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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LESTE DO PARAÍSO - P2 John Steinbeck
A LESTE DO PARAÍSO - P2 John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O Inverno passou pelo vale do Salinas, diluviano mas esplêndido. As chuvas empaparam a terra, mas não houve cheias.
A erva já estava crescida em Janeiro; em Fevereiro, todas as pastagens estavam magníficas e o gado mostrava-se gordo e nédio. Em Março a chuva branda continuou a cair e cada aguaceiro esperava delicadamente que o anterior tivesse ensopado o solo para cair. Depois, o calor invadiu o Vale e a terra desabrochou em amarelo, azul e oiro.
Tom vivia sozinho no rancho, e até a colina poeirenta estava verde, e os sílices escondiam-se sob a erva, e as vacas dos Hamilton estavam gordas, e os carneiros dos Hamilton rebolavam-se na erva.
Ao meio-dia de 15 de Março, Tom sentou-se no banco diante da forja. De manhã fizera sol, mas nuvens pardas vindas do Oceano passavam por cima das montanhas e as suas sombras corriam na terra luzidia.
Tom ouviu um barulho de cascos e avistou um garoto de cotovelos afastados que empurrava um cavalo cansado em direcção à casa. Tom levantou-se e dirigiu-se para a estrada. O garoto deteve-se diante da casa, tirou o barrete, atirou um sobrescrito amarelo para o chão, deu meia volta ao cavalo e partiu a galope.
Tom esboçou um gesto para o chamar, depois baixou-se com ar desanimado e apanhou o telegrama, indo sentar-se novamente no banco com o papel na mão. Então, olhou as colinas e a velha casa, como que para preservar alguma coisa, antes de rasgar o envelope e ler as quatro palavras inevitáveis: o nome e o apelido, o acontecimento e a data. Tow dobrou lentamente o telegrama em dois, depois em quatro, depois em oito, e continuou a dobrá-lo até o papel ficar do tamanho dum selo. Encaminhou-se para casa, atravessou a cozinha, a sala minúscula, e entrou no quarto. Tirou do armário o fato preto, uma camisa branca e uma gravata preta e colocou-os no espaldar duma cadeira. Só então se estendeu na cama e virou a cara para a parede.

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As caleças e os cabriolés tinham deixado o cemitério de Salinas. A família e os amigos regressaram a casa de Olive, na Central Avenue, para comer, beber café, ver como encaravam a coisa, e para fazer e dizer o que se faz e diz naquelas ocasiões.
George ofereceu um lugar a Adam Trask na sua tipóia de
aluguer, mas Adam recusou. Ficou errando no cemitério e acabou
por se sentar no degrau de cimento que rodeava o jazigo duma
certa família Williams. Em redor do cemitério, gemiam os ciprestes sombrios, tradicionais, e violetas brancas cresciam a esmo
nas áleas. Alguém trouxera um vaso e as sementes, dispersadas
pelo vento, tinham germinado aqui e acolá.
O vento frio soprava sobre as tumbas e chorava nos ciprestes. Havia muitas sepulturas sobrepujadas por uma estreia de bronze que designava os mortos do Grande Exército, e em cada estrela estava espetada uma bandeira rasgada pela ventania e que ali
fora posta no Decoration Day do ano anterior.
Adam contemplou as montanhas a leste de Salinas e o pico
Frémont que as dominava. O ar estava cristalino, anunciando chuva. Não tardou que começasse a cair uma chuvada, se bem que o
céu não estivesse totalmente encoberto.
Adam chegara no comboio da manhã. Primeiro, não quisera
vir, mas sentira-se empurrado por uma força irresistível. Não podia acreditar que Samuel tivesse morrido, ouvia ainda a bela voz
lírica, a sua toada cantante, a música curiosa das palavras estranhas, sempre diferentes daquelas por que se esperava. Na maioria
dos homens, não custa nada adivinhar a palavra que vão proferir.
Adam vira Samuel no caixão e não quisera aceitar essa morte.
E como o rosto não se parecia com o de Samuel, Adam fora-se
embora, levando a imagem do vivo.
Tivera de ir ao cemitério porque assim o exigiam as convenções, mas mantivera-se sempre afastado o bastante para não ouvir
as palavras e, quando os filhos atiraram terra para cima da urna,
distanciou-se e perdeu-se nos caminhos onde desabrochavam as
violetas brancas.
O cemitério estava deserto e o murmúrio lúgubre do vento
curvava as silhuetas dos ciprestes. O aguaceiro redobrou de violência.
Adam ergueu-se, todo arrepiado, caminhou lentamente pelo
meio das violetas brancas e passou diante do novo coval. As flores tinham sido dispostas de modo a cobrirem o montículo de terra recentemente revolvida mas o vento já desfolhara as flores e
atirara com os ramalhetes para a álea. Adam apanhou-os e tornou a pô-los em cima da sepultura.
Saiu do cemitério, empurrado pelo vento; não prestava atenção à chuva que lhe ensopava e atravessava o fato preto. Romie
Lane estava lamacenta e cheia de poças de água. A aveia brava e
a mostarda cresciam à beira da estrada, os nabos silvestres atingiam proporções inesperadas e as cabeças dos cardos vermelhos dominavam o verde luxuriante da Primavera húmida.
A lama de barro preto cobria os sapatos de Adam e sujava-lhe
a bainha das calças. A estrada de Monterey ficava quase a uma
milha de distância. Adam estava completamente enlameado e
encharcado quando lá chegou e cortou para leste para entrar na
cidade de Salinas. A água depositara-se na aba enrolada do chapéu e o colarinho molhado parecia uma rodilha.
Depois de John Street, a estrada virava e passava a chamar-se Main Street. Adam sacudiu a lama dos sapatos assim que
chegou ao pavimento. As casas detinham o vento e, quase instantaneamente, pôs-se a tremer de frio. Acelerou o passo. Quase no
fim de Main Street, entrou num bar. Pediu um conhaque, bebeu-o
de um trago e pôs-se a tremer ainda com mais violência.
O Sr. Lapierre, atrás do balcão, viu-o tremer.
- Devia tomar outro - disse ele. - Vai apanhar uma constipação das boas. Quer um grogue? Não há nada melhor.
- Pois sim - disse Adam.
- Olhe, beba outro conhaque enquanto eu vou arranjar água
quente.
Adam pegou no copo e foi sentar-se a uma mesa. Não se
sentia bem na roupa molhada. O Sr. Lapierre voltou da cozinha
com uma chaleira de água a ferver, pós o copo com a bebida
numa bandeja e levou-a para a mesa.
- Beba o mais quente que puder - disse ele. - Isto até
tirava as tremuras a uma faia. (Puxou uma cadeira, sentou-se,
mas tornou logo a levantar-se). Está-me a fazer frio - disse ele. Vou preparar um também para mim. (Voltou a sentar-se em frente
de Adam). - Faz logo efeito - disse ele. - Estava tão pálido
quando entrou que me meteu medo. O senhor não é daqui?
- Vivo perto de King City - respondeu Adam.
- Veio ao enterro?
- Vim, vim, era um velho amigo meu.
- Bonito enterro?
- Ah! pois.
- Não admira. Tinha muitos amigos. Foi pena que não estivesse bom tempo. Devia beber mais outro e ir deitar-se.
- É o que vou fazer - disse Adam. - Sinto-me confortado e
sereno.
- Já é alguma coisa. Quem sabe se, ainda por cima, não
evitou uma pneumonia?
Depois de ter servido outro grogue, o Sr. Lapierre foi atrás do
balcão buscar um trapo molhado.
-- Tome, para limpar a lama - disse ele. - Um enterro Já não
é alegre e, então, quando chove, ainda fica mais triste.
- Só choveu depois - disse Adam. - Foi na volta que fiquei
encharcado.
- Porque não dorme aqui? Mete-se na cama, mando-lhe um
grogue ao quarto e, amanhã, já nem se lembra de nada.
- É o que vou fazer - disse Adam.
Sentia o calor subir-lhe à cara e o sangue latejar debaixo dos
braços, como se um líquido escaldante lhe percorresse as veias.
Depois o calor penetrou na parte mais fria da cabeça, no sitio onde
escondia os pensamentos proibidos, que principiaram a derreter-se
e a impregnar o resto do cérebro. Adam pegou no pano molhado e
inclinou-se para a frente para limpar as calças. O sangue começou
a latejar atrás dos olhos.
- Apetecia-me tomar outro grogue - disse ele.
O Sr. Lapierre respondeu:
- Se é para a constipação, já chega, mas se é só para beber
qualquer coisa, tenho rum da Jamaica. Aconselho-o a que o tome
puro. Cinquenta anos de idade! A água mata o gosto.
- Apetece-me beber - disse Adam.
- Faço-lhe companhia. Há meses que não abro a garrafa, é
coisa que não tem muita saída. Aqui preferem o uísque.
Adam limpou os sapatos e deixou a rodilha no chão. Bebeu
um golo de rum escuro e tossiu. A bebida forte exalou um perfume
agradável e atingiu-o na base do nariz, como se lhe desse uma
pancada. A casa pareceu baloiçar e, depois, recuperar o equilíbrio.
- É bom, hem? - perguntou o Sr. Lapierre.- É capaz de
derrear um homem. Mais vale contentar-se com o primeiro, a não
ser, evidentemente, que queira ficar derreado. Há pessoas que
gostam disso.
Adam fincou os cotovelos na mesa, sentindo-se invadido por
uma necessidade de falar que o deixou assustado. A sua voz não
se assemelhava à sua voz, e as palavras pasmaram-no.
- Eu não conheço bem a terra - disse ele. - Sabe onde fica
a Kate?
- Jesus! Este rum ainda é melhor do que eu julgava - disse o Sr. Lapierre.
E acrescentou:
- é Trask.
Vive no campo?
- Vivo, sim, tenho um rancho perto de King City. O meu nome
- Muito prazer. Casado?
- Já não sou.
- Viúvo?
- Sim.
- Vá à casa da Jenny. Deixe a Kate sossegada, não é coisa
que lhe convenha. A Jenny fica a dois passos. Vá lá que encontra o
que procura.
- A dois passos?
- Corte à direita e, no segundo quarteirão, torne a virar à direita.
Qualquer pessoa lhe dirá onde fica a rua.
- Adam sentia a língua entaramelada.
- Qual é o defeito da Kate?
- Vá à casa da Jenny - respondeu o Sr. Lapierre.
3
Era uma noite medonha. Castroville Street parecia um atoleiro
e, no bairro chinês, a lama era tanta que os habitantes tinham posto
pranchas na rua que separava as cabanas. As nuvens coladas no
céu nocturno eram cor de pêlo de rato. A atmosfera não estava
húmida, mas abafadiça. Julgo que a diferença é a seguinte: enquanto
a humidade desce, o ar abafado, produto da podridão e da
fermentação, sobe da terra. O vento da tarde amainara, deixando o
ar áspero e cortante. O frio era suficiente para dissipar os véus que
o rum tecera no espírito de Adam, sem contudo o devolver à sua
natural timidez. Adam caminhava rapidamente no passeio de terra
batida, com os olhos pregados no chão para não tropeçar nas
pedras. A dupla fila de casas era fracamente iluminada pela lanterna
da passagem de nível e por um pequeno globo de filamento de
carvão aceso à porta da Jenny.
Adam informara-se bem. Contou duas casas, mas ia falhando a terceira, dissimulada por uma alta sebe, escura e muito
frondosa. Através do portão, deitou uma olhadela à entrada antes
de enveredar pelo carreiro cheio de erva. Na meia escuridão conseguiu distinguir a porta desconjuntada e os degraus carcomidos.
Todos os vestígios de pintura tinham desaparecido há muito
tempo das paredes e nunca nenhum jardineiro se interessara pelo
jardim. Se não fosse a nesga de luz que enquadrava os estores,
Adam teria prosseguido o seu caminho, supondo que a casa estivesse desabitada. Receou que os degraus cedessem sob o seu
peso e as tábuas do patamar rangeram quando as pisou.
A porta abriu-se e apareceu uma silhueta confusa.
- Entra, anda - disse uma voz aveludada.
A sala de espera estava frouxamente iluminada por pequenos
globos tapados com abajures cor-de-rosa. Adam sentiu um espesso
tapete debaixo dos pés. Móveis encerados luziam sob quadros com
molduras doiradas. Respirava-se uma atmosfera de bem-estar e de ordem.
- Devias ter trazido uma gabardina - disse a voz suave. És conhecido?
- Não - disse Adam.
- Vens da parte de quem?
- Uma pessoa do hotel.
Adam lançou um olhar indagador à rapariga vestida de preto
e sem adornos. Um rosto matreiro - bonito e matreiro. Tentou
lembrar-se do animal nocturno e sorrateiro com que ela se parecia. Era um desses animais predatórios e misteriosos.
Ela disse:
- Se quiseres, posso aproximar-me da luz.
- Não.
Ela riu-se.
- Senta-te aí. Vieste cá para alguma coisa, não é verdade?
Se me disseres o que queres, arranjo-te a pequena que te convém.
A voz grave parecia um instrumento cortante. A rapariga escolhia as palavras como se escolhem flores num jardim, e era
com todo o vagar que o fazia.
Adam sentia-se desajeitado. Por fim, conseguiu dizer:
- Queria ver a Kate.
- A menina Kate está agora ocupada. Marcaste encontro?
- Não.
- Posso atender-te, sabes?
- Eu quero ver a Kate.
- Posso saber de que se trata?
- Não.
A voz da rapariga tornou-se cortante como uma lâmina acabada de afiar.
- Ela não pode recebê-lo, está ocupada. Se não é uma pequena, nem outra coisa que procura, o melhor é ir-se embora.
- Não se importa de lhe dizer que estou aqui?
- Ela conhece-o?
- Não sei. (Sentia a coragem abandoná-lo, reconhecia o frio
que o invadia). Não sei. Faça o favor de lhe dizer que o Adam Trask
desejava vê-la. Ela logo saberá se me conhece ou não.
- Está bem. Vou dizer-lhe.
Dirigiu-se silenciosamente para uma porta à direita e abriu-a.
Adam ouviu murmurar umas palavras e um homem meteu a cabeça
pela porta. A rapariga deixou a porta aberta para que Adam
percebesse que não estava só. Numa parede da sala, espessos
reposteiros escuros dissimulavam uma abertura. A rapariga afastou os pesados reposteiros e desapareceu. Adam sentou-se novamente. Sem mexer os olhos, viu que o homem tornara a espreitar
pela porta e desaparecera.
O quarto de Kate fora concebido para trabalhar confortavelmente e já não se assemelhava em nada ao quarto onde Faye
vivera. As paredes eram forradas de seda cor de açafrão e os
cortinados duplos eram verde-maçã. Havia uma atmosfera sedosa: profundas poltronas com almofadas forradas de seda, candeeiros com abajures de veludo e um grande leito no fundo do quarto,
coberto com uma resplandecente colcha de cetim branco sobre a
qual se erguia uma enorme montanha de almofadas. Nem quadros
nas paredes, nem fotografias, nem objectos pessoais. No tampo
de ébano do toucador, junto da cama, não se viam frascos nem
boiões. O espelho de três faces apenas reflectia a nudez da madeira.
O tapete chinês era antigo e fofo: dragões verde-garrafa em fundo
açafrão. Um canto da sala era o quarto propriamente dito, o centro
destinava-se a receber os visitantes e o outro canto estava reservado
aos negócios: estantes de castanho encerado, um grande cofreforte preto com pinturas a dourado, e uma secretária de tampo móvel
tendo em cima um candeeiro duplo com quebra-luz verde; uma poltrona giratória atrás da secretária e uma cadeira ao lado.
Kate estava sentada à secretária. Ainda era bonita. O cabelo
readquirira o loiro natural, os lábios firmes soerguiam-se nas comissuras, como dantes, mas o corpo estava mais cheio. Os ombros tinham engordado e as mãos magras começavam a enrugar.
A cara estava bochechuda e a pele debaixo do queixo era flácida.
Continuava a ter pequenos seios que se apagavam sobre um rolo
de gordura no lugar do estômago. As ancas eram estreitas, mas as
pernas e os pés tinham engordado a ponto de os tornozelos extravasarem dos sapatos sem salto. Sob as meias, adivinhavam--se
vagamente as ligaduras elásticas que continham as varizes.
Apesar disso, ainda tinha boa aparência. Só as mãos haviam
de facto envelhecido. As palmas e os dedos ainda estavam lisos,
mas as costas tinham rugas e manchas castanhas.
O vestido era de um negro severo, com mangas compridas, e
só os tufos de renda branca no peito e nos punhos formavam
contraste.
O trabalho dos anos fora subtil. Se alguém tivesse vivido durante todo esse tempo ao lado de Kate, é provável que nunca
desse pela mudança. O rosto parecia cheio, os olhos vivos e sem
olheiras, o nariz delicado, e os lábios firmes e finos. Mal se adivinhava a cicatriz da testa, escondida sob uma camada de pó cor
de pele.
Kate examinava um maço de fotografias, todas do mesmo
formato, tiradas pelo mesmo aparelho, à luz violenta do magnésio.
Se bem que os pares diferissem, a pose era rigorosamente
idêntica em todas as fotografias - A cara das mulheres nunca
estava virada para a objectiva.
Kate dividiu as fotografias em quatro lotes que guardou em
quatro espessos envelopes. E quando bateram à porta, meteu-os
numa gaveta da secretária.
- Entre! Oh! Entra, Eva. Ele está aí?
A rapariga aproximou-se da secretária antes de responder. Sob
a luz mais forte, tinha o rosto contraído e os olhos dilatados.
- É um desconhecido. Diz que quer vê-la.
-Tenho muita pena, Eva, mas bem sabes por quem espero.
- Disse-lhe que estava ocupada, mas ele diz que julga conhecê-la.
Como é ele?
É um tipo alto, um pouco tonto. Chama-se Adam Trask.
Kate não estremeceu nem emitiu nenhum som, mas Eva sentiu que a atingira no alvo. A mão direita de Kate dobrou-se devagar,
enquanto a esquerda se esticava, como um gato magro, para se
enclavinhar na borda da secretária. Kate ficou imóvel, como se contivesse a respiração. Eva ficou atarantada e pensou logo na caixa
da seringa que guardava numa gaveta da cómoda.
Finalmente, Kate disse:
- Senta-te nessa cadeira, Eva, e vê se sossegas um instante.
Como a rapariga não se mexia, Kate chicoteou-a com uma
palavra:
- Sentada!
Domada, Eva dirigiu-se para a cadeira.
- Não brinques com as unhas - disse Kate.
As duas mãos separaram-se e foram crispar-se nos braços
da cadeira.
Kate olhou para a frente e os seus olhos fixaram-se no abajur
verde do candeeiro. Depois, fez um movimento tão rápido que
Eva se sobressaltou e os seus lábios estremeceram. Kate abriu a
gaveta da secretária e tirou um papel dobrado.
- Toma, vai para o teu quarto e vê se te recompões. Não
tomes tudo... Não, não confio em ti. (Kate desdobrou o papel, rasgou-o ao meio, dividiu o pó branco que continha e fez duas novas
embalagens, estendendo uma delas a Eva). - Agora, despacha-te. Quando tornares a descer, diz ao Ralph que vá para o pé da
porta. Ele que se aproxime o bastante para poder ouvir a campainha, mas que se afaste o suficiente para não ouvir as vozes. Não
te esqueças de o vigiar. Ele que se livre de subir os degraus para
me espiar. Se ele ouvir a campainha... Não, mais vale... Não. Ele
que faça como quiser. Depois -, mandas entrar o Sr. Adam Trask.
- Não haverá novidade, menina Kate?
Kate deixou-a afastar-se e, depois, voltou a chamá-la.
- Quando ele se for embora, dou-te a outra metade. Agora,
despacha-te.
Assim que a porta se fechou, Kate abriu a gaveta da direita da
secretária e tirou um revólver de cano curto. Verificou se estava
carregado e colocou-o em cima da secretária, dissimulando-o com
uma folha de papel. Em seguida, apagou um dos candeeiros e
instalou-se na poltrona, com as mãos juntas em cima da secretária.
Quando bateram à porta, Kate disse, mal remexendo os lábios:
- Entre!
Eva tinha os olhos húmidos e mostrava-se descontraída.
- Ei-lo - disse ela.
E afastou-se para dar passagem a Adam.
Adam deitou uma vista de olhos à sala antes de ver Kate calmamente sentada à secretária. Contemplou-a com espanto, antes de avançar lentamente para ela.
Kate descruzou as mãos, e a direita dirigiu-se para o papel. O
olhar frio e desprovido de expressão não se desprendia dos olhos
de Adam.
Ele viu o cabelo, a cicatriz, os lábios, a garganta enrugada, os
braços, os ombros, e os seios lisos, e suspirou profundamente.
A mão de Kate tremeu ao de leve.
- Que queres tu? - perguntou ela.
Adam sentou-se numa cadeira. Apetecia-lhe gritar o seu alívio, mas disse apenas:
- Nada, por enquanto. Queria ver-te. O Sam Hamilton disse-me que estavas aqui.
Assim que ele se sentou, ela deixou de tremer.
- Então não sabias?
- Não - respondeu ele -, não sabia. A notícia deixou-me
um pouco zonzo, mas agora já estou melhor.
Kate descontraiu-se. Sorriu e mostrou os dentinhos com os
caninos mais compridos.
- Assustaste-me - disse ela.
- Porquê?
- Não sabia o que farias.
- Também eu não - respondeu Adam.
E continuou a fitá-la como se fosse uma figura de cera.
- Esperei muito tempo por ti e, quando vi que não aparecias,
esqueci-te.
- Eu não te esqueci - disse ele. - Mas a partir de hoje, já o
poderei fazer.
- Porquê?
Ele soltou um riso divertido.
- Porque te estou a ver. O Samuel tinha-me dito que eu nunca te vira, e é verdade. Recordo-me da tua cara, mas nunca a
tinha visto. Agora, já a posso esquecer.
Kate contraiu os lábios e semicerrou os olhos.
- Achas que sim?
- Sei que posso.
Ela mudou de atitude.
- Talvez não seja necessário - disse ela. - Compreendeste
tudo, podemos entender-nos.
- Não me parece - disse Adam.
- Que grande imbecil tu foste - disse ela. - Um autêntico
garoto. Não sabias o que havias de fazer de ti. Agora, já te posso
ensinar, tens o ar de um homem.
- Já me ensinaste - disse ele. - Foi uma dura lição.
- Queres beber alguma coisa?
- Pois sim.
- Pelo teu hálito, já bebeste rum.
Kate ergueu-se e foi buscar uma garrafa e dois copos a um
armário. Ao voltar-se, reparou que ele lhe examinava os tornozelos avolumados. Sentiu-se invadida por uma cólera fugaz, mas
continuou a sorrir.
Encaminhou-se para a mesa redonda e encheu os dois copos de rum.
- Vem para aqui - disse ela.- É mais confortável.
Na altura em que ele se levantava para se ir sentar numa grande
poltrona, Kate viu que ele não desviava os olhos do seu estômago
proeminente. Ela estendeu-lhe o copo, sentou-se e cruzou as mãos
em cima da barriga.
Adam ficou de copo na mão e ela disse:
- Bebe. É um rum muito bom. (Ele sorriu-lhe com um sorriso
que ela nunca lhe vira). - Quando a Eva me disse que tu estavas
cá, a minha primeira reacção foi mandar-te pôr na rua.
