorados. Receosa, foi examinar
o outro quadro, esperando ver Rothschild nele. Mas não! O homem que ali estava retratado, tinha uma fisionomia franca, inteligente e parecia contar cerca de cinqüenta
anos de idade. Trajado de veludo negro, estava apoiado numa mesa coberta de livros e manuscritos. Na mão segurava um rolo de pergaminho semiaberto, em cujo verso
via-se uma inscrição encarnada. Valéria estremeceu de terror e desviou os seus olhares dos olhos daquele homem. Sentiu-se enfraquecida naquele ambiente. O olhar,
fixamente voltado para ela, causava-lhe arrepios de febre. Como que fugindo, voltou ao quarto de Rothschild, apagou às pressas as velas e recolocou a mesinha em
seu lugar no nicho. Somente quando chegou no seu quarto, foi-se retemperando. O sol, a luz e o ar fizeram o restante para a tranqüilizar completamente. Tomou algumas
gotas reconfortantes, lavouse, e trocou de roupa. -- Fiquei realmente nauseada. Confiei demasiado em meus nervos! Aquela mescla de perfume, pó e flores secas impregnou-me
até em minhas roupas! Mas que aborrecimento murmurou ela. E orvalhou bem as roupas com Água de Colônia. Nessa tarde, jantaram mais tarde que de costume. Rothschild
demorava-se na cidade; Miguel e Lolo, também haviam regressado tarde do passeio. Depois do jantar, foram todos para o terraço. As duas senhoras mais idosas, entretiveram-se
com as compras feitas por Rothschild, enquanto Miguel e Lôlo entraram numa ligeira disputa.
Valéria isolara-se a um lado, recostada à balaustrada, contemplando o vale. Rothschild aproximou-se dela. -- Valéria,
o castelo é nosso, com todos os seus segredes, que já principiamos a desvendar esporadicamente. Enquanto dizia isso, Rothschild pôs a mão sobre um dos bolsos do
peito, que continha a escritura de compra. Curvou-se e fitou-a com um olhar profundo e enigmático. Valéria corou e quis responder qualquer coisa, mas foi interrompida
por Lolo e Miguel que lhe pediram serviço de juiz em suas contendas. Nesse momento, Riccioto, o filho do castelão, apareceu na porta e, aparentemente nervoso, dirigiu-se
a Rothschild. -- Signore Barão, entregaram-me agora um pacote que vos é dirigido. Aqui está. Com estas palavras entregou ao Barão um pacotezinho. -- Para mim? Pawel
desdobrou um pano escuro, que continha uma chave velha, enferrujada, na qual prendia-se uma chapa de metal presa por uma corrente. O Barão aproximou-se da luz e,
à meia-voz, leu as letras góticas gravadas na chapa: "Chave do jazigo do Conde de Montinhoso". Rothschild empalideceu: -- Quem trouxe esta chave? -- Um homem alto,
em trajes de monge, respondeu Riccioto. Eu estava sentado junto ao portão, e na escuridão aí reinante, não pude reconhecer a fisionomia do portador, tanto mais
que um capuz envolvia a sua cabeça. Neste momento, outra vez, ressoaram no ar os dobres dos sinos, e o inconsolável cantochão fúnebre encheu a treva noturna. --
Esses maus gracejos estão, realmente, passando dos limites! Observou Helena zangada. Tudo isto não passa de uma mistificação grosseira. Talvez nem exista a catacumba
desse conde lendário. -- Sim, signora esta capela existe aqui! Mas não sei com certeza onde está situada. Disse Riccioto, medroso.
Sem dizer palavra, Rothschild atirou a chave sobre a mesa e quis retirar-se do terraço. Helena porém foi ao seu
encontro. -- Pelo amor de Deus, Pawel não sejas tão supersticioso! Amanhã examinaremos melhor o assunto! Faze cara alegre, por enquanto... -- Eu não sou em verdade
supersticioso, tia Helena. Sucede que me sinto bastante cansado, e os meus nervos ainda não estão em ordem. Mas, finalmente, também para mim todas essas estórias
misteriosas estão se tornando caceteantes! Quero agora dormir bastante, e espero estar outra vez restabelecido amanhã! Retrucou brincando. A voz rude, porém, e o
olhar severo, deixavam perceber que não se divertia. Em seu quarto, Rothschild tomou uma boa dose de narcótico e deitou-se. Não queria pensar em nada, desejava dormir
apenas.


Na manhã seguinte, a palestra girou inteiramente em torno da chave misteriosa. Depois que Rothschild tomara o seu café, Lolo atraiu-o ao terraço para um exame do
estranho presente. -- Poderíeis ter feito isso sem a minha presença! Comentou o Barão. Creio que não. A chave pertence-te afinal, e nós precisávamos da licença
para isso. Temos também uma outra coisa em vista, para o qual necessitamos do teu assentimento. disse Lolo. O exame da chave nada revelava. O tecido em que estava
envolvida era, sem dúvida, o fragmento de um velho capuz de monge, cuja cor não se podia mais determinar. -- Céus, como tudo isto é interessante e misterioso! Exclamou
Lôlo encantada. Ainda hoje haveremos de procurar o jazigo do Conde de Montinhoso, e, com a tua permissão, prezado Pawel, abri-lo com esta chave. Este Paulo, perseguido
e invocado por tantos fantasmas,
deve ter sido um refinadíssimo delinqüente. Nosso passeio será, por certo, interessantíssimo, e se levarmos uma
boa provisão de comestíveis, poderemos fazer a nossa refeição entre as ruínas. À luz clara do dia, creio que os espectros dos monges não se atreverão a promover
passeios e cantorias. -- Muito bem! Se todos estão de acordo, partamos em busca da capela funerária! Disse Rothschild. Mas, onde a encontrarmos? Riccioto não sabe
onde fica, nem eu, embora possua a sua chave. -- Já colhemos as informações necessárias. Anunciou Miguel. Bernardino contou-me que o pastor Giácomo conhece todas
as árvores, todos os arbustos, entre as ruínas. e que também sabe onde se encontra o jazigo do Maledetto. É que seu pai foi, aí, surpreendido por um horrível fantasma.
Já mandei chamar o Giácomo. Valéria permaneceu calada durante esse tempo. Estava tristonha e quase não olhava para Rothschild. -- Sabes, Valja, teu aspecto não me
agrada nada. Estás pálida como um pano de linho, pareces cansada! Que providências tens tomado para o teu restabelecimento? Sempre tive esperanças que neste belíssimo
clima viesses a te desenvolver como uma flor. interrompeu Larissa. -- Mas isto virá com o tempo e a permanência aqui! aparteou Helena.

7
A FAMÍLIA DE MONTINHOSO

Meia hora depois, a pequena caravana punha-se a caminho. Miguel e Lôlo, carregavam cestas com o almoço. Giácomo, o velho pastor de barbas brancas, guiava-os.
-- Sei muito bem onde se acha o jazigo do Conde Paulo de Montinhoso. O Maledetto está separado dos outros Condes.
O caminho para lá é difícil. Meu velho tio Salvatore, que antes de mim foi pastor aqui, ouvia o morto gemer em sua sepultura. Eu mesmo também ouvi, numa certa noite,
gritos e lamentos que pareciam vir da capela! Informava Giácomo. Provavelmente terias adormecido disse Helena ironicamente. Teu tio talvez tenha, igualmente,
tomado um gole a mais. O ancião fitou-a com ar altivo. -- A senhora é talvez uma dessas pessoas que não acreditam em nada. Quanto ao meu tio Salvatore, conta ele,
presentemente, noventa anos de idade, e nunca em toda a sua vida esteve embriagado. É um bom religioso, justo e respeitado por todos os que o conhecem. Ele viu com
os seus próprios olhos, quando eles desceram o jazigo, e ouviu, logo depois, gritos, choro e gemidos lá dentro. De minha parte, não consegui dormir, por muito tempo,
depois que ouvi a mesma coisa. E isso embora nada tivesse visto... -- Disseste eles, Giácomo. Eram por acaso mulheres que visitavam o Maledetto? Há de ter sido um
belo mancebo para que o procurem assim, até na última moradia! brincou a incorrigível Helena. Giácomo meneou a cabeça. -- Segundo a lenda, o Conde Paulo deve ter
sido, em verdade, excepcionalmente belo. Mas a sua beleza foi fatal, pois por amor dele muitas mulheres morreram assassinadas por filtros envenenados. Na sepultura,
procuram-no as almas daquelas que ele transviou e assassinou. Contam que foi um criminoso desentranhado... No decorrer dessa conversação, tinham alcançado as ruínas
do convento. Giácomo que ia à frente, conduziu-os a um emaranhado de árvores e arbustos entrelaçados. Em meio ao matagal, erguiam-se lousas e cruzes sepulcrais.
Encontravam-se num antiqüíssimo cemitério. Próximo de um velho e arruinado muro erguia-se uma espécie de capela, cuja entrada estava barrada por uma pesada porta
guarnecida de ferro. Uma grade de ferro fundido circundava-a. Da porta, pendia
um grande cadeado, que uma pancada, vibrada com uma pedra, fez cair por terra. Mas restava ainda uma corrente grossa
e enferrujada, a vedar a passagem, e que, sem muita dificuldade, foi removida. -- Vê-se que há muitos anos... talvez séculos... ninguém abriu esta porta! Observou
o velho. Aqui ainda existem vestígios positivos dos antigos selos. Ele introduziu a chave, que untara abundantemente com azeite, na fechadura. Depois de alguns
esforços, o mecanismo cedeu rangendo, e, guinchando nos gonzos, abriu-se a porta. Uma passagem estreita, que conduzia para o fundo, ficou à vista. Na outra extremidade,
uma segunda porta. Esta não se encontrava trancada, e cedeu a uma ligeira pressão de dedos. Rothschild sentia-se mal. Apesar do calor perpassavam-no glaciais arrepios.
A atmosfera saturada em que se movia, causava-lhe repugnância. Todavia a curiosidade venceu-o, e em breve, voltava a assenhorear-se de seus nervos. -- Tenho uma
lâmpada de bolso. Disse. Avante, pois, minhas senhoras! -- Não creio que o jazigo seja escuro! Esclareceu Giácomo. Possui uma janela com grades. Os vidros já
estão quebrados, mas os muros têm a espessura de cinqüenta centímetros. Contudo, acredito que a luz, talvez um raio de sol, possa penetrar na arcada. -- O corredor
deve ser escuro, e os degraus da escada não estarão, provavelmente, muito perfeitos! Disse Rothschild. Ele acendeu a lâmpada de bolso e seguiu na frente. Haviam
descido dez degraus talvez, quando entraram numa arcada sepulcral que servia, ao mesmo tempo, de capela. Na parede fronteiriça, montado sobre degraus, um altar,
e,. acima dele, um nicho vazio na parede. Aos pés do altar, partida, havia uma estátua da Madona que outrora tivera, provavelmente, o seu lugar no nicho. Sobre o
altar, viam-se dois velhos castiçais de bronze, e ao centro da capela mortuária, um grande sarcófago negro, sobre cuja tampa deitava-se a imagem de um monge artisticamente
esculpida em mármore. Os traços faciais da es-
tátua eram de incomparável beleza. Sua expressão revelava sofrimento e desespero. A frouxa luz diurna, todos aqueles
detalhes ganhavam um misterioso encanto. Miguel e Lolo foram os primeiros que, movidos pela curiosidade, se aproximaram do sarcófago. Quando, porém, o facho luminoso
focalizou o mesmo, Lolo deixou escapar um grito agudo, e retrocedeu horrorizada. -- Pelo amor de Deus, Pawel! Vê que coisa horrível! Esse Paulo Maledetto és tu mesmo!
Com as sobrancelhas contraídas, aproximando-se, Rothschild curvou-se sobre a estatua de mármore. A fisionomia parecia-se, efetivamente, com a sua, em todos os traços.
Durante alguns instantes o Barão quedou ali, imóvel, quase sem respirar. Sentia um peso invisível baixar sobre sua cabeça, ameaçando esmagá-lo. Nem notava o silêncio,
cheio de perplexidade, em que Larissa e Helena tinham mergulhado, aniquiladas pela fantástica semelhança entre as duas figuras. Subitamente, um gemido de Giácomo
quebrou o silêncio. Ele aproximara-se de Rothschild, e observava agora a flagrante semelhança existente entre o Barão e a estátua. Posto em pânico pelo susto, correu
para a saída da capela. -- Misericórdia! Os mortos se ergueram. O signore Barão é o retrato vivo do Maledetto! Murmurava consigo mesmo, persignando-se e fitando
incrédulo Rothschi1d. Um golpe de vento ergueu uma sarabanda de poeira no jazigo e despertou os presentes. Valéria foi a primeira a correr para fora. Os outros seguiram-na
vagarosamente. A porta foi fechada de novo, e os visitantes se retiraram do cemitério. Silenciaram. Quando passavam pelas ruínas do mosteiro, Helena viu alguns bancos
de pedra ainda conservados e propôs que almoçassem ali. Como tacitamente desejavam todos refazer-se do susto, aceitaram de bom grado a proposta. Miguel e Lolo abriram
as cestas, da qual tiraram uma toalha de mesa, e dividiram a merenda. Rothschild deu ao velho Giácomo uma moeda de ouro e um copo de vinho. A dupla oferta deixou
o velho outra vez
reconfortado. E como se recompusesse do susto, pediu-lhe Larissa que narrasse o que tinha visto ali anteriormente.
-- Com muito prazer, Signora, se vos interessa, contarei o fato. Como disse antes, eu mesmo nada vi; apenas ouvi os gritos e queixumes que partiam da catacumba.
Mas meu rio viu, com seus próprios olhos, os fantasmas reunidos. Tudo isto, porém, é nada em comparação à experiência que meus avós tiveram: foram acontecimentos
terríveis e que confirmam a lenda do Conde Paulo. -- Conta, pois o que teus avós te contaram. Mas não te esqueças, por isso, de comer! Disse Helena entusiasmando-o.
Rodearam todos o pastor. Olhando sorridente para Giácomo, Rothschild encheu-lhe pela segunda vez o copo, com o vinho Madeira. -- Antes, porém, do caso dos avós,
conta-nos a estória do Conde Paulo. Quem sabe Savéria não se terá esquecido, ao narrá-la, de algum importante detalhe. -- Sim, signore Barão. De fato Savéria não
aprecia muito falar a este respeito. Não fazia isto tão pouco com o último signore, o último Conde de Montinhoso. Este foi um homem extraordinário! Evitava o convívio
com as outras criaturas, e durante metade da sua vida colecionou e estudou os velhos rolos de pergaminho. Mas passemos à estória... E Giácomo começou: -- Os acontecimentos
de que fala a tradição deram-se há muito tempo... Suponho que tenha sido um assunto largamente comentado, profundamente debatido. Basta considerar-se que ainda hoje
vive nos lábios do povo: as lembranças que se guardaram, vão sendo transmitidas de pai a filho. Só assim conhece-se hoje a maneira pela qual a Justiça Divina atingiu
o orgulhoso Conde de Montinhoso. Naquele tempo, da família de Montinhoso eram os senhores mais ricos do país. O Conde Paulo foi um homem soberbo e cruel. Seduziu
muitas mulheres, que se rendiam à sua atração, destruindo assim, a tranqüilidade de muitos lares felizes. Os detalhes menores desses fatos conservaram-se desconhecidos;
sabe-se apenas que o castigo que sofreu a per-
petração de todos esses crimes, consistiu na amputação da mão criminosa. Era a pena geralmente imposta. Os ricos
nobiles de então, todavia, conseguiam sempre fugir à condenação, e bem raramente, em verdade, espiaram suas culpas. Mas, se escapavam aos castigos humanos, não conseguiam
escapar ao castigo divino. Foi o que sucedeu ao Conde Paulo. Uma das mulheres por ele ludibriada morrera, mas ainda morta agarrou-o pelo punho, não o largando mais.
Todas as preces, todo o incenso e água-benta, não valeram de nada. A mão morta não soltou a presa. E o punho do homem tingia-se, mais e mais escurecia, até que ficou
completamente negro. Então, foi preciso amputá-lo, deixando-o nos dedos da mulher morta. Antes disso, o Conde confessara-se a um monge. Julgou-se então que.o hábito
religioso fosse capaz de acobertar os erros cometidos. O nobre fez-se monge. O recurso falhou. A maldição atingira-o implacavelmente. As almas das vítimas, perseguem
até hoje o algoz. Buscam-no sem descanso nestas ruínas. Vou contar o que meu avô viu e contou-me, quando eu era ainda muito jovem... Afirmo-vos de novo: meu avô
foi um homem severo, reservado e religioso. Morreu com quase cem anos, sempre amado e respeitado por todos. Quando deu-se o fato, que exerceu uma profunda influência
no resto de sua vida, contava ele vinte e cinco anos. Encontrava-se por essa época, profundamente apaixonado por aquela que se tornaria mais tarde a senhora minha
avó. O pai do moço não aprovava aquele casamento, pois que Panowia, a minha avó, embora bonita, era uma pobre órfã que trabalhava num estábulo das vizinhanças. Ambos
sentiram-se muito infelizes com a desarrazoada decisão do velho. Força é contar, entretanto, que nunca ocorreu-lhes agirem contra a sua vontade. Panowia quis retirar-se
da região e ir viver na companhia de um parente de sua mãe que vivia em Modena. O último encontro, em que deveriam despedir-se, eles o combinaram fosse realizado
junto às ruínas do convento. Estavam convencidos de que ali ninguém os incomodaria. Foi numa noite clara de lua. Já era bem tarde quando se encontraram e buscaram
assento sobre um banco, debaixo das grandes árvores. Esse banco ainda existe: dele pode-se avis-
tar a capela mortuária do Conde Paulo. Durante quanto tempo os dois teriam estado ali a palestrar e a chorar, não
se pode dizer. Seria, porém, mais ou menos meia-noite quando foram, de repente, alertados por um abafado toque de sinos e o som de cantos corais que entoavam o De
Profundis. Os dois amantes estremeceram, mas o terror foi maior quando viram sair das ruínas da igreja do monastério, uma procissão de monges que, aos pares, com
os capuzes crescidos e grandes círios acesos nas mãos avançavam na escuridão da noite. A procissão seguiu na direção da capela mortuária do Conde Paulo, cuja porta
se escancarou de par a par. Depois que todos os monges desapareceram no retângulo vazio, cessou o canto, e a pesada porta cerrou-se sem ruído. Meu avô, que conhecia
a lenda, não acreditava na veracidade, das aparições. Testemunhara ali uma outra qualquer coisa, como supunha, de sobrenatural. Como que tremendo de febre, passou
o braço sobre os ombros de Panowia e os dois, bem juntinhos, continuaram no mesmo lugar, sem nem ao menos moverem-se. Tinham ouvido dizer que não se deve cruzar
o caminho dos fantasmas antes do galo cantar pela primeira vez. Tinham já assistido a um desfile de espíritos, mas a fantasmagoria não ficou naquilo. Subitamente
notaram, num caminho lateral, uma viva luz que circundava a cabeça de uma mulher em trajes de monja. O vento agitava um longo véu branco que lhe descia sobre os
cabelos. Quando passou-lhes pela frente, os amantes aterrorizados viram-lhe o rosto, jovem e belo, mas que parecia desfigurado pelo desespero. Trazia nos braços
uma criancinha morta, cuja pequenina cabeça pendia sem apoio. Também sobre essa monja, fechou-se a porta da catacumba. Nem bem as duas involuntárias testemunhas
dos estranhos sucessos haviam se refeito do susto, e uma segunda luz, rubra como sangue, surgiu-lhes pela frente. Era uma outra mulher que também se dirigia à sepultura.
Igualmente bela, movia-se ricamente vestida. Uma cabeleira farta e longa, envolvia-a como um manto. Um longo estilete atravessava-lhe o peito, e um rastro de sangue
tingia-lhe o caminho. Com os punhos cerrados e os olhos fixos num ponto, deteve-se um instante, esvoaçando sobre o solo, e desapareceu
pela porta da capela. Surgiu então a dama da luz verde. Possuía um rosto de extraordinária beleza, mas os traços
retorciam-se num ritus tão odioso, que meu avô e Panowia enregelaram-se de horror. A estranha mulher trazia um longo vestido branco, sobre o qual escorria a cabeleira
longa e loira. Preso por uma fita azul, pendia-lhe do ombro um bandolim. Não penetrou na capela mortuária, mas deteve-se à porta e principiou a cantar. O que cantou,
meu avô e Panowia não conseguiram reter; todas aquelas visões inesperadas, os tinham excitado em demasia. Ergueu-se então, das profundezas subterrâneas, um surdo
rumor, e para o limiar emergiu a figura do monge sepultado. Seu capuz fora atirado para trás, deixando ver a cabeleira em desalinho e um rosto pálido contraído pelo
medo e o desespero. Às suas costas, dezenas de mãos procuravam detê-lo pelo hábito. O monge estendeu os braços para a frente e lançou um apelo numa voz rouca: --
Giovana! Perdoa-me! A imagem branca pôs-se a rir, feia e desdenhosamente, ergueu também os braços e mostrou uma mão amputada, que segurava entre os dedos. Meu avô
julgou enlouquecer. Viu então Panowia estendida sem sentidos, à sua frente, e desesperado pôs-se a gritar: -- Jesus! Maria!... Auxiliai-nos! Não soube de mais nada.
O terror fê-lo perder os sentidos. Sua última impressão foi a de um terrível rumor, como se os muros das ruínas estivessem vindo ao chão. Só no dia seguinte, depois
de obstinadas buscas foram encontrados. A custo conseguiram fazê-los tornar a si. Meu bisavô abatera-se profundamente e supôs que os amantes tivessem buscado por
termo à existência, desesperados pela separação. No mesmo dia, deu o consentimento para as bodas. Quanto aos meus avós, nunca mais puderam esquecer as visões terríficas,
e nem voltaram outra vez, às ruínas malditas. Esquecia-me, porém, de acrescentar um detalhe: sobre o caminho seguido pela mulher que sangrava no peito, foi encontrada
uma faixa escura, como se houvessem marcado a trilha com um rastro de cinzas. Esta, Signora, é a história do Maledetto, conforme a lenda, que é confirmada por acontecimentos
verdadeiros. Os espíritos inquietos, ainda rondam por aqui, e continuarão, provavelmente, a fazê-lo até que o Conde
Paulo tenha purgado seus erros. Giácomo terminara sua narrativa. Seus ouvintes calaram-se. Sobre todos, pesava a impressão profunda marcada pela visita à catacumba,
e que a narrativa do homem viera acentuar. Valéria e Rothschild notadamente sofriam. Seus olhares, obcecados, fixavam o caminho que conduzia à capela, como esperando
ver o monge e as damas fantasmas saírem das sombras das árvores seculares. Helena foi a primeira a tornar a si. Com uma risada franca e jovial, ela se dirigiu aos
companheiros: -- Despertai! Acordai... Não vos petrifiqueis de medo... Temos de voltar para casa. Tenho a firme convicção de que o célebre Paulo, e suas companheiras,
serão bastante corteses para nos deixarem regressar agora, livremente. E sobretudo de que não cogitarão em maltratar mais o meu querido sobrinho, que não tem culpa
afinal de sua grande e fatal semelhança com esse Don Juan italiano! Riram todos da chalaça. Giácomo foi ainda presenteado com uma moeda de ouro, uma garrafa de vinho
e toda a sobra do almoço, Depois disso, puseram-se todos a caminho, regressando, Lôlo e Miguel não acharam mais o que fazer, o resto do dia, senão intitularem o
primo de Conde de Montinhoso. A moça chegou a pedir-lhe que não procedesse com as senhoras que porventura se enamorassem dos seus encantos, como o fizera seu antecessor.
Rothschild aceitava esses brinquedos com bom humor e defendia-se sorrindo. Aconselhou os primos a não o provocarem tanto, ou os trancaria, a ambos, na capela mortuária.
Ali poderiam, se quisessem, estudar tranquilamente, os traços fisionômicos do monge marmóreo. Um observador sutil, todavia, poderia ter verificado que toda a jovialidade
do Barão era forçada. Valéria também mostrava-se tristonha e cansada. Voltando, recolheuse logo aos seus aposentos. Larissa que a observara, inquietou-se cheia de
cuidados, com um pressentimento no espírito. Recolheu-se ao quarto, desejosa de recolhimento e solidão. Pensamentos negros e
pesados passavam-lhe pelo cérebro. Lera muito e pelas observações ouvidas de Dionid Tonilim, sabia muito bem que
tais estórias, aparentemente misteriosas, poderiam suceder. Cada dia certificava-se mais de que enfrentavam ali, no penumbroso castelo italiano, um daqueles problemas
desconhecidos que muitas vezes desenrolam-se à vista de céticas testemunhas e são observados por esta. Por outro lado, os gracejos e a incredulidade de Helena, aos
poucos iam-lhe mordendo os nervos. Mas inquietou-a, sobretudo, a fabulosa semelhança observada entre a estátua do monge e o Barão, que não seria fruto do acaso.
Recordou-se do horrível sonho da velha Baronesa antes do nascimento do filho e da faixa encarnada ao redor do punho deste. Todas estas aparentes casualidades, indicavam,
sem dúvida, uma relação que parecia evidente, entre o rapaz e os personagens da lenda. Também não se sentia satisfeita com sua sobrinha e afilhada. Além de não se
restabelecer e fortificar-se como esperava, Valéria tornava-se cada vez mais pálida, inquieta e nervosa. -- Não tenha também ela sido no passado uma das pessoas
que participaram do drama horrível, e esteja, agora, sofrendo inconscientemente sob o domínio dessas recordações!... Começava a sentir, na atmosfera do castelo,
alguma coisa de misterioso e fatal. -- Como todos somos cegos e ignorantes em face das terríveis leis que regem nossas vidas! Murmurou involuntariamente. E o resultado
final de todos esses pensamentos foi o desejo de mandar buscar Dionid Tonilim. Encontrava-se ele então em Florença e, como prometera, viria com todo o prazer. Ela
escreveu-lhe, contando-lhe em detalhes, exatamente, os acontecimentos que, à sua vista, desenrolavam-se em Montinho, e pediu-lhe que viessem assim que fosse possível.
Dionid encontraria ali, por certo, um campo propicio às suas atividades de socorro, bem como aos seus estudos no domínio do ocultismo. X X X
No seu quarto, Rothschild sentou-se no lugar preferido, junto da janela. O intelecto traia-o em face dos fatos que vira e dos quais Giácomo tecera aqueles comentários.
Que relações existiriam entre ele, um russo nato, e o italiano que morrera havia mais de três séculos? Por quê motivo o seu semblante estampava os mesmos traços
do Conde Paulo? -- Estamos nas garras do passado! Valéria dissera. E agora ele sentia a veracidade daquelas palavras. A influência que o ambiente exercia sobre
o seu estado psíquico, era poderosa! Tudo lhe parecia conhecido e familiar no castelo, e mais uma vez sentira uma estranha dualidade no seu ser interior. Tudo leva
a crer admitia que os espíritas têm razão. Teria, então, em anterior existência, vivido ali, na figura do Conde de Montinhoso? Ludibriara mulheres e experimentara
a terrível vingança de uma delas? Excitado, ergueu-se e enxugou o suor do rosto. O desejo de Visitar os compartimentos abandonados, buscando novas descobertas, voltou-se,
invencivelmente. Fechou sua porta, tirou do armário uma grande lâmpada de acetileno que comprara na cidade vizinha quando saíra pela última vez, e abriu a porta
secreta, sob o nicho. X X X Como Rothschild, Valéria também sentiu desejo de voltar aos compartimentos que já conhecia. As misteriosas relíquias dos séculos perdidos,
atraiam-na fortemente. Depois que a aia executou a tarefa de trançar-lhe o cabelo, Valéria dispensou-a, e vestindo um amplo agasalho azul, fechou o apartamento.
Em seguida, subindo a um mocho, pos em movimento o mecanismo da porta secreta. E ouviu em seguida fortes pancadas na parede. Rapidamente puxou a tocha que o gnomo
sustinha. A porta abriu-se. Teve então, à sua frente, a figura do Barão que riu e fez-lhe um sinal mostrando a lanterna que empunhava.
-- Vês, Valéria? Estou bem munido para a observação, desta vez! Queres vir comigo? Juntos a aventura nos parecerá
menos tétrica! Mas... agasalha-te melhor... Pega um xale ao menos; o ar aqui está terrivelmente frio e úmido! Valéria seguiu o conselho. Um minuto depois, acompanhava
o Barão através da passagem. -- Permite que te ofereça o braço! Muito bem. Temos agora o direito de fazer as inspeções que bem desejarmos! Aliás, devo mesmo visitar
minha nova propriedade... Rapidamente transpuseram o corredor e pararam, então, no saguão, junto às escadarias. -- Onde fica mesmo o salão com o quadro grande?
Perguntou Rothschild. Valéria indicou-lhe a porta. No momento seguinte, paravam ante a tela macabra. E nem bem Rothschild fizera a luz da lanterna incidir sobre
a tela, retrocedeu com um grito abafado. -- Outra vez a terrível história da mão decepada... Não terminara a frase ainda quando sentiu Valéria abater-se ao solo,
derrubada por súbita fraqueza. Rothschild amparou-a e permaneceram ambos silenciosos e inertes ante a magistral pintura que tão bem lhes reproduzia os traços fisionômicos.
-- Nós... sempre nós... Por quê? Balbuciou a moça estremecendo. Se tudo isto é apenas uma coincidência extraordinária, porque motivo sinto o ambiente abatendo-se
tão pesadamente sobre o meu espírito? por quê?... -- Precisamos examinar detalhadamente esta ala enfeitiçada! Observou Rothschild com a voz rouca, procurando afastar
a atenção de Valéria da velha pintura. Transpondo vários compartimentos, chegaram, então, à escadaria, que desceram até uma porta alta e entalhada, encimada por
um crucifixo.
-- Deve ser uma capela. Vejamo-la. É preciso que nos certifiquemos se, como os outros aposentes, foi também abandonada
em fuga apressada. Só com um grande esforço, o Barão logrou virar a chave na fechadura e abrir a porta. Ergueu a lanterna e iluminou o interior do aposento. Mas
Valéria emitiu um rouco gemido, vacilou sobre os pés, e apoiou-se pesadamente contra os batentes da porta. Depois curvou-se e estendeu-se desfalecida sobre o solo.
Rothschild, todavia, nem se apercebeu disso. O quadro que se lhe oferecia ao olhar, prendia-o, abstraindo-o do mundo que o cercava. Sobre uma elevação de dois degraus,
via um catafalco, e sobre este um antigo caixão funerário guarnecido de prata. Tudo exatamente como Rothschild vira nas vertigens de sua primeira noite no castelo
e como representava o grande quadro da sala. Uma tampa de vidro lacrava o esquife. Aos cantos do catafalco, elevavam-se castiçais contendo tocos envolvidos em preto,
sustidos, cada qual, por pesados castiçais. Lentamente o Barão foi se aproximando do esquife. Nele jazia, entre véus trabalhados em prata, uma figura feminina vestida
de branco. A morta parecia ainda viva, tão fresca era a cor de suas faces, tão mimosa a sua cútis. Era, toda, inegavelmente, o retrato de Valéria. A única diferença
a observar vinha dos traços, que na defunta, deformavam-se num ritus quase tétrico de hostilidade. De repente, Rothschild estremeceu. O seu olhar caia sobre qualquer
coisa de horrível: os dedos alvos da morta seguravam, convulsivamente, uma mão, amputada do braço pela junta. Era uma mão de beleza incomparável, clássica, que tingia-se
quase de negro. Trazia no dedo mínimo fulgurante rubi que cintilava como uma gota de sangue fresco. Parecia que, numa obstinação terrível, a morta decidira levar
consigo, inseparavelmente, aquela garra, até a eternidade. -- Paulo?! Chamou uma voz. A Rothschild pareceu, nesse instante, que o rosto da morta se contraía numa
careta de sarcasmo. Arrepiando-se de terror, virou-se, e encontrou Valéria que se erguera e vinha na sua direção como uma
sonâmbula. Seus olhos abriam-se estranhamente, num olhar fixo. Valéria movia-se num ataque cataléptico. -- Paulo?!
Ela repetiu; e tomando de sua mão apertou-a contra o seio. Não te esqueças de que me pertences e que, por força de um juramento de fidelidade, estás preso a mim.
Ainda conservo em minha mão o teu anel esponsalício, e... nesta outra mão a tua... mão! Livra-te de me enganares outra vez... E isto dizendo, Valéria largou bruscamente
a mão de Rothschild. Trêmula, retrocedeu um passo. -- Madona Lucrécia, o que quereis aqui? Esta capela pertenceme, afastai-vos daqui. Odeio-vos! Roubastes-me toda
a minha felicidade, tornando-vos a esposa dele... Valéria soluçava dizendo tais palavras, e prosseguia: -- Ah! Quereis talvez sepultura em solo sagrado... Eu também
o desejo! Pois muito bem, anuirei a este pedido... Um pavor desconhecido apoderava-se de Rothschild no decorrer do diálogo que Valéria travava com o ser invisível.
Mas, de súbito, ela voltou-se para ele mesmo, Rothschild: -- Segue-me, Paulo! Quero levar-te ao local onde estão os restos mortais de Lucrécia. Tu és aqui o senhor:
ordena, pois, que sejam todos os outros sepultados. A vontade de Rothschild aquebrantara-se. Ele não ofereceu qualquer resistência quando a jovem, com espantosa
segurança, e sem desviar-se um milímetro sequer, conduziu-o, da capela, a longínquo aposento que ele não vira ainda. Era um dormitório pomposamente guarnecido, onde,
sob um alto dossel, estendia-se largo leito. -- Permita-me que penetre nos teus aposentos. Tu sabes? Conheço também a pequenina porta junto ao teu leito, e que conduz
ao jardim, pela saída do teu vestiário, disse Valéria conduzindo Rothschild a uma grande sala revestida de couro escuro e tachas douradas Conversemos no teu gabinete
de trabalho. Numa das paredes, achava-se uma grande lareira de mármore preto, com o escudo dos Condes de Montinhoso. Valéria se aproximou.
-- Suspende a lâmpada, e não te afastes de mim por enquanto! ordenou ao Barão. Depois procurou, entre os ornamentos,
uma mola oculta. Descobrindo-a, moveu-a. O assoalho abriu-se ao meio da sala, e uma abertura negra surgiu-lhes ante os olhos. Um instante depois, a abertura fechava-se
de novo. -- Deves saber que para esta lúgubre caverna existe uma escada. Antigamente aqui se conservavam, por segurança, os prisioneiros, não é mesmo? Valéria falava
tranqüila e indiferentemente, como que o mais vulgar dos assuntos. Depois comprimiu um capacete, sob o escudo, no brasão da lareira, e Rothschild viu, admirado,
a pesada estufa girar-se para um lado, sob invisíveis gonzos, deixando a descoberto uma estreita passagem, com degraus escavados na parede. Uma ordem soou nos lábios
de Valéria: -- Dá-me a lanterna e segue-me! Sem nenhum receio, ela enveredou pelas sombras. Rothschild seguia-a mecanicamente. A descida parecia-lhe interminável.
Finalmente, estacaram diante de uma porta de ferro, que Valéria abriu. Então entraram numa arcada que devia ter sido escavada na rocha viva. Junto de uma parede,
havia dois bancos de pedra. Pesadas correntes desciam das paredes. Aqui e ali, espalhavam-se brancas ossadas humanas. Ao centro da arcada, sobre o solo, jazia um
esqueleto completo, ainda metido numa armadura de cavaleiro. O capacete rolara a alguns palmos de distância, e o crânio, assim descoberto, exibia uma longa fratura.
Junto ao esqueleto, dormia uma outra massa informe, semi-mumificada, envolta em farrapos. Duas longas e grossas tranças, demonstravam que fora em vida, um corpo
de mulher. Entre as costelas expostas, um punhal de cabo ornamentado... -- Isto foi Lucrécia um dia! Deves providenciar para que estes restos sejam inumados! Observou
Valéria. Logo em seguida abandonaram a abóbada. Estranha apatia apossara-se de Rothschild. Sem asco, indiferentemente, ele examinava
aquele horrível ambiente. O ar pesado da adega, era-lhe como um peso sobre a cabeça. Obedientemente seguia a sonâmbula
que, rápida, caminhava à sua frente. Depois que a estufa retornara a sua antiga posição, secamente, Valéria tornou a falar-lhe: -- Iremos agora ao tio Rindolfo.
No dormitório, ela parou um instante, e indicou um amontoado de roupas: -- São as tuas roupas de viagem? Sim, são! Tu as despistes antes de ires à capela. E com
a mesma indiferença manifestada até então, enveredou outra vez pelo corredor, desceu novos degraus e penetrou na sala onde estavam dependurados os quadros do velho
cavalheiro e a dama com o bandolim. Sem hesitar um instante sequer, ela acendeu as velas de dois candelabros, sobre a escrivaninha, e empurrou para o lado um rolo
de pergaminho. Rothschild, que a seguira passivamente, colocou a sua lâmpada sobre a mesa. Um singular estado de imobilidade dominava-o. Todo o seu corpo parecia
de chumbo, e quase não se podia mover. Aos poucos, porém, essa apatia foi dominada, e uma viva atividade cerebral substituiu-a. Pareceu-lhe que um fluido estranho
o invadia, propiciando ao organismo novas condições de receptibilidade. Principiou por sentir que o lugar onde se achava não lhe era estranho, e que conhecia todas
aquelas coisas. O seu cérebro começava a elaborar imagens absolutamente distantes de sua vida real, e que, como de outras vezes, patenteavam em sua personalidade
a sujeição a um dualismo funesto. -- Seguramente estou perdendo o juízo! Pensou. E com um olhar melancólico, fitou Valéria. De mãos erguidas, febrilmente excitada,
ela repetia desesperadamente esta frase: -- Tio Rindolfo, perdoa-me! Tio Rindolfo, perdoa-me! Neste momento, perceberam pesados passos que se aproximavam.
Um reposteiro abriu-se, e a alta figura de um homem em trajes de veludo negro, entrou na sala. Era o retratado
na tela suspensa à parede. Valéria caiu de joelhos, ergueu de novo as mãos e com a voz embargada pelas lágrimas gritou: -- Perdoa-me, tio Rindolfo, perdoa-me! Tira
de mim a maldição terrível, perdoa... Perdoa... Restitui-nos a nossa paz! Tremendo com todas as fibras de seu corpo, Rothschild acompanhava o desenrolar da cena.
Parecia-lhe reconhecer as feições, altivas e severas, do recém-vindo. Já vira, sem dúvida, aqueles olhos sombrios, escaldantes, que ora se dirigiam para ele, ora
se dirigiam para Valéria. Mas onde? Onde vira aquele rosto? Sem dar atenção a Valéria, quase sem ouvir as suas palavras, perdia-se olhando fixamente aquele vulto.
E contudo não conseguia lembrar-se. O cavalheiro era estranho e conhecido, a um só tempo. De súbito ele disse: -- Eu de há muito vos perdoei... Não vos perdoaram
ainda os pecados, as vossas vítimas... As vossas faltas não foram resgatadas. Fugi para bem longe... Os encantos do passado vos envolvem! Respirais aqui a poeira
dos séculos passados, e com ela todos os erros e paixões que vos levaram à ruína. Essas paixões já vos afetaram. Não vos esqueçais de que, nestes aposentos, ainda
erram os espíritos dos seres que, antes de vós, aqui viveram. Eles vos envolvem, prendem-se a vós, e vós lhes dareis as formas da vida. Essas sombras do passado
reúnem-se contra vós. Somente a fé e a prece poderão vos salvar, libertando-vos. Sede fortes, filhos... Ainda choro por vós, e as minhas lágrimas não se estancam.
E tu, alma apaixonada e vingativa terminou, dirigindo-se a Valéria arranca do teu coração esse amor, pelo qual foste amaldiçoada!... Depois destas palavras, a
imagem do cavalheiro desfez-se no ar, desaparecendo. Valéria ergueu-se, e permaneceu por um instante imóvel. Rothschild também se erguera do banquinho em que se
assentara. Fez um movimento para alcançar a saída da sala, mas foi possu-
ído por um súbito estremecimento. Todo o aposento pareceu-lhe povoado por entidades invisíveis, que o tocavam e
cujas vozes parecia ouvir. Valéria, entretanto, via-as distintamente. A moça acenou-lhe rápida: -- Vem! Logo cantará o galo! E tomando o Barão pelos dedos, conduziu-o
ao quarto anexo. Rothschild pensou: -- Este quarto pertenceu, outrora, a Giovana! Valéria estacou no pórtico, e seu rosto transfigurou-se de satisfação. Paulo,
tu te lembras?... Como fomos felizes aqui! Recordas-te daquelas horas? Sentes ainda o hálito do nosso amor? Tudo ainda vive aqui, ao nosso redor... tudo respira...
Se nosso corpo está morto, a nossa alma vive. Iniciemos de novo a vida embriagante! Ela calou-se um instante, concentrando-se, e voltou-se severa: -- Não! É melhor
que partas... Precisas voltar a casa... -- E tu? Não receias voltar sozinha ao teu quarto? -- Não! A vida lá de fora é que amedronta... Aqui o meu passado está todo
vivo !Oh! Se eu pudesse experimentar outra vez a felicidade de ouvir a tua confissão de amor! Mas... quem poderá obstar isso? Os nossos trajes festivos ainda estão
aqui, visitas e criados ainda há pouco nos saudavam festivamente... E sabes, Paulo? Apesar das palavras de tio Rindolfo, eu não desejo arrancar o teu amor do meu
coração... Todavia, vai embora... Agora! Ela voltou-se, saudando-o com a cabeça e desapareceu. Com os passos vacilantes de um bêbado, Rothschild dirigiu-se ao dormitório
onde, completamente esgotado, caiu numa poltrona. A aragem fresca que entrava pela janela aberta, foi aos poucos despertando-o. Acalmou-se, e pode recordar distintamente
da sua peregrinação através dos compartimentos murados. Ao lembrar-se da defunta, na capela, um estremecimento perpassou-o. O cadáver fora, provavelmente embalsamado
em tempos idos, com o fim de ser conservado. Na mão segurava a prova irrefutável do quanto de verdade havia nos sucessos aos quais fazia referência a lenda, a mão
amputada do Conde Paulo de
Montinhoso. Todavia, por quê motivo não fora sepultado o cadáver? Este era um enigma para o qual não se encontrava
solução. Em seu íntimo, cada vez mais, se avultava a convicção de que em seu corpo estava, em verdade. encarnada a alma do criminoso Paulo. Noutros termos, ele,
Pawel, era Paulo de Montinhoso. E, portanto, Valéria era Giovana, o que, aliás. ela mesma confirmara no seu acesso sonambúlico. Entretanto, apesar de todas essas
provas palpáveis, Pawel relutava em admitir isso. Procurava ainda crer que fosse apenas o ambiente local, as lendas horríveis, os compartimentos secretos, que atuassem
sobre os seus e os nervos excitados de Valéria. E Rothschild tomou, como o já fizera tantas vezes, nos momentos de insônia, uma dose de narcótico. X X X O dia seguinte
decorreu sem novidades. Valéria levantou-se tarde, cansada e nervosa. A recordação que guardava dos acontecimentos da noite, não iam além do momento em que estancara
na porta da capela, onde vira o esquife com o cadáver da mulher. Supunha que tivesse caído sem sentidos, e Rothschild reconduzira-a ao quarto. No correr das horas,
os habitantes do castelo mal se viram. Rothschild saíra na companhia de Miguel; Helena, que torcera um pé durante um passeio, descansava deitada numa poltrona de
varanda. As outras senhoras, sentaram-se junto dela o que também fizeram os jovens ao regressar. A ceia foi servida mais cedo que de costume, e logo em seguida cada
um se recolheu aos seus aposentos. Rothschild não sentia sono. Sentara-se junto da janela, como se acostumara a fazer, e meditava. Sua vida parecia-lhe vazia e inútil.
Todos os seus pensamentos confluenciavam para o passado. Poderia esconjurar aquela fatalidade que o ameaçava? Não sabia... Por enquanto, porém, uma coisa desejava
ardentemente fazer: entregar caridosamente à terra os restos ainda insepultados das vítimas do cruel Paulo. Todavia, como haveria de fazer isto, sem se denunciar
e sem denunciar seus crimes? Mas, sem
dúvida, sozinho é que não conseguiria fazer nada. E a simples idéia de tornar a ver os horríveis vestígios dos
crimes cometidos, assustava-o. Tais pensamentos afastaram por ccmpleto o seu sono. Resolveu dar um passeio, para refrescar a mente. A noite estava belíssima, maravilhosamente
silenciosa. Rothschild dirigiu-se ao antigo banco de pedra, sentando-se aí. Uma grande árvore estendia os seus ramos sobre o banco, e a lua prateava docemente o
castelo escorado sobre o rochedo e o tranqüilo lago do vale. Imerso em pensamentos, Rothschild não ouviu, a princípio, um abafado soluçar que parecia partir da gruta
próxima. Quando chegou a ouvi-lo distintamente, ergueu-se cautelosamente, encaminhando-se para a entrada da gruta.Viu Valéria assentada sobre o banco, a cabeça apoiada
na mesa, soluçando dolorosamente. E, naquele momento, a moça parecia-lhe mais formosa do que nunca. Sentiu-se poderosamente atraído para a dolorosa figura e, de
súbito, sentiu que a amava com toda a sua alma e juventude. Uma sombra irônica e amarga toldou-lhe, porem, o deslumbramento: lembrava-se daquela outra mulher que
cruzara o seu caminho, emudecendo os seus lábios que desejavam dizer: "Sê minha, eu te amo". -- Valéria? Chamou baixinho. A moça assustada, ergueu-se lesta. Um
profundo rubor cobriu o seu amável semblante, e Rothschild supôs que ela talvez cogitasse também a seu respeito quando, involuntariamente, arrancara-a do seu cismar.
Sentando-se ao seu lado, tomou-lhe a mão, levando-a aos lábios. -- Porque choras, Giovana? -- Nunca me chames assim, Pawel. Disse ela estremecendo e retirando sua
mão. Muitas vezes parece-me que realmente ficarei louca. As paredes murmuram-me fatos horripilantes, aos quais assistiram. E, quem somos nós, afinal? O destino
deu-nos traços fisionômicos idênticos aos traços de seres que antes de nós viveram sob estes tetos. Tu és o retrato vivo de Paulo de Montinhoso. Giovana repete-se
em mim. Que funesta deliberação reuniu-nos aqui, Pawel? Se ao me-
nos soubéssemos como e com que afastarmos esses fantasmas horríveis... Involuntariamente agarrara a mão de Rothschild
e apertava-a. -- Eu quisera abandonar este castelo, fugir daqui... desta maldição... Sinto que seres invisíveis e hediondos nos cercam, vigiando-nos, desejosos de
nos agarrar, de nos aniquilar... Nem bem suponho ter fugido do círculo mágico, e eles me atraem de novo a si. E quem há de nos salvar, de nos libertar, se nós mesmos
não fizermos isso? Oh! Pawel, vem comigo... fujamos... O que Valéria dizia, Rothschild sentira no decorrer de todos aqueles dias. Todavia, a idéia de abandonar o
castelo era-lhe insuportável. -- Foge tu, se podes... Eu não... Gritou. Eu não posso. Valéria, aqueles que crêem no Espiritismo dizem que não se vive uma só vez.
Portanto, também nós já vivemos, e, como todas as aparências fazem supor, aqui mesmo desenrolou-se o drama do nosso passado. Como o alcoólatra é atraído pelo álcool,
o morfinômano é sempre levado à droga, também eu me sinto prisioneiro de um insaciável desejo de saber mais, que me obriga a desvendar o que fui, o que fiz, pensei,
o que senti. Quero agora que o destino, o meu carma, me arraste ao alvo desconhecido... Tu não desejas saber, por exemplo, como se amava nos séculos passados? Atualmente,
em que tantas vezes um raciocínio sombrio oprime uma paixão, em que os heróis dos tempos de outrora surgem mais com aparências de fantasmas do que de homens de carne,
ossos e sangue, hoje em dia, todos os sentimentos são tão frios e calculados quanto os próprios homens o são! Já não sabemos amar até o esquecimento de nós mesmos.
Não somos capazes disso... Entretanto, julgo aprender, de uns dias a esta parte, este perigoso sentimento, embriagante, que inflama o espírito, o amor que queima
e destrói um homem e que, não obstante, proporciona-lhe a felicidade maior, a máxima bem-aventurança terrestre! Sua voz foi morrendo até um balbucio indistinto,
e seus olhos, de expressão habitualmente severa, abriram-se radiantes, profundamen-
te apaixonados. Ele julgou ler no olhar de Valéria a reciprocidade de seus sentimentos. Mas na alma daquela moça,
aparentemente tão fria, poderia também arder uma paixão igual à sua? Seria a verdadeira Valéria que se revelava naquele olhar? Tremendo de emoção, puxou a assustada
moça para si e beijou-a na boca. -- Foge daqui, se puderes! Exclamou radiante de amor. E de súbito libertou a jovem de seus braços, ergueu-se de um salto e correu
pelo estreito caminho, desaparecendo por trás das árvores. Valéria ficou como que estarrecida. Em seu coração, em sua face o sangue chegava em intempestivas correntes.
Aturdida, encostou a cabeça à parede de rocha. Vira como aquele homem tranqüilo e comedido se transformara num ser arrebatado, naquela criatura cujo retrato sempre
trouxera estereotipado no seu íntimo. Julgava sentir ainda o calor dos seus lábios e certificou-se de que o amava, não a Pawel, mas ao outro com o qual se parecia!
Tinha a sensação maluca de que aquele a quem amava tivesse se erguido naquele instante da sepultura, para de novo estreitá-la nos braços. Não, também ela não podia
fugir! Não podia abandonar o castelo, aquele lugar estranho em que o presente morria e revivia o passado. Estava irremediavelmente presa a Montinhoso, ainda que
Montinhoso não fosse outra coisa que um abismo, uma cratera que ameaçava devorá-la. Cambaleante, voltou ao seu dormitório. Deitou-se vestida sobre a cama, e só pela
madrugada conseguiu conciliar o sono.

8
A VOLTA AO PASSADO No dia seguinte, receberam uma carta de Dionid Tonilim, na qual anunciava a sua chegada a Montinhoso dentro de duas semanas.
Todos se alegraram com a notícia, menos Rothschild e Valéria. Evitavam fitar-se, mas tinham em comum um instintivo
desgosto com a chegada do ocultista. -- Dize-me, Pawel: quando resolverás finalmente a adquirir este castelo? Perguntou Helena. Se ficarem titubeando tanto tempo,
um outro pretendente tomará a dianteira. Confesso que desejaria, com a chegada de Dionid, poder devassar a ala murada. Teu tio não respondeu ainda? -- Já respondeu,
sim... Deu-me permissão para a compra e enviou-me a importância desejada. Já paguei ao notário vinte e cinco mil francos, mas tenho que esperar o regresso do proprietário
atual para ultimar o negócio. O notário me afirmou que o Marquês de Bianco nunca veio ver o castelo, que considera maléfico, e que se sentirá feliz em poder vendê-lo.
Mas é preciso convir em que, antes da compra definitivamente realizada, não temos direito de nos considerarmos senhores, imiscuindo-nos nos segredos da família.
-- Imagina, Pawel! E se encontrarmos aqui uma fortuna em ouro, jóias e outras preciosidades? Exclamou Lolo entusiasmada. -- Naturalmente querida Lolo! Encontrarei
aqui todos os tesouros do decantado Ali-Babá, que os Condes Montinhoso, adivinhando a minha presente semelhança com a clã, destinaram-me! Brincou Rothschild. --
Em todo caso comentou Miguel sorrindo foste predestinado a ser herdeiro deles! Mas agora deixa-me contar-te o passeio que dei hoje pela manhã. Encontrei o paraíso
perdido... -- Oh! Miguel, querido! Suplicou Lolo. Ensina-nos o caminho para lá! -- Não sei! Por uma segunda vez não trilharei aquele caminho a sós. Em companhia
de muitas pessoas... quem sabe... -- Afinal, onde estiveste, e o que viste? Quis saber, desconfiado, Rothschild. -- Infelizmente não foi muita coisa... Respondeu
Miguel. Ouvi, pois! Hoje levantei-me muito cedo, levei comigo uma escada de cor-
das, adquirida especialmente para isso, e subi a uma grande árvore, em frente ao muro, onde também se vêm cúpulas
de árvores do lado oposto. Não era fácil o reconhecimento, mas consegui certificar-me de que, desse lado, existia uma entrada para a ala murada do castelo. É que,
do muro, eu olhava para o parque, em cujo lado existe uma porta, atualmente fechada. Prendendo minha escada ao muro, desci para o outro lado. A grama e os arbustos
espinhosos me dilaceraram a roupa. Isso, porém, não me importava. Convenci-me de que a parede da capela interior, avança até o quintal pois, uma porta, infelizmente
fechada com barras de ferro comunica o pátio ao interior da capela. Depois, transpus um portão e penetrei num belíssimo jardim de rosas. Existe ali um grande terraço
com elevada balaustrada e bancos de mármore correndo a um lado. Uma porta que estava trancada impossibilitou-me continuar a jornada. Realmente, se eu não tinha nenhuma
possibilidade de lançar um olhar sequer ao interior do castelo, agora, confesso-o francamente, perdi por completo a vontade de fazê-lo. É que sucedeu uma coisa estranha...
Graças a Deus, não sou supersticioso nem medroso, além disso era dia claro, o sol brilhava e eu nem ao menos me encontrava num cômodo fechado. Rireis com certeza
quando eu vos disser que tive a sensação positiva de que não me encontrava a sós, de que, ao meu lado, e ao meu redor havia e moviamse seres invisíveis que me tocavam...
Nunca dantes sentira coisa semelhante! Procurei, a principio, reagir, belisquei-me, observei e apalpei uma estátua já enegrecida pelo tempo que ali se achava, mas
nada valeu! Apoderou-se de mim um medo tão grande, um tal horror, que subi correndo a escada de corda. E em baixo ladrava e uivava um cão que eu não podia ver...
Brrrrr! Uma vez e nunca mais. -- Mas, francamente, Miguel ralhou Helena Nunca supus que meu filho fosse tão supersticioso. Não te passou pela mente que foi Moro,
o velho cão do castelo que ladrava? É cão de guarda, e, sem dúvida, julgou-te um ladrão, um arrombador! -- Não, mamãe! Tu te enganas! Era o fantasma do cão que pertenceu
ao Conde de Montinhoso. Esse fantasma percorre sem cessar
os parques murados do castelo, em busca do seu senhor! Observou Lolo excitada. Eu sei. Savéria me disse! Ela ouve
o cão ladrar e uivar. Savéria contou-me também que ninguém conseguirá entrar nesta parte do castelo. Só em época determinada e futura será permitido o ingresso.
A exposição de Lolo, porém, foi interrompida pela hilaridade geral. Ficou deliberado que, assim que Montinhoso passasse a ser definitiva propriedade do Barão, desvendariam
os seus segredos. Rothschild parecia também de acordo com esse plano, mas intimamente lhe era contrário. Experimentava um secreto rancor imaginando que pessoas estranhas
desvendariam os seus mistérios íntimos. Sentia que, naqueles compartimentos seculares, Valéria e ele se pertenciam, que entre ambos firmavam-se laços que não se
atreveriam romper com toda a intensidade da alma... X X X Duas semanas transcorreram sem que qualquer coisa de notável sucedesse. Valéria e Rothschild, excessivamente
retraídos, reciprocamente evitam-se, e durante o dia quase não se viam. Mas quando a noite chegava, como que seguindo uma combinação prévia, prosseguiam na exploração
da ala fechada. Levados por esse misterioso pacto, encontravam-se nos aposentos abandonados. Evitando apenas a sala grande, onde existia o fúnebre quadro, a capela
e a alcova de Giovana, juntos examinaram os guarda-roupas, revolveram malas e canastras, rindo e fazendo caçoadas sobre os seus achados. E tais aventuras noturnas
os aproximavam cada vez mais, fazendo-os esquecer o presente pela idade medieval. Tornaram-se apenas Paulo e Giovana. Extraordinário era que, durante o dia, quando
o encanto noturno acabava, encontravam-se com desconfiança, quase que com hostilidade. Mas assim que a noite descia sobre o castelo e seus habitantes, ou quando
no decorrer de algumas noites seguidas, não tinham estado nos quar-
tos antigos, voltava a despertar neles, de novo, o desejo de se encontrarem como Paulo e Giovana, e de resolverem
os problemas do passado. E até que um dia ocorreu a data marcada para a chegada de Dionid Tonilim. Os jovens tinham ido à cidade, ao seu encontro, e o conduziram
ao castelo onde as damas o receberam cordialmente. Durante a noite toda, não se falou de outra coisa que não fossem as lendas do castelo de Montinhoso, a visita
à catacumba e as estórias narradas pelo velho Giácomo. Dionid ouvia esses relatos com vivo interesse, e frequentemente fitava, ora o semblante de Rothschild ora
o de Valéria, tanto mais que esses dois, conforme observou, quase não tomavam parte na palestra. Rothschild recolheu-se aborrecido ao quarto. A palestra, como de
outras vezes, afetara o seu estado nervoso, levando-a identificar-se com o Conde de Montinhoso. As reiteradas referências à sua semelhança com ele, fizeram o resto.
Perdeu por completo o equilíbrio. O que mais o molestava, porém, era o fato de todo o grupo de pessoas presentes tomar parte nas investigações, denotando um saliente
interesse pelo segredo do castelo. Zangado, atirou-se sobre uma cadeira, dando largas aos seus pensamentos confusos. Em espírito, viu Giovana diante de si, e experimentou
o ardente desejo de viver, ao menos uma vez, o que se passara outrora, as emoções das quais até então, apenas conhecera pequenas frações. Se pudesse ver o castelo
como o fora nos velhos dias, em sua anterior opulência e magnificência, trocar o presente sem importância pelo passado colorido e cheio de aventuras!... Se lhe fosse
possível, ao menos por uma hora, ser um daqueles vaidosos cavalheiros, cujos desejos se assemelhavam a decretos!... Batendo meia-noite na torre, o velho relógio
interrompeu o curso de suas idéias. Suspirando, ergueu-se para se acomodar no leito, mas de repente, estremeceu, estacando. Ouvia um canto longínquo, que se fazia
mais e mais distinto. Uma voz feminina cantava uma ária italiana que ele desconhecia. O canto vinha indubitavelmente dos aposentos abandonados. Sem conseguir diminuir
sua curiosidade, aproxi-
mou-se da passagem secreta. Cuidadoso, removeu a mesinha, abriu a porta e estacou no limiar. Todo o quarto encontrava-se
feericamente iluminado por dezenas de velas cor-de-rosa. Ao centro, se encontrava Valéria, e, todavia, parecia ser Giovana que cantava. Trajava um vestido de brocado
azul claro, cujo decote punha-lhe à mostra o belo pescoço clássico. Um cinto largo, cujas pontas caíam soltas, envolvia-lhe a cintura, e um pequeno solidéu azul
claro, ornamentado de pérolas, cobria-lhe a cabeça. Valéria prosseguiu no seu canto, fazendo-se acompanhar do alaúde. Rothschild continuava parado, cheio de admiração.
Não apenas o vestido dava à moça uma aparência diferente, mas também o seu rosto parecia transformado. Um sorriso voluptuoso descerrava os seus lábios, e uma malícia
desnorteante manifestava-se pelas suas atitudes e gestos. Provavelmente estava outra vez em estado sonambúlico. Seu olhar era, por vezes, quase fixo e vítreo, por
vezes transmutado por uma apaixonada labareda. Rothschild passou a mão pelos olhos. Estava inteiramente consciente, e via que aquela que se encontrava à sua frente,
era Valéria Samburoff. Todavia, também via naquela figura um outro ser, perigoso e atraentemente belo, que nada tinha em comum com a jovem modesta e retraída. --
Giovana! -- Ah! Me reconheceste!? -- Mas eu não te reconheço nesses trajes asquerosos. Anda, veste-te, depressa, festivamente, e eu te recompensarei com a minha
graça... Rothschild não se movera do lugar em que se encontrava, e ouvia aquele canto que, então, se fazia mais profundo e metálico. Giovana aproximou-se de uma
mesa onde havia uma bandeja de ouro com garrafas e copos. Ela encheu um copo com vinho, que corria grosso como um mel, tomou um gole, e, em seguida, ofereceu-o a
Rothschild, que envolveu num olhar cheio de fogo. -- Ao passado, Conde de Montinhoso! Mecanicamente, o Barão tomou o copo e esvaziou-o. Sentiu, no mesmo instante,
a sensação de ter levado um golpe na cabeça. Ao seu
redor, as paredes estremeceram como ao fragor de um trovão. Em seguida experimentou a sensação de estar mergulhando
em tenebrosa caverna... Todas as suas emoções, entretanto, acalmaram-se no momento seguinte: achou-se no mesmo quarto que dantes, mas Giovana tinha desaparecido.
Exausto, recostou-se à parede, tentando refletir a respeito do que se passara. Outra vez, a terrível dualidade manifestava-se-lhe, com a diferença que, a sua imagem
como Barão de Rothschild, parecia mais e mais submergir-se, enquanto que o outro eu, o de Paulo de Montinhoso, com seus pensamentos e desejos, o dominava. E pela
primeira vez sentiu-se, realmente, como Paulo de Montinhoso. Sentia o sangue correndo em suas veias como labaredas de fogo, e o seu corpo saturado de uma força,
de um vigor que nunca sentira antes. Como um autômato, dirigiu-se ao antigo quarto do Conde Paulo, e não se admirou, absolutamente, quando um grande galgo veio saltando
ao seu encontro. -- Negus! Meu fiel e velho amigo! No quarto, tudo agora alinhava-se numa ordem deslumbrante. Cuidadosa mão passara por ali. Na sala contígua, havia
flores e candelabros acesos, com velas cor-de-rosa sobre a mesa. Quando entrou, veio ao seu encontro, surgindo de um canto, um velho servidor. Calado, lhe tirou
a roupa, e auxiliou-o a envergar um traje de brocado de prata e cetim cor de cereja. Em seguida, colocou-lhe ao pescoço uma corrente de ouro, da qual pendia um medalhão,
e entregou-lhe um barrete de veludo, sobre o qual, mantidas por estiletes e rubis, prendia-se uma grande pluma branca. E o espelho refletiu a imagem de um novo homem.
Já não era mais o pálido e exausto Barão de Rothschild, mas o orgulhoso e autoritário Conde de Montinhoso. Em cada nervo, denotava energia e paixão. O rico vestuário
do século XVI, ainda realçava mais a sua formosura viril. Os calções apertados, envolviam como luvas os seus membros esbeltos e flexíveis e a branca gola, mais os
negros cabelos crespos, eram uma digna moldura àquele rosto enérgico e belo.
Com a curiosidade de um desinteressado, o Barão movimentavase diante do espelho. Nos seus olhos, lia a expressão
audaz, o fogo e a convicção do seu poder. Até então, não sabia que a sua boca fosse capaz de um sorriso tão orgulhoso e irônico. Sim, era belo, e conquistaria, facilmente,
os corações femininos. A sua personalidade inteira exprimia a tranqüila certeza do vencedor, e dava-lhe doce e serena aparência, mas selvageria e crueldade também.
Ele poderia ser como uma fera que negaceava sua vítima, traiçoeiramente, para atraí-la a si, estraçalhá-la e arremessá-la outra vez à distância. Quanto mais Rothschild
contemplava o seu exterior, tanto mais lhe agradava o disfarce. Sentia-se vencido pelos seus próprios encantos. Orgulhosamente ereto, abandonou o quarto. O seu desejo
realizava-se. Os velhos compartimentos enchiam-se de vida! Servos vestidos nas cores de Montinhoso, corriam ocupados de um lado para o outro, e se inclinavam profundamente,
perante o jovem Conde. Do pátio, vinha o rumor do tropel de cavalos e retinir de armas. Tudo festivamente iluminado. Música e cantos. Rothschild entrou no grande
salão que guardava o quadro lúgubre. Todavia este desaparecera da parede. A sala enchia-se de convivas, damas e cavalheiros que eram amavelmente recebidos por velho
anfitrião. E este ancião chamava o filho. E esquecendo-se do presente, de si mesmo, pode o jovem Conde entreter-se em animados colóquios sobre questões políticas
que já de há muito pertenciam à história. Sem surpresa, acendia quando o chamavam Conde Paulo, e gracejava com as damas que o envolviam em provocantes olhares. Apenas
de longe em longe passava-lhe, como um relâmpago pela mente, que não se chamava Montinhoso, afinal, mas Rothschild. Tais pensamentos, porém, céleres fugiam, e como
que uma nebulosa arrebatava-o. Procurou Giovana e logo a encontrou, pelo braço de um belo mancebo em trajes verdes. Palestravam animadamente. A poucos passos de
distância, o par passou-lhe, e o moço cumprimentou-o atenciosamente. Mas Giovana não parecia observálo. Enciumado, Paulo levou a mão ao estilete que trazia à cintura.
Foi um movimento involuntário. Sabia que Manfredo Toreani, um rico nó-
bile, de Modena, fazia ardente corte a Giovana. Também ele cortejavaa. Giovana, até então, recebera friamente as
atenções do nóbile. Naquele dia, entretanto, teria mudado de tática, e, a todos os demais requestadores, dava preferência a Toreani. Paulo sentia-se doido de raiva
e ciúme. Uma voz interior prevenia-o de que não podia desposar Giovana: era casado sem o conhecimento do pai. Mas a entregá-la ao seu pretendente, preferia matá-los
a ambos. Já o festim perdera, para ele, todo o encanto. Não pensava noutra coisa que não fosse Giovana, e procurou-a, e ao seu cortejador, por toda a sala. Mas inutilmente.
Transpôs várias salas e o refeitório, onde os criados ocupavam-se com o banquete. Foi ao andar superior e saiu ao terraço. Ai encontrou-a, recostada à balaustrada.
Olhava o jardim, abanando-se com o leque. Ele aproximou-se lesto e prendeu-a pelo punho. -- Onde está Toreani? -- Teu pai o chamou, mas voltará logo. -- Giovana,
se não deixares este teu capricho com Manfredo, não me responsabilizarei pelo que vier... -- Sim? E com que direito, Conde Paulo, me impões alternativas? -- Com
o direito do amor. Pois eu te amo, Giovana, e trucidarei quem quer que ouse aproximar-se de ti! -- Tu me amas, Paulo? Mas corre por aí a notícia de que tio Rindolfo
tem em vista um ótimo partido para ti! Queres, certamente, fazer de mim um joguete! Enganas-te muito! Para me possuir, é preciso seguir o caminho que passa pela
igreja! Retrucou Giovana. O olhar da moça ardia como fogo. -- Para possuir-te transporei céus e infernos! Contra os planos de meu pai não posso fazer nada. Realidade,
porém, só se tornará o que eu quiser. Eu te juro: tu serás minha! Mas não desejo iniciar uma luta aberta e que será infrutífera, contra meu pai. Quando, entretanto,
eu o tiver colocado ante os fatos consumados, ele terá, finalmente, que conformar-se! E como ele te ama, nos perdoará... Tu sabes que o meu primo Cesar, que recentemente
faleceu, nos deixou grandes propriedades na Sicília, próximo a Siracusa. Meu pai julga que estão muito
distantes, e deseja vendê-las. Seguirá em breve para lá, e ficará ausente alguns meses. Aproveitaremos esse tempo
para nos casarmos. Agora que conheces os meus planos, e tens a minha palavra, beijo-te como minha noiva. Abraçou-a, beijando-a na boca. lncendiada de amor, Giovana
retribuiu-lhe as carícias. -- Vem! Subamos até a gruta. A noite é bela, os nossos hóspedes passeiam no jardim. Quem saberá onde estamos?! Disse ele despreocupado,
sorrindo. E arrastou-a consigo. Caminharam à sombra das árvores, mas não chegaram à gruta. Irrompendo, um toque de buzina anunciava o banquete. X X X Grande alegria
reinava no salão. No decorrer do banquete Rothschild sentiu ressurgir a consciência de sua dualidade, e um indescritível desassossego empanou-lhe o espírito, enquanto
sua boca, mecanicamente, discorria acerca dos acontecimentos e pessoas que lhe eram desconhecidos. Seu olhar não se desprendia de Giovana e Manfredo Toreani, que
se assentara ao lado dela. Depois disso, uma chuva de violetas pareceu descer sobre o salão, e os convivas, empalidecendo mais e mais, desfizeram-se em nada. Um
trovão terrível pareceu abalar as paredes. A terra tremeu e oscilou sob seus pés. Paulo sentiu uma pancada em sua fronte e perdeu a consciência... Quando Rothschild
despertou, já era dia claro. Achou-se sobre uma cama, e nada além de sua memória, denunciava que tivesse tomado parte no festim fantástico. A roupa de brocado desaparecera,
a porta secreta estava fechada. Sobre a mesa da cabeceira, entretanto, uma Tosa branca dava concludentes provas dos acontecimentos noturnos. Podia recordar-se perfeitamente
de haver visto aquela rosa na cintura de Giovana, e de se ter apoderado dela. Todavia, na mesinha junto da janela, também havia rosas. Esta poderia ter sido retirada
dali.
-- Que sonho tão vivo!... Pensou. Apresentou-me as figuras que desejo tão ardentemente ver, em realidade. Sim,
um sonho... Não poderei explicar o fato de outra maneira. Contudo, não é difícil perderse o juízo como uma sucessão de acontecimentos desagradáveis como esses. Vestiu-se
apressadamente. O relógio da torre anunciava meiodia. Os hóspedes demoravam-se ainda no primeiro almoço. Certamente não se tinham também levantado muito cedo. Em
suas fisionomias, lia-se ainda fadiga e sono. A palestra estava animada, seguida de movimentos calorosos e altas exclamações. Apenas Tonilim calava-se. Quando Rothschild
surgiu no terraço, lançou sobre o moço um olhar cheio de estranheza. -- Até que enfim chegas, Pawel. Com certeza também não pregaste o olho, heim? Dize-me, tens
alguma explicação para esse horrível barulho noturno? Perguntou Helena excitada. -- Mas, querida tia, nem sei ao menos de que falais! Não ouvi absolutamente nada.
Por Deus, dizei-me o que sucedeu? Exclamou confuso Rothschild. -- Mas será possível? Todos nós ouvimos a mesma coisa! Dionid, os criados... Logo depois de meia-noite,
ao que parece, o castelo encheu-se de gente. Cavalos rinchavam, escoiceando as pedras, ouviram-se vozes, na ala murada ressoaram músicas e cantos. Foi, positivamente,
uma zoeira infernal! -- Sim, realmente, infernal! Provavelmente, todos os condes e condessas de Montinhoso, parentelas e amigos da corja, ergueram-se da tumba e
promoveram um baile! -- Não consegui dormir a noite toda, confessou Lôlo muito nervosa e passei para o quarto de mamãe. -- É singular que eu não tenha ouvido nada!
Disse Rothschild, enquanto se servia de café, e, manhosamente, fugia aos olhares investigadores de Dionid Tonilim.
-- Talvez tenhas também participado do banquete, e por isso não te apercebeste do barulho tanto quanto nós! Disse
Dionid sorrindo enigmaticamente. -- Esta é sem dúvida, uma suposição muito curiosa! Retrucou o Barão friamente. -- E que contudo baseia-se num acontecimento não
menos curioso. É que quando ouvi o barulho, levantei-me para verificar as causas. Vi, então, um homem num rico traje do século XVI subir as escadas para o terraço.
Assemelhava-se tanto contigo, que poderia até ocasionar confusões. Conduzia pelo braço uma jovem também festivamente engalanada, cujo rosto não pude ver bem. Dize-me,
Pawel, não é verdadeiramente estranho que esta aparição tenha tido uma tão viva semelhança contigo? -- Prezado Dionid Tonilim, não posso em verdade, responder à
tua pergunta, pois nada vi, nada ouvi. Ademais, não me admiro com o fato. Aparentemente, todos os espíritos e espectros que aparecem por aqui parecem-se comigo!
disse Rothschild num tom quase hostil. Apressou-se em tomar o seu café e, sob pretexto de precisar escrever algumas cartas, retirou-se. -- Porque fazes tais gracejos,
Dionid? Ele não gosta disso! E eu compreendo muito bem que lhe deve ser incômodo e desagradável o haver recebido do destino o mesmo exterior que esse D. Juan, ou
Bórgia, e que, segundo a lenda, um tão triste papel desempenhou. A estas palavras de Helena, Tonilim só teve um dar de ombros: -- Mas este é um caso altamente interessante!
Eu vos peço por isso, meus amigos, que resgateis a promessa feita, e me seja mostrado tudo quanto pode ser visto, dentro e fora dos muros do castelo, até onde pudermos
ir. Espero que o Barão não se oponha a uma inspeção à ala fechada! Miguel ofereceu-se para acompanhar Tonilim, mostrando-lhe as ruínas do convento e a capela mortuária
do Conde Paulo. As damas, porém, recusaram-se, peremptoriamente, a fazer uma segunda visita àquelas misteriosas regiões.
Antes de saírem, inspecionaram tudo quanto julgaram digno de exame. Depois as ruínas e a sepultura. Com o auxílio
de uma escada de cordas, Dionid subiu ao muro, no mesmo local, em que dias antes estivera Miguel, desceu ao quintal e estudou, minuciosamente, o jardim das rosas.
Descobriu uma espécie de abrigo, que Miguel notara, e abriu sua porta, que não fora selada, retirando dele um esquife entalhado, e um selim de mulher. Todas as outras
portas estavam lacradas, e não poderiam ser abertas sem o auxílio de ferramentas. Desse passeio, regressou Dionid taciturno e preocupado. Não disse, entretanto,
uma palavra sobre a sua descoberta. Larissa, que o observava, lhe teria falado com grande prazer a sós, mas não encontrou oportunidade para isso. Somente no dia
seguinte à tardinha, encontrou-se com ele a sós, por acaso, e pediu-lhe que dissesse alguma coisa sobre as suas descobertas e os resultados da investigação que levava
a efeito. Queria conhecer a sua opinião sobre os misteriosos acontecimentos. -- Por enquanto, é bem pouco o que sei, para poder formar um juízo claro. Uma coisa,
porém, posso adiantar: a atmosfera toda, aqui, está impregnada de fluidos hostis. O passado despertou, realmente, nas nossas vidas. Qualquer coisa de funesto oculta-se
entre estas paredes, e ai daqueles que outrora participaram dos dramas que se desenrolaram neste cenário, quando caírem nas mãos de suas vítimas. Funestos e inesperados
acontecimentos iremos assistir. Não me sinto suficientemente forte para, sozinho, ir ao encontro desses mistérios ocultos. Por esse motivo, escrevi a um amigo, e
pedi-lhe que viesse cá. É quase um sábio e um profundo conhecedor dos fenômenos desse domínio. Com os seus conselhos e sua prática, nos auxiliará de sobremaneira.
-- Mas pelo amor de Deus, Dionid, o que pode nos acontecer? Que Deus nos defenda dos perigos!... -- Eu seria feliz, Larissa, se pudesse localizar o perigo que possivelmente,
nos ameaça, pois, assim, teria apenas a metade da sua força. Estou, porém, firmemente convencido de que Rothschild está em
íntima relação com as tragédias deste castelo, e sabe mais do que alega saber. Temo que a pobre Valéria tenha também
um papel no drama, e seja arrastada para o infortúnio. Está fraca e nervosa! Observa essa menina, Larissa, mas sem te denunciares. Seria inútil deixá-la desconfiar
antes do tempo. Mas, no momento em que eu te aconselhar, foge com ela daqui, imediatamente. X X X Nos dias que se seguiram, fizeram excursões pelas vizinhanças do
castelo, das quais todos participaram. Os ânimos tinham se acalmado, pois os ruídos noturnos não se repetiram, e o sossego dos hóspedes do castelo não foi quebrado.
Apenas o Barão acabrunhava-se, tomado por estranho nervosismo. Notara que, secretamente, Tonilim o mantinha sob vigilância. Também Valéria não pode furtar-se a uma
impressão semelhante. Durante o dia, encontravam-se como sempre fria e tranquilamente. Mas depois que a noite caía, o sangue corria-lhes mais rápido nas veias, e
passavam, então, a aguardar ansiosamente, o momento em que todos se recolhiam. E abriam trêmulos as portas secretas, penetravam como sombras no corredor, acendiam
as velas das quais encontraram considerável provisão nos armários, e se encontravam por fim. Singulares eram as suas palestras, das quais excluíam, concomitantemente,
o presente. Paulo e Giovana falavam apenas das coisas do passado, que eram para eles, o presente. Naqueles misteriosos compartimentos, tornavam-se românticos fogosos,
cuja paixão crescia de dia para dia, e ameaçava, sempre, todas as barreiras. Os dias já eram para eles um fardo, as horas decorriam vagarosamente. Não pensavam senão
na noite que estava para chegar... Uma manhã, Tonilim comunicou que precisava fazer uma viagem de pouco tempo, e pediu permissão para trazer consigo um bom e velho
amigo, grande admirador e partidário do ocultismo. As cartas que lhe escrevera sobre Montinhoso, explicava, tinham-no deixado curio-
síssimo. Helena deu, cordialmente, o seu consentimento. Mas nos cantos da boca do Barão, brincava um sorriso de
ironia. Ao sair, Tonilim disse a Larissa que previa acontecimentos sérios a exigir enérgicas providências. Fazia aquela viagem por este motivo: para trazer o amigo
o mais depressa possível. -- Observa, Valéria! Acrescentou ao apertar-lhe a mão. A Larissa, porém, não necessitavam tais admoestações. Logo depois da primeira vez
em que falaram sobre o perigo que podia ameaçar Valéria, tinha passado a vigiá-la atentamente. Chegara à conclusão de que, na alma da jovem, qualquer coisa de anormal
se passava. Mas não encontrava a chave do enigma. Uma circunstância atuava especialmente desinquietante, e desagradavelmente, sobre Larissa. Recebera uma carta em
que a genitora da moça comunicava-lhe que Anatólio pretendia estar em breve em Montinhoso. Se ela Larissa, pretendia alongar a sua permanência na Itália, poderia
confiar Valéria ao irmão que, finda sua licença de trinta dias, a levaria consigo para casa. Quando Lolo e Miguel souberam da próxima chegada de Miguel, ficaram
satisfeitíssimos. Mas Valéria, empalidecendo, estremeceu involuntariamente. A partir desse dia, sempre ficava nervosa quando lhe falavam na sua viagem de regresso.
Debalde procurava Larissa o motivo desse procedimento. A princípio, imaginou que Valéria enamorarase do Barão. Mas a constante indiferença com que se encontravam,
logo excluiu essa suposição. Rothschild nem ao menos fazia a corte a Valéria, que, por sua vez, evitava-o. O fato de a afilhada trancar-se de noite no seu aposento,
causou-lhe uma certa admiração de princípio. Depois passou a julgar muito natural que Valéria não dormisse de portas abertas num castelo cheio de fantasmas, como
aquele. Mas, qual seria então o motivo pelo qual não queria deixar Montinhoso? Larissa começou a sentir-se mal. O desassossego martirizava-a, o medo que sentia avolumar-se
em seu espírito, levava-a ao desejo de fugir dali imediatamente. Detinha-a, porém, a curiosidade de conhecer o que guardava a ala murada.
A partida de Tonilim atuara perturbadoramente sobre Rothschild. No decorrer dos últimos dias, não lhe fora possível
visitar os aposentos secretos. Não se sentia, fisicamente, muito bem. Afetava-o uma sonolência que, desde a tardinha fazia-o adormecer onde quer que estivesse. Na
noite seguinte à partida de Tonilim, resolveu visitar outra vez os antigos aposentos. A separação involuntária de Giovana fizeram crescer ainda mais a sua paixão
por ela. Queria revê-la, a qualquer preço. Nem bem apagaram-se as luzes no castelo, Pawel abriu a porta secreta e entrou nos aposentos já familiares e conhecidos.
A hesitação que afetou-o de início, cedeu lugar a uma excitação invulgar, que lhe fazia o sangue correr nas veias como filetes de fogo. A sua paixão por Giovana
alcançava o ápice. Trêmulo de impaciência, penetrou na sala que guardava o retrato de seu suposto genitor, e onde costumava palestrar com a moça. Rothschild acendia
as velas sobre a lareira, quando Valéria entrou, apressadamente; dirigindo-se ao moço, abraçou-o. Falaram, então, do seu amor. Valéria, porém, revelava-se inquieta,
voltando-se medrosa de quando em quando, para fitar o retrato do Signore Rindolfo, de maneira que o Barão conduziu-a ao quarto que ocupara outrora. Aí, então, esqueceram-se
de tudo e de todos, do presente, do passado. O amor enceguecia-os, devorando como um fogo selvagem, levando-os a experimentar de novo as antigas emoções. E no quarto
em que, três séculos atrás, se desenrolara o mesmo drama de amor, Valéria entregou-se ao bem amado... X X X Como um pesadelo, pairava sobre Pawel, depois de despertar,
a lembrança da noite. Tudo aquilo não fora um sonho apenas, mas realidade! Ele cometera um delito que não podia remediar, procedera em relação àquela jovem criatura
que fora entregue à sua guarda, como um bandido. Destruíra a sua vida, e nem ao menos podia salvar a sua
honra, uma vez que se encontrava preso a outra mulher. Certamente, encontra-se fora de suas faculdades normais.
Na realidade amava aquela menina! Não a fria e inalcançável Valéria, mas a noturna Giovana, aquela que, com sua paixão, o tornara seu escravo. Não seria, naturalmente,
muito fácil provar-se que fora justamente ele, quem desviara Valéria, que, por sua vez, no decorrer das horas da noite, encontrava-se quase sempre em estado sonambúlico.
Talvez a moça nem soubesse o que sucedera. Esse fato, todavia, deprimia mais o seu procedimento. De boa vontade, se prestaria a reparar tudo. Aquele infeliz casamento,
entretanto, impossibilitava tudo. Essa lembrança levou-o à beira do desespero. Um rancor desvairado se apoderou dele, ao lembrar-se daquela a quem nunca amara e
que o prendia, sem libertá-lo, entre as suas mãos. O estado de espírito de Rothschild, era tão atroz, que não pode comparecer ao almoço. Pretextando uma enfermidade
qualquer, não abandonou seus aposentos durante todo o dia. Miguel e Helena visitaram-no, e não ficaram satisfeitos com o seu aspecto. Ele parecia ter febre. Deitou-se
e tomou alguns comprimidos . -- Tu te griparás ainda, se não perderes esse horrível costume de dormir com as janelas escancaradas! -- Qualquer dia estarás com malária!
Reforçou Helena Alexandrowna. O Barão respondeu com um gracejo, e prometeu ser cauteloso. Ficou satisfeito quando se viu a sós outra vez. Mais tarde voltou Miguel
para distraí-la, e contou-lhe que Valéria tivera uma crise de nervos quando, pela manhã, recebera a notícia da morte de um parente distante. Tinham-na transportado
para o leito e ela dormia, então. Um frio suor percorreu a testa de Rothschild. E se ela tivesse tido aquele ataque em virtude dos acontecimentos da noite? Oh! poderia
ele apresentar-se à moça ainda? Sem sono, virava-se na cama de um lado para o outro. E o plano de libertar-se de Dina, a qualquer custo, foi amadurecendo no seu
espírito. Tal resolução tranqüilizou-o um pouco.
Na manhã seguinte, apareceu outra vez para o almoço. Um único olhar para Valéria, bastou-lhe para certificar-se
de que ela ignorara o sucedido. Parecia apenas um pouco pálida e mais pensativa. E os dias seguintes correram tranqüilos. Apenas no íntimo do Barão não havia paz.
Ele sofria. Todas as vezes em que via Valéria, só com dificuldade continha o seu nervosismo. Evitava os quartos tenebrosos, nos quais se transformava no Conde Paulo
e onde se consumira na furiosa paixão por Giovana. Temia a lembrança de Giovana, que era, toda, a voluptuosidade que o embriagara de tão indizível maneira. Desejava
a Diva noturna, mas não a menina retraída e fria, que encontrava durante o dia. Se a desviara, porém, era preciso reparar o mal feito, por meio do matrimônio. Valéria,
apesar de sua frieza e severidade, lhe era mil vezes mais atraente do que aquela Dina que, despudoradamente, lhe fora imposta. Se desposasse Valéria, então, viveria
ali, com ela, na dupla personificação que a tornava tão cara, tão preciosa para ele. Era, afinal, o senhor daquela propriedade, à qual cada dia que passava, sentia-se
mais e mais preso, por misteriosas peias. Uma noite, estavam todos sentados no terraço, à mesa do chá, quando um mensageiro a cavalo entregou a Rothschild um telegrama
e uma carta. A carta era do secretário do Barão de Rothschild, escrita de um balneário de Nheunheim. Nela comunicava-lhe que um forte ataque da antiga enfermidade
cardíaca, prendia o velho ao leito, e que havia perigo de morte. Pedia, por isso, ao sobrinho, que fosse. A essa carta, seguiam-se algumas linhas escritas pela mão
trêmula do tio. Dizia ele: "Desejo muito, muito, Pawel, ver-te ainda uma vez, e te peço que logo que receberes esta, venhas. Se eu morrer antes da tua chegada, que
obedeças estritamente à minha vontade, que está expressa num documento que o meu secretário te entregará com outros papéis. Constituo-te o meu herdeiro universal,
com exceção de uma pequena parte que pretendo destinar a Helena Alexandrowna e seus filhos".
No telegrama, reiterava o pedido pela viagem, o quanto antes pudesse. A notícia abalou a todos profundamente. Helena
e Lolo choraram. Quanto Rothschild declarou que partiria imediatamente. Helena decidiu que iria com ele. Desejava ver uma vez mais o irmão, antes da morte. Ouvindo
isto, Lolo pediu que a levassem também. Amava imensamente o velho tio, e desejava estar perto dele em seus últimos instantes. Helena resolveu satisfazer aos desejos
da filha. -- Mas eu não posso esperar! Preciso sair amanhã cedo, às cinco ou seis horas, para alcançar o expresso. Estareis prontas a esta hora? -- Sim, estaremos
prontas! De minha parte levarei apenas uma valise, que arrumarei já. Respondeu Helena. -- Eu também levarei apenas o necessário. Pretendo regressar o mais depressa
possível! Disse Rothschild. Ele via, à sua frente, o semblante pálido e desfigurado de Valéria, e uma dor aguda contraiu o seu coração. -- Espero Larissa, que,
juntamente com Valéria, me dareis a honra de ficar aqui em Montinhoso, como minhas hóspedes! Em minha última ida à vila, resolvi definitivamente todas as formalidades
da compra. Nada tereis a temer, uma vez que Miguel ficará aqui para proteger-vos até que chegue Dionid e seu amigo. Todavia, solicito-vos a todos deixardes o início
da inspeção do castelo, em todas as suas dependências, para o meu regresso. Espero que nos reunamos aqui outra vez e então encontraremos tempo e vagar para uma investigação
mais completa. Os segredos certamente não desaparecerão até lá. Retiro-me agora para descansar um pouco e arrumar a bagagem... -- Fica combinado então! Guardarei
a tua propriedade e protegerei as senhoras contra qualquer perigo! --- Disse Miguel entusiasmado. Eu sabia que o castelo havia de ser teu um dia. Não foi por acaso
que te enviaram a chave da catacumba do Maledetto. Rothschild despediu-se de Larissa e Valéria. Pouco depois, Helena e Lolo também se retiravam para os seus aposentos,
despedindo-se antes dos que ficavam, e pedindo-lhes que não se levantassem a hora da partida, para acompanhá-los.
Quando Rothschild ficou só, respirou profundamente. Avaliava, pela carta, que o velho tio não viveria muito, e,
que cerrando os olhos, o deixaria senhor de milhões e milhões. Então, o seu primeiro ato seria libertar-se daquele matrimônio que lhe fora imposto. Enquanto fazia
planos para o futuro, e buscava uma razão plausível para a separação de Dina, tirou do armário uma elegante mala. Rapidamente colocou nela as peças de que necessitava,
fechou-a e foi encostar-se cansado, na janela. O silêncio da noite atuava surpreendentemente sobre seu espírito. Teve o saudoso desejo de ver Giovana e apertá-la
nos braços mais uma vez antes de partir. Já passara de meia-noite e ele continuava recostado ao batente, lutando contra a paixão que o atraía àquela cuja vida, (quem
sabe?) destruíra. De súbito, pôs-se de pé, e perscrutou a escuridão. À distância, soavam outra vez o sino conventual e o De Profundis. Por um momento, Rothschild
permaneceu ali, como que imobilizado pelo horror mas, em seguida, um ódio selvagem dominou-o. -- Ah! Espectros malditos! Cantais para mim e Valéria o cântico dos
mortos? Para que lutar contra esta infeliz paixão? Se já estamos ambos condenados, porque não nos encontrarmos tantas vezes quantas nos atraírem os nossos anseios?
Resoluto abriu a porta e penetrou no quarto de Giovana. Estava iluminado e vazio. Admirado, notou então que uma porta, que sempre supusera ser uma janela murada,
estava aberta. Dava ela para uma escada pequena, em caracol, e que terminava diante de uma porta, igualmente aberta. Cautelosamente transpôs também esta porta, e
encontrou-se no jardim das rosas de que Miguel lhe falara e que, até então, apenas fora alcançado pelo parque. A luz minguante iluminava frouxamente o jardim, mas
o bastante para que Rothschild, com alguns passos, pudesse alcançar o terraço coberto de capim e arbustos. Sobre um banco de pedra, próximo, viu Valéria assentada.
Trajava um longo penteador que brilhava em amarfinadas cores. A barra do traje fora guarnecida de bordados de ouro, e as longas mangas abriam-se do ombro ao punho,
pondo a descoberto os belos braços da moça!
Uma larga fita enfeitada de pedrarias, prendia-lhe a cabeleira, descendo-lhe pelas espáduas. Sobre os seus joelhos,
estava um bandolim. Com um olhar singularmente fixo, que denotava o seu estado anormal, olhava ela o espaço aberto. O seu rosto pálido era como o de uma morta. Rothschild
parara surpreendido pelo que via. Naquele momento, no ambiente das rosas florescidas, cujo odor enchia a noite, Valéria estava mais linda do que nunca. Como não
amar semelhante criatura?! Mas, como se libertaria daquela que o prendia, e que o proibia de gozar, ali, a sua felicidade descuidada e embriagante? -- Giovana?
Balbuciou o apaixonado. Valéria ergueu-se de um salto. O bandolim, caindo ao solo, retiniu de leve. Com uma exclamação, ela foi ao seu encontro, e estendeulhe os
braços: Valéria em seus braços, como outrora o fizera Paulo de Montinhoso, o perjuro, o que traía e matava as mulheres que amava, juroulhe fidelidade e amor. E quanto
mais crescia o seu desejo de possuir para si aquela menina, tanto mais alto ouvia a voz que partia do seu íntimo e que, fruto acerbo do egoísmo, balbuciava: O mal
já está feito. Se puderes repará-lo-ás! Porque desprezar agora os bemaventurados momentos de enlevo e felicidade? X X X O velho relógio da torre batia três horas...
Um galo cantou à distância. Valéria estremeceu de repente e abriu os olhos como depois de um longo sono. Por muito tempo passeou o olhar em torno de si, e então
recobrou a consciência. Viu-se deitada sobre uma das velhas camas, e, ao seu lado, Rothschild. Corando profundamente de vergonha ergueu-se de um salto gritando:
-- O que significa isto? És um criminoso, Barão. Tu me hipnotizaste, me atraíste a uma armadilha e me desonraste! A sua voz tremia.
-- Pelo amor de Deus, Valéria, volta à tua consciência! Gritou Rothschild tomando-a pelas mãos. Não sou hipnotizador,
sabes! E amo-te de todo o meu coração. Tu me amas também... Depois do meu regresso acertaremos tudo, tudo ficará bem, e nós nos uniremos para sempre. -- Infame,
mentiroso! Gemeu ela; e sem forças caiu de joelhos. -- o futuro te dirá Valéria, como tudo terminará bem e honradamente. Mas agora é preciso que voltes ao teu quarto.
O que pensariam se te encontrassem nesse vestido bordado! Disse Rothschild impaciente. Mas quando viu que Valéria não se movia, e apertava a cabeça com as duas
mãos, tomou uma rápida resolução. Apoiou a cabeça sobre a sua fronte e disse em tom imperativo: -- Dorme! E esquece tudo o que sucedeu. A força de sua vontade pareceu
não negar o efeito. Os olhos de Valéria fecharam-se e sua cabeça pendeu sobre o peito. Rápido ele arrancou-lhe o vestido de seda e levou-a, como uma criança, nos
braços para o quarto. A porta secreta do corredor, estava aberta. Depois de se convencer de que as portas para os outros quartos estavam fechadas; depôs Valéria
sobre o leito e cobriu-a. Debruçou-se mais uma vez sobre ela e cheio de amor, martirizado de remorsos, olhou aquele rosto que ostentava uma bem diversa expressão.
-- Eu te juro que resgatarei o meu pecado! Disse baixinho; e beijou-a sobre os lábios. Fechou cuidadosamente a porta secreta, e voltou depressa ao quarto de Giovana.
Aí pôs todas as coisas em ordem, recolocou o vestido branco no armário e voltou ao seu quarto. A fadiga que sentira antes, desaparecera por completo. Aquela cruel
fatalidade em que se debatia, despertara-lhe os sentidos, mas o que cometera contra Valéria contraía de dor o seu coração. E se Dina não lhe desse a liberdade? Mas,
não! Ela tinha que libertá-lo. Não poderia afinal, manter uma aliança que fora forjada imoralmente, e que só tinha que acabar em ódio. Ele esperava que o dinheiro
resolvesse a situação.
Ergueu-se e trocou-se, saindo para o terraço onde as duas senhoras já tomavam o seu café. -- Larissa levantou-se,
e virá em breve despedir-se de nós. comunicou-lhe Lolo. Quis também despedir-me de Valéria, mas ela dormia tão profundamente que bati inutilmente. Se não dormia
realmente, não desejava ver-te Pawel! Rothschild fez um leve meneio com a cabeça e resolveu procurar Valéria. No momento em que se aproximava do quarto da moça,
eis que esta, já arrumada, dirigia-se para o jardim. O Barão tomou-lhe as mãos num movimento rápido. -- Paulo! Paulo!!! Ele atraiu-a a si, e, levando-a até o banco,
cobriu-lhe o rosto de beijos. A aproximação de Valéria, aquele perfume forte que dançava no ar, puderam afastar do seu espírito os tristes pensamentos. Valéria,
porém, consentindo nos seus carinhos, não os retribuía. Libertou-se dele de repente e, ajoelhando-se sobre o banco, prendeu-lhe a cabeça com os braços. -- Paulo?
Seria capaz de abandonar-me agora, que me cobriste de opróbrio e de vergonha? -- Porque dizes isto Giovana? Afasta de ti, estas idéias. Eu te amo mais que tudo no
mundo e nunca te abandonarei, nunca. Vagarosamente aproximou ela o seu rosto do dele, e Rothschild pode ler nos seus olhos aquela expressão de selvática paixão que
não notara ainda. -- Responde-me: É certo que tu és casado, Paulo de Montinhoso? Enganar-me-ías durante todo esse tempo? Dar-se-á acaso que o teu amor por mim seja
um capricho, um brinquedo apenas? Podem esses belos lábios mentir e jurar falsamente? Será tudo isto para ti uma farsa desapiedada? Repudiarás a mim, a desonrada,
que te deu tudo quanto te podia dar? Mas fala, Paulo, fala!... Dize-me a verdade toda por horrível que seja, porque... E ela gritou alto. porque, esteja morta
ou viva, não te deixarei. Há séculos que me pertences, como me pertences hoje, e serás meu eternamente!!!
Ela inclinou-se tanto que ele sentiu-lhe o hálito quente contra o rosto. Em seus olhos e em sua voz havia uma nota
tão grande de hostilidade e dureza, que um calafrio perpassou pelo corpo de Rothschild. Ele recuou, e com força desprendeu as mãos dela do seu pescoço, mãos que
lhe pareceram correntes férreas e possantes. -- Quem és tu, ente misterioso? Um espírito ou um vivente? Como me hei de libertar deste pesadelo? Balbuciou ele desesperado,
afastando-se pouco a pouco. Tinha agora o impulso de abarcar o branco pescoço da moça com os dedos e estrangular a esfinge que se intrometera na sua vida e ameaçava
destruí-la. Simultaneamente, porém veio-lhe também a consciência de sua segunda vida. Uma voz interior lhe dizia: -- Que queres fazer, infeliz? Não compreendes então
que um pesadelo te absorve? Sentiu-se invadido por um torpor e caiu sem sentidos sobre o banco. Um vento gelado despertou-o. Jazia sobre a relva, e, à sua frente,
ajoelhada, Giovana umedecia-lhe as fontes com um pano molhado. Ele ergueu-se olhando surpreendido ao seu redor. Alguns passos adiante, via um tanque de pedra quase
todo coberto de musgo, que não observara anteriormente. Os olhos da sonâmbula viram-no logo, e fora molhar o lenço em sua água. A luz da lua brilhava refletida no
seu interior. Com o auxílio de Giovana, Rothschild ergueu-se e assentou-se de novo no banco. Como se pretendendo varrer todo o sucedido de sua memória, a moça acariciou-lhe
o rosto, e apoiou a cabeça no seu ombro. Era agora toda docilidade e amor. Rothschild principiava outra vez a perder-se com os seus encantos. Estava perfeitamente
convencido de ser o Barão de Rothschild e não o Conde de Montinhoso, já desfeito em pó, cujos traços fisionômicos entretanto reproduzia. Mas afinal, não lhe era
diferente o nome de Paulo, principalmente se pronunciado mansamente, com doçura, entre dois beijos. Sentiu nascer em
si, a princípio disfarçadamente, a sua vaidade de homem, o seu orgulho de cavalheiro medieval, amado pela mulher
disputada por todos. E o amor arrastou-o outra vez. Rothschild recompôs-se e dirigiu-se ao seu quarto para terminar os preparativos para a viagem. Finalmente chegou
a hora da partida e todos notaram que Valéria não se encontrava presente. -- Parece mesmo que ela não gosta de ti disse caçoando o primo. -- Ou está enamorada de
ti... ou tu a contrarias, de qualquer modo... prosseguiu Miguel. -- Não sei como e porque eu contrariaria Valéria! Redargüiu Rothschild. Nesse momento, Larissa
surgia, e interrompeu a conversa. Os viajantes despediram-se logo depois, e prometeram escrever de Manhein.