- Teria voltado - disse ele. -Tinha que te ver, não por falta
de confiança no Samuel, mas porque precisava de o demonstrar a
mim mesmo.
- Bebe.
Adam olhou o copo.
- Não penses que te ia envenenar...
Deteve-se, furiosa por ter dito aquilo.
Ele continuou a fitar o copo com um sorriso. A fúria descompôs
as feições de Kate, que ergueu o copo e o levou à boca.
- O álcool põe-me doente - disse ela -, nunca bebo. Para
mim, é pior que veneno.
Fechou a boca e os dentinhos afiados morderam o lábio inferior.
Adam continuava a sorrir.
Kate despejou o copo de um trago, tossiu, chorou e limpou os
lábios com as costas da mão.
- Não pareces confiar muito em mim - disse ela.
- Pois não.
- Não posso beber mais -- disse ela, aflita.
- Ninguém te obriga. Vou beber só mais este antes de me ir
- embora.
--- O álcool queimava a garganta de Kate e libertava aquela
força que a assustava. Bebeu o segundo copo.
- Tu não me metes medo, Ninguém me mete medo.
- Nada tens que recear de mim - disse Adam. -- Agora,
podes esquecer-me. Aliás, foi o que já se deu, tu assim o disseste.
(Adam sentia-se protegido, maravilhosamente bem, tão bem como
nunca estivera há muitos anos). - Fui ao enterro do Sam Hamilton. Era um homem de bem. Vai fazer-me muita falta. Lembras-te,
Cathy? Foi ele quem ajudou a nascer os gémeos.
O álcool produzia os seus efeitos no corpo de Kate. Ela tentava disfarçar, mas tinha a cara contraída.
- Que há? - perguntou Adam.
- É o álcool, eu bem te disse que ele me punha doente.
- Eu não podia correr o risco de confiar em ti - disse ele
calmamente. - Acho-te capaz de tudo depois daquele tiro.
- Capaz de quê?
- Ouvi falar em coisas nojentas...
Kate teve um momento de distracção e os vapores do álcool
penetraram pela brecha. Perdera a batalha. A vontade cedeu. Uma
crueldade imprudente substituiu o medo. Kate empunhou a garrafa e encheu o copo.
Adam teve de se levantar para encher o dele. Sentia-se habitado por um sentimento que lhe era completamente estranho. Regozijava-o o espectáculo que lhe oferecia a mulher, apetecia-lhe
um castigo mais forte, mas mantinha-se na expectativa. «Atenção, não convém falar.»
Adam disse em voz alta:
- O Sam Hamilton era o meu melhor amigo. Vai fazer-me
falta.
Ela levou o copo desajeitadamente à boca e o liquido escorreu
pelo canto dos lábios.
- Eu odiava-o - disse ela.- Porquê? Ele foi bom para nós.
- Ele olhava... ele rebuscava em mim.
- Fez o mesmo comigo e ajudou-me.
- Odeio-o - disse ela. - Ainda bem que morreu.
- Se alguém te tivesse ajudado a compreender o que havia
em ti, talvez não tivéssemos chegado a este ponto - disse Adam.
Os lábios de Kate fizeram um esgar escarninho.
- Tu és um idiota - disse ela. - A ti não te odeio, não passas dum pobre idiota.
Tê-lo-ia matado se pudesse.
Quanto mais ela se excitava mais Adam se sentia senhor de
si.
- Isso, senta-te e ri de lado! - berrou ela. - Com que então, julgas-te livre? Uma pinga de álcool e já te tomas por um
homem! Se eu quisesse, bastava-me levantar um dedo para tu te
arrastares de joelhos e te pores a suplicar. (Desencadeara-se a
sua necessidade de domínio. Perdera por completo a prudência
de raposa). - Eu bem te conheço - disse ela. - Tens alma de
covarde.
Adam continuou a sorrir. Bebeu um golo, o que incitou Kate a
encher outro copo. O gargalo da garrafa telintou.
- Tu foste-me útil quando fiquei ferida - disse ela -, mas
tua pieguice enjoava-me. Quando deixei de precisar de ti, tentaste
reter-me. Acaba com esse sorriso, que me enerva!
- Gostava de saber o que é que tu odeias tanto nas pessoas.
- Queres saber? Mas não é ódio, é apenas desprezo! Miúda,
ainda, já sabia que os meus pais não passavam de seres pretensamente bondosos - uns autênticos parvos! - de quem eu fazia o
que me apetecia. Sempre fiz o que me apeteceu das pessoas. Até
arrastei um homem ao suicídio. Esse também se armava em virtuoso, mas o que queria era dormir comigo, com uma rapariguinha.
- Disseste que se matou. Devia ter um desgosto muito grande por qualquer motivo.
- Um parvo. Ouviu-o suplicar à nossa porta. Ri toda a noite.
Adam disse:
- Não gostaria que me pesasse uma morte na consciência.
- Tu não passas dum sentimental. Recordo-me do que diziam as pessoas: «Ela é tão bonita, tão meiga, tão delicada.» Nínguém me conhecia. Eu obrigava-os a saltarem através de arcos e
não davam por nada.
Adam despejou o copo. Na sua lucidez etílica, via nascer e
ziguezaguearem os impulsos de Cathy, como filas de formigas em
marcha.
- Pouco se me dá que não tenhas gostado do Sam Hamilton. Eu sempre o achei um homem inteligente. Ele disse-me uma
vez que as mulheres que afirmam conhecer os homens só conhecem, afinal, uma parte, e não concebem que exista outra coisa. O
que não implica que essa outra coisa não exista.
- Era um mentiroso e um hipócrita - vociferou Kate. - São
os mentirosos que eu odeio, e todos são mentirosos. Apetece-me
esfregar-lhes o nariz nas porcarias que fazem.
Adam ergueu as sobrancelhas.
- Então julgas que neste mundo só existe vício e loucura?
- Exactamente.
- Pois eu não sou dessa opinião - disse, calmamente Adam.
Ela imitou-o:
- Tu não és dessa opinião! Tu não és dessa opinião! Queres
que te prove?
- É impossível - respondeu ele.
Kate ergueu-se de um salto, correu à secretária e pegou nos
envelopes.
- Vê isto - disse ela.
- Não quero.
- Hás-de vê-las de qualquer maneira. (Pegou numa fotografia). Olha, é um senador estadual! Está convencido que vai para o
Congresso. Olha-me para esta barriga! Tem seios como uma
mulher e gosta do chicote. Esta mancha clara, aqui, é uma marca
do chicote. Vê bem a expressão do rosto. Tem mulher e quatro
filhos e vai candidatar-se ao Congresso. Ali! Não queres acreditar! Pois, olha, olha! Esta alforreca esbranquiçada é um conselheiro municipal. Este pacote de banha é um sueco que tem um
rancho perto de Blanco. Olha este, olha! É um professor de Berkeley. Calcorreia essa distância toda até aqui para lhe despejarem
um penico na cara, e é um professor de filosofia! Vê, vê, guardei a
melhor para o fim! É um ministro da Santíssima Trindade, um
irmãozinho de Jesus. Antigamente, tinha de incendiar uma casa
para ter um espasmo. Nós conseguimos isso de outra maneira.
Estás a ver este fósforo que lhe queima as costelas?
- Não quero ver isso - disse Adam.
- Mas sempre viste! Ah! não queres acreditar! Se eu quiser,
hás-de me suplicar que te deixe entrar aqui. Hás-de uivar como
um cão à Lua. (Ela tentava comunicar-lhe a sua vontade, mas viu
que ele se mantinha afastado, livre). - Ninguém me escapa
- disse ela em voz baixa.
Kate tinha os olhos frios mas rasgava o tecido na poltrona
com as unhas, como um galo.
Adam suspirou.
- Se eu tivesse essas fotografias e esses homens o soubessem, não dava muito pela minha vida -- disse ele.---Imagino que
uma só dessas provas bastaria para arruinar uma existência. Não
tens medo do risco?
- Pensas que sou alguma criança? - perguntou ela.
- Agora já não - disse Adam. - Começo a crer que és um
ser perverso sem nada de humano.
Kate sorriu.
- Acertaste em cheio - concordou ela. - Como se pode
desejar ser humano? Olha para estas fotografias! Preferia ser uma
cadela, mas não sou. E sou mais esperta do que os humanos.
Ninguém consegue atingir-me. Não te rales, não arrisco nada.
(Apontou uma estante com o dedo). - Tenho uma centena de
lindíssimas imagens ali dentro. E as pessoas que representam
sabem que se me acontecesse alguma coisa, cem cartas, cada
uma com sua fotografia, seriam postas no correio no mesmo dia e
que não deixariam de chegar onde podem causar mais mal.
Descansa, que não receio coisa nenhuma!
- Mas supõe que sofres um acidente...
- Isso não tem importância nenhuma. (Aproximou-se dele).
- Vou confiar-te um segredo que esses homens ignoram. Daqui a
alguns anos, vou-me embora. E no dia da minha partida os envelopes serão postos no correio, apesar de tudo.
Kate atirou-se para trás e desatou a rir.
Adam estremeceu, observando-a minuciosamente. A expressão e o riso eram pueris e inocentes.
Ergueu-se e serviu-se de meio copo de rum. A garrafa estava
quase vazia.
- Tu odeias nesses homens o que não podes compreender, e
não o que há de mau neles. Odeias essa parte que lhes é própria e
que tu não podes atingir. Porque fazes isso? Com que fim?
- Terei todo o dinheiro que quiser e irei para Nova York antes
de ser velha. Comprarei uma casa num belo bairro e terei criados.
Irei depois à procura de alguém e, se ele ainda estiver vivo, arrancar-lhe-ei a vida a pouco e pouco, muito devagar, com toda a cautela para que o sofrimento não o mate de repente. Se tiver cuidado, há-de enlouquecer antes de morrer.
Adam bateu no chão com o pé.
- Que disparate! - exclamou ele. - Nada disso é verdade.
É uma loucura. Não acredito, não pode ser verdade.
- Recordas-te da primeira vez em que me viste?- perguntou ela.
Adam pôs-se carrancudo.
- Deus meu, se me recordo!
- Recordas-te do meu maxilar fracturado, da boca esmagada
e dos dentes partidos?
- Recordo-me perfeitamente, mas prefiro esquecer.
- O meu maior prazer será tornar- a encontrar o homem que
me fez isso. Depois... depois passarei a outros prazeres.
- Tenho de me ir embora - declarou Adam.
- Não vás já, meu querido - disse ela.- Fica um pouco
mais, meu amor. Os meus lençóis são como seda, quero que o
teu corpo sinta os meus lençóis.
- Tu és doida?
- Oh! meu amor! Tu não sabes amar, mas eu quero ensinar-te, hei-de ensinar-te.
Levantou-se a cambalear e pôs a mão no braço de Adam. O
rosto parecia fresco e jovem. Adam baixou a vista e viu a mão,
enrugada como a dum macaco. Teve um gesto de repulsa.
Kate viu o gesto, compreendeu e torceu a boca.
- Não compreendo - disse ele. - Sei que é verdade, mas
não consigo acreditar. Sei muito bem que amanhã de manhã serei
incapaz de acreditar. Terá sido um pesadelo. Mas não pode ter
sido, não pode ser um pesadelo, pois sei que tu és a mãe dos
meus filhos. Não me pediste notícias deles e és a mãe dos meus
filhos.
Kate descansou os cotovelos nos joelhos, entalou o queixo
nas palmas das mãos e os seus dedos tocaram nos lóbulos das
orelhas. Tinha um olhar de triunfo. Propositadamente, falou em
voz baixa:
- Um imbecil mostra sempre o ponto fraco - disse ela. Aprendi isso quando era miúda. Sou a mãe dos teus filhos, sou.
Os teus filhos? Eu sou a mãe, mas tu tens a certeza de ser o pai?
- Que pretendes tu dizer, Cathy?
- O meu nome é Kate. Escuta-me, querido. Tenta reunir as
tuas recordações. Quantas vezes deixei que te aproximasses de
mim o suficiente para que me fizesses um filho?
- Tu estavas ferida - disse ele -, tremendamente ferida.
- Uma vez - disse Kate -, só uma vez.
- Passaste muito mal durante a gravidez - protestou ele.
- Eu não podia insistir.
Kate endereçou-lhe um meigo sorriso.
- Eu não estava ferida para o teu irmão.
- O meu irmão?
- Já te esqueceste do Charles?
Adam riu-se.
- Tu és um demónio - disse ele, mas não me fazes acreditar que o meu irmão seria capaz duma coisa dessas.
Bem se me dá que tu não acredites.
- Não acredito, já te disse.
- Acabarás por acreditar. A princípio, interrogar-te-ás, depois, logo virão as dúvidas. Hás-de voltar a pensar no Charles e
em tudo o que ele era. Eu teria podido gostar do Charles. Até certo
ponto, éramos parecidos.
- É falso!
- Verás que te recordas - disse ela. - Talvez te volte um
dia à língua o gosto amargo duma certa chávena de chá. Tu bebeste o meu remédio por distracção. Dormiste como uma pedra e
acordaste tarde e com a cabeça pesada.
- Tu não estavas em estado de imaginar uma coisa dessas.
- Eu sou capaz de tudo -- disse ela.- E agora, despe-te,
meu amor. Vou mostrar-te os meus talentos.
Adam fechou os olhos e sentiu que a cabeça lhe fugia. Reabriu
logo as pálpebras.
- - Isso não tem importância nenhuma, mesmo que seja verdade. Não tem importância nenhuma.
E, de súbito, pôs-se a rir, pois acabava de compreender que
era verdade. Levantou-se com demasiada rapidez e teve de se
agarrar às costas da cadeira para não perder o equilíbrio.
Kate ergueu-se dum salto e segurou-o pelo cotovelo.
- Anda, vou ajudar-te a despires-te.
Adam soltou-se torcendo-lhe a mão e dirigiu-se para a porta a
cambalear.
Nos olhos de Kate relampejou um ódio feroz. Soltou um grito,
longo, agudo, como o de um animal. Adam voltou-se para ela. A
porta abriu-se. O guarda-costas deu três passos, tomou balanço
e atirou-se com todo o peso para cima de Adam, atingindo-o debaixo da orelha. Adam caiu no chão.
Kate berrou:
- A cabeça! Esborracha-lhe a cabeça!
Ralph aproximou-se do homem estendido no chão e levantou
o pé. Os olhos arregalados de Adam não se afastavam dele. Hesitante, voltou-se para Kate.
Ela ordenou-lhe friamente:
- Já te disse para lhe dares com as botas! Parte-lhe a cara!
- Mas ele não se defende, não se quer defender - disse
Ralph.
Kate sentou-se. Arquejava e respirava pela boca. As mãos
crisparam-se nos joelhos.
- Odeio-te - disse ela.- Adam, pela primeira vez odeio-te.
Estás a ouvir-me, Adam, odeio-te.
Adam tentou sentar-se, caiu para o lado e fez uma nova tentativa. Assim que se sentou, olhou Kate.
- Não tem importância - disse ele. - Absolutamente nenhuma. (Pôs-se de joelhos e descansou alguns instantes de gatas).
Sabes que foste a coisa que mais amei no mundo? É verdade.
Um amor tão forte que quase não consegui destruí-lo.
- Hás-de voltar de rastos - disse ela -, hás-de vir suplicar
de rastos.
- Quer que lhe parta a cara agora, Menina Kate? - perguntou
Ralph.
Ela não respondeu. Adam encaminhou-se lentamente para a
porta, segurando-se a cada passo. A mão teve dificuldade em fazer
girar a maçaneta da porta.
Kate chamou:
- Adam!
Ele voltou-se devagar e sorriu-lhe, como a uma recordação.
Depois, saiu e fechou a porta de mansinho.
Kate ficou a olhar para a porta. Parecia desolada.
CAPÍTULO XXVI
No comboio que o levava de volta a King City, Adam Trask
apenas tinha uma vaga percepção de formas, sons e cores.
O cérebro humano deve ter um mecanismo secreto que joeira
os pensamentos, retendo-os ou deixando-os passar, mesmo quando são desconhecidos da própria pessoa. Não é raro adormecer-mos cheios de dores e acordarmos bem dispostos no dia seguinte,
num mundo límpido, acolhedor, libertos das impurezas pelo trabalho da noite. A alegria ferve no sangue, o peito incha, tudo nos
parece perfeito e, contudo, nada houve que pudesse causar ou
justificar tal mudança.
O enterro de Samuel e a visita a Kate só deveriam ter despertado em Adam tristeza e amargura. Afinal, deu-se o contrário.
Ele julgava vogar numa nuvem de êxtase. Sentia-se jovem, livre e
cheio duma alegria voraz. Desceu do comboio em King City e, em
vez de ir logo buscar o carro ao alquilador, dirigiu-se para a nova
garagem de Will Hamilton.
Will estava sentado atrás da divisória de vidro do seu escritório. Assim, vigiava os mecânicos sem ser perturbado pelo estrondo das máquinas. A julgar pela barriga, Will devia estar rico.
Will examinava um prospecto descrevendo as vantagens de
uns charutos preparados e enviados directamente de Cuba. Julgava
estar de luto pelo falecido pai, mas não era verdade. Estava levemente preocupado por causa de Tom que, mal acabara o funeral,
fora para San Francisco. Will acreditava que era mais decente
trabalhar para esquecer como ele tencionava fazer do que beber
para esquecer, como o Tom.
Ergueu os olhos quando Adam entrou no escritório e indicou-lhe uma larga poltrona de coiro onde costumava sentar os clientes
a quem destinava contas chorudas.
Adam sentou-se.
- Não sei se lhe dei os meus pêsames - disse ele.
- Custou-nos muito. Esteve no enterro?
- Estive - respondeu Adam. - Não sei se sabe que eu estimava muito o seu pai. Ele ensinou-me coisas que nunca esquecerei.
- Era muito estimado - disse Will. - Estavam mais de duzentas pessoas no cemitério... mais de duzentas.
- Um homem como ele não morre - disse Adam. (Acabava

de o descobrir). - Não posso crer que esteja morto. Talvez esteja
ainda mais vivo do que antes.
- É isso mesmo - anuiu Will.
Mas não acreditava nem uma palavra.
Para Will, Samuel estava bem morto.
- Lembro-me do que ele dizia - continuou Adam. - Não lhe
prestava muita atenção, mas agora é como se estivesse a ouvi-lo e
a vê-lo outra vez.
- É isso mesmo - disse Will. - Eu estava precisamente a
pensar o mesmo. Vai para o rancho?
- Vou, sim, mas vim vê-lo porque tenciono comprar um automóvel.
Uma mudança subtil operou-se em Will.
- De todos os homens do Vale, sempre julguei que fosse o
senhor o último a comprar um automóvel.
Através dos olhos semicerrados, observou a reacção de Adam.
- Tem toda a razão - disse Adam a rir. - Talvez seja o seu
pai o responsável pela minha mudança de atitude.
- Porque diz isso?
- Não sei se seria capaz de explicar-lhe. Falemos antes de
automóveis.
- Para ser franco, tenho enorme dificuldade em obter o número suficiente de carros para satisfazer as encomendas. A lista
de inscrições é bastante comprida.
- Ah! sim? Então, nesse caso, inscreva-me na lista.
- Com todo o prazer, Sr. Trask. (Fez uma ligeira pausa.) O senhor é tão amigo da minha família que, se houvesse uma desistência, teria todo o gosto em lhe dar a preferência...
- É muita amabilidade sua - disse Adam.
- Que modalidade deseja escolher?
- Não percebo.
- Quer pagar em prestações mensais?
- Assim não será mais caro?
- Bom, há os juros e as despesas, mas há pessoas que
preferem essa modalidade.
- Eu prefiro pagar a pronto - disse Adam. - Não tenho necessidade nenhuma de desperdiçar dinheiro.
Will riu-se.
- Nem toda a gente pensa como o senhor - disse ele. - E
há-de vir uma época em que eu perderei dinheiro se vender só a
pronto.
- Não tinha pensado nisso - disse Adam. - Então, fica entendido, põe-me na lista?
Will inclinou-se para ele.
- Sr. Trask, vou pô-lo à cabeça da lista. O primeiro carro que
chegar é para si.
- Muito obrigado.
- Não tem nada que agradecer.
Adam perguntou:
- E a sua mãe? Como vai suportando o golpe?
Will encostou-se à cadeira, com um sorriso afectuoso nos
lábios.
- É uma mulher notável - disse ele -, sólida como uma
rocha. Como sabe, tivemos tempos muito difíceis. O meu pai não
era um homem prático, andava sempre nas nuvens ou mergulhado nos livros. Tenho a impressão de que foi graças à minha mãe
que os Hamilton não acabaram no asilo.
- É uma excelente mulher - disse Adam.
- Não é só uma excelente mulher, também sabe onde põe
os pés. É uma mulher de armas. O senhor foi a casa da Olive
depois do enterro?
- Não fui, não.
- Estavam lá mais de cem pessoas. Pois bem! foi a minha
mãe quem fritou todos os frangos e quem teve o cuidado de ver
se todos tinham ficado bem servidos.
- Não me diga?a,
- É verdade! E tratava-se do marido!
- Uma mulher notável - disse Adam, repetindo a frase de
Will.
- Uma mulher prática! Tinha gente a quem dar de comer e
deu-lhe de comer.
- Espero que se resigne, mas foi uma grande perda para
ela.
- Há-de se resignar - disse Will. - Aquela amostra de mulher há-de nos enterrar a todos.
No regresso ao rancho, Adam apercebeu-se de que reparava
em coisas que já não via há anos: as flores silvestres na erva alta e
as vacas ruças que pastavam no flanco da colina, à beira dos
caminhos. Ao chegar à sua herdade, Adam sentiu um prazer fugaz
mas tão intenso que procurou determinar-lhe a causa. E, de súbito,
surpreendeu-se a cantar em voz alta, ao ritmo dos cascos do cavalo.
- Sou livre, sou livre. Já não tenho preocupações. Sou livre.
Ela saiu de mim, foi-se embora. Oh! Cristo Todo-Poderoso, sou
livre!
Estendeu o braço e apanhou um pé de artemísia. Esmagou
as folhas e encheu os pulmões com o cheiro penetrante. Estava
satisfeito por voltar a casa. Queria ver se os gémeos tinham
crescido durante aqueles dois dias... Tinha vontade de ver os
gémeos.
- Sou livre, ela saiu da minha vida - cantava ele em voz
alta.
Lee saiu de casa e segurou as rédeas do cavalo enquanto
Adam descia do cabriolé.
- Como estão os meninos? - perguntou Adam.
- Estão óptimos. Fiz-lhes arcos e flechas e foram caçar coelhos para o pé da ribeira. Mas não garanto que se coma coelho à
caçadora esta noite.
- Não houve novidade nenhuma?
Lee olhou-o com espanto, esteve prestes a fazer um comentário, mas mudou de ideia.
- Como se passou o enterro?
- Havia muita gente. O Samuel tinha muitos amigos. Não há
maneira de me convencer de que já morreu.
- No meu país, os enterros fazem-se ao som dos tambores.
Atiramos estalinhos à roda do caixão para assustar os demónios e,
nas sepulturas, em vez de flores, pomos leitões assados. Nós somos um povo prático e esfomeado. Para mais, os nossos demónios não são lá muito espertos. Deixam-se enganar, o que já representa um progresso.
- Parece-me que o Samuel gostaria de ser enterrado à vossa moda - disse Adam. - Havia de interessá-lo. (Reparou que
Lee o observava.) - Vá guardar o cavalo, Lee, e traga-nos chá,
preciso de falar consigo.
Adam foi ao quarto e despiu o fato preto impregnado do odor
adocicado do rum. Pôs-se nu e esfregou-se com sabão azul até
fazer desaparecer o cheiro. Vestiu uma camisa lavada, azul, e um
macaco amaciado pelas lavagens e puído nos joelhos pelo uso.
Lentamente, barbeou-se e penteou-se.
Na cozinha, Lee atiçava o lume. Adam dirigiu-se para a sala.
Lee colocara uma chávena e um açucareiro na mesa, em frente
da grande poltrona. Adam olhou em redor. As flores estampadas
das cortinas tinham perdido a cor, os tapetes estavam gastos e, à
entrada da porta, o oleado tinha uma faixa escura. Tudo aquilo era
novidade para ele.
Quando Lee entrou com o bule, Adam disse-lhe:
- Traga uma chávena para si, Lee. E se ainda tiver restos do
seu licor, não me importava de beber. A noite passada embriaguei-me.
Lee disse:
- O senhor, embriagado? Até custa a acreditar.
- Pois é verdade, e quero falar-lhe nisso. Reparei que me
estava observando.
- A sério? - perguntou Lee.
E foi à cozinha buscar a chávena, os copos e a garrafa de ngka-py.
Ao voltar, disse:
- As únicas vezes em que o bebi durante todos estes anos,
foi com o senhor e com o Sr. Hamilton.
- É a mesma garrafa daquele dia em que pusemos nomes
aos gémeos?
- Precisamente a mesma.
Lee deitou o chá a ferver nas chávenas e fez uma careta ao ver
que Adam punha duas colheres de açúcar na sua.
Adam mexeu o chá e observou os pequenos turbilhões do
açúcar que se derretia.
- Fui vê-la - disse ele.
- Fez bem - disse Lee. - Só não sei como pôde esperar
tanto tempo.
- Talvez eu já não fosse um homem.
- Cheguei a duvidar. Como a achou?
Adam respondeu devagar:
- Não sou capaz de a compreender. Não consigo acreditar
que possa haver uma tal criatura na terra.
- O defeito dos ocidentais é não terem demónios para explicar o inexplicável. Foi depois disso que se embriagou?
- Não, foi antes e durante. Acho que foi para consolidar a
coragem.
- Agora parece estar bem.
- Claro que estou bem - disse Adam. - Era nisso que lhe
queria falar. Se fosse o ano passado, teria corrido para o Sam
Hamilton.
- Talvez ambos tenhamos herdado alguma coisa dele - disse Lee. - Quem sabe se a imortalidade não é isso mesmo?
- Tenho a sensação de sair dum sonho - disse Adam. - Abriram-se-me os olhos e parece que fui aliviado dum peso.
- O senhor utiliza palavras que soam às do Sr. Hamilton - disse Lee. - Tenho de arquitectar uma teoria e apresentá-la aos
meus veneráveis parentes.
Adam bebeu o licor negro e passou a língua pelos lábios.
- Sou livre - disse ele.- E não posso passar sem o dizer a
alguém. Agora, vou poder viver com os meus filhos. Até poderei
olhar para uma mulher. Compreende o alcance do que lhe estou
dizendo?
- Perfeitamente. Os seus olhos e o seu corpo dizem a mesma coisa. É um sentimento que custa a disfarçar. Vai ver que gosta
dos seus rapazes.
- Seja como for, vou tentar viver. Não se importa de tornar a
encher as chávenas?
Lee serviu o chá e levou a chávena à boca.
- Não percebo como faz para não se escaldar - disse Adam.
Lee sorria interiormente. Adam, ao olhá-lo, descobriu que Lee
já não era um rapaz. A pele do rosto estava enrugada nuns lados
e lisa e brilhante noutros. Em torno dos olhos, tinha uma orla
avermelhada. Lee contemplou a fina porcelana, sorrindo a uma
recordação.
- Se é livre, talvez me possa libertar...
- Que quer dizer, Lee?
- Importa-se que me vá embora?
- Claro que se pode ir embora. Então não se sente feliz aqui?
- Creio nunca ter sabido o que é aquilo a que chamam felicidade. Nós procuramos a satisfação, o que talvez seja negativo.
Adam disse:
- Chame-lhe o que quiser. Então não está satisfeito?
- Não me parece que um homem o possa estar quando lhe
restam certas coisas a fazer.
- Que coisas?
- Para a primeira, já é muito tarde. Gostaria de ter tido mulher e filhos. Talvez desejasse adquirir essa estupidez a que chamam a sabedoria dos pais, e obrigar os meus filhos indefesos a
tirarem o respectivo proveito.
- Mas você ainda não está velho.
- Oh! fisicamente acho que sou ainda capaz de procriar, mas
não é isso o que me detém. Já estou farto da companhia do
candeeirinho da mesa de cabeceira. Sabe que já fui casado, Sr.
Trask? Imaginei uma mulher, como o senhor, mas a minha não
existia fora da minha imaginação. Era a agradável companheira
do meu quartinho solitário. Eu falava-lhe e ela escutava, depois
era ela quem falava e me contava o que lhe acontecera durante o
dia. Era muito bonita e dava-se muito às pequenas vaidades. Hoje,
não sei se teria paciência para aturá-la. Ora eu não quereria que a
minha mulher se sentisse triste ou abandonada. Por isso renunciei à minha primeira ideia.
- E qual é a segunda?
- Falei no assunto ao Sr. Hamilton. Gostaria de abrir uma
livraria no bairro chinês de San Francisco. Viveria nas traseiras da
loja e passaria os dias em longas discussões. Venderia desses
pequenos blocos de tinta solidificada que têm a forma dum dragão
e datam da dinastia dos Sung. As caixas são roídas pelo bicho e a
tinta é fabricada com fuligem de abeto e uma cola à base de pele de
onagro. Quando se pinta, com essa tinta, pode parecer preta mas,
na realidade, sugere à vista todas as cores do mundo. Talvez entrasse
algum pintor na loja e nos puséssemos a conversar e a discutir o
preço.
Adam perguntou:
- Não está a inventar tudo isso?
- Não estou, não. Se o senhor está livre e se sente bem,
gostaria de poder abrir finalmente a minha livraria. E também gostaria de nela morrer.
Adam manteve-se em silêncio, enquanto mexia o chá morno.
Depois, disse:
- É engraçado, estava a desejar que fosse escravo para lhe
recusar a liberdade. Mas pode-se ir embora se quiser. E empresto-lhe dinheiro, caso precise.
- Dinheiro, já eu tenho há muito tempo.
- Nunca imaginei que se pudesse ir embora - disse Adam.
- Convenci-me de que ficava cá até ao fim da vida.
Adam endireitou-se.
- Importa-se de adiar um poucochinho a partida?
- Para quê?
- Quero que me ensine a conhecer os meus filhos. Quero pôr
o rancho em ordem, ou talvez vendê-lo ou arrendá-lo. Queria saber
quanto dinheiro me resta e o que poderei fazer com ele.
- Não estará a querer armar-me um laço? - perguntou Lee.
- A minha vontade já não é tão forte como dantes. Sinto que
poderia deixar-me dissuadir ou, o que é pior, poderia deixar-me
ficar se verificasse que precisam de mim. - Veja se não precisa de
mim. É o isco mais atraente para um homem solitário.
Adam disse:
- Um homem solitário! Devo ter descido muito baixo para
não ter pensado nisso antes.
- O Sr. Hamilton sabia - disse Lee.
Ergueu a cabeça e as pálpebras semicerradas deixaram entrever apenas duas centelhas.
- Nós, os Chineses - disse ele -, sabemos dominar-nos.
Nunca mostramos emoção. Eu gostava muito do Sr. Hamilton. Se
me der licença, irei amanhã a Salinas.
- Faça o que lhe apetecer - disse Adam. - Só Deus sabe o
que já fez por mim.
- Irei atirar estalinhos - disse Lee -, e pôr um leitão assado
na sepultura do meu pai.
Adam levantou-se, apressadamente, entornando a chávena,
e saiu, deixando Lee sozinho.
CAPITULO XXVII
1
Naquele ano a chuva caiu com tal regularidade que não houve cheias no Salinas. As águas límpidas corriam, quase preguiçosas, no fundo do largo leito de areia parda.
Os salgueiros estavam verdes e as amoreiras silvestres desferiam os braços em todas as direcções.
Fazia já muito calor para um mês de Março e o vento do sul
torcia as folhas que mostravam o reverso prateado.
No meio duma clareira rodeada de moitas, perfeitamente abrigada, um coelhinho bravo aquecia-se sossegadamente ao sol,
secando o pêlo molhado pelo orvalho do pequeno almoço. De vez
em quando, o coelho franzia o focinho e espetava as orelhas para
captar tudo o que pudesse ameaçar a vida dum coelho bravo. Sentiu
debaixo das patas uma vibração ritmada do solo, prestou atenção e
franziu o focinho, mas as vibrações cessaram. Depois, houve um
estalido nos ramos dum salgueiro.
Ainda se ouviram ruídos interessantes, mas não ameaçadores: uma pancada e um assobio que se assemelhava ao voo dum
pombo bravo. O coelho espreguiçou uma pata. Produziu-se então
um novo estalido, um assobio e um trovão. O coelho ficou completamente imóvel e com o olhar esgazeado. Uma flecha de bambu
atravessara-lhe o peito e pregava-o ao chão. Caiu de lado, as patas
pedalaram desenfreadamente no ar e, por fim, imobilizou-se.
Duas crianças saíram gatinhando de debaixo do salgueiro. Na
mão tinham um arco e levavam ao ombro um carcás de onde
emergiam as penas das flechas. Vestiam fato-macaco e camisas
de um azul desbotado. Na testa, ostentavam uma grande pena de
peru segura por uma fita.
Aproximaram-se com cautela, como se fossem índios nos trilhos de guerra. Os últimos sobressaltos da morte já tinham agitado
o coelho quando os dois rapazes se debruçaram para a vítima.
- Em cheio no coração - disse Cal, como se não pudesse
ser doutra maneira.
Aron baixou os olhos e não disse nada.
- Eu direi que foste tu - continuou Cal -, não me interessa
colher os louros. Direi até que foi um tiro difícil.
- E foi mesmo - disse Aron.
- Ouve, vou dizer ao Lee e ao papá que foste tu.
- Porquê? Não percebo - disse Aron. - Vamos antes fazer
assim: se matarmos outro, diremos que cada um acertou no seu.
E se não matarmos outro, diremos que disparámos ao mesmo
tempo e que não sabemos qual foi a flecha que acertou.
- Não queres ser tu? - perguntou Cal.
- Prefiro dividir contigo.
- No fim de contas, foi a minha flecha - disse Cal.
- Ah! isso é que não foi!
- Repara nas penas, estás a ver esta tarja? É a minha seta.
- Então porque estava na minha aljava? Não me recordo de
ter visto nenhuma tarja.
- Isso não tem importância. Para mais, vou dizer que foste
tu.
Aron disse com um ar de gratidão:
- Não, Cal, não quero. Diremos que atirámos ao mesmo tempo.
- Como quiseres. Mas supõe que o Lee descobre que é a
minha seta?
- Diremos que estava na minha aljava.
- Julgas que pega? Pensa logo que estás a mentir.
Aron conformou-se:
- Se ele julgar que foste tu que o mataste, pronto! deixá-lo
julgar.
- Eu só te queria prevenir- disse Cal.
Arrancou a flecha fazendo-a passar através do corpo do coelho
e as penas brancas tingiram-se de sangue. Cal guardou a flecha no
carcás.
- Podes levar o coelho - concedeu ele, magnânimo.
- Devíamos voltar para casa - disse Aron. - O papá já deve
ter chegado.
Cal propôs:
- Podíamos assar o coelho, comê-lo e passar a noite fora de
casa.
- Está muito frio, Cal. Não te esqueças de que tiveste arrepios esta manhã.
- Eu nunca tive frio.
- Menos esta manhã.
- É mentira. Estava a gozar-te fingindo que tremelicava como
uma criança de colo. Estás a chamar-me mentiroso?
- Não - disse Aron. - Não quero jogar à pancada.
- Tens medo de jogar à pancada?
- Não, mas não quero.
- E se eu te dissesse que tens medo, eras capaz de me
chamar mentiroso?
- Claro.
Aron afastou-se devagar, deixando o coelho no chão. Tinha
grandes olhos azuis muito afastados e uma boca carnuda e meiga. Todo o seu rosto reflectia uma inocência angélica. O sol parecia cintilar nos belos cabelos doirados.
Cal saía mais ao pai. O cabelo era castanho-escuro. Mais
forte que o irmão, tinha maior arcaboiço, ombros mais volumosos
e herdara de Adam a maxila quadrada e os olhos castanhos. O
olhar era vivo com reflexos de diamante. As mãos eram muito
pequenas em relação ao resto do corpo, com dedos compridos e
finos, e unhas delicadas. Cal preocupava-se muito com as mãos.
Raramente chorava, mas um corte num dedo fazia-lhe vir as lágrimas aos olhos. Não aventurava as mãos e nunca se servia delas para tocar num insecto ou apanhar uma cobra e, quando lutava, era à pedrada ou à paulada.
Ao ver o irmão afastar-se, sorriu com um ar satisfeito.
- Aron, espera por mim - gritou ele.
Quando chegou ao pé do irmão, estendeu-lhe o coelho.
- Podes levá-lo - disse com afabilidade. (E passou o braço
pelo ombro do irmão.) - Não fiques zangado.
- Andas sempre a querer jogar à pancada.
- Não ando nada, era só para te desfrutar.
- A sério?
- Sério. Toma, pega no coelho e vamos já para casa, se quiseres.
Aron acabou por sorrir. Sentia sempre um grande alívio quando o irmão punha termo às hostilidades. Os dois irmãos saíram da
vala da ribeira e treparam pelo carreiro. O sangue do coelho pingava
nas calças de Aron.
Cal disse:
- Eles vão ficar admirados quando virem que matámos um
coelho. Se o papá já estiver de volta, damos-lhe o coelho, ele gosta de coelho à caçadora.
- Está bem - disse Aron com alegria. - Ouve, vamos os
dois e não dizemos quem o matou.
- Como quiseres - disse Cal.
Caminharam um longo momento em silêncio, até que Cal disse:
- Toda esta terra até muito para lá da ribeira nos pertence.
- Pertence ao papá.
- Pois é, mas quando ele morrer ficará para nós.
Aron nunca pensara nisso.
- Que queres tu dizer com quando ele morrer?
- Toda a gente morre - disse Cal. - Como o Sr. Hamilton,
que morreu.
- Ah!, pois - disse Aron. - É verdade, morreu.
Não conseguia estabelecer uma relação entre o Sr. Hamilton
morto e o pai vivo.
- Metem-nos numa caixa, abrem um buraco e põem a caixa
lá dentro - explicou Cal.
- Bem sei.
Aron preferia mudar de assunto e pensar noutra coisa.
- Eu conheço um segredo - disse Cal.
- Que segredo é?
- Tu vais contar!
- Não conto se me pedires.
- Não sei se devo dizer-te.
- Diz - suplicou Aron.
- Não o vais repetir?
- Onde julgas que está a nossa mãe? - perguntou Cal.
- A mãe morreu.
- Isso é o que tu imaginas.
- Garanto-te que morreu.
- A mãe fugiu - disse Cal. - Ouvi contar a umas pessoas.
- Eram mentirosos.
- Já te disse que fugiu. Tu não vais repetir?
- Não acredito - disse Aron. - O papá disse que ela estava no céu.
Cal disse calmamente:
- Um destes dias vou à procura dela e hei-de trazê-la comigo.
- Essas pessoas disseram-te onde estava?
- Não disseram, mas hei-de encontrá-la.
- Está no céu - repetiu Aron. - Porque havia o papá de
mentir?
Olhou o irmão, pedindo-lhe silenciosamente que aquiescesse. Cal não respondeu.
- Não acreditas que ela esteja no paraíso com os anjos? -
insistiu Aron.
E vendo que Cal não lhe replicava:
- A quem foi que ouviste dizer?
- A umas pessoas, na estação dos correios de King City.
Não sabiam que estava a escutar, mas eu tenho bom ouvido. O
Lee até diz que eu era capaz de ouvir a erva a crescer.
- Porque se teria ela ido embora? - perguntou Aron.
- Sei lá!? Talvez por não gostar de nós.
Aron analisou esta heresia.
- Não, - disse ele. - As tais pessoas não passavam de mentirosos. O papá disse que ela estava no céu e tu bem sabes que
ele não gosta que se fale nela.
- Justamente, talvez seja por ela se ter ido embora.
- Não, eu perguntei ao Lee e sabes o que ele me respondeu? «A vossa mãe gostava de vocês e ainda gosta.» E mostrou-me uma estrela, dizendo que talvez fosse a nossa mãe e que ela
gostaria de nós enquanto essa estrela brilhasse. Não me vais dizer
que o Lee é um mentiroso, pois não?
Por entre as lágrimas que brotavam, Aron podia ver a expressão
dos olhos de Cal, duros e determinados. Não havia lágrimas nos
olhos dele.
Cal estava encantado. Encontrara outro instrumento secreto
que poderia utilizar na primeira oportunidade. Observou Aron e viu-lhe os lábios trémulos e as narinas frementes. Às vezes, excitado
pelas lágrimas, Aron lutava. E quando chorava e lutava ao mesmo
tempo, tornava-se perigoso. Ficava insensível e nada o podia deter.
Certa vez, o Lee segurara-o à força no colo e ele tentara inutilmente
bater-lhe, só se acalmando depois de porfiados esforços. Nessa
ocasião, também tinha as narinas frementes.
Cal resolveu arrumar o novo instrumento. Poderia empregá-lo
quando lhe apetecesse. Sabia que acabara de descobrir a mais
bela arma da sua panóplia; examiná-la-ia quando estivesse mais
sossegado e, então, determinaria a altura em que deveria aplicá-la.
Mas a decisão já chegara um pouco tarde. Aron atirou-se para
a frente e o corpo mole do coelho morto foi esborrachar-se na
cara de Cal, que deu um salto para trás e gritou:
- Era a brincar, juro-te, Aron, eu estava a brincar!
Aron não se moveu. O rosto reflectia o espanto e a dor.
- Não aprecio essas brincadeiras - disse ele.
Depois, fungou e limpou o nariz com a manga.
Cal aproximou-se dele e beijou-o na cara.
- Não torno - disse ele.
Os rapazes prosseguiram a caminhada em silêncio. A luz do
dia começava a baixar. Cal olhou por cima do ombro uma nuvem
negra que roçava o alto da serra, empurrada pelo vento.
- Vem aí uma tempestade - disse ele -, uma tempestade
danada.
- Tens a certeza de ter ouvido essas pessoas? - perguntou
Aron.
- Talvez tivesse sonhado - disse Cal apressadamente. -
Oh! olha para a nuvem.
Aron voltou-se para ver o monstro negro. A nuvem parecia
um balão a referver arrastando uma longa cauda de chuva. Subitamente, estrondeou e lançou chispas. Levado pelo vento, o trovão foi
repercutir nas colinas molhadas, do outro lado do Vale, e, no
regresso, veio abalar as terras planas. Os dois rapazes puseram-se em fuga, perseguidos pela nuvem tonitruante e pelos relâmpagos que rasgavam o ar. O monstro conseguiu apanhá-los e as
primeiras gotas de chuva esmagaram-se no chão. Enquanto corriam, os rapazes respiravam o cheiro de ozone das descargas.
Na altura em que enveredaram pela estrada que levava a casa,
a tromba despenhou-se sobre eles. A chuva jorrava em colunas,
empapando-os até aos ossos. Os cabelos colavam-se à testa,
escondendo-lhes os olhos, e as penas de peru vergavam ao peso
da água.
Já que não se podiam molhar mais, os rapazes deixaram de
correr. Olharam um para o outro e desataram a rir. Aron pegou no
coelho, atirou-o ao ar e apanhou-o; a seguir, atirou-o a Cal, que o
pôs ao pescoço, com a cabeça e as patas traseiras reunidas debaixo do queixo. Dobrados ao meio, riam como doidos. A chuva
tamborilava nos carvalhos e o vento descompunha-lhes a altiva
dignidade.
2
Os gémeos chegaram à vista dos edifícios do rancho no momento em que Lee, envolvido num poncho de oleado amarelo,
metia na cocheira um cavalo e um cabriolé de rodas de borracha.
- Temos visitas - disse Cal. - Viste o carro?
Puseram-se a correr porque gostavam de visitas. No entanto,
quando chegaram à entrada afrouxaram o passo e deram a volta
à casa, pois sentiam um leve receio dos desconhecidos. Entraram na cozinha e pararam, escorrendo água. Chegaram-lhes vozes da sala, a do pai e a de outro homem. Depois, a terceira voz
fez passar-lhes um arrepio pela espinha. Era uma voz de mulher.
Não estavam habituados às mulheres. Na ponta dos pés, dirigiram-se para o quarto e interrogaram-se com um olhar.
- Quem supões tu que seja? - perguntou Cal.
Aron parecia fulminado. A vontade dele seria gritar:
- Talvez seja a mamã, talvez ela tenha voltado.
Mas lembrou-se de que ela estava no céu e que é um sítio de
onde não se volta. Por isso, apenas respondeu:
- Não sei. Vou mudar de roupa.
Vestiram roupas enxutas que eram réplicas exactas das que
acabavam de despir. Livraram-se das penas de peru e pentearam o
cabelo com os dedos. Continuavam a ouvir as vozes, a maior parte
das vezes baixas, mas dominadas aqui e além pela voz mais aguda da mulher. De repente, ficaram petrificados, ao reconhecerem
uma voz de criança, uma voz de rapariga. E era tão emocionante
que nem sequer trocaram uma palavra.
Silenciosamente, percorreram o corredor que levava ao vestíbulo e dirigiram-se com pezinhos de lã para a entrada da sala. Cal
girou a maçaneta muito devagar para que não fizesse o menor ruído.
Abrira-se apenas uma nesga da porta, quando Lee surgiu vindo dos
fundos e despindo o poncho.
- Mininos à espleita - disse ele em pidgim.
Cal largou o fecho da porta e o trinco deu um estalido. Lee
disse apressadamente:
- O vosso pai já chegou. Vão cumprimentá-lo.
Aron murmurou:
- E os outros?
- É gente de passagem. Entraram para se abrigarem do temporal.
Lee girou a maçaneta e abriu a porta.
- Os mininos já chegalam!- disse ele.
E deixou-os ali, expostos aos olhares.
Adam exclamou:
- Entrem, meus filhos, entrem.
Os gémeos entraram de cabeça baixa e olhar assustado. Na
sala estavam um homem de trajo de passeio e uma senhora com
o mais lindo vestido que já tinham visto. Numa cadeira ao lado,
colocara o chapéu e o casaco. A senhora estava coberta de seda
e rendas pretas da cabeça aos pés. Até no pescoço tinha uma fita
preta. Para um dia, já chegava de emoções, mas ainda havia mais.