9
A ESPOSA Valéria só despertou mais tarde, com a cabeça pesada e os membros como que partidos. Olhou para o relógio e viu que os viajantes, então, já deviam estar
a caminho. Aborrecia-a pensar que, por não se ter despertado a tempo, não se despedira de Helena, acompanhandoos até a saída. Descontente consigo mesma, principiou-se
a vestir-se. Mas como um relâmpago, veio-lhe a lembrança da noite passada. recordava-se apenas de qualquer coisa de nebuloso e caótico: o quarto de Giovana, uma
velha cama de dossel e o semblante do Barão inclinado sobre o dela, com uma expressão apaixonada. Envergonhada e corando até a raíz do cabelo, sentou-se sobre uma
cadeira e procurou pôr em ordem os seus pensamentos. O que sucedera? Era aquilo tudo
um sonho ou realidade? Acreditava poder recordar-se ainda de um vestido branco, bordado a ouro, que vira certa
ocasião no guardaroupa de Giovana. Não, era tudo um sonho! Ao seu redor, não se modificara nada, não constatava a existência daquele vestido branco, a porta secreta
estava fechada. Ela própria acordara em seu leito. Graças a Deus, tudo não parecia ser mais que um sonho tolo. Se as suas negras desconfianças fossem realidade,
o opróbrio e a vergonha estariam ferreteados no seu destino. Não lhe restaria mais do que procurar a morte! Um tanto tranqüilizada, mas ainda não convencida, terminou
sua toalete e foi procurar Larissa. Esta comunicou-lhe que Dionid Tonilim havia escrito dizendo que, até o fim da semana e, portanto, dentro de cinco ou seis dias,
estaria de volta. Seu amigo viria juntamente com ele: se isso não fosse possível, viria alguns dias depois. Mas no decorrer do dia, pesou sobre Larissa um desassossego
cada vez maior. Nunca vira Valéria tão fatigada e apática. Resolveu tirar dela uma confissão: -- O que sentes, minha querida? Dize-me tudo, aberta e sinceramente.
Tu sabes que te amo como a uma filha. Estás doente? Ou o teu coração pegou fogo? Amas o Barão? Isto afinal, não seria de admirar, já que é um homem tão belo! Mas,
se o amas realmente, porque apresentas um rosto tão desesperado. Tu também és bela, e, sem dúvida despertarás o seu amor, se é que tal não se deu. Possivelmente,
o teu gênio tão frio é que o tem impedido de se declarar. Em todo o caso, assim que ele chegar, sondarei o assunto. Valéria ouvia-a de cabeça inclinada. Quando a
solícita senhora se calou, ela abraçou-a carinhosamente, sem poder conter as lágrimas. -- Ah! Titia, se soubesses como estou cansada e como os meus nervos estão
abatidos! Desde que estou aqui os meus ataques se tem reproduzido com muito maior freqüência do que antes! As recordações que me ficam das aparições que vejo em
estado cataléptico, são tão singulares!... Não posso dizer-te porque, mas eu sinto com toda a certeza que, atrás destas paredes, oculta-se qualquer coisa de terrível.
Palpita aqui uma vida fabulosa! Tenho a sensação de que eu e o Barão desempenhamos nela um papel qualquer. Eu o
amo? Não! Ele também não me ama, sei! Contudo, entre nós ambos existe misteriosos elos. Tu acreditas titia, na reencarnação dos espíritos, nas vidas sucessivas!
Pois, crê, eu e ele já vivemos outrora em outros corpos. Cada pedra deste castelo vive em minha memória, e eu tenho medo! Oh! Quanto temo o futuro! -- Valja, querida,
tu estás doente! Não te inquietes, pelo amor de Deus! O que há de suceder-te? Sobre os teus nervos atuou, certamente, essa fatal semelhança entre Pawel e esse infeliz
Paulo de Montinhoso! Mas, se a permanência aqui no castelo arruína-te tanto os nervos, nos transferiremos para Florença imediatamente. Para Florença ou outro lugar
qualquer onde possas reencontrar o sossego. Teus pés nunca mais pisarão este ninho horrível!... Valéria estava tão fraca que, acalmando-se aos poucos, Larissa teve
que reconduzi-la à alcova e colocá-la no leito. Desejava passar a noite ali, observando-a. Quando Valéria adormeceu, Larissa sentou-se à mesa, acendeu o lampião
e aprofundou-se na leitura de um livro. A tranqüilidade e o grande silêncio da casa, porém, foram agindo sobre ela como um narcótico, a sua cabeça caiu sobre o peito
e ela adormeceu. Uma fria aragem despertou-a. A princípio, não conseguiu atinar com a proveniência daquela corrente gelada, mas por fim, observou, ao fundo do quarto,
uma porta aberta, cuja existência até então ignorara. A cama de Valéria estava vazia. Inquieta e nervosa, aproximou-se da porta, e viu o longo corredor escuro que
conduzia à ala murada do castelo. Deu alguns passos no corredor, mas regressou incontinenti ao quarto, impelida por um misterioso terror, e pôs-se a chamar por Valéria.
Ninguém respondia, porém, e nenhum som quebrava o imenso silêncio. Irresoluta sobre o que deveria fazer, sentou-se de novo na cadeira. Não queria chamar a criadagem,
mas não se resolvia também a penetrar no trevoso corredor. Preferiu esperar a fazer barulho. E os
minutos, para a medrosa mulher que esperava, se transformavam em longas horas. Cerca de meia hora depois, ouviu
ligeiros passos e, estremecendo, viu Valéria irromper do corredor para o quarto. Notou imediatamente que Valéria se movia em estado sonambúlico. O seu olhar fixo
e vítreo denunciava-o. Sobre a camisola Valéria pusera um xale indiano de várias cores e que pertencia sem dúvida aos aposentos secretos. Prendera os cabelos com
uma larga fita ornada de pedras preciosas. A sonâmbula aproximou-se de um armarinho na parede, abriu-o e tirou dele uma caixinha de madrepérola, que abriu. Depois
deixou-se cair de joelhos num banquinho, e contemplou o conteúdo da caixinha. Seu rosto assumiu uma expressão dura e malvada. -- Paulo, Paulo! Livra-te de enganar-me
outra vez. Então me vingarei horrivelmente de ti. E a outra? Virá? Também ela encontrará o lugar em que está sepultado o seu cadáver; e onde tudo ainda se tinge
de sangue? Mas... por que vens aqui? Bradou ela como que para uma distância imensurável No coração dele não há lugar para nós duas ! Seu coração só pode pertencer
a mim!... Ódio e paixão tresandavam das palavras de Valéria. Tomada de admiração, Larissa aproximara-se pelas costas da jovem e olhava por sobre os seus ombros.
Na pequenina caixa, viu ela um retrato de mancebo, em trajes do século XVI. Seus traços assemelhavam-se curiosamente com os do Barão de Rothschild, e ao mesmo tempo,
com os do monge de mármore, esculpido sobre o sarcófago do Conde Paulo de Montinhoso. Observando Valéria, que parecia, então, profundamente diferente, e que balbuciava
incompreensíveis palavras, Larissa, afastou-se assustada. Alguns instantes depois, Valéria cobria o retrato de beijos e fechava-o na caixinha que foi guardar no
armário da parede. Voltou então ao leito e deitou-se. Larissa não sabia o que fazer. Devia acordar Valéria imediatamente e interrogá-la, ou aguardar a chegada de
Tonilim? Resolveu esperar.


No dia seguinte, enquanto Valéria dava um passeio tentou Larissa descobrir o segredo da passagem, mas inutilmente. E três dias passaram-se. Valéria parecia ainda
calada e retraída, porém tranqüilizada. Quando Larissa dispôs-se a passar mais algumas noites com ela, não se opôs. Larissa tinha em mente descobrir o modo pelo
qual Valéria abria a porta do painel. O seu desejo, contudo, não se realizou. Todas as noites que se seguiram, a moça passou-as bem, dormindo profundamente e sem
despertar. Uma tarde, quando as senhoras reuniram-se a Miguel para o chá, Ricciotto entrou, anunciando a chegada de uma senhora que vinha acompanhada por um guia
e trazia numerosa bagagem. Perguntava pela senhora Bakulim. O rapaz entregou a Larissa um cartão em que, para geral perplexidade, leu: "Baronesa Alexandra Dimitrierina
de Rothschild nascida Condessa Copnim". -- Francamente que não entendo isto! Quem será esta senhora, de onde vem e o que desejará de mim? Perguntou ela empertigandose.
-- Senhora, a dama diz que vem da Rússia! Respondeu Ricciotto. Ela perguntou, em primeiro lugar, pelo senhor Barão; quando lhe disse que estava de viagem, mas
que regressaria em breve, disse que desejava esperar o esposo aqui, e entregou-me o seu cartão de visita. Ouvindo estas palavras, Valéria transformou-se horrivelmente.
Levou a mão ao seio, e o seu rosto estampou a expressão de uma profunda dor. Larissa, supinamente surpreendida pela inesperada notícia, não observava Valéria em
seu silencioso martírio. -- O Barão de Rothschild casado! Murmurou Larissa meneando a cabeça e se fazendo pálida. Riccioto, acompanha a senhora até o salão. Ordenou
encaminhando-se para a sala anexa ao terraço, cujas portas estavam abertas. Alguns minutos depois, uma senhora jovem e bela, elegantemente vestida e trajada de luto,
entrava na sala. Seu rosto fino desenhavase no tipo oriental, e a sua tez tinha uma tonalidade ligeiramente
bronzeada, à qual condiziam muito bem com os cabelos negros azulados e os olhos profundamente escuros. -- Rogo
desculpas pela minha inesperada chegada, prezada senhora! Principiou ela se expressando como uma fina mulher. Eu não sabia realmente, como deveria agir. Meu padrasto,
com quem eu vivia, e a quem acompanhava em viagem à Criméia, faleceu de repente! Não tendo ninguém mais a quem me dirigir, procurei a companhia de meu esposo. Sei
avaliar quanto vos admirais falar deste casamento! Por questões de família conservamos o nosso casamento em segredo até esta data. Já não é preciso, porém, esconder
mais. As minhas cartas provavelmente, não chegaram ao seu destino, em virtude da partida de meu esposo para S. Petersburgo; mas, entrementes, consegui tomar conhecimento
de sua estadia aqui e vim, para pormos em pratos limpos, definitivamente, as nossas relações recíprocas. Afora isso, eu tinha saudades dele, e queria vê-lo. Infelizmente
soube que Pawel não está aqui, mas regressará em breve. Permite-me, prezada senhora, pedir-vos que me seja proporcionada hospedagem até o regresso de meu esposo.
Todavia, se eu vos incomodar, de qualquer maneira, poderei também ir hospedar-me no hotel da vila. Eu vos seria imensamente grata, porém, se pudésseis consentir
que eu fique. Estou só, mas poderei, naturalmente, comprovar a minha identidade, pois trago vários documentos comigo. Larissa ouvia admirada, observando detidamente
a dama que se dizia esposa de Rothschild, e cuja existência este conservava tão cuidadosamente em segredo. Por que? Aquela misteriosa esposa era jovem, bela, e tinha,
ademais, uma apresentação tão distinta!... Larissa não entendia, absolutamente, a complicada história que ela contava, e apenas o fato de o Barão ser seu esposo,
a tranqüilizava um pouco. Subjugou os seus pensamentos e respondeu-lhe amavelmente: -- Estais em vossa casa, senhora Baronesa. Este castelo pertence a Pawel Rothschild.
Ele o comprou recentemente, e nós, minha afilhada, um primo do Barão e eu, somos hóspedes. Eu não poderia negar o
vosso pedido! Tomarei imediatamente as providências para que seja preparado um quarto. -- Agradeço-vos, senhora
!Entretanto, tenho companhia; o meu pequeno amigo também vos solicita abrigo. Sorridente, ela tirou então de sua bolsa de viagem um bolonhês mignon, que parecia
uma bola de neve sedosa, e tinha grandes olhos pretos. -- Oh! Que belo animalzinho! Sim, daremos abrigo, naturalmente, e tão bem quanto possível, ao cachorrinho!
disse Larissa. Tocado pela curiosidade de ver a nova hóspede, veio então Miguel para a sala. Soubera por Ricciotto das novidades. Apresentou-se como primo de Rothschild,
e travou, desde logo, conversação com a nova prima. Larissa saiu em seguida, para providenciar o arranjo do quarto. Valéria não se movera do seu lugar no terraço,
e de lá observava Dina com terrível desprezo. Larissa procurou Savéria e soube, por esta, que a hóspede inesperada poderia ser alojada no denominado quarto velho,
cujas janelas davam para o jardim. Larissa objetou: -- Esse quarto é um pouco escuro e não proporciona nenhuma vista para os belos arredores! E isto ainda não é
nada: as vidraças são coloridas, nem ao menos permitem olhar para fora... -- Este quarto foi antigamente ocupado pelos patrões, sempre foi ocupado só por eles e
é o que mais se adapta à nova patroa! Retrucou Savéria positivando que a esposa do patrão não lhe caíra em agrado. -- Vamos ver esse quarto então! Resolveu Larissa.
O velho compartimento estava situado na parte mais arruinada do castelo, junto à torre, e recebia luz por duas janelas altas, com pinturas coloridas. Suas paredes
eram revestidas de almofadas de carvalho já enegrecidas pela idade, e seus entalhes quase se tinham apagado. Os móveis, maciços e pesados, também pareciam contar
séculos de idade. Numa alcova espaçosa, montava-se a cama grande, com colcha de seda crua e dossel. A antecâmara era alta, e de teto em arco. Eram dois cômodos agradáveis
e que, contudo, nenhum dos hóspedes
quis ocupar, exatamente porque lhes faltava a vista para o panorama do belo vale. Os raios solares que atravessavam
os vitrais, davam ao seu assoalho e às suas paredes um avermelhado brilho de sangue. Quando Dina entrou ali, sentiu-se possuída por uma desagradável sensação. Supôs,
de súbito, já ter visto, um dia, um quarto semelhante aquele. De qualquer forma, não lhe agradou. Teria, de bom grado, insistido por um outro alojamento, mas absteve-se
de incomodar Larissa, com o pedido, lembrando-se da singular situação em que se achava. A sua bagagem fora transportada, e a criada de quarto já se ocupava em arrumar
a cama. Calada, deixou Dina o seu Biju escorregar para o chão, mas, coisa extraordinária, o cãozinho correu imediatamente para o meio do aposento, e, sentando-se
sobre as pernas traseiras, começou a uivar. -- Oh! Pobrezinho! Tens fome? Disse Savéria que nesse momento entrava com uma bandeja. Já te darei leite e carne. Ergueu
o cachorrinho ao colo e saiu com ele. Com aquela má impressão que o quarto lhe produzira pesandolhe sobre os ombros, Dina assentou-se à mesa e encheu um copo de
vinho. À criada, ordenou que tirasse da mala um vestido leve e o colocasse à mão. Terminando o serviço, a empregada comunicou-lhe que a ceia era servida às nove.
Se a Senhora Baronesa quisesse repousar, viriam chamá-la em tempo. Retirou-se então. Depois de ter acompanhado a hóspede aos seus aposentos, Larissa regressara ao
terraço. Encontrou Valéria sozinha, abandonada sobre a cadeira, com a cabeça caída sobre o encosto. O trabalho de agulha, com que se distraía caíra para o chão.
Assustada, Larissa aproximou-se. Supunha que Valéria tivesse tido um ataque, mas pelo brilho apagado do seu olhar certificou-se de que se encontrava outra vez em
estado sonambúlico. Por sua vez, Valéria não tivera consciência daquela aproximação. Seus lábios formavam palavras quase incompreensíveis. Só aos poucos Larissa
pode aperceber-se do que falava: -- Eu sabia que tu virias... para tua própria desgraça... para que o destino se realizasse! Tu sabes, ele é um maledetto!!! Paulo?!
Uma
vez me enganaste, mas desta não escaparás à minha vingança. Esqueceste por acaso o instante em que meus dedos abarcaram
a tua mão traidora? Guarda-te, Paulo! A terrível Nêmesis oculta-se nas trevas e te buscará e te martirizará até que te tornes fiel. E Valéria riuse com força. Tremendo,
Larissa ouvia essas palavras cujo significado não alcançava, mas cujo efeito a palidez cadavérica de Valéria, punha em realce. -- Ela está sonhando... Todas essas
lendas terríveis atuaram sobre o seu espírito! Umedeceu um pano e pôs-se a friccionar a fronte de Valéria. Com um profundo suspiro, a moça despertou, lançando um
incompreensível olhar à sua volta. -- O que me aconteceu? Estive sem sentidos? -- Sim, querida. Tiveste um desmaio, e parecias tão mal que me assustei bastante.
Irei já buscar um copo de vinho, para que te fortaleças. Depois daremos um pequeno passeio, pois necessitas de ar e movimento. Valéria bebeu o vinho, mas não quis
sair, alegando uma excessiva fadiga. Larissa concordou. Sentou-se então junto da afilhada e perguntou-lhe meigamente: -- Dize-me com sinceridade: não preferes sair
daqui? -- Não! Mais tarde sairei de bom grado, mas, por enquanto desejo ficar. Um ligeiro rubor cobriu as faces de Valéria. Entrando, Miguel interrompeu a conversa.
Trazia um telegrama na mão, pelo qual Helena anunciava a morte do velho Barão, cujo cadáver transportavam para S. Petersburgo. Os detalhes Helena pretendia participar-lhes
por carta. Ao telegrama apenas acrescentara: Pawel muito nervoso ponto não creio morte tio o acabrunhou tanto, ponto. -- Sim, sim! Pawel! É um tipo estranho esse
nosso primo! Suspirou Miguel. Toma uma mulher encantadora por esposa e cala-se a respeito como um peixe. Talvez venha dizer ainda que é infeliz!


Dina estava a sós em seu quarto. A cabeça apoiada sobre a mão, sentara-se à mesa em profunda meditação. Não podia libertar-se de uma desagradável insegurança
naqueles aposentos. O castelo inteiro parecia-lhe fantástico e horripilante. Pensava. -- Uma idéia extravagante de Pawel, comprar este ninho de corujas! No entretanto,
ele poderia adquirir, na Criméia, ou em outra parte qualquer, os mais encantadores castelos. Espero somente que ele não queira fixar-se aqui por muito tempo. Esses
velhos castelos, segundo o que se murmura, estão sempre cheios de toda a sorte de fantasmas. Que idade terá este ninho de malfeitores, esta rochosa fortificação?
Ergueu-se e submeteu os aposentos a uma rigorosa inspeção. Todos os móveis estavam guarnecidos com o escudo de Montinhoso. As cortinas e almofadas, eram de seda.
Num canto do quarto, viu um genuflexório maravilhosamente entalhado, sobre o qual num nicho da parede, se achava uma imagem da virgem, esculpida em marfim. Entre
duas janelas, estava um lavatório moderno, guarnecido de revestimentos de seda. Os ornamentos das paredes, artisticamente modelados, lhe agradavam. Uma tão bela
combinação de folhas e frutos, animais e figuras de anjos, de demônios e gênios, somente artistas da Idade Média podiam produzir. Um gobelim franjado, especialmente,
agradou-a de sobremaneira. O motivo era uma coroa de folhas, entre as quais desenhavam-se figuras de gênios em luta contra dragões. Ao centro da coroa, via-se uma
soberba capela, que parecia fechada por uma grade. Através da grade, podiam ser notadas as figuras ajoelhadas de uma virgem e de um cavalheiro de mãos dadas. A pequena
capela dava a impressão de um armariozinho, mas Dina não pode enxergar nenhuma fechadura, por intermédio da qual pudesse abri-lo. Todo o lavor de gobelim era soberbo,
assim como o da capela que, em seus menores detalhes, era uma verdadeira obra de arte.
-- Quanto tempo precioso e quanta arte se consumiam outrora nessas coisas! Pensou Dina. Em seguida inspecionou
a alcova. Tinha o tamanho de uma sala, e, apesar da enorme cama, ainda parecia vazia. -- Bem que poderiam ter removido daqui, esta arca de Noé, em que dormiria folgada
uma família inteira! Pensou ao deitar-se. Mas, no fundo da alcova, Dina descobriu, de repente, um nicho gradeado semelhante à capela do gobelim. Levantou-se de
novo. E viu, atrás da grade do nicho, em tamanho natural, uma estátua de anjo, em cuja mão prendia-se uma palma. -- Mas é incompreensível! Um anjo na gaiola! Que
fabulosa tolice! Assim que Pawel esteja de volta, escolherei um outro quarto. Este me é sobejamente desagradável. XXX À ceia, Dina compareceu com um vestido preto,
leve, que lhe assentava muito bem. Miguel começou, desde logo, a lhe fazer a corte. Para espanto de Larissa, Valéria, que de princípio negara-se a aparecer, também
compareceu, trajando um formoso vestido branco, bordado. Prendera rosas à cintura e trazia jóias, que habitualmente não usava nos braços e no pescoço. Seu cabelo
dourado brilhava à luz do lampião, emprestando-lhe uma encantadora aparência. Com a chegada de Valéria, Dina sentiu qualquer coisa mordendo-a por dentro: ciúmes.
Durante semanas e semanas Pawel vivera na companhia daquela bela jovem, sob um mesmo teto! Provavelmente enamorara-se dela! Talvez estivesse naquele amor a chave
mesma dos seus silêncios! Tais pensamentos maltrataram Dina, e fizeram amarga a sua refeição, tanto mais que, de quando em vez, encontrava o olhar sombrio e enigmático
de Valéria, que fazia seu coração pulsar mais rapidamente. Com o mesmo pensamento hostil, também Valéria contemplava. Dina. Não procurava enganar-se! A outra era
bastante bela para despertar amor. E Pawel devia amá-la, ou pelo menos devia tê-la amado!
De outra forma não a teria desposado! Contra a sua vontade, o ciúme que lhe despertava a Baronesa, maior se tornava
e em breve dominava-a inteiramente. Contudo palestraram dentro do limite do convencional, e procuraram, reciprocamente, ocultar o que se movimentava nos seus pensamentos.
A conversa girava, em geral, em redor do castelo. Dina dizia, sorrindo, que, espontaneamente, nem o maravilhoso clima, ou valor histórico do castelo, poderiam, jamais,
levá-la a ficar ali permanentemente. Aqueles quartos inspiravam-lhe medo. -- Afigura-se-me que em cada canto escuro, em cada corredor, em cada escada, há uma emboscada,
um alçapão. Edifícios assim antigos, são sempre cheios de segredos. Afora isso, aqui, sem dúvida, foram cometidos, outrora, delitos e crimes. -- Os antigos, rudes
e orgulhosos senhores, não impunham de fato peias aos seus sentimentos. Mas isto tudo está longe, no passado! Quase não podemos lembrar... Comentou Larissa. --
Assim é, realmente! Contudo, este castelo me é desagradável. Deixarei, durante esta noite, aceso o meu lampião. -- Sois assim tão medrosa, Baronesa? -- Não! E nem
nunca vi fantasmas. É que o quarto gótico, com a gigantesca cama, me parece um catafalco. É estranho! Eu ficaria aterrorizada se não tivesse luz! Logo depois da
refeição, Marieta, a criada de Helena acompanhou Dina ao seu quarto e a ajudou a despir-se, Enquanto penteava os belos cabelos de Dina, dividindo-os em duas tranças,
conversavam: -- Dize-me, Marieta, há fantasmas aqui? perguntou Dina. -- Oh! Signora, em que castelo velho eles não existem? Eu, porém, não os vi ainda... -- Sabes
se nesta cama dormiram os antigos senhores do castelo? -- Os antigos senhores? Sim! Mas já o Conde Tadeu, o último dos Montinhoso, tinha escolhido um outro dormitório;
Sobre esta almofada e com este cobertor, nenhum dos senhores do castelo dormiu. Es-
tes objetos foram comprados muito mais tarde, para os estrangeiros que, por vezes, alugavam a propriedade. Marieta
acomodou Dina no leito e colocou o lampião à distância da alcova, para que a luz não incomodasse a Baronesa, cobrindo ainda a cúpula com um escuro quebra-luz. Depois
retirou-se. Dina não conseguia conciliar o sono. Toda a sorte de pensamentos lhe passavam pela mente. O que pretendia o destino fazer dela, e do homem que amava?
Ele não a amava e nem escondia isso! Ameaçadora colocara-se agora em seu caminho aquela jovem loira que era, indubitavelmente mais formosa do que ela e que, com
certeza de há muito já havia tomado posse do seu coração. -- Oh! Até o último suspiro lutarei pelo homem que amo, e não consentirei que me roubem. Sim, não consentirei
que tirem o que a mim pertence perante Deus e a lei dos homens! Disse de si para consigo mesma. Imersa nesses pensamentos, não sentiu o peso enorme que descera
sobre seus membros. Quis fechar o olhos mas não o conseguiu. Um medo terrível assaltou-a. O que estava vivendo? Um pesadelo? O pressentimento de um infortúnio futuro?
E de súbito seus pensamentos foram desviados para um acontecimento em conseqüência do qual, esqueceu o seu estado. Parecia que alguma coisa se movia no nicho. Depois
julgou ver a grade e a estátua do anjo desaparecendo na parede, ficando em seu lugar, uma negra abertura. Uma luz frouxa e verde, iluminou-a. Um momento depois apareceu
no nicho a imagem de um homem que, com a mão alçada e passos pesados, se aproximava de sua cama. Quando já se achava junto dela, pode Dina distinguirlhe as feições
jovens, as vestes antigas e os grandes olhes escuros que a fitavam cheio de obstinação e rancor. -- A maldição que pesa sobre ti, se efetuará agora. A nêmesis alcançou-te!
Disse uma voz profunda que parecia vir de muito longe. A figura imobilizou-se por alguns segundos, depois foi empalidecendo mais e mais, enquanto se afastava em
direção ao nicho. Um momento depois, o anjo retomava sua posição primitiva. Dina sentiu
um vento gelado perpassando-a, arrastando-a para as profundezas de escura cova e perdeu os sentidos. Acordou com
o dia alto. Podia recordar-se perfeitamente da aparição noturna, mas sem considerá-la uma visão fantasmagórica ou outra coisa qualquer de sobrenatural. Imaginava
ter tido, apenas isto, um sonho incompreensivelmente cheio de realidade. -- Eu estava cansada e um pouco impressionada com a história da Marieta. Afora isto, aquela
criatura loira, com os seus olhos de serpente, me intranqüilizaram um pouco. Mas se essa jovem dama supõe poder arrancar-me o esposo, engana-se! Não quis dizer nada
acerca do seu sonho, para que não a julgassem medrosa ou tola, e não só rissem dela. Todos lhe eram extremamente antipáticos! Esperava impacientemente o esposo.
Por sua vez, a estranha incomodava a todos, também. Não existiam interesses comuns entre eles. As palestras então giravam em tomo de banalidades. Apesar de toda
a atenção que lhe era tributada, Dina percebia que era demais ali. Passou a localizar-se no jardim, a sós, lendo. Pedira que não informassem o esposo da vinda: deseja
surpreendê-lo. Valéria também parecia mais tristonha nos últimos dias: falava pouco e passava a maior parte do tempo fechada num melancólico silêncio. A presença
de Dina atuara desfavoravelmente sobre o seu estado psíquico. Possuía-a constantemente a emoção de estar se recordando de qualquer coisa sobre a qual não pensara
até então, e que não podia atinar o que fosse. E isso a aborrecia. Queria e precisava saber do que se tratava. Uma indescritível animosidade em relação a Dina, provocada
pelo ciúme, se apoderava dela, e percebeu, reagindo, espantada sobre si mesma, que desejava ardentemente a morte daquela mulher estranha. Larissa também estava mal
humorada, em virtude de uma carta que recebera de Tonilim. Ele escrevera que seu amigo não podia vir por enquanto, e que ele mesmo aproveitaria essa prorrogação
para visitar uma irmã enferma. Acrescentava ainda que, no decorrer da au-
sência do Barão, da qual tivera conhecimento, não era mesmo possível pensar na investigação aos quartos abandonados
do castelo. Larissa, que o esperava em breve, sentia-se agora desiludida. Uma outra carta de Lolo contava, em minúcias, a morte do tio. Pawel apressava-se em por
em ordem os negócios para poder, o mais depressa possível, voltar a Montinhoso. Por esse motivo o cadáver fora levado em expresso para S. Petersburgo, o que, naturalmente,
fora deveras dispendioso. Em S.Petersburgo, informava, ficaria apenas o tempo necessário ao sepultamento e abertura do testamento, mais as conferências de praxe
com o advogado. X X X Certa noite, Dina recolheu-se mais cedo ao seu aposento. Sentia dores de cabeça. O dia fora muito quente, mas à tardinha, o céu se cobrira
de nuvens, e uma forte tempestade desencadeara-se. A ceia fora feita quase em silêncio. A Dina, parecera que Valéria fixara-a várias vezes, cheia de rancor. Por
esse motivo, despediu-se logo depois. Em seu quarto, tomou de um livro e procurou ler. Não queria dormir ainda, mas, em breve, o livro caiu-lhe das mãos. Fatigada
recostou-se na cadeira. Sentia-se, ali, sozinha e abandonada. Abatida e tristonha, deitou-se e adormeceu chorando. E teve um sonho singular. Encontrava-se num quarto
muito bem disposto, cujas janelas davam para um lago. A lua iluminava o espelho brilhante das águas. Era um lugar completamente desconhecido, aquele em que se achava.
Não era, sem dúvida, o castelo de Montinhoso. Ela envergava trajes masculinos, calção e jaqueta de veludo, ambos negros. Um chapéu negro cobria suas bastas trancas,
e sobre o fato vestia uma comprida capa negra. Acercando-se, um jovem convidou-a a segui-lo. Desceram uma escada de pedra, entraram numa gôndola e se afastaram da
margem. Mas, de repente tudo mudou. Seguia a pé para Montinhoso, e o jovem acompanhava-a por um caminho montanhoso e difícil. Apesar de ser noite, reconhecia os
contornos do castelo. Fatigada, sentou-se
sobre uma pedra, e constatou que o seu companheiro desaparecera. Mas voltava em breve. E ao seu lado vinha um homem
que se inclinou diante dela, sem, contudo, poder esconder o seu acanhamento e hesitação. Da conversa entretida recordava-se apenas de que ele dissera chamar-se Seno,
e de que falara de seu patrão Paulo. Os três passaram por um portão estreito, que dava entrada ao castelo, percorreram muitos corredores, subiram e desceram escadas
e entraram, finalmente, no seu quarto atual. Seno acendeu uma vela e saiu levando o seu companheiro, dizendo que o senhor Conde viria em breve. Alguns instantes
depois, retornava com uma cesta que continha alimentos e vinhos. Tudo isso depôs sobre a mesa. Pediu-lhe que se servisse. Entrementes, fez fogo na lareira, preparou
o leito e ausentou-se outra vez. Ela teria, prazerosamente, lançado um olhar aos outros aposentos, mas as portas estavam fechadas, e a passagem secreta impossível
de se abrir. Assustada, assentou-se junto ao fogo. Sabia, com toda a certeza, que se encontrava na casa de seu marido, mas admirava-se de ser tratada como uma prisioneira.
E onde estava Paulo? Paulo que tantas e tantas vezes jurava amá-la, a ela apenas, entre todas as mulheres? Teria olvidado tudo, por outra? Imperceptivelmente, abriu-se
a porta secreta e um homem, envolvido numa longa capa escura e de capuz abaixado sobre o rosto, entrou no aposento. Quando ele afastou a capa e o capuz, reconheceu
ela Pawel Rothschild que, em trajes do século XVI, encontrava-se à sua frente. Com uma exclamação de alegria, ela foi ao seu encontro; ele, porém, conservou-se imóvel,
com os braços cruzados sobre o peito, medindo-a com um olhar frio e desprezível. -- Como ousaste, contrariando as minhas ordens, vir aqui, Lucrécia? Não tínhamos
combinado que ficarias em casa aguardando minhas ordens? Que descuido o teu! A voz dele era zangada, mas despertava nela uma surda indignação: -- Vim porque sou
tua esposa, ante Deus e os homens, e tenho o direito de estar onde tu estiveres. Se meu pai não é um nóbile, é res-
peitado e amado por todos quantos o conhecem, e é rico como um duque! Lucrécia Bertolini não tem que se envergonhar
de sua descendência, e tu não tens o direito de renegar tua esposa! Ela calou-se sob o império daquele frio olhar e não ousou mais dizer uma palavra. E de fraqueza
caiu de joelhos: -- Paulo; tem compaixão de mim! Põe um termo ao meu martírio e à nossa separação! Vês? Eu vim também para dizer-te que, em breve, te tornarás pai,
e que o teu filho tem o direito de estar contigo... Ela viu que Paulo empalidecia recuando. Seu semblante não denunciava alegria quando, com sua voz rouca, disse:
-- Com quem vieste? Teu pai permitiu esta viagem? Alguém te viu aqui? -- Meu pai não estava em casa quando eu parti, e de nada sabe. Vim com Ângelo e aqui vi Seno
apenas. Um riso rouco foi a resposta. Ele tomou-a nos braços e beijou-a com uma fúria que Dina ainda desconhecia nele. E então o sono passou a ser um pesadelo horrível.
Primeiramente ouviu qualquer coisa que estalava e se partia, depois a cabeça de Pawel que se inclinava sobre ela, fitando-a com um ódio quase assassino. Viu um punhal
brilhar nas mãos dele, um punhal que, vibrado por um formidável golpe, se enterrou no seu peito. Dina sentiu uma dor terrível, e, logo em seguida, um frio glacial
percorrendo-lhe o corpo. Como que através de uma névoa, viu ainda o semblante conturbado do assassino, e, por detrás deste, o pálido Seno. Foi então erguida por
dois braços e arrebatada. Viu-se sob as abobadas de um subterrâneo saturado de um enjoativo cheiro de sangue. Sobre o solo, ensangüentado, estava o corpo de Ângelo,
o seu companheiro. Então perdeu a consciência. Os raios do sol, que entravam pelos vitrais, despertaram Dina. Um olhar para o relógio, fê-la constatar já ser hora
de levantar-se. Recordou-se, nitidamente, do sonho.
-- Oh! que sonho horrível. Resultado de se deitar com maus pensamentos e adormecer-se numa cama antediluviana.
Graças a Deus foi um sonho apenas! Disse suspirando. Ela estava diante do lavatório, que era um móvel moderno, e, involuntariamente, olhava-se no espelho. Um grito
a custo abafado, escapou-lhe dos lábios. Sobre o seu colo, no ponto em que, nos sonhos, fora atingida pelo punhal, constatava uma mancha escura. Examinando-a bem,
verificava que uma mancha vermelha, como se produzida por um ferimento, deformava sua epiderme, sob as roupas. E no dorso da mão, descobriu uma nítida e azulada
marca digital. Como que atordoada, Dina fitava os estranhos sinais. -- O que será isto? Estarei ficando louca? Passou a mão pela testa. Eu poderia, realmente,
perder o juízo, se emprestasse a essas manifestações uma importância qualquer. Não foi em vão, afinal, que li tanta coisa sobre o medo e a sugestão. Compreendo as
causas disto! Devo ter sonhado tão vivamente, que as impressões do sonho deixaram-me os seus vestígios, visíveis assim. É o que se constata com os sonâmbulos: coloca-se-lhes
um pedaço de papel de seda sobre o braço e se lhes incute que seja um emplastro de mostarda, e o papel de seda produz o mesmo efeito que o emplastro. Não há razão
para dizer qualquer coisa aos demais hóspedes! Quando muito, rir-se-iam de mim, especialmente a tal Valéria. Quanto a esta, porque me fita, por vezes, tão fixamente?
O seu simples sorriso aborrece-me. Abstraindo toda auto-sugestão, Dina, contudo, não se sentia ainda plenamente convencida de que tudo fora um sonho pueril! Aquele
quarto tinha qualquer coisa de horrível! Por exemplo, porque o seu querido Biju negava-se a permanecer nele e fugia sempre? Dina inspecionou mais uma vez o nicho
e a grade, nada de extraordinário encontrando, fosse abertura ou mola de ação secreta. Finalmente, abandonou a busca infrutífera e ordenou que trouxessem o café.


No decorrer dos dias que se seguiram, Valéria continuou sentindo-se dominada por estranha emoção, assim como se
procurasse qualquer coisa que não podia encontrar, mas também sem saber ao menos o que procurava. Com a esperança de que Larissa não a chamasse, certa noite trancou-se
no seu quarto. O desassossego interior em que vivia, fora tão bem dissimulado sob uma alegre e descuidada exteriorização, que a madrinha sentia-se perfeitamente
tranqüila. Metida num penteador branco, sentara-se a jovem junto à janela, imersa em pensamentos. Esforçava-se por localizar o objeto de suas buscas, realização
essa a que se sentia intimamente obrigada. Por alguns instantes, teve diante dos olhos a visão da noite apavorante em que se vira naquela circunstância ultrajante
diante do Barão. A visualização, que reconstituiu em detalhes, levou-lhe o rubor às faces. Um suor viscoso perlou-lhe a fronte e ela lutou, então, com a idéia do
suicídio. Um estremecimento perpassou-lhe o corpo. Valéria procurou reagir, porém, debalde: os membros lhe ficaram pesados, e, sem forças, tombou ao solo. Com as
feições alteradas e movimentos estranhamente calmos, quase mecânicos, ergueu-se ela alguns minutos depois. Com a segurança peculiar aos sonâmbulos, abriu a porta
secreta e dirigiu-se para o quarto de Giovana. Aí acendeu uma vela e colocou-a na lanterna, que, já por tantas vezes, lhe prestara tão bons serviços. Abriu a porta
que dava para a escada em caracol e desceu para o jardim. Agora o seu rosto transfigurava-se numa expressão de alegria: -- Até que enfim! Até que enfim me lembrei!
Preciso encontrar o caminho que conduz para ele! Murmurou enquanto um irônico sorriso contraía-lhe os lábios. Com passos firmes, transpôs o jardim e caminhou ao
longo das muralhas do castelo até que, finalmente, se deteve diante da passagem vedada pelos arbustos entrelaçados pelo tempo. Estava então, ao pé de uma das mais
antigas torres, na qual, na concha de uma depressão, fora incrustado o escudo de Montinhoso. Sob este, havia uma cabeça de leão em granito, que segurava entre os
dentes uma argola de ferro. Tudo isto estava, porém, tão encoberto pelos arbustos, mus-
gos e gramas, que só com muita dificuldade constatavam-se particularidades. Durante um breve momento, Valéria permaneceu
indecisa, mas, de repente, agarrou a argola, virou-a três vezes e puxou-a para si. Era extraordinária a força que possuía a sonâmbula, pois que, para puxar aquela
argola velha e enferrujada, fora necessária a força de um homem jovem e forte. Com um som estridente a argola cedeu. A parte traseira da depressão, girou sobre gonzos
invisíveis e franqueou estreita passagem. Valéria arrastou para aí o pedaço de uma velha estátua partida e colocou-o de encontro à porta, para evitar que esta se
fechasse. Com a lanterna na mão, penetrou no estreito corredor que tinha pela frente. Este era em arcada e se alargava sempre mais. De um lado, abria-se em celas
servidas por grades de ferro, algumas delas abertas, outras fechadas por pesadas trancas. Do teto pendia uma lanterna. Evidentemente, fora ali a antiga prisão do
castelo. Depois da última porta de ferro, que se encontrava aberta, o corredor se bipartia. Valéria estacou imersa em profunda reflexão. Passou a mão pelos cabelos.
-- Sim, deve ser aqui! Dirigiu-se para uma pesada porta, e, empregando todas as suas forças, conseguiu abri-la. Logo em seguida, encontrou-se num compartimento redondo
que se assemelhava a uma cela de prisão. Na parede, sobre um banco de pedra, estavam presas algumas correntes; num canto havia aparelhos de suplício. Ela não deu
atenção a estas coisas e se dirigiu à parede fronteiriça, na qual se achava, como na entrada, uma cabeça de leão com a argola entre os dentes. Essa argola, porém,
era fixa, e servia de apoio a uma tocha. Valéria atirou a tocha ao chão e girou igualmente essa argola. Imediatamente outra porta revelou-se pondo a descoberto uma
escadaria escavada na rocha. Sem titubear, subiu a escadaria e foi abrir, no alto, uma segunda porta. Penetrava numa outra câmara circular que já denotava pertencer
aos aposentos do castelo. O forro era de velho carvalho, e as paredes pintadas em afrescos que representavam cenas de cavalgadas. Ao redor de uma mesa, cadeiras
de altos encostos. Sobre a mesa, um jarro de
prata cinzelada e três canecas. Alguns passos além, encostada a um armário, estava a figura de um homem, com o
braço alçado para o alto. Por um momento ao defrontar a figura, Valéria sentiu faltar-lhe a respiração. Depressa tornou a si. -- Ah! Também tu estás ai, Girolamo?
Quando afinal me perdoarás? Assim falando, ergueu a lanterna e iluminou-lhe o rosto. A figura parecia uma estátua, mas as suas vivas cores davam toda a impressão
de um homem vivo. Apesar da poeira e das teias de aranha que lhe tinham envolvido a cabeça, os ombros e os braços, Valéria fitou, naquela criatura, um formoso rosto,
ainda que desfigurado pelo sofrimento. Os seus olhos escuros ardiam com uma expressão desesperada. Durante minuto a moça permaneceu imóvel, de olhos envidrados,
naquela contemplação. Depois virou nos calcanhares e fugiu correndo do quarto, sem, contudo, esquecer de cerrar, cuidadosamente, as portas. Recolocou a tocha em
seu lugar e voltou ao ponto em que o corredor se bifurcava. Sem se deter, subiu outra escadaria, depôs a lanterna no chão e abriu uma pequena porta. Estava no quarto
de Dina. O aposento era frouxamente iluminado por um lampião. Como uma sombra, Valéria se dirigiu ao gobelim, a cujo centro se encontrava a capela em miniatura e
comprimiu certa mola. Sem qualquer ruído, a grade correu para um lado. Agora via distintamente, determinados detalhes. Nos dedos do cavalheiro e da donzela, anéis
com pedras, uma azul, vermelha outra. Tocando aquelas pedras, Valéria fez desaparecer o fundo da capela. Na depressão que aí se formou, sentiu ela, tocando uma taça
de vidro e um recipiente de metal. Satisfeita, sorriu: -- Está ainda aí! Ninguém o achou. E que fique ai até que eu precise usá-lo!... Depois destas palavras, murmuradas
baixinho, fechou o nicho e a grade e correu olhar pela alcova em que Dina dormia. Um ódio terrível brilhava nos seus olhos, mas dominou-se logo e desapareceu no
corredor, sorrateiramente, da mesma forma como entrara.

Dina não pudera dormir aquela noite. Permanecera ali, estirada sobre o leito, pensando no esposo ausente.
De súbito, pensou ouvir um rumor que partia do nicho. Voltou o rosto e imobilizou-se estarrecida de medo. No gobelim, diante da pequena capela, estava uma alva e
esguia figura de mulher. Devido à luz. Dina não pode divisar-lhe as feições. Além disso, desviava sua atenção o fato de ver aberto o armário da capela. O fantasma,
como julgou fosse o vulto, movia-se. Dina cerrou os olhos de terror. Quando os abriu de novo, a imagem tinha desaparecido. No gobelim tudo continuava como dantes.
Aquela visão, porém, abalou-a de tal forma que só pela manhã conseguiu conciliar o sono. -- Sabes, Larissa disse ela ao almoço. Esse castelo parece mesmo um verdadeiro
ninho de fantasmas. Não costumo ter medo de tais coisas, mas devo confessar que no curto espaço de tempo de minha estadia aqui, já vi e constatei muitas coisas.
-- Sim? Conta-nos então o que vistes. É assunto que nos interessa a todos! -- Em primeiro lugar, vi uma luz misteriosa, depois tive sonhos muito singulares. Num
deles, por exemplo, Pawel, em trajes medievais, apunhalou-me. Larissa dirigiu a Miguel um olhar significativo que Dina, todavia, não entendeu. -- A noite passada,
porém, vi um fantasma perfeito: uma figura alta, feminina, trajada de branco. Parou diante do gobelim do quarto e abriu um armariozinho secreto. Não vos riais, pois
vi, tenho certeza, a porta aberta! O fantasma retirou do seu interior um objeto brilhante. Quando tornei a olhar, tinha desaparecido. Pela manhã examinei o gobelim,
mas apesar de todos os meus esforços, não consegui descobrir qualquer mola, ou coisa semelhante! -- Hum! Talvez tenhas apenas sonhado isto tudo.
-- Não, absolutamente! Eu estava acordada, nem tinha dormido ainda. Foi, sem dúvida alguma, um espectro... Retrucou
Dina. Precisamos contar isto a Savéria. Ela conhece todas as lendas do castelo, e saberá dizer que espírito será este! -- Mandarei chamá-la imediatamente! E como
já travaste relações de conhecimento com alguns habitantes invisíveis deste castelo... -- Oh! Sim! Esquecia-me de contar mais um coisa! Interrompeu Dina. Eu vi
também um homem trajado de preto sair do nicho. Ele se encaminhou para mim, ameaçou-me com o braço erguido e murmurou incompreensíveis palavras! -- Revelou sorrindo.
Larissa não pode igualmente deixar de sorrir. -- Francamente, creio que todos os habitantes invisíveis do castelo vieram render homenagem à nova senhora. Uma mulher
de branco, um homem de negro, talvez o Maledetto em pessoa. -- Quem é este? Indagou Dina surpreendida. -- É o senhor de Montinhoso, o herói de várias e tenebrosas
lendas. O povo cognominou-o o Maledetto. Larissa fez um ligeiro relato da história de Paulo Montinhoso. -- Na realidade, também somos testemunhas de acontecimentos
extraordinários! Por exemplo, o dobre dos sinos e o cantochão funéreo. Mais extraordinária é, porém, a semelhança existente entre Pawel e o tal de Maledetto. Visitamos
a catacumba de Paulo, e, sobre o sarcófago, vimos uma escultura que realça excepcionalmente essa semelhança. Tu mesmo podes te certificar disso. -- Eu o faria de
bom grado! Primo Miguel, poderias mostrar-me a catacumba? -- Mas naturalmente, com todo o prazer! Se é que Pawel não a fechou e retirou a chave! Teremos então de
esperar pelo seu regresso! disse Miguel! Nesse momento surgia Savéria, e Dina falou-lhe do fantasma. Nem bem ouvira tudo, a velha entrou em lamuriosa agitação:
-- Jesus Maria! Que Deus nos livre de uma desgraça! Se a Signora Yolanda já anda por aqui, não podemos esperar
boa coisa! -- Mas quem é essa signora Yolanda? Conta-nos a sua história, se a conheces. Por que havia de ser justamente essa Yolanda que a senhora Baronesa, viu?
-- Sim. Mas quem há de, a não ser ela, estar mexendo nos armários em busca do elixir do amor? Respondeu a velha convicta. Sua história me foi contada ainda pelo
velho Tadeu. É, em minúcias, o que ele encontrou registrado nos antigos arquivos. Por aqui concluo que a sua aparição seja um mau sinal! Ouvi, pois: Yolanda era
uma cigana de nascimento. Os Montinhoso por esse tempo, ainda não possuíam o título de Condes. Eram apenas nobiles. Deve ter sido há muito tempo. O chefe de família
era, então, um cavalheiro de nome Marcos, um homem de avançada idade e que tinha um filho de vinte anos. Um belo dia esse Marcos perdeu-se na mata durante uma caçada
e, por acaso foi dar num acampamento de ciganos. Foi recebido com amabilidade, deram-lhe de beber e de comer. Enquanto fazia o repasto, viu ele uma jovem cigana
de maravilhosa beleza, da qual se enamorou tão profundamente, que a levou consigo para o seu castelo. Viúvo que era, casou-se com ela. Depois de levá-la à pia batismal
onde recebeu o nome de Yolanda. Mas, por maior que fosse sua beleza, mais negra era sua alma. Era requintada em luxos, gananciosa, cheia de vícios e conhecedora
de artes de bruxaria. Sabia preparar o elixir do amor, do qual dava de beber aquele a quem desejava reduzir à escravidão. Antes porém, ela mesma tomava uma parte
da dose. Contava-se que essa beberagem tinha um odor maravilhoso, mas que era tão forte que provocava tonturas. A crônica diz que a signora Yolanda sabia preparar
os mais variados venenos. Em virtude de sua ganância, fez dos mais ricos nóbiles seus escravos. Fazia-se presentear regiamente por eles e assassinava-os depois!
Foi desta época que os Montinhoso se tornaram os nobres mais opulentos do país. A lenda revela que o seu filho único teve por pai o demônio, a quem Yolanda também
ministrou o elixir do amor. Como o filho mais
velho de Marcos viesse a falecer, o diabinho tomou-se chefe dos Montinhoso. A partir de então, um destino horrível
pesou sobre a casa: riquezas, infortúnios, delitos, pecados, pesaram sobre eles, e muitos Montinhoso tiveram morte misteriosa. Estas últimas palavras saídas da boca
de Savéria, foram ouvidas pelos circundantes com um sorriso de zombaria. -- Para os descendentes do diabo, delitos e pecados não são, por assim dizer, absolutamente,
coisa de espantar! Comentou Dina ironicamente. A mim, porém, interessa muito mais outra coisa. Não lhe disse o velho Conde por que motivo Yolanda sempre tomava
do elixir, antes de oferecê-lo aos outros? Geralmente diz-se que tais infusões devem ser bebidas apenas por aqueles cujo amor se quer alcançar. -- Eu mesma perguntei
ao Conde por que motivo Yolanda procedia assim, ao que ele me respondeu sorrindo: Diz o cronista que, tomando o elixir em primeiro lugar, ela propiciava ao próprio
corpo o aroma da bebida, o que aumentava o seu efeito. -- E sabe-se em que circunstâncias morreu Yolanda? indagou Larissa. -- Não, signora! Ninguém conhece, exatamente,
o seu fim. Duas versões diferentes surgiram: Segundo uma, ela desapareceu de repente, sem deixar vestígios, e admite-se que tenha sido morta por um de seus parentes.
Segundo outra, foi por Deus, transformada em pedra, razão porque a igreja, julgando pesar sobre ela uma maldição, negoulhe sepultura. Foi então, sem cerimônias fúnebres,
enterrada num subterrâneo do castelo. Estou convencida de que esta segunda versão é verdadeira, pois que, de tempos em tempos, ela volta a perambular pelo castelo,
em busca do elixir que escondeu aqui, em um lugar qualquer, e que ministra, quem sabe, aos fantasmas que a visitam! Terminou Savéria. Uma risada franca e generalizada,
coroou estas palavras finais. Sim, tu imaginas essas histórias muito bem, boa Savéria! Um fantasma embriagado por um elixir de amor!... Não Savéria, isto vai um
pou-
co longe demais, até para mim que admito o sobrenatural! Disse Larissa incrédula. -- Signora, tu te esqueces,
porém, de que ouvimos, todos, e bem distintamente, os ruídos do festim noturno! Todos ouviram. Quem poderá negar que a signora Yolanda, ou o Maledetto, tenham entrado
em relações com o diabo? Ou admitiremos que o barulho foi feito por pessoas vivas, e além disso, cristãs? Como ninguém contradissesse Savéria, ou encontrasse uma
explicação para o caso, ela se retirou com a vaidosa convicção de que saíra vencedora daquela troca de palavras. Larissa contou a Dina o caso do festim noturno.
-- Nós não remos medo! Pelo contrário, estamos curiosos por saber o que se oculta ainda por detrás destes muros misteriosos. -- A oportunidade de vermos uma Pompéia
da Idade Média se nos oferecerá, provavelmente! Adiantou Larissa.