Ao lado da senhora, sentava-se uma rapariga, talvez um pouco
mais nova que os gémeos. Na cabeça tinha um chapéu azul de
aba larga, adornado de rendas. O vestido era todo florido e, preso à
cintura, tinha um avental com algibeiras. A saia estava levantada,
deixando ver outra saia de lã encarnada, enfeitada com motivos
geométricos. Os rapazes não lhe podiam ver a cara por causa do
chapéu, mas as mãos estavam cruzadas nos joelhos e brilhava um
anel de oiro no terceiro dedo. Nenhum dos dois gémeos recobrara a
respiração e começavam a ver discos vermelhos dançando diante
dos olhos.
- Os meus filhos - disse Adam. - São gémeos. Meninos,
apertem a mão aos nossos convidados.
Os rapazes avançaram de cabeça baixa e mãos erguidas,
numa atitude de abandono e desespero. O cavalheiro, seguido da
senhora de rendas, sacudiu-lhes a mão e Aron, que ia à frente, não
se aproximou do chapéu azul.
- Então tu não cumprimentas a minha filha? - perguntou a
dama.
Aron estremeceu e, depois, estendeu a mão às cegas em
direcção à rapariga com a cara oculta. Nada sucedeu. Os dedos
não foram agarrados, nem torcidos ou apertados, nem sacudidos...
A mão ficou simplesmente estendida no ar. Aron olhou à
sorrelfa para ver o que se passava.
Ela também tinha a cabeça baixa, mas escudava-se no chapéu. Também estendera a mão direita onde brilhava o anel, mas
mantinha-a rígida.
Aron lançou um olhar à senhora, que sorria de boca aberta. A
sala parecia esmagada pelo peso do silêncio. Aron ouviu Cal soltar um risinho atrás de si.
Desesperado, atirou a mão para a frente e agarrou a da menina, sacudindo-a três vezes. Era tão macia como um punhado de
pétalas. Sentiu-se invadido por um cálido prazer. Largou a mão e
enfiou a sua no bolso. Na altura em que batia apressadamente
em retirada, viu Cal que avançava e apertava cerimoniosamente a
mão, perguntando: «Como está?» Aron, que se esquecera de o
fazer, pronunciou a frase após o irmão, soando-lhe de forma estranha. Adam e as visitas riram-se.
Adam disse:
- O Sr. e a Sr.a Bacon foram surpreendidos pela tempestade.
- Tivemos sorte em nos perdermos para estes lados - disse
o Sr. Bacon. - Andávamos à procura do rancho dos Long.
- Fica mais longe. Deviam ter cortado à esquerda quando
saíram da estrada do Vale.
Adam dirigiu-se aos filhos:
- O Sr. Bacon é conselheiro comunal.
- Não percebo porquê, levo muito a sério as minhas funções
- disse o Sr. Bacon.
E dirigiu-se aos dois rapazes no tom empregado pelos adultos para falarem às crianças:
- A minha filha chama-se Abra. Não é um nome engraçado?
Depois, voltou-se para Adam e recitou os dois primeiros versos do poema:
Chamei por outra e Abra acorreu:
Foi a primeira que me apareceu.
- São de Matthew Prior. Não nego que preferia um rapaz, mas
a Abra tem sido um grande conforto para nós. Levanta a cabeça,
querida.
Abra não se moveu, conservando as mãos cruzadas nos joelhos. O pai repetiu:
- Pois é verdade: «Foi a primeira que me apareceu».
Aron viu que o irmão lançava um olhar audacioso ao chapéu,
e disse com a voz rouca:
- Não acho que Abra seja um nome esquisito.
- Quando o meu marido disse que era um nome engraçado,
não era nesse sentido - explicou a Sr.a Bacon. - Ele pretendia
dizer que era um nome curioso.
E voltando-se para Adam:
- O meu marido acha nos livros as coisas mais estranhas.
Não serão horas de nos irmos embora, querido?
Adam protestou:
- Não se vão já embora. O Lee vai servir-nos chá, é bom
para aquecerem.
- Mas que gentileza! - disse a Sr.a Bacon.
E acrescentou:
- Já não chove, meus filhos. Vão brincar lá para fora.
A voz tinha uma tal autoridade que saíram logo os três, Aron à
frente, seguido de Cal e de Abra.
3
O Sr. Bacon traçou as pernas.
- Parece uma bela propriedade. Tem muito terreno?
- Bastante - respondeu Adam -, é tudo meu até ao outro
lado do rio. No conjunto, é um bom pedaço de terra.
- Então tudo o que está do outro lado da estrada também é
seu?
- É, sim, e tenho quase vergonha de confessar que deixei
tudo ao abandono. Talvez seja por ter trabalhado de mais no campo quando era novo.
O Sr. e a Sr.a Bacon olharam Adam e ele compreendeu que
devia explicar porque tinha deixado a terra ao abandono.
- Devo ser preguiçoso - disse ele -, o meu pai prestou-me
um mau serviço deixando-me dinheiro bastante para poder viver
sem trabalhar.
Baixou os olhos, mas compreendeu que os Bacon tinham ficado aliviados. Como era rico, não se tratava de preguiça. Só os
pobres são preguiçosos. Do mesmo modo que só os pobres são
ignorantes. Um homem rico que nada faz é pervertido ou independente.
- Quem cuida dos seus filhos? - perguntou a Sr.a Bacon.
Adam riu-se.
- O pouco caso que fazem deles está a cargo do Lee.
- Do Lee?
Adam principiava a sentir-se ligeiramente irritado.
- Não tenho mais ninguém - disse ele com secura.
- O quê, aquele chinês?
A Sr.a Bacon ficara chocada. Adam sorriu-lhe. A principio, ela
assustara-o mas, agora, sentia-se mais à vontade.
- Foi o Lee quem criou os pequenos e tratou de mim.
- Então nunca tiveram uma mulher que cuidasse deles?
- Nunca.
- Pobres cordeirinhos - disse ela.
- São um pouco selvagens, mas têm saúde - disse Adam.
Tenho a impressão de que nos tornámos todos mais ou menos
selvagens, como a terra. Agora o Lee vai deixar-me e eu não sei o
que hei-de fazer.
O Sr. Bacon empurrou cuidadosamente o pigarro para que não
lhe estragasse o efeito das palavras.
- Já pensou na educação dos seus filhos?
- Para falar com franqueza... ainda não.
A Sr.a Bacon afirmou:
- O meu marido acredita nas virtudes da educação.
- É a chave do futuro - disse o Sr. Bacon.
- Que espécie de educação? - perguntou Adam.
O Sr. Bacon prosseguiu:
- O homem de saber tem tudo a seu favor. É como lhe digo,
eu acredito na luz da ciência.
Inclinou-se para a frente e a voz saiu mais confidencial.
- Já que não explora o rancho, porque não o arrenda e vai
viver para a cidade, onde não faltam escolas?
Adam ainda teve vontade de lhe responder:
«Porque não se mete antes na sua vida?»
Mas contentou-se em perguntar:
- Acha que seria uma boa ideia?
- Eu poderia arranjar-lhe um bom arrendatário - disse o Sr.
Bacon. - Se não viver nesta terra, será natural que ela lhe dê um
bom rendimento.
Lee fez muito barulho ao trazer o chá. Ouvira o bastante atrás
da porta para saber que Adam considerava aquelas pessoas bastante maçadoras. Lee tinha a certeza de que não gostavam de
chá e se, por acaso, gostassem, haviam de ficar um pouco admirados com a beberagem que lhes preparara. Mas o casal Bacon
bebeu o chá e fez-lhe tantos elogios que Lee compreendeu imediatamente que não passavam de refinados hipócritas. Tentou
captar o olhar de Adam, mas Adam parecia embevecido na contemplação do tapete.
A Sr.a Bacon ia dizendo: «O meu marido fez parte do conse lho escolar durante vários anos» quando Adam deixou de a ouvir.
À sua frente, via uma espécie de globo terrestre branco que
baloiçava na ponta dum ramo dum dos seus carvalhos e, depois,
sem razão aparente, o globo foi substituído pelo pai dele, claudi cando em cima da perna de pau e batendo-lhes com a bengala para
os meter na ordem. Adam via o homem severo e marcial, coman dando os filhos que levavam grandes pesos às costas para desenvolverem as espáduas. A voz da Sr.a Bacon servia de contraponto.
Adam sentiu nos ombros o saco cheio de pedras. Viu a cara de
Charles e o seu sorriso sardónico, Charles, o irmão, mau, violento e
brutal. Subitamente, Adam sentiu desejos de ver Charles. Faria a
viagem e levaria os filhos. Alegremente, bateu na coxa.
- Como? - exclamou o Sr. Bacon.
- Desculpe, mas acabo de me lembrar de uma coisa que me
esqueci de fazer.
Os dois Bacon esperaram paciente e delicadamente por uma
explicação. Adam pensava:
«E porque não? Não me interessa ser conselheiro municipal.
Não faço parte de nenhum conselho escolar. Porque não?»
E disse aos convidados:
- Acabo de me lembrar que não escrevo ao meu irmão há
dois anos.
Os Bacon tiveram um sobressalto e trocaram um olhar.
Lee acabava de encher novamente as chávenas. Adam viu-lhe
as bochechas inchadas e ouviu-o estoirar de riso no corredor.
Os Bacon não fizeram nenhum comentário. Discutiriam o assunto quando estivessem sós.
Lee previu como as coisas se passariam. Atrelou o cavalo ao
cabriolé de rodas de borracha e trouxe-o logo para a porta.
4
Quando Abra, Cal e Aron saíram, ficaram à porta vendo a
chuva que gotejava dos grandes carvalhos. O temporal afastara-se
e só se ouvia um longínquo trovejar. Mas a chuva parecia estar para
durar.
Aron perguntou:
- Porque foi que a senhora nos disse que já não chovia?
Abra respondeu-lhe com sagacidade:
- É que não olhou. Quando fala, nunca olha.
Cal perguntou:
- Que idade tens?
- Vou fazer onze anos - disse Abra.
- Ora! - disse Cal. - Nós já temos quase doze.
Abra atirou o chapéu para trás. Circundava-lhe a cabeça como
uma auréola. Era bonita, de cabelos escuros, penteados em duas
tranças. Tinha a testa redonda e saliente e as sobrancelhas formavam uma linha recta. O nariz viria a ser bonito mas, por enquanto, parecia um botão. Mas o rosto já tinha feições definitivas:
o queixo firme e a boca bonita como uma flor, muito larga e rosada. Os olhos cor de avelã tinham um olhar penetrante, inteligente
e audacioso. Abra fitou os dois rapazes, um após outro. Já não
era a menina paralisada pela timidez que tinham visto na sala.
- Ninguém diria que são gémeos - disse ela. - Não se
parecem nada.
- Mas somos - disse Cal.
- Somos, pois - disse Aron.
- Há gémeos que não são parecidos - teimou Cal.
- Há mesmo muitos - insistiu Aron. - O Lee já nos explicou: se uma senhora tiver um ovo, os gémeos são parecidos; se
tiver dois ovos, não são.
- Nós somos dois ovos - disse Cal.
Os mitos daqueles camponeses despertaram o sorriso de
Abra.
- Ovos - disse ela.- Com que então, ovos!
Não pronunciou as palavras com força, nem com maldade, mas
a teoria de Lee vacilou e desmoronou-se. Abra aplicou-lhe um golpe
fatal.
- Qual de vocês é estrelado e qual é cozido?
Os rapazes trocaram um olhar preocupado. Era a primeira
vez que enfrentavam a inexorável lógica feminina que é imperturbável, mesmo - e, talvez, sobretudo - quando é falsa. Aquilo
era novo para eles, e interessante, mas assustador.
Cal disse:
- O Lee é chinês.
- Ah! então é isso! - disse amavelmente Abra. - Já deviam ter dito há mais tempo. Se calhar são ovos chineses?
Deixou que o veneno penetrasse e produzisse efeito. Viu que
lutavam e que acabavam por se render. Abra tomara a situação em
mãos, só lhe restava comandar.
Aron sugeriu:
- Vamos brincar para a casa velha. Chove lá dentro mas é
bonita.
Correram sob os carvalhos gotejantes para a velha residência
dos Sanchez e entraram pela porta aberta que rangia nos gonzos
enferrujados.
A casa vivia o seu segundo período de decadência. O salão
estava meio estucado e a parte branca detinha-se no sítio onde os
operários tinham abandonado o trabalho dez anos antes. As janelas com caixilhos novos continuavam sem vidraças. O novo soalho estava manchado pelas infiltrações da água. O chão estava
juncado de papéis e, num canto, um punhado de pregos acabava
de enferrujar.
Na altura em que as crianças entravam, levantou voo um
morcego. A forma cinzenta esvoaçou duma parede à outra antes
de desaparecer pela porta.
Os rapazes mostraram a casa a Abra. Abriram os armários
para que visse os lavatórios e os candelabros ainda embrulhados, aguardando a vez de serem instalados. No ar havia um
cheiro a bafio e a papel molhado. As três crianças caminhavam
no bico dos pés e sem trocar palavra, com receio de despertar
o eco.
De regresso à sala, os gémeos interrogaram a convidada:
- Gostaste? - perguntou Aron, baixinho.
- Hum!... gostei - admitiu ela, hesitante.
-A gente às vezes vem brincar para aqui. Tu também podes
vir quando quiseres - propôs Cal com audácia.
-- Eu moro em Salinas - disse Abra.
Os gémeos compreenderam que estavam a braços com um
ser superior a quem se ofereciam prazeres mais requintados.
Abra percebeu que menosprezava o seu mais belo tesoiro.
Já conhecia os pontos fracos dos rapazes, mas gostava deles e,
depois, era uma pessoa bem-educada.
- Sempre que puder passar por aqui, virei brincar com vocês... um bocadinho - disse ela, amavelmente.
Ambos se sentiram cheios de gratidão.
- Vou dar-te o meu coelho - disse subitamente Cal.- Queria oferecê-lo ao meu pai, mas prefiro dar-to de presente.
-Que coelho?
- O que nós matámos hoje. Uma seta mesmo em cheio no
coração. Quase que não estrebuchou.
Aron sentiu-se lesado.
- Era o meu...
Cal interrompeu-o:
- Vamos dar-to para o levares para casa. É muito grande.
Abra respondeu:
- Que querem que eu faça dum coelho velho todo sujo e
cheio de sangue?
Aron sugeriu:
- Vou lavá-lo, metê-lo numa caixa e atá-la com uma guita.
Se não quiseres comê-lo, podes enterrá-lo... em Salinas.
- Eu vou a enterros a valer - disse Abra.- Ainda ontem vi
um em que havia flores até à altura do tecto.
- Então não te interessa o nosso coelho? - perguntou Aron.
Abra contemplou os cabelos loiros encaracolados pela chuva, os olhos a que assomavam as lágrimas, e sentiu arder-lhe no
peito essa melancolia atenta que anuncia o amor. Teve vontade
de tocar em Aron e tocou-lhe. Pôs-lhe a mão no braço e Aron
estremeceu.
- Se for numa caixa, fico com ele - disse ela.
Abra, triunfante, examinou as suas conquistas. Nada de masculino a ameaçava já. Parecia que o coração se lhe derretia ao ver
os gémeos nos macacos usados e remendados. Abra recordou-se dos contos de fadas.
- Pobres pequenos, o vosso pai bate-lhes? - perguntou ela.
Ambos abanaram a cabeça. Estavam fascinados e estupefactos.
- São muito pobres?
- Pobres, como? - perguntou Cal.
- Vocês sentam-se ao borralho e são obrigados a ir buscar
água e lenha?
- Que lenha? - perguntou Cal.
Abra iludiu a resposta.
- Pobrezinhos - murmurou.
Na mão, tinha a varinha mágica terminada por uma estrela
cintilante.
- A vossa madrasta deve odiá-los e querer matá-los?
- Nós não temos madrasta - disse Cal.
- Não temos coisa nenhuma - disse Aron. - A nossa mãe
morreu.
A história que Abra estava arquitectando deixou de formar sentido, mas ela inventou logo outra. Já não tinha a varinha de condão,
mas usava agora um grande chapéu com uma pluma de avestruz e
levava um enorme cesto de onde saiam as patas de um peru.
- Pobres órfãozinhos sem mãe - disse ela com meiguice
- nesse caso serei eu a vossa mãe. Pegar-vos-ei ao colo, embalar-vos-ei e contarei histórias.
- Já somos muito grandes para isso - disse Cal -, ias
abaixo com o nosso peso.
Abra ignorou esta brutalidade intempestiva. Aron estava fascinado pela história, sorriam-lhe os olhos e parecia, de facto, que
se deixava embalar. Abra sentiu uma nova vaga de amor por ele e
perguntou-lhe com afabilidade:
- A vossa mãe teve um bonito enterro?
- Não nos lembramos - disse Aron -, ainda éramos muito
pequenos.
- Onde está enterrada? Tem de se pôr flores na sepultura. É o
que fazemos à avó e ao tio Albert.
- A gente não sabe - disse Aron.
O olhar de Cal tinha um clarão de triunfo. Num tom de ingenuidade, disse:
- Vou perguntar ao papá onde ela está para lhe levarmos flores.
- Eu vou contigo - disse Abra. - Sei fazer coroas, hei-de
mostrar-te como é.
Abra reparou que Aron se mantinha calado.
- Tu não queres aprender a fazer coroas?
- Quero, sim - disse ele.
Ela sentiu novamente vontade de lhe tocar. Passou-lhe a mão
pelo ombro e deu-lhe uma palmadinha na cara.
- A tua mamã ficará contente - disse ela. - Mesmo no
paraíso, eles conseguem ver-nos. Foi o papa quem me disse. Ele
até conhece um poema que fala nisso.
Aron disse:
- Vou embrulhar o coelho e metê-lo na caixa onde vieram as
minhas calças.
E saiu da velha casa a correr. Cal acompanhou-o com o olhar
sorridente.
- Porque estás a sorrir? - perguntou Abra.
- Por nada.
E Cal fitou-a nos olhos. Abra procurou obrigá-lo a desviar o
olhar. Era perita na matéria, mas Cal nem sequer pestanejou. De
começo, sentira uma certa timidez, mas já se livrara dela e ria de
prazer só à ideia de a domar. Como toda a gente, ela preferia o
irmão, Aron o loirinho, Aron que atraía, com os seus modos meigos e francos, todas as simpatias. Cal dissimulava profundamente
as emoções, sempre pronto ao ataque ou à retirada. Como ela
preferia o irmão, resolveu castigá-la. Já se familiarizara com tais
reacções. Nunca perdia uma ocasião de se vingar desde o dia em
que descobrira que tal era possível. O castigo tornava-se uma
função criadora.
A melhor maneira de descrever os dois irmãos talvez seja por
esta imagem: se Aron descobria um formigueiro numa clareira,
deitava-se de barriga para baixo e observava a vida das formigas,
o transporte dos géneros alimentícios e dos ovos esbranquiçados,
as conversas entre membros da comunidade por meio das antenas. Era capaz de ficar horas a observar o mundo dos insectos.
Mas se Cal descobria o mesmo formigueiro, destruía-o a pontapés e divertia-se com a fuga das formigas desvairadas pelo cataclismo. Aron sentia-se feliz por fazer parte do mundo, mas Cal
desejava transformá-lo.
Cal não estava interessado em saber porque admiravam o
irmão, mas não podia suportar tal preferência.
Na altura em que o admirador se mostrava, Cal desferia o
golpe e a vítima era apanhada de surpresa. Daí, advinha-lhe uma
sensação de poderio que lhe causava profunda alegria. Era a
emoção mais pura e mais forte que conhecia. Não odiava Aron,
antes pelo contrário, amava-o, pois era ele a causa dos seus triunfos. Esquecera-se - talvez nunca o tivesse sabido - de que se
vingava porque gostaria de ser amado como Aron. Já fora tão
longe neste sentido que preferia ser o que era, a ser o que era o
irmão.
Abra pusera o mecanismo em movimento ao tocar em Aron e
ao dirigir-se-lhe com doçura. A reacção de Cal foi automática. Procurou o ponto fraco de Abra e era tão esperto que o descobriu logo
pela maneira que ela tinha de se exprimir. Certas crianças resolvem
ficar infantis, enquanto outras preferem ser adultas. Poucas são as
que se contentam com a própria idade. Abra queria ser uma pessoa
crescida. Ia buscar as palavras, as atitudes e as reacções a essa
idade adulta. Se já deixara muito para trás a extrema infância, também
não tinha ainda idade para brincar aos adultos. Cal compreendeu-o
e forjou um instrumento para destruir o novo formigueiro.
Sabia de quanto tempo precisava o irmão para encontrar a caixa,
lavar o sangue do coelho, procurar a guita e atar o embrulho com
laçadas. Cal pressentiu que a vitória mudava de campo. A calma
segurança de Abra principiava a oscilar e surgira a oportunidade de
tirar proveito da situação.
Abra baixou os olhos e acabou por perguntar:
- Que mania é essa de fitares as pessoas nos olhos?
Cal esmiuçou-a da ponta dos pés à cabeça, como se fosse
um móvel. Sabia que aquilo até irritava os adultos.
Abra não se conteve:
- Nunca viste?
- Tu vais à escola? - perguntou Cal.
- Claro que vou.
- Em que classe estás?
- Na quinta.
- Que idade tens?
- Vou fazer onze anos.
Cal soltou uma gargalhada.
- Que mal tem isso? - perguntou ela.
Cal não respondeu.
- Dize lá, dize.
Cal manteve-se em silêncio.
- Julgas-te esperto?
Como ele continuasse a rir, ela ficou preocupada.
- Gostava de saber porque é que o teu irmão se demora
tanto. Olha, já parou de chover.
Cal disse:
- Deve andar à procura.
- De quê? Do coelho?
- Ah! não. O coelho está morto. Mas talvez não consiga apanhar o outro. Foge sempre.
- Apanhar o quê? O que é que foge?
- Ele ficava zangado se eu te dissesse. Quer fazer-te uma
surpresa. Apanhou-o na sexta-feira passada e foi mordido.
- Que história é essa?
- Logo vês quando abrires a caixa - disse Cal. - Aposto
que ele te vai pedir para não a abrires logo.
Esta última parte da frase não era invenção, pois Cal conhecia bem o irmão.
Abra compreendeu que estava a perder não só a batalha como
toda a guerra. Odiava aquele miúdo. Passou em revista todas as
armas de que dispunha, mas pô-las de parte uma após outra, verificando que seriam inúteis. Resolveu acobertar-se no silêncio e,
depois, dirigiu-se para a porta, lançando um olhar em direcção à
casa onde estavam os pais.
- Parece-me que me vou embora - disse ela.
- Espera - disse Cal.
Abra voltou-se na altura em que Cal chegava junto dela.
- Que queres? - perguntou ela com frieza.
- Não te zangues comigo! - disse ele. - Tu não sabes o
que se passa nesta casa. Se tu visses as costas do meu irmão!
Abra ficou surpreendida com esta mudança de atitude. Ele
resolvera persegui-la no próprio terreno e compreendera perfeitamente que Abra se sentia à vontade nas situações romanescas.
Cal falara em tom de segredo e ela também baixou a voz.
- Que queres tu dizer? O que é que ele tem nas costas?
- Tem vergões e cicatrizes - disse Cal. - Foi o chinês.
Abra estremeceu e encheu-se de curiosidade.
- Que lhe fez ele? Bateu-lhe?
- Pior - disse Cal.
- Porque não se queixaram ao vosso pai?
- Não temos coragem. Sabes o que acontecia se lhe contássemos?
- Não. O que era?
Cal abanava a cabeça.