10
A HERANÇA Rothschild e as Muranoff chegaram a Manheim em tempo oportuno. O velho Barão estava à morte, mas ainda conservava plena consciência, e ficou satisfeito
de poder ver, ainda uma vez, irmã, sobrinho e sobrinha. Na noite seguinte, cerrou os olhos. Rothschild procurou diligentemente resolver, tão depressa quanto possível,
as formalidades todas, para poder regressar a Montinhoso. O finado manifestara o desejo de ser sepultado no jazigo da família, em S. Petersburgo. Helena propôs,
por isso, telegrafarem a Anatólio Samburoff, para que ele tomasse as devidas providências naquela cidade. Rothschild, de princípio, não se mostrou muito de acordo,
julgando ter motivos plausíveis para isso.
Os chefes das famílias Muranoff e Samburoff, mantinham franca amizade desde os tempos do corpo de cadetes. Como
oficiais, foram incorporados, entretanto, em guarnições diferentes, o que os levou a perderem contato recíproco. Mais tarde se encontraram, por acaso, em Moscou.
Estavam ambos casados e pais de filhos. Suas esposas estabeleceram relações de amizade e permitiram que seus filhos crescessem juntos. Anatólio, que estava ao corpo
de cadetes, sentia-se, em casa da tia, como em sua própria casa. Quando deixou Moscou e ingressou na Academia Militar, as duas famílias sentiram, igualmente, essa
separação. Lolo e Va1éria foram ambas educadas no Instituto Catarina. Logo depois, as duas famílias tiveram de se separar, pois o general Samburoff pediu a sua reforma
e transferiu-se para Sarkoje-Selo. Muranoff morrera poucos meses antes. Sua família permaneceu em Moscou, onde possuía propriedades. Os filhos de Helena adoeceram
então, atacados de difteria e, para convalescerem, saíram, a conselho médico, a passar um ano na Itália. Rothschild era uma visita rara nos salões de Helena, e quase
não conhecia os Samburoff. O velho tio não o deixava afastar-se de seu lado. Mais tarde, freqüentando então o Liceu de Oficiais, saía todas as férias na companhia
do protetor, viajando pelo estrangeiro. Foi quando Miguel e Lôlo o conheceram. Anatólio encontrava Rothschild uma ou outra vez na sociedade. Entre eles porém não
se estabeleceu nenhuma relação de amizade mais íntima. Não se sentiam reciprocamente atraídos. Eram, pois, quase estranhos. Por tal motivo, hesitava Rothschild em
dirigir-se a Anatólio naquela ocasião, pedindolhe que se encarregasse dos preparativos do sepultamento do tio. Helena e Lolo tanto fizeram, porém, que, por fim,
ele se resolveu, mesmo para liquidar tudo mais prontamente. Na estação de S. Petersburgo, Anatólio aguardava os viajantes. Rothschild agradeceu-lhe o trabalho graças
ao qual puderam levar o caixão mortuário diretamente à igreja. O catafalco já estava pronto e todas as demais providências tomadas. Como Helena não tivesse residência
na cidade, decidiu ir, com Lôlo, para a casa do falecido irmão. Logo depois da primeira missa de Ré-
quiem, que fizeram rezar pelo finado, ela recolheu também Anatólio, que amava como a um filho, e desejava ter em
sua companhia. Nos dias que se seguiram, ele foi o constante companheiro em todos os seus passos pela cidade. Rothschild apressava o regresso a Montinhoso, não apenas
em virtude de um desassossego secreto que não o abandonava, como também por motivo de um acontecimento que se dera em sua ausência e que lhe trouxera uma grande
apreensão. É que seu camareiro lhe havia comunicado que, talvez há uns oito dias, uma senhora perguntara por ele. Quando lhe informara que se encontrava na Itália,
pedira tão insistentemente o seu endereço, que não tivera remédio senão fornecê-lo. Pela descrição feita, aquelas senhora só podia ser Dina. Dina, porém, estava
na Criméia! No dia seguinte, Rothschild dirigiu-se à casinha da ponte de Narwaseh. Ali informaram-lhe apenas que, em virtude da morte de seu pai, Dina regressara
da Criméia. Ficara alguns dias em S. Petersburgo e partira em viagem, cujo destino desconheciam. Rothschild sentiu o ódio fervendo no seu espírito. Era o cúmulo
do azar que essa mulher, que trazia o seu nome e podia demonstrar isso por intermédio de documentos aos quais tinha direito, viajasse sem o seu consentimento. Todavia,
não lhe passou pela mente, nem remotamente, que ela se dirigira a Montinhoso. Onde haveria ele de encontrá-la para poder, o mais depressa possível, iniciar o processo
de divórcio? Porque precisava de divorciar-se, custasse o que custasse, não só por não alimentar amor por Dina, mas porque havia, secretamente, feito de Valéria
a sua esposa e considerava como o mais sagrado dever, torná-la também sua esposa, publicamente, perante Deus e os homens. Rothschild regressou tão mal humorado para
casa que, solicitando desculpas à tia, tomou a sua refeição a sós. Como um leão enjaulado, pôs-se a caminhar então, no quarto, de um para o outro lado, pressentindo
a luta que teria de travar com Dina. Odiava-a quase, ao recordar do meio e modo pelos quais ela se colocara em seu caminho, e de como lhe dificultara e amargurara
a existência. Nervoso e zangado deitou-se, e em breve adormeceu profundamente. Em sonhos, viu-
se outra vez em Montinhoso, nos trajes medievais que, como Paulo, sempre envergava. Acompanhado por um servo, subia
uma escadaria de pedra, ao fim da qual abriu-se-lhes uma porta. Encontrou-se então num aposento que lhe era de terrível memória, e que lhe infundia horror e asco.
Adiante, numa alcova, viu um alto leito de dossel. Aproximou-se sorrateiramente e fitou a mulher que ali dormia. Friamente o seu olhar prendeu-se, por alguns segundos,
no rosto dela. Depois, sacando de um punhal que trazia na cinta, mergulhou-o no peito da mulher. Sentiu o calor do corpo dela que se tocara à mão, e se tingiu de
sangue. Erguendo o corpo com o auxílio do servo, levou-a dali! Agudos gritos despertaram Rothschild, trazendo-o à realidade. Abriu os olhos e viu o velho criado
Sawely debruçado sobre si, prendendo-o pelos braços. -- Por amor de Deus, senhor! Não foi fácil conter-vos. Eu já supunha que me quisésseis matar! Disse enxugando
o suor da testa. Rothschild olhou admirado ao seu redor, constando que se encontrava no seu quarto de dormir. Suas mãos seguravam espasmodicamente uma almofada,
na qual achava-se espetado um punhal. Aquele punhal, ele mesmo o tirara, um dia, dos antigos compartimentos de Montinhoso, para reuni-lo à sua coleção de armas.
Como estava ali agora, quando o supunha no fundo de sua mala? Era um enigma. -- O que aconteceu, Sawely? -- Ah! Senhor1 Eu não podia adormecer porque me doíam os
dentes... Meu quarto é contínuo ao vosso, e, assim, ouvi passos e a vossa voz no quarto de vestir. Mas não faláveis russo! Parece-me que chamáveis por um criado,
e supus, então, que ladrões tivessem penetrado aqui, o antigo criado, mesmo, que foi dispensado em virtude de um furto... Vim depressa, e entrei justamente no momento
em que perfuráveis a almofada com esse estilete, como se estivésseis apunhalando alguém! Quando vos peguei no braço para tranqüilizar-vos, me agarrastes e me quisestes
carregar... Foi preciso empregar todas as minhas forças para me libertar, pois eu temia que me apunhalásseis também. Vede, Senhor, como sangra a vossa mão!
Rothschild calara-se fitando os seus dedos sujos de sangue. Sawely, .que já estava ao serviço da casa dos Rothschild
per algumas dezenas de anos, e havia carregado nos seus braços o Barão menino ainda, abraçou-o e reconduziu-o ao dormitório; -- Deitai-vos agora, Pawel. Estais tão
pálido! Queira Deus não fiqueis doente! -- Preciso lavar-me ainda Sawely! Disse Rothschild baixinho, enfiando a mão na bacia. A água tingiu-se de sangue, mas não
se via ferimento na mão. Submetendo-se ao conselho do velho, deitou-se, aceitando, obediente, um cálice de vinho. Deixou que o velho servo lhe ajeitasse as cobertas.
Tremia como se tivesse febre e somente muitas horas depois adormeceu. Pela manhã, Rothschild acordou exausto, com um peso na cabeça. O acontecimento da noite, que
Sawely teve que relatar em todas as suas minudências, provocou-lhe um desassossego enorme, e fortaleceu seu desejo de regressar o quanto antes a Montinhoso. Com
diligência febril, pôs-se a trabalhar, e passou dias inteiros em ininterrupta conferência com o seu advogado e o secretário, que o auxiliavam, com garantia, a por
em ordem a herança que lhe tocara. Por sua vez, Helena sentia-se sobrecarregada de afazeres. Precisava aplicar convenientemente o dinheiro que seu irmão lhe deixara.
Rothschild pagaralhe em moeda a parte que lhe tocava, e ela queria aplicar esse capital, não pequeno, aliás, de modo a produzir renda. Lolo que se achava em S. Petersburgo
pela primeira vez, não se satisfazia com as belezas da capital. Anatólio levou-a à Eremitagem e a outros museus, mostroulhe a catedral de S. Izaac e quanto havia
digno de ser visto. Apesar da sincera mágoa que experimentara com o passamento do tio, Lolo era muito jovem e vivaz para entregar-se incondicionalmente à dor. Ela
e Anatólio sempre haviam sido íntimos amigos, mas agora que passavam diariamente horas a sós, passeando pela cidade e palestrando, sentiam que aquela simples amizade
ia sendo substituído por um outro sentimento mais quente, e em breve percebiam-se apaixonados.
Uma tarde, Anatólio perguntou-lhe, resolutamente, se consentia em tornar-se sua esposa. Ora, o caráter reto e seguro
de Anatólio, era, para Helena, uma garantia de felicidade para sua filha. Lolo não hesitou em dar-lhe o sim, já, de antemão, assegurado pelo consentimento de Helena,
que impôs apenas uma condição: que o matrimônio se realizasse, por motivo do luto da família, depois da Páscoa. Os noivos mostraram-se de pleno acordo. Lôlo sentia,
entretanto, que, em virtude do luto, não pudesse festejar, como sempre sonhara, o seu contrato de casamento. Mas em breve encontrou uma solução. Depois de falar
a Rothschild do seu noivado, pediu-lhe que lhe proporcionasse esse prazer, promovendo, em sua residência, uma recepção ligeira e íntima, ao que o Barão acedeu com
todo o prazer. Além disso, presenteou-a com cinco mil rublos para os alfinetes, o que levou Lolo a uma explosão de alegria. E Rothschild cumpriu com sua promessa.
Na noite seguinte, o noivado foi festejado com um brilhante jantar. A reunião teve o seu momento supremo quando o noivo e o primo entregaram à noiva maravilhosos
presentes. Ao champagne, Lôlo ergueu a taça e esvazioua à saúde do primo: -- À tua saúde, Pawel. És o mais querido e o melhor dos primos. Eu te auguro, de todo o
coração, que também te cases em breve, e te tornes tão feliz quanto nós o pretendemos ser. Um sorriso doloroso passou pelo rosto de Rothschild. -- Eu te agradeço,
Lolo! Esperamos que o teu voto se realize em breve! Contudo, o homem põe, e Deus dispõe! Mas, neste momento, me alegro bastante por te ver feliz. Logo depois da
festa, Rothschild retirou-se para os seus aposentos, enquanto os outros convivas entretinham-se palestrando. -- Pawel parece-me tão triste! Disse Anatólio. ---
Parece-me que não se sente muito bem. O que faltará a esse feliz Creso? -- Também notei que Pawel anda muito quieto e calado. Não posso saber porquê! Será que aquele
infeliz Montinhoso tenha marcado uma impressão tão forte assim no seu espírito? Perguntou Lolo.
-- Mas, porque havia esse castelo em ruínas de produzir uma impressão dessas? Aquelas lendas de que me falaste
tão alguma relação com o estado psíquico de Pawel? Afinal de contas, foi de livre e espontânea vontade que ele comprou o castelo!... Comentou Anatólio. -- Ah! Folja,
esqueci-me de contar-te qualquer coisa de importante sobre o castelo. Esse Conde de Montinhoso, tem tal semelhança com o nosso Pawel, que quase se poderia supor
que se tenha erguido entre os mortos e viva agora, na imagem de Pawel. Lembras-te ainda? Eu te falei de uma visita à catacumba do Maledetto. Imagina: sobre o cacófago
se acha esculpida a figura de um monge que é o retrato vivo de Pawel. O velho italiano que nos guiava, fugiu aos gritos de pavor, quando notou essa semelhança. --
É, de fato, uma história interessante e misteriosa, esta. Agora compreendo menos ainda o desejo de Pawel de possuir esse castelo, com todos os seus espíritos e fantasmas!
Disse Anatólio admirado. -- Realmente! Larissa afirma que nós, segundo o Espiritismo, vivemos várias vezes. Assim sendo, talvez Pawel seja uma reencarnação do Conde
de Montinhoso! Retrucou Lolo. Anatólio riu-se: .-- Neste caso, tinham razão os seus colegas de Liceu quando o denominavam o Bórgia. Ele contou às senhoras os acontecimentos
que se ligavam ao fato. -- Contudo, peço-te Lolo, não creias em semelhantes tolices, embora a semelhança com o tal monge de pedra exista. Tudo isto não passa de
acaso, ainda que de um singular acaso. Apesar da sua satisfação de noiva, e de todos os planos que fazia sobre a sua viagem de regresso à Itália, com uma interrupção
em Paris, para compra do enxoval, Lolo não descurava de observar o primo.
-- Mamãe, tu não notas como Pawel está esquisito, como se apressa em voltar à Montinhoso? Perguntou uma tarde
à mãe. -- Qual, está apenas esgotado! Tem tido muito que fazer! Possivelmente há de estar desejoso de voltar, o mais depressa possível, a um outro clima, mais ameno,
e talvez esteja curioso por devassar os compartimentos murados. -- Pode ser... Pensei também em Valéria. Não estaria ela atraindo-o à maneira de um imã? -- Esta
hipótese é admissível. Valéria é uma formosa rapariga! -- Realmente! Mas nesse caso, ele não teria motivo para estar assim todo triste e mal humorado. Valéria não
recusará por certo, tão bom partido, tanto mais que Pawel é, também, um belo tipo de homem. -- E não seria mau que ficasses aparentada com Valéria... É uma menina
tão amável! -- Prezo-a muito. Apenas lamento que seja tão doentia... X X X Finalmente chegou o dia da partida. Para grande tristeza de Lolo, Anatólio não pôde acompanhá-la.
O regimento do moço aguardava a visita de um alto personagem, e, depois disso, Anatólio devia seguir com sua genitora para a quinta que possuíam, onde se demoraria
alguns dias. Esperava, entretanto, poder seguir o mais depressa possível... O expresso do Sul conduzia Rothschild e as Muranoff ao encontro do seu destino. Na pequena
estação das montanhas, desembarcaram e contrataram um velho carro de aluguel. O resto do percurso foi feito a cavalo. Lolo pedira que não telegrafassem anunciando
a chegada. Queria surpreender os amigos e Helena e Rothschild não se opuseram. Rothschild se fazia cada dia mais inquieto e nervoso. Ansiava pela chegada a Montinhoso.
Quando, inesperadamente, os viajantes fize-
ram sua entrada, os moradores do castelo se rejubilaram. O primeiro a surgir foi Miguel, que cumprimentou efusivamente
a mãe e a irmã. Depois veio Larissa, e, por último, pálida como cera, Valéria apareceu. No decorrer dos últimos dias, o seu estado de espírito piorara sensivelmente.
Um ciúme quase selvagem devorava-a. Um simples olhar de Dina, fazia erguer no seu íntimo uma fogueira de ódio e animosidade contra a outra mulher. Todavia, o que
mais a martirizava, era o dualismo de sua personalidade, fenômeno que constatara por fim, e que se processava em si mesma à simples recordação de Rothschild. Nesse
vórtice de aversão, impaciência e ciúmes, esperava ela o retorno do amado, mas ainda assim odiado. Muitas vezes parecia-lhe impossível viver sem ele. Mas quando
se lembrava de que uma outra o possuía, quase desejava que ele não voltasse mais. Por vezes custava-lhe ocultar essa luta interior e as suas dúvidas, aos olhos perscrutadores
de Larissa. Apesar de toda a sua tranqüilidade aparente, Larissa sentia que alguma coisa de indecifrável se passava, e aguardava; hora a hora, a chegada de Dionid
Tonilim. Quando Valéria entrou, Rothschild saudava justamente Larissa. Ele se voltou para quem entrava, mas, involuntariamente, retrocedeu. A aparência da moça assustava-o.
Valéria estava pálida como mármore, tinha as faces encovadas e os olhos febrilmente chamejantes. Eram aqueles os olhos de Giovana! Lolo lançou os braços em torno
do pescoço da amiga e falou-lhe, entre beijos, do seu noivado. Todos se manifestaram satisfeitos com a notícia e se congratularam com a noiva e sua mãe. Finalmente
Lôlo libertou Valéria, de maneira que também Rothschild pôde cumprimentá-la. -- Mamãe! Lolo! Gritou Miguel. Conseguistes, realmente, com Pawel, surpreender-nos,
mas que surpresa reservamos para vós outros, não o suspeitais por certo! Minhas senhoras, contemplai bem este maganão, o Pawel! Pois está casado com uma linda mulher,
que há duas semanas está aqui, impacientemente à espera do fujão! -- O que? É verdade isso? Mas por que, querido Pawel, nos ocultaste isto! Perguntou Helena ao
sobrinho.
Rothschild, que prendia na sua a fria mão de Valéria, virou-se nos calcanhares, petrificado, fitando Miguel. --
Dina aqui? Mas não é possível! -- Como qualquer esposa, especialmente sendo assim tão bela, ela tem por certo, e indubitavelmente, de estar onde estiver o esposo!
Respondeu Miguel sorrindo. -- E onde está a Baronesa? -- Mas, antes de tudo, explica-nos tu, Pawel, esta história! Pediu Helena. -- A prima está no seu aposento
e espera lá o seu esposo, provavelmente sentindo a necessidade de uma recíproca explicação... Adiantou Miguel. Todos fitavam Rothschild. Com as sobrancelhas severamente
contraídas, estava ele ali, a cabeça curvada, imerso em profunda meditação. Tudo tinha esperado, menos encontrar Dina ali. A presença da moça, isso todos perceberam,
parecia-lhe extremamente desagradável. O seu olhar, não denotava nem amor nem satisfação pelo encontro. -- Trocarei de roupa agora, e procurarei Dina... Depois de
ter conversado com ela, darei a explicação que pedis! Falou dirigindo-se a Helena. E saiu do salão. Em seu quarto, caiu sobre a primeira cadeira que encontrou,
procurando ordenar os seus pensamentos. A notícia de que Dina estava no castelo, à sua espera, encontrara-o desprevenido. Aquela arbitrariedade revoltava-o! Como
pudera ela ousar vir para ali, sem o seu consentimento? Todavia, e por um lado, assim como acontecera era melhor. Já não precisava fazer aos parentes uma participação
especial do seu consórcio. Estava livre, agora, e não tinha a temer a perda da herança, nem de prestar contas a quem quer que fosse, sobre o seu modo de agir e o
seu procedimento. Por outro lado, porém, era inevitável uma cena desagradável com Dina, devido o seu gênio, o que o preocupava seriamente. Desejaria liquidar tudo
aquilo discretamente, sem provocar atritos. Então pensou em Valéria, na sua apa-
rência realmente impressionante e no seu olhar enigmático. Ela estaria passando por uma crise de ciúmes, e se a
memória lhe voltara, estaria próxima da desesperação. Deus do Céu! Auxiliai-me a sair desta horrível situação! Murmurou baixinho. Valéria tem um aspecto inquietante!
Espero que não faça qualquer violência contra si mesma, quando tiver de novo o seu ataque. É precise que eu lhe fale ainda hoje, de noite, para tranqüilizá-la...
Mas agora preciso ver Dina, pôr um fim a essa história. A sua presença aqui abrevia por certo a solução. Ricciotto indicou-lhe os aposentos de Dina, nos quais foi
bater. Se a ausência de Rothschild não fora fácil de suportar para Valéria, também não o fora para Dina, sobre cujo espírito pesava, amargo, o sofrimento da incerteza.
Sentindo-se não amada, temia o futuro que a aguardava. Agora que seu esposo já não dependia mais do tio, faziase necessário que houvesse uma decisão entre ambos.
E se essa decisão terminasse pelo divórcio, o que seria então? Tudo nela gritava contra esse recurso. Não! Sem lutar até o alento extremo, não se deixaria por à
margem. Nunca, enquanto vivesse, daria a liberdade ao esposo! Ainda que preciso fosse viver separada dele, o posto que deveria ocupar não cederia à outra!... A essa
pálida e odiosa Valéria, por exemplo! À noite martirizava-se com esses pensamentos e lembrava-se, então, da história contada por Savéria. Aquela signora Yolanda
parecia, de fato, errar por aquelas salas. Ela vira-a, àquela alma errante que oferecia o elixir do amor, com seus próprios olhos, diante do gobelim. Portanto,
dentro da capela, tão artisticamente trabalhada no recesso da tapeçaria, devia ainda estar aquela bebida. Oh! Se ela o encontrasse! Faria de Pawel um seu escravo
e garantiria, assim, a sua felicidade ao lado dele. Diariamente passava algumas horas diante do gobelim, em busca do nicho. Cada cantinho entalhado, ela já o conhecia
de cor, mas não encontrava a mola secreta... Miguel enviara Ricciotto imediatamente a Dina, para anunciarlhe a chegada do Barão; Dina, porém, não desejava saudá-lo
na presença de todos, e mandou pedir-lhe que fosse aos seus aposentos. Ra-
pidamente colocara os seus cabelos em ordem e prendera uma flor à cintura. Esperava com o coração palpitante a
entrada do esposo. Mas este não vinha. Talvez não tivesse pressa em vê-la! Isto, aliás, já podia saber de antemão! Nervosa pôs-se a andar de um lado para o outro.
Por vezes, parava nervosa, diante do gobelim, e corria as mãos trêmulas sobre os entalhes. -- Auxiliai-me vós, Yolanda, a prender ao menos este, vós que soubestes
escravizar todos quantos quisestes ver aos nossos pés!... Neste escudo do Maledetto, bradou estremecendo de desespero não ficou mais que a maldição... E bateu
o punho sobre o capacete, sobre a capela. Assustada, retrocedeu: a capela estava aberta! Imediatamente, outra vez senhora de si, aproximou-se e olhou o seu interior.
Atrás da parede, diante da qual estavam ajoelhados o cavalheiro e a virgem, deveria estar o esconderijo. Cautelosamente Dina estendeu a mão para as figuras e, involuntariamente,
tocou-lhe os anéis dos dedos. A parede do fundo fugiu para um lado. Na abertura resultante daí, ela viu uma bandeja de ouro com um vaso do mesmo metal e uma taça.
Sobre uma placa de vidro, ao lado, viu escrito, em antigos caracteres italianos: Elixir Milagroso dos Montinhoso. Quem dele tomar, gozará do eterno amor. Dina sentiu-se
sem ar ao ler aquilo. Podia prender o esposo, já não se via mais forçada a deixá-lo partir! Não pode pensar mais: batiam à porta. Depressa fechou a porta do armário
e dirigiu-se à mesa. Rothschild entrou, cerrou cuidadosamente a porta e adiantou-se, parando poucos passos além à frente dela. Sua fronte sulcava-se de rugas e o
olhar com que mediu Dina era de franca hostilidade. Nem sequer estendeulhe a mão, e nem teve palavras de saudação. Assim estiveram por alguns instantes marido e
mulher, frente a frente, em silêncio, até que Rothschild avançou mais alguns passos. -- O extraordinário prazer de, tão inesperadamente, encontrar-te aqui, demonstra-me
que me vens espionando e agora desejas, oficialmente, ocupar o teu lugar ao meu lado! Disse asperamente. Como
ousaste, sem as minhas ordens, vir para cá? E como pudeste sair de casa sem esperar notícias de minha parte, como
fora combinado? Dina aproximou-se, fitando-o com desprezo: -- O vestido de luto que envergo, deveria dizer-te, sem dúvida que o homem que me criou, e que foi para
mim um pai amantíssimo, já não vive mais. Estou agora, com vinte anos, sozinha no mundo, e por isso vim àquele que é o meu único protetor, vim a ti! Desde o momento
em que me recebeste por esposa, ainda que me não amando, tenho direitos sobre ti! Ainda que sejas apenas o direito de usar o teu nome e viver contigo, sob um mesmo
teto. Se até agora acreditaste que me podias desprezar em virtude de minha aparentemente obscura descendência, não podes fazê-lo mais. E isto te demonstrarei: não
sou filha de pais incógnitos, e nem sou filha daquele que me criou! Sou filha legítima do Príncipe de Kopnim... -- Do recentemente falecido Príncipe de Kopnim, Dimitri
Kopnim? Mas pelo que sei, tinha ele um filho apenas! Interrompeu Rothschild com desprezo. -- Sim, do Príncipe Dimitri Kopnim! Sua viúva é sua segunda esposa. Em
primeiras núpcias, foi casado com minha mãe, Pepita Gonzáles. Era espanhola, e, confesso-o abertamente, atriz de circo, mas mulher honesta e formosa. De medo de
sua parentela, meu pai conservou secreto este matrimônio. Quando minha mãe morreu, pela ocasião de meu nascimento, julgou ele desnecessário trocar palavras sobre
este episódio de sua vida, tanto mais que sua mãe já encaminhava o seu casamento com a segunda esposa. A existência de uma criança teria trazido dificuldades a meu
pai, razão porque me entregou aos cuidados do seu muito zeloso secretário. O Príncipe indenizou-o liberalmente por isso, e meu pai adotivo soube fazer fortuna. Quando
o Príncipe morreu, meu protetor forneceu-me todos os informes relacionados ao meu nascimento, bem como cem mil rublos que me estavam destinados por dote. Falecendo
inesperadamente, não pode, infelizmente, como desejava, transladar tudo isto para o papel, afim de que tu ficasses informado. Sabes agora que sou, pecuniariamente,
inde-
pendente de ti. Mas sou uma órfã, estou só no mundo e te amo! Nunca fiz qualquer coisa que fosse de desonesto!
Dize-me, porque me tratas tão cruel e duramente?! Sua voz negou o fim da frase e as lágrimas vieram boiar no seu olhar. Pawel, não sejas tão áspero e injusto!
Já estás há dois anos casado comigo... Já houve horas em que foste até amável e dócil... Rothschild deixou pender a cabeça. Sua consciência dizia-lhe que Dina tinha
razão e que cada uma de suas palavras era uma justa acusação. Se já estava casado com ela, tinha direito à sua proteção, tanto mais que ele era, então, a única pessoa
com quem podia contar e a quem podia pedir proteção. Era bela e amava-o: qualquer outro talvez a amasse também! Ele próprio o tentara, mas... Ali estava, diante
dos seus olhos, o atentado perpetrado contra Valéria! Antes nunca tivesse vindo àquele castelo, antes nunca a houvesse visto, e não teria tropeçado, pela segunda
vez em sua vida! -- Tudo quanto disseste é verdade... Tens razão, Dina! Nem sempre procedi bem contigo, mas deves concordar em que o nosso casamento, nas circunstâncias
em que foi realizado, não podia ser realizado, não podia ser feliz! Tens, sem dúvida, direitos sobre mim, eu sou, o teu protetor legal e podes, sem precisar corar,
denominar-te minha esposa! E, creias-me, quero tornar a tua vida tão bela quanto possível, quero proteger-te, quero ser para ti um irmão e um amigo sincero, mas
teu esposo não posso ser... Restitua-me a liberdade, Dina, eu te suplico, consente num divórcio! Dina contemplou-o assustada: -- Odeias-me a ponto de vires representar
esta comédia? Queres acaso, te acobertar com a amizade para te veres livre de mim? -- Não, Dina! Eu falo honrada e sinceramente! Se soubesses o que sofro, terias
piedade de mim. Tu sabes que não te amo. Uma mulher bonita e jovem e, além disso rica, pode, parece-me, encontrar quando queira, a felicidade! Não te posso dizer
tudo, mas ao menos uma coisa deves saber: vive mais uma mulher que tem direito sobre mim, um direito que não está determinado pela igreja e nem pela jus-
tiça, mas que a honra e consciência me impõe. Não me obrigues a dar um rápido fim a ti, a outra e a mim mesmo,
com um revólver! Um grito abafado partiu dos lábios de Dina: -- Pawel, o que fizeste!!! Quem é essa mulher? Será Valéria? -- Deixa-te de imaginações. Crês que eu
te diria? Ela está longe daqui! Disse-te toda a verdade tão somente para que possas ponderar tudo e chegar a uma resolução. Examina-te! Vê se me amas realmente tanto
que não te possas separar de mim! Eu te supliquei que me libertasses: o teu não definitivo será a minha sentença de morte! Dina entendeu que aquelas não eram palavras
vãs, que ele falava seriamente. Seguiu-se um silêncio de minutos. Os dois esposos olhavam-se pálidos e abatidos. -- Não desejo a tua morte, Pawel! E como na tua
vida sou apenas um zero, um desagradável empecilho, submeto-me. Separar-me-ei de ti, nunca mais hei de procurar-te, nunca mais pedirei a tua proteção. Sou rica!
O ouro pode ser, às vezes, o melhor protetor. Mas uma coisa te peço e espero de ti, não me negues: não permitas por enquanto, que as pessoas que estão interessadas
nisto, saibam de minha resolução. Ao jantar direi que, em virtude de um assunto que se prende à herança, partirei dentro de dois ou três dias para S. Petersburgo,
e que lá te esperarei. Peço-te por isso que procedas, nestes dois dias, como se estivéssemos na melhor harmonia, que não me trates tão fria e desprezivelmente. Afinal
não importa a ninguém se nos divorciamos ou não! Espero que tomarás em consideração o meu pedido. Assim que eu me tiver afastado, poderás dar os devidos passos para
o divórcio... Rothschild respirou aliviado, tomou a mão de Dina e beijou-a. Em seu coração lutavam vergonha e remorso contra a louca alegria, a satisfação de readquirir
a sonhada liberdade. -- Agirei de acordo com os teus desejos. Ninguém saberá o verdadeiro motivo da nossa separação. Agradeço-te a generosidade, que saberei, acredite,
prezar! Mas devo partir agora. Nossa conversa perturbou-nos a ambos, necessitamos de sossego. À tardinha voltarei e, então, peço-te, me falarás da morte de teu pai
adotivo. Para evitar um
falatório inútil entre a criadagem, talvez seja conveniente que eu passe a noite no teu quarto... Acrescentou
titubeante, sem fitar a moça. Apertou-lhe a mão e apressou-se em sair do quarto. E não viu o olhar enigmático que Dina lhe enviou. Só, ela caiu sobre uma poltrona
e apertou a mão contra o coração que saltava doidamente. -- Desfazer-me dele, agora que descobri o Elixir do Amor!!! Não! Nunca! Agora não! Eu te amo, Pawel, e permanecerás
meu. E dou graças a Deus que deu a idéia de vires cá, esta noite. Amanhã, por ti mesmo, já não quererás te afastar de mim. Esta noite, todas essas idéias horríveis
que pulsam no teu cérebro estarão expulsas... Dina monologava. Mas... e a mulher que ele desonrou! Ora, que me importa ela!!! Será despedida com uma boa soma em
dinheiro. Se lhe faltou dignidade, apenas receberá o castigo que merece... Eu é que não me furtarei à felicidade, por sua causa!

11
O PASSADO VEM À TONA

Reuniram-se para o jantar. Pouco tempo antes, Rothschild fizera à tia a narrativa, por sinal bem pouco clara, do seu casamento, e acrescentara que sua esposa seguiria
nos próximos dias para S. Petersburgo, onde se encontrariam depois. Ao jantar, Dina confirmou essa comunicação. Disse que, se Rothschild tinha interesse em estar
presente por ocasião da abertura dos aposentos murados, ela não se importava absolutamente com aquilo. O castelo apenas infundia-lhe horror. Rothschild demonstrou
estar bastante amável. Davam ambos quase a impressão de dois jovens cônjuges que se sentem reciprocamente felizes. Intimamente, porém, o Barão não se sentia bem.
Evitava o olhar perscruciante de Valéria e guardava, impacientemente, a noite
para explicar-lhe tudo e tranqüilizá-la. O estado dela preocupava-o sempre mais, principalmente porque vislumbrava
nos seus olhos a misteriosa expressão que animava Giovana. A palestra geral girava outra vez, e naturalmente, sobre os quartos fechados. A este respeito, lembrou-se
de Tonilim. Larissa havia recebido carta dele, pela qual fazia-se esperado nos próximos dias. Em vista disso, Rothschild decidiu iniciar imediatamente a derrocada
das paredes para abreviar o tempo desse trabalho. Depois do jantar, fizeram um passeio em comum, que, entretanto, interromperam logo em virtude de uma tempestade
que se anunciava. Ao crepúsculo, o céu fizera-se quase todo negro. A espaços, ziguezagueantes relâmpagos iluminavam o castelo com a sua lúgubre claridade. Por sobre
as montanhas ecoavam, ensurdecidos, os estrondos do trovão, e um vendaval violento sacudiu com fúria a copa do arvoredo. -- Não podemos mais ficar no terraço! O
tempo vai ficar horrível... Observou Helena dirigindo-se aos outros. -- Creio que não, titia! A tempestade está longe, e, provavelmente, passará por acolá sem alcançar-nos!
Disse Rothschild sorrindo. Com apetite, comeu ele um dos pêssegos que Valéria serviu numa bandeja. Nesse instante, ouviram todos, distintamente, vindo de qualquer
parte, o som fatal dos sinos dobrando e o cântico fúnebre em coro. Lôlo ergueu-se assustada e olhou para a janela. -- Meus Deus! Vede o que se passa nas ruínas do
monastério... -- gritou aterrorizada. Ergueram-se todos. E viram, saindo das ruínas, lenta, uma longa fila de luzes azuladas que, como numa procissão, dirigia-se
para as catacumbas. O cântico tornava-se de minuto em minuto, mais alto, e parecia aproximar-se do castelo. Um ruído forte arrancou um estremecimento de pânico ao
grupo reunido junto da janela. Savéria tinha deixado cair de susto, o vaso de cristal que continha os pêssegos. Segundos depois perdeu-se no ar o cantochão, e silenciaram
os sinos.
-- Quereis saber de uma coisa? Fez Helena zangada. Estas histórias já estão me afetando o sistema nervoso. Parece,
realmente, que há aqui qualquer coisa de anormal! Singulares pensamentos ocorrem-me ultimamente... -- Mas o que é isso mamãe?! O que dizes? Retrucou Lôlo que desde
o contrato de casamento se tornara livre pensadora. Deixa aos monges o prazer das suas serenatas ao Maledetto. Isto, afinal, é lá com eles! Ouvimos o De Profundis
três vezes e, dize-me, lá, o que de mal nos sucedeu? -- Tens razão, Lolo! Seria tolo nos entregarmos a esses negros pensamentos, deixarmo-nos influenciar tanto pela
velha namorada de lendas, e acreditarmos nestas últimas!!! Tomemos por exemplo a baronesa, que recebe essas tolices com um sorriso... Uma forte saraivada de vento
varreu o terraço e obrigou-os a se retirarem. A tempestade baixava, varrendo os ares. Fecharam-se portas e janelas, e bem cedo buscaram todos os seus aposentos.
Dina estava de mau humor. Ela ordenou à camareira que trouxesse doces e frutas, e, em seguida, dispensou-a. Nem bem Marieta abandonou o aposento, iniciou os seus
preparativos. Em primeiro lugar abriu a porta do armário secreto e retirou dele, cuidadosamente, o vaso e a taça. Lavou-os e poliu-os. Ficou satisfeita quando viu
o cristal e o ouro cintilantes. Depois agitou o vaso, a fim de verificar se não se secara o conteúdo. O líquido cor de âmbar parecia ainda fresco, porém grosso como
um mel. Deixou tudo sobre a mesa e iniciou a sua toalete. Dina queria apresentar-se mais bela do que nunca. Um toucador de seda branco, debruado de rendas, envolveu
o seu corpo esbelto, sobre cujo dorso despencavam cascateando em ondas negras, os seus cabelos soltos. Contendo a cabeleira, atou-a com uma fita guarnecida de pedras
preciosas, presente de seu pai adotivo. O relógio batia onze horas: Dina já estava pronta! Ela aproximou-se da mesa e abriu a ânfora de cristal. Um aroma embriagante
veio ao seu encontro e encheu o quarto todo. Embora ativo, era um perfume agradabilíssimo.
-- O mal aqui, é que não sei qual a porção que se deve tomar! Murmurou. Ajuntarei um pouco de vinho, para que
Pawel não desconfie. E preparou para o esposo uma taça. Quando o relógio bateu onze e meia, Dina resolveu esvaziar a sua porção. Precisava dar tempo ao elixir de
fazer, convenientemente, o seu efeito. Ao jantar, Pawel dissera-lhe que viria à meia-noite. Dispunha, pois, do tempo exato. Ocupada com os seus preparativos, Dina
não notava a fúria da tempestade que se aproximava mais e mais. Acercara-se da mesa e experimentava a bebida, que lhe pareceu muito doce. Esvaziou então, de uma
vez, o conteúdo da taça, sem ao menos considerar o risco que corria, ingerindo o líquido desconhecido e centenário. Um trovão formidável fez estremecer o castelo
até os seus alicerces, e um relâmpago ofuscante iluminou o aposento com sua luz azulada. Dina estremeceu. Sentiu que um entorpecimento atacava-a. Um segundo trovão,
que fez retinirem as vidraças nos seus caixilhos, levou-a a cair, assustada, numa poltrona. Quis então erguer-se e não pode. Os seus membros tinhamse paralisado.
Um pavor terrível acometeu-a e lhe comprimiu a garganta. Não conseguiu gritar. Diante de seus olhos tudo se obscurecia, e uma densa névoa pareceu envolvê-la. Sentiu
uma dor atroz correndo-lhe o corpo que parecia devorado pelas chamas eternas. Gritos horríveis chegavam aos seus ouvidos, soluços, gemidos, interrompido por sonoras
gargalhadas. Então pareceu-lhe estar numa fechada mata, descalça, de saiote curto, correndo por um trilho em direção à clareira. Nesta via, deitados e de pé, ao
redor de uma fogueira, homens de negras cabeleiras, em trajes coloridos. Um pouco à distância, sobre um cepo, um idoso senhor, em ricas vestimentas. Seus olhos não
denunciavam a idade que seus cabelos brancos provavam. Brilhavam e ardiam como labaredas. E diante desse belo signore Dina dançava oferecendo-lhe o copo de vinho
ao qual juntara, um pouco antes e às pressas, algumas gotas de um líquido vermelho. O homem sorveu o vinho, ergueu-se e atirou aos homens, junto da fogueira, uma
bolsa de ouro. Depois assentou-se à frente da sua montaria e galopou com ela
através das florestas, em direção ao castelo. Então achou-se outra vez no seu quarto. Tinha na mão a taça cheia
do elixir. Abrindo-se, o nicho da parede, deu passagem ao vulto de um homem. Viu-lhe o rosto ameaçador, quando aproximou-se. Ela quis desviar-se, quis fugir, mas
não conseguiu mover-se. O homem parou diante dela. Com um sorriso demoníaco, que contraía todo o seu rosto, falou numa voz rouca: -- Até que enfim a justiça te alcança,
criatura miserável! Tu és a maldição que pesa sobre Montinhoso. Morres agora, também tu, por meio do elixir que tu mesma preparaste. Maldita sejas! O braço do homem
desceu violentamente sobre a cabeça de Dina. Ela sentiu que sua fronte bipartia-se. Depois perdeu a consciência... A tempestade bramia com violência que parecia
sem fim. Os trovões, que nos recôncavos das montanhas encontravam eco, fundiamse num único bramido que rolava ameaçando abalar o castelo nos seus mais profundos
fundamentos. Ininterruptamente, raios amarelos de enxofre, de ofuscante claridade, cortavam o firmamento e banhavam montes, matas, edifícios, numa luz fantasmagórica.
As árvores seculares, arcavam sob o peso das saraivadas do vento, a galharia rugia como um mar encapelado. Ninguém no castelo conseguiu dormir. Lolo e Miguel ergueram-se
e buscaram a proximidade da genitora, em cujo quarto assentaram-se conversando baixinho. Larissa saltou da cama para ir ver Valéria. A porta do quarto da moça estava
fechada. Atendendo ao apelo da madrinha, ela respondeu que já se achava deitada e que não tinha medo. Larissa regressou aborrecida ao seu quarto. Aquela transformação
que vinha notando em Valéria, não lhe indicava boa coisa. Decidiu orar, pedindo a Deus que a noite transcorresse sem desastres no castelo. No seu aposento, Rothschild
andava inquieto de um lado para o outro. Não sabia o que fazer. Queria e precisava falar com Valéria. explicar-lhe tudo, mas com o mau tempo, não se atrevia a tomar
nenhuma providência, não se atrevia a dar um passo sequer, nos aposentos abandonados e misteriosos. O barulho produzido pelos trovões, o ulular do furacão, interrompido
e acompanhado pelas ofuscantes
descargas elétricas, parecia um caos de vozes gigantescas e sobrenaturais. E de permeio a tudo isso, ouviu, de
repente, o som longínquo de um sino que se pôs a badalar enlouquecido. Rothschild supôs que o vento tivesse arrebentado o velho sino da torre. Uma sensação dolorosa
possuiu-lhe o espírito e obrigou-o a buscar assento. Mas um grito desesperado fê-lo erguer-se rápido: -- Paulo!... Paulo!... ouviu gritarem. -- Deus do céu, isto
não terá mais fim? Por toda a parte persegue-me esse apelo terrível! Preciso ver Dina... Nisto bateram à porta secreta. Seria Valéria? Teria ela vindo, apesar do
mau tempo? Rapidamente abriu. Uma luz líquida ofuscou-o. Do outro lado, todas as velas estavam acesas. Ao centro do aposento, viu Giovana num vestido branco, bordado
a prata. O toucador branco, nupcial, prendia-lhe tufos de véus tênues sobre a fronte. Apesar do seu olhar, por vezes frouxamente adormecido, próprio do seu estado
sonambúlico, ela parecia divinamente bela. -- Tu vens por fim, Paulo! Oh! Esse tempo horrível na noite das nossas núpcias... Mas tu estás outra vez com esses feios
trajes! Tiraos! São como um muro que nos separa... Assim não quero ver-te! Troca já esses fatos. Tens ali as tuas vestes de festa, que eu mesma trouxe. Apressa-te!
Não ouves por acaso os sinos que tangem para as nossas bodas? Depressa! Eu te espero. Rothschild não pode responder. Como se sob o influxo de um encantamento, dirigiu-se
ao seu quarto e envergou os trajes medievais. Com cada peça que vestia, parecia que o seu ânimo se modificava. Estava, aos poucos, se distanciando do presente. Com
prazer, viu no espelho que já não era Pawel Rothschild, mas Paulo de Montinhoso. Giovana tinha razão ao querer apenas amar a Paulo. Pawel não podia comparar-se-lhe
em beleza e brilho! passou-lhe pela mente. E um sorriso voluptuoso entreabria-lhe os lábios, enquanto fechava o cinto de ouro. Olhou-se outra vez ao espelho e passou,
então, contente consigo mesmo, ao quarto de Giovana. Já se esquecera completamente de
Valéria. O presente substituíra-se pelo passado. Quando Giovana viuo, ergueu-se de um salto, estendendo-lhe os
braços. -- Como és belo, Paulo! Eu te amo assim. Arrebatadamente ele tomou-a nos braços, beijando-a, e lhe jurou o seu amor. -- Falamos agora pela última vez do
nosso amor, Paulo. O sino não tange para festejar a nossa boda, mas para chorar a nossa morte. Ouves como a tempestade ruge e o trovão ribomba? Os espíritos erguem-se
do passado para a terrível vingança... -- Mas não fales de morte, Giovana! A nossa frente está o amor e a felicidade, e infindáveis hão de ser para nós, e fantasticamente
belas, as horas do futuro. Um trovão fez estremecerem as paredes. Um raio parecia ter atingido a torre do castelo, tão forte fora o abalo. -- Deixa-me!... Soou a
hora!... Quem quer que sejas, Paulo de Montinhoso, ou Pawel Borisowitch, és um traidor! Aqui entre estas paredes, tu, um homem casado, como fizeste outrora, há séculos
passados, quebraste o teu juramento e me desonraste, entregando-me à vergonha e à morte! -- Giovana, estás fantasiando! Gritou Rothschild, tentando de novo abraçar
a moça. Valéria repeliu-o de novo, correu para o leito e caiu sobre ele. Mas ergueu-se no mesmo instante, rápida, tomou uma taça que estava sobre a mesma e esvaziou-a
de um trago. -- Eu morro, disse ela roucamente mas tu não me escaparás, Paulo! Rothschild quis arrebatar-lhe o veneno, mas quando chegou aos degraus do estrado,
junto ao leito, Valéria arremessou de si a taça vazia e, agarrando-o pelo braço, obrigou-o a ajoelhar-se. Um calafrio glacial percorria-lhe o corpo.Com os olhos
muito abertos fitava ela aquele que subjugara. E gritou então desesperada: -- Miserável! Uma vez mais me atraíste para cá, e me desonraste! Com estas palavras,
sacudia-lhe o braço, sem largá-lo. Exânime, ca-
iu então, sobre as almofadas e ficou ali, fria e enrijecida. Rothschild procurou libertar sua mão, mas inutilmente.
Como um bracelete de aço, aqueles dedos poderosos abarcavam o seu punho recordando-lhe o destino de Paulo de Montinhoso. Um terror pânico sacudiu-o. Pareceu-lhe
já estar sentindo o bisturi médico em seu braço, o corte que o livraria daquela garra fatídica. De seu peito desprendeu-se um grito angustioso, desesperado, que
ecoou através de todo o castelo. Seus olhos fecharam-se, e, como que moribundo, ele inclinou-se para o solo, caindo aos pés da cama... X X X Pálida e nervosa, Helena
olhava os filhos, sobre o divã. Com o som pujante do último trovão, todos os três se tinham assustado tanto que se aconchegaram juntinhos. Houve depois um grande
silêncio... A tempestade amainava. E nesse silêncio foi que ecoou então aquele grito estrídulo e horrorizado como o grito de angústia de um animal sacrificado. --
Deus onipotente! O que foi isto? Miguel ergueu-se de um salto. -- Ouviste o grito, mamãe? Veio da direção do quarto de Pawel. Sim, Miguel... Foi isso mesmo... --
Irei ver o que se passa com ele, e se estiver dormindo, eu o despertarei. Há de estar acordado, certamente... Disse Miguel resoluto. -- Quem poderia dormir com
esta tempestade? Mas... tu vais sozinho? Não tens medo? -- Que juízo fazes de mim, mamãe? Eu não vim para cá porque tivesse medo, mas para encorajar-te e à Lolo.
Mas agora irei... A tempestade está amainando... Enquanto Miguel acendia uma vela, bateram na porta. Era Larissa, que, do lado de fora, perguntava se tinham ouvido
o grito.
-- Eu temia que tivesse acontecido qualquer coisa a Valéria. Bati na porta do quarto dela e não me respondeu. Oh!
Meu Deus, que ela não tenha tido outra vez um daqueles ataques! Ao menos se eu pudesse entrar lá! Larissa lamentava chorando. -- O grito veio, não tenho dúvidas,
da direção do quarto de Pawel. Irei lá imediatamente, verificar o que há. Nervosas as damas juntaram-se conversando aos cochichos. Algum tempo depois, desiludido,
Miguel regressava. -- Não compreendo o que se está passando. O quarto de Pawel está fechado. Ele não atendeu ao meu chamado, nem com os golpes que desfechei na porta,
e que teriam acordado um morto. -- Mas eu pensei nisso, também, e fui ao quarto de Dina. Pela fresta da porta, vi um raio de luz e supus que Pawel estivesse com
ela. Como não ouvisse vozes, abaixei-me e espiei pelo buraco da fechadura. Dina estava no penteador sozinha, assentada à mesa, com uma taça nas mãos. Sem se mover
olhava fixamente para a porta. Chamei por ela, mas não obtive resposta! Que idéia original esta! Iluminar profundamente o quarto e, com uma taça nas mãos, sentar-se
absorta à mesa... Concluiu Miguel. -- Possivelmente espera Pawel, tão mergulhada em pensamentos, que nem ouve ou vê coisa nenhuma... Disse Helena. -- Mas neste
caso, onde está Pawel? Quem sabe se adoeceu? Exclamou Lolo. Ah! Miguel, eu sei agora como poderemos entrar no quarto dele! Sabes, naquele corredor que passa junto
ao quarto existe um pequeno nicho, aquele em que guardamos nossas capas e galochas. Quando, há dias, eu procurava ali um livro que vi sobre uma prateleira, não pude
alcançá-lo e segurei-me para não perder o equilíbrio, a um prego que estava fincado na parede. Nem bem tinha tocado nesse prego, a parede moveu-se, dando passagem
para o quarto de vestir de Pawel. Pretendia contar-te isto, mas esqueci-me. Este castelo tem, com certeza, ainda outras muitas passagens e portas secretas. Agora
poderemos nos utilizar desta que descobri e penetrar no quarto.
Vai, abre a porta, assim como eu abri-a involuntariamente, e ficarás sabendo se Pawel está doente, ou se aconteceu
qualquer coisa. Miguel saiu imediatamente do quarto, deixando as senhoras ocupadas em comentar os sucessos da noite. Sem dificuldade encontrou a passagem e penetrou
no vestiário de Pawel. O escritório, à esquerda, estava às escuras, mas no dormitório viu luzes. Cauteloso aproximou-se, mas transpôs o limiar estupefato. O quarto
estava vazio, a cama ainda não usada! Diante do espelho grande, as roupas de Pawel, em desordem, espalhadas pelo chão. Admirado Miguel olhou à sua volta e viu que
a mesa e estante estavam afastadas da parede. A porta secreta, que até então ignorava, achava-se aberta. -- Oh! O malandro. Enquanto faz-nos esperar por Dionid Tonilim,
penetra nos aposentos murados! Já descobriu a passagem e diverte-se nos velhos compartimentos, e por sinal que iluminando-os feericamente. Espera lá um pouco amiguinho!
Eu te descobri... , murmurou Miguel! Aproximou-se cautelosamente da porta pela qual vinha, em borbotões, a luz da outra sala. Um ar pesado, impregnado de um esquisito
odor, veio ao seu encontro. Curioso, contemplou o aposento com as suas inúmeras velas e candelabros. Seu olhar percorreu o quarto e se deteve no leito. Emudecido
de espanto e temor, concentrou-se ali. Num vestido branco, maravilhoso, Valéria estava deitada sobre a colcha, imóvel como uma morta, e de olhos cerrados. Aos seus
pés ajoelhava-se o terrível Paulo de Montinhoso, em seus belos e ricos trajes medievais. Valéria prendia, pelo punho, o Maledetto. Miguel sentiu-se estarrecer com
aquela visão. A garganta se lhe comprimiu, o seu coração pareceu parar. Com todas as forças lutou contra aquela fraqueza, virou nos calcanhares e correu, como que
perseguido, através do quarto de Rothschild, forçou violentamente a porta e correu pelo corredor afora até o quarto de sua mãe onde, exausto, caiu ao solo. -- Valéria...
Montinhoso... Maledetto... estão mortos sobre a cama antiga! Ela segurou o fantasma pelo pulso... murmurou a custo, e perdeu os sentidos.
Helena julgou que o moço tivesse perdido a razão, deu um grito e caiu ajoelhada ao seu lado. Larissa, como morta,
persistia assentada, sem poder dizer palavra. Só Lolo conservou a presença de espírito. Com as pernas trêmulas, foi buscar um vidro de sais voláteis que entregou
à mãe para fazer Miguel tornar a si. Ela própria foi cuidar de Larissa, que, em breve, recompunha-se. Larissa queria que Lolo a conduzisse imediatamente ao quarto
de Rothschild, para que pudesse constatar, com os seus próprios olhos, o que sucedera. Devagar, foi se movendo, vencendo a iminência da síncope. Lolo resolveu chamar
Savéria, antes de irem ver o que acontecera a Valéria e Rothschild. A velha estava tresnoitada e abatida. Também não tinha conseguido conciliar o sono, com a tempestade.
Lolo referiu-lhe, em poucas palavras, o que se passava. -- Vem comigo, Savéria! É preciso despertar a senhora Baronesa e levá-la também. Ela poderá nos auxiliar,
em caso de necessidade. Não quero que a criadagem saiba do que se passa aqui, e por isso te peço que conserves tudo em segredo. -- Ah! Signora, podeis estar tranqüila!
A velha Savéria saberá merecer, e não malbaratar, a vossa confiança. O coração diz-me, que com o signor Barão deve se ter dado qualquer coisa de grave. Embalde não
foi, por certo, que os monges entoaram o De Profundis tantas vezes, e que a signora Yolanda apareceu. A necessidade gera heróis, e Lolo pode demonstrar isso nesse
caso. Depois de certificar-se mais uma vez de que nem a mãe nem Larissa eram capazes de auxiliá-las, e de que Miguel continuava sem sentidos, a moça acendeu uma
vela e procurou, na companhia da Savéria, o quarto de Dina. -- Vede, signorina, ainda há luz no quarto da Baronesa, e ela, provavelmente, não dormiu ainda! -- Tanto
melhor. Não perderemos tempo nesse caso, esperando que ela se vista. Respondeu Lolo. E bateu na porta. Não obtendo resposta, Lolo bateu outra vez, com mais força.
Ainda nada! Entraram então as duas, mas pararam irresolutas, entrefi-
tando-se perplexas. Diante delas, assentada junto a mesa, estava Dina, com a taça entre os dedos, fitando-as singularmente,
com uma expressão quase de medo. Seus lábios estavam entreabertos. -- Se estás acordada, Dina, por que não nos respondeste? Perguntou Lolo, um tanto hesitante. --
O que aconteceu à signora? Savéria aproximou-se de Dina e tomou-lhe a mão. -- Santa Maria! Ela está morta e transformada em estátua!... Apesar de terrivelmente assustada,
Lolo se aproximou. Era impossível que Dina estivesse morta e petrificada daquela maneira. Tocou-a no rosto e no pescoço. A sua pele estava fria e rígida. Lolo não
pode acreditar que uma pessoa que estava assentada como viva, pudesse ser defunta. O que significava aquilo tudo, Santo Deus? Savéria apontou o vaso de cristal e
a taça que Dina tinha na mão. Ela encontrou e bebeu o veneno dos Montinhoso, o filtro que transforma uma pessoa numa estátua... Balbuciou trêmula. -- Savéria,
precisamos chamar um médico! Talvez ela não esteja morta, mas num estado de catalepsia. Pode ser salva com um antídoto! Disse Lolo. Enxugando o suor do rosto, acrescentou:
-- Precisamos mandar um portador imediatamente, à vila. -- Eu irei, signorina, bem depressa à casa do Dr. Pasqualle. Não mora longe daqui, e foi um bom amigo do
velho Conde Tadeu. Ele conhecia os segredos dos Montinhoso, e. embora já de há muito não clinique, virá imediatamente, neste caso excepcional. -- Não, Savéria! Não
permitirei que saias do meu lado! Precisa mos ir ainda ao quarto do Barão, e tenho horror só de pensar em ir só! -- Então mandarei Riccioto ao médico. Vinde, signorina.
Fecharam cuidadosamente a porta e viram, ao se voltarem, o velho Bernardino que lhes vinha ao encontro. Com algumas palavras, Savéria explicou o que se passava e
ordenou-lhe fosse chamar o médico, o que Bernardino prometeu fazer imediatamente. A porta do quarto de Rothschild estava aberta de par em par, como Miguel a deixara.
Como o lampião aceso ainda continuasse sobre a mesa, a passagem para os aposentos secretos foi logo vista. -- Deus
onipotente! Eis aqui a porta! -- Jesus Maria! O que vemos lá! Sem dar atenção à velha, Lolo entrara no quarto de Giovana. Movida pela curiosidade, Savéria seguira-a,
mas quando viram o grupo singular, nos velhos trajes medievais, estacaram. -- Estes são... Pawel e Valéria! E estão mortos ambos... Mas por que vestiram estas roupas?
Murmurou Lolo consigo mesma, sem afastar o olhar da cena. -- Os maus espíritos se apossaram deles e os assassinaram, Jesus Maria! Vede como ela o segura pelo pulso!
Murmurava Savéria com os olhos rasos d'água. -- Voltemos ao quarto de minha mãe, Savéria. Antes da chegada do médico, nada poderemos fazer. As pernas de Lolo negaram-se
a prosseguir, quando ela se encontrou no quarto de Rothschild. Teve que assentar-se para readquirir novas forças. Depois fecharam cuidadosamente a porta secreta,
a fim de que nenhum curioso viesse a ver aquele quadro terrível, e voltaram ao quarto de Helena. Miguel abria os olhos naquele instante, e demonstrava um tal estado
de nervosismo, que sua mãe quis acomodálo no leito. Larissa ainda se encontrava abobalhada no divã. E quando ouviu falar da morte de Valéria, perdeu os sentidos.
Acomodando Miguel no leito, Savéria, Helena e Lolo foram cuidar da desfalecida. Entrementes contaram a horrível morte de Dina. Tal notícia produziu em Helena uma
emoção aniquiladora, que obrigou-a igualmente, a procurar o leito. Todos padeciam, como que na atmosfera tenebrosa de um pesadelo. Com impaciência, aguardavam a
chegada do Dr. Pasqualle. Finalmente, cerca de três horas depois, chegaram Bernardino e o médico. O Dr. Pasqualle era um homem idoso, de barbas brancas. O seu rosto
tranqüilo e belo, denotava bondade e perspicácia. Em primeiro lugar, e enquanto ouvia a narrativa de Lolo, cuidou de Miguel. Depois pediu que o conduzissem a Dina.
Enquanto o médico examinava aten-
tamente a morta, desviando sua atenção, de quando em quando para a ânfora de cristal e a taça, Lolo submetia o
quarto a uma rigorosa inspeção. Queria saber de onde Dina retirara as peças que incontestavelmente continham o veneno. Assim, chegou ao gobelim, que continha a capelinha
como enfeite. A porta da capela estava apenas encostada, pois, que, ao abri-la, Dina pensava em recolocar ali os seus pertences. Lolo aproximou a vela dos entalhes
e chamou o médico. -- Vede, doutor! Aqui esteve, sem dúvida, oculto o veneno... Dina encontrou o elixir de Yolanda e bebeu-o... -- Mas não foi o elixir do amor que
a infeliz ingeriu, e sim o veneno terrível que desconhecemos ainda e que produziu a sua morte imediata! disse o Dr. Pasqualle. Meu amigo, o falecido Conde de Montinhoso,
falou-me desse veneno. As antigas crônicas fazem referências a respeito. O Conde Tadeu, porém, procurou-o inutilmente. Nesse tempo, eu não acreditava na existência
de uma droga capaz de provocar tais efeitos, mas agora vejo que elaborava em erro! Quereis, entretanto, conduzir-me às outras vítimas desta noite terrível? Inteiramente
confusa com tudo aquilo quanto ouvira e vira, Lolo conduziu o médico ao quarto onde se encontravam Valéria e Rothschild. Permaneciam ambos na mesma posição. Quando
o médico defrontou o grupo macabro, estremeceu e persignou-se. -- Deus bondoso! Os mortos se levantam... Disse baixinho. Curvou-se sobre Rothschild e tomou-lhe
a mão que, como a de Valéria, estava fria como o mármore. -- Um segredo tenebroso parece pairar sobre esta repetição inexplicável de sucessos de tempos idos! Vosso
primo assemelha-se assombrosamente ao infeliz Paulo de Montinhoso, ao Maledetto da lenda. Seu retrato foi-me mostrado muitas vezes pelo meu amigo. Por que motivo
esta jovem prende-lhe a mão, do mesmo modo como outrora uma mulher prendeu a mão de Paulo de Montinhoso? É incompreensível! Nisto o médico viu a taça que Valéria
arremessara de si.
-- Havia morfina nesta taça... Disse depois de examinar o recipiente. > Tentou então soltar os dedos de Valéria
da mão de Rothschild, mas não o conseguiu. -- Ele vive, mas está num estado especial de letargia. A donzela, porém, tanto quanto posso constatar, não despertará
infelizmente mais. O terrível, porém, é que a mão dele não pode ser libertada dos dedos dela. Talvez que, para isso, para libertar o vivo da morta, seja preciso
amputar-lhe a mão. Não julgo conveniente despertá-lo agora. Vendo-se prisioneiro de um cadáver, poderá sofrer um colapso cardíaco, ou perder a razão! Ouvindo aquelas
palavras, segundo as quais talvez Rothschild precisasse sofrer amputação de uma mão, Lolo cobriu o rosto com as mãos, sentindo uma profunda dor no íntimo. Tudo nela
opôs-se a que aquilo se desse. E naquele momento nem compreendera sequer qual mão pretendia o médico amputar. Pôs-se a chorar baixinho. -- Aleijar o pobre Pawel!
Ah! Compreendo agora o significado do sinal encarnado! Soluçou desesperada! O médico não a compreendia bem, tomou-lhe a mão apertando-a delicadamente. -- Sê forte,
prezada senhorinha! Não farei a operação já, pois não possuo aqui, os instrumentos cirúrgicos necessários! Mas sobretudo não o faço por não me sentir devidamente
instruído, em face deste caso excepcional. Já vi muita coisa, e muito me ensinou o meu amigo, o Conde Tadeu, e creio poder dizer, com segurança, que aqui necessitamos
mais de um médium de boas faculdades do que de um médico. À palavra médium, Lolo ergueu os olhos, nos quais brilhou um raio de esperança. -- Temos um velho amigo
que é ocultista, e cuja presença aqui esperamos a todo momento... disse. -- Telegrafai-lhe então para que se apresse. De minha parte estarei sempre ao vosso dispor.
Por vossa mãe, a outra senhora e pelo vosso irmão, nada tendes a temer. Precisam apenas de repouso. Dei-lhes
um narcótico para que durmam a noite toda. Amanhã se levantarão restabelecidos. Lolo agradeceu ao médico e acompanhou-o
até a arcada da porta. Quando regressou, cuidou de fechar o quarto de Dina e de Rothschild. Eram cinco horas da manhã quando pode descansar um pouco. Desceu ao quintal
para se refrescar na brisa da madrugada. Sentia-se nervosa demais para dormir, e preferiu, por isso, dar um passeio. Trocou algumas palavras com Savéria e resolveu
mandar Riccioto à vila, a fim de passar um telegrama a Dionid Tonilim. Quando ia se dirigir ao quarto para redigir o telegrama, ouviu barulho no portão e viu três
homens que se acercaram. Com indizível satisfação, reconheceu num deles o amigo Dionid Tonilim, em cuja companhia vinha um cavalheiro alto, de tez bronzeada e severa
expressão fisionômica. O terceiro personagem era um aldeão que guiava um jumento carregado com as bagagens dos viajantes. Pessoalmente, Tonilim portava uma maleta
alongada, de couro amarelo e biqueiras de bronze. O desconhecido trazia uma volumosa caixa embrulhada. Com os olhos marejados de lágrimas, Lolo correu ao encontro
de Tonilim. -- Deus seja louvado, Dionid, por teres chegado! O bom Deus e a Virgem Maria atenderam às minhas súplicas e te conduziram para cá. O aspecto da jovem
denunciava aos dois homens que qualquer coisa de grave acontecera. -- Tranqüiliza-te, querida menina! Disse Tonilim dirigindo-se a Lôlo. Permita-me que te apresente
o meu ilustre amigo, Sir Gerald Grey. Se alguém no mundo pode ajudar-te, é ele, sem dúvida. Conduza-nos, antes, à tua mãe, e manda que nos preparem quartos onde
possamos guardar esta preciosa bagagem. -- Mamãe, Miguel e Larissa dormem... O médico, que acaba de sair daqui, deu-lhes um narcótico. Conduzir-vos-ei diretamente
aos vossos aposentos, a fim de que possais estar à vontade. Savéria vos trará a primeira refeição e enquanto vos alimentardes, relatarei tudo quanto aconteceu!
Respondeu Lolo que desde a chegada de Tonilim se reanimara.
Ao penetrarem no castelo, um pé de vento inesperado alcançouos, fortíssimo, dobrando as árvores e levantando as
folhas mortas. Erguendo a cabeça, Sir Gerald sorriu. Um quarto de hora mais tarde, os recém-chegados se apresentaram no refeitório, onde lhes foi servido leite,
ovos e queijo. Numa pequena chaleira fervia a água para o chá e o café. Lolo servia os hóspedes e observava Sir Gerald que parecia absorvido na refeição, mas que,
contudo, ouvia atentamente a sua exposição. Era um homem ainda jovem, de aspecto simpático e tranqüilo. Seu rosto lembrava antes o tipo indiano que o inglês. Seus
olhos negros eram de severa expressão e refletiam desusada energia e firmeza. Quando Lolo terminou sua narrativa, Sir Gerald ergueu-se imediatamente. -- Por obséquio,
dá-nos as chaves dos respectivos aposentos, e recolhe-te para o repouso de que tanto necessitas, depois desta noite de vigília! Falou dirigindo-se a Lolo. Nós
iremos sozinhos examinar tudo, para poupar-te novas excitações. Tem a bondade, Dionid, trazeme a tua caixa. Dionid atendeu imediatamente, enquanto Lolo recolhia-se
ao quarto da genitora. Dirigindo-se aos aposentos de Dina, Sir Gerald fez uma observação: -- Eis uma menina amável e corajosa. Foi providencial a idéia do doutor,
ministrando os soporíferos às damas. Poderemos agir desembaraçadamente, sem sermos importunados por perguntas inúteis. No quarto de Dina, tudo continuava como dantes.
Enquanto Tonilim contemplava cheio de admiração, a invulgar estátua, Sir Gerald examinava o vaso de cristal. -- Conheço este veneno. Admira-me que uma cigana vulgar
tenha podido prepará-lo. Precisamos lacrar esta ânfora. Tocou o rosto de Dina. Não há mais salvação para esta infeliz. Está morta. O que nos resta a fazer é desenrijecer-lhe
o corpo, para que possa caber num esquife. Que dizes, Dionid? Poderíamos obter aqui uma banheira e alguns baldes de água quente? -- Informar-me-ei imediatamente.
Alguns minutos depois, Bernardino e Savéria, os únicos admitidos a auxiliá-los, traziam uma grande banheira que,
ato contínuo, encheram de água. Em seguida Sir Gerald deitou na tépida água, a metade do líquido que continha um vidro azul. A água, espumando, tingiu-se de uma
coloração azul-safira. Abriram então o roupão de Dina com uma tesoura e depuseram o seu corpo na banheira que, logo em seguida, recobriram com um grande lençol.
-- Ficará assim, por enquanto. Vejamos os outros dois. No momento, não nos resta mais a fazer aqui! Quando penetraram na velha alcova, ouviram um estridente assovio,
partindo da chaminé da lareira. Seguiu-se um forte rumor, como se pedregulhos e areia estivessem sendo arremessados contra as vidraças. -- Temos muito trabalho a
realizar aqui, Dionid! Disse Sir Gerald. Aproximou-se da cama e pôs-se a examinar Valéria e Rothschild com extrema atenção. -- Os sortilégios do passado os agrilhoam...
Mas como nesta vida não cometeram nenhum delito, e estão, apenas isto, subjugados por influências estranhas, espero poder libertá-los e salvá-los, a ambos. A jovem
se envenenou; felizmente, porém, a dose foi insuficiente para produzir a morte! Caiu num sono letárgico que, por sinal, já enfraqueceu bastante o seu organismo.
Chegamos bem a tempo!!! Tirou de uma caixa um cálice de prata, encheu-o até o meio com um líquido vermelho e juntou-lhe algumas gotas de uma essência incolor. Com
o auxílio de Tonilim, conseguiu descerrar os lábios de Valéria e fazê-la ingerir a bebida. O corpo de Rothschild embaraçava, naturalmente, muito esse trabalho. Contudo
puderam levá-lo a cabo, para satisfação de Sir Gerald. Instantes depois, o corpo de Valéria era sacudido por um estremecimento e moveu-se, contorcendo-se em dores.
Depois tornou a cair, prostrado. Apesar de todos esses movimentos violentos, os seus dedos não largaram o punho de Rothschild.
-- O antídoto já fez o seu efeito. Agora, pelo menos, já não há o perigo do sono letárgico passar à morte. Não
posso dizer, com certeza, por quanto tempo durará este sono cataléptico. Em todo o caso, precisamos, antes que desperte a jovem, libertar o Barão das suas garras,
para que se lhe conserve a mão! Entretanto, isto só mais tarde poderemos fazer. Por enquanto melhoremos, tanto quanto possível, a sua posição. A atmosfera aqui é
sobremaneira pesada. Se me trouxeres a maleta, meu amigo, poderemos queimar aqui algumas ervas. Enquanto Dionid ausentava-se, atendendo ao pedido do amigo, Sir Gerald
umedecia os lábios e a fronte de Rothschild com uma droga encarnada, que, igualmente, aspergiu num lenço que colocou sobre o rosto do moço. Em seguida lançando mão
do banquinho, ergueu-lhe o corpo dos degraus do leito, recostou-o e ajeitou-lhe a cabeça entre almofadas. Depois de tê-lo deixado assim, em posição mais cômoda,
tirou do colo, onde ocultava uma varinha mágica (*). Traçou com ela alguns círculos no ar, recitando fórmulas. Alguma coisa que se assemelhava a uma serpente de
fogo, circundou, nesse momento, os dois seres inanimados. Um grito estridente soou no ar. Das dobras das cobertas dos leitos, surgiram três pequeninas chamas verdes
que foram desaparecer junto à chaminé da lareira. Por esse tempo, Tonilim voltava com a mala que ambos puseram-se a esvaziar. Do seu interior retiraram um grande
pano carmesim, bordado com sinais cabalísticos, que estenderam sobre a mesa, sobre a qual colocaram ainda um crucifixo de sândalo e quatro pequenos tripés, que,
incontinente, encheram de toda a sorte de ervas, as quais cobriram com pós coloridos, umedecidos com essências desconhecidas. Depois, Sir Gerald colocou sobre o
crucifixo um candelabro de sete braços, contendo velas vermelhas, colocou-se diante da mesa, tomou de sua vara mágica e inclinouse para o Norte, o Sul, o Leste e
o Oeste, evocando o espírito dos elementos. Em seguida, murmurando fórmulas incompreensíveis, descreveu novos círculos no ar. Logo se manifestou, na ponta da vara,
uma chama que, se desprendendo, foi acender o candelabro de sete braços e os tripés. Com um pequeno estalido, as ervas se incendiaram
e começaram a se consumir, ardendo nas mais variadas cores. Então, o quarto foi se impregnando de forte e vivificante
aroma... -- Até a meia-noite, não faremos mais nada! Disse Sir Gerald algum tempo depois. Por isso proponho-te, meu amigo, que realizemos uma investigação nos
compartimentos secretos. Mais tarde teremos que submetê-los a uma rigorosa limpeza. Avançando na inspeção dos compartimentos, com grande admiração Tonilim apercebeu-se
da flagrante semelhança existente entre Rothschild e Paulo de Montinhoso, Valéria e Giovana. O retrato grande, que reproduzia o esquife de Giovana na capela, produziu
em Tonilim uma profunda impressão. Sir Gerald, entretanto, não perdera a sua tranqüilidade, parecendo partilhar, infimamente de todos aqueles fatos assombrosos.
Ele notou o nervosismo que se apoderara de Tonilim.

(*) Estas práticas nada têm a ver com o Espiritismo. O leitor interessado poderá consultar a este respeito o Capitulo IX de O LIVRO DOS ESPíRITOS, de Kardec, que
trata de Intervenção dos Espíritos no Mundo Corporal.