- Não. - (Pareceu reflectir profundamente.) - Não. Tenho
medo de te dizer.
Nesse momento, Lee saiu da cocheira, conduzindo o cavalo
atrelado ao cabriolé de rodas de borracha. O Sr. e a Sr.a Bacon
surgiram à porta de case e ergueram a cabeça para o ar num conjunto perfeito.
Cal disse:
- Não posso dizer-te, o chinês percebia logo.
A Sr.a Bacon chamou:
- Abra, despacha-te que nos vamos embora.
Lee segurava o cavalo inquieto enquanto a Sr.a Bacon era
empurrada para o carro.
Aron apareceu a correr sobraçando uma caixa de cartão cheia
de laços, que entregou a Abra.
- Toma - disse ele.- Não a abras senão depois de chegares a casa.
Cal observou a repugnância no rosto de Abra. As mãos
recusaram-se a pegar na caixa.
- Pega nisso, minha querida - disse o pai.- Vamos depressa, que já é tarde.
E meteu-lhe a caixa, à força, nas mãos.
Cal esgueirou-se até junto dela.
- Escuta. - (Falou-lhe ao ouvido.) - Tu fizeste chichi nas
calças.
Abra corou e enterrou o chapéu na cabeça. A Sr.á Bacon pegou-lhe pelos braços e sentou-a no carro.
Lee, Adam e os gémeos ficaram a olhar para o cavalo que
metia a trote.
Antes da primeira curva, a mão de Abra ergueu-se e deitou
fora a caixa. Cal olhou para o irmão e viu que tinha estampada no
rosto toda a tristeza do mundo. Assim que Adam voltou para casa
e que Lee foi tratar das galinhas, Cal passou o braço pelos ombros do irmão e estreitou-o afectuosamente.
- Eu queria casar com ela - disse Aron. - Tinha metido
uma carta com o pedido na caixa.
- Não fiques triste - disse Cal. - Eu empresto-te a minha
espingarda.
A cabeça de Aron rodopiou.
- Que espingarda? Tu não tens espingarda.
- Ah! não? - disse Cal. - Tens a certeza?
CAPÍTULO XXVIII
1
Foi durante o jantar que os rapazes descobriram a transformação operada no pai. Até ali, ele não passara duma presença, de
orelhas que escutavam sem ouvir, de olhos que viam mas não
notavam nada. Era uma nuvem de pai. Os filhos nunca tinham
aprendido a confiar-lhe as suas descobertas ou as suas necessidades. Lee fora o traço de união com o universo adulto.
Criara, alimentara, vestira e disciplinara os gémeos, incutira-lhes o respeito pelo pai. Adam constituía um mistério para os filhos e ditava-lhes as suas leis por intermédio de Lee que, naturalmente, as elaborava e imputava a Adam.
Cal e Aron começaram por ficar admirados e, depois, sentiram-se incomodados quando viram que Adam os escutava, lhes
fazia perguntas, os ouvia e os observava. A modificação intimidou-os.
- Parece que vocês hoje foram à caça.
Os rapazes escudaram-se numa certa prudência, como todo
o ente humano que defronta uma nova situação. Após uma pausa, Aron admitiu:
- Fomos, sim, papá.
- Apanharam alguma coisa?
Seguiu-se uma pausa ainda maior e, depois:
- Fomos, sim, papá.
- O que foi?
- Um coelho.
- Com arco e flechas? Quem lhe acertou?
Aron disse:
- Não sabemos, matámos ao mesmo tempo.
- Então não distinguem as flechas de cada um?- admirou-se Adam. - No meu tempo, púnhamos marcas nas flechas.
Desta vez, Aron preferiu não responder para evitar complicações. Foi Cal quem, após ter esperado, disse:
- A seta era minha, mas acho que estava na aljava do Aron.
- Porque julgas tu isso?
- Não sei, mas suponho que foi o Aron quem matou o coelho.
Aron desviou a direcção do olhar.
- E tu, que pensas?
- Talvez fosse eu, mas não tenho a certeza.
- Seja como for, parecem estar senhores da situação.
Os dois rapazes deixaram de se sentir inquietos. Não se tratava duma armadilha.
- Onde está o coelho? - perguntou Adam.
- O Aron ofereceu-o à Abra.
- Ela deitou-o fora - disse Aron.
- Porquê?
- Não sei. Eu também queria casar com ela.
- Sério?
- A sério, papá.
- E tu, Cal?
- Não me importo que o Aron fique com ela.
Adam soltou uma gargalhada e era a primeira vez que os filhos
o ouviam rir.
- Achaste-a bonita? - perguntou ele.
- Achei, pois - disse Aron. - É bonita e muito boa.
- Muito bem! Antes assim, se vier a ser minha nora.
Lee levantou a mesa, arrumou a loiça e voltou.
- São horas de irem para a cama - disse ele.
Os gémeos protestaram com o olhar. Adam disse:
- Sente-se, Lee. Deixe-os ficar mais um bocado.
- Já fiz as contas, poderemos examiná-las quando quiser
disse Lee.
- Que contas, Lee?
- As contas do rancho e da casa. Não disse que queria saber
em que paravam as modas?
- As contas de dez anos?
- O senhor nunca as quis fazer.
- Tem toda a razão. Sente-se. O Aron queria casar com a
menina que esteve cá hoje.
- Estão noivos? - perguntou Lee.
- Ela ainda não deu o consentimento - respondeu Adam.E isso ainda pode levar bastante tempo.
Cal, que começara por ficar desorientado com esta mudança
de atmosfera, acabara por se recompor a breve trecho e entretinha-se a observar o novo formigueiro, perguntando a si mesmo
onde e quando deveria atacar. Rapidamente, tomou uma decisão.
- Ela era de facto muito simpática - disse ele.- Gostei
muito dela. Sabes porquê? Disse-nos para te perguntar onde era
a sepultura da mamã para lá ir pôr flores.
- Ela prometeu ensinar-nos a fazer coroas - acrescentou
Aron.
Adam procurou apressadamente uma solução. Era um fraco
mentiroso. Assustou-o a ideia que lhe passou pela mente mas,
afinal, ouviu-se dizer:
- Seria uma óptima ideia, meus filhos, mas devo dizer-lhes
que a sepultura da vossa mãe fica muito longe daqui.
- Porquê? - perguntou Aron.
- Porque certas pessoas gostam de ser enterradas no lugar
onde nasceram.
- Como foi que ela voltou para tão longe? - perguntou Cal.
- Metemo-la no comboio e mandámo-la para a terra dela,
não é verdade, Lee?
Lee confirmou:
- Connosco dá-se o mesmo. Quase todos os chineses pedem para serem enterrados na China.
- Bem sei - disse Aron -, tu já nos tinhas dito.
- De verdade?
- Claro - disse Cal.
Adam mudou rapidamente de assunto.
- O Sr. Bacon sugeriu-me esta tarde uma coisa, e queria
falar-lhes nisso, meus filhos. Ele acha que seria preferivel para vocês
que fôssemos morar para Salinas. As escolas lá são melhores e
vocês teriam muitos mais camaradas.
A proposta deixou os gémeos estupefactos. Cal perguntou:
- Então... e o rancho?
- Ficávamos com ele para o caso de nos apetecer voltar para
cá.
Aron disse:
- A Abra vive em Salinas.
E isso bastava-lhe. Esquecera já a caixa deitada fora, apenas
se lembrava dum avental, do chapéu e dos dedinhos muito macios.
Adam disse:
- Pensem no assunto. E, agora, são horas de irem dormir.
Porque não foram vocês hoje à escola?
- A professora está doente - disse Aron.
- A menina Culp está doente há três dias - esclareceu Lee.
- Eles só voltam à escola na segunda-feira. Meninos, toca a andar!
Os gémeos seguiram-no obedientemente.
2
Adam sorriu vagamente ao candeeiro e pôs-se a tamborilar com
a ponta do dedo no joelho, até ao regresso de Lee.
- Saberão eles alguma coisa? - perguntou.
- Não sei.
- Bom, talvez fosse apenas a miúda.
Lee foi à cozinha e voltou com uma grande caixa de cartão.
- Aqui tem as contas. Estão todos os anos separados. Revi tudo
e não falta nada.
- O quê? Todas as contas?
Lee respondeu:
- Há um livro para cada ano e as facturas liquidadas. O senhor queria saber qual era a sua situação financeira. Aqui tem o
balanço. Tenciona realmente partir?
- Acho que sim.
- Não haveria maneira de contar a verdade às crianças?
- Não convém macular o amor que eles dedicam à mãe.
- Já pensou no outro perigo?
- Que perigo?
- Suponha que eles descobrem a verdade? Há muita gente
que sabe.
- Talvez lhes possa explicar melhor quando forem mais crescidos.
- Não me parece - disse Lee. - Mas isso ainda não é o
pior.
- Não percebo.
- Estou a pensar na mentira que lhes contou. Pode infectar o
resto. Se desconfiam de que lhes mentiu a este respeito, perderão
toda a confiança em si.
- Estou a ver, estou. Mas que quer que lhes diga? Toda a
verdade?
- Apenas uma parte, o bastante para que não sofra se eles
vierem a descobrir o resto.
- Tenho de pensar nisso a sério.
- Se for para Salinas, o perigo tornar-se-á ainda maior.
- Vou pensar no caso.
Lee insistiu:
- O meu pai falou-me na minha mãe quando eu era ainda
muito pequeno e não me poupou. À medida que eu ia crescendo,
repetiu-me inúmeras vezes a história. Era diferente, mas horrível.
No entanto, sinto-me feliz por ele me ter contado tudo. Digo-lhe
mais: lamentaria não a saber.
- Quer contar?
- Não, não faço empenho nisso. Mas talvez o convença a
falar aos seus filhos. Poderia dizer-lhes, por exemplo, que ela se
foi embora, mas que não sabe onde está.
- Mas se eu sei!
- Aí é que está o mal. É preciso dizer toda a verdade ou uma
meia mentira. Eu não posso obrigá-lo.
- Vou pensar no assunto - disse Adam. Qual é a história da
sua mãe?
- Está mesmo interessado em ouvi-la?
- Só se não se importar.
- Vou ser breve - disse Lee. - Nós vivíamos numa cabana
escura, no meio dum batatal, e o meu pai contava-me a história da
minha mãe. É esta a minha primeira recordação. O meu pai falava
cantonês, mas quando contava a história exprimia-se em alto e rico
Mandarim. Bom, devo dizer-lhe...
E Lee recuou no tempo.
- Devo começar por lhe dizer que os vossos caminhos de
ferro do Oeste foram construídos por chineses, milhares de chineses que fizeram os aterros, colocaram as chulipas e assentaram as vias. Era um trabalho terrível, mas os homens eram mal
pagos, trabalhavam a valer e, se morressem, ninguém se preocupava. Na maioria dos casos, eram cantoneses, fortes, resistentes
e pacatos.
«Depois de contratados, embarcavam-nos para a América e é
muito provável que a história do meu pai seja um caso típico.
«Como deve saber, os Chineses são obrigados a liquidar todas as dividas antes ou no próprio dia da festa do Ano-Novo. Se o
não fizerem, perdem a boa reputação, e não há desculpa que lhes
valha.
- Não me parece má ideia - disse Adam.
- Boa ou má, era assim que as coisas se passavam. O meu
pai teve azar: não conseguiu pagar uma dívida. A família reuniu-se e
discutiu o assunto. Ninguém tinha culpa de o meu pai ter azar, mas
não havia dúvida que a dívida pertencia a toda a família. A família
pagou, portanto, pelo meu pai, que se comprometeu a reembolsá-la. O que era quase impossível.
«Os agentes recrutadores das companhias ferroviárias adiantavam uma pequena quantia quando se assinava o contrato. Foi
assim que apanharam no laço muitos homens endividados.
«Até aqui tudo é razoável e honroso. Mas o meu pai era um
rapaz recém-casado e estava ligado à mulher por um sentimento
profundo, muito forte e muito belo. Ela também o amava perdidamente. Despediram-se cerimoniosamente na presença dos chefes da família, como pessoas bem-educadas. Tenho pensado com
frequência que as maneiras delicadas são um bom remédio para
a dor da separação.
O rebanho de homens foi amontoado no fundo dum porão
sombrio e só tornou a ver a luz do dia em San Francisco, seis
semanas depois. Pode imaginar o que foi a viagem. Como a mercadoria tinha de ser entregue em estado de trabalhar, não a maltratavam. Por outro lado, os da minha raça aprenderam através
dos séculos a viver em comunidade, a manter-se limpos e a alimentar-se em condições que se tornam intoleráveis para muitos outros.
Estavam no mar há uma semana quando o meu pai descobriu
a minha mãe. Vestia à homem e entrançara o cabelo. Mantendo-se
muito sossegada e sem nunca falar, conseguira evitar ser descoberta
e, como pode imaginar, nessa época não existiam os exames físicos
nem as vacinas obrigatórias. A minha mãe pegou na enxerga e
estendeu-a ao lado da do meu pai. Só podiam falar às escuras,
com a boca colada ao ouvido. O meu pai estava zangado por ela ter
desobedecido mas, ao mesmo tempo, sentia-se feliz.
«O contrato condenava-os a cinco anos de trabalhos forçados.
Nunca lhes passou pela cabeça fugirem assim que chegassem à
América, pois eram pessoas honradas que tinham assinado um
contrato. - (Lee fez uma pausa.) - Como é evidente, podia contar-lhe isto em poucas palavras, mas é preciso que fique a saber a
razão das coisas. Vou buscar um copo de água. Também quer?
- Quero, sim - respondeu Adam -, mas há uma coisa que
eu não entendo. Como é que uma mulher podia executar esse
trabalho?
- Volto já - disse Lee.
E foi à cozinha buscar dois copos de água que colocou em
cima da mesa.
- O que era que queria saber? - perguntou ele.
- Como é que a sua mãe podia fazer um trabalho de homem?
Lee sorriu.
- O meu pai dizia que ela era forte e eu creio que uma mulher pode ser mais forte do que um homem quando está apaixonada. A mulher que ama é quase indestrutível.
Adam fez uma careta.
Lee disse:
- Há-de ver, um dia há-de ver.
- Eu não sinto nenhuma amargura - disse Adam. - Aliás,
como seria possível, após uma única experiência? Prossiga.
- Houve uma coisa que a minha mãe não segredou ao meu
pai durante a longa travessia e como muitos deles sofriam horrivelmente de enjoo, ninguém estranhou que ela tivesse vómitos e
náuseas.
- Não me diga que estava grávida? - exclamou Adam.
- Estava, sim - confirmou Lee -, mas ela não queria sobrecarregar o meu pai com mais preocupações.
- Ela já sabia quando embarcou em Cantão?
- Não, não sabia. Eu vim ao mundo no momento mais inoportuno. E a história é mais comprida do que eu supunha.
- Agora já não pode parar - disse Adam.
- Pois não. Em San Francisco, o gado foi carregado em vagões e as locomotivas rebocaram-no para as montanhas. Iam nivelar colinas e perfurar túneis. A minha mãe foi separada do meu
pai e ele só tornou a vê-la no acampamento, instalado num planalto. O sítio era muito bonito, todo cheio de verdura e de flores,
no meio das montanhas cobertas de neve. Foi nessa altura que
ela informou o meu pai da minha existência.
«As obras iniciaram-se. Os músculos das mulheres enrijecem
como os dos homens, e a minha mãe tinha uma vontade de ferro.
Pegou na pá e na picareta e fez o trabalho pelo qual lhe pagavam,
o que deve ter sido horrível. Mas logo se encheram de medo quando
começaram a pensar na maneira como nasceria a criança.
Adam disse:
- Porquê? Então ela não podia ir ter com o capataz, dizer-lhe
que era mulher e que estava grávida? Com certeza que tratavam
dela.
- Não - disse Lee. - Não está a compreender e a culpa é
minha por não ter sido devidamente explícito. O gado humano era
importado apenas com um único objectivo: o trabalho. Assim que
a tarefa terminava, devolviam os sobreviventes para a China. Só
os machos eram importados. Nada de fêmeas. O país não queria
que tal gente se reproduzisse. Um homem, uma mulher e um filho
agarram-se à terra, constroem um lar de que é difícil arrancá-los,
enquanto que um rebanho de homens inquietos, excitados e atormentados pela falta de mulheres irá para qualquer lado e, muito
especialmente, para o lugar donde veio. A minha mãe era a única
mulher no meio daqueles brutos. Á medida que o tempo passava,
mais a febre aumentava. Para os guardas, já não se tratava de
seres humanos, mas de animais perigosos se não fossem vigiados. Está a compreender agora porque é que a minha mãe não quis
pedir auxílio? Teria sido expulsa do acampamento e, quem sabe?,
talvez a tivessem abatido e enterrado como uma vaca contagiosa.
Uma vez, foram abatidos quinze homens por causa duma simples
revolta. Os guardas faziam respeitar a ordem da maneira que lhes
tinham ensinado. Suponho que haverá outras maneiras de o fazer,
mas continuamos a empregar sempre o mesmo sistema- o chicote,
a corda e a espingarda. Já estou arrependido de lhe ter começado
a contar isto.
- Porquê? - perguntou Adam.
- Estou a ver a cara do meu pai quando me contava a mesma história. É uma recordação lamentável, dilacerante e dolorosa. Sempre que chegava a este ponto, o meu pai era obrigado a
recobrar coragem. Quando dava novamente inicio à narrativa, falava com secura e empregava palavras duras e cortantes como
se se quisesse magoar.
Para ficarem juntos, disseram que ela era o sobrinho do meu
pai. Os meses passaram e, felizmente, a minha mãe não engordou demasiado. Continuava a cumprir a obrigação no meio do
maior sofrimento. O meu pai auxiliava-a um pouco, desculpando-a:
«O meu sobrinho é ainda muito novo e franzino.» Mas não tinham
planos nenhuns e não sabiam o que haviam de fazer.
«Foi então que o meu pai imaginou um plano. Fugiria para as
altas montanhas, para um planalto mais elevado, e, à beira dum
lago, arranjariam uma choça para a minha mãe dar à luz. O meu
pai, depois, voltaria ao acampamento para receber castigo e assinar um novo contrato de cinco anos em substituição do sobrinho
fugitivo. Por miserável que fosse, este plano era o único que podiam
executar e que os satisfazia. Mas eram necessárias duas condições: fugir no momento propício ao parto e levar comida suficiente.
Os meus pais... - (Lee deteve-se, sorriu ao empregar estas palavras
que pareciam reconfortá-lo.) - os meus queridos pais começaram
a fazer os preparativos. Puseram de lado uma parte da ração diária
de arroz, que esconderam debaixo das tarimbas. O meu pai, com
uma guita e um pedaço de arame, fez um anzol para apanhar as
trutas do lago de montanha. Deixou de fumar para guardar os
fósforos. A minha mãe reuniu todos os trapos que conseguiu
encontrar, rasgou uma parte da própria roupa para obter linhas, e
coseu todos os trapos com um grande espinho, para fazer o meu
enxoval. Gostaria de a ter conhecido.
- Também eu - disse Adam. - Chegou a contar isso ao
Sam Hamilton?
- Não, mas devia tê-lo feito, pois ele sempre gostou de celebrar a alma humana. Esta história teria sido para ele como que uma
espécie de triunfo pessoal.
- Espero que tenham conseguido o que queriam - disse
Adam.
- Pois é. Quando o meu pai chegava a este ponto da narrativa eu pedia-lhe sempre: «Vê se chegas ao lago, vê se consegues
lá chegar com a minha mãe e construir uma casa de troncos de
abeto.» O meu pai, então, tornava-se muito chinês e respondia-me
«Há mais beleza na verdade, mesmo que seja uma verdade medonha.
Os mendigos que contam histórias às portas da cidade mascaram
tão bem a vida que ela acaba por parecer boa e fácil aos preguiçosos,
aos teimosos e aos covardes, o que só pode concorrer para lhes
agravar as enfermidades. Por esse processo nada se aprende, nada
se cura, e o coração nunca se abre.»
- Continue - disse Adam com irritação.
Lee levantou-se, dirigiu-se para a janela e acabou a
história,contemplando as estrelas. Lá fora, soprava o vento de Março.
- Certo dia, desprendeu-se um pequeno rochedo e foi partir a
perna do meu pai. Trataram-no e deram-lhe um trabalho de doente:
endireitar pregos em cima duma pedra com um martelo. Então,
devido ao trabalho ou à angústia - não é isso o que interessa - a
minha mãe sentiu as primeiras dores. Os homens, semi loucos,
compreenderam - e perderam a razão. Um desejo ateou outro.
Um crime ocultou o crime precedente, e todos os crimes cometidos
contra esses homens famintos alimentaram uma enorme fogueira
de loucura.
«O meu pai ouviu o grito: «Uma mulher!», e compreendeu logo. Tentou correr, tornou a partir a perna e arrastou-se pela vereda
que conduzia ao sitio onde se desenrolava aquela cena de horror.
«Quando lá chegou, o céu parecia oculto por uma espécie de
tristeza e os homens de Cantão fugiam em silêncio para se esconderem, para esquecerem que os homens também podem ser aquilo. A minha mãe estava estendida num monte de pedras. Já nem
sequer tinha olhos para ver, mas ainda mexia a boca e conseguiu
articular as instruções necessárias. O meu pai arrancou-me da carne
esfacelada da minha mãe com as próprias mãos. Ela morreu nessa
tarde em cima do monte de pedras.
Adam respirava com dificuldade. Lee prosseguiu numa voz
ritmada:
- Antes de odiar esses homens, fique sabendo isto que o
meu pai acrescentava sempre no fim que nunca houve nenhuma
criança que fosse tratada como eu. Todo o acampamento quis ser
minha mãe. É belo, duma beleza atroz. E, agora, boa noite. Já não
posso falar mais.
3
Adam abriu todas as gavetas, procurou em todas as prateleiras, levantou as tampas de todas as caixas, rebuscou toda a
casa e acabou por chamar Lee e perguntar-lhe:
- Onde estão a tinta e a caneta?
- Não há - disse Lee. - Há anos que não escreve uma
linha. Se quiser, posso emprestar-lhe as minhas.
Foi ao quarto e voltou com um frasco de tinta, uma caneta,
um bloco de papel e um sobrescrito que colocou sobre a mesa.
Adam perguntou:
- Como sabia que eu ia escrever uma carta?
- Vai tentar escrever ao seu irmão, não é assim?
- Pois é.
- Há-de custar, depois de tanto tempo.
E custou. Adam garatujou, roeu a ponta da caneta e torceu a
boca. Escrevia uma frase, rasgava a folha e recomeçava. Coçou
a cabeça com a caneta.
- Lee, se eu fosse ao Leste, tomava conta dos meninos até
eu voltar?
- É mais fácil viajar do que escrever - disse Lee. - Claro que
podia contar comigo.
- Não, vou antes escrever.
- Porque não pede ao seu irmão que venha cá?
- Boa ideia, Les. Não tinha pensado nisso.
- E é um bom pretexto para escrever.
A carta surgiu então com facilidade. Depois de a emendar,
passou-a a limpo. Em seguida, leu-a devagar para si mesmo antes
de a meter no envelope.
«Querido irmão Charles,
Vais ficar admirado de receberes noticias minhas após
um silêncio tão prolongado. Pensei muitas vezes em escrever-te, mas tu sabes como são estas coisas, adiamos de
um dia para o outro e acabamos por não o fazer.