-- São realmente, muito raras as oportunidades que se tem de constatar, tão positivamente, os efeitos do passado irrompendo assim no presente! Disse sorrindo.
Este velho castelo e os infelizes que participaram do seu passado tenebroso, são o atestado fiel de todas estas verdades. Desenrola-se agora, aqui, a parte final
de um carma iniciado há séculos. Ainda que nem sempre passível de uma observação objetiva, o carma sempre encontra o culpado, castigando-o, severa e inexoravelmente,
pelos delitos de outrora. Ninguém foge a esta lei. Toda a infração, todo o pecado, contém em si mesmo, o castigo que não perdoa, a expiação inevitável que, se não
alcança o culpado na mesma existência, vai alcançá-lo nas reencarnações futuras.
Entre os retratos, encontraram um que representava dama de singular beleza. Na mão segurava ela a mesma ânfora,
a mesma taça, que encontraram com Dina. -- Esta é, sem dúvida, a legendária Yolanda, a cigana. Que disparate fazer-se pintar assim, com esse terrível veneno nas
mãos! Comentou Tonilim. Sir Gerald meneava a cabeça diante do retrato: -- Esta mulher tinha conhecimentos que me deixam perplexo. Esse veneno, em combinação com
outros ingredientes, pode exercer uma benéfica influência sobre o organismo humano. Mas é, indubitavelmente, uma provocação, fazer-se pintar assim, com o frasco
na mão. Quando terminaram o giro de inspeção, fecharam o quarto de Rothschild e se dirigiram ao salão. Lolo, que já descansara um pouco esperava ansiosamente
os dois senhores. Quando afinal, entraram, referiram-lhe o que julgaram conveniente, dando-lhe ligeiro relato dos resultados obtidos. A notícia do falecimento de
Dina produziu na moça um profundo pesar. Ao mesmo tempo, entretanto, alegrou-se com a notícia de que Valéria e Rotschild não estavam mortos, mas em estado de profunda
catalepsia. Confabularam então quanto à causa mortis que deveria ser atribuída a Dina, publicamente. Tratava-se de evitar toda e qualquer murmuração inútil. Decidiu-se
então, pedir ao Dr. Pasqualle que voltasse ao castelo, sendo que, por essa ocasião lhe seria solicitado um atestado de óbito por colapso cardíaco. Por outro lado,
resolveu-se que Bernardino fosse nesse mesmo dia à cidade, em busca de um esquife. Sir Gerald insistia no sentido de a morta ser removida o quanto antes do castelo.
Lolo prontificou-se a dar as ordens necessárias. Fez, então, servir um almoço farto, ao qual se entregaram todos, cheios de apetite. Os dois homens abstiveram-se
de tocar os pratos de carnes. Finda a refeição,
Sir Gerald entregou a Lôlo um pequeno vidro, com cujo conteúdo deveria friccionar a fronte do irmão e das duas
senhoras. O que sobrasse, deveria ser, num máximo de dez gotas, vertido num copo de vinho. O medicamento os restabeleceria. Depois disso voltaram ao quarto de Dina.
Quando retiraram o lençol que recobria a banheira, viram que a água, que se tingira de vermelho, produzira abundante espuma. O corpo de Dina perdera a primitiva
rigidez, e não fosse a profunda palidez da epiderme, poderia ser tomada por uma formosa mulher adormecida. -- Pobre alma! Murmurou Tonilim. Tão jovem e bela, e
vitimada por tão horrível morte. Soubesse essa inescrupulosa fabricadora de venenos o mal que faria... Um sorriso passou pela fisionomia de Sir Gerald: -- Esta jovem
senhora não é uma vítima inocente!' Morreu pelo mesmo veneno que, outrora, ministrava aos outros. Esta noite, a lei do Carma atingiu a antiga cigana... Suspirando
penalizado, Tonilim auxiliou Savéria a depositar o cadáver sobre o leito, onde a velha vestiu-o. Algumas horas depois, era colocado no caixão, e transportado para
outra sala do castelo, distante dos aposentos fatídicos, de onde no dia seguinte, seria levado a ser sepultado no cemitério da vila. Depois de ter examinado, cuidadosamente,
a morta, o Dr. Pasqualle confabulou com Tonilim. Finalmente passou o atestado de óbito, como fora desejado. Pela tarde, despertaram os três enfermos que, conforme
predição de Sir Gerald, acharam-se inteiramente restabelecidos. Apenas Miguel sentia-se ainda um tanto enfraquecido. A sua sensitiva e jovem natureza, teve que vencer
uma impressão forte demais! A comunicação de que Rothschild e Valéria encontravam-se vivos, salvos que tinham sido da morte por Sir Gerald, provocou uma viva alegria
em todos. Helena, entretanto, chocada com a morte de Dina, não conseguia conter as lágrimas. Desejava partir imediatamente do castelo, e só a custo Lolo e Larissa
demoveram-na disso. Pediram-
lhe que não tomasse nenhum deliberação sem antes consultar a Dionid Tonilim, tanto mais que o destino de Rotschild
e Valéria não estava ainda decidido. A ceia, que nesse dia foi tomada mais tarde que de costume, reuniu a todos. As senhoras e Miguel, furtivamente, observavam o
misterioso amigo de Tonilim. A tranqüila nobreza que se manifestava em todo o seu ser, fazia-lhes uma agradável impressão. Todavia, evitaram encontrar aquele olhar
enigmático que parecia cintilar nos seus olhos negros. Sir Gerald, porém, não parecia notar a curiosidade que despertava. Tranquilamente, palestrava sobre os sucessos
terríveis da noite anterior. Depois da ceia dirigiu um pedido aos presentes: -- Desejo recolher-me ao quarto para repousar um pouco. Aconselho-vos a fazer o mesmo.
Às onze horas, entretanto, preciso se torna que nos reunamos, a todos, na saleta contígua ao terraço retirou das vestes um saquitel. Devereis usar este pó na defumação
da sala, acendereis as velas consagradas, que Dionid Tonilim vos entregará, e orareis. Não vos assusteis se ouvirdes fortes ruídos. Nada vos acontecerá se seguirdes
os meus conselhos. Não saireis da sala enquanto não fordes chamados, e, atendei nisto: orai! Ordenai aos criados que também se reúnam aqui para a oração e que não
abandonem a sala enquanto não receberem ordens neste sentido. Quando, meia hora transcorrida, Tonilim regressou com as velas, cercaram-no com mil perguntas sobre
o amigo. Queriam todos saber quem era, e de onde viera. -- Com toda a boa vontade, não vos posso dizer nada! Contentaivos por enquanto em saber que tendes ao vosso
lado um homem extraordinário, que domina os elementos e a quem se submetem as forças naturais. Em uma palavra, é um iniciado nos mais profundos segredos. Entretanto,
peço-vos um obséquio agora: Fornecei-me alguns objetos dos quais necessito... Tonilim pediu seis lençóis, algumas esponjas, um fogareiro de petróleo, uma garrafa
de vinho velho, ovos e caldo de carne. A Larissa
pediu alguma roupa branca para Valéria, e o seu mais belo Robe-dechambre. Com esses objetos todos, Tonilim voltou
ao quarto de Sir Gerald.
-- Às onze horas da noite, começaram, Sir Gerald e Tonilim, os seus preparativos. Despindo-se, Sir Gerald untou-se com uma pomada
azul claro, fosforescente, que se assemelhava ao álcool em combustão. Então calçou sandálias e envolveu-se numa longa túnica branca, que um cinto de ouro mantinha
fechada. Essa túnica e o cinto, eram, sem dúvida, peças finas e antigas. Em seus bordados, intercalavam-se pedras preciosas de maravilhoso brilho. A fivela, constituída
de dois triângulos entrelaçados, continha uma espada de punho de ouro e larga lâmina guarnecida de sinais cabalísticos. Sobre a cabeça, Sir Gerald colocou um turbante
egípcio, antiqüíssimo, guarnecido por uma estrela de ouro. Quando estava pronto, dirigiu-se a Tonilim: -- Estou pronto. Tu, meu amigo, toma ainda um pouco deste
líquido reconfortante. Poderá dar-se que os teus nervos não suportem o embate que nos espera. E num cálice deu a Tonilim algumas gotas de uma essência vermelha como
sangue, que ele bebeu. Depois retirou de uma das malas um disco de metal. Tonilim soergueu uma caixa grande e pesada. Entraram, então, no quarto de Giovana. Sir
Gerald, conduzindo o discípulo e amigo a um canto do quarto, fechou-se num círculo mágico. E indo colocar-se sobre o disco de metal, no meio do aposento, curvouse
outra vez para os quatro pontos cardeais. Em seguida alçou a sua vara mágica, fê-la girar sobre sua cabeça e, num monótono tom de voz, pronunciou palavras de um
idioma desconhecido. Uma luz verde fosca foi iluminando o aposento, paulatinamente, e apagou as chamas das velas acesas. De súbito, de todos os cantos, surgiram
chamas coloridas, azuis, verdes, amarelas e violetas. Ao mesmo tempo, ouviu-se um rugir abafado, um trovejar que, de segundo em segundo, crescia
em fragor. Os assoalhos pareceram estremecer e oscilar, em virtude de subterrâneos movimentos. O velho castelo
estremecia, ameaçando ruir aos golpes de geladas ventanias. Nesse caos ensurdecedor, uivos de animais selvagens e gritos humanos, misturavam-se a angustiosos apelos
e horripilantes gargalhadas. De repente tudo cessou. Um silêncio sepulcral pareceu envolver a terra, até que novos ruídos foram se fazendo audíveis; as passadas
de um magote de pessoas que se aproximavam, tinir de armas, tropel de animais, vozes de mando, brados desordenados. As portas pareciam ceder aos embates de uma horda
de soldados desejosos de tomar o castelo de assalto. Sir Gerald puxou da cinta uma corrente e fez soar um sinal de caçada. Depois prosseguiu na sua ladainha monótona
e soturna. Em breve se renovaram os gritos e gemidos, as chamazinhas separavam-se, dando lugar a uma multidão de criaturas desvairadas que desfilavam pelo quarto,
fazendo o assoalho estremecer sob os pés calçados de pesadas botas guarnecidas de esporas. Um frio suor perlou a fronte de Tonilim, ao assistir a esse espetáculo.
Era, porém, discípulo de conhecimentos suficientes a saber que misteriosas forças limpavam, naquele momento, o castelo de todos os seus espíritos, seculares prisioneiros
da matéria. Outra vez um pesado silêncio envolveu-os. Aos poucos, a estranha luz esverdeada extinguiu-se, e as velas tornaram a arder. Deixando cair a vara mágica,
Sir Gerald fez sinal a Tonilim para que se aproximasse. Sem abandonar a caixa que trouxera, Dionid seguiu o amigo até ao leito. Sir Gerald pediu-lhe que retirasse
da caixa uma bandeja e certo pó branco, que foi espalhado sobre a mesma. Em seguida atearam fogo às ervas. Uma densa nuvem de fumo ergueu-se e encheu o quarto com
o seu agradável perfume. Sir Gerald empunhou então a sua espada e, com voz firme e imperativa, pronunciou algumas fórmulas, nas quais Tonilim pode distinguir o nome
de Paulo e Giovana. Deixou então a espada descer como um relâmpago sobre as mãos de ambos. Uma fumaça impenetrável envolveu-os. Ao ver o gume descer naquele ímpeto,
Dionid estremecera violentamente. Pareceu-lhe que, indubitavelmente, as mãos dos infelizes estariam decepadas. Sir Gerald, não obstante,
embainhou a espada tranquilamente, ergueu a sua mão direita e fez aparecer sobre a cama, durante um segundo, uma
cruz flamejante. Então Tonilim viu que as mãos, apesar de continuarem unidas, persistiam intactas. -- Giovana, eu te ordeno: larga a mão de Paulo! Disse Sir Gerald
alta e claramente. No mesmo instante os dedos se largaram e as mãos se libertaram. Uma espécie de calafrio percorreu o corpo, de Rothschild e ele respirou profundamente.
Ato contínuo, Sir Gerald e Tonilim, tomando nos braços o corpo do Barão, transportaram-no ao seu quarto, onde o deitaram sobre o leito. -- Dispomos ainda de três
horas para o quanto resta fazer! Observou Sir Gerald olhando o relógio que nesse momento marcava meia-noite. -- E há muito por fazer! Apressemo-nos. Pôs-se, imediatamente,
a retirar do corpo de Rothschild os trajes medievais. Despido o Barão, friccionaram-no todo com a pomada azul, e deitaram-lhe à boca algumas gotas do liquido púrpuro.
Um novo estremecimento percorreu Rothschild, que abriu os olhos. Seu olhar era, porém, frouxo e inconsciente. Deram-lhe a beber um copo de vinho. Depois disso, cerrou
os olhos e adormeceu profundamente. -- Que durma mais uma hora... Está muito abatido! Ocupemonos agora da menina. E a Valéria, igualmente, despiram o alvo vestido,
friccionando-lhe o corpo com a mesma pomada. Em seguida, embrulhado juntos ambos os trajes, Sir Gerald foi atirá-los na lareira, orvalhou-os com um liquido prateado
e ateou-lhes fogo. Dez minutos depois, apenas um punhado de cinzas restava. Vestiram em Valéria a roupa branca e o robe que Larissa conseguira. Pela sua respiração
normal, podia-se conhecer que vivia. Tirando da caixa uma taça de prata, Sir Gerald encheu-a de ervas e essências, Colocou a taça sobre o peito da moça e deitou
fogo às ervas. Enquanto queimavam, emitindo estalidos, o amigo de Dionid colocou uma mesa ao centro do quarto, cobriu-a com um pano branco e depositou sobre a mesma
um candelabro de sete braços
e que, agora, trazia velas brancas. De um compartimento especial da caixa, tirou um cálice de ouro, encheu-o de
uma essência purpurina e foi colocá-lo, igualmente, sobre a mesa, ao lado de uma concha de prata, sobre a qual encontravam-se duas alianças de ouro. A face interna
dessas alianças, cobriam-se de incompreensíveis sinais. Depois de ter colocado duas almofadas de veludo vermelho ao solo, defronte à mesa, cobriu-as com um tecido
também vermelho, bordado de ouro. Tonilim, admirado, seguia esses preparativos. -- Por que me olhas tão surpreendido? Como servo da Divindade, no mais verdadeiro
sentido da palavra, tenciono unir estes dois que há séculos se pertencem, porém, unidos apenas pelo pecado do amor. A força da bondade os unirá agora. Serão libertados
dos obsessores espíritos do passado e a sua paz interior lhes será restituída. O castigo chegou ao fim. Mais tarde, naturalmente, farão legal esta união, e, se quiseram,
a abençoarão pelo credo a que pertencerem. A primeira benção, porém, pelas forças do Perdão e da Bondade, receberão aqui. Mas, precisamos, agora, acordar o jovem!
Pálido e abatido, Rothschild dormia profundamente. Sir Gerald destampou um pequeno frasco de cristal, que lhe chegou às narinas. Imediatamente o Barão abriu os olhos.
Tonilim ofereceu-lhe um copo de vinho, no qual havia deitado algumas gotas de uma essência reanimadora. Cada gole bebido trazia ao corpo de Rothschild uma energia
nova, um despertar para uma outra vida. Espreguiçou-se e olhou admirado em seu derredor. Reconheceu logo Tonilim e sorriu-lhe. Mas quando os seus olhos encontraram
a figura de Sir Gerald, envergando tão estranhos trajes, fez-se desconfiado. -- O que aconteceu, Dionid, e quem é este senhor? -- É Sir Gerald Grey, nosso benfeitor
que, neste momento, acaba de salvar-te da morte e de libertar-te dos espíritos teus inimigos, que te aborreciam a vida! Disse Dionid. Sir Gerald, lendo a descrença
e a desconfiança que se estampavam no rosto do Barão, pôs-lhe a mão sobre os ombros.
-- Deixa disso, Dionid! O Barão, depois que tudo estiver terminado, terá oportunidade de conversar comigo a este
respeito. Não percamos tempo, por agora! Levantai-vos Barão, e vesti-vos como para uma festa. Tendes aqui, à mão, um belo traje que possais usar? -- Tenho o meu
frack... Disse Rothschild embaraçado. -- Bem, vesti então o frack e, quando estiverdes pronto, vinde ao quarto vizinho, onde nos encontrareis. Um quarto de hora
mais tarde, Rothschild surgia no limiar do quarto fatídico. -- Estou às vossas ordens! Disse. Mas estacou surpreendido quando viu aquela espécie de altar com as
duas almofadas sobre o solo. -- Meu amigo, sereis agora unidos pelo matrimônio com a jovem que, no passado, sob o influxo de malignas forças, desviastes! Disse
Sir Gerald solenemente. Rothschild tornou-se pálido e retrocedeu um passo. -- O que de mim exigis, é impossível. Deus é meu testemunho de que, de bom grado, repararia
o erro cometido. Mas sou casado e minha legítima esposa encontra-se aqui, entre as paredes deste castelo. Ela prometeu-me divórcio, mas somente depois de julgado
por sentença poderei desposar Valéria. Um procedimento como este, que exigis de mim, não seria uma expiação do meu passado, mas a realização de um delito maior,
em relação a esta menina já tão martirizada. Tremendo, nervoso, ele abateu-se. -- Sentai-vos e acalmai-vos, Barão! Convencei-vos de que não exijo de vós nada susceptível
de castigo! Falou Sir Gerald tranqüilizadoramente. Sois agora livre! Vossa esposa faleceu a noite passada. Um gemido abafado desprendeu-se da boca de Rothschild.
-- Dina está morta? Mas não é possível! O que aconteceu? Assentando ao lado de Rothschild, Sir Gerald relatou-lhe, em breves palavras, a história do Elixir do Amor
que a Baronesa achara e
bebera, provavelmente com o fito de alcançar o amor do esposo. Rothschild ouvia com lágrimas nos olhos. E disse
baixinho: -- Pobre Dina! Chegou a esse extremo para conseguir o meu coração ingrato! A sua vida pesa sobre a minha consciência. Deus meu! Que maldição terrível será
esta que pesa sobre mim? -- Esclareço-vos de que não tendes responsabilidade na morte de vossa esposa. Disse Sir Gerald compenetrado. Vossa esposa foi atingida
pela inevitável lei do Carma, que veio trazê-la ao lugar em que muitas de suas vítimas encontraram a morte. Na imagem de vossa esposa, a cigana Yolanda veio pagar
os seus pecados, morrendo pelo mesmo veneno que preparara e ministrara aos outros. Mais tarde, em seu devido tempo, efetivareis a vossa união com Valéria, perante
as leis de vosso país. Agora, porém, desejo unir-vos pela força do perdão e da bondade, libertando-vos das sombras dos antigos delitos, há séculos cometidos, e que
pesam sobre vós. Assim, podereis ingressar no caminho para a luz... Rothschild agradeceu. -- Ponho-me às vossas ordens, e seguirei as vossas instruções. -- Aceito
a vossa promessa! Regressai agora com Dionid ao vosso quarto. Preciso despertar Valéria, e depois vos chamarei... Achando-se a sós, Rothschild pediu a Tonilim que
lhe falasse a respeito da misteriosa personalidade que podia salvá-lo das garras do passado. -- Teu benfeitor, Pawel, é membro de uma Fraternidade do Himalaia, iniciado
no poder dos elementos, e ao qual estão submissas as forças invisíveis. A vida de Sir Gerald consiste em aproveitar todas as oportunidades que lhe surgem para prestar
benefícios aos seus semelhantes e auxiliá-los. Enquanto isso se passava, Sir Gerald se aproximara da cama de Valéria, umedecera suas mãos e sua fronte e tomara-lhe
as mãos. -- Despertai! Eu vos ordeno, despertai!
A moça estremeceu e abriu os olhos. Obediente, Valéria, em seguida, tomou um copo de vinho, e voltou inteiramente
a si. Com os olhos muito abertos, olhou para Sir Gerald. -- Não vos inquieteis! Sou vosso amigo e vos direi tudo quanto sucedeu. Aproximou o banquinho, sobre o qual
o Barão estivera apoiado, e disse a Valéria o que se passara. Narrou-lhe a morte de Dina e fez-lhe sentir que Rothschild estava agora livre e disposto a desposá-la.
Por delicadeza absteve-se de narrar o que se passara entre os dois, acrescentando apenas que desejava libertar a ambos das más influências às quais estavam sujeitos.
Valéria ouviu confundida, chorando às palavras de Sir Gerald: -- Sede tranqüila agora, minha filha. Sois uma vítima do passado que inevitavelmente se lança sobre
aqueles que infringem as Leis Soberanas. Vossa vida não está manchada por nenhuma nódoa, e o futuro vos promete felicidade. -- Como poderei pagar-vos por tudo quanto
fizestes e estais fazendo por mim? Submeto-me à vossa vontade... -- Auxiliando àqueles que necessitam de mim, mais não faço que cumprir com um dever, e maior recompensa
não poderei desejar do que esta: que vós ambos vos conduzais pela vida piedosa e exemplar. Em seguida ergueu-se, chamou Dionid e Rothschild e auxiliou Valéria a
levantar-se. Depois tomou a mão direita dos dois jovens, entrelaçou-as e fez com que ambos se ajoelhassem diante do altar improvisado. Cobriu-lhe as cabeças com
o pano vermelho e elevou as mãos, pronunciando palavras incompreensíveis. Sobre o casal brilhou uma cruz de fogo que logo depois se desfez. Então Sir Gerald retirou
o pano e colocou-lhes nos dedos as alianças, dizendo: -- Vós vos pertencestes reciprocamente, impura e ilicitamente! De agora em diante, a virtude e a fé vos unirá
para que sintais o amor divino. Eu vos uno pelos laços puros e sagrados! Não mais pesa sobre vós a perseguição dos espíritos impuros! Que o pai Celestial vos conduza
e vos dê a sua benção!
Tomou do cálice de ouro e deu a cada um de beber um gole do seu conteúdo. Quando se ergueram, Rothschild levou
as mãos de Valéria aos lábios, dizendo-lhe comovido: -- Perdoa-me, Valéria, por te haver feito tanto mal, e crê que farei tudo quanto esteja em minhas forças, pela
tua felicidade! -- Eu creio, e nada mais temo agora! Alegre e confiante é que vejo o futuro! Disse Valéria. Mas então, empalidecendo e vacilando de súbito cerrou
os olhos. Não a amparasse Rothschild, teria caído ao solo. Sir Gerald observou que uma expressão de terror estampou-se no rosto do Barão. Tranqüilizou-o: -- Nada
mais temais, Barão! Ela caiu em profundo sono, do qual o seu corpo necessita, inadiavelmente, para que readquira forças. E neste estado permanecerá por três semanas,
despertando uma ou outra vez, afim de tomar alimento. Assim que estiver inteiramente desperta, estará livre dos ataques catalépticos que até agora sofreu e que não
mais voltarão. Precisamos transportá-la ao seu quarto. Vós precisais também de repouso. Amanhã trataremos do que resta a fazer. -- Como julgardes melhor! Disse
Rothschild. Ergueu Valéria em seus braços e levou-a. Sentia-se forte e tranqüilo como nunca. Era um estado que substituía todas as excitações e incertezas da véspera...
Helena, Larissa e seus filhos, haviam passado a noite orando, como o. desejara Sir Gerald. Os longínquos trovões, os bramidos estranhos, as comoções subterrâneas,
o toque da tromba, fizeram-nos trêmulas e assustados. Em seguida aprofundaram-se mais nas preces. Finalmente surgira Tonilim que lhes comunicara que tudo fora levado
a efeito satisfatoriamente. Rothschild e Valéria estavam salvos. As minudências conheceriam no dia seguinte. -- Todos nós, e eu próprio, estamos extremamente fatigados
e abatidos. Por isto vos recomendo, em nome de Sir Gerald, que vos en-
tregueis ao repouso. Sir Gerald garante que dormireis, todos, muito bem! Acrescentou sorridente. Rothschild recolhera-se
ao seu quarto e deitara-se. Profundamente emocionado, pensava nos sucessos de que compartilhara havia pouco, e cujo pivot fora ele mesmo e Valéria. A lembrança de
Dina não o deixava, e as várias cenas de sua tão curta vida conjugal passavam caleidoscopicamente diante da sua retina espiritual. Pela primeira vez condenava-se
pela sua aspereza para com ela, que tudo suportara, sem que decrescesse o amor que lhe devotava. O fato de ter sido ela uma cigana satânica que caíra vítima do seu
próprio Carma, não diminuía a sua culpa. O amor de Dina fora a arma com a qual ela mesma se matara, inconscientemente. O desejo de ir vê-la, e de orar junto ao seu
esquife, despertou nele. Sua vida e o seu futuro pertenciam, agora, a Valéria, mas a recordação de Dina, a prece que faria junto ao seu caixão, era um dever que
precisava cumprir. Assim não conciliou o sono até pela manhã. Levantou-se cedo e foi procurar Savéria. Ela estava no terraço e punha a mesa para o café. Quando viu
Rothschild, a quem, até há pouco, julgava morto, alegrou-se, e perguntou-lhe pela sua saúde. -- Como pareceis pálido e cansado, signore Barão. Rothschild garantiu-lhe
que se sentia bem disposto e pediu-lhe que o conduzisse ao quarto da morta. Bernardino foi acompanhá-lo ao quarto distante onde tinha sido posto o esquife e afastou-se.
Com profunda dor e o coração oprimido, Rothschild contemplou o rosto da finada que tomara uma coloração ligeiramente azulada e parecia de porcelana. Lançou-se de
joelhos e orou longa e ardentemente. Quando regressou ao terraço, encontrou aí a tia e Larissa. Ao vê-lo, Helena correu ao seu encontro e beijou-o, abraçando-o.
-- Meu pobre Pawel! Graças a Deus estás outra vez conosco! Ontem eu temia não ver-te nunca mais. Ah! Se tu soubesses como me recrimino por haver descoberto e alugado
este infeliz Montinhoso!... -- Pois não te recrimines, titia. Foste, neste caso, simples instrumento do destino, que precisava reunir aqui o Maledetto e suas ví-
timas. Além disso, o mal se transforma agora em bem. Sir Gerald, que Deus nos enviou à última hora, prometeu-me
libertar o castelo dos seus habitantes invisíveis, dos espíritos que aqui estacionaram. -- Que Deus o ajude, por mais cética que eu tenha sido até hoje! Tudo o que
vi aqui, abalou-me profundamente. Já não sei mais o que devo acreditar... queixou-se Helena. Enquanto Rothschild se inclinava sobre a mão de Larissa, esta lhe disse
baixinho: -- Vi Valéria! Ela dorme. Dionid me descreveu o seu estado. Deveis confessar, Barão, entre vós se realizou algum drama terrível! -- Sim Larissa, não o
nego! Foi uma terrível encenação de sucessos há muitos anos transcorridos... ele corou profundamente. Ergo louvores aos céus por esse drama ter chegado ao fim.
Valéria viverá e se tornará minha esposa. Espero que a sua família não faça objeção. Sou rico, independente, e posso oferecer-lhe um futuro seguro. Além disso, seu
irmão desposa minha prima, e assim entra, também, em parentesco comigo. -- A mãe de Valéria nada terá a opor, certamente. E eu estou plenamente convencida de que
sereis ambos muito felizes. Disse Larissa. A palestra foi interrompida pela entrada de Miguel que fitou o primo como que petrificado de espanto, e não quis acreditar
que Pawel estivesse vivo. -- Sabes Pawel, quase me tiravas a razão! Acreditei, de princípio, estar defrontando o fantasma do Maledetto, mas depois reconheci-te e
julguei-te morto. -- Eu estaria morto de fato, se a Misericórdia Divina não me salvasse. Mas, dize-me porque me julgaste primeiramente um fantasma, e depois me supuseste
morto? Perguntou Rothschild gracejando. -- É melhor não me perguntares nada. Minha cabeça não estava, ontem, no devido lugar. Além disso, não compreendo nada desta
incrível história! Retrucou o jovem.
Conferenciaram então sobre o sepultamento de Dina. O cadáver deveria ser conduzido nesse mesmo dia à cidade, para
aí baixar à tumba. Um velho sacerdote, amigo do Dr. Pasqualle, permitiu que Dina tivesse, por derradeiro repouso, um canto do cemitério, onde já se achavam outros
estrangeiros. Depois de resolvido o assunto, Sir Gerald comunicou que poderiam iniciar, no dia seguinte, a inspeção aos compartimentos murados. -- Permitir-me-eis
também acompanhar-vos? Perguntou Lolo com o olhar suplicante. Sir Gerald não pôde conter um sorriso. -- Certamente! Todas as senhoras participarão. Apenas peço,
com insistência, não toqueis em nenhum objeto sem permissão minha. E no dia seguinte, logo depois do almoço, iniciaram a pesquisa. Os homens se preveniram todos
de fortes lanternas elétricas e conduziram as senhoras, trêmulas de emoção e receio. Sir Gerald conservava a sua calma costumeira, que contagiara também Rothschild.
O Barão sentia-se singularmente triste, passando por aqueles aposentos, em muitos dos quais havia experimentado tão duras provas. Os retratos de Paulo e Giovana
impressionaram profundamente as senhoras. Tal semelhança entre viventes e criaturas há três séculos falecidas, heróis do drama que ali se desenrolara, excedia ultrapassando,
tudo quanto se podia imaginar. O quadro grande, do salão, encheu o grupo de repugnância. Na capela, onde se encontrava o cadáver insepulto de Giovana, Helena quase
chegou ao desmaio, e só a custo pode ser conduzida para fora, pelo braço do filho. Todos sentiram-se, ademais, desagradavelmente impressionados. Lolo entretanto,
mais uma vez soube demonstrar que podia ser calma e corajosa. Apertando a mão do primo, pediu-lhe que iluminasse o cadáver com a lâmpada. Aproximou-se do esquife
e constatou então que o corpo da morta não estava, absolutamente, decomposto, antes conservara as suas cores naturais através dos anos e anos. A se-
melhança com Valéria era inegável, com a pequena diferença de ter a morta os traços mais duros e cruéis, os cantos
da boca, principalmente. Mas o coração de Lolo começou a pulsar mais forte quando vislumbrou entre os dedos da morta a mão amputada de Paulo. Provavelmente também
aquela mão fora preservada da decomposição pelos mesmos processos que tinham sido empregados na morta. Apenas as unhas mostravam-se quase inteiramente azuladas.
Erguendo o olhar para Rothschild, Lolo viu que ele, imerso em pensamentos, também fitava aquela mão. -- Bem Pawel, vamos embora! O passado já não pesa sobre ti...

12
O MANUSCRITO

Rothschild estremeceu e meneou a cabeça. Por último, o grupo se deteve no antigo escritório do Conde Rindolfo de Montinhoso. Enquanto uma parte ocupou-se na contemplação
da maravilhosa mobília, e dos painéis a ó1eo, Sir Gerald aproximou-se da mesa, e entre muitos papéis aí esparsos, encontrou o rolo que Valéria, um dia, afastara
da mesa: Crônica dos crimes e desgraças da Família Montinhoso. -- Precisais ler isto, Barão. -- Não sei como não o notei antes. Esta crônica contém, sem dúvida,
a explicação de muitos segredos do passado! Observou Rothschild admirado, aproximando-se rápido da mesa. Com grande interesse contemplou o velho manuscrito. --
Tu lerás a crônica em voz alta, não é mesmo? Implorou Lôlo que se aproximara. Provavelmente estarão aí narrados, minuciosamente, os destinos de Yolanda, de Giovana
e de Paulo, e também esta-
rá dito porque esta crônica ficou guardada aqui, na ala murada, e não no arquivo da família. -- No que diz respeito
a este manuscrito, como no que se refere a tudo o mais deste castelo, querida Lolo, seguirei exclusivamente as prescrições de Sir Gerald. Que ele determine quando
onde e por quem deve ser lida a crônica. Se ele nada tiver a opor que a ouças, então eu também não me oporei. Respondeu Rothschild. -- Eu próprio a lerei em voz
alta. Disse Sir Gerald. Precisamos conhecer o seu conteúdo antes que façamos o restante; para libertarmos aos sucessores dos Montinhoso a vós, Barão, embora vossa
aparência não seja igual e o vosso diferente nome! da maldição que pesa sobre suas cabeças. Nada tenho a opor que as senhoras e o senhor Muranoff estejam presentes
e tudo ouçam. Mas dizei-me vós, Barão, onde desejas ouvir a exposição daquele que outrora foi vosso pai! Acabo de ver, neste momento, que foi ele o autor desta peça.
-- Aqui Sir Gerald, nesta sala onde viveu e trabalhou, e o seu retrato olha para mim... se achardes conveniente. -- Eu vos compreendo, Barão, e julgo o vosso desejo
muito natural Disse Sir Gerald Se não estais cansados, poderemos principiar já, pois que seria talvez difícil ler a informação toda de uma só vez, do princípio
ao fim. É bastante longa. Todos mostraram-se de acordo com Sir Gerald. Ninguém parecia cansado. -- Assim, pois, Paulo de Montinhoso, quebrai o selo que há três séculos
foi comprimido por vosso pai, sobre este documento. A mão de Rothschild tremia imperceptivelmente quando ele cortou o fio de seda, desenrolou o manuscrito e o entregou
de volta a Sir Gerald. Puxou logo em seguida uma cadeira de encosto alto, entalhado com o escudo de Montinhoso e sentou-se. Sentia um peso estranho no coração. Seus
olhos buscavam sempre o retrato do Conde Rindolfo, iluminado agora pela luz de um lampião. Quase não podia acreditar que fosse ouvir a história de sua anterior existência,
escrita pela mão de um homem morto já há alguns séculos. As últimas semanas lhe
haviam provado, veementemente, que apenas o invólucro material perece, e que o espírito pode voltar a viver num
outro corpo. Tal peregrinação, porém, parecia não dissolver os laços invisíveis, que prendem o ser aos erros dos séculos anteriores. Se a lembrança se perdia, a
remissão deles vinha, inapelavelmente, mais cedo ou mais tarde. Sir Gerald, que folheara distraído as primeiras folhas do manuscrito, começou a ler em voz profunda
e calma:

-- Quem quer que sejas, forasteiro, a quem o destino reservou esta crônica, sabes que eu, Rindolfo Antônio Orso de Bianco, Conde de Montinhoso, sou o seu autor,
e que a iniciei num dia três vezes infeliz. Hoje entreguei o meu único filho, Paulo, a alegria da minha vida e a esperança da minha velhice, à terra. Um horrível
destino o atirou num abismo, a esse jovem cheio de força e de vida, o mais nobre de todos os cavalheiros, e o mais belo de todos os nobres. Hoje a sepultura o tragou.
Minha vida ficou vazia. Não teria jamais pensado em escrever esta crônica, mas um homem, que me é íntimo e me amparou no meu sofrimento e me assistiu, disse hoje
estas palavras enigmáticas: Há uma lei que fará o espírito pecador de teu filho voltar ao local de seus crimes; seus inimigos, cheios de ódio e sedentos de vingança,
o atrairão para cá, mas ele terá esquecido o passado. Para dizer-lhe que a sua permanência aqui é uma empresa perigosa, e que deve fugir, ou pedir perdão aos inimigos,
para que o não aniquilem, deves tu, Conde, anotar os acontecimentos do presente e do passado, que redundaram no infortúnio da tua geração, tanto quanto te recordares
deles. Por mais obscuras e incompreensíveis que me tenham soado estas palavras, creio, contudo, na sua realização; pois sei que esse homem, que as pronunciou, é
um vidente poderoso e uma grande inteligência. A minha objeção de que um estranho venha a penetrar nesta ala murada e encontrar este manuscrito antes do tempo aprazado,
antes que o espírito de meu filho tenha retornado, respondeu-me ele: Eu te asseguro que nenhum outro senão o teu filho entrará aqui e lerá a tua crônica! Como e
quando as palavras desse homem se tornarão realidade, não sei, e nem posso saber! Mas não importa!
Creio em suas palavras, e quando tu, meu filho, estiveres lendo estas linhas, saiba que teu pai ora dia e noite por ti, implorando o perdão de teus erros. O Signore
Felício me disse que tu esquecerias o passado: farei então a minha narrativa como se fosses um estranho. Principiarei com a história de um dos meus antepassados,
do cavalheiro Marcus, para que conheças o terrível sortilégio que paira sobre nosso clã, em todas as suas minudências. Até ao tempo do cavalheiro Marcus, a nossa
família, embora de antiga nobreza e imensamente respeitada, não era rica. Nosso castelo era apenas um pequeno burgo perdido entre as montanhas. Marcus, que era valente
e belo, pertencia ao exército florentino. Inúmeras vezes se distinguiu na guerra e nos torneios, e soube conquistar o coração de Júlia Barroneo, a filha única de
um rico nóbile de Florença. Depois que a desposou, aumentou o burgo de Montinhoso, e viveu então aqui com a nobre Júlia, em feliz união. Júlia possuía um coração
bondoso e dócil, e amava sinceramente ao esposo, no qual confiava ilimitadamente. Seu único filho, Cossimo, contava doze anos quando ela faleceu. Ele se parecia
com a mãe e com ela gostava de ficar no castelo. Marcus continuava a sua vida belicosa e aventureira. Cossimo cresceu e fez-se um belo rapaz. Foi então que se deu
o fato que redundou no fracasso da nossa família. Marcos regressava de uma campanha e pretendia passar alguns meses no castelo. Durante uma caçada, perdeu-se na
mata e foi parar num acampamento de ciganos. Como a noite já se erguia e o seu cavalo estivesse muito cansado, ficou com o bando que o alimentou e alojou. Uma cigana
deu-lhe vinho a beber. Talvez a esse vinho tivesse adicionado um elixir qualquer, pois Marcus apaixonou-se por ela, levou-a consigo para o castelo, fê-la batizar
e desposou-a. Os registros do capelão que então vivia no castelo e a lenda, informam que essa mulher era de extraordinária beleza. A cigana Topsy, depois de transformada
na signora Yolanda, sabia mover-se como uma dama nobre e comportava-se como se tivesse nascido num castelo, ao invés de num acampamento de ciganos. Era bela, porém
moralmente corrompida e cruel. Marcus não via e não observava que essa mulher o enganava e traía. Era público que lidava com licores misteriosos, com os quais escravizava
os homens que lhe
agradassem. Fazia-se presentear por eles, pois amava as jóias e as pedras preciosas mais que tudo no mundo. Depois não hesitava em assassinar os amantes ou manobrava
para que entrassem em duelo, no decorrer do qual eram eliminados. Mas Yolanda também sabia curar os enfermos e fortalecer os fracos, com as suas beberagens. Cossimo
odiava aquela mulher que substituíra sua mãe. Disputavam constantemente. Um dia encontraram Cossimo morto no seu leito. Poucas semanas depois Marcus desaparecia.
O seu barrete foi encontrado junto de um atoleiro e julgou-se por isso que aí tivesse encontrado a morte. Todas estas notícias e sucessos conspurcaram o nome de
Yolanda que passou a ser considerada uma bruxa. A boca pequena, dizia-se que tinha o demônio por comparsa. Julgava-se que o menino Antônio, que nascera no seu matrimônio
com Marcus, tinha por pai, não Marcus, mas o próprio Demo. Espero que isto não seja verdade, e Deus nos preserve de um tal parentesco. Contudo parece que nossa família
caiu, então, nas garras de malignas forças: quantos de nós morreram violentamente, quantos crimes e maldições pesam sobre nossos ombros!... O que informo sobre Yolanda,
extraí de um manuscrito de respeitável monge, o capelão do castelo. Esse manuscrito encontra-se no arquivo da família. Provavelmente, fazia ele de Yolanda, igual
juízo que os demais, pois fala com brevidade, visivelmente a contra gosto, sobre tais acontecimentos. Informa o seguinte: Por muito que essa mulher fosse odiada
por todos, uma vez que as mais nobres famílias perdiam os seus filhos, pelas suas maquinações, era ela também temida. Ninguém, porém, ousava demonstrar esse ódio
e esse desprezo publicamente, para evitar novas desgraças. Yolanda, entretanto, apresentava-se em toda a parte. Assim, num torneio viu um certo jovem cavalheiro
que lhe agradou. Estava comprometido e devia casar-se em breve, quando Yolanda convidou-o a visitá-la. Aproveitava-se de todas as oportunidades para vê-lo e falar-lhe.
Mas o cavalheiro temia-a, evitava-a e apenas comia os alimentos que sabia não terem sido tocados por Yolanda. Yolanda exasperou-se com a resistência do cavalheiro.
Dois dias antes do casamento, repentinamente, a noiva do cavalheiro morria. Por mais incrível que possa parecer, o seu corpo transformou-se numa estátua. Esse acontecimento
excitou a população toda. E todos viram nele uma maquinação de Yolanda.
O pai, o irmão e o infeliz noivo da falecida, decidiram assassinar a bruxa. Com outros cavalheiros, atacaram o castelo em que Yolanda se ocultava. Nenhum dos defensores
do castelo quis bater-se pela senhora, e o castelo caiu sem luta nas mãos dos assaltantes. Quando os cavalheiros prenderam Yolanda, ela defendeu-se como uma doida
e matou, na luta, Ubaldo Caglieri, irmão da donzela morta. Nada mais informa o capelão sobre o destino de Yolanda. Segundo a lenda, foi enclausurada viva num ponto
qualquer do castelo, O Elixir do amor e o veneno que usava, porém, não foram encontrados, ninguém sabe o que foi feito deles! Antônio, denominado o Diabólico, filho
de Marcus e Yolanda, cresceu como excêntrico, transformou-se num traidor, num andrófobo. Casou-se tarde e teve dois filhos gêmeos. Quando um deles se casou, o outro
enamorou-se da cunhada e quis desonrá-la. O esposo regressava nesse momento, percebeu o que o irmão intentava e o matou num acesso de fúria. Júlio, o filho do fratricida,
foi martirizado durante toda a sua vida por terríveis sonhos e fantasmagóricas aparições. Finalmente perdeu a razão. Numa das crises que sofria, estrangulou sua
jovem esposa algumas horas depois do nascimento de uma filha, seu segundo rebento. Já então se dizia que Yolanda aparecia ao infeliz Júlio e que se apresentava sempre
no castelo, antes de qualquer desastre. Num momento de lucidez, vendo e compreendendo o que fizera, Júlio enforcou-se. Sua filha, Angelina, era de peregrina beleza,
mas trouxe infortúnio a todos os que a amaram. Muitos cavalheiros, das mais respeitáveis famílias, suicidaram-se por sua causa. Angelina era insensível e fria como
um bloco de gelo. O único prazer que a movia, era o martírio de suas vítimas. Finalmente enamorou-se dela o seu próprio irmão, Pietro, que por ela quis abandonar
esposa e filhos.Então Angelina resolveu casar-se, mas no dia do seu casamento, com um nóbile de Ferrara, foi em sua alcova de noiva apunhalada por seu irmão. Pietro
quis matar-se também, mas foi impedido de fazê-lo. Segundo a lei, deveria ser decapitado pelo seu delito. Como a Condessa sua esposa, fosse, porém, uma parenta do
Duque, e Pietro houvesse salvo um dia a vida deste, também o Duque lhe concedeu a vida, mas ordenou ao carrasco que lhe decepasse a mão. Depois disso Pietro se recolheu
de uma vez por todas a Montinhoso e aqui viveu vários anos no mais completo isolamen
to, como seu pai, perseguido em sonhos. Sua existência foi encerrada pelo suicídio. O destino do filho de Pietro, Girolamo de Montinhoso, foi igualmente tão terrível
quanto o do meu filho Paulo. Esta história conheço a mais de perto, pois Girolamo foi meu bisavô. Muito jovem ainda, ele desposou uma órfã, filha de um cavalheiro
pobre, das vizinhanças do castelo de Montinhoso. Nada levou ela para o seu consórcio, senão a sua encantadora beleza. Paríssima tinha uma tez alabastrina, sob a
qual se podiam ver as suas veias finas, basta cabeleira loira que a envolvia como um xale. Os seus negros olhos eram profundos como abismos. Sob este aspecto de
madona, dormia um caráter fogoso, imperioso, apaixonado e vingativo. Apesar disto, os esposos viveram felizes até que a desgraça, na forma de um jovem de nome Galeazzo
lhes entrou pela porta. Este Galeazzo fora recolhido por Girolamo ao castelo por motivos cuja descrição me levaria muito longe. Paríssima era uma mulher singular:
tinha sonhos proféticos, nos quais lhe apareceriam os espíritos dos mortos. Um capelão conta que, no decorrer dos sepultamentos, muitas vezes teve ela vidências.
Via o morto caminhando, e levando pela mão aquele que estava destinado a partir em primeiro lugar. Tais visões a Condessa lhe contara em confessionário. Para sua
infelicidade, Galeazzo enamorou-se de Paríssima, e também ela ardeu em paixão pelo belo jovem. Ela concebeu então o plano de liberta-se de Girolamo. Não se sabe
como, Paríssima encontrou o veneno de Yolanda, mas admire-se que a bruxa tenha aparecido à Condessa e que lhe tenha indicado o lugar em que o veneno se encontrava.
De posse da terrível poção, os amantes aguardavam uma oportunidade para matarem o desprevenido e desgraçado Girolamo. Sobre o desfecho, só se conhece o que Galeazzo
confessou na hora de sua morte. Estavam os três a palestrar. Na taça do Conde, Paríssima deitava o terrível veneno. Girolamo bebeu-o e, sentindo de súbito os seus
efeitos, ergueu-se de um salto. E erguendo a mão bradou: "Vós me envenenastes! Sede malditos! Sede! O vosso crime estará sempre convosco..." Sua voz perdeu-se,
e alguns minutos depois Girolamo se transformava em estátua. Galeazzo e Paríssima, dizem, fizeram fechar o quarto, murando-o, e apagaram os vestígios do crime. Esse
aposento nunca mais foi localizado. Depois, servos dedicados foram encarregados de espalhar
a notícia de que o Conde fora visto, à noite, invadindo um jardim, e que perdera a vida, provavelmente, numa aventura. Alguns dias depois encontrouse, nas proximidades
da vila, a sua capa ensangüentada. Um crime, porém, ao que parece, traz consigo um segundo e muitos outros. Uma onda de desconfiança passou a pairar no ar que respiravam.
Para que o terrível segredo fosse conservado, muitas outras criaturas tiveram que morrer. Entre a criadagem do castelo irrompeu uma epidemia que vitimou quase todos
os servos, que levaram consigo para a tumba, o que sabiam. Galeazzo e Paríssima casaram-se, mas a união foi infeliz. Entre eles pairava a sombra do assassinado Girolamo,
e o castigo celeste perseguia os culpados. Como parente mais próximo do finado Girolamo, que não deixara descendência, Galeazzo herdou a propriedade e o título de
Conde Montinhoso. Ao leviano e voluptuoso favorito das mulheres, que eram aprisionadas pela sua rara beleza, a vida com a jovem esposa bem cedo se tornou monótona.
Paríssima tinha justificados ciúmes, encolerizando o marido. Galeazzo, em seguida apaixona-se pela bela filha de um respeitável cortesão de Modena. Mas a moça era
religiosa e não se deixou levar pela corte apaixonada. Então Galeazzo, exaltado pela desacostumada resistência, resolveu libertar-se da esposa. Algumas palavras
de sua confissão indicam que ele sabia onde Paríssima escondera o veneno que matara Girolamo. Esse lugar secreto, porém, nunca foi descoberto. O infeliz decidiu
aproveitar-se do mesmo veneno, que lhe tinha prestado tão bons serviçal. Paríssima, que com a infelicidade conjugal se tornara mais violenta, não era estimada no
castelo. Com isto contava Galeazzo. Ele supunha que, se mais tarde encontrassem Paríssima morta, transformada em estátua no seu leito, facilmente acreditariam na
hipótese do homicídio e não suspeitariam dele. Um dia foi a criadagem despertada por gritos e ruídos que partiam dos quartos dos patrões. Alguns mais ousados, penetraram
no dormitório, e viram Galeazzo desmaiado diante da cama da Condessa que lhe prendia fortemente a mão. Quando os criados ergueram o Conde e quiseram libertar sua
mão, verificaram que a Condessa estava morta e se transformara numa estátua. Paríssima parecia viva. Os seus olhos, desmesuradamente abertos, e dirigidos para Galeazzo,
tinham uma expressão de horror e ódio. Imediatamente o quarto
encheu-se de servos. Tentou-se inutilmente libertar a mão do Conde dos dedos da morta. Galeazzo despertou do seu desmaio e lutou como um louco. Com gritos desesperados
e selvagens, tentava, inutilmente, libertar-se. Nada conseguindo, caiu outra vez desmaiado. Os criados não sabiam o que fazer. Um dos escudeiros do Conde tentou,
com um golpe de machado, separar a mão da morta. O golpe porém, ricocheteou no pulso petrificado. Por fim uma aia lembrou-se de que o bispo estava nessa ocasião
na abadia próxima. Era ele aparentado com o Conde. Atendendo imediatamente ao apelo de um dos escudeiros, o bispo veio ao castelo, e, como os outros, encheu-se de
espanto com o que via. Começou a orar e esparziu água benta sobre o Conde, mas nada conseguiu. Mandaram então chamar o médico da vila. Até a sua chegada, o bispo
orava ininterruptamente. As horas se passavam lentas. De um formoso jovem Galeazzo se transformara num ancião. Seu rosto contraíra-se de rugas, seus cabelos quase
que embranqueceram de todo, e os seus olhos se turvaram, perdendo o brilho antigo. Já não tentava mais libertar-se. Apático, deitara-se nos degraus do leito. Então
confessou-se ao bispo. Contou como desejara libertar-se da esposa por meio do assassinato, bem como a maneira pela qual Yolanda em pessoa aparecera a Paríssima e
lhe indicara o esconderijo do veneno. Nesse lapso de tempo, chegara o médico que constatou o progressivo envenenamento do sangue, que ameaçava a vida de Galeazzo,
cuja mão se enegrecera quase que por completo. Tentou também abrir os dedos da morta, sem resultado. Assim, resolveu que, para salvar a vida do Conde, amputaria
a sua mão pela junta. Todavia o Conde não pode ser salvo. O veneno passaralhe ao corpo, e ele morreu na manhã seguinte. Como se confessara antes com o Bispo, foi
permitido que recebesse sepultura no castelo, no jazigo dos Condes de Montinhoso. Entretanto o bispo negou-se a conceder sepultura cristã à Condessa, considerando-a
feiticeira e rebelde. Além disso, ela se enrijecera de tal forma, em posição sentada, que não pode ser posta num esquife. Colocaram-na num grande caixão, feito de
propósito, e a sepultaram fora dos muros do cemitério, ninguém sabe onde, pois nenhuma cruz ou lápide marcou a sua tumba. Galeazzo e Paríssima deixaram um filhinho.
Foi o meu avô. Lembrome muito bem dele, pois o vi muitas vezes, quando era criança. Era rude, da
do à solidão, mas religioso. Certa vez contou-me os fatos que cercaram a morte de seus pais. Pouco antes de morrer, sua mulher, minha avó, teve uma visão. Julgou
ver Paríssima que lhe ordenava procurasse o corpo de Girolamo e fizesse baixar a sua mão que, ao esboçar o gesto da maldição, se enrijecera. Pois enquanto essa mão
estivesse distendida, a sua maldição se manteria. Pedia também que lhe dessem uma sepultura cristã. Moribunda, minha avó narrou a sua visão, mas não lhe foi possível
informar em que lugar Girolamo estaria. Morreu poucos minutos depois, levando para a sepultura esse segredo. Meu avô, meu pai, eu próprio, procuramos inutilmente
o cadáver de Girolamo. Em vão fizemos dizer missas em sua intenção, em vão assistimos a todas essas missas, orando fervorosamente pelo infeliz. Na realidade, nada
nos podia livrar de um horrível destino! Foi sobre o meu filho Paulo, porém, que desencadeou-se, com todas as suas forças, a diabólica maldição, que o aniquilou.
Se eu, Rindolfo de Montinhoso, escapei ao infortúnio, meu filho sofreu por nós ambos. O nascimento de Paulo custou a vida de sua mãe. Poucas horas depois de haver
dado a luz à criança, minha pobre Fúlvia adormeceu e sonhou. E o seu sonho inteiro dizia respeito ao futuro de nosso filhinho e a sorte da família. Pálida como uma
morta, foi que se ergueu das almofadas, repentinamente, gritando palavras incompreensíveis. Somente ouvi as palavras: "Salvem a criança"! Depois recaiu sobre as
almofadas e morreu. Eu amava Fúlvia profundamente, e resolvi não contrair nova aliança, antes dedicar-me inteiramente à educação de nosso filho. Para minha alegria,
Paulo cresceu forte como um carvalho, belo como Apolo e se fez senhor do requinte e da arte de um cavalheiro. Entretanto, por vezes, talvez fosse por demais ousado
e intimorato diante do perigo. Contava ele mais ou menos dez anos quando fiz uma descoberta que fez o meu coração de pai estremecer. Paulo era o retrato vivo do
meu antepassado, de Galeazzo, que existia na galeria do castelo. Quando o retrato de Paríssima, tida por feiticeira, foi destruído, o retrato de Galeazzo foi poupado.
Comecei a sofrer sob o peso de terríveis pressentimentos. Realizar-se-ia em meu filho a horrorosa sina que pesava sobre todos nós? Doei à igreja ricos presentes
e passei a orar fervorosamente pela paz do meu querido rebento. Quando Paulo atingiu os quinze anos, colo
quei-o como pajem no paço do Duque de Ferrara. Aí se tornou o favorito inconteste não só da família ducal, mas de toda a corte. Sua inteligência, sua destreza nos
jogos e exercícios de equitação, lhe asseguravam a preferência de todos. O Duque tinha sido educado na corte da França, e gostava de promover festas e torneios.
Ficava radiante quando Paulo não encontrava rival na dança e no jogo da lança. Por ocasião do vigésimo natalício de meu filho, fui à corte de Ferrara, e confesso
que os seus triunfos, ai festejados, me deixaram lisonjeado e feliz. Maior, porém, foi a minha satisfação quando o Duque deume a perceber o seu carinho por Paulo.
Consentiria, em três anos, quando sua filha Bianca atingisse a idade de dezesseis anos, no casamento dos dois jovens, se se sentissem mutuamente atraídos. Tal expectativa
para meu filho, encantou-me, e foi muito feliz que parti de Ferrara na companhia de Paulo. Tínhamos muito por fazer em Montinhoso e Modena. E sete ou oito meses
vivemos entre este e aquela, até que um dia recebemos uma carta da mãe de minha falecida esposa, cuja lembrança me era e será sagrada. A velha Condessa de Castelmonte,
que vivia em Veneza na companhia de uma filha casada, pedia-me que mandasse Paulo a visitá-la pois há dois anos não o via. Dizia-se saudosa do único neto, e desejosa
de tê-lo por uns dias ao seu lado. Satisfiz o seu desejo com o maior prazer. Paulo que amava e venerava sua avó, também desejava vê-la. Algumas semanas depois de
sua partida recebi certa carta, de um parente distante, Cézar Salviati. Comunicava-me que estava gravemente enfermo e implorava a minha presença. Queria me fazer,
de viva voz, certo pedido cujo assentimento, de minha parte, lhe daria a tranqüilidade necessária a morrer. Pouco conhecia a seu respeito. Quando éramos ainda jovens,
mudara-se ele para Roma, entrando para o serviço do Santo Padre. Sabia também que se casara. Depois perdera-o de vista. Estava vivendo num pequeno castelo nos arredores
de Perusa, resto de sua antiga fortuna. Minha chegada alegrou-o muito. Contou-me, na parte que eu desconhecia, a história de sua vida. E com os olhos rasos de lágrimas,
pediu-me que me encarregasse de sua única filha, Giovana, depois de sua morte. Prometi-lhe que permaneceria no castelo até quando ele desejasse, e que depois partiria
levando Giovana, que eu trataria como milha filha, para Montinhoso.
Vendo Giovana pela primeira vez, surpreendi-me com a sua beleza. Julguei nunca ter visto adolescente mais bela. Seus olhos eram profundamente escuros e olhavam sempre
com qualquer coisa de surpreso e interrogativo, do seu rostinho alvo e perfeito. Duas longas tranças loiras caiam-lhe pelas costas, sendo mais em realce o encanto
dos seus olhos escuros. A minha promessa alegrou a Cézar, e, quando alguns dias depois ele morria, abençoou-me antes de cerrar os olhos. Levei Giovana comigo, sem
adivinhar que, com ela, estava levando a desgraça de Paulo para a minha casa. Em Modena compramos tudo quanto à rapariga faltava, e fomos nos acomodar em Montinhoso.
Num ambiente de riqueza e brilho, Giovana desabrochou como uma flor, vencendo a dor motivada pela perda do genitor bem mais depressa do que eu esperava. Chamava-me
de tio Rindolfo e amava-me como a um pai. Também eu lhe era dedicado como a uma filha. Satisfazia-me a sua alegria infantil, que qualquer pequenino presente despertava.
Como um agradecimento que me dirigia, cantava-me com argentina voz, canções que ela mesma acompanhava dedilhando o alaúde. Por esse tempo, surgiu-nos aqui um jovem
artista de nome Enzio Castelli, filho de um amigo meu. A família Castelli era nobre e rica. Enzio, que possui a grande talento pictural, dedicava-se inteiramente
à arte. Tinha feito nome, e recebia inúmeras encomendas de burgueses ricos e sacerdotes. O prior de nosso convento, encomendara-lhe um quadro sacro. Convidei Enzio
a vir morar conosco enquanto executasse o quadro. Simultaneamente pintaria, se consentisse, o retrato de Giovana e o meu. Enzio aceitou satisfeito o convite e logo
iniciou o trabalho. O meu retrato que se encontra nesta sala, foi pintado por ele e executado com a mesma perfeição com que executou o de Giovana. Em breve, observei
que Enzio enamorava-se de Giovana, o que, aliás, não era de admirar. Se Giovana tivesse correspondido ao seu amor, eu teria consentido no casamento. Enzio era de
boa família, de reputação limpa, e, além .disso, o dote que eu havia destinado a Giovana, não deixaria os dois dependentes do seu trabalho. Mas Giovana era indiferente
a Enzio, e quando o moço confessou-lhe os seu amor e pediu-a em casamento, recusou incontinente. Enzio retirou-se do castelo no mesmo dia, regressando a Modena.
Mas a infeliz paixão reconduziu-o de novo a Montinhoso e só
muitos anos depois vim a saber que se tornara monge e ingressara no nosso convento. Paulo estava ainda em Veneza. Quando escrevia, mostrava-se encantado com a cidade.
Era belo e disputado pelas mulheres: entre as beldades, não tinha mais a fazer do que escolher. Enviou-me o seu retrato em miniatura, num maravilhoso medalhão, realizado
por conhecido artista. Esse retratinho, entretanto, desapareceu, e nunca mais pude encontrá-lo, o que até hoje sinto, pois era muito fiel e perfeito. Paulo deixara-se
retratar vestido de branco, com um barrete de plumas sobre a cabeça, tal como eu havia visto em Ferrara...
-- Deus meu, esse retrato eu o vi nas mãos de Valéria, quando encontrei aberta a porta que dá para os cômodos murados! Disse Larissa interrompendo a leitura. E
corou envergonhada, pois até então não dissera nada a ninguém, acerca dessa descoberta. -- Tranqüilizai-vos! O espírito de Giovana mora no corpo de Valéria, não
é mais segredo! Disse Sir Gerald. Falai calmamente! Então Larissa relatou como vira o retratinho descrito nas mãos de Valéria. -- Fica esclarecido agora que Giovana
subtraiu o retrato e o escondeu. Em estado sonambúlico Valéria o encontrou... Explicou Sir Gerald. Mas, prossigamos com a leitura. E continuou:

-- Paulo escreveu-me que uma grave moléstia punha em perigo a vida da Condessa. Temia a sua morte. Resolvi seguir imediatamente para Veneza, a fim de uma vez mais
ver a moribunda. Todavia o destino decidiu transformar os meus planos. No caminho encontrei Paulo que já estava de regresso. A velha Condessa morrera dois dias depois
que despachara a carta. Paulo não quis continuar em Veneza. Notei qualquer coisa de diferente em meu filho: ele trazia uma expressão de abatimento, parecia triste
e preocupado. Atribui tudo ao golpe por que passara e procurei distraí-lo. Falei-lhe das intenções da Duquesa, desejosa de casá-lo com sua filha Bianca. Paulo estremeceu
assustado. Daí por diante, ora empalidecia, ora corava. Disse de súbito, cortando o assunto: -- Um belo plano, papai! Esperemos que se realize. Oxalá eu agrade a Bianca
e ela queira se tomar minha esposa! Passei a remoer a idéia de que Paulo me ocultava qualquer coisa. Como, porém, ele nã0 me parecesse disposto a dizer nada, procurei
Seno, o seu irmão de leite, que lhe servia de escudeiro, e lhe era dedicado e confidente. Seno contou-me que o jovem Conde conquistara o coração de muitas damas,
e que duas delas se tinham suicidado por sua causa, uma vez que Paulo não as quisera. Assim, chegamos de volta a Montinhoso, onde Giovana me recebeu festivamente.
Paulo, entretanto, cumprimentou-a friamente. Em pouco tempo, porém, se tornaram ótimos amigos. Iam juntos à caça do falcão, passeavam livres pelo parque, e cantavam
duetos. Eu julgava tudo muito natural, e estava satisfeito por ver que Paulo se punha outra vez alegre e despreocupado. Nem por um instante imaginei que ambos se
prendessem cada dia mais, pelos laços do amor. Ocupado em por ordem nos negócios da Condessa Castelmonte, não achei tempo para observar mais acuradamente ao meu
filho. Oh! Por que não confiaram em mim, por que não me confiaram o amor que alimentavam? Com as minhas muitas relações, poderia ter impedido o casamento projetado
entre Paulo e Bianca, somente por fazer a felicidade dos dois. Eles, entretanto, se calaram, e eu fui cego. Estava ainda ocupado com a herança que a velha Condessa
deixara a Paulo, quando faleceu meu primo, que me legava todas as suas ricas propriedades no Sul da Itália, as quais, estando eu em Montinhoso, dificilmente poderia
administrar. Resolvi por isso vendê-las. Quis ir à Sicília, mas antes disso passar por Ferrara a fim de me informar se o projeto do casamento continuava de pé. Regressando
intentava levar Paulo ao Duque, para que o noivado fosse festejado. Quando parti Paulo ficou em Montinhoso. Nem ele e nem Giovana pareceram preocupados quando falei
no casamento com Bianca. Eu esquecera a maldição que pesava sobre nós. Supunha que os ricos presentes oferecidos à igreja e as preces que fizera tivessem desfeito
a nuvem negra. Assim, parti para Ferrara. No caminho pernoitei numa grande estalagem cujo proprietário, Anselmo, eu conhecia e respeitava
como um homem honrado e correto. Tinha ele uma única filha, Marieta, que contava dezoito anos. Há muito tempo não me detinha na estalagem pois, habitualmente, fazia
outro trajeto. Por aquela vez entretanto, resolvi, a caminho para Ferrara, pernoitar outra vez na casa de Anselmo. Quando o estalajadeiro veio ao meu encontro, fiquei
admirado com o seu desolado aspecto. Seus cabelos tinham embranquecido inteiramente, e o seu amável sorriso de sempre, se transformara numa expressão de absoluto
desgosto. Subi ao quarto, e quando Anselmo veio trazer-me pão e vinho, perguntei-lhe por Marieta. O velho pôs-se a chorar amargamente, cobrindo o rosto com as mãos.
-- Oh! Signore Conde, a desgraça nos entrou em casa pior que enfermidade. Marieta desapareceu! Admirei-me e pedi-lhe que me contasse o que sucedera. -- Tudo nos
parece um enigma! Bem pouco sei para vos contar! Marieta tinha uma amiga que vivia do outro lado dos montes, próximo da vila. Essa donzela devia casar-se, e pediu-nos
que lhe mandasse Marieta para auxiliá-la na confecção do enxoval. Consentimos nisso, e Marieta partiu. Seu afastamento foi longo porque Panowia, sua amiga, adoecera.
Foi preciso adiar o casamento. Afinal casou-se o jovem par, que seguiu para Piza, para a casa dos sogros. Marieta voltou para casa, mas estava outra: tornara-se
pálida e calada, evitava o convívio conosco e parecia satisfeita apenas quando se sentia a sós. Às nossas reiteradas perguntas, respondia apenas que nada se dera
de extraordinário. Não se sentia bem em virtude de um resfriado. Temíamos, porém, um outro motivo. Não muito longe daqui, vive um armeiro que fazia a corte de Marieta
e que nós teríamos, gostosamente, recebido como nosso genro. Mas, durante a ausência de Marieta ele desposou outra. Como ele fosse jovem e belo, julgávamos que Marieta
o amasse. Certa manhã me disse minha mulher, muito aflita, que Marieta havia desaparecido. Toda a busca foi infrutífera, e até o dia de hoje, não sabemos explicar
o que foi que a expulsou do lar paterno. Ela foi o nosso sol, nós lhe satisfazíamos todos os desejos e ela tinha tudo quanto desejava. O que sucedeu com ela não
sabemos. Só Deus sabe onde ela está!... Não nos podemos libertar da desconfiança de que há, aí,
algum homem em jogo. Desde então, choramos diariamente, e lamentamos a nossa vida, que já agora não tem mais sentido! Profundamente abalado com a desgraça daquela
gente, procurei embalde consolá-los. No dia seguinte prossegui viagem. Em Ferrara verifiquei que o plano do casamento permanecia firme. A Duquesa apresentou-me à
jovem Bianca, que era bela e graciosa. Eu lhe mostrei o retrato de Paulo e, corando, confessou que o desposaria de bom grado. Como Bianca somente daí a alguns meses
completaria dezesseis anos, resolvemos que o contrato de casamento seria festejado depois do meu regresso da Sicília. Estive ausente por mais de quatro meses e,
no meu regresso, hospedei-me outra vez com Anselmo. Eu queria saber se haviam encontrado Marieta. Como fosse um criado, e não o próprio Anselmo que me ajudasse a
descer da. cavalgadura, previ coisas desagradáveis. Quando vi o estalajadeiro na sala, assustei-me: nesses poucos meses ele se transformara em encanecido e encurvado
ancião. Mas o que ele me comunicou sobre o desaparecimento de Marieta, me abalou como um trovão e foi o princípio daquilo que me deveria completar sobre a minha
cabeça. Anselmo me informou o seguinte: Alguns dias depois da vossa partida, senhor Conde, apareceu aqui um velho monge e nos comunicou que Marieta se encontrava
num convento próximo a Modena, que já se confessara e que pedia o nosso perdão pelo mal que nos fizera, mas que não pudera proceder de outro modo. O monge nos entregou
a chave da sua mala de roupas. Até a mala. Um cheiro forte veio ao nosso encontro. Um cheiro de essências e de cadáver. Encontramos vários objetos que nós nunca
havíamos visto, um xale de seda, bordados, panos de cabeça, igualmente de seda, um belo cinto, uma caixinha de jóias. Nosso desassossego cresceu quando minha mulher
encontrou de repente uma trouxa de roupa, desembrulhou-a e vimos nela o corpo completamente ressequido de um recém-nascido, aparentemente estrangulado. Minha mulher
Rita caiu desmaiada. Para nossa felicidade era noite, e pudemos aproveitar a escuridão para sepultar a infeliz criança, encobrindo a vergonha de nossa filha. O nome
daquele a quem Marieta sacrificou o seu coração e a sua honra, nos é, até hoje, um segredo. A avaliar pelos presentes, deve ser um homem rico. Quero mos--
trar-vos, senhor, a caixa, porque podeis, melhor do que nós, determinar o seu valor. Anselmo retirou-se e voltou com uma caixinha entalhada, da qual retirou diversas
jóias. Finalmente mostrou-me um objeto a cuja vista tive uma enorme surpresa. Era um colar com duas séries de pérolas e rubis cor de sangue, do qual pendia um medalhão
com antiga gravação, que representava a mulher de Tibério Júlia. Esse objeto, de grande valor, eu o conhecia muito bem, pois pertencera a minha falecida esposa.
Somente a custo pude conter a minha excitação e ocultá-la a Anselmo. -- Quero contar-vos o final, Signore Conde, enquanto observais as jóias. Quando nos havíamos
acalmado um pouco, pusemo-nos a caminho para visitar Marieta, para levar-lhe o nossa perdão e consolá-la. Perguntamos por irmã Rosália. Levaram-nos à presença da
abadessa que nos recebeu amavelmente, recomendando-nos que respeitássemos como sagrada, a vontade de Deus. Disse-nos que o Senhor chamara a nossa filha a Si. Fora
encontrada morta, certa manhã, aos pés da imagem da Virgem Santa. Contou-nos como Marieta orava incessantemente, mas não sabia qual o pecado que pesava sobre ela..
Só o padre Bonifácio, que a confessara a conhecia. Fora sepultada uma semana antes. A abadessa conduziu-nos ao retângulo de terra revolvida de novo, sob a qual estava
aquela que fora a nossa maior preciosidade na terra. Ali passamos as mais amargas horas da nossa vida". Anselmo ergueu-se e levantou os braços: "Ainda que os homens
não te conheçam o nome, tu, assassino que a mataste, não escaparás do castigo de Deus! A Deus eu chamo por juiz e vingador! Sua mão vingadora te alcançará..." Uma
,horrível maldição escapou dos lábios de Anselmo, enquanto um gélido suor perlava a minha fronte. Eu conhecia o criminoso! Quis obter o colar misterioso, para poder
lançar à face de Paulo o seu crime. Quando vi Anselmo mais calmo, pedi-lhe que me vendesse a jóia, que me interessava, e para ele não tinha valor. Concordou. O procedimento
de Paulo me abalava profundamente. Não. pude conciliar o sono a noite toda. Eu temia ser, aquela falta, o signo da maldição que pesava sobre nós. Meu coração se
contraiu de ódio e de dor, e resolvi realizar os esponsais de Paulo o quanta antes fosse possível. Já era bem tempo de compreender os ditames de honra de um cavalheiro.
Até esse dia, eu acompanhara descuidadamente, esquecido de tudo, o crescimento de meu filho. Então lembrei-me do passado, e comecei a temer o peso da maldição. Enquanto o homem se acha
no viço da idade, cercado de riquezas e de amigos, é cego, e se supõe acima de tudo. Ora a Deus quando se lembra. Quando a primeira admoestação do destino lhe bate
à porta, entretanto, primeiro busca o auxílio dos homens, e só depois se dirige a Deus, ao Onipotente de onde parte e vem o auxílio buscado. O que se deveria fazer,
de que maneira dirigiria minhas preces ao Alto, a fim de desviar o infortúnio da cabeça de meu filho? Um velho imigrante de um convento., o signore Felício, auxiliou-me
por esse tempo com seus conselhos, e explicou-me o valor e o sentido da prece. Fui aprendendo aos poucos que, nós humanas, com o mal que fazemos, nos envolvemos
numa esfera densa que, como um muro, nos separa de Deus, e nos rouba a luz e o amor que Ele irradia. E, como se nos achássemos num denso bosque, através do qual
a nossa frágil prece não consegue passar. Não é possível afastar a fatalidade que pesa sobre nós. Diante do destino, somos um nada. Somas cegos e não vemos o abismo
aos nossos pés, somos surdos e não ouvimos o gargalhar dos demônios que nos convidam à perdição! Muito tarde compreendi que quem não sabe orar, nada mais é que um
aleijado, surdo, mudo, cujo gemido desarticulado não pode alcançar as altas regiões. A prece é, para a nossa alma, um impulso ascensional quando, como uma espada
flamígera, penetra na escuridão e se eleva rápida nos céus. Mas então, quando eu precisava orar pela salvação do meu filho, eu nada sabia disso. Julguei que bastasse
pô-lo à salvo através de um bom casamento. Ignorava tudo quanto se passara em Montinhoso naqueles dias, e somente mais tarde, numa hora terrível e angustiosa, os
sucessos da minha ausência. Na manhã seguinte, eu estava em Ferrara, e mandei, imediatamente, um portador a Montinhoso, com ordens para que Paulo partisse sem nenhuma
tardança, ao meu encontro. Alguns dias depois ele chegava. Estava magro, pálido e inquieto. No dia seguinte se realizou um baile no paço do Duque, e a Duquesa apresentou
Paulo a sua filha Bianca. Meu filho mostrou-se amável e atraente como raras vezes; contudo, tive o pressentimento de que o seu sorriso e a sua alegria eram fingidos.
Seu olhar era, às vezes duro e cruel. A corte, naturalmente, nada disso observou.
Bianca parecia enlevada e enamorada. Depois do banquete, a Duquesa me disse sorridente que o meu filho havia cativado completamente o coração de sua filha, e que
podia ser celebrado o contrato de casamento. Eu deveria fazer ao Duque o meu pedido formal. Na manhã seguinte chamei Paulo e lhe disse que o seu noivado com a princesa
Bianca deveria ser anunciado publicamente dentro de alguns dias, e que ele com permissão do Duque poderia, nesse dia, pedir a sua mão. Paulo empalideceu, enrubesceu
e me disse que não desejava fazer isso. Perguntei-lhe com severidade o que tinha a objetar a um tão brilhante casamento, com o qual deveria ufanar-se, tanto mais
que Bianca era bela e o amava. Deixou pender a cabeça e meneou mais uma vez, negativamente. Isso me levou a tal excitação, que perguntei-lhe brusco: -- Quais os
motivos que podes alegar? Contraíste, porventura uma outra aliança que te prende? Reconheces isto? E com estas palavras atirei o colar sobre a mesa. Ele levou as
mãos à cabeça, e recuou espavorido. -- Conheces o destino de Marieta, a filha de Anselmo? -- Recolheu-se a um convento! disse-me baixinho. -- Sim, mas depois de
ter estrangulado o teu filho. Tu a abandonaste. Como um ladrão a roubaste aos seus honrados pais, a lançaste no lodo, e como uma luva velha, a atiraste para longe
de ti. Não procedeste como um homem de bem, mas como um canalha. A tua vítima morreu, mas sem denunciar o teu nome. Sobre a sua sepultura, porém, o seu pai amaldiçoou
o autor da desgraça. Já não bastam as maldições que pesam sobre a nossa família? Já te esqueceste, por ventura, do destino trágico que afastou tantos dos nossos?
Fica sabendo agora que não reconhecerei a tua escusa em desposar Bianca. Seria um imerecido ultraje à família ducal e à tua noiva. Paulo caiu numa cadeira e cobriu
o rosto com as mãos. Julguei então que ele sentia remorsos pela morte de Marieta. Só mais tarde vim a conhecer a verdadeira causa do seu abatimento. A minha suposição
de então, parecia confirmar-se pelo fato de não opor Paulo mais nenhuma resistência, de modo que o contrato de casamento foi anunciado poucos dias depois. Realizou-se
uma grande festa no paço do Duque. Bianca estava contentíssima, e o pró
prio Paulo mostrava-se alegre, porém, pálido e algo distante. Todos admiravam a sua beleza, e apenas eu julguei ter encontrado em sua expressão fisionômica alguma
coisa de demoníaco. Mas a festa decorreu bem. O casamento deveria realizar-se daí a dois meses. Paulo acarinhava e presenteava a noiva, e ambos se preocupavam em
embelezar o novo castelo que o Duque lhes dera, e no qual iriam morar. Como estes preparativos exigissem grandes gastos, fui a Veneza para sacar ali o dinheiro que
pela finada Condessa de Castelmonte fora deixado a Paulo e a mim. Para essa transação foi preciso por-me em contato com o advogado da finada, e conheci a Baptista
Bertolini, o mais rico negociante de Veneza. Quando cheguei a sua casa, fui recebido por seu filho que me comunicou que Baptista estava enfermo, e que ainda não
pudera se restabelecer do choque que sofrera com o desaparecimento de sua filha. Eu já havia visto, tempos atrás, Lucrécia Bertolini, uma rapariga bela, de olhos
escuros. Eu sabia que ela tinha muitos requestadores, entre os quais se contavam nobres. Como pudera menina tão severamente vigiada por seu pai desaparecer? A meu
pedido, Renso Bertolini me contou o seguinte: -- Meu pai e eu não estávamos em casa quando se deu o desastre. Uma noite, desaparecia Lucrécia, e com ela um menino,
filho de sua ama, que lhe servia de pajem. Uma parente nossa, que dormia no quarto contíguo, acordou de noite com um forte cheio de narcótico. Supôs-se que algum
de seus cortejadores estivesse em relação com esse desaparecimento. Mas quem? Lucrécia não dera preferência nem distinguira especialmente a ninguém. Assim não sabemos
até hoje o que sucedeu. Um acontecimento singular nos fez supor que Lucrécia foi assassinada. Uma noite, a nossa parenta despertou a casa toda com seus gritos desesperados.
Quando entramos em seu quarto, vimo-la acocorada, tremendo num canto da cama. Contou que fora despertada pelo contato de uma mão fria e que vira Lucrécia vestida
apenas com uma camisa, de pé, à sua frente. No peito da desaparecida, estava fincado um punhal, de brilhante punho. Erguera a mão. Pedira que orassem por ela e lhe
dessem sepultura. Desapareceu depois. Extraordinário, porém, foi que vimos no ombro da nossa parenta, uma impressão digital muito distinta.
Condoí-me sinceramente dessa infeliz família, e quando eu estava de volta a Ferrara, relatei esse fato a Paulo. Parece-me, entretanto, que não produziu nenhuma impressão
sobre ele, que apenas disse ter pena da bela rapariga. Logo depois do meu regresso, Paulo me comunicou que desejava ir, por alguns dias, a Montinhoso, a fim de trazer
jóias e pratarias, e ao mesmo tempo porque tinha em mente ir ao casamento de um amigo em Modena. Concordei com essa viagem, e encarreguei-me ainda de outras tantas
coisas. Pensei até que pudesse trazer Giovana consigo, para assistir ao casamento. Pareceu-me melhor, pensando no assunto, que eu mesmo a trouxesse. Eu queria introduzi-la
na corte, onde poderia encontrar um bom partido. Paulo regressou, mas estava outra vez taciturno e pensativo, e nem mesmo o sorriso da noiva conseguiu alegrá-lo.
Uma semana depois do seu regresso, efetuou-se o casamento com um brilhantismo real. Na noite do casamento, deu-se um fato singular. Quando o par entrou na alcova
nupcial, Paulo deu um grito e perdeu os sentidos. Assustamo-nos todos, e supusemos que ele tivesse adoecido. Logo despertou, entretanto, e disse que apenas tivera
uma forte tontura e sentira muita dor no coração, que atribuiu ao nervosismo do dia. Como não se manifestassem outros sinais de enfermidade, tranqüilizei-me e regressei
a Montinhoso. De volta ao castelo, admirou-me o fato de Giovana não ter vindo me receber, como o fazia de costume. Soube, porém, que, na mesma noite da partida de
Paulo, Giovana fora assaltada por um estranho que quase a estrangulara, e em seguida a atirara ao valado junto da gruta. Apoderou-se de mim um horrível pavor do
futuro. Felizmente ficara presa nos arbustos, ao rolar para o vale, e no dia seguinte pode ser salva. Estava sem sentidos, e despertou somente algumas horas depois.
Em seu pescoço estavam ainda as impressões dos dedos do criminoso. Meu administrador quis mandar um portador a Ferrara, mas Giovana proibiu-lhe terminantemente que
fizesse isso. Sem o seu consentimento, mandou chamar o médico. E encontrava-se convalescente, mas em singular estado de ânimo. Permanecia quase sempre deitada, não
comia nem falava. Infelizmente não puderam os meus servos prender o criminoso, que ousara aproximar-se tanto do meu castelo. Dizia-se apenas que havia sido visto
um mendigo que perambulava pelos arredores. Este tam
bém desaparecera. Profundamente comovido com o que acabara de ouvir, fui imediatamente ao encontro de Giovana. Estava deitada sobre uma cama de campanha, e tinha
as feições completamente mudadas. Magro e pálido estava o seu rosto. Seus grandes olhos sem brilho olhavam ao redor, e seus lábios contraíam-se transidos de dor.
Quando me inclinei sobre ela, abraçou-me e me segredou com voz abafada pelas lágrimas: -- Querido trio Rindolfo, eu te quero tanto! Foste para mim sempre um pai...
Tu nem sabes como eu te amo e te respeito! -- Minha querida filha, eu nunca duvidei do teu amor filial. Tranqüiliza-te. Não nos separaremos nunca mais. Eu te protegerei,
para que não suceda um novo mal! Disse-lhe eu. Ela procurou sorrir e disse que já não temia nada. Faria o possível por se levantar para o jantar. Às minhas perguntas
sobre o assalto, contou-me a contragosto: -- Não me martirizes, tio Rindolfo. Não conheço o malfeitor, e nem o pude ver ou reconhecer, pois já era noite. Eu tinha
ido sozinha à gruta, sem pressentir qualquer coisa de mal. Giovana foi ganhando vivacidade, mas o seu rosto parecia cada dia mais pálido e mais fino, de modo que
decidi ir com ela a Ferrara, para distraíla um pouco. Ela porém, não aceitou a idéia, e me pediu que a deixasse em Montinhoso, pois era ali que se sentia bem. Todo
o meu esforço em convencêla, foi inútil. Nesse tempo me veio pela primeira vez a desconfiança de que ela talvez amasse a Paulo, pois quando um dia lhe fiz a descrição,
para distraí-la, do casamento em Ferrara, ela empalideceu e fechou os olhos. Em seu semblante se desenhou uma expressão de ódio, amargura, e desespero, como se uma
lúgubre resolução se armasse em seu espírito. Desde esse dia, notei que qualquer referência a Paulo a deixava nervosa, e essa descoberta inquietoume... Se também
Paulo a amasse, eu de bom grado teria estado disposto a desistir do casamento com Bianca, apenas para não prejudicar a felicidade de Giovana. Como o homem, porém,
sempre espera aquilo que deseja, eu também esperei que ela esquecesse Paulo, com o passar dos dias. Um dia Giovana estava tão enfraquecida, que não pode erguer-se.
Eu queria mandar chamar um
médico afamado de Florença quando soube, pelo capelão, que nas proximidades do castelo vivia um médico que já fizera várias curas mui singulares. Chamava-se ele
Felício Luciano, e vivia com um menino que o servia, num casebre próximo a Montinhoso. O senhor Felício veio examinar Giovana e me disse: -- Chamaste-me tarde demais.
A alma já entregou o corpo à destruição, e ela não viverá mais do que duas ou três semanas. Estas palavras me surpreenderam. Não podia acreditar num fim assim tão
rápido. Nem sei descrever quão infeliz eu me sentia quando fui ver Giovana. Estava deitada em seu lugar predileto, junto da janela aberta. O sol poente iluminava
o seu rosto de cera, e os seus raios a envolviam como uma áurea divina. Dormia e não ouviu a minha entrada. Quando me aproximei mais, estremeceu dormindo e balbuciou:
"Paulo?!" Com os próprios lábios confirmava ela a verdade. O amor sem esperança, martirizava-a mortalmente. Quando abriu os olhos, assentei-me ao seu lado e lhe
disse, como uma leve admoestação: -- Giovana... Porque não depositaste confiança em mim, abrindo-me o teu coração? Acreditaste realmente que eu sacrificaria a tua
vida e a tua felicidade ao meu amor próprio? Giovana pôs-se a chorar baixinho. -- Queres vê-lo? Mandarei chamá-lo. Ela apenas meneou a cabeça. -- Eu desejaria vê-lo...
pela última vez. Ele, porém não virá... -- Ele virá Giovana! Mandarei imediatamente um portador. -- Permita-me, titio, que lhe escreva algumas palavras! -- Escreve
minha filha, enquanto instruo o mensageiro. Giovana entregou-me uma carta lacrada, e o mensageiro partiu ainda nessa mesma noite. Levava ordens de viajar tão depressa
quanto possível. Desde esse dia, Giovana foi presa de impaciência e desassossego febris. Pedia que a levassem de manhã à torre do castelo, para que pudesse descortinar
a linha distante do horizonte e esperar Paulo. Somente à tardinha, quando escurecia, é que permitia que a reconduzissem ao seu quarto. Às vezes pedia o
seu alaúde e cantava, então, em voz fraca, algumas canções e baladas, ou mergulhava em profundas meditações. E Paulo não vinha. Mandei um segundo mensageiro, escrevi
que não encontraria Giovana com vida se não se apressasse. Não compreendia a contemporização. Eu sentia um grande desassossego. A excitação de Giovana, porém, tinha
chegado ao auge, e eu temia, cada dia, que ela não sobrevivesse à manhã seguinte. Quando cautelosamente lhe fiz a proposta de se confessar e comungar, ela recusou
energicamente: -- Não! Deus é inclemente. Recebem uns tudo, às mãos cheias, com abundância. Outros têm as mãos vazias, e ainda sacrificam o pouco que tem. Não quero
orar. E uma manhã Giovana não desejou mais ir à torre. Com o olhar taciturno recusou o alimento. Mandei chamar o signore Felício, e fiquei pessoalmente ao seu lado.
À tardinha ela tornou-se outra vez mais animada. Ergueu-se na cama, e com os olhos muito abertos olhou ao derredor. -- Tu és desalmado, negas a uma infeliz a sua
última súplica. Livra-te, também eu serei inclemente. Se eu te segurar não te largarei mais. Ela riu-se fantasticamente, e caiu outra vez sobre as almofadas. Depois
adormeceu. Fui ao meu quarto para repousar um pouco e escrever uma carta urgente. Pela meia-noite terminava eu a carta. Senti de repente um vento glacial que passava
pelo aposento. Voltei-me, e julguei que a janela não estivesse fechada. Mas fiquei estarrecido de susto quando a dois passos de mim vi uma densa nuvem de fumo negro
que parecia iluminada por um fogo esverdeado. A fumaça abriu-se e a imagem alva de um homem, em trajes antigos, se apresentou. Seu braço estava suspenso e na mão
sustinha um objeto ensangüentado que eu não pude reconhecer. Toda a sua imagem fazia-me a impressão de uma estátua. Julguei reconhecer nele o nosso antepassado Girolamo,
pois havia visto o seu retrato na galeria. E então ele me disse: -- Ai de ti, pobre pai! A nêmesis se aproxima. O coração do traidor não escapará ao seu destino.
A imagem foi se esbatendo e desapareceu. Tive um desmaio. Mais tarde eu não sabia realmente se havia visto um espírito ou se o meu estado nervoso é que me levara
a imaginá-lo. Trêmulo deitei-me, mas não pude conciliar o so
no. Uma hora depois a nossa velha ama mandava um criado para dizer-me que Giovana havia morrido. Vesti-me às pressas e fui ao quarto da morta. Cheio de aflição e
compaixão, fitei aquele rosto belo, que ostentava uma expressão hostil, ainda depois de morto. Coloquei um crucifixo sobre o peito de Giovana e orei pelo descanso
de sua alma que tão cedo tivera que partir. O signore Felício havia chegado. Fi-lo entrar, na esperança de que Giovana estivesse apenas profundamente adormecida,
e ainda pudesse ser salva. O sigsignore Felício inclinou-se sobre ela, examinou-a e constatou que qualquer auxílio era tardio. -- Pretendeis, senhor Conde, entregar
esta bela morta à decomposição? Perguntou ele. Conheço um processo pelo qual se pode preservar um cadáver eternamente e conservar-lhe a sua expressão natural.
Pedi ao signore Felício, pois, que preservasse o corpo de Giovana da decomposição e empregasse o seu processo. Eu não teria suportado nunca deixar o ser que eu amara
como filha desfazer-se em pó, Ele me prometeu que o corpo de Giovana estaria pronto no dia seguinte para ser levado à catacumba dos Montinhoso. Quando vi a morta
no dia seguinte, fiquei admirado da sua aparência de vida. Parecia que apenas dormia. O signore Felício me disse, entretanto: -- Signore Conde, não demoreis com
o sepultamento. Os espíritos maus a rodeiam, e se não a fizerdes sepultar logo, pode dar-se uma grande desgraça. Para a minha infelicidade, não compreendi estas
palavras de signore sign Felício. E eu respondi que não podia sepultar Giovana às pressas, como uma criminosa. Eu lhe queria prestar todas as honras. Felício apenas
meneou a cabeça. -- Arrepender-vos-eis de menosprezar as minhas palavras. Contudo voltarei amanhã a noite ao castelo. Talvez necessiteis dos meus serviços. Agradeci-lhe
mas não dei crédito a tais palavras, pois só pensava no enterro da minha amada Giovana. Os sacerdotes me opuseram dificuldades, porque Giovana não recebera os socorros
eclesiásticos antes de morrer. Contudo consegui convencer o prior do convento por meio de um grande presente que fiz à igreja. As missas em intenção da alma de Giovana
foram ditas. Nes
sa ocasião vi, inesperadamente, Enzio Casteli, entre os monges. Olhava-me carrancudo. Orou a noite toda junto ao esquife da morta que havia sido removido para a
capela do castelo, de onde devia sair no dia seguinte, para ser sepultado no jazigo da família. Quando na manhã seguinte se dizia a missa fúnebre, todos os moradores
do castelo se reuniram, com o resto do povo, na capela. De repente, me pareceu ouvir tropel de animais no pátio do castelo. Um escudeiro apareceu e anunciou a chegada
do meu filho Paulo. Quando, um momento depois, Paulo entrou, estranhei a sua excessiva palidez, que pelo traje negro que ele vestira logo depois de sua chegada,
era ainda mais realçada. Quando se aproximou de mim, critiquei-o pela sua demora. Disse-me, porém, que Bianca em breve se tornaria mãe, e não o deixava sair. Essa
novidade me alegrou, e achei natural que ela não quisesse separar-se de seu esposo. Paulo aproximou-se do esquife, ajoelhou-se e absorveu-se numa prece. Parecia
de sobremaneira emocionado. Finalmente ergueu-se, tomou das mãos de pajem um ramalhete de flores, fitou Giovana por muito tempo e depôs, então, as flores sobre o
seu peito. Neste momento deu-se o fato horrível, que atordoou todos os presentes, e fê-lo estremecer. A mão petrificada da morta ergueu-se e agarrou Paulo pelo pulso.
Meu filho emitiu um grito de angústia e caiu de joelhos junto do esquife. Pensei ter estarrecido de susto, mas o grito do infeliz me chamou à razão. Todos os presentes
pareciam próximos da loucura e muitos caíram em súbitas síncopes. A maioria procurou fugir. Gritavam e esmurravam-se. Em breve a capela estava vazia. Apenas o sacerdote,
no altar, Enzio Casteli, Seno, seu irmão de leite, o meu escudeiro Martim e eu ficamos aí. Com a cabeça pendida, Paulo jazia desfalecido junto do esquife. Passando
o primeiro susto, tentamos soltar os dedos da morta do punho de Paulo, mas embalde. Quais garras férreas desfiguravam o infeliz e pareciam não querer largá-lo nunca.
Enzio Casteli estava do outro lado do esquife e observava os nossos esforços inúteis. Finalmente disse: -- Deixai disso, senhor Conde! Vosso esforço é vão. Aqui
Deus onipotente fez baixar sua sentença. E se Deus fez a mão da morta erguer-se na presença de todos, é por que grande é o crime cometido contra a finada.
Ele lançou um olhar de desespero, cheio de ódio, sobre Paulo, e a passos vagarosos saiu da capela. Eu seria incapaz de escrever o que sofri e experimentei. Não pude
banir de mim a desconfiança de que Paulo tivesse enganado Giovana. Esse seria um procedimento baixo e indigno dele. Mas não devia eu, à vista do terrível castigo
que acabara de sofrer, perdoar-lhe tudo? Sim, eu podia fazer isso. Perdoei-lhe tudo, e o meu ódio desesperado voltou-se contra Giovana. Foi essa então a sua gratidão
pelo que fiz a ela e a seu pai, recolhendo-a em minha casa? Se eu a tivesse deixado entregue ao destino, a minha casa teria ficado livre desse infortúnio e vergonha.
Mesmo que Paulo a tivesse enganado, ela se teria entregado a ele espontaneamente. E se o amasse realmente, não teria se vingado com tanta crueldade, pois que o amor
verdadeiro tolera e perdoa tudo. Marieta, a filha do simples Anselmo provara isso. Morrera sem denunciar o seu algoz, para não o entregar à vingança dos seus. Meu
coração estava saturado de dor e desespero; em minha raiva pronunciei em voz alta uma imprecação, e não lembrei que sobre nós pesava também a maldição de Girolamo.
Todo o pensar e meditar de nada adiantava, eu precisava agir. Mas, o que devia fazer? Resolvi então cortar a mão da morta e soltar um dedo após outro, do punho de
Paulo. Trouxeram-me o meu mais afiado punhal e eu ia dar começo à operação quando entrou o signore Felício. Lembrei-me de suas palavras e de seus conselhos e arrependi-me
sinceramente de não os ter seguido. -- Salva o meu filho, salva-o! Eu te farei o homem mais rico! -- O vosso ouro, Conde, não me tenta!... Respondeu ele tristemente.
Mas a desgraça que vos atinge, me abate profundamente. Eu farei tudo quanto esteja em minhas forças para o ajudar. A desgraça está feita! Vede a expressão fisionômica
cruel, triunfante, que tem a morta agora. Crede que precisamos cortar a mão da morta mas não quero começar nada sem antes ter consultado as forças invisíveis. Em
primeiro lugar vou buscar um remédio para fazer o jovem voltar a si. Antes disso, porém, teremos que tirar o esquife do catafalco e colocá-lo ao lado para podermos
assentar o jovem Conde naquele banquinho.
Executamos as determinações do signore Felício, mas foi difícil chamar a criadagem que se recolhera ao lado oposto do castelo. Ninguém veio. De modo que finalmente,
o velho sacerdote, a quem supliquei que ficasse, e dois dos meus cegamente submissos escudeiros alçaram o esquife e o desceram ao lado. Fizeram Paulo assentar-se.
Terminávamos justamente a nossa pesada tarefa quando o signore Felício regressava. Trazia um líquido num vaso fervente e uma bacia de prata com água. Com a água
Felício molhou o rosto de Paulo, que logo abriu os olhos. Seu olhar era interrogador e pleno de horror. Voltou-se para nós. Então teve que beber o líquido do vaso.
-- Coragem, senhor Conde. Quero salvar-vos a vida, se fordes calmo e suportardes tudo até o raiar do dia. Depois o senhor Felício voltou-se para mim. -- Ele deve
acalmar-se, mas vós deveis orar a Deus e pedir auxílio e perdão pelos vossos pecados. Tomarei agora as necessárias providências e farei os preparativos. Nós todos
nos postamos de joelhos e oramos fervorosamente. Eu perdoei ao meu filho todos os seus crimes, quaisquer que pudesse ter cometido, pois sua desgraça me atingiu profundamente.
-- Como te sentes, meu filho? Perguntei-lhe baixinho. -- Perdoa-me, papai! Receio enlouquecer. Em meu braço, até o ombro, sinto um ardor semelhante ao de brasas,
mas nas veias, por todo o corpo, sinto um frio glacial. Não consegui responder-lhe. Minha garganta estava como que estrangulada. Calado beijei-o sobre a testa. Ele
compreendeu que eu o havia perdoado. Os seus olhos brilharam. Assim se passou talvez uma hora, até quando o sacerdote se ergueu e, aproximando-se de Paulo, lhe perguntou
se queria aliviar o coração e a consciência, por meio de uma confissão. Talvez que assim se reconciliasse com a sua vítima. Paulo ergueu-se e estava disposto a isso.
Pediu um copo de vinho morno. Depois de ter bebido, solicitou ao sacerdote que permitisse a seu pai ouvir a confissão. Aquele homem honrado compreendeu a 'Paulo
e deu o seu consentimento. Martim me trouxe um banco e todos os outros se retiraram da capela. Paulo, com muito custo, ajoelhou-se diante do
padre Francisco. Este já estava há alguns anos no castelo, havia batizado Paulo e lhe ministrara a sua primeira comunhão. Ele o amava. Pôs um círio aceso na mão
de Paulo e disse: -- Perante Deus e seu misericordiosíssimo Filho, deverás confessar os teus pecados, meu filho. Não ocultes nada e fala sem ocultar nenhuma coisa.
Deus é misericordioso e perdoa aqueles que sinceramente se arrependem. Cristo disse: "Quem estiver livre de pecado atire a primeira pedra". O pecado é próprio do
homem. Quem te escuta, são teus pais; teu pai carnal e eu, pai espiritual. Paulo beijou o crucifixo e começou a falar baixinho, porém claramente. Cada palavra dessa
confissão me dava uma punhalada no coração. Signore Felício aconselhou-me escrevesse também essa confissão. E tanto quanto ainda me recordo das palavras de Paulo,
quero seguir esse conselho. Em primeiro lugar falou ele de Marieta. Como, entretanto, eu já contei a sua triste história, desejo tão somente acrescentar que Paulo
encantou-se com a sua beleza. Quando a viu em casa da amiga, conseguiu ele alcançar o seu amor e desencaminhá-la. Mas em breve se aborreceu dela, tanto mais que
ela lhe dissera que ia ser, dentro em pouco, mãe de seu filho. Ele resolveu casá-la. Em Seno encontrou um noivo que a teria desposado, pois que ela lhe agradava
também, mas a rapariga se negou a contrair núpcias. Paulo seguiu para Veneza e esqueceu-a! Nem lhe passou pela mente que esse amor efêmero, pudesse ter quaisquer
más conseqüências. Pois que ele, como tantos outros, apenas enganara uma rapariga do povo. Paulo conhecia outras jovens como aquela. Todas contavam como uma honra,
o haver despertado o agrado de um nóbile le. Em Veneza, por ocasião de uma festa no Canal Grande, Paulo viu, pela primeira vez, Lucrécia Bertolini, cuja beleza surpreendeu-o
e fascinou-o. Quando Paulo referiu ao seu nome, estremeci. "Deus misericordioso, estaria Paulo também envolvido na história obscura do seu desaparecimento"? -- Enamorei-me
de Lucrécia, contou Paulo em sua confissão, e em breve soube que era filha de um rico senhor. Mas como não freqüentasse a nossa sociedade, era-me difícil vê-la.
Subornei então a sua velha ama, e soube que o pai de Lucrécia queria casá-la, em breve, com um primo, de quem já era
noiva. Essa notícia aguçou ainda mais a minha paixão. Graças à ausência do pai e do irmão, que estavam de viagem, pude, desembaraçadamente, cantar serenatas debaixo
da sua janela, enviar-lhe por intermédio da ama cartinhas e flores, e encontrá-la na igreja. A velha Laura nos auxiliava também nos nossos passeios de gôndola. Disfarçado
e com uma máscara sobre a face, ia eu numa gôndola, pelo meu fiel Seno dirigida, até junto à casa de Lucrécia. Passando-a, que também estava mascarada, para a minha
gôndola, passeávamos por muito tempo, falando de amor. A sua paixão era tão grande quanto a minha. Teria, porém, maior duração? Por muito que ela estivesse enamorada
de mim, não a pude vencer. E este fato aumentou ainda mais a minha paixão. É verdade que ela se sentia orgulhosa de ver um dos mais belos cavalheiros de Veneza aos
seus pés, mas temia o rancor de seu pai e pediu-me conservasse a nossa ligação em segredo. Um dia me confessou que, como minha esposa legal, ela se atreveria a apresentar-se
ao pai e dizer-lhe que decidira mudar os seus planos de casamento. Essa revelação tirou-me a paz. De um lado eu estava firmemente convencido de que tu, papai, nunca
te manifestarias de acordo com semelhante casamento. De outro lado, Seno tentou, por todos meios e modos dissuadirme. Mas Lucrécia me dominara de tal modo, que julguei
não mais poder viver sem ela, e assim, resolvemos nos casar secretamente. Julgávamos que, colocando nossos pais diante do fato consumado, estes se conformariam,
e nos dariam, ainda que posteriormente, o seu consentimento. O pai de Lucrécia, porém, segundo a minha opinião, somente poderia agradecer a Deus, por ter um Conde
Montinhoso por genro. Com o ouro demovi um sacerdote de uma pequena igreja nas proximidades de Veneza, que nos recebeu em matrimônio, de noite. Ninguém, além das
duas testemunhas, Seno e a ama, ficaram sabendo do fato. Durante os primeiros tempos, regalamos a alma com a nossa felicidade. Lucrécia estava contentíssima por
pertencer-me e eu também, julgavame indizivelmente feliz. Aos poucos porém, tornei-me mais sério. O meu amor por Lucrécia arrefeceu. Sempre pensei, papai, em dizer-te
a verdade. Quando vovó morreu e eu vim ao teu encontro, ordenei a Lucrécia que se calasse e não me seguisse antes de receber instruções minhas. Pretendia primeiramente
combinar tudo contigo; então eu iria buscá-la. Lucrécia concordou. Quando ouvi de ti o plano de casamento com Bianca, não sabia o que devia fazer. Eu te teria dado
razão se tivesses desaprovado o meu casamento com a filha de um simples negociante. Vim para aqui e encontrei Giovana. Beleza semelhante não havia visto antes. Já
alguns dias depois, eu era um seu escravo, e me recriminava pelo meu apressado casamento com Lucrécia. Notei o amor que tu dedicavas a Giovana e compreendi que nada
terias a opor a. um casamento com ela. Contudo, eu mesmo tranquei, como um tolo, as portas para a minha felicidade. Com a convivência íntima, com os passeios que
fazíamos, com os duetos que cantávamos, os nossos corações se encontraram. Por Lucrécia, então, passei a nutrir ódio e aversão. A minha paixão por Giovana chegou
ao auge, quando vi o quanto era cortejada por Manfredo Toreani. Manfredo era rico e belo, e pertencia a uma das mais distintas famílias de Modena. Fiquei preso de
ciúmes ao lembrar-me que Giovana pudesse um dia pertencer-lhe. Ela, porém, ocultava os seus sentimentos. De modo que eu não sabia se ela o amava, ou se amava a mim.
Mas eu confiava no fato de que, até então, nenhuma senhora ou senhorita que me agradara tivesse podido resistir-me. Na tarde do dia anterior àquele em que me falaste
sobre o pretendido consórcio com Bianca, eu e Giovana nos havíamos desentendido. Durante o festejo do meu aniversário, Giovana dera visíveis preferências a Manfredo.
Eu estava sendo devorado por um louco ciúme. Sabia, aliás, que não podia desposar Giovana, mas queria possuí-la a todo o preço. Preferia assassiná-la, a deixá-la
a Toreani. Achei um pretexto para atraí-la à gruta e confessar-lhe, aí, o meu amor e os meus ciúmes por Manfredo. Giovana respondeu à altura. De bom grado se tomaria
minha esposa, mas nunca minha amante. Para possuí-la teria de passar pela porta da igreja. Mas se eu desposasse Bianca, ou ela se tomaria esposa de Manfredo ou se
recolheria a um convento. Cego pelo amor, jurei que somente ela, e nenhuma outra, seria minha esposa. Eu tinha em vista apenas afastar as suas desconfianças. O acaso
me foi favorável. Tu viajavas para a Sicília e eu ficara só em Montinhoso. Imediatamente ordenei a Seno que preparasse tudo para um casamento secreto, e nem pensei
no crime que cometia, contraindo essas segundas núpcias. Seno ficou estupefato, mas
não ousou contrariar-me. Na pequena capela de Santa Rosália, próxima do convento, um sacerdote mau e ganancioso chamado Ambrósio, prontificou-se a fazer o nosso
casamento, em segredo, por uma boa soma de dinheiro. Eu, naturalmente, não lhe disse palavra sobre o meu primeiro matrimônio. A Giovana eu disse que o nosso casamento
não podia realizar-se na abadia, pois, então, tu virias a saber a tudo, antes do tempo. A cerimônia realizou-se apenas com a presença de Seno, Lorenzo, que também
me era dedicado, e Giuseppe, um velho soldado. Além disso, Giuseppe era cego, e quase surdo. Dessas testemunhas é que eu precisava. Começou, então, para nós, um
período de amor apaixonado. E Giovana foi a primeira mulher que, graças a seus encantos, me escravizou. Muitas vezes tive medo do futuro, onde, talvez, fosse tudo
descoberto. Mas também aqui o acaso me favoreceu. O padre Anselmo morreu e poucas semanas depois morria Giuseppe e Lorenzo. Tranqüilizei-me outra vez e entreguei-me
à minha ventura e ao meu amor. Nesse tempo recebi diversas cartas de Lucrécia que me suplicava desse fim à sua situação angustiosa, porquanto seu pai e seu irmão
em breve regressariam, e trariam consigo o seu noivo. Respondi-lhe que precisava aguardar o teu regresso da Sicília. Admiti, não sem motivo, que Lucrécia estaria
sendo devorada pelos ciúmes, pois que o rapaz que ela mandou com a primeira carta viu quando eu saia a cavalo na companhia de Giovana, e provavelmente lhe contou
quão bela mulher habitava o castelo. Uma tarde vi de repente Seno pálido e confuso vir a mim, para dizer-me que Lucrécia acaba de chegar, com o filho da ama. Fiquei
como que atingido por um raio. Era o que faltava! Uma mulher pela qual apenas alimentava desprezo, chegava aqui para desmascarar-me. Um pensamento diabólico passou
pela minha mente. Ordenei a Seno que a conduzisse, através do subterrâneo, ao quarto vermelho, e o pequeno Carlos ao meu quarto. Ninguém deveria vê-la. Nosso reencontro
nessa noite não foi alegre. Lucrécia me cobriu de injúrias por havê-la abandonado, a ela minha esposa perante Deus, para amasiar-me com outra rapariga. Ameaçou contar
tudo a Giovana, assim como a seu pai. Falou ela durante todo o tempo, e o meu ódio foi crescendo de minuto a minuto, mas dissimulei meus sentimentos e tranqüilizei-a
com palavras amo
rosas. Aos poucos ela acalmou-se, deitou e adormeceu em breve. Então aproximei-me sorrateiramente e matei-a com uma punhalada. Contudo ela teve forças para abrir
os olhos, reconhecer-me e gritar com voz rouca: -- Paulo?! Assassino... traidor... maldito... Depois morreu. Paulo calou-se e fechou os olhos. A recordação de seus
crimes acabrunhava-o profundamente. O padre Francesco e eu ficamos perplexos. Eu nunca teria julgado que meu filho seria capaz de um assassínio. Algum tempo depois
Paulo prosseguia na sua confissão. -- Quando Lucrécia estava morta, chamei Seno, e com o seu auxílio, conduzi o cadáver para o quarto secreto, onde o atiramos e
deixamos. Na mesma noite, mais uma vítima seguia Lucrécia. O meu muito dedicado Seno resolveu assassinar, por minha causa, o infeliz Carlos. Tudo ficou em segredo.
Agora principiarei a confessar o último período que provocou a vingança da morta. A morte de Lucrécia restituiu-me a liberdade. O meu crime estava e ficaria oculto.
Contudo, desde esse dia não tive mais sossego, e o meu amor por Giovana arrefeceu. Não compreendi como isso podia acontecer. Os olhos negros de Giovana me infiltravam
pavor. Parecia que ela não mais confiava em mim, duvidava do meu amor e me ameaçava, dizendo que agira com consciência e que se eu tentasse fugir-lhe, me seguraria
e nunca mais me largaria. Em breve não pude mais tolerar a vida em Montinhoso. Durante a noite parecia-me ouvir a voz de Lucrécia que me chamava de assassino e maldito.
Outras vezes me parecia que, por meu quarto, perambulavam espetros ensangüentados. Foi para mim um alívio chamares-me a Ferrara. Mas a notícia sobre a realização
do casamento com a princesa Bianca, me assustou. Quando quis manifestar a minha aversão, me falaste de Marieta e conseguiste fazerme calar. Fui por demais covarde,
para te confessar um novo delito, embora não mais amasse a Giovana. Refleti rapidamente. Ela não possuía nenhuma prova para demonstrar o nosso casamento e acusar-me.
Finalmente pensei também num caso extremo. Eliminá-la-ia então. Tranqüilizei-me e contratei casamento com Bianca. Contudo julguei conveniente falar com Giovana ainda
antes do casamento e romper de uma vez. Achei um pretexto para viajar até Montinhoso. Fiquei fora dois dias para assistir ao casamento de meu a
migo Ricardo, e depois fui ao castelo. Giovana recebeu-me com alegria. Mas quando notou a minha indiferença, tornou-se melindrada e retraída. Resolvi falar-lhe na
noite anterior ao meu regresso para Ferrara e partir em seguida. A criadagem, mais a bagagem, eu já fizera partir pela manhã. Mas eu e Seno pretendíamos partir durante
a noite. Giovana não compareceu à ceia, e eu fui para o meu quarto. Pretendia procurá-la mais tarde, em seu dormitório. Com espanto para mim, entregou-me Seno um
bilhete que Giovana lhe dera. Nele estavam apenas algumas palavras. "Venha ao terraço do jardim. Preciso falar-te a sós. E já". Pelas onze horas da noite, fui ao
jardim. Perto da fonte estava Giovana sentada sobre um banco. Parecia desesperada. Quando me aproximei ergueuse e vi que os seus olhos estavam cheios de ódio e de
rancor. Sem deixar-me dizer palavra, perguntou-me se eu desposaria a princesa Bianca, e se já era seu noivo há algumas semanas. -- Sim, é verdade. Mas, de quem soube
isso? -- O irmão de minha ama regressou ontem de Ferrara, onde todos falam do teu noivado. E te atreves ainda confessar-me? Queres contrair dois matrimônios simultâneos,
ou ficaste louco? Talvez tenhas esquecido' de que te casaste comigo. Responde-me, vamos? -- Nenhuma nem outra coisa. Não te amo mais, porém, eu quero ser livre.
Se não me tivesses chamado, eu mesmo teria ido a ti, para expor tudo. Sê prudente Giovana, não relates nada a ninguém. Não tens prova nenhuma de que somos casados.
O nosso casamento não foi registrado em nenhum livro da igreja. As testemunhas já morreram, eu posso negar o meu matrimônio contigo. De que te poderás valer um homem
que não te ama, e ao qual não serás mais do que um fardo? És tão bela que não te será difícil encontrar um homem que perdoe a tua fraqueza de jovem... Giovana, a
princípio, ouvia-me, mas depois levou a mão ao coração, gritando descontrolada: -- A mim ousas dizer isso? Ainda que não tenhas medo de quebrar um juramento que
prestaste diante do altar, eu te lembrarei que ainda vivem duas testemunhas do nosso casamento. Diante de Deus e da tua honra de nobre
se é que ainda a possuis sou tua esposa legal e ninguém poderá usurparme este direito. Essa resistência de Giovana começou a irritar-me. -- És uma mulher a quem
não amo, e que, desavergonhadamente quer se impor. Não poderás provar senão que foste minha amante, minha esposa, nunca! Direi isto a todos, se quiseres, e todos
acreditarão que, por este meio, pretendes tornar-te Condessa de Montinhoso. Eu estava de tal forma irritado que a queria ofender, propositalmente. Então voltei-me
rápido e fugi para o castelo, mas como uma flecha Giovana seguiu-me e prendeu-me, dizendo: -- Pau!o, não suponhas que possas te livrar de mim, como arrojas uma luva
imprestável. Não ouses desposar uma outra, ainda que seja uma rainha. Eu saberei impedir este crime. Direi tudo ao tio Rindolfo, ao teu pai, e ele me acreditará.
Se for preciso me arrojarei aos pés do Duque e o porei a corrente de tudo quanto se refere a ti, malfeitor... perjuro! Cobrirei o teu nome orgulhoso de opróbrio
e lama! Com estas ameaças, o sangue subiu-me às faces e eu a empurrei de mim. De novo me cobriu de insultos e ofensas. Esqueci-me de mim mesmo. Atirei-a ao chão
e comprimi-lhe a garganta, para que cessasse de falar. -- Maledetto... maledetto! Gritou ela sufocada. Depois ficou desacordada sobre o meu braço. Julguei tê-la
estrangulado. Aos poucos fui me recompondo. Que fazer? Sem meditar muito tempo, tomei aquela que julgava morta dos meus braços e corri célere ao alto da gruta. Atirei-a
de lá ao despenhadeiro. Antes disso tirei-lhe o colar e espalhei as pérolas ao derredor, a fim de simular um assalto. Rápido, como uma sombra, voltei ao castelo
e alcancei o meu quarto, sem que ninguém me visse. O solo ardia-me sob os pés. Chamei Seno e o administrador. Disse-lhes que queria aproveitar a bela noite para
viajar e ordenei que arreiassem os animais. Disse ao administrador que transmitisse à senhorinha as minhas saudações e os meus sentimentos por não a ter visto no
decorrer da ceia. Apesar da liberdade que julgava ter adquirido, sentia-me infeliz. Maltratava-me o pressentimento de uma horrível desgraça. Eu não adivinhava que
as sombras vingativas do
ódio já se haviam prendido, de uma vez por todas a mim. Quando, na noite do casamento, entrei com Bianca na alcova nupcial, mal iluminada, julguei ver de repente,
duas sombras sobre o estrado da cama. Em uma me pareceu reconhecer Marieta com as crianças nos braços, na outra Lucrécia, com o punhal cravado no peito, coberta
de sangue. Seus lábios estavam contraídos num sorriso frio, pondo a descoberto os alvos dentes. Foi horrível! Escureceume a vista e caí sem sentidos. Como estas
aparições não retornassem, pude, entretanto, dedicar-me inteiramente ao amor de Bianca. Todavia, bem cedo um rude golpe atingiu-me. Soube que Giovana escapara com
vida, mas que agonizava lentamente. Ela nada dissera a ti, papai, contudo era um constante perigo para a minha segurança. Quando recebi a carta dela e a tua, chamando-me
ao seu leito de moribunda, não pude resolver-me a voltar. Fiquei satisfeito por Bianca não me permitir partir logo. Eu só desejava ver Giovana morta! Nunca pude
supor que mesmo morta ela fosse capaz de vingar-se de mim... Paulo calou-se. Padre Francesco e eu próprio não podíamos articular uma palavra. Finalmente ergueu-se
o ancião, benzendo-se, e alçou o crucifixo sobre a cabeça de Paulo. Disse com voz trêmula: -- Deus de misericórdia, tende piedade deste pecador. A vossa justiça
o castigou por intermédio do braço da sua vítima. Mas a nós humanos, nos disse o Vosso divino Filho: "Deverás perdoar setenta vezes sete vezes!" Permiti, Pai Celeste,
que eu evoque a Vossa misericórdia para esse pecador, que arrependido dos seus pecados, e em virtude do cargo que vós me confiastes, lhe perdoeis o pecado para esta
e para aquela vida, a fim de que, nela, em orações e arrependimentos, Vos suplique à salvação de sua alma. Lágrimas me ameaçavam sufocar. Paulo havia de novo perdido
os sentidos. O velho sacerdote espargira água benta sobre o esquife e suplicava que a morta soltasse a sua vítima e entregasse a vingança às mãos de Deus. Mas a
fisionomia de Giovana se conservou inalterada. E eu me convenci de que as suas unhas tinham penetrado tanto na carne de Paulo, que a sua mão já pretejava. Como hei
de descrever as horas terríveis daquela noite sombria! Com
os primeiros raios solares veio também o senhor Felício que contemplou tristemente a Paulo. Então, se dirigiu a mim: -- Signore Conde, espero salvar a vida do vosso
filho. Não posso, entretanto, lhe conservar a mão como esperava. O exame do doente, assim como as respostas às perguntas que fiz às forças invisíveis, me fazem saber
que somente a amputação da mão o pode salvar. A decomposição já atingiu a sua mão. E depois de algumas horas, será impossível salvá-lo. Decidi! Deve o vosso filho
viver, ainda que com um aleijão, eu deve morrer? Eu vos aconselho a resolverdes logo. Pouco tempo temos a perder. .Necessitei apenas de um minuto para resolver.
Paulo era um terrível malfeitor, atingido pela vingança celeste, ao invés de sê-la pela humana: -- O vingador invisível exigiu a mão de sua vítima! Senhor Felício,
como pai, vos autorizo a amputar a mão de meu filho. Que ela fique para a odiosa e vingativa morta, como um penhor, em recompensa pela tragédia que viveu: O castigo
é terrível, mas justo. -- Então precisamos agir já. Preparei tudo quanto é necessário. Ao quarto de banho. Para lá devemos transportar o jovem Conde. Para a operação
nos aproveitaremos da sua síncope que ainda aumentarei por meio de um narcótico. Não foi fácil transportar as duas figuras inanimadas e conjugadas. além do caixão
de carvalho. O senhor Felício propôs tirar Giovana do esquife ao que Seno e Martim se opuseram, pois não queriam, absolutamente, tocar o corpo da terrível morta.
Assim, o padre Francesco e eu pegamos o cadáver pelos pés, os outros a Paulo e levamos ambos ao quarto de banho. Aí os depusemos sobre uma mesa larga, e o rosto
de Paulo foi recoberto por um pano embebido em um líquido aromático. O senhor Felício acendeu ervas aromáticas em alguns tripés, depois tirou de um estojo uma faca
brilhante e, cortando a manga do paletó de Paulo, acima do cotovelo, disse-me: -- Vede, Signore Conde, a mão teria secado. Ela já está sem vida. Não pude responder.
Fui atacado por fortes tonturas e perdi os sentidos. Quando despertei o meu olhar caiu sobre o horrível grupo disposto sobre a mesa. Paulo estava branco como um
pano de linho, enquanto Felício envol
via o seu braço. Os dedos de Giovana, porém, agarravam-se à mão morta de meu filho. Sobre o assoalho, estavam duas enormes manchas de sangue. Apesar da minha grande
dor, respirei aliviado, involuntariamente, quando vi tudo isto. Paulo ao menos estava separado daquele cadáver terrível. Nos traços fisionômicos de Giovana. julguei
ver um sorriso triunfante. -- Agora, Conde, precisamos levar o vosso filho ao seu quarto e deitálo. Aconselhou o senhor Felício. Durante algum tempo deverá evitar,
o quanto possível, os compartimentos que até agora habitou. Depois de termos acamado Paulo, reconduzimos o cadáver de Giovana para a capela e fechamo-la provisoriamente.
No decorrer do dia, Paulo voltou a si. Não reconheceu a ninguém, entretanto, e nem parecia recordar-se do sucedido. O senhor Felício lhe deu um narcótico e lhe fechou
os olhos. Deveria dormir profundamente durante alguns dias. Sem se recordar daquilo que sucedera, para sua tranqüilidade e restabelecimento. Assim, eu estava um
tanto tranqüilizado quanto ao destino de Paulo, mas tive um grande desgosto. Nem os monges do nosso convento, nem seus famulos queriam tocar no esquife de Giovana,
para transportá-lo ao jazigo da família, no cemitério, pois que consideravam a morta uma proscrita. E parecia realmente que um demônio se apoderara de sua alma,
para tocá-la incessantemente, de um lado para o outro. Ela pôs-se a circular pelas salas do castelo, agora muradas. O primeiro a vê-la, foi um estribeiro que se
ocupava em por em ordem o quarto de Paulo. Como um louco saiu ele correndo do quarto e informou-me trêmulo e horrorizado que vira a senhorita Giovana sentada à beira
da cama, brincando com a mão amputada de Paulo. De outra vez, julgou uma criada tê-la visto em seu quarto, revirando uma canastra, ainda com a mão do infeliz entre
os dedos. Essas aparições foram se tomando mais freqüentes e a criadagem começou a deixar-me. Eu não sabia o que fazer. Pedi ao senhor Felício o seu valioso conselho.
E esse, que não me abandonou no meu infortúnio, me disse o seguinte: -- Eu previ o vosso pedido, signore Conde e creio dever aconselhar-vos desistir, sobretudo do
sepultamento da senhorita Salviatti. Esta defunta produz em todos um tão grande susto e tamanho horror que será difícil en
contrar quem queira tocar no esquife. Nós dois apenas não teremos forças suficientes para transportar o esquife até o jazigo, sem ter em conta que a nossa posição
social nos proíbe. Deixai-a na capela, tanto mais que ela foi tão cruel para com o homem a quem amou. Ordenei que tragam uma tampa de vidro para o esquife. Depois
disso, selaremos a capela. Então ordenareis que muradas sejam todas as passagens e janelas, aquelas em que se desenrolou este drama macabro, para que nenhum ser
humano penetre nestes compartimentos. Eu mesmo auxiliar-vos-ei porque não temo estes espectros. Antes disso, porém, retiraremos de lá todos os objetos que desejardes
ocupar ainda! -- Nada mais quero ter daqueles quartos. Que tudo fique lá, como está! Foi a minha resposta. Agimos então conforme o conselho do senhor Felício. O
esquife foi fechado com uma tampa de vidro, todas as portas e janelas foram muradas. Somente uma saída desses aposentos deixei aberta, a conselho do senhor Felício.
E pareceu, então, que realmente entrou a paz e a tranqüilidade no castelo. Paulo achava-se ainda num estado apático, cansado, não falava e, calado, tomava o alimento
que lhe era servido. A febre desaparecera e o seu corpo readquiriu forças. A ferida no braço também cicatrizou, para satisfação do senhor Felício. Comecei a pensar
no futuro de Paulo e tive muita pena de sua mulher. Por felicidade, ninguém conhecia a verdadeira causa da sua desgraça. Julgava-se que Giovana estivesse apaixonada
por ele e que quisera vingar, por aquele modo, o seu amor desprezado. Um senhor venerável das vizinhanças, visitou-me e contou-me que o desastre de Paulo era, geralmente,
considerado como uma vingança da desdenhada, o que lhe confirmei. Fiquei muito satisfeito com o rumo que deram ao fato. E escrevi a Bianca que Paulo, por um infeliz
acaso, machucara a mão e estava agora doente, sem, contudo, estar em perigo de vida; que ele voltaria a ela assim que a sua ferida lhe permitisse viagem. O meu dedicado
Martim, que sabia silenciar como uma sepultura, foi o portador da carta para Ferrara. Nesse meio tempo o senhor Felício se entregava a um trabalho que eu não pude
compreender. Ele mandara vir uma caixa com diversos objetos, dentre os quais se encontrava também uma massa rosada, singular que ele trabalhava como se fosse cera.
À minha pergunta, me
disse que preparava uma surpresa para mim e Paulo. No décimo segundo dia depois da operação dele o senhor Felício me chamou para junto da cama de Paulo que ainda
dormia profundamente. Seno, com a fisionomia alegre, ergueu cautelosamente a coberta e vi, admirado, que a mão enferma já estava sem a bandagem e em seu lugar, por
meio de um bracelete de ouro se achava uma mão artificial que era uma perfeita reprodução da sadia. Apenas na coloração parecia ela mais delicada do que a mão viva.
-- Esta mão artificial, explicou-me o senhor Felício permite até alguns movimentos materiais. O Conde usará uma luva e um leigo não descobrirá, por melhor boa
vontade que tenha, a diferença entre as duas mãos. Expliquei a Seno como esta mão pode ser afastada e recolocada e lhe dei também uma pomada que deverá passar pela
manhã e à noite, a fim de que cicatrize completamente. Com lágrimas de emoção agradeci ao senhor Felício o grande concurso que me prestara durante aqueles dias graves.
Ele, entretanto, me disse que apenas cumpria com o seu dever e recomendou.me que quando Paulo despertasse, o fizesse meditar e orar longamente. Isso o fortaleceria.
Quando Paulo despertou do seu longo e profundo sono, estava triste e taciturno. Olhou para a mão artificial e me disse repreensivamente: -- Por que não me deixaste
morrer? No decorrer dos dias seguintes, mostrou-se calmo e calado. Seguiu o nosso conselho e orou longamente, depois do que, pareceu ainda calmo e consolado com
a sua sorte. Cautelosamente lhe referi tudo quanto tinha feito durante todo aquele tempo e lhe disse também que depois de três semanas, poderia regressar a Ferrara.
Ele, entretanto, não demonstrava querer saber disso. Duvidava que Bianca o quisesse ver ainda. Como um aleijão, ele julgava não poder mais ser feliz. Eu lhe disse
que, com o tempo, esqueceria tudo, se tornaria um pai feliz, e que não lhe assistia o direito de repudiar aquela jovem criatura que se lhe entregara por toda a sua
vida. -- Julgas, papai que o meu filho não esteja também atingido pela maldição da nossa família? Talvez fosse melhor matá-lo ao nascer, do que entre
gá-lo a este tenebroso destino. Parece que Girolamo ainda não satisfez a sua sede de vingança, com todo este sangue. Procurei consolá-lo. Ele, porém, se conservou
calado e retraído. Martim regressou de Ferrara com uma carta de Bianca para ele. Ela lhe pedia que voltasse assim que o seu estado permitisse, pois que se sentia
extremamente saudosa. Resolvi ir pessoalmente levar Paulo a Ferrara e ele não se opôs quando eu determinei o dia da partida. Calado e introvertido cavalgava ao meu
lado, quando saímos de Montinhoso. Com o coração sangrando foi que observei, então, a transformação que se operara nele. Emagrecera e parecia mais alto. Seu rosto
estava pálido e seus olhos brilhavam febrilmente. Distingui na massa dos seus cabelos, os primeiros fios brancos. Mais contristador era, entretanto, o sulco de sofrimento
que se apresentava na sua fisionomia e que não se apagaria nunca mais. Bianca o recebeu com alegria e meiguice, mas só a custo pode encobrir a desagradável impressão
que lhe causara a sua aparência. Tudo voltou à rota antiga, e eu já me preparava para voltar quando Bianca me pediu que ficasse em Ferrara, pelo menos até o nascimento
da criança. Atendi ao seu desejo. Uma manhã, três dias talvez após à nossa chegada, veio a mim e me perguntou se eu conhecia o motivo daquela modificação que se
impusera em Paulo. Ás vezes ele permanecia silencioso e calmo no decorrer do dia, para depois inflamar-se numa apaixonada ternura. Estava agora calado e arredio.
Evitava-a! Tranqüilizei-a.tanto quanto pude, e lhe disse que, para ele, um belo cavalheiro, lhe era difícil esquecer que era um aleijado. Necessitaria de muito tempo
para se conformar. Bianca me deu razão e me comunicou ainda que Paulo despertava muitas vezes a noite com um grito e que, então, coberto de suor, olhava ao seu redor
como um louco; que, naquela manhã, ele lhe dissera que, de agora em diante, queria dormir só, para não assustá-la mais. Ela pôs-se a chorar porque eu a convenci
que o desejo de Paulo era justo. O seu estado requeria repouso. Quando ele fosse pai, assim eu o esperava, tudo voltaria a seus eixos. A vista disso, eu quis partir
para Montinhoso e consultar o senhor Felício. O estado de Paulo me inquietava. Quando Paulo soube da minha partida, disse-me:
-- Vais viajar, papai? É inútil! Para mim já não há remédio. As almas dos mortos já não me dão sossego, perseguem-me de dia e de noite! Parti apesar disso, prometendo
estar de volta o mais breve possível, e assim que tivesse referido tudo ao senhor Felício. O senhor Felício me disse: -- Vede, senhor Conde! O corpo do jovem Conde
pudemos curar, mas a alma não! -- Como haveremos de expulsar as almas dos finados que o atormentam? Pelo amor e o crime ele as prendeu tanto, que só mui dificilmente
serão separadas. Eu ponho a minha pessoa e o meu saber ao vosso dispor! Isto, porém, é uma insignificância em face das poderosas leis que nos regem. Dessa conversa
entretanto, julguei ouvir mais do que o senhor Felício quisesse ou pudesse dizer. Prometeu-me consultar as forças invisíveis e darme, daí há alguns dias, informações
sobre se poderia ou não ajudar-me. Uma tarde veio o meu fiel Martim, a mim, e banhado de lágrimas me disse: -- Oh! Signore Conde, as vítimas não querem sossegar!
A signorina Giovana apareceu a todos os do castelo. O administrador viu uma mulher com um punhal cravado no peito e que passeava pelos corredores e salas. Antonio,
o cozinheiro viu uma monja. O sino da torre tange sem que ninguém o tenha tocado. Tranqüilizei Martim e referi-lhe o auxílio que o senhor Felício me prometera. Este
veio no dia seguinte, mas já por sua fisionomia pude ver que não tinha boas notícias a dar-me. Declarou-me que não dispunha de forças para afastar os espíritos dos
mortos. Aconselhava-me a voltar o quanto antes possível a Ferrara, pois necessitavam ali da minha presença. Alguns dias depois da minha chegada Bianca dava a luz
um filho. Na mesma noite Ferrara foi atingida por um furacão que trouxe a Bianca um grande terror. Seja por este motivo ou por outro qualquer, o fato é que Bianca
foi atacada por fortíssima febre e lutou durante dois dias com a morte, Paulo, pálido como um mármore, não se afastou do seu lado e fitava fixamente a jovem esposa
que violento acesso atirava de um lado para o outro. Muitas vezes pronunciou o nome de Giovana. As outras pessoas julgaram que ela estivesse dizendo o nome de uma
sua amiga, mas Paulo e eu sabí
amos a quem ela se referia. Na manhã seguinte do terceiro dia, Bianca falecia. Como uma flor quebrada da sua haste, ela repousava nas suas almofadas com uma expressão
de dor nos seus pálidos traços. Quando seu peito se ergueu para o último suspiro, Paulo caiu como morto aos pés da cama em profundo sono letárgico. Poder-se-ia considerá-lo
morto se não estivesse respirando fracamente. Apenas uma semana depois da morte de Bianca ele despertou. Estava porém, mais silencioso e apático do que antes. Quando
regressou do cemitério onde fora orar fervorosamente, junto ao sepulcro de Bianca, comunicou-me que desejava voltar a Montinhoso. Inutilmente quis demovê-lo a voltar
a este lugar infeliz. Mas Paulo se manteve inflexível. -- Julgas então, papai, que volto espontaneamente? Não! As minhas vítimas que atraem com uma força irresistível.
Essa força é, mesmo, inacreditável! Se soubesses os martírios infernais que sofro, quando essas sombras se aproximam de mim... Recorda-me de tudo quanto sucedeu!
Não tenho mais forças para lutar contra elas! Quero recolher-me ao convento e tentar resgatar as minhas culpas. Preciso orar e jejuar. Não tenho dúvidas disto: preciso
voltar ao local dos meus crimes e ficar ai. Não ousei contradizê-lo embora o meu coração pressentisse que ele estava perdido. Assim voltamos a Montinhoso. Paulo
não quis ir ao castelo, antes dirigiu-se diretamente ao convento. O fiel Seno queria ficar ao seu lado como irmão conventual. O prior, meu velho amigo, tomou parte
ativa na sorte de meu filho. E abreviou tanto quanto lhe era permitido o noviciado. Um rico presente que fiz ao convento, colocou os monges a favor de Paulo, apenas
Enzio Casteli parecia odiá-lo. Durante os primeiros tempos Paulo pareceu-me tranqüilo. Nunca falava no passado. De modo que eu não sabia se os espíritos ainda o
perseguiam. Seno é que me contou que muitas vezes o via sentado até a madrugada, pálido de morte. Logo depois de sua consagração como monge, pareceu-me que as coisas
pioraram para Paulo. Às vezes sofria ele de completo esgotamento e permanecia muitos dias desmaiado sobre o leito. Outras vezes essa apatia era substituída por acessos
de loucura durante os quais blasfemava contra Deus. Andava pelos corredores do mosteiro, com o braço
aleijado erguido. Desfizera-se da mão artificial. Tudo isso agravou o estado da sua saúde. Ele empalidecia cada vez mais. Enfraquecia-se e perdia a coragem. Durante
todo esse tempo, o senhor Felício foi para mim, um companheiro insubstituível. A meu pedido passara a viver no castelo e me amparava em todos os sentidos. Ele também
visitava Paulo às vezes. Depois de uma dessas visitas, me comunicou que Paulo não viveria muito tempo. Passou-se talvez um mês. Então Seno me surgiu certo dia, contando
que Paulo naquela última noite, tivera um terrível ataque de loucura. Fugira do convento e fora ter à misteriosa gruta onde Seno e um outro monge o encontraram.
Ele porém, fugira para o extremo do lago, às margens do qual pôs-se a correr como um demente. Depois atirou-se às águas. Os dois gritaram e saíram a procura de socorro.
Quando os monges tiraram Paulo da água, ele estava morto. Não quero dizer mais nada sobre o meu sofrimento. É muito duro perder-se aquilo que nos é caro no mundo,
porém, mais duro ainda foi a separação daquela maneira. A minha esperança de que a sua pobre alma pudesse alcançar tranqüilidade, foi a minha ilusão daquelas horas.
Quando o cadáver de Paulo estava exposto sobre o catafalco da igreja, afirmaram os monges ver sombras estranhas, que rodeavam o seu esquife. Um dos seus vizinhos
mandara construir no cemitério do convento uma capela jazigo que, aos meus rogos, me vendeu. Mandei construir um altar para, sobre ele, colocar uma imagem da Madona
e um crucifixo, a fim de que se pudesse dizer missas ali. Encomendei também o sarcófago, em cuja tampa, nos seus trajes de monge, mandei esculpir a estátua de Paulo.
Na noite que se seguiu à inauguração da capela, deu-se um fato singular. Um dos monges, que tinha de fazer a ronda noturna, afirmava ter visto várias mulheres na
capela, fazendo aí uma barulhada infernal. Entre tais mulheres encontrava-se, dizia, uma monja. Frater Humberto, que afirmava ter visto isso, não era um poltrão.
Ele se aproximou da capela e ouviu, distintamente, gritos gemidos e soluços, interrompidos por frenéticas gargalhadas. Depois ouviu um baque surdo, como se o sarcófago
tivesse sido lançado por terra. Quando abri a capela, verifiquei que a estátua da Madona estava partida sobre o solo. Tive um susto indizível. Lacrei a porta apavorado
e voltei correndo ao castelo. O pobre Seno começou, igualmente a sofrer
inexplicáveis influências. Seu raciocínio parecia obscurecer. Ele relatava aos outros monges estranhas narrativas acerca de Paulo, não ocultando também a história
de Giovana que Paulo, confiando talvez na sua discrição e fidelidade, lhe teria contado. A minha luta com os monges, que depois do que viram não queriam mais reter
nem ao menos o cadáver de meu filho no cemitério, deixo de narrar. De tal infâmia só nos livramos oferecendo, outra vez, um régio presente ao convento, bem como
graças a minha posição elevada. Mas a vida em Montinhoso tornava-se insuportável. Decidi mudar-me, com meu netinho Afonso para uma outra propriedade minha. Em toda
a circunvizinhança de Montinhoso não chamavam Paulo senão por Maledetto Ouvir isto, pessoalmente, Maledetto. ou permitir que o inocente o ouvisse, não era possível!
Alguns dias antes da minha partida, Enzio Casteli trouxe ao castelo um grande quadro pintado por ele. Esse quadro representava a cena terrível da capela, junto ao
esquife de Giovana. -- Guardai este quadro, Conde, para que os vossos descendentes saibam que nem o distinto nóbile pode desprezar e calcar os pés às leis de Deus
e dos homens! Disse ele. Eu quis destruir esse quadro, porém o senhor Felício me aconselhou a deixá-lo na sala grande da ala murada. Nessa ala será também depositada
esta crônica, e aquele dos meus sucessores que a encontrar, que dê a conhecer aos seus filhos, a terrível história dos seus antepassados, e, dela, possa verificar
que, somente uma vida honrada e piedosa, de acordo com a vontade divina, dá a paz neste e no outro mundo. Abandonarei Montinhoso. Só voltarei morto, a fim de que
seja sepultado no jazigo de meus pais, não muito distante de meu filho. Aí espero dormir o sono eterno. Nesta noite, meu amigo Felício visitará os quartos fechados,
que mandei murar. Pronunciará orações em todas as saídas. Espera assim afastar a entrada de qualquer indesejável. Somente Paulo poder ingressar nesses cômodos. E
mais uma vez Felício me convenceu de que, mais cedo ou mais tarde, Paulo voltará aqui. Então se desenrolará o último ato deste drama terrível. Como e quando tudo
isto se dará não sei! Só Deus poderá dizê-lo. E para aqueles que lerem estas minhas palavras,
não me considerem a mim, Rindolfo de Montinhoso, um louco, cuja razão se apagou com a morte do filho, este escrito vai também assinado pelo padre Francisco, com
quem Paulo se confessou, pelo senhor Felício, e pelo meu fiel escudeiro Martim. O infeliz Seno não o pode fazer, pois que, também ele, se afogou no lago, onde também
expirara o seu irmão de leite". Seguem-se as
assinaturas e o ano: 1758! Completou Sir Gerald, depondo o rolo sobre a mesa.