Gostava de saber como te irá encontrar esta carta. De
boa saúde, espero. És capaz de já estar com cinco ou dez
filhos. Ah! Ah! Eu tenho dois gémeos. A mãe não vive
connosco. Como não gostava da vida no campo, foi viver
para uma cidade próxima onde a vou visitar de vez em quando.
Eu tenho um belo rancho, mas é com vergonha que te
confesso que não faço caso dele. Talvez agora passe a interessar-me por ele. Boas intenções nunca me faltam. Há alguns
anos que ando bastante em baixo, mas agora vou indo
melhor.
Como estás tu? Gostaria de te ver. Porque não me vens
visitar! O sitio é maravilhoso e tu poderias ficar também por
cá.
Aqui, os Invernos não são frios, o que é bem agradável
para uns «velhos» como nós. Ah! Ah!
Espero, portanto, que reflictas no assunto e que me
respondas. A viagem fazia-te bem. Tenho vontade de te ver.
Também tenho muitas coisas para te contar, mas que não
posso escrever.
Escreve-me, meu caro Charles, e dá-me notícias da
nossa terra. Deve-se ter passado muita coisa e, à medida
que envelhecemos, tudo o que se ouve dizer das pessoas é
que morreram. Assim é a vida. Escreve-me depressa e diz-me se vens. Teu irmão, Adam. »
Ficou sentado, segurando a caneta com a mão. À sua frente,
via desenhar-se o rosto sombrio com a testa atravessada por uma
cicatriz. Via o brilho intenso dos olhos castanhos, a boca arreganhada mostrando os dentes e o animal selvagem querendo atacar.
Sacudiu a cabeça para afastar a visão, e tentou recordar-se do
rosto sorridente e da testa sem cicatriz, mas teve de desistir. Depois, pegou na caneta e escreveu sob a assinatura:
P. S. - Charles, apesar de tudo, nunca te odiei. Sempre gostei de ti porque és meu irmão.
Adam dobrou a carta e vincou as dobras com a unha do polegar. Fechou o sobrescrito e calcou-o com o punho.
- Lee! - chamou ele. - Ó Lee!
O chinês acorreu à porta.
- Lee, que tempo leva uma carta a chegar ao Leste?
- Não sei - disse Lee -, talvez quinze dias.
CAPÍTULO XXIX
1
Depois de ter enviado ao irmão a primeira carta que escrevera
em dez anos, Adam ficou aguardando impacientemente pela
resposta. Perdera a noção do tempo que se passara. A carta ainda ia a caminho e já ele andava à volta de Lee com perguntas:
- Porque será que ele não me responde? Talvez esteja zangado comigo. Mas ele também nunca escreveu. É certo que não
tinha a minha direcção. Talvez se tenha mudado?
E Lee respondia:
- Só escreveu há meia dúzia de dias. Dê tempo ao tempo.
«Terá ele realmente vontade de vir?» - perguntava Adam a si
mesmo. - «E ele, tinha vontade de tornar a ver o Charles?» Agora
que a carta fora expedida, Adam receava que Charles aceitasse o
convite. Parecia uma criança ociosa que não sabia em que entreter
as mãos, e estava sempre a meter-se com os gémeos, fazendo-lhes perguntas:
- O que foi que aprenderam hoje?
- Nada.
- Essa é boa, devem ter aprendido alguma coisa. Fizeram
leitura?
- Fizemos, sim, papá.
- O que era?
- A velha história da cigarra e da formiga.
- Mas é uma história muito interessante.
- Também há uma da águia que arrebatou uma criança.
- Ah! pois. Estou-me a lembrar, mas já não me recordo do
fim.
- Ainda lá não chegámos, só vimos os bonecos.
Os rapazes andavam enfastiados. Cal aproveitara um momento de ternura intempestiva do pai para lhe pedir emprestado o canivete, na esperança de nunca mais o devolver; mas era a época em
que os salgueiros se cobriam de novos ramos e Adam pediu o
canivete para ensinar aos filhos como se faziam apitos. Lee já o
fizera três anos antes e, para cúmulo, Adam esquecera a maneira
de praticar a incisão, de forma que o apito não emitia nenhum som.
Certo dia, à hora do almoço, Will Hamilton chegou ao volante
dum Ford novo, barulhento e sacolejante. O motor em primeira
produzia um ruído assustador e a capota muito alta torcia-se como
um barco na tempestade. Tanto o radiador como o depósito de
Prestolite, colocado no estribo, cegavam a vista de tanto brilharem.
Will apertou o travão, desligou o contacto e encostou-se no
assento de coiro. O carro, mesmo desligado, ainda deu alguns
estoiros por estar sobreaquecido.
- Cá está ele! - gritou Will com falso entusiasmo.
Alimentava pelos Ford um ódio mortal, mas era à custa deles
que estava fazendo a sua fortuna.
Adam e Lee debruçaram-se para as entranhas do automóvel
enquanto Will Hamilton, arquejando devido à gordura, explicava o
funcionamento dum mecanismo que ele próprio não conseguia
entender.
Actualmente é impossível imaginar como era então difícil fazer arrancar e manter um automóvel em linha recta. Não só era
muito mais complicado do que hoje, como era necessário aprender toda a teoria desde o princípio. A criança moderna aprende no
berço os mistérios e as idiossincrasias dos motores de combustão interna mas, naquela época, havia a intima convicção de que
a coisa não andaria, o que às vezes acontecia. Hoje, para pôr a
funcionar um motor de automóvel, bastam dois gestos: introduzir
uma chave e carregar no contacto. O resto é automático. Outrora,
era muito mais complicado. Além duma boa memória, eram necessários um carácter angélico, uma musculatura de atleta e uma fé
cega, sem falar já num certo conhecimento das práticas de magia.
Não era raro ver-se um homem que se preparava para dar à manivela do seu modelo T, cuspir no chão e murmurar uma fórmula
cabalística.
Will Hamilton explicou o funcionamento do carro, fez uma pausa e voltou ao princípio. O auditório estava de olhos esbugalhados,
mais parecendo um gato fascinado pelo pássaro. Mas quando viu
que teria de voltar a explicar tudo pela terceira vez, Will compreendeu
que estava a malhar em ferro frio.
- Oiçam uma coisa - propôs ele. - Como sabem, isto não é
a minha especialidade. Só queria que o vissem e ouvissem antes
de proceder à entrega definitiva. Agora, vou voltar para a cidade e,
amanhã, o carro torna a vir com um homem entendido. Aprenderão
mais com ele num minuto do que comigo numa semana. Eu só
queria que o vissem.
Will esquecera uma parte das suas próprias instruções. Depois de ter dado à manivela um bom bocado, acabou por pedir a
Adam que lhe emprestasse um cabriolé e um cavalo e foi-se embora prometendo enviar o mecânico no dia seguinte.
2
Nem sequer pensaram em mandar os gémeos para a escola,
pois eles teriam recusado. O Ford, severo, alto e arredio, continuava debaixo do carvalho onde Will o deixara. Os novos proprietários andavam em torno dele e tocavam-lhe de vez em quando,
como se faz a um cavalo perigoso para o acalmar.
Lee disse:
- Não sei se conseguirei habituar-me.
- Habitua-se, sim - disse Adam sem convicção. - Vai ver
que qualquer dia já passeia nele por toda a região.
- Farei o possível por compreendê-lo - disse Lee. - Mas lá
guiá-lo, isso é que nunca!
Os gémeos entravam no automóvel para mexerem em qualquer coisa e tornavam logo a sair.
- O que é isto, papá?
- Não lhe toques.
- Para que serve?
- Sei lá. Mas não lhe mexas, nunca se sabe o que pode
acontecer.
- Aquele senhor que cá esteve não te explicou?
- Já não me lembro. Se não deixam o carro sossegado, vão
para a escola. Estás a ouvir-me, Cal? Não abras isso.
Tinham-se levantado muito cedo e vestido mais depressa do
que era hábito. Por volta das onze horas já a histeria reinava em
todo o rancho. O mecânico chegou à hora do almoço. Usava sapatos de duas cores, calças Duchess, e o casaco, muito
enchumaçado nos ombros, caía-lhe até aos joelhos. No cabriolé,
trazia o saco da ferramenta. Tinha dezanove anos, mascava tabaco e, desde que passara três meses numa escola de mecânica,
professava um profundo desprezo pelo resto da humanidade.
Depois de cuspir, estendeu as rédeas a Lee.
- Arruma-me esta carroça de palha - disse ele. - Nem se
distingue a parte dianteira da traseira.
E desceu do cabriolé como um embaixador dum comboio
especial. Fez uma careta aos rapazes e dirigiu-se a Adam.
- Espero não ter chegado atrasado para o almoço.
Lee e Adam trocaram um olhar. Tinham-se esquecido por
completo do almoço.
O semideus dignou-se aceitar o que lhe puderam arranjar:
pão, queijo, carne fria, uma torta e um bolo de chocolate acompanhado duma chávena de café.
- Em geral, só costumo comer comida quente. Agora, um
conselho. Se não querem ficar sem automóvel afastem os miúdos.
Após uma curta sesta à sombra, o mecânico pegou no saco e
subiu ao quarto de Adam. Alguns minutos depois, reapareceu
envergando um fato-macaco às riscas e um barrete na cabeça,
com a palavra Ford.
- Então - perguntou ele -, já estudou?
- Estudei o quê? - perguntou Adam.
- Não leu o folheto que está debaixo do banco?
- Não sabia que havia um folheto - disse Adam.
- Valha-me Deus! - exclamou o jovem.
Reunindo todas as suas forças morais, o mecânico avançou
para o carro com decisão.
- O melhor é começarmos já - disse ele. - Só Deus sabe o
tempo que será preciso, se não estudou!
Adam disse:
- O Sr. Hamilton não conseguiu pô-lo a trabalhar ontem à
tarde.
- Ele tem a mania de querer arrancar só com o magneto
- explicou o sábio. - Bom, bom, vamos a isto. Conhece os princípios do motor de combustão interna?
- Não - respondeu Adam.
- Virgem Santíssima!
Ergueu a tampa do motor.
- Aqui tem um motor de combustão interna.
Lee comentou placidamente:
- Tão novo e tão erudito!
O rapaz voltou-se, franzindo as sobrancelhas.
- Que foi que disseste?
Depois, dirigindo-se a Adam:
- Que foi que disse o china?
Lee estendeu as mãos e arvorou um sorriso idiota:
- Mim disse lapaz muito inteligente, muito instluído! Deve
téle andado na escola.
- Chama-me Joe - disse o rapaz, sem nenhuma justificação. E acrescentou:
- Na escola! O que é que se aprende na escola? A afinar
uma vela? A desentupir um carburador? Na escola!
E cuspiu um comentário desdenhoso e negro para o chão.
Os gémeos contemplaram-no com admiração e Cal começou a
juntar saliva para se treinar.
Adam disse:
- O Lee está a admirar os seus conhecimentos.
O rapaz tomou um ar magnânimo.
- Trata-me por Joe - disse ele. - Vejam o espanto! Pois se
fui aluno da escola automobilística de Chicago. Essa, sim, é que é
uma escola a valer! Tem lá comparação com essas escolas que
há para aí. - (Depois duma pausa, acrescentou): - O meu velhote está-me sempre a dizer que se arranjarmos um china, mas
um bom, hem?, não há nada que se lhe compare. E depois, são
honestos.
- Excepto os maus - disse Lee.
- É evidente. Não me refiro a uma certa canalha, mas aos
bons chinas.
- Espero fazer parte destes últimos.
- Tu tens boa pinta. Trata-me, por Joe.
Adam estava estupefacto com o aspecto tomado pela conversa, mas os gémeos não se mostravam surpreendidos. Cal disse a
Aron:
- Trata-me por Joe.
E Aron remexeu os lábios, tentando repetir:
- Trata-me por Joe.
O mecânico readquiriu o tom profissional mas com uma certa
amabilidade. O desprezo fora substituído por uma simpatia divertida.
- Aqui têm - disse ele - um motor de combustão interna.
Todos se debruçaram para a horrível confusão metálica com
uma certa admiração.
Então, o rapaz pôs-se a falar com tal rapidez que parecia entoar um hino à glória da nova era.
- O princípio reside na explosão dos gases num espaço fechado. A força da explosão exerce-se num pistão que põe em
movimento uma biela, a qual, por sua vez, faz girar uma cambota
que transmite o movimento às rodas traseiras. Compreenderam?
Aquiesceram silenciosamente com receio de deterem a torrente.
- Há duas espécies de motores: a dois tempos e a quatro
tempos. Este é a quatro tempos. Compreenderam?
Aquiesceram de novo e os gémeos, que o olhavam com adoração, abanaram a cabeça por seu turno.
- É muito interessante - disse Adam.
O Joe continuou a toda a velocidade:
-A diferença principal entre um automóvel Ford e os outros
está numa transmissão planetária baseada num princípio re-vo-lu-ci-o-ná-ri-o.
Fez uma pausa com a cara contraída pelo esforço. E assim
que os quatro auditores tornaram a abanar a cabeça, preveniu-os:
- Mas não julguem que já sabem tudo. Não esqueçam que o
sistema planetário é re-vo-lu-ci-o-ná-ri-o! Tratem de estudá-lo no livro. E agora, se realmente compreenderam, passemos ao capítulo
Como-Pôr-a-Funcionar-um-Automóvel.
O mecânico anunciou aquilo como se lesse um título a oito
colunas. Era incontestável que se sentia feliz por ter acabado a
primeira parte do discurso, mas os auditores não se sentiam menos felizes. O esforço deixara-os exaustos e, aqui à puridade, não
tinham percebido patavina.
- Aproximem-se - disse o rapaz. - Estão a ver isto? É a
chave de ignição. Quando se lhe dá uma volta, o carro fica pronto
a andar. Depois, puxa-se aquilo para a esquerda, é a ligação à bateria. Ali onde diz BAT, quer dizer bateria.
Todos enfiaram a cabeça dentro do carro. Os gémeos treparam para o estribo.
- Não, esperem. Estou a andar muito depressa. Primeiro
tem de se retardar a centelha e avançar o gás; de contrário, podem ficar sem um braço. Isto aqui é a centelha. Empurra-se para
cima. Compreenderam? Para cima. Afastem-se. E isto é o gás.
Puxa-se para baixo. Agora vou fazer tudo enquanto explico. Sigam-me com atenção. Os miúdos é melhor cavarem que estão a
tapar-me a luz. Saiam daí, que diabo!
Os gémeos desceram contrariados.
O jovem respirou profundamente.
- Estão prontos? Centelha retardada, gás avançado. Centelha para cima, gás para baixo. Agora, ligar a bateria para a esquerda. Não se esqueçam, para a esquerda.
Parecia que uma abelha gigantesca ficara prisioneira no motor.
- Estão a ouvir? É o contacto na bobina. Se não ouvirem isto
é preciso afinar os platinados e até limá-los, caso seja necessário.
O mecânico viu a consternação estampada no rosto de Adam.
- Depois logo estuda isso no folheto com mais descanso
- disse ele com amabilidade.
E foi postar-se em frente do carro.
- Isto é a manivela. Estão a ver este arame a sair do radiador? É o arranque. Agora prestem bem atenção. Mete-se a manivela assim até se prender. Vêem o meu polegar voltado para baixo?
Se pegasse doutra maneira e a manivela desse um coice, lá se ia o
dedo. Toparam?
Não ergueu a vista, mas percebeu que toda a gente fazia que
sim.
- Agora - prosseguiu ele -, muita atenção! Empurro a manivela e levanto-a até sentir compressão. Nessa altura, puxo o
arame do arranque e dou devagar à manivela para admitir os gases.
Estão a ouvir este barulho de sugar? É o arranque. Mas não puxem
demasiado para não afogarem o carburador. Neste momento, largo
o arame e dou à manivela com toda a força. Assim que começar a
roncar, corro ao painel e avanço a centelha e retardo o gás. E assim
que puder ligo o magneto, vêem?, onde está escrito MAG. E pronto.
O auditório estava esgotado. E, dizer que no fim daquilo tudo
só se tinha posto o motor a trabalhar!
O mecânico continuou:
- Agora vão repetir comigo para decorarem: centelha para
cima, gás para baixo.
Todos repetiram em coro:
- Centelha para cima, gás para baixo.
- Ligar a bateria.
- Ligar a bateria.
- Manivela em compressão com o polegar para baixo.
- Manivela em compressão com o polegar para baixo.
- Puxar o arranque devagarinho.
- Puxar o arranque devagarinho.
- Manivela.
- Manivela.
- Centelha para baixo, gás para cima.
- Centelha para baixo, gás para cima.
- Ligar o magneto.
- Ligar o magneto.
- Agora, vamos recomeçar do princípio. Tratem-me por Joe.
- Tratem-me por Joe.
- Não é isso. Centelha para cima, gás para baixo.
Adam sentia uma espécie de prostração à medida que entoavam a ladainha pela quarta vez. Tudo aquilo lhe parecia ridículo.
Grande foi, pois, o seu alívio quando viu surgir Will Hamilton ao
volante dum enorme e vermelho modelo desportivo. O jovem mecânico observou o veículo que se aproximava.
- Dezasseis válvulas - disse ele. - Rico trabalho.
Will debruçou-se do carro.
-Como vai isso?- perguntou ele.
- Vai bem - respondeu o mecânico. - Eles aprendem depressa.
- Roy, tem de vir comigo. Partiu-se uma peça do novo auto
fúnebre. Se quisermos que ele esteja pronto amanhã, para o funeral
da Sr.a Hawks, teremos de trabalhar pela noite adiante.
Roy assumiu um ar entendido:
- Vou vestir-me - disse ele.
E correu para casa. Na altura em que saía com o saco da
ferramenta, Cal atravessou-se no caminho.
- Ouve lá - perguntou-lhe Cal -, eu julgava que tu te chamavas Joe?
- Ora essa, porquê?
- Estavas sempre a dizer «tratem-me por Joe». Mas o Sr.
Hamilton chamou-te Roy.
Roy soltou uma gargalhada e pulou para a espada.
- Sabes porque foi que disse que me chamassem Joe?
- Não, porque foi?
- Porque me chamo Roy.
Subitamente, parou de rir e olhou para Adam com severidade.
- Pegue no livro que está debaixo do assento e estude-o.
Percebeu?
- Perfeitamente - disse Adam.
CAPÍTULO XXX
1
Tal como nos tempos bíblicos, também naquela época se
produziam milagres. Uma semana após a lição, o Ford entrou na
rua principal de King City e deteve-se com estardalhaço diante da
estação dos correios. Adam conduzia, Lee ia sentado ao lado dele
e os gémeos pavoneavam-se no assento de trás.
Adam olhou para os pedais e todos cantaram em uníssono:
- Puxar o travão, avançar o gás, cortar o contacto.
O motorzinho rabujou e calou-se. Adam, estafado mas radiante, descansou um bocado antes de descer.
O empregado dos correios olhou através das grades doiradas
do guiché.
- Já vejo que comprou um desses pavores.
- A gente tem de acompanhar o tempo - respondeu Adam.
- Tempos virão, Sr. Trask, em que o cavalo desaparecerá da
superfície da terra.
- É muito possível.
- Vão estragar-nos a paisagem, empestar-nos, e enlouquecer-nos - continuou o empregado. - Nós já notamos a diferença.
Gente que vinha ao correio uma vez por semana, passou a vir todos
os dias e até duas vezes por dia. Já não têm paciência para esperar
pelo correio. Andam sempre cheios de pressa, cada vez têm mais
pressa.
O homem exibia um desprezo tão violento que Adam compreendeu que se tratava de ciúmes, por não ter ainda conseguido
comprar um Ford.
- Por nada deste mundo queria um automóvel - disse o homem.
Aquilo significava que a mulher o atazanava para comprar um.
O automóvel representava um lugar mais elevado na escala social.
O empregado pegou com raiva numa carta que estava no
compartimento dos T e estendeu-a a Adam.
- Logo nos vemos no hospital - acrescentou ele com maldade.
Adam sorriu-lhe e saiu.
Um homem que raramente recebe correio não o trata com
ligeireza. Se recebe uma carta, toma-lhe o peso, lê o nome do
remetente e o endereço, examina a letra e decifra o carimbo dos
correios e a data. Adam especou-se no passeio, diante do Ford,
para se entregar a todas aquelas operações. No canto esquerdo
do envelope estava impresso «Bellows & Harvey, solicitadores»..
A carta vinha da cidade natal de Adam, no Connecticut.
Adam comentou em ar desprendido:
- Conheço bem estes Bellows e Harvey, conheço-os mesmo muito bem. Gostava de saber o que me querem.
Examinou o envelope que tornou a voltar.
- Como teriam eles descoberto a minha morada?
Lee observava-o, sorrindo.
- Talvez aí dentro esteja a resposta às suas perguntas.
- É natural - respondeu Adam.
E tomou a decisão. Pegou no canivete, abriu a lâmina maior,
procurou uma abertura para a introduzir, não a encontrou, ergueu
a carta contra o sol para ter a certeza de que não estragava a
mensagem, sacudiu o envelope, fez uma incisão numa das extremidades, soprou lá para dentro e tirou a carta com dois dedos. Depois, leu com a maior atenção:
Ex.mo Sr. Adam Trask, King City, Califórnia.
Prezado Senhor,
Há seis meses que tentamos inutilmente pôr-nos em
contacto com V Ex.a Publicámos, até, anúncios nos jornais,
sem qualquer resultado. Apenas conseguimos localizar V.
Ex.a quando os serviços dos correios nos transmitiram a carta que endereçou a seu irmão.
Adam depreendeu que eles tinham ficado levemente irritados.
O parágrafo seguinte era de teor nitidamente diferente:
Cumprimos o doloroso dever de lhe participar o falecimento do seu irmão Charles Trask. Morreu devido a uma
congestão pulmonar, ocorrida em 12 de Outubro, após uma
doença de duas semanas. O corpo repousa no cemitério
municipal. A sepultura não se encontra assinalada por nenhuma lápide, mas presumimos que V. Ex.a desejará encarregar-se de tão penoso dever.
Adam respirou profundamente e conteve o ar enquanto relia
o parágrafo. Ao terminá-lo, expirou devagar para não fazer barulho.
- Morreu o meu irmão Charles - disse.
- Os meus sentidos pêsames - disse Lee.
- É o nosso tio? - perguntou Cal.
- Era o teu tio Charles - disse Adam.
- Também era meu tio? - perguntou Aron.
- Também.
- Não sabia que tinha um tio - disse Aron. - Talvez a gente
possa ir pôr-lhe flores na sepultura. A Abra ajudava-nos. Ela gosta
muito dessas coisas.
- Mas é muito longe, na outra ponta do país.
Aron, que se debatia com uma violenta emoção, exclamou:
- Achei: quando formos levar flores à mamã, iremos também ver o tio Charles.
Depois, acrescentou com certa tristeza:
- Gostava muito de o ter conhecido antes de ter morrido.
Aron achava que já havia muitos mortos na família.
- Ele era simpático? - perguntou.
- Muito simpático - respondeu Adam. - Era meu irmão,
assim como o Cal é teu irmão.
- Também eram gémeos?
- Não, não éramos.
- Ele era rico? - perguntou Cal.
- Claro que não era - disse Adam. - Mas que lembrança a
tua!
- Se fosse rico, a fortuna ficava para nós, não ficava?