13
O RESGATE COM O PASSADO Todos se calaram. Cada um ocupava-se com os seus pensamentos. As senhoras choravam. Rotschild suspirou profundamente. Sua fisionomia denunciava
um profundo abalo. Em pensamento revivia, mais uma vez, tudo quanto ouvira. Ele e Valéria, pois, tinham voltado àquele lodo insidioso, no qual, por pouco, não morreram!
Sir Gerald propôs saíssem daquela sala, retornando ao terraço. Todos concordaram. -- A atmosfera daqui não nos é muito propícia! Acrescentou ele, saindo em último
lugar da sala de trabalho do Conde Rindolfo. Ao ar livre, todos se tornaram mais alegres e dispostos. O jantar um pouco retardado, foi recebido com apetite. Apenas
Rothschild não se mostrava muito disposto e teve que ouvir primeiro uma admoestação de sua tia, para depois por-se mais à vontade. Depois do jantar Sir Gerald se
recolheu, e aconselhou a todos que repousassem um pouco. Rothschild ficou só no terraço. Sentou-se à balaustrada, olhando com os olhos muito abertos as ruínas do
convento e as águas do lago, que, então, iam aos poucos sendo envolvidas pelas trevas noturnas. Ele não notou que Lolo se aproximava dele, sorrateiramente, buscando
retirar o seu xale do lugar em que ele estava assentado. Quando viu o primo submerso em tão profundos pensamentos, não pode deixar de,
aproximando-se vagarosamente pelas suas costas e tapar-lhe os olhos com as mãos. Rothschild estremeceu: -- Pawel.
Não fiques assim a olhar para essas lúgubres ruínas e para o lago! O lago talvez te atraia ainda, e te afogarás pela segunda vez. Disse ela tristemente. Rothschild
meneou lentamente a cabeça: -- Não temas, Lolo! Não me passa absolutamente nada pela cabeça, pelo menos no que diz respeito ao suicídio! -- Isso seria, aliás, uma
tolice, Pawel. Porque, por muito horrível que o passado possa ter sido, já passou definitivamente. Só a lembrança ficou. Considerando-se bem, é até interessante
que tenhais sido, Valéria e tu, os heróis de um romance tão cheio de aventuras! Disse a moça com meiguice. -- Obrigado, querida Lolo! O interessante deste romance
eu teria, de bom grado, cedido a outrem, pela minha paz, e, te garanto, não teria invejado aquele que o tivesse vivido. -- Tu te exprimes assim porque não podes
compreender, que, remo Conde de Montinhoso, te distingues vantajosamente. Se eu não amasse Anatólio, me teria enamorado de ti, inevitavelmente! Em teu lugar eu usaria
estes nossos trajes modernos apenas para sair à rua, mas em casa, eu envergaria, tão somente, os trajes medievais, dos quais tens armários cheios! Disse Lolo sorrindo.
-- Seria, realmente, muito poético! Mas levaria, provavelmente, a desconfiarem de minha sanidade mental! Quem sabe, porém, se desejarás me dar o exemplo, apresentando-te
num costume do século XVI? -- Sabe Deus, se eu já existia! -- Sim, certamente, mas numa outra imagem! -- Numa festa à fantasia apresentar-me-ei, gostosamente, num
desses trajes. -- Eis aí o busilis, como se costuma dizer! Observou Rothschild rindo. Mas o teu desejo é tão modesto que, com muito prazer, quero satisfazê-lo.
Escolhe e tira dessas roupas antediluvianas aquilo que quiseres.
-- Oh! Muito obrigada. És um anjo, Paulo! Prefiro, porém, esperar que Valéria esteja restabelecida para, então,
na companhia dela, remexer os armários, pois esses objetos pertencem por direito, a ela. Ela também, sei, me dará, de bom grado, o que me agradar. -- Pois fazei
o que quiserdes. De minha parte renuncio, desisto de todos os meus direitos, com referência aos trajes femininos. Esta palestra com Lolo, desviou os pensamentos
de Rothschild, trazendo-lhe um pouco de animação. Depois da ceia, Sir Gerald dera a todos um leve narcótico, com o auxílio do qual, todos dormiram bem até bem tarde
do dia seguinte. Rothschild levantou-se animado, e completamente tranqüilo. A depressão psíquica que, ainda na véspera, pesava sobre ele, desaparecera por completo.
Depois do almoço, Sir Gerald convidou-o a vir ao seu aposento para uma ligeira conferência. Quando estavam a sós, abordou ele, imediatamente o assunto. -- O mais
difícil está feito, meu amigo! Mas há ainda muita coisa a ser feita, para libertar-vos inteiramente das garras do passado, e limpar de todo o castelo. Não vos quero
ocultar que ainda tereis de passar por alguns sobressaltos. Em compensação estareis livres inteiramente, depois disso. Rothschild empalideceu ligeiramente, mas dominou-se
rápido. -- Compreendo que eu tenha que esgotar o castigo do Carma até o fim. Irei corajoso, diretamente ao encontro das últimas provações. Mas quero pedir-vos que
me ampareis e me auxilieis. -- Da vossa resposta verifico que fizestes progresso e que as lições do passado não foram inúteis. Auxiliar-vos-ei sempre, e nunca devereis
duvidar disto. Agora, porém, pretendo fazer o seguinte: Tenho em vista tudo quanto ainda vos espera. A presença das senhoras e da enferma, aqui não é aconselhável,
e até embaraçosa. Por isso vos peço, se é possível, obter nas vizinhanças, um lugar qualquer em que se possam alojar as senhoras durante o tempo de que precisamos,
para a limpeza psíquica do castelo. -- Ainda hoje tratarei deste assunto. Respondeu Rothschild.
Depois de tratados ainda alguns assuntos, Rothschild mandou encilhar o cavalo e, na companhia do administrador
que conhecia palmo a palmo o terreno, num círculo de vinte quilômetros, partiu. Já algumas horas depois, regressava ele satisfeito. A uma distância de menos de dois
quilômetros de Montinhoso, havia descoberto uma pequena vila desocupada. Rothschild se dirigira logo ao seu proprietário e alugara-a até o fim do verão. Alegre e
satisfeito contou ele a Sir Gerald o resultado da sua viagem. -- Depois de três dias, poderão as senhoras transferir-se para lá, pois é preciso ainda fazer uma limpeza
na casa. Informou ele. Quando as senhoras ouviram falar na projetada mudança, mostraram-se a princípio, magoadas. Não queriam saber disso. Depois que Sir Gerald
explicou-se, porém, deram-se por satisfeitas e concordaram. Sir Gerald esperava acontecimentos que os nervos das senhoras não suportariam. Apenas Lolo se conservou
zangada. Dizia não temer coisa nenhuma! -- Pior do que foi a noite da vossa chegada, não pode ser. Mas afinal Lolo não tinha voz ativa. Um sorriso de Sir Gerald
pôla em tal confusão que não disse mais nada. Três dias depois, as senhoras mudaram-se com Miguel para a pequena vila, que ficava meia hora do caminho de Montinhoso.
Valéria foi despertada por Sir Gerald, a fim de que fosse facilitada a sua ida. Adormeceu logo, porém, depois de ter sido despida e acomodada sobre o leito, sem
perguntar sobre o motivo da viagem. Ricciotto e a criadagem mudaram-se, mas o administrador e sua mulher ficaram, para ajudar a Sir Gerald. Assim sendo, só ficaram
no castelo Sir Gerald, Tonilim e Rothschild, o administrador, sua mulher e o velho Bernardino, que não quisera ir. Bernardino revelou-se um ótimo auxiliar, que sem
muitas perguntas, executava as ordens de Sir Gerald. -- Devemos ir, em primeiro lugar, à capela do castelo, retirar o cadáver de Giovana e por tudo em ordem. Disse
Sir Gerald depois da refeição.
Tonilim carregou a caixa do amigo Bernardino um pacote. Sir Gerald colocou o candelabro de sete braços sobre o
catafalco, ergueu a tampa de vidro do esquife e despejou uma essência incolor de cheiro forte. Depois tirou, sem grande esforço, a mão do infeliz Paulo de Montinhoso
dos dedos do cadáver, envolveu-a num pano e fechou-a numa caixa. Em seguida cobriu Giovana com um lençol e ordenou fossem buscar a tampa do esquife, que fora deixada
na sacristia. Bernardino e Rothschild a encontraram encostada a uma parede. A tampa foi presa, por meio de parafusos, ao esquife. Sir Gerald espargiu água sobre
o esquife, pronunciando algumas fórmulas mágicas. Foi à sacristia, indicando aí uma porta fechada na parede oposta. De uma estante que se achava ao lado, tomou ele
uma chave, abriu a porta e chamou Rothschild. Desceu com ele uma escadaria íngreme que conduzia até o jazigo que existia em baixo da capela. Na parede, encontravam-se
alguns esquifes de crianças já quase desfeitos. -- Para aqui traremos o esquife de Giovana, bem como o cadáver de Girolamo e das outras vítimas, até o sepultamento
final. -- Sabeis então se existe, e onde se encontra o cadáver de Girolamo? -- Sim! Valéria, em estado sonambúlico, deu-me indicações importantes sobre a divisão
do castelo e de seus cômodos. Havemos de encontrar tudo quanto procuramos. Respondeu Sir Gerald sorrindo. Não sem trabalho foi o esquife de Giovana transportado,
e a capela posta em ordem. Depois de tudo estar limpo e varrido, Sir Gerald espargiu água sobre o assoalho e sobre as paredes, acendeu ervas defumadoras e colocou
um ramalhete de flores frescas sobre o altar. Os quatro retiraram-se em seguida da capela, indo repousar. Sir Gerald entregou a Rothschild dois vidrinhos, de dois
tamanhos, e ordenou-lhe que friccionasse o corpo todo com o conteúdo do vidro, e que, do líquido do menor, tomasse de manhã e à noite, algumas gotas. No dia seguinte
Rothschild foi à vila para visitar os parentes. Por ele, Sir Gerald mandava um certo medicamento, com um pedido a Larissa para que dele desse a Valéria, e que a
vigiasse, principalmente a noite, porquan-
to provavelmente procuraria fugir da vila e voltar ao castelo. Rothschild ficou um tanto admirado com estas palavras
de Sir Gerald, mas este lhe explicou: -- O que durante a noite vai se dar aqui, irá predispor Valéria a voltar. Para vós, porém, Barão, esta noite será horrível,
e exigirá todas as vossas forças. Apesar do vosso corpo físico atual, desenrolar-se-á perante vós, Paulo de Montinhoso, o último ato deste drama terrível que há
três séculos teve início. Pouco importa que tenhais agora outra aparência. Os vossos crimes não foram cometidos pelo vosso corpo, mas pelo vosso espírito. Hoje,
entretanto, terminará a maldição que paira sobre vós e este castelo. Com o cair da tarde, a coragem de Rothschild começou a declinar. Entretanto, lutou valentemente
contra a sua fraqueza. Quando pelas onze horas, Tonilim o procurou, encontrou-o perfeitamente calmo e senhor de si. Com o seu auxílio, friccionou todo o corpo com
o líquido fosforescente, vestiu uma longa túnica de linho e calçou sandálias. -- Pareço-me agora com um penitente da Idade Média! Gracejou Rothschild. -- E considerando
bem, o sois, pois ireis à frente de vossas vítimas e lhes suplicareis perdão pela misericórdia divina. Murmurou Tonilim, pedindo-lhe que o acompanhasse. Quando
penetraram na capela, esta já estava iluminada pelo candelabro de sete braços. Sobre o altar forrado de novo, encontravase um crucifixo. Nos dois lados dos degraus
do altar, estavam tripés com ervas defumadoras. E ao lado de um deles, estava Sir Gerald, vestido com túnica branca, tendo à cabeça um turbante egípcio antigo, e
com a vara mágica na mão. Ao pescoço tinha uma cadeia de ouro e uma estrela que brilhava com todas as cores do arco-íris. Sir Gerald fez Rothschild ajoelhar-se diante
do altar, pôs-lhe na mão um grande círio aceso e ordenou-lhe que orasse. Também Tonilim orava, quando, no relógio da velha torre, soou a meia-noite. Sir Gerald alçou
a sua vara mágica, em cuja extremidade apareceu outra vez a
chamazinha. Ele inclinou-se para os quatro pontos cardeais e começou a recitar diversas fórmulas. Depois disse
em voz alta: -- Vós, espíritos amigos e inimigos, bons e maus, eu vos chamo a todos para este lugar sagrado, para romper o encanto misterioso do passado. Como resposta,
ouviu gemidos e gritos, intercalados de soluços. Ventos álgidos perpassavam pela capela e faziam estremecer as paredes, sob um abafado bramido. Sir Gerald que parecia
não observar estas coisas, sacou do cinto um vidrinho e deitou o conteúdo numa tripeça. Um formidável trovão ecoou. Uma coluna de fogo ergueu-se, desprendendo uma
fumaça avermelhada. Nessa fumaça, moviam-se inúmeras sombras, que, segundo a segundo, pareciam mais distintas e por sua vez, absorviam o vapor. Todas essas sombras
pareciam vivas, e seus olhos faiscantes estavam cheios de ódio, voltados para Rothschild. A frente de todos apareceu um cavalheiro de grande estatura, com o braço
erguido ameaçadoramente. Atrás dele estavam várias mulheres, uma monja, outra que tinha um punhal fincado no peito e muitas outras. Atrás destas, via-se um cavalheiro
de couraça e diversos homens em trajes de Idade Média, e entre eles um menino que, coberto de sangue, mal se podia conter em pé. Bem próximo de Rothschild, estava
o Conde Rindolfo de Montinhoso, envolto numa luz azulada. O amor paternal não estava destruído, e unia a alma do pai à do filho, para protegê-lo naquele momento
terrível. Os olhares de Rothschild encontraram os do Conde Rindolfo, e diante desse olhar, os séculos se separaram e o passado surgiu à tona. Nisto soou a voz de
Sir Gerald. -- Vós, espíritos, que estais aqui reunidos, readquiristes, por meu intermédio e por pouco tempo, a vossa vida, e estais agora diante do homem a quem
perseguis e odiais acima de tudo. Quero recordarvos uma verdade que esquecestes: O perdão conduz à paz. O ódio, porém, atinge menos a vítima que o próprio vingador.
Tu, espírito de Girolamo, o mais sedento de vingança, não estás satisfeito com tanto sangue? Então não se abaterá nunca essa mão erguida para amaldi-
çoar, concede o perdão? Olha para esta imagem do Cristo de Deus que morreu orando pelos seus algozes. Ele somente
sabia amar e perdoar. Tu, entretanto, sê o primeiro a te purificares. Serve de exemplo aos outros! Arrefece o teu ódio para conheceres o fruto do perdão... Sir Gerald
ajoelhou-se e orou. Uma luz viva envolveu de repente o altar e o crucifixo. Um raio brilhante e dourado partiu do altar e penetrou no coração de Girolamo, estendendo-se
sobre os outros espíritos. Todos caíram de joelhos, e Girolamo deixou cair a sua mão. No silêncio que se seguiu, ouvia-se a voz de Sir Gerald orando: -- Pai nosso
que estais nos Céus, perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores... As almas cheias de ódio e desejo de vingança, ali reunidas, se haviam
curvado sob o poder da prece, e pela sua força se transfiguraram. Um brilho azulado começou a rodear as suas cabeças; traços fisionômicos tornaram-se mais meigos
e lisos e os seus olhos brilhantes transmutaram-se nas expressões do amor e do perdão. Um momento depois Girolamo ergueu-se, e, com passos firmes, dirigiu-se a Rothschild.
-- Sê livre e feliz, Galeazzo, retiro de ti o peso da minha maldição e te abençôo. Perdoa-me tu o mal que te fiz, assim como eu te perdôo de todo o coração. Voltando-se
então para Sir Gerald, disse: -- Que a misericórdia divina baixe sobre ti, poderoso irmão que nos libertaste a todos nós do terrível encanto do passado. Sinto-me
como se nascessem asas. Liberto-me! Mas vós, irmãos do meu ódio e sofrimento, podereis também perdoar, como eu o fiz? -- Também nós perdoamos! Ressoou o murmúrio
de muitas vozes. Sir Gerald ergueu a mão. -- Hoje destes o primeiro passo para a vossa libertação, pois cada ser traz, consigo mesmo, a sua salvação. Procurai, pois,
distender as vossas asas e voar ao encontro da luz. A reunião transcendental começou a dissolver-se em tênues névoas e desapareceu... Apenas Rindolfo permanecia
ainda, de pé, como
um ser de carne e osso. Aproximou-se de Rothschild, fê-lo erguer-se e o abraçou. Um sentimento indescritível apoderou-se
do Barão e levoulhe lágrimas aos olhos. Ele sentiu um beijo sobre a testa e ouviu as seguintes palavras: -- Querido Paulo, por fim estás livre da terrível maldição.
Esforça-te sempre pela luz e evita as trevas, para que mais tarde, nos reencontremos no espaço. Nada mais Rothschild ouviu. Nos seus ouvidos ressoou, como que um
bramido marinho, o solo fugiu-lhe de sob os pés, e as trevas o envolveram. Quando voltou a si, sentiu-se deitado em seu leito. Tonilim estava assentado ao seu lado.
Interrogativamente olhou ele a seu redor, Tonilim deu-lhe um pouco de vinho a beber, e Rothschild sentiu um calor de vida, revigorante, perpassar-lhe o corpo. --
Sonhei ou foi realidade que vi reunidas todas as vítimas de Paulo de Montinhoso? -- Não meu amigo, não sonhaste. O que viste foi realidade. De todo o coração me
congratulo contigo pela liberdade que o teu espírito readquiriu. Tua tia e prima já estiveram aqui, para visitar-te. Mas dormias ainda; e Sir Gerald havia proibido
que te despertassem. As senhoras contaram-me que Valéria passou uma noite muito agitada. Chorava e queria, por força, voltar ao castelo. Adivinhava que não se encontrava
aqui. Só pela madrugada conciliou o sono. -- Pobre alma! Disse Rothschild suspirando. poderei levantar-me Dionid? Sinto-me outra vez perfeitamente bom. E sobretudo
desejo agradecer a Sir Gerald se ele ainda estiver aqui. -- Ele está no terraço. Tu o encontrarás ali. Até logo, então... Rothschild levantou-se e vestiu-se. Sentia-se
muito bem disposto. A recordação da cena noturna não o abandonava, e o desejo de penetrar os segredos do Além, principiou a nascer nele. Queria conhecer as leis
do Carma, aquelas leis que tanto o fizeram sofrer. Não podia permanecer por mais tempo, cego e surdo, diante da inexorabilidade dessa lei. Quando chegou ao terraço,
Sir Gerald estava assentado junto à balaustrada, e parecia imerso em profunda meditação. Durante
um segundo Rothschild observou o rosto calmo, regular e atraente do sábio. Um sentimento de profundo respeito,
aliado à admiração, lhe ordenava se prostrasse de joelhos diante do homem ao qual devia a vida. Sir Gerald, porém, ergueu-se rápido e fez Rothschild levantar-se.
-- Que fazeis, meu prezado amigo? Realizai um gesto do qual nenhum homem é digno. -- Pelo contrário, nunca vos poderei agradecer o muito que por mim tendes feito.
Acima de tudo, entretanto, venho aqui para fazer um pedido. Não me deixeis, por mais tempo, seguir na obscuridade, em que, até agora, tenho estado. Tomai-me por
algum tempo por vosso discípulo! Não posso mais continuar a viver assim! Passei agora, por tanta coisa incompreensível! Quero tentar resolver estes problemas, se
puderdes estender a vossa bondade, por mais algum tempo, sobre este homem que vos é quase um estranho. Abri-me os olhos e deixa-me aprender o significado da alma,
interpretar as leis que, invisivelmente, nos governam e determinam o nosso destino... Sir Gerald olhou Rothschild com satisfação e apertou-lhe, fraternalmente, as
mãos. -- Eu esperava este pedido. O vosso desejo nos faz honra, e é justo! Há de ser um agradável dever instruir-vos em tudo. Tenciono ficar algum tempo na Europa.
Temos, pois, tempo ainda. Pondo em ordem todos os vossos negócios, segui para a vossa pátria. E quando eu me puser a caminho para a Índia, vos levarei comigo. Na
tranqüilidade e no silêncio dali, vos iniciarei em tudo quanto precisais saber. Quando, então, regressardes da Índia, ocupar-vos-ei de vossos deveres de esposo e
pai. Deverá ser vossa principal e santa proposição, auxiliar àqueles que se dirigirem a vós, em busca de socorro. A minha resposta vós há de ter demonstrado que
desejo-me dedicar a vós com toda a satisfação pois compreendo perfeitamente um homem, depois que passou pelo que vós passastes, não pode mais descansar ou repousar
antes que possa explicar a si mesmo ao menos alguma coisa daquilo que com ele se deu. Contudo, julgo necessário fazer-vos algumas observações que é: não julgueis
que a proposição que pretendeis tomar seja
fácil. Jesus, o Cristo, disse: "Bem aventurados os pobres de espírito, pois deles é o reino dos Céus". Quem com
fé e religiosidade levanta o véu de Isis, queimará, após si, todo o passado e se afastará de uma vez por todos do caminho comum de todos os mortais. O homem vulgar,
que apenas vive para si, afasta a iniciação e não a pode compreender. Então ele se sente só e abandonado. Muitas vezes, mesmo no círculo de sua família. Considerai
tudo cuidadosamente, para que mais tarde não tenhais do que vos arrepender. Verificai se o saber que desejas alcançar vos poderá dar a felicidade pela qual ansiais.
Rothschild ergueu a cabeça e fitou Sir Gerald, francamente, nos olhos. -- Nada mais tenho a considerar! Minhas resoluções estão tomadas. Por muito pesadas que sejam
as condições, estou disposto a aceitá-las, sábia e conscientemente, e assumir a responsabilidade dela. Por tudo, porém, serei recompensado pelo fato de poder dizer-me
vosso discípulo. -- A vossa resolução firme me é uma garantia, Barão, de que o nosso trabalho em comum produzirá frutos, e direi mais uma vez, com todo o prazer:
Quero instruir-vos. Tonilim também irá conosco. Agora, entretanto, basta de futuro. Precisamos nos reconduzir outra vez ao presente, destruindo os últimos resíduos
do vosso passado. Entre tantas coisas, há ainda os cadáveres ainda insepultos, urge dar-lhes uma sepultura cristã! Disse Sir Gerald. -- Senhor, desejo fazer deste
castelo um recolhimento para inválidos e pobres. A maior parte da construção continua em bom estado. A parte arruinada pode ser reparada, e se prestará ao fim que
tenho em vista. Espero que aprovareis o meu plano, ou julgais melhor deixar este lugar de infortúnios entregue à destruição? Perguntou Rothschild. -- Pelo contrário!
O castelo não está mais povoado pelos espíritos e somente posso louvar a vossa idéia. O muro em derredor da ala fechada precisa ser demolido. As portas e janelas
também precisam ser abertas para que aí, igualmente, seja tudo posto em ordem. E quando
o ar fresco houver perpassado todos os compartimentos, quando o sol penetrar, aquecendo, e houver feito a última
limpeza, Montinhoso será outra vez digno de agasalhar os seus proprietários. Concluiu Sir Gerald. -- Começaremos hoje a transportar os mortos? Inquiriu Rothschild.
-- Por enquanto não! Temos alguns dias para fazer isso. Vossa noiva dormirá ainda por alguns dias e estes bastarão, perfeitamente, para. fazermos a limpeza principal.
-- É que eu desejaria ir amanhã cedo à vila para verificar se já colocaram sobre o túmulo de minha esposa a lápide que encomendei. -- Pois fazei isto, meu amigo!
Depois de amanhã, pela manhã, porém, teremos muito serviço... Proferiu Gerald estendendo a mão a Rothschild. No dia seguinte pela manhã, Anatólio chegava a Montinhoso.
Para fazer uma surpresa à noiva, não mandara dizer nada a ninguém. Quando ouviu falar do estado de Valéria, fez-se triste e pediu a Larissa lhe dissesse porque ficara
tão doente. A explicação lhe foi feita estando a sós. Embora Larissa tendo em vista o seu ceticismo em face do Espiritismo lhe tivesse contado a história com alguma
reserva, ainda que tão claramente quanto possível, ele, contudo ficou furioso. -- Com todo o respeito, Larissa, que eu tenha para com as vossas convicções, não posso
admitir de forma alguma que o .Barão de Rothschild tenha o espírito de um homem falecido há quase três séculos e cujo corpo há muito se decompôs. Ele é um canalha,
e terá que responsabilizar-se perante mim, pela afronta feita à pessoa de minha irmã. Apesar do vosso silêncio compreendi muito bem que com fantasmagorias ele procurava
encobrir a grosseira sedução a Valéria, imaginando assim poder fugir ao castigo. Mas está muito enganado! Bradou Anatólio exaltado. -- Pelo amor de Deus, Anatólio,
não faças uma loucura! Somente lograrias tua irmã a uma desgraça maior do que esta em que se achou... Enunciou Larissa ao jovem oficial. Quer seja culpado ou
não, Rothschild reparará o seu erro, casando-se com Valéria. E se o colocares diante do revolver, farás à tua irmã
um muito mau serviço. Mas, se insistes, vem antes comigo, falar com Lôlo. Rothschild encontra-se esta noite na cidade. Tu poderás verificar que, de fato, esta noite,
desenrolou-se o final de um drama terrível. Anatólio verificou que um escândalo público mais prejudicaria do que beneficiaria a sua irmã, e resolveu, por enquanto,
não tomar nenhuma atitude. Julgava ter essa oportunidade mais tarde. Quando passavam de uma sala para outra, Larissa explicava-lhe um ou outro detalhe. O moço começou
por parar junto de determinados objetos, que examinava de perto. Um sentimento singular o havia afetado e lhe fez duvidar de que teria procedido bem se tivesse conservado
suas acusações, tão depressa formuladas contra Rothschild. Parecia que, realmente, se passara ali qualquer coisa de extraordinário, que ele, aliás, não sabia interpretar
com o seu raciocínio. Por muito tempo esteve parado diante do quadro grande do salão, ante o retrato de Paulo e Giovana. Lolo lhe mostrou a crônica escrita pelo
Conde Rindolfo, lhe fez uma breve exposição e ele constatou assim os sucessos da noite anterior à chegada de Sir Gerald. Ao almoço, no terraço, Lôlo apresentou Anatólio
a Sir Gerald, cuja personalidade fez profunda impressão sobre ele. A princípio considerou o mago um simples embusteiro que, a troco de dinheiro e de boas palavras,
estava pronto para qualquer trapaceirice. Quando, porém, encontrou o seu olhar escaldante, que parecia penetrar até ao fundo da alma, envergonhou-se da sua desconfiança.
Não tinha ainda uma noção bem clara sobre a personalidade de Sir Gerald, é verdade, mas de súbito não o considerava mais um embusteiro . Depois da refeição, Sir
Gerald explicou com um sorriso amável a Anatólio: -- Não sou realmente um trapaceiro, meu senhor! E o Barão de Rothschild não me deu um real sequer. Com estas palavras
reproduziu tão fielmente os pensamentos de Anatólio, que este se envergonhou fitando admirado a Sir Gerald. Quando achou-se a sós com Tonilim, entreteve por muito
tempo a pa-
lestra sobre este e aquele assunto, e sentiu que o ceticismo lhe fugia. Chegou à convicção de que no momento pelo
menos, era muito melhor não manifestar hostilidade para com Rothschild, pois o julgava, agora, uma vítima da inexplicável providência. Para convencer-se definitivamente,
Anatólio explicou a Tonilim: -- Vou pedir a Sir Gerald que me permita participar das pesquisas. -- Tencionamos, amanhã, sair em busca dos cadáveres das vítimas de
Paulo, afim de sepultá-los. Se te agradar ajudar-nos um pouco, poderás melhor te convencer da falta de base das tuas desconfianças. -- Muito obrigado; Dionid Tonilim!
Não deveis supor, todavia, que eu tenha medo ou horror dos cadáveres. E a Sir Gerald eu ficaria sem dúvida muito grato, se me desse o seu consentimento. E se encontrarmos,
de fato, a estátua de Girolamo, o que, por enquanto, ainda duvido, me declararei vencido. Ainda à tardinha desse dia, Rothschild regressou da vila. A saudação entre
ele e Anatólio não foi muito cordial, razão porque também Rothschild transmitiu o convite de Sir Gerald a Anatólio, para tomar parte nas pesquisas da manhã. Já bem
cedo, pela manhã, deram inicio ao trabalho que Sir Gerald dirigia com conhecimento. Ele conduziu os companheiros pelo caminho já descrito, que levava ao quarto onde
se encontrava o cadáver de Girolamo. Quando Anatólio viu a trágica estátua, não pode evitar um ligeiro arrepio. Ele contemplava e apalpava o corpo não sem ocultar
o seu terror. -- À luz do dia podereis melhor contemplar esta estátua! Proferiu Sir Gerald levando-os até uma parede na qual indicou-lhes um ponto. -- Aqui há uma
porta murada que dá ingresso ao aposento onde morreu Lucrécia. Do lado de dentro se acha um nicho com uma imagem de anjo, encoberto por uma grade. Precisamos abrir
essa porta e remover a imagem. Todas as portas e janelas muradas precisam ser abertas!
Depois de um trabalho de duas horas, conseguiram arrombar a porta e remover a estátua de Girolamo para o quarto
onde morrera Dina. -- Pelo mesmo caminho pelo qual saiu, voltou ele ao quarto! observou Sir Gerald. Só então puderam verificar quão belo rapaz fora Girolamo, embora
o pó e as teias de aranha que lhe recobriam o rosto e as vestes. Os olhos eram profundamente grandes e negros, e estavam muito abertos, As vestes estavam em farrapos
sobre o seu corpo, o qual era duro e compacto como o granito. -- Mas isto é uma verdadeira obra de arte, e é uma pena sepultála! Deveríamos levar esta estátua a
um museu! Disse Anatólio comovido. -- Este é o corpo de um homem que foi assassinado! O seu lugar é na sepultura. Falta de caridade seria expô-lo à curiosidade
pública! Replicou Sir Gerald tranqüilamente. -- Sepultareis este corpo assim como está, ou o amolecereis com alguma essência? Perguntou Rothschild. -- O veneno
precisa ser removido, ao menos em parte, do seu corpo, pois senão esta rigidez, esta petrificação agirá, embaraçadamente, sobre os fios astrais de sua alma. Explicou
Sir Gerald. De novo, como outra vez, trouxeram uma banheira na qual mergulharam o corpo petrificado de Girolamo que cobriram com um lençol. Então seguiram todos
ao subterrâneo. Ali reuniram os restos mortais de Lucrécia e todos os ossos esparsos que depositaram em panos previamente arranjados, e conduziram para o jazigo
sob a capela, onde estava o esquife de Giovana. No dia seguinte, enquanto Bernardino fora à cidade para arranjar os esquifes, foram visitar as antigas prisões que
também continham inúmeros esqueletos. Por diversas fraturas nos ossos, pôde-se constatar que os antigos possuidores daqueles esqueletos tinham sido torturados. Quando
Bernardino chegou com os esquifes, tiraram o cadáver de Girolamo da banheira, amolecido da mesma forma que a infeliz Dina, mas conservando ainda o mesmo as-
pecto de porcelana. Anatólio não pode, pois, continuar duvidando de que Girolamo tivesse sido de fato outrora um
homem vivente, e que não era, como surpresa, uma obra de arte, feita de pedra. Ele lançou um olhar ao seu primo Rothschild e sentiu-se um tanto trêmulo ao constatar
o aspecto transformado e emocionado deste. -- Teremos ainda que procurar os restos da cigana e de Paríssima? Quis saber Rothschild. -- Não meu amigo, não é preciso!
O que tínhamos a fazer já está feito. Paríssima deixaremos descansar onde está. Se algum dia for encontrada, será um problema divertido para os seus descobridores
que desejarão saber de que matéria teria sido feito a sua figura humana. Quanto a Yolanda, é de presumir-se que já se tenha tornado pó. Além disso não é sem perigo
penetrar nos mais profundos calabouços do castelo. Se rompermos aí um pedaço de parede, poderemos estar certos de que a cobertura cairá sobre as nossas cabeças.
O cura da aldeia se prontificou a conceder sepultura aos esquifes. O caixão de Girolamo, a pedido de Rothschild, foi depositado no jazigo da família Montinhoso,
que foi também aberto. Rothschild leu atenciosamente todas as antigas inscrições sobre as sepulturas. Encontrou o nome do Conde Rindolfo entalhado em mármore negro.
Junto dele estava a sepultura do filho de Paulo. No dia do enterramento dos invólucros mortais, só agora descobertos, membros da família reuniram-se para preces.
Valéria despertou do sono com plena consciência, e pôde agora recordar-se de todas as minudências do passado, bem como de tudo quanto sucedera em seu estado sonambúlico.
Uma vergonha, um desespero ilimitado se apoderou dela ao recordar-se do que lhe sucedera. Larissa não sabia o que fazer para acalmar a jovem. Valéria recusavase
a ver Lolo e Anatólio, e apenas tolerava a presença da tia e madrinha. Somente depois de ter chorado longamente, o que aliviou-a um tanto, pôde ouvir Larissa que
lhe contou a morte de Dina e os demais acontecimentos que se deram no castelo.
-- Volta finalmente à razão, Valéria! Ninguém, dos que conhecem as particularidades desse drama do passado, te
recriminará e condenará. Tu, como Pawel, foste vítima do passado. Não estarias agora entre os vivos se não fosse a bondade de Sir Gerald. O Barão te ama e te considera
como sua noiva. Deseja desposar-te em breve e eu estou certa de que serás feliz com ele. Tu o amas também, não? Tranqüilizate pois, e pensa no belo futuro que te
espera! Concluiu Larissa. Só à tardinha Valéria manifestou-se disposta a saudar os parentes. E conto ninguém fizesse referência nem de leve, aos dias misteriosos,
mas ficassem antes jubilosos pelo seu restabelecimento, ela se tornou mais tranqüila e, no dia seguinte, quis também ver ao Barão. Levemente emocionada fez a sua
entrada. Quando a alta figura se apresentou entre os portais, não pôde ela ocultar o pejo e cobrir o rosto com as mãos. Rothschild contemplou-a com profundo sentimento,
misto de amor e compaixão. Aproximou-se dela vagarosamente e envolveu-a nos seus braços. -- Giovana, perdoa-me! Eu te amo e quero dedicar toda a minha vida à tua
felicidade. Não chores agora, as tuas lágrimas me maltratam. Balbuciou ele, e procurou retirar-lhe as mãos do rosto. Valéria aconchegou-se e perguntou-lhe estremecendo:
Não me desprezarás, Paulo? -- Não, Giovana! Somente poderei desprezar-me a mim mesmo. A única desculpa que tenho é que me achava sob o poder das forças sobrenaturais,
que me fizeram cego e surdo. Mas todo o mal está desfeito. As cadeias férreas que nos mantinham prisioneiros, estão quebradas, e a maldição, que pesava sobre nós,
desfeita. Agora não sou mais o Maledetto, mas um homem livre que vem te oferecer o seu amor. Alcançamos a nossa felicidade a preço de terríveis sacrifícios, e vamos
gozá-la agora a plenos pulmões, não é mesmo, Valéria? Ergue a tua cabecinha e dá-me um beijo, em sinal de que, em mim, não amaste somente a Paulo de Montinhoso,
mas também a Pawel Borisowitsch! Valéria sorriu e deixou-se beijar pelo seu noivo.
-- Sim, Pawel, eu também te amo! Mas não amas tu, apenas a Giovana, em mim? Perguntou baixinho, sorrindo. -- Amo
a ti e a Giovana em ti! Mas falemos agora do nosso futuro... Respondeu Rothschild assentando-se ao lado dela. A animada palestra restituíra Valéria ao presente,
fazendo-a esquecer o brumoso passado. Meia hora depois os dois noivos foram reunir-se aos demais hospedes da vila. Iniciaram, desde então, uma vida alegre e descuidada.
Anatólio perdera a expressão fechada que ostentara até então. Intimamente, fizera as pazes com Rothschild. Pelos telegramas que fizera expedir, a genitora de Valéria
fazia saber a sua grande satisfação pela brilhante união que estava reservada à filha. Lolo e Valéria sentiam-se felizes. Passavam a maior parte do dia no castelo,
em febril atividade. Sob a direção do Barão e Anatólio, fora demolido o alto muro que circundava a ala misteriosa. Portas e janelas foram abertas a fim de dar entrada
ao ar e à luz, que, agora, depois de três séculos, penetravam de novo nos compartimentos. A conselho de Sir Gerald, o horrível quadro a óleo do salão foi destruído.
As senhorinhas remexeram velhas caixas e canastras, e por entre as vestimentas dos antigos senhores do castelo, encontraram tanta peça valiosa, que, numa festa à
fantasia, teriam feito furor. Duas semanas depois, já quase não se conhecia o castelo. O grande e velho portão estava aberto de par em par, o quintal estava limpo
da grama e dos arbustos, no jardim as flores desprendiam o seu perfume, e o maravilhoso repuxo lançava o seu jato brilhante para o alto. Numa das noites seguintes,
Sir Gerald deu um longo passeio através do castelo. Poucos dias depois, na companhia de Tonilim, partiu de Montinhoso. Permitira que Rothschild lhe escrevesse, e
prometera avisá-lo sobre a data da sua partida para a Índia. Aos poucos os habitantes do castelo preparavam-se para retornar à pátria. A viagem de regresso seria
feita através de Paris, a fim de que Valéria pudesse adquirir o seu enxoval. Os últimos dias passados no castelo foram de alegria e festas. Num pequenino armário,
no quarto de Giovana, Valéria e Lolo haviam
descoberto dois pequenos estojos. Um deles continha jóias e ricas pedras preciosas, o outro continha cartas de
amor dirigidas a Paulo de Montinhoso e um pequeno número de miniaturas, em vários tamanhos, de formosas mulheres. Com este tesouro, correram ao terraço, indagando
de Rothschild quem era esta ou aquela personagem, de qual era este bracelete ou aquele grampo de cabelo. O Barão achou graça na brincadeira, mas insistiu em queimar
aquelas lembranças. Valéria opôs-se e, rápida, fugiu com as caixinhas para o seu quarto. Um dia, afinal, deixaram o castelo. As senhoras, na companhia de Anatólio,
seguiram para Paris. Rothschild, entretanto, regressava diretamente a S. Petersburgo, na Rússia, onde teria de ultimar os negócios de herança e fazer os preparativos
para o casamento. Já no seu destino, o jovem milionário mandou preparar os aposentos para a futura esposa. Para tal motivo, solicitou de seus superiores hierárquicos
uma licença prolongada que lhe foi concedida, pois que não era de admirar que agora, como homem rico, tivesse muitos negócios a resolver. Ninguém suspeitava, entretanto,
que se preparava para uma viagem à Índia. Visitou todas as propriedades que herdara e tomou suas providências de tal modo que, por alguns anos de ausência, a administração
não entraria em dificuldades. Cerca de duas semanas depois do regresso das Muranoff e de Larissa, que trazia Valéria de Paris, realizavam-se dois matrimônios simultaneamente,
ambos na intimidade, uma vez que Rothschild ainda se encontrava de luto. Os primeiros tempos do matrimônio, os jovens casais desfrutaram-nos na tranqüilidade de
seus lares. Lolo vivia em Sarkoje Selo, onde seu marido servia. Em breve, as aves de arribação da capital, regressando do exterior e do sul do país, davam começo
à vida social de S. Petersburgo. Leves nuvens se ergueram no firmamento da felicidade conjugal do Barão e sua esposa. A jovem senhora, orgulhosa de seu esposo, queria
apresentar-se na sociedade e nos teatros. Rothschild entretanto, nunca amara estas coisas. Tinha-as a conta de exibições. Os misteriosos e enigmáticos sucessos de
que fora protagonista, o haviam afetado, e lhe abriram os olhos para as luzes
do mundo. As palavras ocas, os interesses vis, as intrigas mesquinhas com que a sociedade se ocupa, enojavam-no
e eram-lhe desagradáveis, não podiam mais atraí-lo. Todo o seu interesse voltava-se agora para as leis ocultas que regem os destinos humanos. Desejava penetrar,
o quanto lhe fosse possível, no conhecimento delas. Todos os livros banais e fúteis da sua biblioteca, foram retirados dos armários. Em lugar deles, viam-se livros
sobre a história das religiões, os mistérios da Índia, o Ocultismo e o Espiritismo. As estampas duvidosas desapareceram de suas paredes, dando lugar a quadros mais
sérios, correspondendo ao seu gosto atual. Mantinha assídua correspondência com Sir Gerald e Tonilim. Ficara sabendo assim, que os dois amigos pretendiam por-se
a caminho em fins de fevereiro. Assim, começou ele também a preparar-se para a viagem. Não raro, estando Valéria na companhia de amigas, em animada palestra sobre
questões do último lançamento da moda, procurava envolver o esposo na conversa. Rothschild, porém, encontrava sempre um pretexto para afastar-se logo, e mergulhar
na leitura dos seus livros. Muitas vezes assentava-se diante do retrato do Conde Rindolfo, que trouxera de Montinhoso e pensava no passado. E uma vez mais lia a
velha crônica que quase já sabia de cor. O Barão perdera pai e mãe muito cedo. Crescera numa atmosfera fria que era o ambiente do falecido tio. Nunca lhe faltava
nada, era verdade, a não ser meiguice e amor. Assim, o retrato do Conde Rindolfo eralhe mais caro do que a lembrança do tio. Podia ficar assim, horas a fio, diante
do retrato, a contemplá-lo com amor. Quase sempre preferia ficar ali, a sós consigo mesmo, do que na companhia dos amigos e parentes, que nada tinham a dizer-lhe
e que o fitavam como uma espécie de animal raro, pois, os sucessos de Montinhoso correram, naturalmente, céleres pelos salões de S. Petersburgo. Por sua vez e de
certa forma, Valéria também se sentia desiludida; o amor e a meiguice de seu esposo nada tinham em comum com a paixão arrebatadora de Paulo. Recordava-se muitas
vezes das quais se sentira tão plenamente feliz. Não podia compreender a mudança que se operara em Rothschild. Amava-o apaixonadamente, mas via-se levada a ocultar
os seus
sentimentos, julgando-se ofendida. E por vezes vinham-lhe também negros pensamentos, a despertar-lhe os ciúmes.
O Barão notava e também compreendia essa mudança em sua esposa. Mas nada podia fazer para, de qualquer modo, amenizá-la. Amava também, sinceramente, a Valéria. A
beleza da moça era, para ele, um eterno motivo de admiração. Não sentia mais, todavia, ao fitá-la, e conforme confessava a si mesmo aquela atração abrasadora que
o arrebatara em Montinhoso. Buscava nela, agora, antes a companhia querida com a qual pudesse palestrar sobre os problemas do espírito que o preocupavam. Valéria,
entretanto, era muito jovem para renunciar à vida e aprofundar-se nas ciências pelas quais não apenas sentia-se desinteressada mas que lhe causavam quase aborrecimento.
Uma tarde estava Rothschild imerso nas suas leituras quando Valéria veio ter com ele. Sentou-se no braço da poltrona e fechou o livro que ele lia. -- Ora, Pawel,
deixa de lado estes livros cacetes. Vem comigo a distrair-te um pouco. Lolo foi-se embora e eu me aborreço só. Sabes que tens modificado muito? Não gostas de sair
comigo, estás, sempre tão sério, e quase já não sorris. É certo que não compreendo o sentido de todos estes estudos que fazes, mas desejo saber afinal, a causa dessa
mudança que se opera em ti. Tu sabes que eu te amo muito. Principio a ter negros pensamentos! Concluiu ela tristemente. Rothschild suspirou profundamente. Uma desagradável
sensação dominou-o. O que iria suceder quando falasse da viagem projetada e que iria durar alguns anos? Como receberia Valéria a notícia? Resistiria à separação?
Compreendia muito bem que, abandonando a jovem esposa tão poucos meses após ao casamento, estava procedendo cruelmente para com ela. Contudo não queria desistir
do plano concebido. Ela teria de conformar-se, se o amava. De repente veio-lhe a lembrança de que talvez fosse aquele o melhor momento para preveni-la sobre a partida.
Para resolver esse problema, rapidamente empurrou os livros para um lado, beijou Valéria e ergueu-se.
-- Vem, senta-te junto de mim aqui. Vamo-nos explicar. Disse amavelmente. Vê, eu sinto que tu condenes os meus
estudos e me acuses de ser calado e retraído. Mas tens razão. Todavia esta vida social, entretanto, aborrece-me, é-me exclusivamente destituída de interesse. Não
ando quieto como supões. Concentro-me. Condenas isto? Já não posso ser outro. Tudo o que vivemos em Montinhoso, não pode ser riscado com traço de pena. Afinal, é
muito natural que procure investigar as causas que provocaram aqueles sucessos. E para garantir a ti, e a mim mesmo, um futuro tranqüilo, urge que eu aprenda a dominar
o meu Eu, a dirigi-lo, para não voltar a incidir nos erros do passado. Podes confiar em mim. Preciso fortalecer as minhas bases morais, por meio destes estudos.
Como saber se não me tornarei de novo o apaixonado e delinqüente Paulo de Montinhoso, que fui outrora?... -- Como podes pensar nisto, como outrora, em outras mulheres?
-- Não, Valéria! Mas quem pode saber do futuro? Tanto mais que tudo isto já está no meu sangue. Não deves esquecer de que estou, por todos os lados, cercado de perigos.
Dizem que sou interessante, que agrado a todas as mulheres. Sou jovem, sou rico. A morte de Dina pesa-me, sobremaneira, na alma. Fui duro e cruel para com ela e
certo que não a amei, mas a desposei quase livremente. Quando lhe pedi que me concedesse o divórcio para que eu pudesse cumprir com os deveres de honra em relação
a ti Dina tornou-se uma órfã absolutamente só no mundo, sem ninguém para a proteger. Ela me amava como tu, Valéria, e firmou a sua última esperança no Elixir do
Amor, que se tornou a sua desgraça. Eu a atirei à morte, e é uma grande carga que pesa, agora, sobre meus ombros. Rothschild suspirou profundamente. -- E julgas
que os estudos destes livros bastem para encontrares o equilíbrio psíquico, a paz interior que buscas e te protegerá de todos os perigos que te envolvem? Perguntou
Valéria duvidosa. -- Não bastam, certamente. Mas eu desejo, sobretudo, matar o animal que reside em mim, e não andar mais como um cego. Quem vê
distintamente, os perigos da vida à sua frente, poderá, naturalmente, desviar-se deles mais facilmente do que aqueles
que nada vêem e nada querem ver. É muito possível que, para alcançar o alvo que tenho em mira, ainda necessite de uma grande prova do teu amor para comigo, Valéria...
-- Pawel, nenhum sacrifício me parecerá demasiado, para eu te oferecer em sinal do meu amor! Principalmente em se tratando de tua paz interior. Volta agora aos teus
livros. Por-me-ei á vontade e terminarei aquela aquarela que representa o nosso querido Montinhoso. Ficarei quietinha para não te incomodar, e daqui contemplarei
o teu rosto que me é tão amado. E em pensamentos acariciarei os teus cabelos negros que ainda não contêm nenhum fio de prata, apesar... dos remorsos! Disse ela
maliciosamente. E graciosa, correu a buscar os seus apetrechos de pintura. Rothschild passeava na sala de um lado para o outro. Pensava nas cenas que o aguardavam.
Mas estava firmemente disposto a vencer tudo, para atingir o seu fim. A Índia o atraía como um imã, não dava tréguas aos seus pensamentos. Naquele país maravilhoso
deveria, sob a orientação de um homem tão inteligente e ilustrado como Sir Gerald, conhecer por fim a sua condição de homem. Era uma felicidade que só bem raramente
o indivíduo alcança. Nem um passo poderia arredar do seu propósito. Com cada dia que diminuía o tempo da partida, o Barão se tornava mais inquieto. Meditava e procurava
encontrar um meio para convencer Valéria, sem alcançar solução, entretanto. A esposa não sabia de nada a respeito. Continuava, como antes, a fazer e receber visitas.
Saía a passeio e se mostrava alegre e satisfeita. E Rothschild ultimava os preparativos para a sua viagem. Estudara e delineara um plano perfeito de administração
das suas propriedades e fizera também o seu testemunho, que deixou entregue ao seu advogado. Cinco anos, eis o tempo que duraria a sua ausência. Era, afinal, um
lapso de tempo considerável, e não se podia prever o que poderia acontecer. Como tudo seria fácil, se ele fosse livre! Arrependia-se amargamente da sua leviandade,
que o obrigara ao matrimônio.
Quando, uma tarde, Larissa visitava a casa de Valéria e encontrou-se a sós com Rothschild no salão, enquanto que
a dona da casa vestia-se para ir a um baile, disse ele sem ocultar o seu mau humor: -- Não posso compreender o prazer que Valéria pode encontrar, indo, diariamente,
a bailes, para ouvir a conversa toda vazia dessa gente! Nunca esperei, é certo, que ela tivesse tão pouco interesse pela palestra e a leitura sérias. Ambos vencemos
tanta coisa dura, juntos, estivemos à borda da sepultura, e ela não sente o menor interesse pelos problemas e segredos de que quase fomos vítimas. Não posso compreender
isto! Larissa procurou defender a afilhada e desculpar Valéria, lembrando a sua juventude e jovialidade. -- Paciência, Pawel! Com o tempo ela também terá interesse
em relação aos teus pensamentos. É uma menina boa e inteligente. O Barão encolheu os ombros e não disse nada. Valéria voltava nesse momento, num atraente vestido
de baile, corporificação veemente da descuidada juventude. Larissa, porém, ficara inquieta com a observação de Rothschild e resolveu dar a Valéria alguns conselhos
úteis, quando, alguns dias depois, voltava à casa do casal. Valéria estava experimentando vestidos com a costureira... -- Onde está Pawel? Ainda não o vi! -- Deve
estar, seguramente, no seu gabinete de leituras, trabalhando, como sempre! Está, talvez, ocupado em investigar o seu corpo astral, ou meditando nos seus antigos
pecados, que confronta com as virtudes que adquiriu, para verificar o que resta! Disse a moça ironicamente. -- Fazes mal, minha filha, em te manteres tão hostil
aos trabalhos de teu esposo! Deverias, antes, tentar penetrar o círculo das suas cogitações, participar do seu trabalho. É perfeitamente compreensível, depois de
tudo o quanto aconteceu, que ele tenha penetrado nesse campo de pensamento. E deverias também, não procurar arrastá-lo de uma para outra diversão. Ele não gosta
disso! Fez Larissa recriminando.
A cólera de Valéria, até então refreada, manifestou-se. -- Não compreendes por ventura, que ando saturada desses
escudos idiotas? Não o embaraço, é fato, nas suas investigações, mas ele também não pode exigir de mim que me sepulte em seu quarto, sob tais livros. Sir Gerald
nos disse que já nos libertamos das garras do passado. Não posso pois, compreender porque nós, sendo jovens, ricos e sadios, não devamos gozar a nossa vida. Por
que levar uma vida de claustro e, como crianças de escola, estarmos sempre de livros na mão, saturando-nos com essa ciência enfadonha e sobretudo incompreensível?!
Valéria erguera-se e andava inquieta de um lado para o outro, da sala. Larissa observava-a cheia de cuidados. -- Valéria! Valéria! Não te fica bem falar assim. Não
temes, então, levantar entre ti e teu esposo uma parede divisória? Mais tarde poderás te arrepender amargamente por essa recusa cega em concordar com ele. E não
compreendo como podemos repudiar essa ciência como enfadonha e desinteressante. Ela nos fornece tanta coisa de novo e digno de se conhecer, que, absolutamente, não
pode ser taxada de enfadonha. Antes lembras-te? te ocupaste com ela! -- E ainda hoje me interesso. Leio com prazer qualquer livro a respeito e assisto às vezes
a algumas sessões. Mas tudo com moderação, com medida! Não me passou pela idéia enterrar-me, com meu esposo, nesse assunto, e nele esquecer o mundo que me cerca.
Ele, porém, fica sempre zangado quando tem que ir comigo a qualquer parte, quando o afasto assim, do contato com os seus livros. Especialmente nestas últimas semanas
anda insuportável. Nervoso e inquieto, tem qualquer ocupação sobre a qual não me diz nada. Não compreendo o que se passa, enfim! Cheguei a desconfiar de que, talvez,
tenha se arrependido de ter se casado comigo... Disse com lágrimas nos olhos. Larissa tranqüilizou-a tanto quanto pôde, e prometeu falar a respeito com Pawel. Um
belo dia Tonilim surgiu a visitá-los. O solteirão pretendia passar muitos anos na Índia, e ia liquidar, por esse motivo, com a sua
casa. Pediu a Rothschild que guardasse algumas raridades, bem como algumas de suas coleções, no que o Barão acedeu.
Restava apenas uma semana para partirem rumo a Londres, onde Sir Gerald os aguardava. Rothschild não podia protelar por mais tempo o seu entendimento com a esposa.
Decidiu comunicar antes o seu plano a Larissa e obter, por parte dela, algum apoio. Certa manhã, quando Valéria ausentou-se, indo, na companhia de uma amiga visitar
certa exposição, o Barão se dirigiu inopinadamente para Pawlosk. Larissa mostrou-se um tanto quanto admirada com a visita e notou a falta de Valéria. -- Valéria
foi visitar uma exposição qualquer, de cães, ou macacos... Ela está bem, goza de boa saúde. Vim aqui por causa dela, Larissa. Preciso pedir-te um grande favor. Venho
rogar-te amparo para Valéria, durante a provação que sou forçado a impor-lhe, e que não lhe será fácil vencer! -- Pelo amor de Deus, Pawel! Do que é que se trata,
o que pretendes fazer? Disse Larissa nervosa. -- Eu próprio sofro bastante, mas Deus é testemunha de que não posso agir de outra forma. Não me condenarás, se tomares
em consideração, que os sucessos de Montinhoso fizeram de mim outro homem. Preciso aprender, Larissa, preciso penetrar as leis do mundo invisível que nos cerca,
e agora se me oferece uma oportunidade. Se a perder, nunca mais poderei satisfazer os meus desejos. Sir Gerald, atendendo a meus rogos, declarou-se disposto a instruir-me
e auxiliarme, pelo menos em parte, no conhecimento das misteriosas forças que nos governam. Possuo a força de vontade necessária ao empreendimento. Poderia acaso
perder esta oportunidade? Por esse motivo me ausentarei, viajarei para o estrangeiro, Ficarei cerca de cinco anos na Índia. Por isso é que venho rogar-te que expliques
a Valéria que não é por falta de amor que assim faço, mas exclusivamente pelo íntimo desejo, pela necessidade que sinto de compreender os problemas que a envolveram,
e a mim também, e que ainda nos abrangem a todos.
-- Desejas ausentardes daqui pelo espaço de cinco anos? Mas agora, que estás casado há cinco meses apenas? Francamente,
devo dizer-te que o que desejas equivale quase a um divórcio, e será um golpe brutal para Valéria... Rothschild corou, e um amargo sorriso aflorou-lhe aos lábios.
-- Ainda que não seja um divórcio, é ainda, uma separação longa! -- Não nego isso, Larissa! Mas essa separação é inevitável. Se Valéria me ama realmente, se ela
me ama em espírito, em suma, o que não tenho em dúvida, compreenderá o meu passo, perdoar-me-á e aguardará, tranqüilamente, o meu regresso. Se fôssemos ambos livres,
tudo seria, certamente, mais fácil. Mas acontecimentos fatais nos levaram ao matrimônio, e agora ambos devemos procurar ir ao encontro um do outro, e nos conformarmos
com o que de nós exigem as supremas realizações da vida. -- Tu tens razão. Entretanto, não só a culpa de Valéria deve ser levado este matrimônio... -- Nem se fala
disso, Larissa! Sei, e não nego, que sou, sem dúvida nenhuma, o maior culpado. É fora de dúvida, porém, que fiz tudo para reparar a minha falta. Mas, eu não buscava
tão somente a satisfação das minhas paixões, eu quis encontrar também o amor psíquico. Se Valéria vê em mim apenas o homem, que lhe precisa dedicar o amor material,
então, a separação de cinco anos lhe será, realmente, difícil. Nesse caso, todavia, eu estaria, é natural, pronto a restituir-lhe a liberdade. Ela tem, afinal, muitos
admiradores, entre os quais poderá escolher um. Em S. Petersburgo existem muitos rapazes bonitos que estão dispostos a corresponder as exigências de uma senhora
jovem e fogosa. Alguma coisa de duro e irreconciliável soava na voz de Rothschild, ao dizer estas últimas palavras. -- Dizes, portanto, que há em S. Petersburgo
muitos rapazes belos, como tu mesmo exprimiste, que poderiam servir a Valéria? Sinto dizer-te que o que disseste agora, em relação a Valéria, não te honra
absolutamente, e é uma injustiça tua! Retrucou Larissa friamente. Mas no que se refere ao teu pedido, em ser
eu um amparo para Valéria, podes ficar tranqüilo. Farei tudo quanto esteja ao meu alcance para consolar essa infeliz e desolada criatura! Larissa ergueu-se. Depois
de uma formal despedida, Pawel saiu, meio de descontentamento, de Pawlosk. Se Larissa o despachava de tão inclemente maneira, o que não diriam os outros parentes?
Como haveria de explicar-se com Valéria e sua sogra? Era desesperadora a sua situação. Os crimes do Maledetto tinham-nos envolvido num círculo de senhoras jovens
e idosas, de cujos dedos tinha que se libertar. Enquanto o auto conduzia-o de volta a S. Petersburgo, sentiu erguer em si a inquebrantável vontade de Paulo de Montinhoso.
Resolvia-se a não ceder um passo. Em casa, encontrou Tonilim, que lhe trazia uma carta de Sir Gerald. Escrevia-lhe que no caso de uma mudança de opinião, por parte
do Barão, esperava um informe telegráfico, a fim de que pudesse reservar o número exato de acomodações a bordo. -- Absolutamente não me passa pela cabeça alterar
os meus planos. O que não diria de mim então, Sir Gerald! Mais do que nunca desejo o isolamento e o trabalho! Disse Rotschild. -- Mas, o que dirá a isso tua esposa?
Perguntou Tonilim. -- Ela terá que se conformar com a minha vontade! E se não quiser esperar a minha volta, que mova uma ação de divórcio e se case com outro. Porei
à sua disposição os meios necessários para que possa escolher um homem ao seu gosto. Afinal, compreendo que uma separação tão longa não se pode recompensar com o
preço de uma felicidade inquebrantável! X X X -- Valéria ainda ignorava tudo o quanto estava para acontecer. O Barão dedicava-se a ela mais do que anteriormente,
ia aos teatros e acompanhava-a às visitas. Encheu-a de presentes. Entre outras coi-
sas, deu-lhe um seu retrato a óleo. Entrementes, encontrara uma comparsa em Lôlo. A jovem senhora já adivinhava
qualquer coisa e não se admirou quando Rothschild, confiando no seu auxílio, lhe comunicou o seu plano. -- Cinco anos são, em verdade, um longo lapso de tempo, e
uma separação tão prolongada, não é fácil! Mas, afinal, a vida é longa, tereis ainda tempo de vos fazerdes, reciprocamente, felizes, quando voltares! Disse ela.
-- És, realmente, adorável, Lolo! Consola Valéria e procura afastá-la dessa vida multicor em que presentemente vive. Desejo fundar um asilo para crianças abandonadas.
Deixarei os necessários meios em tuas mãos, Lôlo. Tu procurarás passá-los a Valéria. Eu gostaria disso! Entre todas essas outras coisas, ela teria, assim, uma ocupação
séria. A fundação e a organização da casa a absorverão, não achas? Uma noite, cerca de cinco dias antes da partida de Rotschild, voltava o jovem par do teatro. No
decorrer da tarde desse dia, Pawel decidira-se por mais que lhe custasse, comunicar tudo à esposa. Sem trocar de roupa, sentou-se num banco junto à lareira e mergulhou
em pensamentos. Não notou quando Valéria veio chamá-lo para a ceia e aproximou-se, mansamente. Havia trocado o seu vestido de noite por um leve penteador azul claro,
e soltara os seus longos cabelos loiros. Sabia que o esposo gostava de vê-la assim. Arrumara-se especialmente para lhe ser agradável. Notava o abatimento dele, e
nutria o melhor propósito de o consolar. Correndo acercou-se dele e abraçou-o pelo pescoço, beijando-o . -- Paulo! Disse baixinho. Assim o chamavam sempre que desejava
ser amável. -- Dize-me, Paulo, o que se passa, contigo? Não me amas mais? Por que andas assim, tão esquisito? Rothschild estremeceu, e não pôde esconder o seu martirizante,
ao vivo olhar dela. -- Giovana, amas-me realmente?
-- Mais do que a minha vida, Paulo! Agora que nada nos pode separar, que nos pertencemos diante de Deus e os homens,
eu te amo mais do que a tudo no mundo. Carinhosamente aconchegou-se a ele. -- Se me amas, assim, deverás então entender-me e perdoar-me, se eu te suplicar um grande
sacrifício! Se me amas serás generosa, complacente e paciente para comigo, e suportarás a privação que sou obrigado a impor-te. Será a última provação do nosso amor.
Valéria empalideceu e fez-se inquieta: -- O que queres dizer com isto? As tuas palavras, que significam?... -- Compreenderás em breve. E Rothschild expôs-lhe o seu
estado psíquico, todas as dúvidas com as quais lutava, e a sua resolução de ir para a Índia. -- Contas dezoito anos, terás apenas vinte e três quando eu voltar,
Valéria. Então, dedicarei toda a minha vida a ti, tão somente a ti! Teremos um longo tempo para a nossa felicidade. Sê prudente, Valéria, sê bondosa e não me condenes.
Escrever-te-ei, saberás tudo quanto se relacionar à minha vida lá. Valéria recuara e permanecia trêmula diante do marido: -- Desejas abandonar-me? Afastares-te de
mim por cinco anos? E para perseguir fantasmas na companhia desse semi-louco, Tonilim, com esse Gerald charlatão? Mas, dize-me, estás no teu juízo? O Barão erguera-se
e prendera com energia a mulher pelo pulso. -- Valéria, que eu nunca mais ouça uma palavra injuriosa sobre Dionid e Sir Gerald. Perdôo-te as palavras irrefletidas,
levando em conta a tua excitação. E espero, ainda, que, por amor, me perdoarás, e suportarás, pacientemente, a separação. -- Nunca! Nunca darei o meu consentimento
para que te ausentes por tanto tempo! Não quero! E não tens o direito de fazer de mim o escárnio da sociedade, abandonando-me depois de apenas seis meses de casados...
O que te fiz para que te vás e destruas a minha vida?
-- Eu não te abandono! Voltarei e hei de amar-te sempre, como te amei até hoje. No que se refere à opinião da sociedade,
que eu tanto desprezo, bem pouco me importa. Estamos muito acima dessa gente falsa, à qual o falatório e as hipocrisias são o objetivo da vida. Eu nutria esperanças
de que me compreendesses. Esperava que, na minha ausência, também lerias e estudarias, como o fiz durante todo este tempo. Ao regressar, colheríamos, como bons camaradas,
os frutos do nosso saber. A tua resistência, porém, pesa para nós dois, e é inútil, pois que a minha resolução está inabalavelmente tomada! Completou Rothschild
tranqüilamente. Valéria ria-se abertamente: -- Não ponho em dúvida a firmeza da tua resolução, Paulo de Montinhoso! A tua obstinação já sacrificaste mais de uma
vítima. Foste o algoz de toda criatura que te amou. Não é de estranhar, pois, que ajuntastes, ao teu rol, outra mais. Que te importa o que será de mim no decorrer
desses cinco anos! Queres talvez que eu, para te facilitar os estudos das tuas fantasias, vá de trouxa às costas de convento em convento, vivendo de esmolas, orando
por ti? Talvez porque não! que o mestre Gerald se lembre, para abreviar o tempo da tua aprendizagem, de casar-te com uma bailarina do templo! Podereis então rir
e vos divertirdes melhor à custa da tola que ficou aqui á espera. Rothschild empalidecera e se aproximou de Valéria. -- Disseste a verdade, Valéria! Outrora eu passava
sobre cadáveres para satisfazer meus caprichos. Mas agora quero libertar o meu espírito, e nada no' mundo me demoverá. Afora isso, convenço-me de que, o que denominas
o teu grande amor, nada mais é que um capricho. Tranqüiliza-te, porém: depois de trezentos anos, o algoz já está mais civilizado e não imporá a sua vítima nenhuma
violência. Assim, se o desejas, serás livre! Encontrarás muitos homens que se julgarão felizes, em tirarem de ti a aparência de mulher martirizada e abandonada.
Não queres mesmo por bem te separares de mim? Mas agora a minha última palavra. Quer queiras ou não, dentro de cinco dias partirei.
Valéria desesperou-se. -- Homem sem honra! Ainda ousas ofender-me? Abusaste de mim, me atiraste, como uma esmola,
o teu nome e me indicas agora a porta; como se eu fosse demais! Oh! Maledetto. Felizmente não se pode, hoje, sem mais nem menos apunhalar a esposa ou envenená-la!
Incitas-me por isso ao suicídio? Sem esperar uma resposta, Valéria fugiu. Aturdida entrou, soluçando, no seu quarto, e fechou a porta. Sua cabeça ardia. Se Rothschild
pensava ter vencido, enganava-se. Ainda o esperava coisa pior. No dia seguinte a parentela de Valéria pôs-se em polvorosa. A primeira a chegar foi a mãe, que falou
ao Barão sobre a vida desfeita de sua filha. Depois veio Anatólio que, por bem, procurou influir no ânimo de Rothschild, e que se afastou sem conseguir coisa alguma.
Grande parte do geral descontentamento da família se despejou sobre Tonilim. Não fosse ele hóspede do Barão, as senhoras o teriam expulsado da casa: Como e por intermédio
de quem o drama familiar se fez público, ninguém podia explicar! Mas de uma hora para outra, em todos os salões, não se falava sobre outra coisa que não fosse a
viagem de Rothschild e o drama de sua infeliz esposa. As mais variadas versões entraram em motivos sensacionais. Afirmavam que Pawel perdera a razão, e devia ser
internado num manicômio; que um sintoma evidente disso era a sua grosseria no convívio com as senhoras. Outros afirmavam que a viagem tinha ligações com a compra
do castelo italiano, que estava cheio de cadáveres e esqueletos; que um faquir indiano, em viagem, se aproveitara disso e incutira no Barão a idéia da existência
de um cadáver ambulante que expulsou com a necessária arte de berliques e berloques, e que por esse serviço recebera uma boa soma em dinheiro, mais o compromisso,
por parte de Rothschild, de passar cinco anos purgando diante de um pagode. Daí a sua viagem à Índia. A maioria, porém, sustentava que alguns trapaceiros do Oriente
souberam influir sobre o Barão e Dionid Tonilim, cujas fortunas o tentavam, no sentido de deixarem o lar e seus haveres e o seguirem à Índia ou a outro lugar qualquer
e, o que era o principal, darem-lhe o seu
dinheiro em recompensa pelo serviço que os libertaria das forças invisíveis, dos espíritos que deles se haviam
apoderado. À família do Barão deram, com toda a seriedade, o conselho de o colocarem sobre imediata curadoria, ou o fazerem divorciar-se de Valéria, uma vez que
a loucura poderia levá-lo a assassiná-la. Por toda a parte a agitação era grande. Nesse meio tempo, porém, Rothschild mandara entregar aos conhecidos, sucintamente,
o seu cartão de visitas, e terminara os seus preparativos. Em seu lar pairava uma tempestade. Larissa, que viera de Pawlosk, não se afastava de Valéria, que se encontrava
num estado quase indescritível de agitação. Não via mais o esposo. Lolo a auxiliava numa ou noutra coisa, pois que a mãe de Valéria estava quase sempre de cama,
com enxaqueca; não se mostrando capacitada para nada. Quando, descuidadamente faziam-na lembrar-se do genro, tornava-se furiosa, responsabilizandoo pela desgraça
de sua filha. Apenas Lolo pusera-se do lado do Barão. Independente, ela lhe contava tudo quanto às suas costas se passava e se dizia, a respeito, entre as senhoras.
Todas essas inconveniências atuavam, naturalmente, sobre Rotschild. Apresentava ele uma má aparência, quase não comia e dormia mal, de modo que Tonilim se viu na
contingência de, por vezes, ministrar-lhe algumas gotas de um remédio de Sir Gerald, fornecido para casos de necessidade. Os dois proscritos contavam as horas da
partida, pois que, além de Pawel, também Tonilim quase não se podia mais defender dos ataques. Tonilim foi abertamente acusado de cumplicidade na inexplicável historia.
Diziam, ainda, que ele e o indiano haviam hipnotizado o Barão. Finalmente chegou o dia da partida. O trem saia à noite. Arrumaram as últimas instruções. O velho
Sawely chorava como uma criança enquanto apertava as correias das malas e as conduzia a estação. No quarto, o Barão passeava, extremamente agitado, de um lado para
o outro. Notara que ninguém pretendia acompanhá-lo até a estação. Desejaria sair silenciosamente, sem ser visto. À tardinha, Tonilim foi ao salão despedir-se das
senhoras. Larissa e Helena, embora agita-
das, foram ainda corteses, se bem que frias, ao passo que a mãe de Valéria não se pode conter e avançou para Tonilim:
-- Ladrão! Embusteiro! Não vos contentais, em terdes sido, pessoalmente, vitimado pelas vossas idéias loucas, não? Quereis atrair outros à desgraça... Gritou irritada.
E desejou que, sobre ele e o Barão, descesse a vingança de todos os espíritos maus da provisão que possuía o trapaceiro indiano. -- Deus é minha testemunha de que
não influí de forma alguma na resolução de Pawel! Defendeu-se ele. -- Não tendes culpa? Ainda ousais afirmar isso? Quem foi, então, que levou esse trapaceiro indiano
para Montinhoso? Se minha filha terminar suicidando-se, ou se perder a razão, somente vós e vosso amigo sois responsáveis! Por que havia, minha filha, de desposar
este patife? Calou-se exausta. Mas a tranqüilidade estóica de Tonilim também se esgotara. Fora de si pelas injúrias, não pode conter-se, sem dar uma resposta dura.
-- Perguntai a vossa filha, Senhora, porque é que ela se casou com o Barão! Ela mesma vos poderá dizer melhor, já que não podeis adivinhar o motivo. Ele inclinou-se
ligeiramente e saiu. A senhora Samburoff fitou confusa. Larissa e Helena Alexandrowna se olhavam significativamente. -- O que disse ele? Creio que ele ousou que
Deus lhe perdoe! injuriar a inocência de minha filha. Será possível? Não, não pode ser possível! Um choro convulso embargou-lhe a voz. As senhoras, auxiliadas
por alguns criados, a levaram para um dos quartos mais afastados, a fim de que seus gritos não assustassem Valéria. Tonilim voltava ao quarto de Rothschild, que
se vestia. -- Vem, vem depressa! É melhor esperarmos algum tempo na estação do que permanecer por mais um minuto aqui. Em breve nos apedrejarão. Livra-te tu, Barão,
de te aproximar de tua sogra. A velha
senhora atirou-se sobre mim como um tigre, e provocou uma resposta que agora lamento. Exausto ele caiu sobre uma
cadeira, enxugando o suor do rosto. -- Preciso me despedir de minha mulher. Não poderei viajar se não fizer isso. Já há cinco dias que não a vejo! Disse Rothschild.
Com o coração oprimido, saiu à procura de Valéria. Num pequeno saguão encontrou-se com Lolo e lhe contou o seu propósito. -- Vá, Pawel! De certo que ela não te quer
ver. Mas está, agora, a sós, enquanto os outros cuidam da senhora Samburoff, que teve um ataque de nervos. Ah! Pawel, nunca esperei que as coisas ficassem assim
tão horríveis! acrescentou a moça suspirando. Rothschild penetrou no aposento de sua esposa, onde a encontrou deitada numa chaise-longue. Um quebra luz azul, deixava-a
ainda mais pálida do que era. Transformara-se naqueles cinco dias. Seu rosto estava desfeito e abatido, mostrava círculos roxos ao redor dos olhos. Tinha os cílios
descidos, e o Barão não pôde saber se dormia ou se estava imersa em profundos pensamentos. Martirizado por dúvidas e remorsos, aproximou-se, ajoelhou-se e acariciou-lhe
os cabelos com as mãos. Valéria estremeceu e abriu os olhos. Reconhecendo, porém, o esposo, permaneceu deitada, como que estarrecida e, não parecia perceber os seus
agrados. Em seguida principiou a chorar e a tremer convulsamente. Lançou os seus braços ao redor do pescoço dele, sem poder conter as lágrimas. -- Mata-me antes
de partires! Quero antes morrer, a ficar sozinha aqui. -- Valéria, sê ajuizada! Tem pena de mim! Não compreendes o quanto é duro para mim este instante? Não duvides
de mim e não me esqueças. Eu não posso retroceder. E eu te juro que te amo acima de tudo, neste mundo! O tempo de nossa separação, eu o abreviarei tanto quanto me
seja possível. Pela última vez beijou as mãos geladas da moça. Entretanto, um desesperado apelo de Valéria o reteve. Ela se erguera, se prostrara à sua frente, e
lhe abraçara as pernas.
-- Paulo, fica! Não te vás embora! De joelhos te suplico... Só a custo, mantinha-se Rothschild de pé. Auxiliou
Valéria a erguer-se e por um longo instante permaneceu indeciso. Então, também ele deu vazão às lágrimas que lhe subiam do peito. Acerba luta manteve a consciência
com o egoísmo, e este venceu. Cuidadosamente deitou Valéria sobre a cadeira, beijou-a sobre os lábios e a fronte, e, apressado, saiu. Lolo veio ao seu encontro,
pálida, com os olhos rasos de lágrimas, ela o abraçou. -- Pawel, também tu choraste? Tu sofres também, neste momento amargo... -- Sim, Lolo. Se soubesses tu o quanto
sofro... Se eu pudesse voltar atrás, com que prazer o faria! Mas não posso! Sê uma irmã e uma amiga para Valéria, auxilia-a nos momentos de aflição, e escreve-me
sempre sobre tudo quanto aqui se der. Também eu escrevi, a si e a Valéria. Mas agora, adeus... Ele abraçou a prima e, apressado desapareceu no saguão. Aí o esperavam
Tonilim e o velho Sawely. Sob uma torrente de lágrimas, o velho o ajudou a vestir o casaco, abraçando-o muitas vezes. Rothschild também abraçou o velho servo e beijou-o
sobre as duas faces. Pediu-lhe que servisse à jovem senhora conscienciosa e fielmente, e recomendou-se a todos. Depois desceu às pressas os degraus e entrou no carro,
seguido de Tonilim. Partiram. Dionid olhou-o cheio de preocupação. -- Pawel, tranqüiliza-te. O pior já passou. E, se Deus quiser, voltarás com saúde e satisfeito.
O Barão não podia responder. Calados, chegaram e entraram no vagão. Somente quando, estalando e gemendo, o trem se pôs em movimento, Tonilim suspirou aliviado.