Adam respondeu com severidade:
- Quando se fala na morte, não se fala em dinheiro. Devemos estar todos tristes por ele ter morrido.
- Porque é que eu hei-de estar triste? - perguntou Cal.
- Nunca o vi.
Lee levou a mão à boca para disfarçar o sorriso. Adam voltou
a mergulhar na leitura. Ao novo parágrafo, correspondia uma nova
mudança de estilo.
Na nossa qualidade de executores testamentários do
extinto, temos o prazer de informar V. Ex.a que o seu irmão,
graças a um labor honesto e perseverante, amassou uma
fortuna considerável que, em terrenos, imóveis e disponibilidades, excede largamente a quantia de cem mil dólares. O
testamento, feito e assinado neste cartório, será enviado a
V Ex.a caso o solicite. De acordo com a vontade do defunto, todo o dinheiro, os terrenos e os imóveis deverão ser
divididos em partes iguais entre V. Ex.a e a sua Esposa. No
caso de falecimento de sua Esposa, reverte para V. Ex.a a
totalidade dos bens legados. O testamento também estipula que, no caso de falecimento de V. Ex.a, reverteria para sua
Esposa a totalidade dos bens. Deduzimos pela sua carta
que ainda se encontra no número dos vivos, pelo que
tomamos a liberdade de lhe apresentar as nossas felicitações.
Vossos servos dedicados,
por/ Bellows & Harvey: George B. Harvey.
No fundo da carta havia um Post scriptum:
Meu Caro Adam: Não te esqueças dos teus servos nos
teus dias de prosperidade. O Charles era um somítico que
nunca desperdiçava um ceitil. Espero que tu e a tua mulher
façam melhor uso desse dinheiro. Haverá poraí futuro para
um bom advogado? Refiro-me a mim mesmo. Teu velho
amigo,
Geo. Harvey.
Adam baixou a carta e olhou os gémeos e Lee. Todos aguardavam alguma coisa, mas Adam fechou a boca, dobrou a carta,
meteu-a no envelope e escondeu tudo no bolso interior do casaco.
- Alguma complicação? - perguntou Lee.
- Parecia preocupado.
- Não estou, não. Estou apenas triste por causa do meu irmão.
Adam tentou arranjar lugar na cabeça para o que acabava de
saber, mas a coisa era tão irrequieta como uma galinha a ajeitar-se no ninho. Compreendeu que precisava de ficar só. Subiu para o
carro e deitou um olhar vago ao painel dos instrumentos. Não se
recordava absolutamente de nada.
Lee perguntou:
- Precisa de ajuda?
- É curioso - disse Adam -, já não sei por onde começar.
Lee e os gémeos recitaram em coro:
- Centelha para cima, gás para baixo, ligar a bateria.
- Pois claro, é isso mesmo! Mas que cabeça a minha!
Quando a abelha gigantesca se pôs a zumbir na bobina, Adam
precipitou-se para a manivela, depois voltou a correr para avançar
a centelha, retardar o gás e ligar o magneto.
No regresso, quando passavam debaixo dos carvalhos, Lee
exclamou subitamente:
- Esquecemo-nos de comprar a carne.
- É verdade. Não há mais nada em casa?
- Só há ovos e presunto.
- Isso chega.
- Amanhã, quando for pôr a resposta no correio, poderá comprar a carne.
- Pois claro.
Enquanto Lee preparava o jantar, Adam ficou à espera com o
olhar ausente. Sabia que precisava do auxílio de Lee, mesmo que
fosse só o auxílio dum homem que só escuta enquanto os nossos
pensamentos se vão clarificando.
Cal arrastara o irmão para a cocheira onde estava guardado o
Ford. Abriu a porta e sentou-se ao volante.
- Aron, sobe também.
Aron protestou:
- O papá não quer.
- Ele não sabe. Vem.
Aron subiu timidamente e sentou-se no banco. Cal empunhou
o volante.
- Pó! Pó! - disse ele.
E depois:
- Sabes o que julgo? O tio Charles era rico.
- Não era.
- Quanto queres apostar que era?
- Achas que o papá mentiu?
- Não estou a dizer isso. Aposto que ele era rico.
Mantiveram-se em silêncio durante um momento. Cal fazia
curvas vertiginosas.
- Aposto que sou capaz de descobrir - disse ele finalmente.
- O quê?
- Que queres apostar?
- Nada - disse Aron.
- E se fosse o teu apito de osso? Aposto o meu abafador contra
o teu apito em como nos mandam deitar logo a seguir ao jantar.
Combinado?
- Está bem - disse Aron. - Mas não percebo porquê.
- O papá vai conversar com o Lee e eu ponho-me à escuta.
- Não te atreves.
- Achas que não?
- E se eu te denunciar?
Pelo rosto de Cal passou uma sombra. Inclinou-se para o irmão e murmurou:
- Não me vais denunciar porque, se o fizeres, digo-lhe quem
lhe roubou o canivete.
- Ninguém lhe roubou o canivete. Foi com ele que abriu a
carta.
Cal sorriu.
- Isso foi hoje. Mas, amanhã?
Aron compreendeu que não havia nada a fazer. Cal previra tudo.
Cal viu a confusão e a impotência no rosto de Aron. Sentiu-se
poderoso e feliz. Podia pensar e fazer o que quisesse muito antes
de o irmão vir a descobrir. Até com o pai poderia fazer o mesmo.
Com Lee era diferente porque o chinês se adiantava sempre a
Cal e ficava à espera, compreensivo, para lhe dizer no último
momento: «Não faças isso!»
Cal respeitava e temia Lee, mas Aron, indefeso, era um bocado de barro maleável. Cal sentiu de súbito um amor profundo pelo
irmão, a necessidade de o proteger, e passou-lhe o braço pelos
ombros.
Aron não tugiu nem mugiu. Apenas recuou o suficiente para
ver a cara de Cal.
Cal disse:
- Porque me estás a olhar?
- Não compreendo porque fazes isso.
- Isso o quê?
- Todas essas coisas e esses segredinhos.
- Que coisas?
- Aquilo que fizeste com o coelho. Tenho a certeza de que
disseste alguma coisa à Abra. Foi por tua culpa que ela deitou fora
a caixa.
- Ora vejam! - exclamou Cal.- Queres saber o que se passou?
Mas sentia-se embaraçado.
Aron respondeu devagar:
- Não, não quero. O que me interessa saber é porque o fizeste? Andas sempre a tramar alguma coisa e eu gostava de saber
porquê? Que prazer é que isso te dá?
Cal sentiu uma dor no coração. O projecto já lhe parecia vil e
sem interesse. O irmão acabava de o desarmar. Estava desorientado e não sabia que fazer. Sentiu vontade de ser amado pelo
irmão.
Aron abriu a porta do Ford, desceu e saiu da cocheira. Cal
tentou ainda imaginar que guiava o carro a velocidades fantásticas, mas depressa se aborreceu e encaminhou-se por sua vez
para casa.
2
Depois do jantar, quando Lee acabou de lavar a loiça, Adam
disse:
- Já são horas de irem para a cama, meus filhos.
Aron deitou uma olhadela a Cal e tirou da algibeira o apito de
osso.
- Não quero - disse Cal.
- Pertence-te - respondeu Aron.
- Já não quero. Fica com ele.
Aron pôs o apito em cima da mesa:
- Guarda-o quando te apetecer.
Adam interrompeu-os:
- Que discussão é essa? Já lhes disse para se irem deitar.
Cal afivelou a expressão de «bebé inocente».
- Porquê? - perguntou. - Ainda é muito cedo para nos irmos deitar.
Adam respondeu:
- Pois é, não há dúvida, mas eu quero falar com o Lee. Como
está muito escuro e vocês não podem ir lá para fora, peço-lhes
que se vão deitar ou, pelo menos, que se metam no quarto. Compreenderam?
Os gémeos responderam:
- Sim, papá.
E Lee acompanhou-os até ao quarto. Depois, já com as camisas de dormir vestidas, vieram despedir-se do pai.
Lee, quando regressou à sala, fechou a porta. Em seguida,
pegou no apito, observou-o e tornou a colocá-lo no seu lugar.
- Gostava de saber o que se passou.
- O quê, Lee?
- Eles fizeram uma aposta antes de jantar, o Aron perdeu e
pagou. Em que é que nós estávamos a falar?
- Eu tinha-lhes dito para se irem deitar.
- Talvez a gente ainda venha a compreender - disse Lee.
- Tenho a impressão de que você dá muita importância às questões dos miúdos. Aquilo, provavelmente, não significava nada.
- Havia de significar alguma coisa.
E acrescentou:
- Sr. Trask, julga que os pensamentos das pessoas ganham
importância com a idade? As suas sensações serão mais agudas
e as ideias mais claras do que quando tinha dez anos? Verá da
mesma maneira? Ouvirá da mesma maneira? Terá a sua vitalidade
aumentado?
- Não há dúvida que tem razão - disse Adam.
- Um dos maiores erros que se podem cometer - disse Lee
- é fazer acreditar aos homens que os anos podem trazer-lhes
outra coisa que não seja velhice e tristeza.
- E recordações.
- Ah! pois, as recordações. Sem elas o tempo não disporia
de armas para nos atacar. Que era que me queria dizer?
Adam tirou a carta do bolso e pô-la em cima da mesa.
- Vai ler isto com todo o cuidado para depois discutirmos o
assunto.
Lee pegou nos óculos, foi sentar-se debaixo do candeeiro e
leu a carta.
- Então? - perguntou Adam.
- Haverá algum futuro para um advogado?
- O quê? Ah! já percebi, está a brincar.
- De forma nenhuma - disse Lee. - Limitei-me a dar-lhe a
entender, à minha maneira oriental, que preferia conhecer a sua
opinião antes de lhe dar a minha.
- Não estará a ser demasiado brusco comigo?
- Estou, sim - disse Lee. - Tanto pior para os meus modos orientais. Estou a tornar-me velho, rabugento e impaciente.
Nunca ouviu dizer que os criados chineses, apesar de se manterem fiéis, se tornam insuportáveis à medida que envelhecem?
- Não pretendia ofendê-lo.
- Nem eu me ofendi. Queria falar nessa carta, não queria?
Pois, então, fale. Só depois disso ficarei a saber se lhe poderei dar
uma opinião honesta ou se será preferível abraçar a sua.
- Não compreendo nada disto - disse Adam desorientado.
- Se o senhor, que conhecia o seu irmão, não compreende
nada, o que farei eu, que nunca o vi.
Adam levantou-se, abriu a porta e não viu a sombra que se
esgueirava. Dirigindo-se ao quarto, voltou com um daguerreótipo
que pôs em cima da mesa.
- Aqui tem o meu irmão Charles - disse ele, enquanto tornava a fechar a porta.
Lee examinou a placa de metal brilhante, inclinando a cabeça
para evitar os reflexos.
- Este retrato foi feito antes de eu ir para a tropa - disse
Adam.
Lee aproximou o retrato dos olhos.
- É difícil de ajuizar, mas pela expressão parece-me que o
seu irmão não tinha um feitio muito alegre.
- Ele nunca se ria - respondeu Adam.
- Não era isso precisamente o que eu pretendia dizer. Ao ler
o testamento, pensei cá para comigo que ele devia ser um homem
dotado dum sentido particularmente brutal do humor. Ele gostava
de si?
- Não sei - disse Adam. - Houve ocasiões em que cheguei a crer que sim. Certa vez, tentou matar-me.
Lee disse:
- Está escrito na cara. O ódio e o amor transformaram-no num
avarento. O avarento não passa dum homem assustado que se
esconde numa fortaleza de dinheiro. Ele conhecia a sua mulher?
- Conhecia.
- E gostava dela?
- Odiava-a.
Lee suspirou.
- Isso, aliás, não tem importância. Não é aí que reside o seu
problema.
- Pois não.
- Está disposto a denunciá-lo e a analisá-lo?
- Era o que eu queria fazer.
- Vamos a isso.
- Tenho tudo baralhado na cabeça.
- Quer que seja eu a fazê-lo? A um estranho não custa tanto.
- Faça favor.
- Muito bem. - (De súbito, Lee grunhiu e pareceu admirado.
Com a mão magra, pôs-se a acariciar o queixo.) - Mas que sarilho! E eu que nem pensei nisso.
Adam estava sobre brasas:
- Fazia-lhe muita diferença se mostrasse o seu jogo?
Lee sacou do bolso um cachimbo de longo cabo de ébano
terminado por um pequeno cadinho de cobre. Encheu-o com um
tabaco muito miudinho, acendeu-o, deu quatro grandes fumaças e
deixou apagar o cachimbo.
- É ópio? - perguntou Adam.
- Não - respondeu Lee. - É um tabaco chinês muito barato, que sabe muito mal.
- Porque o fuma, então?
- Não sei - respondeu Lee. - Talvez por me recordar qualquer coisa é que é sinónimo de claridade. - (Semicerrou as pálpebras.) - Mãos à obra. Vou tentar expor os seus pensamentos
como tripas que se põem a secar ao sol. Essa mulher continua a
ser a sua mulher e ainda está viva. Pelo que diz a carta, ela herda
cerca de cinquenta mil dólares, o que representa muito dinheiro.
Com tal quantia pode fazer-se imenso bem ou imenso mal. O seu
irmão, se soubesse o que ela é e o que ela faz, desejaria que ela
entrasse na posse desse dinheiro? Em caso de litígio, a justiça
gosta de se conformar aos desejos do testador.
- O meu irmão não quereria uma coisa dessas - disse Adam.
Mas, logo a seguir, recordou-se das visitas periódicas do irmão à estalagem.
- Tem de se pôr no lugar do seu irmão - disse Lee. - O
que a sua mulher faz não é bom nem mau. Há santos em toda a
parte. Talvez ela pudesse praticar óptimas acções com esse dinheiro. Não há nada como uma má consciência para levar à filantropia.
Adam estremeceu.
- Ela já me explicou o que faria se tivesse dinheiro. É uma
coisa que se parece mais com um assassinato do que com uma
obra de caridade.
- Acha, portanto, que ela não deve dispor desse dinheiro?
- Ela disse que arrastava logo ao suicídio uma série de pessoas de excelente reputação.
- Já estou a ver - disse Lee.- E sinto-me feliz por poder
observar tudo isso de muito longe. Pelo que calculo, as calças da
reputação desses senhores devem estar cheias de buracos. Portanto, moralmente, nunca lhe entregaria o dinheiro?
- Pois não!
- Então, considere isto: ela não tem nome e é ignorada pela
sociedade. Não passa duma prostituta. Se tivesse conhecimento
do testamento e quisesse exigir a sua parte, só o poderia fazer
com o seu auxílio.
- Evidentemente. Não podia passar sem o meu auxílio.
Lee tornou a pegar no cachimbo, limpou-o com um alfinete de
cobre e encheu-o. Voltou a dar as quatro fumaças, ergueu o olhar
e observou Adam.
- É um problema moral muito delicado - disse ele. - Se me
der o seu consentimento, irei submetê-lo à sagacidade dos meus
veneráveis parentes. Sem citar nomes, claro. Hão-de passá-lo a
pente fino, como o menino que caça as pulgas dum cão. Era capaz
de jurar que obterão excelentes resultados. - (Descansou o cachimbo na mesa.) - Mas o senhor, o senhor não pode escolher,
não é verdade?
- Que quer dizer? - perguntou Adam.
- Será possível que ainda se conheça menos do que eu o
conheço a si?
- Não sei que fazer - disse Adam. - Vou ter que pensar no
assunto.
Lee disse com raiva:
- Estou a ver que perdi o meu tempo. Estará a mentir a si
próprio ou só a mim?
- Não me fale nesse tom - pediu Adam.
- E porque não? Sempre detestei ficar desiludido. O seu
caminho está traçado e o que há-de fazer já está escrito, escrito
nos mínimos pormenores. Falarei como me apetecer. Há muito
que adquiri esse direito. Já sinto areia sob a pele, sinto já o ignóbil
odor dos velhos livros e o suave aroma do pensamento. Colocado
perante duas morais, o senhor seguirá aquela que lhe ensinou a
sua educação e não é aquilo a que chama pensar que modificará
a sua decisão. Nem o facto de a sua mulher se prostituir em Salinas contribuirá para o fazer mudar de ideias.
Adam levantou-se. Estava furioso.
- Está a ser insolente porque se vai embora - gritou ele.Digo-lhe e repito que não sei ainda o que irei fazer a respeito desse
dinheiro.
Lee suspirou profundamente. Ergueu-se apoiando as mãos nos
joelhos, encaminhou-se com ar cansado para a porta, voltou-se,
sorriu a Adam e disse-lhe em tom amistoso:
- Seu puritano!
Depois, saiu e fechou a porta atrás de si.
3
Cal percorreu silenciosamente o corredor e subiu para o quarto. Adivinhou a cabeça do irmão em cima do travesseiro, mas não
conseguiu perceber se Aron dormia. Sem fazer barulho, meteu-se
na cama, virou-se de mansinho, entalou os dedos debaixo da cabeça e fitou as miríades de pontinhos coloridos que formam a obscuridade. A cortina da janela inchava com o vento antes de cair
com um ligeiro ruído.
Apossava-se dele uma calma melancolia. Como lamentava
que o irmão não tivesse ficado com ele no Ford, como lamentava
ter escutado à porta da sala! Agitou os lábios no escuro e, se bem
que não emitisse nenhum som, ouviu as suas palavras.
«Meu Deus - disse ele -, faz que eu seja como o Aron. Não
me faças mau. Eu não quero ser mau. Se fizeres com que toda a
gente goste de mim, dar-te-ei tudo o que quiseres. E se não o
tiver, irei buscá-lo onde estiver. Eu não quero ser mau e não quero
ficar sozinho. Ámen. » Lágrimas escaldantes deslizavam-lhe pelo
rosto. Os músculos estavam contraídos. Tentou chorar em silêncio.
Aron murmurou:
- Tu estás com frio, estiveste a tremer.
Estendeu a mão e sentiu sob os dedos o braço rijo de Cal.
- O tio Charles sempre tinha dinheiro? - perguntou Aron
em voz baixa.
- Não - respondeu Cal.
- Tu ficaste lá muito tempo. O que é que o papá queria dizer?
Cal manteve-se imóvel para recuperar a calma.
- Não queres dizer-me? - perguntou Aron. - Muito bem!
Podes ficar com o segredo..
- Vou dizer-te - murmurou Cal. (Voltou-se de costas para o
irmão.) - O papá vai mandar uma coroa para a mamã, uma formidável coroa de cravos.
Aron sentou-se na cama, profundamente comovido.
- Sério? Como é que ele a vai mandar para tão longe?
- Pelo comboio. Não fales tão alto.
Aron baixou de novo a voz.
- Mas como é que chega lá fresca?
- Com gelo. Vão metê-la numa caixa com gelo - respondeu
Cal.
Aron perguntou:
- Será preciso muito gelo?
- Uma quantidade fantástica - disse Cal. - Agora, dorme.
Aron manteve-se calado, até que disse:
- Espero que não chegue murcha.
- Não tenhas medo - disse Cal.
E continuava a gritar para si mesmo: «Faze que eu não seja
mau, faze que eu não seja mau. »
CAPITULO XXXI
1
Adam vagueou pela casa toda a manhã e, ao meio-dia, foi ter
com Lee que revolvia um pedaço de terra na horta e plantava os
legumes da Primavera - cenouras e beterrabas, nabos, ervilhas,
vagens, rutabagas e repolhos. As fileiras eram marcadas com um
cordel esticado e, em cada extremidade, para identificação, estava
espetada uma estaca com o envelope que contivera as sementes.
No fundo da horta, em local abrigado, estavam as mudas de tomates,
pimentões e couves aguardando o fim das primeiras geadas para
serem transplantadas.
Adam disse:
- Portei-me como um estúpido.
Lee, sem largar a enxada, ergueu os olhos para Adam.
- Quando parte? - perguntou.
- No comboio das duas e quarenta, e regresso no das oito
horas.
- Podia escrever uma carta - disse Lee.
- Também pensei nisso. Se fosse você, fazia-o?
- Não, tem toda a razão. Eu é que estou a ser estúpido.
Nada de cartas.
- Tenho de lá ir - disse Adam. - Já estudei todas as soluções, mas não há nenhuma que seja boa.
Lee disse:
- O senhor poderá ser desonesto de muitas maneiras, mas
nunca na maneira como escolhe. Felicidades. Fico ansioso por
saber o que ela vai dizer e fazer.
- Eu vou levar o cabriolé - disse Adam - e deixá-lo em King
City. Não gosto de guiar o Ford quando ando só.
Eram quatro e um quarto quando Adam bateu à porta de Kate.
Foi um homem quem abriu, mas não era o mesmo da última vez;
agora era um finlandês com ar de bruto, sem casaco nem gravata.
Elásticos de seda encarnada sustinham-lhe as mangas. Deixou
Adam à porta e voltou logo em seguida para o conduzir à casa de
jantar.
Era uma grande sala despida, com as paredes e os madeiramentos pintados de branco. No meio, estava uma comprida mesa
rectangular, tapada com um oleado branco, também, e já posta
para o jantar: pratos, chávenas e pires, com as chávenas voltadas
ao contrário nos pires.
Kate estava sentada numa extremidade da mesa, com um
livro de contas aberto à sua frente: Vestia com severidade. Tinha
uma pala verde na testa e os dedos brincavam distraidamente
com um lápis amarelo. Deitou um olhar interessado a Adam que
ficara na ombreira da porta.
- Que mais queres tu? - perguntou ela.
O finlandês não saía de trás de Adam.
Adam não respondeu. Aproximou-se da mesa e colocou a
carta diante de Kate, em cima do livro de contas.
- O que é isto? - (Sem esperar pela resposta, ela leu rapidamente a carta.) - Sai e fecha a porta - disse ela ao finlandês.
Assim que a porta se fechou, Kate perguntou:
- Será uma brincadeira? Não, tu não és desse género. (Depois, pareceu reflectir.) - Talvez seja uma brincadeira do teu
irmão. Tens a certeza de que morreu?
- Tudo o que sei está nessa carta - respondeu Adam.
- Que queres que eu faça?
Adam encolheu os ombros.
Kate disse:
- Se queres que assine alguma coisa, estás a perder o teu
tempo. Podes falar à vontade.
Adam introduziu o dedo entre o feltro e a fita do chapéu e
deu-lhe uma volta completa.
- Porque não tomas nota da morada do notário e não lhe
escreves tu mesma?
- Falaste-lhes em mim?
- Não, escrevi ao Charles e disse-lhe que vivias noutra cidade. Ele já estava morto quando a carta chegou. Foram os notários
que a abriram. É tudo quanto sei.
- Aquele que escreveu o post-scriptum tem ar de ser um dos
teus amigos. Que foi que lhe respondeste?
- Ainda não respondi.
- E que tencionas responder?
- A mesma coisa. Que tu vives noutra cidade.
- Não podes dizer que nos divorciámos. Nós nunca nos divorciámos.
- Nunca me passou isso pela cabeça.
- Sabes quanto terás de dar para me comprares? Quarenta e
cinco mil dólares, nem menos um chavo.
- Não.
- Não, o quê? Não me digas que te vais pôr a regatear?
- Não estou interessado em regatear. Tu leste a carta e já
sabes tanto como eu. Portanto, faze o que te apetecer.
- Pareces sentir-te muito seguro.
- E sinto.
Ela olhou-o através da pala verde, de onde pendiam pequenos
caracóis como a vinha virgem num telhado.