14
A INICIAÇÃO NA ÍNDIA Quando Valéria voltou a si, o trem que levava o seu esposo, já ia bem longe da capital. Cansada
e confusa, olhou ao derredor. No mesmo instante, aproximou-se de Larissa. -- Ele partiu? perguntou Valéria duvidando, e fechando de novo os olhos, quando Larissa
meneou afirmativamente a cabeça. Depois de longo silêncio, Valéria perguntou pelo estado de sua mãe. -- Deita-te também tu, titia. Eu me sinto bem agora, e, em proporção
aos sucessos. Tentarei dormir! Para não se contradizer, Valéria deitou-se sobre o divã e tentou dormir. A sua tranqüilidade, porém, pareceu suspeita a Larissa. Ela
temia qualquer tolice por parte da moça. Mas nada sucedeu, e ela não teve certeza se a afilhada dormia ou não. Os dias seguintes correram calmos, como se nada tivesse
acontecido. Valéria não saía a passeio, e nem recebia visitas. Parecia tranqüila e não chorava. Se não estivesse tão pálida, e não tivesse um olhar tão lúgubre,
ninguém teria observado nada. Quando percebeu que sua mãe e Larissa a fitavam com tristeza, tranqüilizou-as. -- Nada temais, não tenho intenção de atentar contra
a minha vida. Pawel não merece isso. Dai-me tempo de voltar a mim mesma, para depois tomar uma deliberação. Larissa voltou para Pawlosk. Lolo ao seu lar, e a mãe
de Valéria entregou-se a tratamento de saúde, tão abalada estava com os sucessos dos últimos dias, Valéria bendisse o silêncio que a envolvia agora. Quando Lolo,
dai há dias veio visitá-la, encontrou-a ocupada na arrumação de suas coisas. -- O que significa isto? O que estás arrumando? -- Estou escolhendo tudo quanto pretendo
levar. -- Para onde queres ir? Por que queres sair de Petersburgo? Tens às vezes cada idéia!...
-- Por quê? Acreditaste realmente que eu ficaria aqui, onde o povo me aponta o dedo, onde fitam-me com compaixão
e me recebem com um gelado desdém? Devo agradecer, por acaso? Por enquanto vou para Moscou, para a quinta da mamãe. O que será de mim mais tarde, o futuro nos dirá.
-- Mas Valéria não faças isto! Fica em tua bela residência e despreza as intrigas e as mesquinharias dos invejosos. Teu esposo voltará e viverão juntos muito felizes.
Vem, antes e por algum tempo, comigo a Zarkoje Selo. Lolo referiu a Valéria o desejo de Rothschild quanto à fundação da casa para os pequeninos abandonados, e da
sua esperança de que ela, Valéria, se encarregasse da sua fundação. -- Muito obrigada, Lolo! Mas não tenho vontade de participar das fundações beneficentes do meu
esposo. Para essa atividade honrosa, encontrar-se-ia alguém a quem se pagaria. -- Por que te recusas, Valéria? É uma bela lembrança de Pawel, em cuja execução também
te distrairias um pouco. Repeles assim as belas intenções de teu esposo, que, contudo, te ama. Ele estava tão triste ao partir! Até chorava... Disse Lolo. -- Ele
chorou? Vê como é tocante! Retrucou Valéria ironicamente. Essas lágrimas estão enxutas, ele se tranqüilizará... -- Como és má, Valéria! Pawel empregou todos os
seus esforços para amenizar a separação, e espera que, aos poucos, venha a compreender o teu anseio pelo saber superior! E tu recusas tudo com ironia. Cinco anos
não são, afinal, uma eternidade. Ele te deixou os meios suficientes para uma vida tranqüila, e não precisas te privar de nada. Eu sei que ele pôs à tua disposição,
cinqüenta mil rublos por ano. Podes, pois continuar a tua vida anterior, sem precisar fazer quaisquer limitações. Será pouco isto? Sê razoável, Valéria! Contempla
todo este assunto objetivamente, e não como o teu rancor ordena. -- Deus do Céu, o meu esposo, com estas demonstrações de amor, o que deseja é aniquilar-me. Seu
amor, sua magnanimidade... e
sua consideração, são realmente grandiosos! Disse Valéria com uma risada irônica. -- Sua consideração... Duvidas
porventura de que ele te considere? -- Sim, querida Lolo. Quando eu falava com ele acerca da sua partida, isto é, quando ele falava a este respeito e eu me calava,
lançou-me em rosto uma ofensa inqualificável... Disse ele que eu amava nele somente o homem, e acrescentou que me daria inteira liberdade, assim que eu o desejasse
e assim que, como ele se expressou, tivesse escolhido um belo mancebo, com o qual eu pretendesse consolar-me da separação. Provavelmente deixou, realmente, dinheiro
à minha disposição para que eu pudesse escolher o meu futuro ao meu gosto e independente das condições deste. Espera ele assim ter em mãos, quando do seu regresso,
pelo menos indubitável prova da minha infidelidade, para poder divorciar-se de mim. Dize-me sinceramente Lolo, poderei depois de tudo isto por em dúvida que ele
me menospreza? Mas, não falemos mais nisto! Se te aprazo Lolo, demonstrar-me a tua amizade, e se quiseres conservar também a minha, não pronuncies na minha presença,
nunca mais, o nome de Pawel. Este assunto está, para mim, encerrado. Terminou com um suspiro. Lolo estava perplexa. -- Vejo que ainda não estás em estado de poder
conversar contigo seriamente, e que tu não queres te deixar convencer. Pawel foi de fato, injusto, quando assim te ofendeu, mas na excitação se diz muita coisa que
mais tarde lamenta-se. Se queres, porém, o seu nome não mais será pronunciado entre nós. As duas amigas se separaram friamente. Lolo, todavia, conservava, como até
então, a sua simpatia para com o primo. Na mesma tarde, Valéria recebeu uma carta do advogado de seu esposo que lhe pedia o obséquio de recebê-lo no dia seguinte,
pois que pretendia entregar-lhe a primeira terça parte da quantia que lhe fora destinada, e, ao mesmo tempo, conferenciar com ela sobre a administração da casa.
Valéria respondeu imediata e peremptoriamente, que não pretendia
receber nenhum dinheiro, e que, para os outros assuntos, não dispunha de tempo. De sorte que ele deveria dirigir-se
diretamente ao Barão. Depois que Valéria se libertou, assim, de todos os benefícios, como ela os denominava, que por ordem de Rothschild, deveriam cair sobre si,
sentiu-se aliviada. Mas o seu sossego foi apenas externo. Em seu interior lavrava uma tormenta que somente com grande custo dominava. Só à noite, no silêncio da
casa, dava ela livre curso ao seu desespero e às suas lágrimas. A casa, em que cada objeto lhe recordava o esposo, tornou-se insuportável. E impaciente aguardava
o dia em que lhe fosse proporcionado abandonar aquelas salas. Quando, entretanto, pensava no futuro sem um objetivo, interrogava a si mesma se uma dose de morfina
não seria uma melhor perspectiva. E apenas a lembrança de que, com esse passo ela somente faria um favor a Rothschild, detinha-a. Que ele nunca tivesse a idéia de
que não poderia viver sem ele! Todos os parentes condenaram a sua idéia de ir morar, definitivamente, na quinta longínqua, mas a sua recusa em receber o dinheiro,
posto à sua disposição, revoltou sua mãe contra ela. -- A menos foi bom que ele deixasse dinheiro! Esses poucos mil rublos não o arruinarão, a ele que tem um milhão
de rendas! Mas, agora que recusaste a sua oferta, não sei, realmente, do que viverás. Murmurou enraivecida. Ela gastava, anualmente, vinte e cinco mil rublos, e
estava sempre sem dinheiro. -- Tenho cinco mil rublos do meu dote, e estes devem chegar. Prefiro morrer de fome, antes que aceitar dele um real que seja. Bem considerado,
já estamos separados para sempre! Pensaste, realmente, que eu ainda aceitaria dele uma esmola? A arte persuasiva de sua mãe e dos parentes, foi baldada. E duas semanas
depois da partida de Rothschild, também Valéria saía de S. Petersburgo. No dia anterior ao de sua partida, ela mandara depositar a prataria familiar e as suas jóias,
por intermédio do velho Sawely, na caixa forte do seu banco, lhe entregara a chave da casa e lhe dissera que. quando precisasse de alguma coisa, se dirigisse ao
advogado de
seu esposo. À noite foi à biblioteca do Barão e tomou uma nota extra de todos os livros que ele, nos últimos tempos,
lera com tanto gosto, e dos quais haurirá os princípios do seu saber. Sua mãe e Larissa, quiseram acompanhá-la até à quinta, mas ela agradeceu-lhe e pediu que não
se incomodassem inutilmente. -- Deixai-me agir por mim mesma, como eu julgar acertado! Apenas necessito agora de sossego e isolamento. E quando eu estiver mais ou
menos tranqüilizada, não duvidarei que, em vós, terei um amparo e um refúgio... Durante a viagem de S. Petersburgo a Londres, Rothschild esteve taciturno e
inacessível. As agitações daqueles últimos dias o tinham afetado muito mais do que julgara. Todos os seus pensamentos incidiam sobre Valéria. -- Desejaria saber
o que faz Valéria a estas horas!... Disse a Tonilim. Queira Deus não tenha ficado doente ou feito alguma tolice! É tão sensível... Falando com sinceridade, nunca
pensei que as coisas tomassem um rumo tão trágico! Tonilim alisou a barba meditativo. -- Não creio que ela atente contra a vida. Julgo-a por demais vaidosa para
fazer isto, dando-te assim, até certo modo, uma satisfação. -- Satisfação? Mas acredita ela de fato que eu deseje a sua morte? -- Não tanto assim! Falo de uma satisfação
egoística. Creio, entretanto, que ao regressares, ela te dará muita noz a quebrar. Rothschild não retrucou, e não voltaram a falar do assunto. O reencontro com Sir
Gerald animava de tal modo o Barão que não lhe sobrara tempo para conjecturas. Dois dias depois, os viajantes tomavam posse de seus camarotes a bordo do vapor que
devia conduzi-los à Índia. A viagem, favorecida pelo tempo excelente, ofereceu uma agradável mutação. Como o vapor
se detivesse por muitas horas em vários portos importantes, puderam os viajantes visitar as obras de arte e os
lugares pitorescos de Alexandria, Cairo e Colombo. Na Índia, Sir Gerald mostrou, em primeiro lugar, ao amigo, o templo de Elefanta e outros monumentos antigos. Tais
visitas soube ele tornar de tal maneira interessantes, a custa das descrições que fazia, que os discípulos esqueciam de tudo quanto os cercava, para tão somente
ouvirem as suas palavras. Um dia, finalmente, chegaram à morada de Sir Gerald. A residência, construída em suntuoso estilo, cheia de nobreza, estava construída entre
elevadas montanhas, num pequeno vale, e dava quase a impressão de um castelo. Dos três terraços que circundavam a casa, repetia-se sempre a perspectiva de montes
e vales; por todos os lados os olhos encontravam, para sua delícia, uma rica flora. Entre duas rochas, fluía a água cristalina de um regato, e belíssimas flores,
no jardim, espalhavam no ar singular e ativo aroma. Em toda a vizinhança, não se via outra moradia. Estava enfim o homem a sós com a natureza. Devia ali, sem dúvida,
dar o trabalho todo o seu maior rendimento. No dia seguinte ao de sua chegada, Sir Gerald apresentou-se em trajes orientais, recomendando aos seus discípulos se
trajassem de igual maneira. Para o almoço, já ambos tinham envergado as coloridas roupagens que vieram a encher o mestre de satisfação. Rothschild especialmente,
ficou muito bem nas vestes brilhantes, com o alvo turbante sobre a cabeça. -- Podes dar graças a Deus, Barão, que as senhoras de S. Petersburgo não te vejam nestes
trajes. Tu serias posto em tiras. Entretanto, sinceramente, eu te recomendo estas vestes! Mas para o primeiro baile à fantasia, depois do teu regresso. Ficam-te
muito bem! Comentou Sir Gerald sorrindo. Alguns meses se passaram. Rothschild, apesar de inteiramente restabelecido, não iniciara ainda nenhum trabalho. Uma manhã,
ousou dirigir-se, por isso, ao quarto de Sir Gerald. -- Não podes dar-me qualquer trabalho? Tenho levado uma vida de zangão: como, bebo e durmo. Não faço mais nada!
Um leve sorriso brincou nos lábios de Sir Gerald.
-- Sê paciente, meu filho! É preciso que as ondas se aplaquem, antes que o barco possa navegar. O mundo do qual
vieste, é como um mar apelado. O que foram os tempos que antecederam à tua partida, senão uma tempestade? Não te irrites inutilmente. E sabes que a opinião das senhoras
a meu respeito, não me interessam. As naturezas femininas são, em geral, mais sensíveis que as masculinas. Vós, porém, meus discípulos, podeis ter sido mais calmos.
Preferível seria que não levásseis tudo tão a sério. Receberíeis na mesma moeda. Rothschild e Tonilim entreolharam-se interrogadores. -- Mas sabes disso? -- Eu seria,
realmente, um mau adepto, se não aprendesse estas pequeninas coisas. Mas, já que tocamos no assunto, permite-me amigo Pawel dizer-te que, com referência a tua esposa,
estás sem razão. Por muito que o teu desejo de aprender te seja honroso, a tua ausência é, contudo, para tua mulher, uma provação pesada, e não devias ter-lhe azedado
mais a separação, com as tuas injúrias. -- Ela, porém, injuriou-me em primeiro lugar, pôs o meu sangue a ferver! Disse o Barão, buscando desculpar-se. -- Sim, e
então permitiste que o animal despertasse em ti. Enfim, não tens, realmente, muita culpa: assim é o mundo do qual vens. O animal no homem, sempre foi pior do que
o tigre ou a serpente. Etiqueta, educação e astúcia, mantêm preso o instinto e ocultam a verdadeira formação do homem. Mas, experimente-se um dia provocar um homem
ou despertar nele a desconfiança de que se quer roubar o pedaço de pão que vai levando à boca, e ver-se-á logo virem à tona todos os seus maus instintos. Ele te
perseguirá cheio de ódio, pois nada neste mundo odeia tanto como o animal do rebanho humano! Por esse motivo deve aquele que deseja purificar-se, evitar o mundo
e, na solidão e no silêncio da natureza, procurar reencontrar o seu equilíbrio psíquico. Tu meu filho, estás aqui para amansar o animal que existe em teu seio, para
tornar a tua vontade, e isto deverás fazer cuidadosamente, para que não desperte em ti, o animal adormecido. A tua primeira e pior proposição serás libertares-te
desse inimigo e iluminar
o teu corpo com a tua luz interior. Deverás, antes de mais nada, te tornares senhor da tua vontade. Atenta bem!
Desde essa dia, começou Rothschild a dominar a sua impaciência e a dedicar-se, para matar o tempo, à contemplação das belezas naturais que o cercavam. Quando se
punha à margem do regato murmurante, a recordar-se do passado, vinha-lhe, muitas vezes, à mente, o pouco sentido e valor restritos dos estudos que até então fizera.
Estudos, por sinal que constantemente interrompidos, para receber e pagar visitas, comparecer ao teatro ou aos bailes da sociedade, ou para as longas confabulações
com os advogados sobre questões de herança. O quanto não desejara possuir a fortuna que agora lhe pertencia e que lhe parecia um fardo quase custoso para suportar.
As mais das vezes, entretanto, o seu pensamento fugia para Valéria. O que estaria ela fazendo? Estaria doente? Ele se exprobrava acremente pelo comportamento que
tivera em relação à moça, antes da partida. Não, não desejava divorciar-se dela, antes desejava envolvê-la por ocasião da volta, com todo o amor e ternura que pudesse
manifestar, para que se esquecesse de suas lágrimas e de seu sacrifício. Deixara com Lolo o endereço da casa bancária inglesa que se encarregaria de fazer chegar
ao seu destino, a correspondência. Mas até aquele dia, não havia recebido nenhuma notícia de casa. Um dia Sir Gerald entregou-lhe um manuscrito contendo orações
e cânticos que ele deveria decorar, tão bem, que os pudesse dizer sem gaguejar, na ordem. Rothschild entregou-se com afinco a esse trabalho, e depois de duas semanas
sabia repetir o conteúdo do manuscrito em qualquer ordem. Sir Gerald louvou a sua aplicação e participou-lhe que, em recompensa, o submeteria, no dia seguinte, à
primeira prova. E pela manhã, bem cedo, conduziu-o a um quarto completamente escuro, onde acendeu um pequeno lampião. Pawel notou, num nicho es-
curo, um espelho grande e redondo, cuja superfície tremia, uniformemente, movia-se e brilhava com todas as cores
do arco-íris. Diante dele, uma espécie de mesa de aço, coberta com uma escova de fios de arame muito delgados e curtos, curvados em forma de espiral. Diante do espelho
havia uma cadeira. Ao lado do aposento em que se encontrava, constatou a existência de um outro menor, mobiliado com uma cama simples. A um dos cantos, uma pia com
água corrente. -- Aqui, meu filho, deverás passar sete dias e sete noites em oração e devoção. Indicar-te-ei a seqüência das orações e cânticos. No oitavo dia voltarás
para junto de nós e descansarás. Depois começarás de novo, e continuarás com os teus exercícios até que o desejado resultado se apresente. O alvo, pelo qual deverás
te esforçar, é o seguinte: Assenta-te nesta cadeira e observa o espelho, cuja superfície, apesar da escuridão, apresentará visíveis mutações. De pouco em pouco,
haverás de notar que de teu corpo partem irradiações, que, se fortificando, farão surgir, no vidro do espelho, o teu perispírito. Então conhecerás um dos elementos
psíquicos de que se compõe o teu espírito. Mas não julgues que será fácil chegar a esta observação. Esta prova encerra, em si, o primeiro exercício para a tua paciência
e obstinação. Não temas que maus espíritos te visitem. Trabalha com tranqüilidade e segurança. Mas não te apliques em demasia! Quando sentires fadiga e o teu corpo,
aos poucos, se cobrir de suor, toma um banho e veste roupas limpas. Sobre a mesa do canto, encontrarás pão, ovos e leite. Alimenta-te como te apetecer. Necessitarás,
sem dúvida, das tuas forças. A provisão de alimentos, será renovada cada manhã. E agora, sê feliz! Voltarei aqui uma vez ou outra, nos primeiros dias, para ver como
passas, instruir-te e auxiliar-te, mas depois terás de trabalhar sozinho. Com estas palavras, Sir Gerald se afastou. Rothschild concentrando-se, pôs-se então a orar,
fervorosamente, repetindo as palavras que decorara. Quando a semana já ia chegando ao fim, descobriu ele, com grande satisfação que o espelho tomava uma coloração
ligeiramente azulada. Ao mesmo tempo, teve singular sensação, como se de
seu corpo alguma coisa fluísse. Imperceptivelmente começaram a estampar-se no espelho os contornos de uma cabeça
e ombros, e desses contornos saíam fracos raios incolores. Sir Gerald, visitando Pawel uma ou outra vez, aconselhava-o, e impunha-lhe as mãos sobre a cabeça, como
que dando-lhe passes depois do que o discípulo sentia-se reconfortado. Algumas semanas transcorridas, parece que o desejado resultado se manifestava. À superfície
do espelho, branca luz cintilava, frouxa ainda, mas desenhando a imagem singular. Dentro de um oval surgiu, por fim, levemente coberta por nuvens de variadas cores,
a figura de Rothschild. Admirado, fitou o Barão essa imagem, admirandose da riqueza de cores que se faziam visíveis. Teve ímpetos de sair correndo à procura de Sir
Gerald, e pedir-lhe explicações, mas já se sentia suficientemente disciplinado para dominar-se e poder esperar, pacientemente, a explicação. Quando no oitavo dia,
ao almoço, descreveu a Sir Gerald o que se passara, este sorriu, fitando o Barão com seus olhos faiscantes. -- Eu te felicito, meu filho, pelo resultado do teu trabalho
obstinado e incansável. Amanhã irei até lá, e tu farás aparecer a mesma imagem. Dar-te-ei então as explicações que desejas. Quando, no dia seguinte, Rothschild reproduziu
a imagem, graças às suas concentradas preces, Sir Gerald estendeu a mão em direção ao espelho, emitindo, pelos dedos novos raios luminosos que pareceram penetrar
a imagem e reproduziram outras cores. -- Vim em auxílio da tua vontade ainda fraca, e com a minha vontade mais forte, dou vida à imagem refletida. Podes agora observar
bem o teu eu. O que vês agora, é o arquivo do teu desenvolvimento espiritual do passado ao presente, e que fornece também, indícios do que será o teu futuro. As
cores que te envolvem, são o fruto de centenares de esforços e aperfeiçoamento. Mas antes que te explique o que significam tais cores preciso se faz que eu te explique
a significação das cores vulgares. Existem milhares de combinações diferentes, correspondentes à diversidade dos espíritos. As cores negras do corpo perispiritual,
indicam animosidade e ódio; as vermelhas-sangüíneas,
conforme o seu tom, indicam ódio, amor e paixão; as pardas, significam avareza, egoísmo, ciúmes; as cinzentas,
desânimo da vida. Este último tom, o cinza, assim como o pardo, têm a propriedade de envolverem muitas vezes o corpo perispiritual como que em círculos e provocam
a impressão de grades. A cor amarela indica orgulho e jactância; amarelo-ouro, religiosidade; verde escuro e pardo, traição e hipocrisia; azul, misticismo, mas,
em medida crescente, fanatismo de um lado, santidade de outro. Com o auxílio destes informes, poderemos agora analisar tua alma. Observa, sobretudo, o ponto vermelho
sanguíneo em que, mais ou menos intensamente, se apresentam alguns pontos da imagem; vejo por ali, que és facilmente excitável e também colérico. A parte inferior
da imagem está coberta de pardas cores e verde cinzento o que faz supor uma considerável dose de egoísmo e um temperamento ciumento. O pardo passa mais acima, ao
rosa e carmesim e significa que ainda ocultas em ti uma grande parcela de ódio e paixão, mas que esta paixão começa a ceder lugar a um amor mais tranqüilo. Para
a tua felicidade, a parte superior da imagem forma, em contraste com a inferior, um contrapeso aliás bastante propício. Tua cabeça se acha circundada por uma coroa
de raios largos, que indicam uma diretriz religiosa e esforço por saber. Os raios dourados indicam que desejas aprender e que te esforças por te purificares. E que
és religioso indica este raio azul. Mas esta faixa amarelo dourada, com manchas vermelhas e rosadas, estraga toda a imagem. És orgulhoso, caprichoso e guardas em
ti um amor que apenas pergunta por si mesmo, que quer obrigar os que te cercam a se esquecerem de que têm também, uma vida que lhes pertence. Isto é o que o teu
perispírito conta. Sobre minudências todas especiais, falaremos mais tarde. Voltemos agora ao ar puro e nos retemperemos... Rothschild submeteu-se calado. Ao se
acharem no terraço, apresentava um ar tão envergonhado, que Sir Gerald pôs-se a rir. -- Volta a ser alegre, meu caro, e confessa o que te acabrunha! -- Nunca pensei
que fosse tão mau! Disse o Barão aborrecido.
-- Isso não me admira nada! Poderíamos notar a mais, uma grande dose de presunção. Mas não precisas zangar! O perigo
é sempre muito menor quando se sabe onde está. Agora, que sabes, falta-te apenas tempo para iniciar a tua auto-educação. Os nossos pensamentos representam na nossa
vida um importantíssimo papel. Eles são os precursores do estado psíquico do homem. Já sabes agora que toda emoção de tua alma tem uma forma determinada. Essas forças,
porém, que são plasmadas pelos nossos pensamentos, oferecem interessantes efeitos gerais. Explicar-te-ei isso melhor no correr destes dias. Rothschild agradeceu
comovido e perguntou se devia continuar executando a mesma tarefa, ou se lhe seria dada outra. -- Começaremos uma outra série de exercícios. Disse Sir Gerald.
Já estás habituado a ver o teu corpo astral. Precisas aprender a dominá-lo. Os fluídos que de ti partem, são todos submissos ao seu proprietário. Pawel teve que
aperfeiçoar o seu olfato para absorver fragrâncias que, em geral, não são apercebidas e distinguíveis. Esse trabalho foi, todavia, interrompido por alguns dias.
Rothschild recebera da pátria várias notícias que lhe perturbaram a tranqüilidade. Três cartas tinham chegado simultaneamente. De Lolo, de seu advogado e do velho
Sawely. Soube assim que Valéria abandonara sua casa, desistira do dinheiro posto à sua disposição e passara a residir na quinta de propriedade de sua mãe; Lolo informava-o
da singular mudança que se operava em Valéria, da sua tranqüilidade aparente e da animosidade que parecia guardar adormecida em todo o seu ser. Apenas não lhe dissera
que, entre ela e Valéria, não podia mais ser pronunciado o nome de Rothschild. Mas não lhe fazia exprobrações pelo fato de ter ofendido a esposa antes da partida,
com palavras tão duras. Valéria porém, não tinha o direito de exigir que se separassem assim, sem mais nem menos. A natureza facilmente excitável e prepotente do
Barão, encolerizou-se pelo fato de Valéria haver recusado os meios que lhe deixara e ter abandonado a sua casa. Teve a impressão de que ela desejava o divórcio,
e isso excitou-o mais. Embora ele mesmo tivesse
feito tal proposta julgando de seu dever dar-lhe absoluta liberdade de ação no íntimo não desejava, contudo,
separar-se dela. Ofendido em seu orgulho, enquanto lia essas cartas, cujo conteúdo espalhavase em seu semblante, era, secretamente, observado por Sir Gerald, que
simulou não ter percebido a agitação de Rothschild e propôs-lhe um novo trabalho. O Barão prontificou-se desde logo, e esqueceu a sua raiva, enquanto se puseram
a caminho do quarto do espelho. Aí deveria fazer surgir a sua imagem perispiritual no espelho, o que somente conseguiu depois de um grande esforço. É que naqueles
momentos, se recordava, involuntariamente, das cartas há pouco recebidas. O insucesso irritou-o ainda mais, e foi-lhe tão difícil concentrar o pensamento que, só
depois de algumas horas conseguiu ver refletir a imagem desejada. Nuvens negras e esverdeadas pareciam envolver o seu corpo, raios relampejantes corriam sobre a
sua imagem; as irradiações habitualmente percebidas, estavam encobertas por um negro nevoeiro. Assustado foi que Rothschild fitou a transtornada imagem. -- O que
significará isto, senhor? Perguntou aflito. -- Aí, meu querido filho, vês agora, bem distintamente, a raiva que se elabora em ti. Esses relâmpagos vivos, são os
pensamentos que diriges a tua esposa. Se pudéssemos fazer surgir aqui também a imagem dela, provavelmente não pareceria diferente... Para Pawel foi extremamente
desagradável contestar daquela maneira o esquecimento a que se havia relegado, e principalmente em virtude de causa que, já por aquele momento, considerava tão tola.
Deu a seus pensamentos uma violenta mudança, e ficou de olhos presos, obstinadamente, na figura refletida. -- Os raios desapareceram, graças a Deus! As cores escuras
estão sendo devoradas pelas cores da vergonha e do arrependimento. Ele alçou a mão e a imagem astral dissolveu-se imediatamente em névoa. -- Agora quero mostrar-te
os meus pensamentos ordenados. Poderás vê-los porque as tuas faculdades de vista, já alcançaram um outro desenvolvimento. Quero tentar tranqüilizar-te o necessário
para
que esta faculdade não desapareça. Com estas palavras, Sir Gerald pousou a mão sobre a cabeça de Rothschild. Imediatamente
um calor agradável perpassou pelo corpo do Barão, que se sentiu calmo e tranqüilo como por mágica. Em seguida, Sir Gerald pôs-se a rezar. Alguns minutos depois partia
de sua testa um raio luminoso a princípio dourado e depois azulado, que parecia transformar-se numa flor. De pouco a pouco a cor azul passou a um brilhante rosa.
Tornou-se mais pálida e finalmente desapareceu por completo. Calado e cheio de admiração, Rothschild observara o fato. -- Como se conseguirá elevar o nosso pensamento
a tal beleza e a tal harmonia? disse ele encantado, enquanto Sir Gerald avançava na sua direção. -- Orei por ti e o meu pensamento apareceu como o raio dourado,
que significa purificação por meio do trabalho espiritual. O raio azul denuncia que eu em minha prece somente me lembrei de ti, o cor de rosa mostrou o meu amor
para contigo, aliado ao desejo de conduzir-te para o alto, pela escada do aperfeiçoamento. Pawel prometeu controlar, cuidadosamente as suas agitações psíquicas e
mostrar-se digno dos beneficies recebidos. Começou desde então a observar as propriedades do seu caráter e a dominar a sua fácil irritabilidade. Ao mesmo tempo prosseguia
nos seus estudos no domínio do olfato. Sir Gerald deu-lhe diversos problemas a resolver. Ele teve que adestrar as forças nele latentes primeiramente em flores murchas,
depois em animais e finalmente em hindus pobres. Rothschild estava encantado com os resultados do seu trabalho. O seu tato e olfato já tinham alcançado um grande
aperfeiçoamento. Ele sabia distinguir as ervas medicinais das venenosas pelo simples perfume. Mas teve que aprender a distinguir as diferentes exudações do corpo
humano, indicadoras do bem e do mal. Para esse fim foi com Sir Gerald às aldeias próximas, visitar os seus habitantes. Ligavam-se então a uma das muitas procissões
que demandavam aos pagodes. Rothschild perguntou ao seu mestre porque devia seguir esta ciência mui especialmente. E este explicou:
-- Porque não podes ser um adepto, um perpétuo servo da ciência, pois que tens de voltar para o mundo para aí viveres
e conviveres com os teus semelhantes, levianos e pecadores. E como somente podes ficar aqui e aprender por tempo relativamente curto, quero proverte dos conhecimentos
mais necessários e imprescindíveis. Sobretudo deverão os teus olhos se abrir perante ti mesmo e os teus semelhantes. Tua vontade deve fortalecer-se, e deverás aprender
a dominá-la, para não cometeres falta grave. Além disso deverás aprender a distinguir as boas das más qualidades dos homens, conhecer as suas paixões e, nos casos
de necessidade, ir de encontro às suas más intenções, para te protegeres a ti e aos outros. Finalmente, estou adestrando as tuas forças curadoras, para que seja
mais fácil fazer o bem, não somente por intermédio do dinheiro, que dispões bastante, mas também por meio das forças que em ti habitam. Neste ambiente de tranqüilidade,
de paz e de trabalho espiritual, o tempo corria veloz. As semanas se tornavam meses, os meses anos. As ocupações aumentavam de dia para dia, em interesse e variedade.
O Barão apenas encontrava Tonilim às refeições, por que as ocupações deste eram de outra espécie, e por que também ele ocupava uma outra parte do edifício. Rothschild
passou então por um ligeiro curso de magia prática, e ficou conhecendo a lei do invisível. Graças às fórmulas dos exercícios da vontade, podia ele agora invocar
os seres supraterrestres, ou expulsar os maus espíritos, que, nas sessões inconsideradas de pessoas ignorantes, são atraídos em grande número, sem que estas pessoas
saibam o perigo que estão correndo. A essa parte da ciência, se entregou Pawel com entusiasmo, tanto mais que podia invocar a quem quisesse. Assim tentou ele atrair
o espírito do Conde Rindolfo de Montinhoso, e ficou satisfeito quando, graças à sua vontade e ao seu saber, se apresentou à sua vista a imagem do seu antigo pai
e que agradeceu ao filho o havê-lo chamado. Cheio de dor lembrou-se Rothschild de que o tempo de sua permanência na Índia, se aproximava do seu termo e que ele teria
que trocar o trabalho que tanto apreciava, pela vida mundana. Da Europa, mui raramente recebia
notícias. Lolo lhe havia comunicado o nascimento de seu filhinho. Sobre Valéria, ela escrevia apenas que continuava
vivendo isolada e retraída. Dela mesma, o Barão não havia recebido nenhuma carta. Nunca lhe respondera as suas minuciosas cartas e nem lhe agradecia os presentes
que ele lhe mandava pelos seus aniversários e onomásticos. Esses presentes eram geralmente custosos trabalhos manuais indianos, jóias ou tecidos. O contínuo silêncio
indicava que a sua animosidade não cedera, pelo que Rothschild sofria e somente a contragosto pensava no seu regresso. Valéria não requerera o divórcio. Portanto,
era inevitável uma explicação detalhada, cujo final ninguém podia prever. Sir Gerald se entretinha muitas vezes a palestrar com seus discípulos sobre a Índia, a
cultura antiga indiana e atual e sobretudo a origem dos pagodes. O interesse principal de Pawel e Tonilim, porém, voltava-se para os templos antigos, encravados
nas montanhas. -- Quem poderá saber quantos segredos encerra em si, esse antiqüíssimo mundo de templos! Observou Rothschild. Que tesouros de antiguidades não estarão
por aí, ainda sem serem descobertos, e até agora desconhecidos por todos, com exceção, talvez de alguns privilegiados, que a respeito, guardam segredo! Como eu invejo
esses poucos felizes, predestinados, a verem tais coisas! -- Quem sabe não pertences também tu a este pequeno número de escolhidos, meu filho! Respondeu Sir Gerald.
Antes que o discípulo, que estimo muito, se despeça de mim, lhe permitirei talvez, ver um cantinho desse mundo misterioso, que ele tão ardentemente deseja conhecer.
Estas palavras do mestre despertaram nos corações dos discípulos uma alegria sem par. De modo que Sir Gerald se viu obrigado a acrescentar que ele, em tal viagem,
se é que a faria, levaria também Tonilim. Algumas semanas depois dessa palestra, Sir Gerald anunciou a sua realização. Os preparativos para a viagem, foram em breve
ultimados, e já pela madrugada do dia seguinte, subiam eles nas suas montarias. A pequena caravana, acompanhada de cargueiros e tropeiros, se pôs a caminho. Viajavam
sem maior pressa. Pararam alguns
dias em Benares e depois se dirigiram às montanhas. Aí o caminho se tornava mais penoso. Trilhas estreitas passavam
junto aos despenhadeiros íngremes, em cujas profundidades, corriam pequenas correntezas. As belezas naturais que eles puderam apreciar, eram de um encanto singular,
e faziam os dois novatos, na viagem, esquecerem todos os perigos. Mas Sir Gerald e a criadagem cavalgavam tão tranquilamente, como se o caminho seguisse por uma
plana avenida. A região tornava-se agora mais lisa, mas quase que a cada passo, mais os trilhos estreitavam-se e em breve pareciam desaparecer de todo. Apenas os
naturais do lugar eram capazes de segui-las. Os viajantes chegaram aos poucos a uma densa mata virgem habitada por serpentes. As vezes viam-se os olhos fascinantes
de um desses répteis brilhar na obscuridade verdolenga. Sir Gerald repetia a miúdo: -- Guarda a tua arma, meu filho. Nem este nem outro qualquer animal nos fará
mal. Vê, a serpente já desapareceu no mato! Depois de terem viajado dois dias através da floresta, chegaram às ruínas de um antigo templo, que quase não eram reconhecíveis,
sob as árvores e arbustos. As gigantescas raízes haviam erguido muros inteiros, derrubando-os e afastando grandes blocos de pedra. As figuras das divindades, estavam
quase cobertas pela folhagem, e somente a parte posterior do templo, que continha as suas grandes salas e um pátio central, não estava tão arruinada. Num canto da
primeira sala, foram distendidos tapetes e almofadas, e acendidos alguns archotes. Ali descansaram. Morcegos esvoaçavam espantados e aves noturnas fugiam aos gritos
agudos, para a mataria. -- É longa ainda a nossa jornada? Perguntou Rothschild. -- Já estamos no fim! Supões acaso que para ver estas ruínas a longa viagem tenha
sido inútil? Não! Debaixo destas ruínas se oculta uma pequena parte do mundo que tanto desejas ver. Achamo-nos aqui sobre uma cidade que há quinze ou mais milênios
desapareceu da superfície da terra, em virtude de um interessante sucesso geológico. É que a superfície da terra afundou-se no lugar em que a cidade estava outrora,
e isto tão rapidamente, que quase não se notava nenhum a-
balo subterrâneo. Grande parte da cidade ficou conservada. Os montes e rochas vizinhos ruíram, mas caíram singularmente
por cima e ao lado um do outro, de modo a formar uma espécie de abóbada sobre a cidade. Com o decorrer do tempo, esta foi sendo coberta, em virtude das influências
geológicas, por uma grossa camada de terra, que permitiu o crescimento da floresta pela qual passamos. Os naturais do país construíram aqui neste lugar um templo,
que é dedicado à memória das pessoas até então sacrificadas. -- Podeis então mostrar-nos as ruínas dessa antiga cidade, mestre? Mas pode-se penetrar lá? Perguntou
Rothschild. -- Isto seria altamente interessante! Acrescentou Tonilim. Avalio o entusiasmo dos nossos arqueólogos, se tivessem um pressentimento da existência
desta cidade subterrânea! A história da Índia desconhece este sucesso, não conhece nem mesmo o nome, ou o lugar desta cidade soterrada. -- Apenas em nossos arquivos
secretos estão conservadas as informações que falam desses sucessos. Mas nunca os olhares de um profano caíram sobre algum desses antigos escritos! Explicou Sir
Gerald. Pawel e Tonilim só a custo puderam ocultar a impaciência que os mordia de verem o que lhes fora descrito. Depois da refeição, Sir Gerald ergueu-se, deu algumas
instruções aos criados. Fez sinal aos seus discípulos para que o acompanhassem. Todos ligaram as suas lâmpadas elétricas e entraram na sala maior do templo. Sir
Gerald circundou a estátua de granito da divindade, e comprimiu um botão na parede posterior. Silenciosamente girou a enorme figura de pedra, pondo a descoberto
uma estreita passagem. Entraram e fechou de novo a pedra. Desceram uma escadaria estreita, íngreme, e penetraram numa cúpula baixa, em cujas paredes se achavam colunas
negras com inscrições enigmáticas em vermelho. Numa dessas colunas, Sir Gerald tocou diversas das inscrições e uma segunda porta apresentou-se, dando acesso a um
estreito corredor iluminado por antiga lanterna. A parede deste corredor encostava-se uma figura humana. An-
tes parecia um esqueleto, do que um ser vivo. Ao redor dos quadris trazia apenas uma tanga de linho, que punha
o resto do corpo a descoberto. -- Mas nesta tumba existem criaturas viventes? Cochichou Rothschild. -- Sim, sim... Alguns eremitas que, no isolamento, continuam
seus estudos. Têm uma religião toda especial... Explicou Sir Gerald. Depois dirigiu algumas palavras em estranho idioma ao desconhecido que lhe respondeu com uma
profunda inclinação. No extremo do corredor, achava-se uma outra escadaria, porém, mais larga que a primeira, e que conduzia a uma profundidade aparentemente sem
fim. Longos corredores interrompiam essa descida, entrecortados de quando em quando, de bifurcações, frouxamente iluminados. Nesses cruzamentos encontravam tripeças,
nas quais ardia certa massa verde, resinosa, que difundia um agradável aroma. Todavia, cada vez mais, o ar fazia-se pesado e irrespirável. De súbito, o caminho voltou-se
fortemente para a esquerda, indo terminar diante de um elevado normal, onde estacaram os três. Um panorama inesperado apresentou-se. À frente, havia uma grande praça
livre cercada de uns poucos edifícios levantados num curioso estilo. Sobre a praça, erguia-se uma cúpula de grande altitude. Uma misteriosa luz verde, que não podiam
dizer de onde partia, iluminava o cenário. Só muito mais tarde vieram a notar as aberturas que mãos humanas haviam escavado no alto da cúpula, e por onde se escoava
a claridade. -- Avançai, amigos! Disse Sir Gerald despertando os dois curiosos e estupefatos ocidentais. Notai este edifício ainda mais interessante, e ao qual
iremos agora. É mister que os apresente, todavia ao meu amigo que, na companhia de dois discípulos habita este palácio em ruínas. Balarama é um evoluído asceta.
A sua idade, dizem, é inacreditável. Como, porém, Balarama nunca fala de si, nada posso dizervos ao certo. Imaginai-a, vendo-o. Descansaremos em sua casa, uma vez
que temos uma longa viagem pelas costas.
Esquecidos de todo cansaço, Rothschild e Tonilim observavam, cheios de veneração a antiga cidade. Avançando mais
e mais, entretanto, Pawel fazia-se inquieto. Os singulares edifícios pareciam-lhe estranhamente conhecidos. Em seu cérebro desfilava um cortejo de pessoas que supunha
não conhecer e que, contudo, lhe pareciam familiares. Sentia-se opresso quando a voz de Sir Gerald veio arrancá-lo daquele desassossego. -- Tem cuidado! Por um triz
não caís no tanque! Rothschild estremeceu, percebendo, com susto, que estava à beira de um barranco íngreme, junto ao leito de um rio quase seco. Lá em baixo, por
um instante, agitou-se a superfície da água escura e estagnada. Num marco de pedra, viu amarrado um antiqüíssimo bote, no qual embarcaram a fim de passarem à outra
margem. Penetraram então por uma longa rua, em cuja extremidade erguia-se um edifício de regulares proporções. Parecia feito de vidro vermelho e destacava-se do
fundo escuro como um brilhante rubi. O frontispício era ornado de elevadas colunas representando enormes cobras, eretas sobre a cauda. À entrada se achavam algumas
tripeças, nas quais ardia a mesma massa verde, resinosa, como nos cruzamentos dos caminhos. Espalhavam o mesmo aroma agradável. O coração de Pawel começou a pulsar
fortemente, enquanto subiam a escadaria. Muitas coisas lhe pareciam conhecidas. Contudo não podia, de maneira alguma, já ter visto o edifício. Os três visitantes
transpuseram alguns quartos quase às escuras e chegaram a uma sala redonda, singularmente guarnecida. A cobertura era suportada por quatro colunas maciças, cor de
safira. Ao centro da sala encontrava-se uma grande piscina, na qual boiavam plantas aquáticas com flores semelhantes à rosa marinha. No lado oposto à entrada, via-se
um reposteiro de fios metálicos. Algumas cadeiras e mesas do mesmo metal, estavam esparsas pela sala. Todo o aposento banhava-se numa azulada claridade. Quando,
de súbito, o reposteiro correu para um lado, dois homens apareceram, curvandose profundamente diante de Sir Gerald. Trocaram algumas palavras numa língua estranha,
que anteriormente, Tonilim e Rothschild já ha-
viam ouvido. Os dois homens eram ainda jovens, porém exibiam uma macilenta aparência. Turbantes azuis cobriam-lhes
as cabeças. Afora este ornato, não exibiam nenhuma outra veste sobre o corpo. Alçando a mão, Sir Gerald respondeu-lhes aos cumprimentos. Os desconhecidos tornaram
a erguer o reposteiro e Sir Gerald acompanhado pelos dois discípulos, passaram ao outro cômodo. Este compartimento ainda era mais amplo que o anterior; dava a impressão
de ser o laboratório e a sala de estudos de um sábio. Sobre estantes encostadas às paredes, composta de rolos de papiros, alinhava-se toda uma biblioteca. Mais além,
placas de terracota, cascas de madeiras, chapas de metal, velhas folhas de pergaminho empoeiradas. Algumas antigas encadernações também encontravam-se ali. Sobre
mesas de pedra, viram os recém-chegados antiqüíssimos e singulares instrumentos. Nos armários viam-se guardados, vasos de vidro de variadíssimos aspectos, pequenas
caixas e sacos. De uma parede pendia um escudo metálico, redondo, coberto de toda a sorte de signos cabalísticos em esmalte negro e vermelho. Ao centro do compartimento,
junto a uma mesa, iluminado por uma esfera da qual dimanava brilhante claridade azulclaro, vestido de branco, estava assentado um homem. A julgar-se pela longa barba
branca e pela cabeça calva, era de adiantada idade. O seu rosto, porém não exibia uma ruga sequer. Seus traços, uniformes e firmes, denunciavam tranqüilidade e segurança.
Seus olhos de cor indeterminável, brilhavam com uma juvenil labareda, e denotavam energia e uma vontade poderosa, que dominava tudo e não admitia réplica. O olhar
do velho era difícil de suportar. Ao se introduzirem os três, estendeu a mão que Sir Gerald apertou, saudando-o em inglês corrente. Quando se voltou para os companheiros
de Sir Gerald, estes se curvaram profundamente. -- Trouxe comigo dois discípulos meus, Balarama, e peço-te os recebas benignamente. São diligentes e modestos! Disse
Sir Gerald. -- Serão meus hóspedes pelo tempo que desejares! Respondeu Balarama dirigindo-lhes um rápido olhar.
Encontrando Rothschild, porém, os seus olhos dilataram-se subitamente. E avançando na direção do jovem russo, bradou
comovido: -- Adschimitra! Adschimitra! E inclinou-se profundamente diante do Barão. Pálido e acanhado, este o fitou, sem compreender. Não conhecia o nome pelo qual
o chamava e não entendia o seu repentino proceder. -- Tu o reconheces, Balarama? Eu não ousaria nunca trazê-lo aqui, se ele já de muito não tivesse sido submetido
a duras provações! Balarama sorriu, estudando com meticuloso cuidado os traços de Pawel. -- Sim, reconheci-o! E vejo que fez grandes progressos. Todavia, falaremos
mais tarde a esse respeito. Agora, meus amigos, deveis descansar da longa viagem e fortalecer-vos. Farei com que indiquem vossos quartos. Jantaremos logo em seguida.
Imediatamente, acercando-se, de um dos discípulos conduziu os hóspedes a um compartimento onde, em três nichos, encontraram confortáveis leitos. Ao fundo da sala,
havia um grande tanque com água corrente. -- É uma fonte quente, que vos fortalecerá o organismo. Explicou Sir Gerald. Tomemos primeiramente um banho e repousemos
um pouco. Depois voltaremos para junto de Balarama, conforme seu desejo. Ouvindo apenas, Rothschild não despregava os lábios. Seus pensamentos absorviam-se imediatamente
no enigmático episódio de que, minutos antes, fora protagonista. Balarama o denominara Adschimitra, e declarara conhecê-lo. Portanto, na figura do citado Adschimitra,
vivera ele antes. Por isso lhe pareceram, certos detalhes tão familiares na velha cidade. -- Senhor, quem fui eu outrora, afinal? Como pode o sábio reconhecer-me?
Indagou aflito, tomando a mão de Sir Gerald. -- Sê paciente, meu filho. A curiosidade é indício de imperfeição. Preciso vestir-me agora. Enquanto isso, tomarás um
banho. Tranqüiliza-te! Eu te trouxe até aqui apenas para que se descubra, à
tua vista, esse longínquo passado. Mas essa revelação, cabe a Balarama fazê-la. Só ele tem esse direito. O Barão
calou-se. Ele já conhecia o valor da paciência e da obediência. O seu cérebro, porém, trabalhava incessantemente. Procurava, no caos dos seus pensamentos, estabelecer
uma ordem. O jantar foi servido na sala de trabalho de Balarama. Rothschild assentava-se ao lado do sábio, que não cessava de contemplar o hóspede. Por isso, entretanto,
este sentia-se inseguro e aflito, e permanecia calado. Preocupava-o apenas a idéia do que iria ouvir a seu respeito. Como tudo ali, a louça de que se serviam, era
de um estranho metal. Os copos, para o vinho, tinham sido esculpidos em ouro maciço e eram adornados com custosas pedras preciosas, constituindo valiosas peças de
arte. Os próprio alimentos eram assaz diferentes dos que, até então, o Barão se servira. Em pequenos vasos de prata, foi servido um líquido escuro, que se assemelhava
a um caldo de carne. Sir Gerald, entretanto, que parecia adivinhar-lhe os pensamentos, explicou-lhe que se tratava do cozimento de certo vegetal de grossas folhas.
Frutas frescas e um pão escuro constituíram o mais da refeição. Aos pés da mesa, entre o anfitrião e Rothschild, estendia-se um gigantesco tigre que recebia das
mãos de seu senhor, pequenos pedaços de pão. Pawel vira o animal antes, junto à mesa de Balarama, e agora estranhava que não desse nenhuma atenção aos recém-chegados.
A proximidade do animal selvagem, não atuava favoravelmente sobre Rothschild que sentia um gélido arrepio perpassar-lhe a espinha, cada vez que os esverdeados olhos
da fera detinham-se sobre ele. Entretanto, como permanecesse tranqüila, o Barão foi se acostumando à sua vizinhança. Ao fim da refeição, solicitou permissão para
acariciar-lhe a cabeça, no que Balarama, sorridente consentiu. Com as carícias, o tigre aconchegou-se às pernas de Pawel, lambeu-lhe as mãos e emitiu um urro de
satisfação que ecoou como um trovão, entre as paredes de pedra. Terminado o repasto, os dois indianos, discípulos de Balarama, tira-
ram a mesa. O velho tinha mergulhado num prolongado silêncio. Ergueu-se finalmente, e dirigiu um olhar a Rothschild.
-- Quão maravilhosa é a onipotência do Eminente Criador dos Mundos! E quem não poderia diante da sua sabedoria, prosternar-se no pó começou Balarama a falar, cheio
de dignidade. -- As almas que criou, Ele as provê de vida eterna. Ninguém, nada perece, tudo anseia por Ele. Em novo invólucro a tua alma, oh! Adschimitra, voltou
a esta cidade tão duramente castigada. Dezoito mil anos faz que esta infeliz cidade encontrou, no seio da terra, a sua sepultura. Foi rica, povoada, deu guarida
a poderosos senhores. Nela se guerreavam castas orgulhosas pelo poder do mando. Todos os sentimentos humanos, os mais elevados e os mais miseráveis, palpitaram entre
seus muros... E de toda a opulência, de toda a riqueza, apenas restam estas casas vazias! Para esta sepultura, te conduziu a vontade do Onipotente, Adschimitra,
para que aqui conheças a raíz e a origem do teu terrível Carma, cujos tentáculos prendem até hoje o teu destino... Balarama calou-se de novo, e mergulhou em pensamentos.
Nenhum dos presentes ousou quebrar o seu silêncio. -- Preciso meditar muito, reunir as minhas lembranças. Amanhã, depois de estares bem descansado, contar-te-ei
a história da cidade morta e de seu dominador Adschimitra. Disse o velho. Ergueu-se e despediu-se dos hóspedes. Inclinando-se mais uma vez diante de Rothschild,
retirou-se da sala. Sir Gerald recolheu-se com os discípulos para o quarto onde as camas os esperavam. -- Conheces a história do meu passado? Perguntou o Barão
a Sir Gerald. -- É, afinal, possível que eu tenha vivido numa época tão remota que fico tonto só de calcular? -- Sim! Entretanto, para a alma, esses muitos milênios
não imputam. Somos espíritos velhos, Adschimitra, e o caminho que temos para frente não é menor do que o que já vencemos!... Rothschild não conseguiu, por muito
tempo, conciliar o sono. Seus nervos quase não resistiam ao vórtice de lembranças e imagens
que se lhe apresentavam à mente. Quando, afinal, o cansaço lhe fechou as pálpebras, foi maltratado por pesados
sonhos. Despertou já tarde, e viu que Sir Gerald e Tonilim vestiam-se, palestrando à viva voz. -- Apressa-te, signore Paulo! Toma o teu banho, pois pareces mais
fatigado do que quando te deitaste. Tens mau aspecto! Disse Sir Gerald amigavelmente. -- Dormi mal, tive sonhos feios! Fui perseguido por mulheres e serpentes.
Sonhei ainda com uma porção de coisas confusas e absolutamente inverossímeis! Retrucou Rothschild. -- Posso dar-te a explicação dos teus sonhos. Todo ser, assim
como todas as coisas do mundo, têm a sua história, o seu clichê perispiritual, uma faixa que atravessa o ser vivente e na qual fica impressa a sua experiência, a
história da sua existência. Quando, pois, entramos em contato com a onda que está em relação com os acontecimentos do passado, a parte correspondente do nosso clichê
reage mais ou menos como um disco de gramofone põe em vibração a membrana do fone, produzindo os sons de uma voz. Despertam-se assim as recordações que se gravam
na nossa fita perispiritual. Devo acrescentar ainda que esse clichê possui reações tão sutis e está tão intimamente ligado ao Eu físico, que o contato entre a correspondente
onda vibratória e a fita impressionada, trabalha como uma bateria elétrica, recebendo em si, vida, cor e cheiro. A impressão poderosa do cérebro espiritual, no cérebro
físico deixa as suas impressões sem que, note bem, o indivíduo tenha recebido em si, conscientemente, essas impressões. É o que produz os dolorosos sentimentos,
sobre os quais sofres agora: Encontras-te aqui, no local em que se desenrolaram trágicos acontecimentos, onde tudo ainda está impregnado do aroma do passado. É natural,
pois, que os teus clichês perispirituais se despertem em ti com força especial. Foram encontrar Balarama numa pequena sala que não haviam visto ainda e que era menor
do que o gabinete de trabalho do sábio. O ar saturava-se de agradável perfume. A mesma luz esverdeada ilumi-
nava a sala. Numa das paredes, apareciam nuvens grossas e pardas, iluminadas por faíscas. Assemelhava-se a um grande
pano de linho agitado pelo vento. Diante desse estranho painel, alinhavam-se cadeiras de fibras, que Balarama ofereceu aos visitantes. Ele próprio assentou-se entre
Sir Gerald e Rothschild. -- Quero oferecer aos teus olhos, Rei Adschimitra, a história da tua vida num longínquo passado, hoje apagado da tua nova reencarnação.
Como é mais interessante ver o transcurso da história, ao invés de ouvir-lhe a narrativa, e para, também, honrar o espírito do governador desta cidade morta, à qual
deu ele fama e riqueza, invocarei as imagens do passado e elas hão de, oh! rei, surgirem vivas à tua frente. Muitos séculos antes do tempo em que os pais de Adschimitra
se tornaram governadores desta cidade, florescente e rica, caiu ela sob o poder de um poderoso médium, o feiticeiro Kalija, que dispunha de incalculáveis faculdades.
Fora rei no país limítrofe e conquistara esta cidade em guerra com o seu rei. Kalija amava a irmã do rei vencido. Ao entrar no palácio, expulsou a corte e seu chefe.
E passou então a governar sob um regime de terrível crueldade. Ninguém estava seguro de sua vida. Infeliz daquele que caísse no seu desagrado ou que lhe parecesse
hostil. Especialmente, porém, sofriam as jovens mulheres que lhe passavam sob os olhos. Tomavam-se vítimas da sua crueldade. Ninguém ousava contrariar Kalija. Era
o senhor dos elementos, que destruía tudo quanto quisesse. Quando o seu ódio se voltava para a residência de um nobre, contra um templo ou rebanho, contra uma colheita
ou contra um homem, remetia a sua falange de espíritos demoníacos, e os elementos destruíam o palácio e o templo, o granizo a colheita, a peste surpreendia o rebanho,
a pessoa morria de horríveis moléstias. Os habitantes da cidade oravam e choravam, suplicando aos deuses que os libertassem. Mas nem as orações nem os sacrifícios
valeram. Kalija escarnecia de todos e redobrava a sua crueldade. Finalmente, também a paciência dos deuses se esgotou. E um dia, do alto da montanha, desceu um eremita.
Era um ancião de cabelos e barbas prateados pelo tempo. Suas vestes eram brancas como a neve,
e os seus pés pareciam mover-se sobre a terra quase sem tocá-la. De todo o seu ser parecia irradiar luminosidade
e paz. Enquanto Balarama falava, com sua melodiosa voz, o Barão e Tonilim tinham caído em singular estado. Braços e pernas pesavamlhes como chumbo e eles não conseguiam
movê-los. Em compensação as suas faculdades auditiva e visual, haviam alcançado uma força inesperada. Como que encantados, olhavam para a parede nublada, cujas cores
negras haviam-se substituído por claras tonalidades de azul. Sobre esse fundo, viam eles se desenrolando as cenas descritas por Balarama. -- Assim que esse ermitão
chegou ao vale, continuou Balarama dirigiu-se a um templo escavado na rocha, nas imediações da cidade. Aí ordenou ele aos sacerdotes acendessem muitas fogueiras
e orassem, ininterruptamente, por três dias. Depois entrou na cidade, reuniu o povo e ordenou que fizessem fogo em todos os templos e orassem. Então dirigiu-se ao
palácio de Kalija, que pressentiu a sua aproximação e se preparou para a defesa. Centenas de demônios que lhe eram dedicados, reuniram-se-lhe ao redor, e o seu palácio
assemelhou-se a uma fogueira acesa, enorme, da qual partiam raios e repôs a primeira faixa flamígera, afastando os demônios de si. Embalde procuraram estes e Kalija
aniquilar o santo. Ele era invulnerável enquanto que Kalija perdia, perceptivelmente, as suas forças. Finalmente caiu de joelhos à sua frente. Então o santo perfurou-o
com sua espada em chamas e uma torrente de sangue negro, mal cheiroso, correu do peito do monstro. Os demônios se transformaram de repente em serpentes e fugiram
em todas as direções. Kalija, porém, tomou a forma de um terrível dragão. Sua pele era amarelo-esverdeada, com manchas negras. De suas faces corria uma espuma sanguinolenta,
e seus olhos faiscavam com um ódio infernal. O dragão ergueu-se sobre a sua cauda, mas o ermitão o agarrou pelo pescoço e o arrastou corajosamente pelo meio do povo,
para o templo. Esse templo possuía, sobre os degraus superiores, entre as colunas, um nicho profundo e amplo que estava destinado a uma estátua. Nesse nicho o santo
lançou o dragão,
e ordenou que fechassem a abertura com grades de ferro e o alimentassem com assassinos e criminosos que deveriam
ser sacrificados pelo carrasco. -- Que o monstro permaneça aqui. Enquanto for alimentado com criminosos, lhe estará cassada a possibilidade de fazer qualquer mal!
Proferiu o ermitão. Ergueu-se no ar e desapareceu. Desde esse dia a prisão do dragão era evitada por todos. Durante a noite, se reuniam aí centenas de cobras que
se erguiam sobre as caudas, silvavam e sibilavam para o seu senhor. Este se voltava para fora e soltava urros incríveis, como se estivesse morrendo... Pálido e com
os olhos muito abertos, Rothschild observava as figuras que a narrativa de Balarama provocara. Quando, porém, a poucos passos de si se ergueu o terrível dragão,
perpassou-lhe um tremor fortíssimo. -- Durante muitos anos, o dragão desempenhou o papel de carrasco na cidade. Esta, todavia, florescia e crescia, como sob o governo
de seu rei anterior. De novo, porém, veio uma época em que a cidade foi assaltada por infortúnios e enfermidades. Alguns sacerdotes gananciosos espalharam a notícia
de que adorando o dragão, se livrariam de enfermidades e infortúnios. Esses sacerdotes encontraram logo seguidores, e como a seca havia apertado e fora substituída
por uma chuva prolongada, começaram os habitantes a ver no dragão uma divindade. Adoraram-no e ofereceram-lhe holocaustos. O nicho em que ele se achava, foi ampliado
e enfeitado. Sacerdotes e sacerdotisas especiais foram postos ao seu serviço. Dançarinas e tocadores de harpas tinham que distraí-lo. Com o tempo o dragão se tomou
a divindade do país. O povo, porém, tolo, tremia diante de seu ódio; e por causa dele se esqueceram das outras divindades verdadeiras. Ao tempo do rei Kaschparatra,
que foi um homem bom, mas fraco, esse culto do dragão chegou ao auge. O irmão mais jovem do rei, Adschimitra, era justamente o oposto de seu irmão. De beleza extraordinária,
enérgico, va-
lente, conhecedor de todas as artes da guerra, não havia nenhum entre os jovens igual a ele. Os corações das mulheres
atiravam-se-lhe, mas ele apenas brincava com elas, e cruelmente as repudiava, quando se sentia farto. Adschimitra era cruel, vingativo e prepotente. Contudo o povo
o amava e venerava. Nesse momento, podia-se ver, sobre a parede nublada, uma rua cheia de gente. De uma rua transversal, entrava para essa rua um cavaleiro. Estava
vestido de uma túnica purpurina, bordada a ouro e guarnecida de pedras preciosas. Trazia um diadema de brilhante ao redor da testa, segurando-lhe os cabelos negros.
Seu ginete, que montava sem sela, era fogoso e somente com esforço se deixava guiar pelo seu pulso de ferro. O povo o festejou e ele correspondia aos gritos de alegria
com um sorriso amável e acenava com a mão. Rothschild quase gritou quando viu a si mesmo naquele cavaleiro. Ainda que a cor da tez fosse mais escura e um ou outro
traço fisionômico fosse um pouco diferente, não pôde, contudo, duvidar que era ele o cavaleiro. Os grandes olhos negros brilhavam com orgulho e coragem, mas igualmente
com crueldade. Sobre seus lábios pairava um sorriso ligeiro e desdenhoso. -- A esse tempo continuou Balarama começou uma guerra com um país vizinho. Como, entretanto,
Kaschparatra fosse um mau guerreiro, ordenou ao seu irmão marchasse contra os inimigos. Depois que Adschimitra, no comando dos guerreiros, partira, resolveu o rei
consultar um adivinho que morava nas montanhas, sobre o resultado dessa questão e solicitar-lhe a vitória de suas armas. Em casa desse feiticeiro viu o rei, para
sua desgraça, a filha única desse feiticeiro, Dewaki, que era bela como uma pintura, mas falsa como seu pai. O rei enamorou-se de Dewaki que, como não era de admirar-se,
parecia-lhe diferente das outras mulheres do país. Seu cabelo parecia-se ao ouro fundido, e, seus olhos, azuis como safiras. Sua tez, alva e brilhante como a madrepérola.
Dewaki estava prometida a um parente e discípulo de seu pai, o jovem Majawarna que era também um perigoso feiticeiro.
Dewaki não o amava, e agora só tinha em vista o trono real. Resoluta aproximouse de seu pai e convenceu-o a dá-la por esposa ao rei Kashparatra. Majawarna calou-se
e ocultou o seu ódio, que se erguera contra Dewaki. Ele, que não estava ainda suficientemente forte para combater seu mestre, jurou vingar-se contra Dewaki. Também
o rei não seria esquecido na sua vingança. Entrementes este elevara Dewaki a rainha e a conduzira ao seu palácio. Kaschparatra tornou-se um elemento dócil nas mãos
da esperta Dewaki. Ele a amava e a deixava fazer o que quisesse. Enquanto isso se passava na capital, Adschimitra havia vencido o inimigo, conquistara o país, e
matara o rei estranho diante dos muros do seu palácio. A residência do rei vencido e morto, foi também conquistada, e Adschimitra entrou como vencedor na cidade
alheia. Para restabelecer a ordem no país conquistado, Adschimitra se conservou afastado de sua pátria cerca de um ano. E, naquele país tinha os poderes de um rei.
No palácio do rei encontrou a filha deste, Rochini, ainda quase uma criança. Desde o primeiro momento ela agradou a Adschimitra e ele a fez, embora também de sangue
real, sua amante. Apesar desse ultraje, a infeliz Rochini se enamorara tão profundamente de Adschimitra que se submetia calada a todos os seus caprichos e suportava
tranqüilamente as humilhações que ele a fazia sofrer. Finalmente resolveu Adschimitra regressar a sua pátria e entregar ao rei seu irmão a presa da guerra. Para
prestar homenagem ao vencedor que aumentara os territórios e agora voltava vitorioso, foram ao seu encontro os representantes do povo, da nobreza e os sacerdotes
e sacerdotisas. À frente dos sacerdotes do templo do dragão, ia a mais bela dançarina, Bawani. Esta, ao lado de Dewaki, era, indubitavelmente a mais bela do país.
Como a rainha, também ela tinha os olhos azuis de safira, porém cabelos negros que caíam até o solo. Quando Bawani se prostrou de joelhos, para entregar a Adschimitra
os presentes de sua cidade natal, este ficou ofuscado pela sua beleza e inflamou-se de paixão pela dançarina. Quando o vencedor penetrou na cidade, foi rece-
bido pelo rei, e os dois se encaminharam para o templo do dragão, para oferecer-lhe seus holocaustos. Bawani cantou
e dançou durante a cerimônia, e assim conquistou a admiração de Adschimitra. Terminada a cerimônia, Adschimitra pediu licença ao seu irmão para dirigir-se ao pontífice,
pois tinha a fazer-lhe importante revelação. A este ele disse que amava Bawani e que, como única recompensa pela vitória a1cançada, solicitava lhe dessem a dançarina
por esposa. O pontífice reuniu todos os outros sacerdotes do templo do dragão, pois que não se julgava no direito de resolver a respeito, tanto mais que o dragão
parecia dar preferência às danças e cantos de Bawani, a todas. A princípio os sacerdotes não quiseram concordar, mas quando viram o rosto zangado de Adschimitra,
e o rei descontente com as suas resoluções, consentiram. O rei os presenteou nababescamente e ordenou que o casamento se realizasse dentro de uma semana. No palácio
real, Dewaki recebeu a Adschimitra, a quem ainda não conhecia. Pela primeira vez durante todo o dia, ela não arredou o seu olhar dele, pois jamais vira, em toda
a sua vida, um homem tão belo. Uma louca paixão por Adschimitra, nascido à primeira vista, empolgou-a. Quando Adschimitra voltou ao palácio, encontrou Rochini que
trouxera sua filhinha de dois meses consigo. O encontro foi-lhe desagradável, tanto mais que já não amava Rochini. Ele já previa que entre sua futura esposa que
era uma simples dançarina do templo e esta sua amante, de sangue real, nasceria ódio e discórdia. Rapidamente resolveu-se. Comunicou a Rochini que dentro de uma
semana se casaria, pois já não a amava mais e que, para evitar coisas desagradáveis, mandá-la-ia no dia seguinte para a sua cidade natal. Acrescentou ainda que ele
cuidaria de sua filhinha. Como que atingida por um raio, recebeu Rochini estas notícias, e tentou opor-se, mas Adschimitra ordenou a um servo dedicado levasse Rochini
para fora e cuidasse para que, no dia seguinte, ela deixasse a cidade. Quando, pela manhã seguinte entraram no seu quarto, encontraram-na, e à filhinha, mortas a
punhal, sobre o solo. Ela mesma
suicidara-se. Na parede havia escrito com seu próprio sangue: Adschimitra, sê maldito! Rothschild estremeceu involuntariamente
ao ouvir estas palavras de Balarama, e olhou fixamente a imagem que tinha à frente dos olhos. No quarto jaziam os dois cadáveres, em meio a um rio de sangue. Na
parede, a inscrição que não podia ler, mas cujo sentido compreendia. Quando Adschimitra soube da morte de sua filhinha, ficou zangado por ver desobedecidas as suas
ordens. Não se preocupou, entretanto, com o fato. Mandou remover os cadáveres e em breve tinha-se esquecido de tudo. O seu casamento com Bawani foi festejado com
grande pompa e magnificência. E algumas semanas decorreram tranqüilas e sem novidades. Com o tempo, porém, as manobras de Dewaki atiçadas ainda pelos ciúmes, alcançaram
o seu apogeu. Eu iria longe demais se quisesse descrever por que meios Dewaki tentou chamar a atenção de Adschimitra sobre ela. Isso em geral não era difícil, porque
a felicidade conjugal não fazia parte das preferências do príncipe, e ele facilmente se inflamava por uma mulher bonita. Quando Dewaki percebeu que Adschimitra apreciava
o seu cabelo dourado, começou a fazer um plano para se libertar do marido, bem como da esposa de Adschimitra. Subiu às montanhas e foi pedir um conselho a seu pai.
Também Majawarna, que ela julgava reconciliado, auxiliou-a. Em breve regressava com tudo que precisava para o palácio. Majawarna lhe dera diversos conselhos e dissera
que ele, se fosse preciso, iria pessoalmente auxiliá-la. Dewaki confiava nele. Mas, Bawani não era cega. Ela tinha observado que a rainha se agradara de seu esposo,
e que também este não lhe parecia indiferente. Ele já alguns meses depois do casamento se tomara frio e descortês para com a esposa. Como Bawani, que o amava sobretudo
fosse ciumenta e vingativa, forjou igualmente um plano para recuperar o esposo. Mas não sabia que Adschimitra já confessara o seu amor a Dewaki e que fora bem recebido
pela mulher dos cabelos dourados. O aniversário do rei fora celebrado com a presença dos nobres dignatários. Ninguém havia percebido que
a rainha deitara nas tripeças, que estavam cheias de ervas aromáticas a serem queimadas, um pó esverdeado. Quando
deitaram fogo às ervas, espalhou-se um perfume agradável, porém forte, que se estendeu até os jardins do palácio. As festividades já iam bem adiantadas quando o
rei pediu a Bawani que dançasse. Já de há muito não podia admirar a sua maravilhosa arte. A esta ordem do rei, Bawani se ergueu e pediu uma harpa. Já notara que
durante todo esse tempo, Adschimitra e Dewaki haviam trocado olhares chamejantes. Alegrava-a a idéia de poder se apresentar em toda a sua beleza ao seu esposo, o
perjuro. Tirou o diadema da testa e deixou cair o compacto cabelo negro. Com a harpa na mão, pôs-se em movimento de dança. Todos a contemplavam como que encantados.
Mas um acontecimento horrível veio surpreender o rei e seus convivas. De repente surgira na porta da entrada do salão, o terrível dragão que lentamente foi se aproximando.
Atrás dele vinham ainda centenas de outros dragões que encheram o salão com seu cheiro desagradável. Dois passos além Bawani parou o monstro. Ergueu-se e fitou a
dançarina com seus olhos terríveis, enquanto lhe escorria uma baba asquerosa pela boca. Bawani se tornara pálida de morte, mas em breve assenhorava-se de si mesma,
e continuou a dançar, procurando aproximar-se aos poucos da outra saída da sala e assim atrair o dragão que parecia preso a ela. Assim o conduziu dançando sempre
até o templo e ao nicho do qual em breve fechava outra vez a grade. Os outros dragões desapareceram nas montanhas. No templo reinava uma agitação terrível. Nem os
sacerdotes, nem ninguém podiam compreender como o dragão havia fugido, e ninguém poderia dizer quem abrira a grade. Bawani não pode resistir a essa emoção e caiu
sem sentidos sobre os degraus do templo. Levantaram-na e fizeram-na voltar a si. O palácio real fora teatro de cenas terríveis. Passado o susto produzido pelo aparecimento
do dragão, notaram os presentes que o rei Kachparatra e o sacerdote pontífice do templo do dragão, Abbo Lissa, estavam transformados em estátuas de pedra. Quando
esta notícia chegou ao povo, toda a cidade se agitou. Semelhante desgraça jamais se dera, e
ninguém sabia como aquelas estátuas deveriam ser sepultadas. Adschimitra foi proclamado rei. Mandou vir imediatamente
magos, adivinhos e sábios para que lhe explicassem o que poderia dar-se, e o que viria ainda a suceder. Depois de muita conferência, disseram ao rei que a Divindade
lhes informara que o rei Kachparatra e o pontífice do templo do dragão Abbo Lissa, haviam sidos castigados porque tiraram a sua melhor dançarina. Que, se o perdão
da divindade não pudesse ser suplicado, todo o país seria perseguido pelas desgraças e que os cadáveres deveriam ser sepultados fora da cidade, numa caverna, de
modo que ninguém pudesse encontrar a entrada. Isso se fez logo. Mas, como obter o perdão do dragão? E quais os holocaustos que lhe deveriam ser oferecidos? Ninguém
o sabia. Bawani adoeceu em virtude da emoção. Sua rival, Dewaki, quis aproveitar-se da enfermidade para arruiná-la de vez. Ela comunicou a Adschimitra que pretendia
voltar à casa paterna porque não estava disposta a ocupar um lugar secundário onde até agora tivera o principal. O jovem rei lhe pediu e suplicou que ficasse, mas
Dewaki não se deixou convencer e finalmente disse agastada: -- A fonte de todo o mal és tu somente! Se não tivesses tomado ao dragão a sua melhor dançarina, ele
não se teria irritado. E como havemos de contemporizar só os deuses sabem! Talvez ele exija que a traidora lhe seja oferecida em holocausto. Mas também, como tu
não podes, provavelmente, resolver isto, eu prefiro fugir aos perigos que aqui ainda nos ameaçarão. Estas palavras ardilosas não negaram seu efeito sobre Adschimitra.
Ele meditou longo tempo e tomou então uma resolução. A sua crueldade era igual à sua superstição e egoísmo. E ele pensou que talvez Dewaki tivesse razão. Semelhante
holocausto reconciliava o dragão e punha fim ao seu ódio. Além disso era Dewaki a filha de um poderoso feiticeiro, que poderia vingar-se terrivelmente. Se ele desposasse
Dewaki, por um lado, entraria na posse da mulher amada, por outro adquiria a amizade de seu pai, o feiticeiro, pois daria à sua filha, outra vez a posição elevada
que ela como rainha havia tido até então.
O resultado dessa reflexão foi que ele teve de sacrificar Bawani no sentido verdadeiro do termo. Adschimitra mandou
vir a si o pontífice e lhe disse que sonhara que seu pai lhe aparecera e lhe ordenara, para evitar maiores desgraças, sacrificasse sua mulher ao dragão. Para saber,
porém, se esse sonho deveria ser executado, pedia aos sacerdotes interrogassem as divindades. O sonho foi tido por real e certo, e Bawani foi condenada à morte,
em holocausto. Já no dia seguinte deveria executar-se a sentença. E Adschimitra olhava tranqüilamente o terraço inferior, quando conduziram Bawani. No coração do
jovem, belo e poderoso, não havia lugar para compaixão. Apenas vaidade, orgulho e egoísmo viviam nele. Não se pode exprimir por palavras o que Bawani sofreu quando
a levaram ao templo. Cortaram-lhe os longos cabelos a cutelo e jogaram-na atrás da grade onde vivia o dragão. Geralmente os criminosos que eram atirados ao dragão,
depois que este os matava com o seu corpo e lhes partia os ossos, eram cortados em pedaços pelos sacerdotes, e esses pedaços atirado à boca do monstro. Quando Bawani
caiu sobre os degraus do nicho, soltou um grito agudo e lançou uma terrível imprecação sobre a cabeça do rei e de Dewaki. Jurou vingar-se deles, senão nesta vida,
na vida do além. Para espanto dos sacerdotes, o dragão nem se moveu do seu lugar. Permaneceu tranquilamente deitado e fitou a sua vítima. Bawani perdera os sentidos
e ficara deitada sobre os degraus. Ao cair da noite, apoderou-se dos sacerdotes e das sacerdotisas que estavam diante da grade, um afrouxamento singular, e, um após
outros, caíram adormecidos. Então saiu da sombra das colunas uma imagem. Arrastou-se até à grade que abriu, por meio de invocações, com fórmulas mágicas. Quando
o dragão viu a imagem, ergueu-se em toda a sua grandeza e soltou um leve assobio e entre ele e o homem estabeleceu-se uma conversa vivaz. O dragão compreendia, e
falava também a linguagem do homem. O misterioso visitante executou então diversos movimentos, puxando da cinta uma longa faca cuja lâmina estava cheia de sinais
enigmáticos. Cortou com ela a pele do dragão, do pescoço até ao meio do corpo, e desse corte saiu o feiticeiro
Kalija, que pelo ermitão fora transformado em dragão. Seu corpo estava coberto de uma camada de sangue e sobre
a cabeça ele, em vez de cabelos, tinha milhares de pequenas serpentes que se contorciam espasmodicamente. -- Eu te agradeço, Majawarna! Agora, ajuda-me depressa!
Disse Kalija, e curvou-se sobre Bawani. Rapidamente, ergueram-na desacordada e a deitaram junto do corte do dragão. Depois pronunciaram algumas fórmulas mágicas
e o corpo de Bawani começou a encolher-se, tornou-se menor e desapareceu, de repente no corpo do dragão, cuja ferida se fechou imediatamente e cicatrizou. Durante
um momento parecia que a cabeça do dragão se transformava na cabeça de Bawani, mas essas semelhanças desapareceram logo outra vez, e o monstro recolheu-se sibilante
ao canto superior do nicho. Os feiticeiros fecharam a grade e desapareceram na escuridão da noite. Quando os sacerdotes, no dia seguinte, não encontraram vestígios
de Bawani, anunciaram que a divindade dragoniana havia aceito o holocausto, e assim estava reconciliada. O casamento de Adschimitra com Dewaki foi celebrado festivamente.
Mas o país foi, desde esse dia, vitimado, mais que anteriormente pelas secas, doenças e desastres. A colheita foi estragada pelo granizo, as casas foram derrubadas
por um formidável tufão, e uma horrível epidemia ceifou em poucas horas as vidas de centenas de pessoas. A tudo isso reunia-se a predição de alguns feiticeiros que
profetizavam ao país ainda horríveis coisas. No dia da festa da divindade dragoniana, o rei, a rainha e os altos dignatários e uma incalculável quantidade de povo,
dirigiu-se ao templo para orar e oferecer sacrifícios e suplicar à divindade misericórdia pela extinção da seca e da epidemia. Os degraus que conduziam ao nicho,
este mesmo, estavam juncados de flores e enfeitados de heras. A grade estava aberta porque o monstro se mostrava tranqüilo e parecia dormir. Findas as orações e
danças prescritas, o rei aproximou-se como o primeiro, da entrada do nicho, para levar as suas oferendas. Durante essas cerimônias o céu cobrira de nuvens negras,
e uma
tempestade se desencadeou. Raios iluminavam a escuridão do templo. No momento, porém, em que o rei ia despejar
leite e mel como oferenda, diante do dragão, um fortíssimo trovão sacudiu o templo e fez estremecer as paredes. A terra parecia querer elevar-se, e uma completa
escuridão envolveu tudo. O povo perturbado, imobilizava-se sem fala, quando um terrível grito, partido de boca humana ecoou no templo. Clareando outra vez, então,
todos viram que o rei estava sob o domínio do dragão. Prendia Adschimitra, que, com todas as suas forças, lutava contra as enroscaduras do corpo do monstro. Ao ver
isso, Dewaki caiu sem sentidos. Os sacerdotes e o povo não sabiam o que fazer. Ao dragão não podiam matar, pois era uma divindade. Arrancar-lhe a sua presa, ninguém
podia, pois o monstro cuspia, e a sua baba venenosa caindo em derredor, não deixava ninguém se aproximar. Extraordinário era que o dragão não comprimia o rei e nem
lhe quebrava os ossos, como sempre fazia às suas vítimas, mas apenas segurava-o e parecia gozar com os tormentos do infeliz. Prometeram fabulosas recompensas pela
libertação do rei das garras de dragão. Mas ninguém ousou esse ato. O monstro não atendeu às orações e danças e nem tocou nos alimentos que lhe deram. Parecia que
apenas triunfava diante de sua presa. Pálido de morte, com o olhar de louco, Adschimitra fitava o seu algoz. A força da sua resistência parecia quebrada. Com suas
forças hercúleas poderia Adschimitra ter estrangulado o réptil, mas os seus braços estavam tão fortemente comprimidos, que ele não pode libertar-se desse enlaçamento.
Apesar da horrível situação em que o rei se achava, ele ainda vivia. Os sacerdotes tentaram aproximar-se dele para o confortarem com um pouco de leite. O dragão
não se opôs. Eu já disse que o povo amava e adorava Adschimitra, apesar dos seus defeitos. Por toda a cidade e em todos os templos fizeram-se sacrifícios para libertar
o infeliz rei. Mas tudo foi inútil. A superstição do povo encontrou novo alimento na exposição de um jovem sacerdote, que afirmava ter visto como a cabeça do dragão
se transformara, durante a noite, na de Bawani, e que esta fitava sorrindo sarcasticamen-
te o desacordado rei. Esse sacerdote perdera os sentidos com a forte impressão que tivera. Dewaki ficara doente
e se fechara nos seus aposentos. Na tarde do segundo dia, apresentou-se ao pontífice uma mulher velada que declarou poder libertar o rei, mas que seria preciso estar
só. Os sacerdotes e o povo deveriam afastar-se. Se essas condições fossem aceitas, ela voltaria à meia-noite. Imediatamente deram à mulher o consentimento. Próximo
da meia-noite, todos se afastaram do templo. Desejavam salvar o rei. Logo depois surgiram duas figuras embuçadas: um homem e uma mulher. Quando haviam afastado as
capas, podiam-se reconhecer Majawarna e Dewaki. Majawarna havia se revestido dos sinais de um grande mago. A rainha colocou sobre a mesa de sacrifícios uma caixa
contendo um vaso de cristal fechado, com tampa de ouro, assim como uma agulha de vidro, oca, que estava cheia de um liquido grosso como o mel. Majawarna sacara entrementes
uma flauta de bambu da cinta e pôs-se a tocar. O dragão ergueu-se, sem contudo, soltar a presa. Parecia que o toque da flauta o atraía. Dewaki aproveitou-se desse
momento para se aproximar sorrateiramente do monstro e enfiar-lhe essa agulha de vidro, profundamente, na epiderme, a ponto de desaparecer completamente. Majawarna
aproximou-se rapidamente do rei e lhe deitou nos lábios o líquido de um vidro que trazia na mão. Um tremor percorreu o corpo do dragão e da boca do rei partiu um
gemido doloroso. Poucos minutos depois o dragão e sua vítima eram figuras pétreas. -- Perjuro! O que fizeste? Gritou Dewaki quando viu o horrível quadro. Com a
espada armada, avançou ela para Majawarna. Este apenas torceu a sua mão para um lado e pôs-se a rir. -- Pensaste realmente que eu ia salvar o meu rival? Para que?
Para que voltasses a ser rainha e a viver ao seu lado? Eu vinguei Bawani e a mim mesmo! Mas precisamos fugir, para que o povo não nos mate...
Três dias depois a cidade afundava-se em virtude de um abalo sísmico. Milhares de seus habitantes foram sepultados
sob as rochas. Outros milhares morreram de fome, impossibilitados de fugir. Balarama calou-se. A parede nublada entrou em agitação, empalideceu e desapareceu. Durante
minutos permaneceu Rothschild imóvel em sua cadeira, entregue aos seus pensamentos. De repente ergueu-se e agradeceu cordialmente ao sábio o haver-lhe, não apenas
relatado, mas também mostrado a sua história. Balarama apertou-lhe a mão e conduziu-o ao laboratório. Aí deu ao Barão uma bebida reconfortante. -- Beba Adschimitra,
meu antigo rei! Rothschild esvaziou a taça e sentiu-se melhor. -- Denominaste-me vosso antigo rei! Vivestes, também vós, nesse tempo, venerável Balarama? -- Sim,
mas isso não é fato de importância. Dize-me, não queres ver o local em que Adschimitra caiu presa do dragão? A sua figura pétrea se conserva até hoje. -- Se eu quero?
Seria uma imerecida graça permitir-me ver essa figura. Redargüiu o Barão com impaciência, diante do que Sir Gerald e Balarama riram, trocando um olhar. O sábio
conduziu os três através das ruas da cidade morta ao templo, que se encontrava próximo dos muros do contorno. Aí acenderam archotes. Os três homens se aproximaram
do nicho onde, em outros tempos, forte grade de ferro recurvada corria. Singular grupo ocupava o espaço compreendido ali. Completamente ereto, estava o dragão, em
grandeza realmente antediluviana. Com a cauda, prendia um homem esbelto, cuja cabeça caía para trás. Nos seus traços fisionômicos desenhava-se um horrível pavor.
Comovido, Rothschild contemplou esse momento mori do seu pecaminoso passado. O rei indiano tinha a mesma semelhança que Paulo de Montinhoso retratava em Pawel Borisowitch.
Rothschild exprimiu o seu pesar por não poder fotografar ou desenhar o grupo de pedra. Balarama disse-lhe então que Sir Gerald, em uma anterior visita, trouxera
consigo uma máqui-
na fotográfica e que lhe permitiria utilizar-se do aparelho para bater uma chapa. Satisfeito o Barão agradeceu-lhe
e, na companhia de Tonilim, pôs-se a trabalhar. Alguns trechos das ruas da cidade morta, bem como o palácio e o templo, ficaram gravados nas chapas fotográficas.
Num dos dias seguintes, à refeição, Rothschild referiu-se a um dos acontecimentos de Montinhoso, e falou do terrível veneno pelo qual Dina encontrara a morte. Acentuou
a semelhança notada entre os efeitos desse veneno com o empregado pelo feiticeiro Majawarna e perguntou como um segredo como aquele se mantivera através dos milênios.
-- Os filhos de Majawarna e de Dewaki conheciam a composição desse veneno, que, aliás, não é desconhecido dos iniciados! Explicou Balarama. Mais tarde, os sucessores
desse feiticeiro, foram obrigados, por circunstâncias várias, a se transferirem para a Europa, onde caíram numa ramificação de ciganos. Conforme reza a tradição,
o chefe da família era obrigado a transmitir o segredo da poção à mulher mais inteligente da família. Desta forma, finalmente, Yolanda chegou ao conhecimento do
segredo. Era, entretanto, a própria Dewaki que, em virtude da lei da peregrinação das almas, devia encontrar a Adschimitra em seu caminho. Dois dias depois, Sir
Gerald comunicava a seus discípulos que era tempo de regressarem à casa. Ambos não se mostraram satisfeitos com a notícia, uma vez que se tinham aprofundado em vários
trabalhos interessantes. Exprimiram ao venerável Balarama os seus mais veementes agradecimentos pela amável colhida e pelas lições que lhes dera. Ao lado de Balarama,
havia uma caixa de sândalo polido, artisticamente entalhada. O ancião abraçou Pawel, abençoou-o e disse-lhe, apontando para a caixa: -- Leva esta lembrança da cidade
morta, tua antiga residência, ó Rei! Encontrarás nela alguns objetos que te pertenceram, assim como as jóias que deste a Bawani no dia do casamento. Entrega-lhe
essas jóias em nome do velho Balarama.
-- Mas, onde encontrar Bawani? Perguntou Rothschild duvidando. -- Encontrá-la-ás em tua casa. Não a reconhecestes?
-- Deus meu, Valéria?! Parece-me, realmente, que tenha semelhança com Bawani... Fico meio tonto diante disso tudo, venerável Balarama! Pawel levou a mão à testa
e seguiu o ancião. Algumas horas mais tarde saíram por detrás da estátua do pagode, do templo antigo, para o ar livre. Em seguida atravessaram o salão por sobre
as suas almofadas e tapeçarias. Algum tempo depois encontravam-se na residência de Sir Gerald. O Barão ardia de impaciência por abrir a caixa. Findo o jantar, não
se conteve. Alçando a tampa da caixa, contemplou ofuscado o seu conteúdo. Ali dormia a maravilhosa taça de ouro, na qual bebera vinho na casa de Balarama, um anel
de rubi com inscrições enigmáticas, talvez o escudo de Adschimitra, um diadema em ouro guarnecido de pedras preciosas, e que vira sobre a cabeça de Adschimitra,
e, finalmente, um punhal com cabo de ouro, a lâmina recoberta de sinais cabalísticos. -- Esse punhal é o mais valioso dos presentes! Disse Sir Gerald contemplando
os sinais. Não é apenas um objeto custoso, mas igualmente uma arma mágica e poderosa. Explicar-te-ei mais tarde, como deverás utilizá-la. As jóias para a transformada
Bawani, hoje Valéria, eram obras primas de ourivesaria. Um diadema largo, colares, quatro braceletes e um cinto. Tudo isso guarnecido de safiras, esmeraldas e brilhantes
de incalculável valor. Rothschild já de há muito não se sentia tão satisfeito. Com uma diligência inflamada, pôs-se a comparar os sucessos do longínquo passado com
os de posteriores séculos, traçando paralelos. Essa ocupação absorveu-o totalmente, e fê-lo esquecer quase que completamente as cartas que recebera da Europa e que
não lera ainda. Uma carta volumosa, de Lolo, foi afastada para um lado, afim de ser apreciada após a sobremesa. Em primeiro lugar leu as cartas que
tratavam de assuntos financeiros. Seu advogado escrevia-lhe que, numa viagem de inspeção pelas suas propriedades,
encontrara grandes desordens, necessitando a presença imediata do proprietário. Zangado pegou o Barão a carta de Lolo, e rompeu nervosamente o envelope. Uma maravilhosa
aquarela lhe caiu ao colo. Representava um menino de cerca de quatro anos. Perplexo fitou Rothschild essa pintura e embebeu-se na contemplação do menino trajado
de veludo com gola de renda. Mas quando, inesperadamente leu este nome: Boris Borisowitsch, uma onda de sangue quente subiu-lhe ao rosto. Tinha, pois, um filho,
e Valéria nunca escrevera a respeito! Ousara, então, ocultar-lhe a existência da criança? Uma ira indivisível apoderou-se dele. Ergueu-se de um salto e pôs-se a
andar inquieto de um lado para outro. -- Tranqüiliza-te, amigo! Há-de, então, toda e qualquer notícia inesperada levar-te a essa agitação? Observou Sir Gerald sorridente.
Pawel parou de repente, como que banhado de água fria, e um rubor de vergonha lhe veio ao rosto. -- Tendes razão, mestre. Continuo ainda facilmente irascível! Mas,
afigurai-vos. Eu tenho um filho e Valéria nem sequer julga necessário dar-me conhecimento disso! -- Parece-me um motivo forte, concordo! Não foi bonito da parte
dela. Mas como tu mesmo não pudeste chegar à lembrança de que esse sucesso, afinal tão natural, podia-se dar! Se tivesses perguntado, terias também recebido resposta.
Já de há muito o sabia, mas não quis envolver-me em assuntos de família. Disse Sir Gerald. Com algum esforço acalmou-se Rothschild. Sir Gerald tinha, afinal, razão.
Porque ele mesmo não tivera essa lembrança? Tornou da carta de Lolo, que era, afinal, a sua única amiga na Europa, e pôs-se a lê-la. `Querido Pawel, escrevia se
te envio hoje o retrato de Boris, O faço quebrando um juramento que Valéria me impôs. Mas não podia calar-me por mais tempo, e deixar-te na ignorância de um acontecimento
importante. Espero e confio que não me trairás. Sete meses e meio depois da tua partida, nascia o menino. A vida de Valéria estava
presa por um fio. As suas inesgotáveis lágrimas eram-lhe perigosas. Finalmente Deus se apiedou dela e se restabeleceu.
Nunca vi, confesso-o francamente, uma criança mais linda que o teu filhinho. É até mais bonito que o meu Kolja. Boris se parece inacreditavelmente contigo e se tornará
mais tarde, provavelmente, um ídolo das mulheres, como foi seu pai. Ás vezes me interrogo: A quem é que Valeria ama, nele? Boris ou Pawel? Mas não posso saber. Quanto
a isso, ela é e será sempre uma esfinge!' No final da carta, Lolo exprimiu a esperança de que ele voltasse para casa em breve, pois que os cinco anos já estavam
a findar. Como post-scriptum, acrescentava que a aquarela era obra de Valéria. Comovido, Rothschild contemplou o retrato do filho. A semelhanç3 entre ambos era inegável.
Os mesmos olhos grandes, escuros, a boca rosada que já parecia algo orgulhosa, o mesmo cabelo negro. Agora compreendia o motivo por que Valéria não quisera divorciar-se.
A criança representava uma aliança entre eles, que não ousava quebrar. Nessa noite, o Barão não conseguiu dormir. Sempre e sempre surgia-lhe a imagem da esposa à
vista. A criança, à qual ela dera vida, atraía-o como um imã. Apesar disso, prosseguiu com os trabalhos costumeiros. Experimentava-se então no domínio dos elementos,
e aprendia a dirigi-las. Trabalhava igualmente na transmissão do pensamento à distância, e aperfeiçoava-se no conhecimento do mundo astral. Trabalhava corajosamente,
e apenas nas horas vagas lembrava-se da pátria distante. Alguns meses depois, estavam Sir Gerald e seus discípulos, como de costume, à noite, no terraço, quando
se voltou para Rothschild: -- Amigo Paulo, penso que podes, aos poucos, lembrares da tua viagem de regresso. Trabalhaste com tanta obstinação, que não importa ficares
aqui mais três ou quatro meses. Recomendo-te que te vás preparando para essa longa viagem. Rothschild empalideceu. A comunicação de Sir Gerald vinha-lhe inesperadamente,
e a sensação de um profundo desgosto o acometeu quando se lembrou de que teria de abandonar a tranqüilidade e a paz daqueles lugares.
-- Se me expulsais, ordenai quando devo embarcar! -- Eu não te expulso, meu querido e bom amigo! Se possível fosse,
eu te conservaria aqui para sempre. Todo ser tem, porém, o seu destino e a sua designação que, grande ou pequena, têm que cumprir. Teu dever e tua missão, é ser
esposo de tua esposa, pai de teu filho, administrador inteligente da fortuna que te foi confiada. A ti está reservado experimentar lá fora, no mundo para o qual
vais voltar, as tuas forças, a fim de que venças, se fores capaz, as tuas fraquezas, o egoísmo, a prepotência, a cólera, a paixão desordenada. Do contrário, serás
de novo dominado e vitimado por elas. Abre-se diante de ti um campo vastíssimo, em todos os sentidos, para as tuas atividades. Faço menção, para exemplificar, a
aplicação de tuas rendas. É triste mas é verdade, que justamente os ricos fazem menos pelos que necessitam do que aqueles que pequenos haveres dispõem. Tu és rico,
e teu dever é auxiliar aqueles que necessitarem de auxílio. Não julgues mesquinhamente em relação à pobreza. Pois que há um juízo que muito acima de tua opinião
e que julgará severamente os procedimentos de cada um. Se um infeliz, em necessidade, ergue as mãos a Deus, suplicando auxilio, tem direito a isso. Um cenário talvez
muito maior para o trabalho santificante, oferece-te a sociedade em que viverás. O mundo se esboroa, física e moralmente. Onde desaparece a crença, ganha força e
estende-se o desenfreamento dos costumes. Os homens se envergonham de serem bons. Uma literatura despudorada glorifica o pecado e o crime, incita os instintos animalescos
e produz um surto epidêmico, que estimula o suicídio, o assassinato, a loucura e outros males. E nessa massa cega e grosseira, irrefletida e corrompida, o conhecimento
que aqui adquiriste atrairá como uma luz todas aquelas pessoas que não se puderam entender com o mal, e tu lhes aparecerás, como o apoio da tranqüilidade, da paz
e da renovação. Sê paciente e indulgente. Refreia a tua ira, não te excites, e sobretudo não olhes com desprezo aqueles que te não compreendem. Não quero negar que
a luta com um homem tolo é muito mais difícil do que com um inteligente. Mas, em compensação, o
primeiro trabalho é muito mais honroso para um ser superior. Incansavelmente deverás descobrir a sede da ira e
semear o bem, sem atender à maledicência ou à reprovação. As enfermidades da alma são muito mais difíceis de curar do que as do corpo, mas tanto maior é o merecimento
se alcançar sucesso. Quando alguém se sente realmente puro, não tem que temer contágios, e pode adentrar no meio dos indivíduos mais corrompidos, material e moralmente.
Creio ter-te explicado claramente como enfrentar a luta com o mal. E espero ver, no futuro, somente vitórias tuas. -- Meu Mestre, se pudesses me amparar com os teus
conselhos... Mas estarás longe de mim e eu estarei tão somente entregue a mim mesmo! Disse Rothschild tristemente. -- A distância é uma noção limitada, meu filho!
Prometo-te não perder o contato contigo, para que sempre possas te dirigir a mim. Esta conversação fizera uma grande impressão em Rothschild e começou desde logo
os preparativos da viagem, embora muito a contragosto se retirasse dali. Temia o mundo e tudo quanto aí poderia encontrar, e também não tinha nenhum interesse pelos
sucessos que se davam fora de sua atual paragem. Os jornais, ele apenas os lia às vezes, e em grandes intervalos. Também a lembrança de como o receberia Valéria,
o intranqüilizava. Estava convencido de que dependeria talvez de uma grande paciência, indulgência e amor, para reconciliarse com ela. Tinha, ao menos, um aliado
em seu filhinho, para quem se sentia atraído, embora previsse que o aguardavam coisas graves. Depois de ter fixado definitivamente o tempo de seu regresso à Europa,
escreveu uma carta a Lôlo, a Valéria e ao advogado, pondo todos ao corrente da sua próxima chegada. O mais difícil lhe fora a carta de Valéria, que somente escrevera
depois de longa e madura cogitação. Dois dias antes da partida, Sir Gerald o convidou a ir ao seu laboratório. -- Quero dar-te as últimas instruções, meu filho,
e ao mesmo tempo entregar-te alguns objetos que serão úteis. Isto, como vês, é um livro. As folhas deste livro são feitas de finíssimas placas de ouro e prata e
cobre, ornadas de madrepérolas escuras e claras. Os sinais
sobre estas folhas são fórmulas mágicas, com o auxílio das quais podes governar a força dos elementos. Antes de
lançares mão deles, lê as páginas correspondentes e certifica-te de que nada esqueces. Provavelmente, logo estarás em condições de precisar manter uma luta com os
elementos, pois eles geralmente se lançam sobre aqueles que podem dominá-los. Mas uma vez rechaçados, fogem do iniciado. Neste caderno escrevi tudo quanto aqui aprendeste
para que os fatos não fujam à tua memória, bem como as regras pelas quais deverás viver. Nesta caixa negra, encontrarás um arsenal completo de objetos mágicos, que
te bastarão para um longo tempo. Além de ti, ninguém mais deverá entrar em contato com esta caixa. Neste recipiente menor, finalmente, encontrarás ervas medicinais,
bálsamos, pomadas, etc. Já te expliquei o seu emprego e tudo isto é o meu presente de despedida para ti, meu querido discípulo e amigo. O Barão mostrava-se comovido.
Agradeceu a Sir Gerald com palavras tocantes. Então tomou da caixa e quis retirar-se, mas foi contido pelo mago que lhe entregou ainda um estojo de couro. -- É uma
surpresa para ti! Quando tiveres chegado a tua casa, põe este estojo de couro num lugar escuro e bem oculto, de sorte que ninguém o veja. E quando tiveres, algum
dia, necessidade premente de nos ver aqui, abre a tampa, lê as instruções e procede de acordo. -- E eu estarei em condições de palestrar contigo, meu mestre? Perguntou
Rothschild admirado. -- Sim, mas não abras o estojo antes de tê-lo colocado em seu lugar permanente.

15
A VOLTA AO LAR
Chegara o dia da partida de Pawel da Índia. Tonilim, que ainda pretendia ficar ali por algum tempo, quis acompanhar
o amigo até o ponto de embarque. Tinham resolvido, para abreviar a viagem, se utilizar da estrada de ferro até o porto marítimo. Com os olhos rasos de lágrimas,
diante de Sir Gerald, Rothschild agradeceu a bondade e o amor de que se tinha feito objeto, rogandolhe que não o esquecesse. Profundamente tocado, Sir Gerald abraçou
o discípulo, abençoando-o. -- Alcançaste o amor e a minha proteção para sempre. Eles te acompanharão por toda parte, e os laços que se estabeleceram entre nós não
se romperão, nunca mais. Regressa com alegria e mostra-te digno do teu saber. Todo ser salvo, física ou moralmente por ti, serme-á um presente valioso e a melhor
recompensa recolhida pelo meu trabalho. A bordo, o Barão recolheu-se ao canto mais escuro do tombadilho e meditou sobre a sua vida. Podia permanecer assim por horas,
a olhar para o céu ou para as ondas, esquecido de tudo quanto o rodeava. Muitas vezes, porém, descia à cabina, tomava o livro de folhas metálicas e procurava nele
os capítulos que versavam sobre os elementos. Absorvia-se em si mesmo, que não notava o interesse com que o olhavam os outros passageiros. Especialmente as senhoras
pareciam não perdoar o seu modo distante e arredio. Muitas desejavam ardentemente iniciar relações de cortesia com aquele homem interessante, porém, silencioso e
indiferente de tudo, que sempre as afastava do seu caminho. Os primeiros dias da viagem marítima decorreram calmos e sem mau tempo. Certa manhã, entretanto, Rothschild
notou que o comandante estudava, cheio de cuidados, o céu. Voltando-se para um senhor idoso, que o acompanhava, murmurou: -- Temo que, durante a noite, venhamos
a enfrentar tempestades. É preciso estar alerta. Pawel guardou essas palavras e desceu imediatamente ao seu camarote, onde leu as fórmulas relacionadas à questão.
Tomou um gole de uma essência fortalecedora e friccionou o corpo com uma po-
mada. Deitou-se então para dormir, desejoso de estar bem disposto no momento necessário. E em sonhos julgou ouvir
a voz de Sir Gerald que se curvava sobre ele. -- Levanta-te e sê corajoso! O teu barco corre grande perigo, que deverás afastar, para salvar muitas vidas. Não te
esqueças das minhas instruções, pois esta é a tua primeira ação independente. Coragem! Rothschild despertou supondo ter ouvido, de fato, a voz de seu mestre, mas
teve de convencer-se que sonhara. O mar agitado, porém, que jogava o barco de um lado para o outro, fê-lo erguer-se logo. Não sentia o menor receio, ao contrário,
sentia-se calmo e feliz. Ia por o seu saber a serviço dos seus semelhantes. Julgou sentir a mão firme e quente de Sir Gerald na sua e parecia que seu mestre estava
consigo. Saiu da cabina para verificar o que se passava. Quase todas as portas estavam abertas e dos camarotes partiam gritos de mulheres aflitas, choro de crianças
e gemidos. Os homens tinham-se reunido no refeitório e confabulavam sobre as medidas a serem tomadas. A agitação do mar aumentava de tal maneira, que precisava segurar-se
com as duas mãos, para não cair. Caía uma terrível tempestade cortada de ininterruptos raios. O céu negro como azeviche, só os coriscos manchavam, iluminando as
altas montanhas de ondas que lavavam o tombadilho. Mais uma vez Pawel julgou sentir a mão de Sir Gerald, e não quis perder mais tempo. No camarote, tirou da caixa
uma corrente negra com uma estrela metálica, em cujo centro havia um mecanismo. As rodinhas moviamse com velocidade quase que imperceptível e difundiam um aroma
embriagante. Essa corrente ele a pos no pescoço, colocando a estrela sobre o peito nu. Juntando vários pós ao óleo, formou quatro bolinhas que dispôs sobre um prato
de ouro. Em cada uma das bolinhas, fez uma cava, que preencheu com um pedaço de cânfora e aquela massa verde, resinosa, que vira nas tripeças da cidade morta. Acendeu
a mistura e ainda retirou da caixa um pequeno arco e quatro flechas apropriadas e colocou no dedo um anel que prendia pedra lilás e brilhante. Prosternou-se em seguida,
orou e voltou ao convés. O fluido que lhe
parecia ser a mão de Sir Gerald, conduzia-o com presteza. O navio estava sendo erguido com violência crescente,
arrojado entre os abismos das ondas. As paredes de bordo, rangiam ao embate da massa aquática, em todas as suas juntas, e pareciam não poder resistir por mais tempo
ao ímpeto desses golpes. Iam ceder a qualquer momento. O tombadilho era lavado, constantemente pelas ondas que envolviam o barco. Tudo quanto não estava pregado
ou bem amarrado já tinha sido levado pelas águas. Com grande esforço, Rothschild alcançou a proa do navio. Ninguém o havia notado e ele julgava estar completamente
a sós sobre o tombadilho quando se inclinou para os quatro pontos cardeais e, atirando de cada vez uma das bolas inflamadas ao mar, recitava fórmulas mágicas. Em
seguida invocou o nome dos espíritos aos quais os elementos eram submissos e suplicou-lhes que aplacassem a tempestade e salvassem o barco da submersão, Lançou as
quatro flechas e guardou o prato. As bolinhas inflamadas dançavam sobre as ondas e, ao lançamento de cada uma das flechas, um forte trovão retumbava sobre uma onda
enorme, erguida como que por uma explosão submarina, fazendo surgir uma viva labareda. A sua luz, o Barão pode ver as nuvens pardas que envolviam o barco e dentre
as quais podia distinguir esmaecidas fisionomias humanas. Essas forças misteriosas pareciam impelir o barco para a frente com assustadora velocidade. Como que em
vôo o barco rompia agora através das ondas, fugindo à tempestade. Os trovões enfraqueciam e as ondas começavam a se acalmar. Em breve o céu ganhava doces claridades
de azul, e, à distância, surgia a luz de um holofote. Rothschild sentia-se exausto. Já não notava mais a pressão das mãos do mestre, e considerava terminado o seu
trabalho. Todo o seu corpo banhava-se de transpiração, apesar da roupa molhada. Não sabia que tinha sido visto, durante o seu trabalho. Por acaso, um jovem marinheiro
russo testemunhara o seu trabalho. Não pudera compreender as palavras do Barão e não percebera as chamas sobre as ondas. Mas vira quando o jovem mago se inclinara
para os quatro pontos, jogara as bolinhas e lançara as quatro flechas. Esse jovem mari-
nheiro conhecia algumas das regras fundamentais do ocultismo e compreendera que um iniciado salvara o barco da
submersão. Vaidoso e satisfeito, voltou o Barão ao seu camarote. Pela primeira vez lançava mão do que aprendera com Sir Gerald. Orou ardentemente, agradecendo a
Deus pelo auxílio alcançado. Depois, exausto, deitou-se. Na manhã seguinte notou entre os passageiros, alguma agitação. Todos falavam da terrível tempestade e do
perigo que ameaçara o barco que, só por um milagre escapara ao naufrágio. -- Dentro de uma hora estaremos no Ceilão! Dizia uma inglesa. O capitão não sabe dizer
como foi isso possível. Se o barco tivesse navegado sem incidentes, alcançaríamos este porto hoje a noite ou amanhã de manhã. E isso na melhor das hipóteses. Nunca,
durante toda a sua vida, lhe aconteceu tal coisa... Pawel ouvia essas conversas com indiferença. Apenas o jovem marujo não participava dos comentários gerais, mas
contemplava com interesse e respeito o rosto do jovem mago. Copiara no seu caderno, da lista de bordo, o nome de Rothschild... X X X Num belo e quente dia de agosto,
a família Samburoff inteira reuniu-se no terraço. A propriedade que possuíam, era bela e bem situada. A casa antiga era ainda dos tempos de Catarina, a Grande, e
se encontrava maravilhosamente conservada. A senhora Samburoff apreciava passar ali, na companhia dos filhos, todo o verão e o outono. Além dela encontravam-se naquele
momento, Anatólio, sua mulher e duas crianças, Valéria e seu filhinho. Depois do almoço, a senhora Samburoff recolheu-se para descansar um pouco, e as jovens senhoras
ficaram a sós no terraço. Palestravam em baixa voz, enquanto as crianças corriam sobre a areia. Lolo se modificara pouco. Rosada e vivaz como outrora, dava a impressão
de uma pessoa feliz e satisfeita. Valéria, mais bela do que nunca, parecia ter-se modificado sobrema-
neira, quanto ao seu comportamento. Com seu porte esbelto e airoso, parecia antes uma donzela do que urna senhora
e mãe. Seu rosto, porém, perdera alguma coisa de sua vivacidade ao redor de seus lábios podiam-se ver, agora, pequeninos sulcos. Os seus grandes olhos escuros olhavam
com singular compenetração e apenas cintilavam ao se fixarem sobre o pequenino Boris. Sofrera duramente o seu nascimento, e somente aos poucos pudera se acostumar
a olhar para a criança com amizade. De princípio o pequenino ser não lhe parecia mais do que um órfão, e isso até que Lolo e sua mãe a livraram do tolo pensamento.
Assim, começou aos poucos a ver no filho uma espécie de âncora de salvação. E depois o amara quase com aflição. A cada ano de crescimento, se acentuava mais a semelhança
entre pai e filho. O menino, de cabelos negros, encaracolados, sentia bem que a mãe o animava, e soube aproveitar-se dessa sua fraqueza em seu benefício. Só o amor
ao filho desistira Valéria da ação de divórcio, deixando o assunto para ser resolvido depois do regresso do esposo. O tempo, esse melhor dos médicos, fizera com
que ela encontrasse, por fim a sua tranqüilidade. Além disso, sentira despertar em si um vivo interesse pelo Espiritismo, e principiara a estudar séria e diligentemente
o assunto. Com o passar dos anos, passara sobre obras de hermetismo e ocultismo, enfronhando-se profundamente em todas essas teorias. Faltava-lhe, a este respeito,
a prática tão somente. Geralmente Valéria levava uma vida tranqüila e retraída. Não fazia visitas a não ser aos familiares e amigos mais íntimos. E não voltava nunca
mais à casa do esposo. Alugara, próximo à residência do irmão, em Zarkoje Selo, uma linda vivenda. Os verões, todavia, ia passá-los na companhia da genitora. No
decorrer de certo verão, tivera que ir à Oblazia, em virtude do seu estado de saúde, e aproveitara a oportunidade para chegar a Montinhoso, onde permaneceu por algumas
semanas. Ali passou a maior parte do tempo no jardim das rosas, outrora murado, onde deixara Boris brincar e reinar à vontade. Muitas vezes surpreendia-se pensando
no pequenino Paulo de Montinhoso, que, provavelmente, também brincara naquele jardim. A noite, quando
a criança dormia, sentava-se na gruta e pensava no passado. Desagradáveis lhe eram os dias quando, da parte do
esposo, chegavam cartas e pacotes da Índia. Ao invés de alegria, pela lembrança, experimentava cruel aborrecimento. Nunca lera as cartas e nem abrira os pacotes,
que endereçava à sua antiga residência em S. Petersburgo. Sua mãe observava que, nos dias em que recebia cartas e pacotes da Índia, ela se fazia sempre mais irritável,
tornando-se, por muitos dias taciturna e inacessível. A sogra não se lembrava com muita amizade do genro distante. Ainda que Valéria nunca defendesse o esposo, diante
da mãe, Lolo pôde notar que aquelas injúrias soavam-lhe desagradavelmente aos ouvidos. Lolo se fizera, para Valéria, uma amiga e conselheira em todas as questões
que se apresentassem. Certo dia em que Sara Samburoff pôs-se de novo a injuriar Rothschild, Lolo aproximouse e abraçou-a carinhosamente, tentando acalmá-la: -- Querida
mãe, não ofendas a Pawel! Não notas que Valéria sofre, quando falas assim? Não conheces por acaso o rifão que nos aconselha a não nos imiscuirmos nos negócios alheios,
ainda que sejam os de nossos filhos? Valéria tem afinal um filho, e por amor dele não quer aumentar ainda mais a distância que a separa do esposo. Imagina se, em
caso de divórcio do qual Deus nos livre! Rothschild entendesse de querer a criança? Boris, ademais, já começa a ter entendimento. Não é justo injuriar-lhe o pai
em sua presença! Acredita-me, mãe, eu tenho razão! Confia em Deus... Ele levará tudo a bom termo. Com lágrimas nos olhos, a Sra. Samburoff beijou a nora: -- Tens
razão, minha boa Lolo. Mas também tens que concordar que o procedimento do Barão, para com Valéria, foi de arrepiar os cabelos! -- Sim, concordo! Mas, o que havemos
de fazer? Não podemos remediar, mas antes piorar a situação de Valéria. E seria uma crueldade, pois não? -- Ah! Se ela quisesse ajudar a si mesma! Seria feliz...
Esta alusão da Sra. Samburoff se referia a uma questão que produziu grande desgosto a toda a família. Valéria era formosa demais
para, apesar do seu retraimento, não ter admiradores. Mais de uma vez teve que recusar propostas, ainda que rogadas
quase de joelhos, para que rompesse o matrimônio com o Barão. Um dos seus mais inflamados adoradores era o Conde Promim, um jovem cavalheiro belo e rico. Soubera
cativar a simpatia de Anatólio e da Sra. Samburoff que, então, passara a. amparar a proposta e a desejar mais que nunca, ver Valéria separada do Barão de Rothschild.
Só Lolo permanecia firme do seu lado. -- Não contraias segundas núpcias, Valéria. Como poderias saber se Promim é melhor do que Pawel? Sobretudo, porém, aguarda
o regresso de Pawel. Assim, o assunto ficava sem resolução e Anatólio, de sua parte, também aconselhou o Conde a aguardar o regresso do Barão. Mais tarde então,
depois do divórcio, do qual não duvidava, falaria com Valéria. Um criado entrou no terraço e se aproximou das jovens senhoras entregando-lhes um maço de jornais
e cartas. Enquanto Valéria lia uma longa missiva de sua tia e madrinha, Lolo abrira um pacote volumoso da Índia, e uma carta que viera junto, acompanhada de uma
outra que se destinava a Valéria. Lolo escondeu as cartas em sua bolsa e convidou Valéria a segui-la até o quarto, pretextando ter assunto sério a tratar com ela.
Quando Valéria viu o envelope, com aquela letra tão sua conhecida, fez-se pálida, porém seguiu a amiga sem dizer palavra. -- O que tens de tão importante a dizer-me?
Recebeste carta dele! Provavelmente comunica-nos que pretende demorar-se por mais cinco anos na terra das belas dançarinas do templo! Disse Valéria chegando à alcova.
-- Muito pelo contrário! Pawel comunica que espera estar em S.Petersburgo nos primeiros dias de outubro. Esta carta destina-se a ti. Valéria enrubesceu, porém fez-se
pálida outra vez. E impetuosa repeliu a carta que Lolo lhe estendia.
-- Não, Valéria! Precisas ler esta carta, o teu dever te impõe! Disse Lolo severamente. Ele regressa agora, e
basta de conflitos, que já agravaram tanto as vossas relações mútuas. O tom de Lolo deu resultados. Valéria deixou-se cair numa poltrona e fechou os olhos. A luta
em que se debatia o seu íntimo, manifestava-se claramente no seu semblante. -- Que quer ele de mim? Nós nos tornamos, tão estranhos... Lolo se julgas necessário,
lê-me por favor a carta, baixinho... Disse ela. não existem segredos entre nós! Tu és uma irmã querida, Lolo! Lê para mim, faze-me este favor... E cobriu o rosto
com as mãos. Lolo abriu a carta e leu:

-- Querida Valéria. No decorrer destes anos, nunca me escreveste, não deste resposta a nenhuma das minhas cartas. Isso me demonstra que o teu coração ainda se encontra
irado. E a me lançares à face essa ira, preferiste calar. Compreendo que estejas zangada comigo e te perdôo, por isso, o teu silêncio de todo esse tempo. Entretanto,
não fizeste uso da licença que, com o coração opresso, te dei. Não escolheste outro esposo que fosse mais digno de ti, não rompeste a aliança contraída comigo, o
proscrito que abandonou a esposa. E esta circunstância justamente dá-me a esperança de que sob as cinzas, em teu coração, ainda viva uma chispazinha do amor que,
durante os séculos, nos ligou. Triste e magoado li a notícia de que havias abandonado a nossa casa e renunciado aos meios que deixei à tua disposição. Talvez isto
signifique que julgaste a minha partida como ditada pela má vontade, e tenhas o sentimento de que pretendia deixar-te para sempre. Deus é testemunha de que nunca
nutri essa idéia, e de que, mesmo em pensamentos, sempre te fui fiel. Durante todos estes anos de labor espiritual intenso, levei a vida de um ermitão, de um asceta.
Mas, considerando que, aos olhos do mundo és minha esposa, desejo (a palavra está grifada, observou Lolo) encontrar minha esposa em minha casa, quando voltar. Não
desejo dar à sociedade novo material para falatórios, expondo-nos outra vez ao alvo das maledicências. O nosso, somente a nós compete discutir, mesmo aquilo que
se relaciona ao nosso futuro, tanto mais que mesmo tua mãe se exprimiu sobre Dionid em termos tão feios. Por amor de ti, estou disposto a esquecer tudo, e sou o
primeiro a estender-te a mão para a paz. Mas, se eu não te encontrar, ao voltar, no lugar em que te deixei, considerarei a tua atitude como um rompimento definitivo
entre nós. Valéria, consulta seu coração, se desejares
romper os laços que nos mantêm unidos, definitivamente e para sempre. Tenho a maior das vontades de reconquistar o teu amor e o teu coração. Temos ainda a vida inteira
à nossa frente e que pode ser feliz e bela. Não te coloques sob a influência daqueles que desejam nos separar. Consulta Lolo. Ela é sincera, boa e justa, é tua amiga,
esposa de teu irmão. O conselho que te der, virá do coração. Não te esqueças também de que a ligação entre nós, está agora purificada pelo fogo da eternidade. Sou
o dedicado e profundamente teu, Pawel.
Enquanto Lolo lia, Valéria chorava. Então ergueu-se de súbito para dizer, irada e ironicamente. -- É realmente engraçado esse déspota egoísta! Comporta-se como se
fosse eu a culpada de tudo. Só queria saber de que ele vai me perdoar! Tão magnânimo! E esse ultimato é realmente divertido! Devo voltar à sua casa e aguardá-lo
resignadamente, exatamente onde, há cinco anos, me abandonou. É incrível! Quando o sultão regressa, devem todos os escravos estar prontos a recebê-lo. Excede, na
verdade, a todos os limites da razão. Agitada, Valéria caminhava de um lado para o outro. -- Se eu pudesse me libertar dele! Mas estou presa! Não apenas pela criança...
Esse Gerald nos uniu por meio de qualquer feitiçaria. Basta que me lembre da palavra divórcio e me assalta um horror, fereme uma dor tão grande, que me deixa imprestável
para tudo. Abandono então esses pensamentos. Sinto que não posso me separar dele. Se satisfaço as suas exigências, no entretanto, me rebaixo. Lolo fez a cunhada
assentar-se ao seu lado, no divã, e procurou acalmar os seus ânimos exaltados. -- Acalma-te, Valéria! Não exageres, olha os fatos sem idéias preconcebidas, e não
te parecerás trágicos como os julgas de momento. Estamos num momento decisivo, o destino de teu filho está em jogo, o teu próprio, mesmo. E como Boris não é só teu
filho, mas também de Pawel, o pai tem o direito de exigi-lo para si. Tu podes dizer, com certeza, quão triste é a vida de uma criança, quando os pais vivem separados.
Valerá a pena, por uma pequena questão do teu amor próprio que bem considerada é insignificante por em jogo a felicidade de teu
filho e a tua própria felicidade? Não te esqueças de que contas apenas vinte e três anos. Quantas moças não se
casam nesta idade? A prima Nadja foi noiva durante cinco anos, teve que esperar que Leônidas concluísse os estudos universitários e conseguisse emprego depois. Quando
se casaram, Nadja contava vinte e cinco anos. Depois disso, seu marido esteve por dois anos fora, em serviço, e eles são, apesar disso muito felizes. E finalmente,
Valéria, não deves esquecer que, quando te dou um conselho, é que meditei prévia e maduramente sobre tudo. Esse conselho vem do fundo do coração, sabes disso. Afirmo-te,
pelo amor que consagro a Anatólio e às crianças, que o desejo de Pawel me parece justo. Se fores ao encontro de teu marido como se nada houvesse acontecido, fecharás
a todos os curiosos a boca. Por outro lado, ninguém te impedirá de te explicares com ele, a sós. Estou de todo convencida de que Pawel te ama e de que amará sinceramente
a criança. Pode ser que, em princípio, ainda exista alguma frieza entre ambos, mas a paz virá depois. Valéria deixou pender a cabeça: -- E que dirá mamãe? Ela o
odeia. E Anatólio? Lolo meneou os ombros. -- Por Anatólio não te preocupes. Deixa-o comigo. Asseguro-te de que ele será prudente. Quanto a tua mãe... ela não tem
o direito de proibir-te que te reconcilies com teu marido, não achas? Ela não é má por natureza, mas apenas facilmente irritável. E se acalmará por fim, quando te
ver feliz com Rothschild, pois serás feliz com certeza, confia nisto! Pawel não é um homem como os outros! -- Sabes, Lolo, receio que ele, na Índia, tenha se tornado
um feiticeiro. Não queria dizer-te isso, e nem nada disse a ninguém! Ele... me apareceu... várias vezes... -- O que?! Ele te apareceu? E somente agora me dizes isso?
Exclamou Lolo, surpresa e curiosa. -- Há quatro ou cinco meses, minha ama celebrava o seu onomástico e eu lhe permiti recebesse suas visitas e congratulações. Boris
já dormia. Sentei-me junto de sua caminha, mergulhada em pensa-
mentos. E enquanto contemplava as suas feições de criança, notava a grande semelhança que existe entre o seu rostinho
e o rosto de seu pai. Involuntariamente as lágrimas vieram-me aos olhos. É que me sentia só e abandonada. O meu coração oprimia-se na solidão. O menino me era tudo!
De repente, uma fria aragem assoprou sobre meu rosto. Levantei-me e olhei ao redor, e imagina o meu susto quanto à minha frente, poucos passos além, vi, pairando
no ar, uma bola de fogo que, aparentemente, pendia de um fio incendiado. Não pude moverme do lugar. A bola de fogo cresceu, perdeu intensidade e se transformou num
tênue nevoeiro que desenhou as formas de um homem. Pawel estava à minha frente, envolto numa longa túnica branca. Fitou-me longamente, triste, porém, ternamente.
Pareceu-me ouvi-lo balbuciar: "Paciência!" Depois inclinou-se sobre Boris e beijou-o na fronte. Então levou a minha mão aos seus lábios e despejou sobre a minha
cabeça uma mansa claridade de neve. Desapareceu em seguida. Eu senti, realmente o seu beijo sobre a minha mão, Lolo. Quase que em seguida perdi a consciência, mas
voltei a mim em breve. E vi sobre a coberta de Boris, um ramalhete de flores brancas, maravilhosas, de indescritível perfume. Não foi um sonho, pois ele esteve aqui!
Guardei essas flores e as sequei mais tarde. Trago-as sempre comigo e vou mostrá-las a ti. Depois desse dia, não fui mais a mesma... Quando me sinto triste e abatida,
julgo perceber o perfume daquelas flores e sinto, então, que ele está ao meu lado. Quando de uma feita, censurava-o em pensamentos, senti a pressão de sua mão na
minha. Tenho certeza... senti os seus dedos delgados e o anel que ele usa no dedo mínimo. -- São fatos estranhos, Valéria. Seria loucura tua te indispores com um
homem como este que tens. Ouve, Valéria! Na próxima semana finda a licença de Anatólio, e nós partiremos daqui. Vem conosco! Terás o tempo suficiente para, até a
chegada de Pawel, pores em ordem a residência de S. Petersburgo. Poderás preparar tudo com calma e, apenas dois dias antes de tua partida, comunicar teus projetos
aos outros parentes.
-- Esqueci-me de contar-te ainda outra coisa. No dia do meu aniversário, a cinco de agosto, vi, sobre a minha escrivaninha,
uma grande folha de papel e um estojo de couro, que eu não conhecia. Observei melhor esses objetos e, imagina, sobre o papel, vi o desenho de um palácio indiano,
a lápis. Ao pé da folha, com a letra de Pawel, estava escrito: "Querida Valja. Estás zangada e não gostas das minhas cartas. Esta missiva,

porém, terás que ler, e aceitar os meus votos pelo teu aniversário. Beija-te ternamente o teu Pawel". No estojo estava um broche com um solitário provavelmente
uma jóia de alto preço. Valéria dirigiu-se a sua escrivaninha, de onde retirou o estojo de couro de uma das gavetas. Entregou-o aberto a Lolo. Sobre o alvo cetim,
estava um medalhão com uma cadeia de ouro, todo guarnecido de brilhantes. No medalhão via-se, sobre um fundo azul, o retrato em miniatura de um indiano de maravilhosa
beleza. O turbante branco de neve, com um penacho de pedras preciosas, e os dois brilhantes negros postos sobre as pupilas dos olhos, davam ao rosto uma mobilidade
toda especial. -- Isto deve ser o retrato de algum príncipe indiano, e deve ser de um grande valor. Parece ser uma verdadeira obra prima de arte! Disse Lolo encantada.
Vês ingrata, como ele se lembra de ti? Precisas reconciliar-te com ele, tão breve quanto possível! Valéria não respondeu, mas aproximou-se da carta de seu esposo
que leu mais uma vez. Isto lhe custou novas lágrimas que não foram, todavia, tão amargas quanto as primeiras. Em seu coração começou a elevar-se uma nova madrugada,
e a vida já não lhe parecia tão desconsoladora como até então. O passado avivou-se de novo no seu íntimo. O velho castelo com seus fantasmas, o seu amor desvairado
por Paulo, do qual não podia mais libertar-se, tudo lhe vinha de novo ao espírito. Rothschild não a amava como Paulo, mas, contudo, ela sentia bem que a influência
do primeiro sobre o seu espírito, era muito mais forte.
Como Lolo propusera, só falou do seu regresso dois dias, antes da partida na companhia do irmão, e de sua família,
para Zarkoje Selo. Quando, à noite, a família reuniu-se para o chá, e Anatólio falava à mulher sobre diversos assuntos domésticos, corando ligeiramente Valéria comunicou-lhes
que também ela pretendia viajar, levando Boris consigo. Anatólio olhou-a admirado, sem dizer palavra, porém sua mãe observou irritada: -- Que idéia tola! Em S. Petersburgo
o que irias fazer? E, ademais, seria injusto roubar ao teu filhinho os ares do campo. Ficarás aqui e basta! -- Eu não posso ficar! Pawel regressa em princípios de
outubro e deseja encontrar-me com Boris em sua casa, o que é muito natural! Para por tudo em ordem necessito, naturalmente de algumas semanas. Resolvi seguir com
Lolo e Anatólio! O olhar de Valéria tinha um tanto de acanhamento, mas a sua voz era firme e obstinada. -- Com os diabos! Mais uma vez o senhor Barão deseja, e as
suas ordens precisam ser acatadas! Disse Anatólio indignado. A senhora Samburoff estava vermelha de raiva: -- O que dizes?! Esse atrevido deseja ver-te em sua casa?
É realmente demais! Era preciso que tivesses perdido o juízo para ires morar com ele! Ele trará consigo provavelmente, os dois ladrões que não desejam senão o seu
dinheiro. Não vês? Onde ficou afinal o teu amor próprio? Não podes reconhecer, então, que ele precisa vir a ti de joelhos, pedir o teu perdão, que tu, porém, negarás?
E queres te curvar como uma escrava diante do seu senhor... Nesse caso posso apenas recomendar-te o seguinte, querida Valéria: Que te ponhas com uma bacia de água
à porta da sua casa, lave-lhe os pés e os enxugues com os teus cabelos. Sê como a odalisca para a qual o senhor inclinou-se outra vez. Todavia toma nota do seguinte:
Se de fato pretendes fazer o que imaginas, eu não te conhecerei mais. Não serás mais minha filha! Eu não desejo mais ver esse indivíduo depois da atitude que assumiu
para contigo... Terminou a senhora suspirando.
Anatólio quis dizer qualquer coisa, mas recebeu de sua mulher, por debaixo da mesa, uma leve cotovelada que o fez
calar-se. Lôlo procurou tranqüilizar a sogra: -- Querida mãe, tu és suspeita! Larissa, por exemplo, aprova incondicionalmente o Barão e aplaude o projeto de Valéria.
-- Não me fales de Larissa, por favor! É a única culpada de tudo, da entrada de Valéria nesse infortúnio. Sob proteção dela começou esse namoro naquele infeliz e
horrível ninho de corujas. Lá em baixo, na Itália, ela favoreceu o casamento. E agora minha filha tem que levar sua existência ao lado desse endemoniado. Depois
de não a desejar ver durante cinco anos, e, durante esse espaço de tempo lhe ter sido talvez cinqüenta dúzias de vezes infiel, ele regressa! Não acham simplesmente
tocante que esse homem ainda se lembre de que tem aqui uma esposa? A Senhora Samburoff queria ainda, evidentemente, dizer alguma coisa, mas foi interrompida por
um incidente desagradável. Sobre sua cabeça, vindo de fora, voejava alguma coisa que se prendeu nos seus cabelos. Ao grito nervoso da velha dama, todos se precipitaram
para ela, e viram um morcego que se esforçava por libertar-se, tímido, e batia as asas. Rapidamente resolvida, Lolo tomou de um guardanapo e cobriu o animalzinho
com ele. Pedindo a Anatólio que lhe passasse uma tesoura, livrou a sogra do morcego e de um bom punhado de cabelos. -- Matem esse animal nojento! Gritou a senhora
fora de si. -- Por quê? O pobre animal não é culpado! Disse Lolo desdobrando o guardanapo e dando liberdade ao morcego. Lolo sabia que esses animais se aninham
nas velhas árvores, mas até então nunca haviam invadido a casa. -- Não será isso um castigo que Pawel e Sir Gerald mandaram pelas injúrias?! E a essa lembrança
só a custo pôde conter uma risada.
-- Comovida, Valéria cruzou os portais da casa que há cinco anos abandonara tão impetuosamente. Os cinco anos de provação e sofrimento tinham passado, e o seu amor
nunca tinha se apagado de todo, renascia. Ao pensamento de que veria outra vez o esposo e de que agora o teria ao seu lado para sempre, o seu coração pôs-se a pulsar
violentamente. Com uma fogosa diligência, entregou-se ela à limpeza da casa, o que deveria demonstrar-lhe que não era apenas ao homem que ela amava. Precisava dar-lhe
a compreender que ele precisava, primeiramente, conquistar o direito de amá-la. Queria mesmo ser, de futuro, diferente para com ele. Amável e agradável, porém, retraída,
queria ela ser, para que ele não pudesse dizer que o perturbava em seus trabalhos. Baseando-se nisso, preparou-lhe o quarto de dormir ao lado do escritório. Boris,
entretanto, conservou consigo. Lolo sorriu quando viu isto, mas não disse nada, e, diligentemente, pôs-se a auxiliar a cunhada. E o tempo correu veloz. Certa manhã,
Valéria recebeu do esposo, um telegrama de Berlim, no qual lhe comunicava que, dentro de dois dias, a primeiro de outubro, pois, às seis horas, pretendia estar em
S. Petersburgo. Valéria empalideceu quando se viu tão próximo do encontro. Parecia-lhe agora, que o homem que vinha ao seu encontro, era um outro, diferente daquele
que conhecia, e que lhe seria impossível, ou ao menos difícil adaptar-se a esse novo homem. O seu coração, todavia, rejubilava e ficaria, agora, com ela. Toda a
casa agitou-se. Enfeitaram-se as portas com festões de plantas. Valéria deu os últimos retoques nos apartamentos do esposo e combinou com o cozinheiro o seu cardápio,
que deveria ser puramente vegetariano. Admitia, e com razão que Rothschild, durante os seus estudos na Índia não se alimentara de carnes. Especialmente satisfeitos
mostravam-se o velho Sawely e Boris. O menino e o ancião tinham-se tornado ótimos camaradas. Sawely contavalhe intermináveis aventuras da juventude do Barão, e fazia
o coração da criança pulsar mais fortemente. Lolo quis ir à estação para cumprimentar o primo, e Larissa deliberou acompanhá-la. Anatólio, po-
rém, só aderiu ao grupo depois de intermináveis rogos. Dispôs-se então a levar consigo o pequenino Boris. O primeiro
de outubro tinha chegado! Valéria ocupava-se ainda com sua toalete quando Lolo e Anatólio chegaram para levar Boris. Pensativa e nervosa, Valéria vestiase. Dispensando
a criada, dirigiu-se ao espelho. Contemplou-se inspecionando-se detidamente. Queria saber se ainda era bela, suficientemente bela para ser amada. A imagem que do
espelho a fitava, tranqüilizou-a. O rosto claro, onde nadavam os escuros olhos, eram ainda um feliz contraste com os cabelos dourados. De uma esbelta estatura, parecia
ainda de uma jovem rapariga. Vestia um leve vestido singelamente elegante, que não lhe permitia levar ao pescoço mais do que um pequeno colar de pérolas miúdas.
Ao cinto prendeu, entretanto, um ramalhete de hortênsias azuis. Tudo assentou-lhe esplendidamente bem. E suspirando profundamente, Valéria assentou-se no divã. --
Por que estou tão nervosa? Não me rebaixou e não me humilhou esse homem? Contudo tremo ao lembrar-me de que irei vê-lo de novo e sofro, por não poder demonstrar-lhe
que já de há muito lhe perdoei tudo, e que apenas o meu orgulho me faz silenciar... O pequeno relógio sobre a lareira bateu seis horas. Ele chegava agora. Ergueu-se
rápida e desceu ao salão de onde, através da janela da esquina, podia ver um grande pedaço da rua. Os postes estavam acesos, e uma fina chuva caia. Era o legítimo
e verdadeiro tempo outonal em S. Petersburgo. Junto ao portão da casa, estavam Sawely e o velho porteiro, prontos para saudarem o senhor. Agora via ela dois autos
que, rápidos, se aproximavam, e pararam junto ao portão. Valéria viu apenas quando Sawely avançou para o primeiro auto e abriu sua porta para dele sair a figura
elegante, tão sua conhecida, que cumprimentou amavelmente os dois servos e enveredou célere pela entrada. Ela se afastou da janela e quis ir ao encontro do esposo,
do qual já ouvira a voz. Deu alguns passos, entretanto, e parou... Não viu, pois, quando Anatólio, com Boris, Lolo e Larissa, desceram do carro, nem quando, do segundo,
desceu o secretário do Barão, seguido do seu advogado.
Quando Rothschild desceu do vagão, emocionou-se por ser saudado, ali mesmo na gare, pelos seus parentes. O seu
olhar caiu imediatamente sobre o pequenino Boris a quem ergueu impetuosamente e apertou com força nos braços. Só depois cumprimentou Larissa e Lolo, e abraçou Anatólio.
Quando este sentiu o forte aperto de mão de Rothschild, ouviu a voz do Barão, que se lhe dirigia: -- Agradeço-te por teres vindo! Subitamente o moço sentiu-se reconciliado,
fez-se alegre e prazenteiro. Felizes tomaram os carros para se dirigirem à casa. Entrando, Rothschild despojava-se rápido do capote, ansioso por atravessar o salão
e encontrar a jovem esposa. Então teve-a à frente dos olhos, pálida, com os olhos semi-cerrados, escorando-se à porta. No momento seguinte, tomava-a nos braços e
cobria-a de beijos. -- Muito obrigado, Valéria! Mil vezes obrigado por Boris. Que presente real me ofereces para recepção... Valéria consentiu sem resistência aos
seus carinhos, mas não os retribuiu. Os outros membros da família entravam naquele momento no salão e Valéria esforçou-se por ocultar a sua emoção. O jantar ia ser
servido. Rothschild conduziu a esposa à mesa. Lolo sentia-se no sétimo céu. Anatólio e Larissa, igualmente, não continham o seu bom humor. Apenas Valéria calava-se
e, de quando em quando, lançava um furtivo olhar ao esposo. Notava-o modificado, um pouco mais sério do que dantes. Era pálido, noutros tempos, agora estava mais
magro e com a tez quase bronzeada. Nos seus olhos brilhava uma nova expressão de energia e de força de vontade. No dedo mínimo brilhava um anel de rubi entalhado,
o anel com que fora selada a misteriosa carta que encontrara sobre sua escrivaninha. Quando serviram o champagne, ergueu Rothschild a sua taça e bebeu à saúde da
esposa e dos seus convivas. Agradeceu também a Valéria o cuidado que pusera no selecionamento dos pratos vegetarianos. -- Com o calor que faz na Índia é difícil,
e até perigoso, empregarse a carne! Absorve-se geralmente alimentos mais leves e em menor porção. Explicou.
Depois do café os convivas se despediram e Rothschild subiu com Valéria e Boris aos apartamentos da esposa. O menino
subiu-lhe ao colo e abraçou-o tão desembaraçadamente como se de há muito se conhecessem. O velho Sawely anunciou a chegada da bagagem. Rothschild ordenou-lhe abrisse
as malas. Esta interrupção sustou a conversa entre os cônjuges, e Rothschild ergueu-se. -- Desculpa-me, Valéria, se me retiro por alguns minutos. Preciso separar
das malas alguns objetos, nos quais os criados não podem tocar. -- Cearás comigo ou desejas que eu mande alguma coisa ao teu quarto? -- Obrigado. Eu agora não ceio
mais. Talvez tome dois ovos quentes e uma xícara de chá. Assim que tiver guardado o mais importante virei, se me permitires, tomar o chá aqui. -- Pois não! Disse
Valéria enrubescendo sem o olhar. Quando Rothschild entrou no novo dormitório, que lhe fora arranjado, soltou uma gostosa gargalhada. -- Ah! O meu novo dormitório!
Ter-lhe-ia sido fácil arrumá-lo?... Quer me demonstrar, certamente, que não tem necessidade do marido, e que não me perdoou as palavras de outrora. Discretamente
dáme a entender que preciso tornar-me primeiramente noivo, antes que possa ser esposo. Ela tem razão! Depois de fazer uma vida de ermitão por cinco anos, preciso,
realmente, aprender a ser namorado, embora a ache tão bela quanto anteriormente, e a ame ainda do mesmo modo. Ordenou levassem os caixotes com os objetos mágicos
ao seu dormitório e procurou as chaves. Nisto, levanta-se o reposteiro e o pequeno Boris, de camisola e sapatinhos vermelhos, aparece no limiar. -- Mamãe mandou
vir aqui para te dar boa-noite. Disse ele correndo ao encontro do pai. Rothschild, que se voltara rápido, ergueu o menino nos braços e foi sentar-se com ele junto
da lareira. E enquanto a criança tagarelava, o pai contemplava atentamente. Satisfeito via o quanto eram belas
as suas feições. E passando amavelmente as mãos pelos seus cabelos crespos e negros, fitava-lhe os grandes olhos.
Beijou-o então. E no seu íntimo sentiu-se erguer-se um quente sentimento, inteiramente novo para ele e que julgou ser o amor paternal, o amor que durante tantos
séculos vivera no coração do Conde Rindolfo e que só agora nascia no seu. Involuntariamente ergueu Rothschild os olhos para o retrato do velho Conde, chamando para
ele, a atenção do menino. -- Quem é o velho senhor? Perguntou Boris. Agrada-me muito. -- É o teu vovozinho. Queres dar-lhe um beijo? Disse Rothschild sorrindo
e erguendo o menino. Este riu-se também e osculou a mão do Conde Rindolfo. Envolvendo Boris em sua capa de viagem, Rothschild ainda deixou que ele palreasse por
alguns instantes. E quando as pálpebras da criança começaram a pesar, levou-o para seu quarto, junto à alcova de Valéria. Já deitado, Boris perguntou de repente:
-- Devo orar por ti, papai? Mesmo depois que regressaste? -- Sim, filhinho. Deverás orar, agora e sempre, por mim! Retrucou Rothschild comovido, abençoando-o. Pensativo
e cuidadoso regressou ao seu quarto, indo sentar-se junto da lareira. Até esse dia, o seu filho não lhe surgira ao espírito de nenhum modo especial. Agora, em poucas
horas, Boris o cativara totalmente e um forte laço lançara em torno do seu coração. Na escola de Sir Gerald, aprendera a levar a sério seus deveres. Essa criança,
que lhe fora dada por Deus, não era apenas uma alegria para os pais, mas uma grande responsabilidade para eles. Não bastava amar a Boris. Era preciso fazer dele
um homem de verdade. Não era tarefa fácil essa de formar um coração tomado assim de pequenino e resolver os problemas dos quais chegava, sem dúvida, saturado, à
atual existência. Estaria ele à altura dessa tarefa? De nada valia dar a vida um ser, para depois abandoná-lo aos seus próprios instintos. Ele jurou a si mesmo lembrar-se
sempre dos seus deveres, pondo o seu saber e a força, inteiramente, à serviço dos seus propósitos. Se, por ventura, al-
guma vez não soubesse resolver por si mesmo, consultaria o seu mestre. Lembrou-se então do presente de Sir Gerald.
Erguendo-se rápido, abriu sua mala e retirou dela o estojo de couro, que tinha a forma quadrangular. Com uma pequenina chave de ouro, abriu o estojo e encontrou
logo em cima uma folha de papel, sobre a qual pode reconhecer a letra tão conhecida de Sir Gerald. Seguindo as instruções, deveria guardar o estojo num armário da
parede. Sir Gerald recordava-lhe que justamente naquela sala havia um nicho nas condições exigidas. Ele encontrou a chave ainda metida na fechadura, como a deixara.
Desocupou o armário e colocou nele o estojo, que ali ficava muito bem. Acabava justamente de fazer esse serviço e prestava-se a desencaixotar alguns objetos quando
Sawely apareceu para comunicar-lhe que já eram dez horas. O chá estava pronto e a senhora esperava-o no salão. Rothschild quase deu uma risada. Imerso no seu trabalho
esquecera a esposa no primeiro dia do seu regresso. As pressas lavou as mãos e saiu do quarto. Como há cinco anos, quando o casal tomava o seu chá, também hoje a
mesinha com o brilhante samovar estava junto do divã. Sobre uma bandeja, viu duas chávenas, ovos quentes e torradas. Valéria, que substituíra o seu vestido por um
formoso negligê, parecia triste e acanhada. Rothschild compreendeu que ela, nesse primeiro encontro sob quatro olhos apenas, devia sentir-se um tanto oprimida. A
separação, durante aqueles anos, os alheara reciprocamente, e ela não sabia que atitude tomar à frente dele. Do outro lado da mesinha havia uma cadeira destinada,
evidentemente, a Rothschild. Ele, entretanto, parecera não notá-la, e fora assentar-se no divã, ao lado de Valéria. -- Perdoa-me por ter-te feito esperar! Principiou
ele. Mas eu estava ocupado com a arrumação da minha bagagem. Desejo, mais tarde, organizar, na biblioteca, um pequeno laboratório, e mostrar-te muita coisa interessante.
Com a mão ligeiramente trêmula, pegou ele a chávena, e então fitou Valéria com aquele olhar que, através dos
séculos, tinha feito tremer os corações femininos. Quero iniciar-te nos meus trabalhos, insuflar-te interesse
e amor pelo mundo de além, que nós costumamos ver de tão diferente maneira. -- Enganas-te se pensas que eu seja, ainda hoje, a mesma de há cinco anos. Sei agora
muita coisa nesse domínio. Aprendi a compreender o ilimitado mundo invisível. Se tens o desejo de instruir-me, encontrarás em mim uma discípula aplicada. -- Agradeço-te
pela resposta. Ser-me-á um prazer instruir-te. A palestra pareceu morrer aqui. Valéria falara com brandura, sem denunciar hostilidade ou frieza. Contudo parecia
existir um intransponível muro invisível entre ambos. Especialmente Valéria se sentia sem segurança. Não somente o sentimento de que ele a amava menos do que ela
a ele, a maltratava, como também temia, demonstrando-lhe o seu amor, ultrapassar os limites que ele talvez tivesse traçado. O seu coração contraiu-se magoado. Ele
já não era Paulo, o herói dos quartos misteriosos de Montinhoso: era correto e tranqüilo. Pensou então que, naquele tempo, muito embora ele a lançasse na miséria,
ela vivera horas mais felizes do que jamais aqui. Naqueles tempos eles se pertenciam de corpo e alma. Agora ela apenas tinha a sensação martirizante de tê-lo perdido.
O corpo era o mesmo, mas a alma era outra. Enquanto Rothschild, silenciosamente, tomava o seu chá, Valéria pensava em Montinhoso, em Paulo, nos seus trajes maravilhosos,
no fogo dos seus olhos e nos seus beijos ardentes que ela julgava sentir ainda. Involuntariamente estremeceu e ergueu-se. Uma mão fria e forte, porém, agarrou-a
e o seu olhar admirado encontrou-se com o do esposo. Com o rosto pálido, ele se curvava para ela. -- Expulsa de ti esse passado infeliz, que ainda te prende. Não
invoques os dias traidores que nos ameaçam devorar. Não te manches com essas tétricas recordações. Paulo de Montinhoso foi um criminoso sem escrúpulos. Não deves
mais pensar nele. Eu te proíbo. Expulsa essas lembrança de tua mente, Valéria. Ele erguera-se e o seu olhar parecia cair como um raio luminoso sobre Valéria, interpenetrando-a.
-- Quem és tu que podes ler os meus pensamentos e conhecer as agitações de minha alma? Disse ela perturbada, levando
a mão ao coração. -- Consegui certo grau de clarividência. E as cadeias invisíveis que, através dos séculos vêm nos unindo, facilitam-me o acesso a tua alma. Sê
tranqüila e nada temas, porém! Disse ele mansamente, correndo as mãos de leve sobre os cabelos dela. Com esse contato, Valéria sentiu um agradável calor perpassando-lhe
o corpo. Rothschild sentou-se de novo. -- Desejaria dizer-te ainda alguma coisa sobre as nossas relações recíprocas. Ainda guardas, em teu coração, um sentimento
de ojeriza para comigo. Eu o compreendo e perdôo. Do teu ponto de vista, tens toda a razão, quando supões que eu já não te ame mais. Contudo, eu te amo ainda, com
toda a minha alma, mas de uma maneira diferente da anterior. Interpretas esse amor como um sentimento de indiferença para contigo. Entre nós, entretanto, ainda existe
uma coisa: o ininterrupto fluido de nessas almas. Anos de separação nos alhearam mutuamente, e será preciso algum tempo para que se restabeleçam as antigas relações
entre nós. Permita-me também que te peça perdão pelas duras palavras com que te ofendi. A ira é má conselheira. Sinto que amas o outro, Paulo e não queres saber
de Pawel Rothschild, que baniste do teu coração. Espero porém, que esse banimento não seja duradouro. Farei tudo para reconquistar-te e fazer-te feliz ao meu lado.
Por isso suplico-te, Valéria: quando já não sentires esse vazio entre nós, comunica-me. Aguardarei impaciente esse dia. E quando Rothschild viu lágrimas nos olhos
da esposa, atraiu-a para si e disse-lhe baixinho: -- Se alguma vez tiveres necessidade de aliviar o teu coração, por meio de uma explicação, vem a mim. Quanto mais
depressa encontrarmos o caminho que nos conduz ao encontro um do outro, tanto melhor. Mas agora sobe a repousar. Nós ambos necessitamos de descanso.

16
A RECONCILIAÇÃO Em seus aposentos, Rothschild assentou-se, exausto, numa cadeira. Dominara até então a sua emoção. Quando, porém, Valéria despertara nele as recordações
de Montinhoso, fora como cair num vórtice. Como uma morna correnteza vieram as lembranças do passado, que ele julgara dominadas, e que lhe pareceram outra vez tentadoras.
Um ilimitado desamparo se apoderou dele. Ergueu-se depressa, lavouse com uma essência reconfortante, tirou uma cruz de ouro da mala e orou. Somente quando se sentiu
inteiramente reconfortado abandonou a postura genuflexa. Parecia-lhe que uma quente mão pousava-lhe sobre a cabeça e ouviu estas palavras murmuradas junto ao seu
ouvido: -- Estou satisfeito contigo, meu filho! Rothschild estremeceu. Seu mestre velava sobre ele, e assistira-o naquele momento difícil. E tal acontecimento lhe
trouxe tão veemente a lembrança de Sir Gerald, que resolveu-se a examinar melhor os presentes dele. Fechou todas as portas, abriu o nicho da parede e aprofundou-se
na contemplação do aparelho. Este se compunha de um disco negro de metal, com um funil redondo ao centro, que parecia muito mais profundo do que a grossura da moldura
e brilhava com todas as cores. Sobre esse funil encontrava-se um mecanismo semelhante ao de um relógio e que tinha letras móveis. Ao lado, viu uma pequena manivela.
Abaixo do funil havia uma pequena bola verde. A indicação, escrita por Sir Gerald, era nos seguintes termos: "Apaga todas as luzes, distribui as letras de tal modo
que elas formem as palavras infra indicadas, bem como as fórmulas que deves pronunciar antes de acender a bolinha verde. Então vira a bolinha sete vezes". Rothschild
precedeu conforme a prescrição e, com espantosa velocidade,
o aparelho começou a girar. O funil fazia-se cada vez mais profundo e enchia-se de imagens escuras, dilacerados
por raios. Um golpe frio de vento bateu no rosto de Rothschild, trazendo-lhe aos ouvidos um rumor semelhante ao das frondes batidas pelos ventos. E aquele ar foi
aos poucos se aquecendo e difundindo um agradável perfume. Admirado observava o Barão estes sucessos. O funil parecia agora de infinita profundidade. Súbito, as
escuras nuvens foram sendo, aos poucos, substituídas por outras de mansa claridade e que alumiaram o quarto com singular luminosidade. Aos poucos desaparecia o aparelho
todo, a parede, e tudo ao seu derredor, para dar lugar a uma imagem maravilhosa. Rothschild via o terraço da muito conhecida casa de Sir Gerald à sua frente. À mesa
estavam sentados Sir Gerald e Tonilim, que lia um livro. -- Prezado mestre! Escapou dos lábios de Rothschild, involuntariamente. -- Boa noite, meu filho! Disse
Sir Gerald chamando a atenção de Tonilim com um gesto de mão. Evidentemente, também este reconhecia Rothschild, como ele o reconhecera. -- Vê quão próximos estamos
um do outro, embora o Oceano nos separe! Disse Sir Gerald. Quando eu quiser falar contigo, ouvirás um acorde melodioso soar no aparelho. Então aproxima-te, e poderemos
conversar! -- É tudo isto realidade, ou estarei sonhando? -- Tudo é realidade. Não posso, por ora, iniciar-te nos segredos desse aparelho, mas não está longe o dia
em que um sábio o invente. Seus princípios são, aliás, semelhantes aos da radiotelegrafia, ou radiofotografia. -- Como poderei vos agradecer por tudo isto e por
me haverdes proporcionado os meios de chamar-vos quando tiver necessidade? Ainda há pouco pudestes verificar quão fraco ainda sou... -- Tudo isto é muito natural,
e não deves te desencorajar. Precisas aprender a entrar em contato com o homem sem te submeteres às
suas influências. Por isso insisti para que voltasses ao mundo e não te entregasses à vida de ermitão. Deverás
ser indulgente para com as fraquezas dos homens e estar sempre pronto a auxiliá-los e amparálos. Somente quando as ondas de todas as paixões passarem por ti e não
as temeres mais, poderás dizer: Venci o animal do homem! Acenou-lhe uma despedida e sorriu. A imagem empalideceu, toldou-se em fumo e névoa e desapareceu. O aparelho
estava parado. Comovido, porém feliz e satisfeito, Rothschild deitou-se. No dia seguinte começou a ocupar-se com seus negócios. Com o auxílio de seu velho e experiente
advogado, conseguiu descobrir as falhas existentes na organização de suas propriedades. Dispensou os culpados e restabeleceu a ordem. Não esqueceu, igualmente, de
atender aos deveres de cortesia. Foi, na companhia de Valéria, a Pawlosk, em visita aos Bakulim, visitou Anatólio e sua família, e ainda alguns parentes e conhecidos
íntimos. Como o mundo aos milionários muita coisa perdoa, essas boas pessoas pareceram haver esquecido tudo quanto, há cinco anos, tinham dito do Barão, antes da
sua partida. Os maiores gritadores estavam quietos, e se sentiram no sétimo céu quando viram a Rothschild, e o visitaram com prazer, a miúdo. Embora Rothschild estivesse
intimamente revoltado com a falta de caráter dos homens, recebia-os cordialmente. De sua parte, Valéria, pelo contrário, recebia-os obrigatoriamente. Rothschild
organizara, na biblioteca, um pequeno laboratório, onde guardava os presentes de Sir Gerald. Aparentemente parecia que tudo tomara sua feição antiga. As visitas
sucessivas, porém, sofreram um arrefecimento, quando evidenciou-se que o casal não se mostrava disposto a oferecer recepções e, afora isso, comparecia tão poucas
vezes ao teatro. Apenas às horas determinadas para as visitas, apresentavam-se uns poucos, às vezes pessoas que Rothschild nunca havia visto e que agora afirmavam
tê-la visto aqui ou ali, e o estimavam. Esses visitantes eram-lhes desagradáveis, contudo ofereciam-lhe o ensejo de realizar as proposições que Sir Gerald lhe dera.
Muitos os procuravam para satisfazer a curiosidade. Sobre a viagem e a personalidade do Barão, corriam as mais ex-
travagantes versões. A fonte de uma delas, era o jovem marujo que observara-o à bordo, quando conjurava a tempestade
no Oceano Índico. Essa narrativa não falhava, naturalmente, em seu efeito, tanto mais que, por esse tempo, Rothschild já tinha salvo da morte algumas pessoas de
suas relações e que a ciência médica desenganara e era tido como um feiticeiro. Salvara da morte o filho de seu porteiro, que fora mordido por um cão hidrófobo,
e curara a um paralítico. De que modo essas notícias tinham ganho publicidade, ninguém podia dizer. Mas envolviam Rothschild numa atmosfera de lendas inverossímeis.
O Barão, entretanto, parecia não dar tento aos boatos. A sua própria vida lhe proporcionava o suficiente conteúdo a não participar das conversas dos outros. Cativara
completamente o coração de seu filho. Contava-lhe lendas formosas e tomava parte nas suas brincadeiras. Entretanto, soubera, igualmente, acostumar a criança a uma
cega obediência. Ainda não se explicara com Valéria. Persistiam, entre eles, as mesmas tensas relações. Até certo ponto, Valéria o temia. Sabia que ele podia ler
o seu pensamento, e então fugia-lhe sempre que possível. Na sua presença, pois, esforçava-se por pensar em coisas triviais e às vezes ele se revoltava com o fingimento
da esposa. Com prazer teria lhe ensinado alguma coisa do seu saber. Mas não o podia fazer. Somente agora podia dar valor ao trabalho dos missionários, que renunciavam
à ascensão aos mundos melhores e que, sem recursos e apesar de tudo, põem a sua vida à disposição do esclarecimento das massas, pelo que nunca recolheram mais que
ingratidão, escárnio e desprezo. Valéria, por seu lado, esperava uma manifestação amorosa de seu esposo, e não reconhecia a paciência que ele lhe dispensava. Não
podia saber quão pesado se tornava para Rothschild essa paciência. E para este, o seu treino no campo da paciência, fazia-se e lhe fora imposta justamente através
da esposa. E assim corriam os dias. Valéria recebera um convite dos Bakulim para ir a Pawlosk. Larissa, que tinha deslocado um pé, desejava ver a afilhada. Com a
carta na mão, entrou no laboratório de Rothschild indagando se poderia, por dois ou três dias, ausentar-se do lar.
-- Não levarei Boris comigo, pois se encontra um pouco resfriado. Tu cuidarás dele, pois não? Rothschild concordou,
prometendo ir buscá-la e aproveitar o ensejo para fazer uma visita à enferma. Valéria deveria telefonar-lhe quando desejasse regressar. Na noite seguinte, estava
Rothschild no seu gabinete de trabalho a ordenar as folhas de um manuscrito quando, de repente, ouviu um leve badalar de sino, partindo do nicho da parede. Admirado
aproximou-se do local, abriu o armariozinho e pôs o aparelho em movimento. Um susto tremendo teve quando, em lugar do castelo indiano viu, em chamas, a vila do major
Bakulim, em Pawlosk. Grossas nuvens de fumo e enormes labaredas envolviam a casa toda, e penetravam já no quarto da torre, que Valéria costumava habitar quando visitava
os Bakulim! O barulho feito pelos moradores despertara Valéria. Levemente vestida, correra ela a janela, a obter ar, pois o quarto enchia-se de fumo. Meio desfalecida
de susto, quebrou ela, com o castiçal, as vidraças, sem saber que assim mais alimentava as chamas. Então, de fora, o vento, fortíssimo, levou-lhe as labaredas quase
que ao rosto. Rothschild emitiu um grito abafado, quando viu a esposa em risco de vida. O que deveria fazer? Ficar aqui ou correr para lá? Um brado angustiado de
socorro, partiu então de seus lábios. -- Corre lá, salva tua esposa e volta imediatamente, mas cala-te! ouviu uma voz à distância, voz conhecida a ordenar-lhe.
A visão desfez-se no aparelho. Tão depressa quanto possível, desceu as escadas, sem que encontrasse nenhum dos criados, e tomou o primeiro auto que passava atirando-se
exausto sobre as almofadas. -- Para Pawlosk, rápido, rápido! Tão depressa quanto puderes e não terás nada a perder... Disse ao chauffeur dando-lhe o endereço. Como
o vento, o auto corria pelas ruas da cidade alcançando, em breve, as estradas. Para Rothschild, os minutos pareciam horas. -- Mais depressa, mais depressa! replicava
o Barão. Em louca disparada, corria o auto na escuridão da noite. Já se via Pawlosk, a rua principal, aqui... a travessa, mais uma curva forte,
e o carro parava brecado por segura mão, junto à compacta multidão que olhava horrorizada a vila em chamas. Rothschild
saltou para fora, rompeu, sem consideração nenhuma, a multidão, e chegou à casa sinistrada. Sem refletir um segundo, penetrou por meio das chamas e do fumo em direção
à escada, que conduzia à torre. Os habitantes da vila haviam se acomodado mais cedo do que de costume, pois que Larissa necessitava de descanso. O fogo irrompera
na cozinha, que ficava numa das dependências da vila. Uma das criadas havia tirado a cinza do fogão sem dar atenção às brasas que ainda restavam. Estas atearam fogo
à cesta de cinzas, que era de um tecido muito apertado e encontrava-se muito seca. Na cozinha as labaredas achavam farto alimento. Pelo fumo e pelo estalar do fogo,
despertaram, primeiramente os criados, que deram o alarme. Felizmente o telefone não fora alcançado e o major Bakulim pudera por-se em contato com os bombeiros que,
em poucos minutos, encontravam-se no local do sinistro. A cozinha estava tomada pelo fogo, que começava a atingir a torre e o telhado do edifício. Depois de retirar
sua esposa da casa, mandou o major uma das criadas ir ter ao quarto de Valéria, a fim de despertá-la e auxiliá-la. Mas a escada já estava cheia de fumaça, de sorte
que a criada não ousou transpô-la e cuidou de salvar, antes, os seus próprios haveres. Só os gritos dos bombeiros despertaram Valéria. Rápida vestiu-se e dirigiu-se
à porta. Mas nem bem abriu-a, uma nuvem de fumaça veio-lhe ao rosto, obrigando-a a fechar a porta de novo. Na tentativa de encontrar socorro por outro lado, arrebentou
as janelas. O major, que recolhera à esposa à casa de um vizinho, voltara em busca de Valéria. O tinir das vidraças partidas, levou-o a olhar para o alto, onde viu,
nas janelas da torre, o rosto aflito de Valéria. Tomou então as providências para a salvação da infeliz. A escada não ardia ainda; mas estava invadida pela fumaça.
Tocadas pelo vento, as chamas já tomavam uma parte do corredor. A fumaça, compacta e asfixiante, não deixava os bombeiros passarem. Pela parte exterior, não foi
possível alçar uma escada: as labaredas envolviam, por todos os
lados, a torre. O major estava quase desanimado. Ele próprio tentou passar através da escada, para o telhado. À
janela, porém, já não via Valéria. Acenavam-lhe e gritavam: ela deveria saltar para ser colhida por uma rede que, em baixo, haviam esticado. Mas embalde... Valéria
não respondia. Quase que sem sentidos, ela caíra junto da janela e orava. Os brados que subiam de fora, ela quase já não os ouvia mais. Em seus sentidos, apenas
a lembrança do esposo e do filho demoravam. De repente, estremeceu. Um violento golpe de ar frio alcançou-a. Ganhando alento, ergueu a cabeça e não quis acreditar
em sua vista, quando viu Rothschild muito pálido, na porta. Não teve tempo para refletir. Rapidamente ele se aproximou, ergueu-a, e, nos braços firmes, arrebatou-a
pelo corredor, descendo através do fogo e do fumo, sobre os degraus oscilantes e abrasados da escada. Ninguém observara a entrada de Rothschild na casa. A confusão
aumentara. Finalmente, um bombeiro decidira-se, mais uma vez, tentar salvar a moça. Chegara somente ao pé da escada, porém, quando viu, através da fumaça e das chamas,
um homem que, correndo, descia as escadas, trazendo nos braços a senhora da torre. Como um tufão, passou por ele e, na rua, foi entregá-la, salva, a um outro bombeiro.
-- Pawel! Graças a Deus... Tu salvaste Valéria... O Major Bakulim vira Rothschild e correra para ele. Nesse momento, porém, ruía uma ala lateral, e a atenção do
Major desviou-se do Barão. Rothschild aproveitou-se desse momento para, conforme indicação de Sir Gerald, desaparecer no meio do povo. Tomou seu auto e, às pressas,
regressou a S. Petersburgo. Quando o Major procurou o Barão, este tinha desaparecido. Debalde procuraram-no, e finalmente espalhou-se o boato de que ele se aproximara
demais do prédio em chamas e fora atingido pelas vigas que caíam, ficando sob os escombros. A massa popular e os bombeiros não o conheciam, mas o Major e a criadagem
afirmavam tê-lo visto distintamente. Transportaram Valéria para o local em que se encontrava Larissa, e onde a moça retomou a si. Entrementes os bombeiros tentavam
dominar o fogo. Depois de meia-hora, tinham conseguido extinguir parcialmente o incêndio, e
puderam iniciar as buscas de Rothschild que, ao se supunha, perecera sob os escombros. O major lamentava profundamente
a morte desse homem que tanto prezava, que não foi encontrado. Enquanto em Pawlosk procurava-se, inutilmente o seu cadáver, depois de uma louca corrida, quase que
totalmente exaurido, Rothschild chegava a sua casa. A criadagem dormia, e ele pôde chegar aos seus aposentos sem ser visto. Como um embriagado, avançou até a poltrona,
onde se assentou. Sentia-se muito fraco, e com as mãos em fogo. Só então notou que tinha as mães inteiramente recobertas de bolhas de queimaduras, e que o próprio
cabelo trazia chamuscado, a roupa suja e em parte destruída pelas chamas. Depois de descansar um pouco, retirou de sua mala algumas pomadas e essências, com as quais
friccionou as mãos e o rosto. Depois tomou um copo de vinho e tocou a campainha, chamando Sawely, Alguns minutos se passaram antes que o velho viesse. -- Sim, meu
velho, estou em ótimas condições, pois não? Quis experimentar uma nova mistura química no laboratório e queimei um pouco as mãos... Explicou sorrindo. -- Mas senhor,
com essas vossas experiências, podereis sofrer ainda um grave acidente! E o vosso robe de chambre novo, vede como está! Meu Deus! Meu Deus! Como se tivesse limpado,
com ele, a chaminé... Respondeu Sawely com ligeira admoestação, porém respeitosamente. Quando encontrou o banho posto, Rothschild deitou na água algumas gotas de
uma essência que a deixaram com uma leitosa cor. Depois do banho, sentiu-se reconfortado e voltou satisfeito ao seu quarto. Sawely deveria trazer-lhe qualquer coisa
para comer. Sawely, porém, demorou-se muito, de modo que Rothschild teve que premer de novo a campainha. Então, um tanto embaraçado regressou o criado. -- Acabam
de telefonar de Pawlosk, porém não pude entender nada.
Parece que, em virtude de um incêndio, todos perderam o juízo... Rothschild lembrou-se de Sir Gerald: -- O que
houve? Dize-me, o que te disseram pelo telefone? -- A vila do major Bakulim foi devorada pelo fogo. Dizem que não morreu ninguém e que apenas as roupas da patroa
ficaram perdidas. Pedem que lhes mandemos outras. Mas vós, senhor, ao que dizem, morrestes no desastre. Os bombeiros não puderam encontrar, até agora, o vosso cadáver.
Provavelmente enlouqueceram... -- Dize-lhes que estou com vida e com saúde, e que podes provar que não me afastei de casa. -- Foi o próprio senhor major quem telefonou,
e quando eu disse que viria dar-vos a informação a respeito e dizer-vos que a senhora baronesa estava salva, e que não era preciso procurar-vos lá, pois que estáveis
aqui, e acabáveis de sair do banho, o senhor major se exaltou comigo, disse-me que me retirasse do aparelho e chamasse outro criado que não estivesse embriagado.
Eu que nunca, em toda a minha vida tomei um trago de vodka, hei de estar embriagado? Não, senhor! Fazei-me um favor: ide vós mesmo ao telefone Disse o velho Sawely
profundamente magoado com a observação do major. Rothschild riu-se francamente: -- Tranqüiliza-te meu velho! Irei eu mesmo falar ao major, Sorridente aproximou-se
do aparelho e colocou o fone ao ouvido. Boa noite, Piotr Petrowistch! Disse amavelmente. O meu velho Sawely acaba de dizer-me, muito emocionado, que procuras
o meu cadáver entre os escombros da tua vila. Como foi que tiveste essa idéia genial? Não tinha me lembrado ainda de morrer, e, pelo contrário, tenciono ainda viver
muitos anos, para alegria minha e de meus amigos! Dizeme, agora, como estão Larissa e Valéria, e como se originou o sinistro? -- Mas, com todos os demônios!!! Tu
és então um diabo ou podes te dividir em dois? Eu e minha criadagem temos certeza de termos visto a ti aqui... E, graças a Deus não estamos embriagados! Disse Bakulim
irritado!
-- Desculpa-me, caro Piotr mas não posso, sinceramente, dizer-te a quem viste. Apenas posso afirmar-te que não
arredei o pé de casa. Fazia, justamente, no meu laboratório, uma experiência que falhou. Queimei-me com isso, ligeiramente, e sujei-me bastante. Por isso tomei um
banho. Mas, dize-me agora, pelo amor de Deus qual é o estado de tua esposa e de Valéria? -- Minha mulher escapou com um grande susto apenas, e Valéria sofreu um
profundo desmaio, do qual, entretanto, voltou logo, ela sofre fortes dores de cabeça motivadas pela fumaça que quase a asfixiou. Mas não há perigo nenhum, dizem
os médicos. Necessita tão somente de repouso. Manda alguns vestidos para tua esposa, pois os que trouxe se queimaram. -- Eu próprio irei, amanhã cedo, e levarei
tudo. -- Então até amanhã. Contudo eu te vi aqui, senhor feiticeiro... Murmurou Bakulim depondo o fone, porém esquecido de que Rothschild podia ainda ouvir. Rindo,
Rothschild voltou ao seu quarto. Pedindo que o acordassem às nove, deitou-se. Sentia-se inteiramente feliz. O que, naquele dia pudera realizar, pagava com farta
recompensa os seus cinco anos de trabalhos esforçados. X X X Depois de sua conversa com Rothschild, o major mandou suspender a procura do suposto morro e tentou
salvar o que podia ser salvo. O estrago, felizmente, não era tão grande quanto de princípio parecia. Como o corpo principal da casa fosse de tijolos, foi possível
preservá-lo de fogo. Da cozinha e da torre, porém, só restavam as vigas carbonizadas. A vila para o qual a família transladou-se, pertencia igualmente ao major Bakulim,
que a alugava durante o verão. Estava então desocupada, e o major pode instalar-se ali. A emoção sofrida, não deixara Larissa dormir. Logo de manhã, bem cedo, fez-se
ela transportar à sala de visitas, onde esperou o marido. Um pouco fati-
gado chegou, momentos depois, o major, satisfeito por ter podido salvar quase tudo. -- Pelo amor de Deus, Pedro,
dize-me, o que falavas lá em baixo? Que história é essa com o Barão? Não compreendi nada do que falavas com Mascha. Ele esteve presente e pereceu no incêndio? Seria
horrível demais... Que golpe para a pobre Valéria! Depois disso tudo, sinto-me como uma pilha elétrica... -- Sê tranqüila! O mestre feiticeiro vive, e até falei
com ele pelo telefone. Entretanto eu mesmo o vi, quando saiu da torre, trazendo Valéria nos braços. Um minuto depois ruía a escada e me é absolutamente inexplicável
que ela ainda tenha suportado o peso de duas pessoas! Enquanto eu, um bombeiro, e diversos dos criados o vimos aqui, distintamente, o feiticeiro tomava um banho
em sua casa, o que Sawely pode testemunhar. Dou a minha cabeça a cortar, se o demo não esteve metido neste negócio... Terminou Bakulim exaltado. Valéria ao retornar
a si também não pudera conciliar o sono. Recordava-se perfeitamente bem de que o esposo surgira na porta do quarto, a erguera e transportara através do fogo e do
fumo, para fora. Não podia, porém compreender como ele pudera chegar de noite e tão depressa de S. Petersburgo. O seu aparecimento, também, fora tão singular! Todos
esses pensamentos produziam-lhe fortes dores de cabeça e apenas de madrugada conseguiu conciliar o sono. E acordou tarde. Vestindo um roupão de sua tia, saiu a ver
o que sucedera. O major voltara ao local do sinistro e Larissa estava a sós na sala. Larissa temia que o boato da morte de Rothschild, tivesse igualmente, chegado
aos ouvidos de Valéria. Por isso apressou-se em tranqüilizá-la, narrando-lhe os sucessos extraordinários. Valéria empalideceu e calou-se pensativa. De súbito, porém,
atirou-se de joelhos aos pés de Larissa, soluçando. -- É verdade, sim... Ele me salvou, eu própria o vi e o reconheci Não sei como pôde fazer isso... com toda a
certeza com o que aprendeu.
-- Ele aprendeu a dominar forças que desconhecemos, e assim te salvou. Afinal, não foi em vão que ele passou cinco
anos como discípulo de Sir Gerald. Pressentiu o perigo que te ameaçava, e, por aí, podes verificar o quanto te ama. Tu, porém, não és boa para ele! -- Tens razão,
titia... Sou injusta e ingrata, e ele ê tão bom, paciente e condescendente para comigo! Mas eu temo o seu saber! Ele sabe ler os meus pensamentos e, como vimos agora,
pressentir e prever as coisas. Agora compreendo que ele não pode mais ser como outrora. Sou culpada, e desejaria concertar tudo. Mas não sei como fazer... Ajuda-me
titia... Larissa atraiu-a a si e beijou-a: -- Tudo quanto me disseste, poderás consertar, querida filha. Não sejas mais caprichosa e injusta, mas franca e positiva
como o és por natureza. Deixa-o ler os teus pensamentos. Nada tens a ocultar, enfim! Procura compreendê-lo, ser-lhe amiga e companheira. Crê-me, uma explicação franca
é muito melhor do que um falso orgulho, que não pode existir entre esposos. Valéria ergueu-se resolvida: -- Tens razão, titia. Quero amá-lo como ele o merece, sincera
e dedicadamente. Não desejo perturbá-lo em seus trabalhos, posso pedir-lhe todavia, que faça de mim uma sua discípula. Um criado anunciava a chegada de Rothschild
que, acompanhado do major Bakulim, entrava logo em seguida. Mostravam-se ambos alegres. -- Valéria, trago-te o teu feiticeiro-mor. Ainda agora ele nega que tenha
estado aqui. Tu, porém, deverás saber quem te salvou. -- Eu estava desmaiada e nada vi... Redargüiu Valéria acanhada. E, naquele momento, pela primeira vez, ela
retribuiu o beijo que, cumprimentando-a, o Barão depositou-lhe na face. Rothschild trouxera consigo a criada de quarto da esposa, com a necessária roupa, e a moça
correu ao quarto para se vestir. Logo depois de refeição, o casal Rothschild regressou a S. Petersburgo. Durante o percurso, não fala-
ram de outra coisa que não fosse o incêndio, e, ao chegarem à residência, Rothschild recolheu-se logo aos seus
aposentos. Com uma pontinha de vergonha e levemente agastada, Valéria, igualmente, subiu para seu quarto. Mas, daquela vez, vencendo os seus sentimentos de cabeça
erguida, procurou os apartamentos do esposo. Sem fazer ruído, levantou os reposteiros e entrou. Diante da lareira, sentado na sua poltrona favorita, Rothschild alheara-se
em profundos pensamentos. Ele não ouvira o frufru do vestido de Valéria. Seu perfil altivo, recortava-se diante do clarão vermelho do braseiro. Suas sobrancelhas
cerravam-se impenetravelmente e o seu olhar perdia-se nos retratos do Conde Rindolfo e de Sir Gerald, que tinha pela frente. Este último envolvia-se nos seus trajes
indianos. O seu olhar indevassável olhava a seu contemplador e tinha a expressão enigmática que somente as criaturas que pairam entre o mundo material e o mundo
espiritual podem observar. Com o coração palpitante, Valéria contemplava o esposo. Em que pensaria ele? Com certeza em alguma coisa distante, e que não estava entre
as paredes da casa. Ele dissera um dia: -- A alma pode voar pelo espaço infinito quanto sabe desprenderse da prisão do corpo. Durante um momento, Valéria hesitou
ainda, mas, então, com passos firmes, avançou para o esposo e ajoelhou-se diante da poltrona dele, descansando a cabeça sobre a sua mão. -- Perdoa-me, Pawel, o ter
sido tola e má para contigo! Só ontem, durante as horas da noite, compreendi o que te tornaste com os teus trabalhos... As lágrimas embargavam-lhe a voz. Rothschild
estremecera, e nos seus olhos nadou um brilho chamejante. Atraiu Valéria para si e beijou-a na boca, ardentemente. -- Meu amor, nada tenho a perdoar-te, pois a provação
que tiveste que suportar foi pesada, e o teu rancor para comigo justificável... Agora me dás de novo o teu coração e eu espero, cheio de fé, que queiras participar
da minha missão e da minha vida! Assim, me restituis toda a minha felicidade...
-- Sim, Pawel, desejo merecer-te! Desejo dizer-me tua esposa e amar-te não somente como meu esposo, mas também
como meu amigo e mestre. Toma-me por tua discípula e eu farei tudo por compreender-te. Sinto-me bem aqui, em teu gabinete de trabalhos. Parece-me sentir entre estas
paredes, uma atmosfera saturada de harmonia, e, apesar dos meus parcos conhecimentos, compreendo que somente a paz e o silêncio permitem-nos aprofundarmos no infinito
mundo espiritual. Durante os anos da nossa separação, aprendi que o bulhento mundo lá de fora, é perfeitamente dispensável à nossa felicidade! Não me será difícil
libertar-me totalmente dele para viver tão somente para ti e para o trabalho que iremos desenvolver e através do qual iremos conhecer a onipotência de Deus. A noite
passada, me demonstrastes a força benéfica do teu saber, ao qual devo a minha vida. Se quiseres, nos mudaremos para qualquer uma de tuas propriedades para, longe
de tudo, vivermos tão somente para a conquista da sabedoria e para o nosso querido Boris. Profundamente emocionado, Rothschild ouvia-a olhando para o seu rosto emocionado,
onde os olhos da moça brilhavam intensamente. -- Giovana, vencemos, neste momento, o passado, o nosso passado que é muito mais remoto e fabuloso do que tu pensas:
Vejo que Deus perdoou minhas faltas pois, que, no limiar de minha nova vida, liberto do carma vingador, dá-me Ele a esposa com a qual até então eu apenas sonhara,
a esposa que me pertence, não apenas materialmente, mas que também espiritualmente participa da minha vida. Agradeço-te o propósito de viver comigo em qualquer uma
das minhas propriedades, mas, em virtude da vontade do meu mestre, não devo ser ermitão, mas viver dentro do mundo. E Rothschild repetiu a Valéria, tudo quanto,
neste sentido, lhe dissera Sir Gerald. -- Por isso tudo devo continuar aqui, tendo maiores oportunidades e possibilidades de entrar em contato com os erros dos homens
e
de tentar curá-los. Eu mesmo, devo, sempre e sempre, submeter-me à prova, para ver se sou capaz de resistir firmemente
às tentações que se aproximam. Tu me ajudarás nisso, e repartiremos a nossa vida. Uma parte do nosso tempo dedicaremos à sociedade e às exigências que ela nos impõe.
A outra parte, que é a mais bela, dedicaremos aos nossos estudos e ao nosso aperfeiçoamento, bem como à educação de nosso filho, tal como Deus o ordena ao homem.
Depois desta longa explicação, Valéria e Rothschild se sentiram mais próximos do que nunca. Sabiam, agora, que já não existiam sombras entre eles. Na noite deste
dia, Rothschild descreveu à esposa a sua viagem à cidade morta e a história do príncipe Adschimitra. Enquanto Valéria, cheia de interesse contemplava as fotografias
da urbe e do grupo do dragão, Rothschild entregou-lhe os presentes de Balarama: as jóias de Bawani. Com grande surpresa Valéria admirou as preciosidades, não se
cansando de fitá-las. -- Deverias mostrar esses objetos maravilhosos a algum arqueólogo. Creio que nenhum mortal contemplou, jamais, coisas tão belas! -- Disse ela.
Alegre, Rothschild tomou o diadema e colocou-o sobre os doirados cabelos, pondo-lhe sobre o colo, o maravilhoso colar. -- Desejaria ver-te com estas jóias quando
retornar a bela estação... E por falar em estação, este inverno ainda nos manteremos aqui. Entretanto, quando chegar o verão, partiremos para o nosso velho e querido
Montinhoso. -- Queres mesmo ir a Montinhoso? Sempre pensei que esse lugar te fosse desagradável. Gosto, porém, imensamente de Montinhoso, e alegro-me como uma criança,
à simples idéia de tornar até lá. -- E porque Montinhoso haveria de ser-me desagradável? O velho castelo, bem como os seus proprietários, libertaram-se. Fundaremos
ali, um asilo para a velhice desamparada, como há muito imaginei. Entre os muros em que o criminoso Paulo foi alcançado pela Nêmesis vingativa, de agora em diante
irão encontrar agasalho os velhinhos desprotegidos e aleijados.
-- Como há de estar contente o espírito do velho Conde Rindolfo, vendo-nos agora, a caminho do aperfeiçoamento.
Eu desejaria, imensamente, saber se ele me perdoou de todo, se retirou de sobre minha cabeça a terrível maldição que me lançou... Disse Valéria. -- Em amargo momento
ele te maldisse, mas, com certeza, já de há muito te perdoou. Queres vê-lo e ouvir de sua própria boca o seu perdão? -- Mas seria possível? Como o chamarias? E não
seria impressionante, agora, com as trevas da noite? Perguntou Valéria medrosa. -- Não, Valéria! Ele virá à plena claridade, e te surgirá como qualquer vivente.
De sua caixa Rothschild retirou uma vara com sete pontas, colocou-se diante do retrato do Conde Rindolfo e traçou um círculo que, imediatamente, fosforescendo, ficou
brilhando no ar. Em voz alta pronunciou algumas fórmulas. O retrato foi envolvido por uma nuvem, no qual começou a girar uma bola luminosa. A nuvem tomou então uma
forma humana, ganhou contornos e diante de ambos surgiu a figura do Conde Rindolfo. Como no retrato, vestia o paletó preto e conservava o mesmo rosto sereno e sorridente.
A aparição aproximou-se mais e estendeu a mão a Valéria. Por um momento ela hesitou, mas, em seguida prostrou-se de joelhos e pousou os lábios sobre a mão quente
e viva. -- Eu te agradeço, tio Rindolfo, e nunca hei de me esquecer de ti... -- Disse Valéria chorando baixinho. A aparição estendeu as mãos abençoantes sobre a
cabeça de Valéria, abraçou a Paulo e beijou-o na testa. Alguns segundos depois tudo desaparecera... -- Oh! Quanto sou feliz! Ele me perdoou e abençoou! Que belo
dia, Pawel! Disse Valéria satisfeita. Só falta uma coisa... -- Ainda não agradecemos a Sir Gerald, o nosso benfeitor! -- Sim! Escrever-lhe-emos imediatamente para
lhe agradecermos todo o benefício que nos fez.
-- Escrever-lhe? Não! Nós lhe explicaremos verbalmente o nosso agradecimento, Para casos de urgência, confiou-me
ele um segredo mediante o qual posso encontrá-lo e vê-lo a qualquer hora. Mas deves jurar-me que ninguém, jamais, saberá qualquer coisa a respeito. Valéria prestou-lhe
um severo juramento. Então, Rothschild abriu o escrínio da parede, e pôs o aparelho em movimento. As ondas atmosféricas se espalharam e, em breve, viam eles o quarto
de Sir Gerald, no castelo indiano. Ele estava à janela, e parecia emitir uma suave luz azulada. Imediatamente volveu a cabeça e cumprimentou o par com um sorriso
e um aceno de mão. Rothschild atraiu Valéria a si e ambos fitaram o mago. -- Meu caro mestre e benfeitor: vide a nossa união, que a si devemos. Abençoai-nos e guiai
os nossos passos na senda do aperfeiçoamento do nosso espírito. Sir Gerald ergueu a mão e uma viva luz partiu dela, envolvendo o casal. -- Congratulo-me convosco
e vos abençôo, queridos filhos. O passado foi riscado da vossa vida, e vos encontrais no limiar de um risonho futuro. O vosso amor vos protegerá de todos os perigos
nesta senda de purificação. Nunca esqueçais, porém, de que, para aqueles que conseguem levantar o véu de Ísis, não existe retorno. A ascensão é árdua, e somente
a força da bondade poderá valer-vos, amparar-vos, orientar-vos para a frente. Assim, pois, segui subindo, ao encontro da luz. Lá vos aguardará a recompensa que receberão
todos aqueles que venceram sobre os pecados de sua carne... Abençoando, o mago estendeu os braços e a sua imagem esvaneceu-se no aparelho, que se imobilizou. Durante
alguns minutos, Valéria e Rothschild estiveram em silêncio. Rothschild respirou profundamente. -- Sim... para nós que já vimos e conhecemos tanto, não é possível
voltar atrás. Olhemos, pois, corajosamente para a frente e esforcemo-nos pela luz, que este é o desejo de Deus, o Pai Onipotente!

 

                                                                  J.W. Rochester

 

 

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