- Tu não passas dum imbecil, Adam. Se tivesses guardado
segredo, ninguém viria a saber que estava viva.
- Mas eu sei.
- Ah! sim? Se calhar pensavas que tinha medo de reclamar
dinheiro? Saíste-me um bom parvo se acreditaste nisso.
Adam disse:
- Não me interessa o que fizeres.
Ela riu-se com cinismo.
- Ora vejam! E se eu te disser que no gabinete do xerife
existe uma ordem de expulsão para ser posta em vigor assim que
eu me servir do teu nome ou que disser que sou tua mulher? Achas
que te faria arranjo?
- Fazer-me arranjo para quê?
- Para te livrares de mim e meteres todo o dinheiro na
algibeira.
- Trouxe-te a carta - disse Adam, armando-se de paciência.
- Quero saber porquê?
- Há só uma coisa que conta: o Charles legou-te esse dinheiro por testamento e não impôs nenhuma cláusula restritiva. Eu não
vi o testamento, mas tenho a certeza de que ele queria que tu
herdasses.
- Estás a jogar um jogo perigoso com cinquenta mil dólares
- disse ela -, mas não julgues que me comes as papas na cabeça. Ainda não percebi onde está a marosca, mas hei-de descobri-la.
E Kate acrescentou:
- Quem é o teu conselheiro?
- Ninguém.
- E o chinês? Ele não é parvo nenhum.
- Ele não me deu conselho nenhum.
Adam sentia-se interessado pela própria impassibilidade. Não
tinha a impressão de ali estar. Olhou para Kate e ficou surpreendido ao ver-lhe na cara qualquer coisa que nunca tinha visto. Kate
estava com medo, com medo dele. Mas porquê?
Ela recompôs-se rapidamente.
- Tu fazes isso porque és honesto, hem? Onde é que já se
viu um anjinho assim?
- Talvez eu seja um anjinho - disse Adam -, mas trata-se
do teu dinheiro e eu não sou um ladrão. Tanto se me dá o que tu
possas pensar.
Kate empurrou a pala para o alto da cabeça.
- Queres fazer-me crer que me vinhas dar cinquenta mil
dólares de mão beijada? Descansa que eu hei-de descobrir onde
queres chegar. Ou pensavas que eu era capaz de engolir uma
história dessas?
- Onde é que costumas receber o teu correio?
- Que tens tu com isso?
- É que vou escrever ao notário pedindo-lhe para se pôr em
comunicação contigo.
- Nem penses nisso! - atalhou ela. (Kate pegou na carta e
meteu-a no livro de contas, que fechou.) - Fico com isto, é um
documento legal que me há-de servir. Vou consultar um advogado.
Não penses que não sou capaz de o fazer.
- Fazes tu muito bem. Quero que fiques com o que te pertence. Não quero para nada o dinheiro que o Charles te legou.
- Hei-de descobrir a marosca, ai não, que não descubro.
Adam disse:
- Parece-me que não és capaz de compreender. Aliás, não
me interessa. Há tantas coisas que eu também não compreendo...
Porque foi que me feriste, porque foi que abandonaste os teus filhos,
como é que tu ou outra pessoa qualquer pode viver desta maneira...
Adam designou a casa com um gesto.
- Quem te pediu que compreendesses?
Adam levantou-se e pegou no chapéu.
- Está tudo dito - disse ele. - Até qualquer dia.
Enquanto se encaminhava para a porta, ela atirou-lhe:
- Estás muito mudado, João Ratão. Terás tu acabado por
arranjar uma mulher?
Adam deteve-se e fitou-a com uma expressão pensativa.
- Não tinha pensado nisso antes - disse. (E aproximou-se
tanto de Kate que ela teve de levantar a cabeça para o ver.) - Eu
disse-te que não compreendia - prosseguiu ele -, mas acabo
agora de descobrir o que é que tu não compreendes.
- E o que é que eu não compreendo, João Ratão?
- Tu só compreendes o lado feio das pessoas. Eu vi as fotografias. Só te sabes servir dos instintos mais reles e das fraquezas do homem, e Deus sabe quanto abundam!
- Cada um...
Adam continuou, espantado pela descoberta:
- Mas tu nada sabes do resto. Não acreditas que tenha trazido a carta porque não quero ficar com esse dinheiro. Não acreditas que tenha podido amar-te. Quanto aos homens que vêm ter
contigo - esses das fotografias - não acreditas que haja neles
alguma bondade ou beleza. Tu só és capaz de ver um dos lados e
julgas - direi mais, tens a certeza - que é o único lado que existe.
Kate imitou com a boca o cacarejo duma galinha.
- Sim, senhor! O meu João Ratão fala pelos cotovelos. Porque não me pregas um sermão?
- Não, seria escusado porque te falta qualquer coisa. Certas
pessoas não distinguem a cor verde e são até capazes de morrer
sem dar por isso. Tu não és um ser humano completo e o remédio
não está nas minhas mãos. Mas gostava de saber se já alguma vez
sentiste que há qualquer coisa invisível à tua roda. Seria pavoroso
se soubesses que existe essa coisa e não pudesses tocar-lhe,
seria simplesmente pavoroso.
Kate afastou a cadeira e levantou-se. Tinha as mãos crispadas
nas ancas, dissimuladas nas pregas do vestido, e fez um esforço
para não gritar.
- O João Ratão gosta de brincar aos filósofos - disse ela
- mas é tão mau filósofo como o é nas outras coisas. Já ouviste falar
em alucinações? Se há coisas que eu não consigo ver, não pensas
que possam ser produto do teu cérebro doentio?
- Não - volveu Adam -, não creio. E tu também não.
Voltou-se, atravessou a sala e saiu.
Kate sentou-se e olhou fixamente para a porta que acabava
de se fechar. Inconscientemente, pôs-se a tamborilar no oleado
da mesa, enquanto os olhos ficavam embaciados pelas lágrimas
e o corpo era agitado por uma coisa que se assemelhava à cólera
e, também, à dor.
2
Quando Adam saiu de casa de Kate, ainda faltavam duas horas
para a partida do comboio para King City. Movido por um impulso,
enveredou pela Main Street e caminhou até ao número cento e
trinta da Central Avenue, onde se erguia a casa branca de Ernest
Steinbeck. Era uma casa acolhedora e imaculada sem pretensões,
posta em cima dum relvado bem cuidado e rodeada por uma cerca
branca. Roseiras e madressilvas trepavam pelas paredes.
Adam atravessou o jardim, deteve-se junto à varanda e tocou.
Olive, com Mary e John ao lado, abriu a porta.
Adam tirou o chapéu.
- Não me conhecem. Eu sou o Adam Trask. O seu pai era
meu amigo. Desejava apresentar os meus respeitos à Sr.a Hamilton. Foi ela quem ajudou a nascer os meus dois gémeos.
- Pois claro - exclamou Olive. (E abriu a porta de par em
par.) - Temos ouvido falarem si. Faça o favor de esperar um instante, que a mamã está no quarto. - (Olive bateu a uma porta e
chamou): - Mamã! Está aqui um amigo para te ver.
Olive abriu a porta e mandou entrar Adam para o agradável
quarto onde vivia Lizza.
- Peço desculpa, mas tenho de deixá-lo - disse Olive a
Adam. - A Catrina está a assar uma galinha e precisa de ser vigiada. John, Mary, venham daí.
Lizza parecia mais pequena do que nunca e muito velha, muito
velhinha na sua cadeira de balanço. Usava um vestido de alpaca
preta de saia muito rodada e tinha ao pescoço uma medalha de oiro
com a palavra «Mamã» gravada.
O quartinho-saleta estava recheado de fotografias, frascos de
perfume, almofadas de renda, escovas, pentes e todos os presentes que tinha recebido nos numerosos aniversários e festas de Natal.
Na parede estava pendurada uma grande fotografia colorida de
Samuel, mas os sais de prata apenas tinham captado uma fria e
altiva dignidade, um ar vago e composto que nada tinha a ver com o
que ele fora em vida. O retrato não sorria nem piscava o olho. Estava
encaixilhado numa enorme moldura doirada e, com grande
consternação das crianças, o olhar seguia-as por todo o quarto.
Numa mesa de verga, ao lado de Lizza, estava a gaiola de
Polly, o papagaio. Tom comprara o papagaio a um marinheiro. Era
um pássaro muito velho, com mais de cinquenta anos, dizia-se,
que levara uma vida aventurosa e aprendera a fala pitoresca dos
embarcadiços. Apesar de todos os seus esforços, Lizza não conseguira ensinar-lhe nenhum salmo para substituir a linguagem vigorosa aprendida na juventude.
Polly inclinou a cabeça, observou Adam e coçou com uma
unha certeira as penas junto ao bico.
- Cava daí, minha besta! - disse Polly sem a menor emoção.
Lizza franziu o cenho.
- Polly - disse ela com severidade -, não sejas malcriado.
- Grande besta - acrescentou Polly.
Lizza fingiu que não ouvia e estendeu a mão pequenina.
- Não calcula o prazer que tenho em o ver, Sr. Trask - disse
ela. - Sente-se.
- Passei por aqui e resolvi entrar para lhe apresentar as minhas condolências.
- Nós recebemos as suas flores.
Passado tanto tempo, ainda se lembrava de todas as flores.
Adam enviara um ramo de perpétuas.
- A senhora deve ter dificuldade em se adaptar a esta nova
vida.
Lizza baixou os olhos e fechou apressadamente a boca para
disfarçar a fraqueza.
Adam acrescentou:
- Talvez não devesse dizê-lo, mas ele faz-me muita falta.
Lizza desviou a cabeça.
- Como vão as coisas lá para os seus lados?
- Este ano vai tudo bem. Houve muita chuva e os pastos já
estão crescidos.
- O Tom escreveu-me - disse ela.
- Cala a boca! - disse o papagaio.
Lizza deitou-lhe o mesmo olhar que costumava deitar aos filhos
quando eles se portavam mal.
- O que foi que o trouxe a Salinas, Sr. Trask? - perguntou
ela.
- Vim cá por causa duns negócios - (Adam sentou-se numa
cadeira de verga que rangeu com o peso.) - Tenciono vir morar
para cá. Há-de ser preferível para os meus filhos, que se aborrecem no rancho.
- Nós não nos aborrecíamos no rancho - disse ela com
secura.
- Eu pensei que as escolas daqui deveriam ser melhores.
Sempre seria uma vantagem para os pequenos.
- A minha filha Olive foi professora em Peach Tree, em Pleyto
e em Big Sur.
Pelo tom da voz, deviam ser aquelas as três melhores escolas. Adam sentiu-se dominado por uma calorosa admiração.
- Tudo isto não passa dum projecto - disse ele.
- As crianças educadas no campo são mais saudáveis. (Era
esta a lei. A prova estava nos filhos. Depois, Lizza desviou a atenção para Adam.) - Anda à procura duma casa em Salinas?
- Ando, sim.
- Então, vá ter com a minha filha Dessie. Ela quer ir viver para
o rancho com o Tom. Ela tem uma bonita casinha no cimo da rua,
ao lado da padaria Reynaud.
- Lá irei - disse Adam. - Vou mesmo lá de seguida. Muito
folgo por ver que tem passado bem.
- Muito obrigada - disse ela. - Comodidades não me faltam.
Adam dirigiu-se para a porta, mas Lizza deteve-o:
- Sr. Trask, tem visto o meu filho Tom?
- Não, não tenho. Eu nunca saio do rancho.
- Gostava que fosse visitá-lo - disse ela apressadamente.
- Tenho a impressão de que ele se sente muito só.
Mas calou-se logo, horrorizada por se ter traído.
- Esteja descansada que irei vê-lo. Até qualquer dia, minha
senhora.
Ao fechar a porta, ouviu o papagaio que dizia: «Cala o bico,
minha besta!», logo seguido da voz de Lizza: «Polly! se não te
calas, levas uma bofetada.»
Adam saiu e subiu a rua até à padaria francesa Reynaud. A
casa de Dessie era ao lado, ao fundo dum pequeno jardim. A vegetação era tão exuberante que mal se distinguia o edifício. Em
cima da porta, via-se uma tabuleta pintada: «Dessie Hamilton,
modista».
O restaurante San Francisco ficava à esquina da Main Street
e da Central Avenue. Adam entrou para jantar. Will Hamilton estava sentado a um canto, devorando um bife.
- Sente-se à minha mesa - disse ele a Adam. - Veio a
negócios?
- Vim, sim - disse Adam.- Fui visitar a sua mãe.
Will descansou o garfo.
- Só tenho uma hora para cá estar. Não fui ver a minha mãe
porque fica muito cansada e a minha irmã Olive teria virado a casa
de pernas ao ar para me arranjar um jantar extravagante. Não
quis incomodá-las e, depois, tenho de me ir embora. Mande vir
um bife, que são excelentes. Como está a mamã?
- Ela tem imensa coragem - disse Adam. - Sempre que a
vejo, aumenta a minha admiração por ela.
- Lá isso, coragem não lhe falta! Só gostava de saber como
foi que ela não conseguiu perder a cabeça connosco e com o meu
pai.
- Um bife bem passado - disse Adam, ao criado.
- Com batatas?
- Não... Sim, fritas. A sua mãe está preocupada com o Tom.
- Como está ele?
Will tirou a gordura ao bife e pô-la de lado.
- Ela tem razão para se preocupar - disse ele. - Há qualquer coisa que não me cheira. Ele anda para aí tão aparvalhado
como um boi.
- Ele devia depender muito de Samuel.
- Até de mais - disse Will. - Ele nunca se recompôs. O
Tom não passa duma criança crescida.
- Eu irei vê-lo. A sua mãe disse-me que a Dessie tencionava
voltar para o rancho.
Will pôs a faca e o garfo em cima da toalha e fixou Adam.
- Não consinto - disse ele com violência. - Não consentirei que ela faça isso.
- Porquê?
Will respondeu com mais calma:
- Porque ela tem aqui um bom negócio e ganha a vida muito
bem. Seria um disparate deitar tudo pela janela fora.
Pegou na faca e no garfo, cortou um bocado de gordura e
levou-a à boca.
- Eu volto para casa no comboio das oito - disse Adam.
- Também eu - disse Will.
Não lhe apetecia conversar mais.
CAPÍTULO XXXII
1
Desie era o benjamim da família. Mollie a bonequinha, Olive a
resoluta e Una a estranha, eram amadas, mas Dessie era a bemamada. Toda ela resplandecia, o seu riso contagiava-se como a
varicela. Só ela tinha aquela alegria que ilumina os dias e os seres,
nunca mais deles se apartando.
Eu exemplifico: vejamos a Sr.a Clarence Morrison, Church
Street, 122, Salinas, que tem três filhos e um marido comerciante.
Suponhamos que Agnes Morrison diz certa manhã: «Depois do
almoço vou provar um vestido a casa de Dessie Hamilton.»
As crianças manifestam logo a sua alegria dando grandes
pontapés na mesa até que as metam na ordem.O Sr. Morrison
esfrega as mãos e dirige-se para a loja, esperando que nesse dia
passe por lá um caixeiro viajante. Se o caixeiro viajante aparecer,
faz-lhe uma encomenda importante. Talvez que, no íntimo, nem
as crianças nem o Sr. Morrison saibam explicar porque acham
que está um rico dia.
A Sr.a Morrison entra na casa ao lado da padaria Reynaud às
duas horas e lá fica até às quatro. Quando sai, traz os olhos cheios de lágrimas e o nariz encarnado. De regresso a casa, vai
empoando o nariz e enxugando os olhos, mas, sempre que se
lembra, desata a rir. É muito possível que a Dessie tenha transformado a pregadeira dos alfinetes num ministro baptista e o tenha
obrigado a pregar um sermão furibundo; talvez tenha contado a
história do velho Taylor que compra todas as casas velhas e as leva
para um terreno vago, até juntar tantas que aquilo mais parece um
Mar dos Sargaços seco; quem sabe se não recitou um poema fazendo momices? Fosse o que fosse, não importa. Foi tão cómica
que as pessoas quase rebentaram a rir.
Quando os filhos dos Morrison regressam da escola, não deparam com dores de cabeça, nem com ralhos ou dramas domésticos. Se fazem barulho, não é um escândalo, e se se sujam, ninguém lhes diz nada. Podem mesmo rir às gargalhadas, que a mãe
não faz caso e até se ri com eles.
O Sr. Morrison, quando regressa à noite, fala da loja e é escutado, o que nem sempre acontece. Encoraja-se e tenta repetir as
anedotas do caixeiro viajante - enfim, algumas delas. O jantar
está delicioso, a omeleta não ficou muito passada, os bolos tinham
a leveza de balões, os biscoitos não mirraram e não há como a
Agnes para temperar um assado. Depois do jantar, quando as
crianças, estafadas de tanto rir, vão para a cama sem se fazerem
rogadas, o Sr. Morrison toca no ombro de Agnes como há muito,
muito tempo não fazia, e ambos se vão deitar e ser felizes nos
braços um do outro.
Uma visita a casa de Dessie produzia efeito ainda durante
dois dias e, depois, a pouco e pouco, tudo voltava à mesma. Assim era a Dessie, tal era o seu poder. A alegria morava-lhe no
coração, como em Samuel, e era a predilecta, a bem-amada de
toda a família.
Dessie não era bela - talvez nem fosse bonita - mas irradiava a luz que obriga os homens a seguirem certas mulheres na
esperança de captarem alguns dos seus reflexos. Seria lícito pensar que, com o tempo, ela tivesse esquecido o primeiro amor e
que outro o substituísse, mas nada disso aconteceu. Os Hamilton
podiam ser versáteis, mas não em questões de amor. Nenhum
deles parecia capaz de amar à ligeira.
Dessie nunca se resignou. Foi muito pior. Continuou a ser o
que havia sido, mas sem a chama. Os amigos sofreram ao vê-la
assim e tentaram ajudá-la.
Os amigos de Dessie eram bons e leais, mas também eram
seres humanos que detestavam o espectáculo da dor. Com o tempo, todas as Sr.as Morrison invocaram pretextos para não voltarem à
casinha junto da padaria. Não eram infiéis: custava-lhes ficarem
tristes quando apenas desejavam sentir-se felizes. É sempre fácil
encontrar justificações virtuosas e lógicas para não se fazer o que é
aborrecido.
Os negócios de Dessie principiaram a declinar. E as mulheres,
que julgavam necessitar de vestidos, nunca compreenderam que
apenas iam buscar a felicidade. Os tempos mudaram e o fato feito
entrava nos costumes. Já não era uma vergonha usá-los. E se o Sr.
Morrison vendia roupa pronta a vestir, era natural que Agnes Morrison
também a usasse.
A família começou a andar apoquentada por causa de Dessie,
mas que se podia fazer? Ela não queria admitir que sofresse e
apenas se queixava de pontadas nos lados, bastante violentas, mas
espaçadas e fugazes.
Quando Samuel morreu, o mundo estilhaçou-se como um
prato. Os filhos, as filhas e os amigos tentaram juntar os cacos e
recompor um mundo que se parecesse com alguma coisa.
Dessie resolveu trespassar o negócio e regressar ao rancho
para viver com Tom. Não era muito o que tinha para vender. Lizza,
estava a par, assim como Olive, e escrevera a Tom. Mas Will,
sentado à mesa do restaurante San Francisco, não fora informado.
A fúria foi-se avolumando a pouco e pouco, até que fez o guardanapo
numa bola e se levantou.
- Esqueci-me duma coisa - disse ele. - Encontramo-nos
logo no comboio.
Will atravessou a rua, penetrou no jardim luxuriante de Dessie e bateu à porta.
Dessie estava a jantar sozinha e veio abrir com o guardanapo
na mão.
- Olha, o Will! - exclamou ela. (E estendeu-lhe a face para
que a beijasse.) - Quando chegaste?
- Estou só de passagem - disse ele. - Preciso de te falar.
Dessie conduziu-o para a cozinha-casa de jantar, uma acolhedora salinha forrada de papel com flores. Encheu uma chávena
de café e pô-la à frente de Will, assim como um açucareiro e uma
leiteira.
- Viste a mamã? - perguntou ela.
- Não tive tempo - resmungou ele. - Dessie, é verdade
que queres voltar para o rancho?
- Penso fazê-lo.
- Eu não quero que vás para lá.
- Porquê? Que mal tem isso? O Tom aborrece-se sozinho.
- Mas tu tens aqui um bom negócio - disse Will.
- O negócio já não dá nada; julgava que soubesses.
- Eu não quero que te vás embora - repetiu ele, com teimosia.
Dessie esboçou um sorriso de desencanto e fez o que pôde
para mostrar um ar divertido.
- O meu mano está a ser muito autoritário. Quer dizer à Dessie
porquê?
- Aquilo lá é muito triste.
- Sendo dois, torna-se menos triste.
Will apertou o lábio inferior entre o polegar e o indicador. Depois,
disse muito depressa:
- O Tom já não é o mesmo. Não podes ficar só com ele.
- Ele está doente? Precisa de auxílio?
Will disse:
- Eu não queria dizer-te, mas acho que o Tom nunca se
recompôs da... da morte... Anda esquisito.
Dessie sorriu afectuosamente.
- Will, tu sempre o achaste esquisito, principalmente quando se recusava a tornar-se negociante.
- Não era a mesma coisa. Agora ele vê tudo negro. Nunca
fala e vai passear sozinho de noite para os montes. Fui visitá-lo
outro dia... ele escreve poemas... tinha a mesa coberta de folhas.
- Tu nunca escreveste poemas, Will?
- Não.
- Pois eu escrevi. Folhas e folhas até encher a mesa.
- Não quero que vás para lá.
- Deixa-me decidir - disse ela calmamente. - Perdi qualquer coisa e quero ver se a torno a encontrar.
- Não digas disparates.
Dessie deu a volta à mesa e passou os braços pelo pescoço
do irmão.
- Meu querido maninho - disse ela -, deixa-me ser eu a
decidir.
Furioso, Will saiu de casa e foi por um triz que não perdeu o
comboio.
2
Tom foi esperar Dessie à estação de King City, Do seu compartimento, ela viu-o a espreitar para dentro das carruagens que
iam passando. Tom estava mais queimado e escanhoara-se tanto
que a pele brilhava como madeira encerada. O bigode ruço estava
aparado. Usava um chapéu Stetson de copa chata e uma casaca
Norfolk apertada na cintura por um cinto com fivela de madrepérola.
Os sapatos deviam ter sido limpos com o lenço justamente na altura
da chegada do comboio, pois faiscavam ao sol do meio-dia. Um
colarinho engomado aprisionava-lhe o pescoço forte e vermelho. Na
gravata azul-clara tinha espetado um alfinete em forma de ferradura. Tom procurava disfarçar a emoção mantendo as mãos unidas à
sua frente.
Dessie agitou a mão à portinhola, enquanto gritava: «Estou
aqui, Tom, estou aqui. » Mas o irmão não a ouviu porque a voz foi
abafada pelo estrondo das rodas quando a carruagem passou diante dele. Dessie desceu do compartimento e avistou o irmão procurando-a freneticamente na direcção oposta. Sorriu e aproximou-se dele.
- Desculpe, cavalheiro - disse ela-, por acaso não conhece o Sr. Tom Hamilton?
Tom girou sobre os calcanhares, corou de prazer, ergueu-a
no ar e fê-la rodar em torno de si. Com um braço, manteve-a no ar
enquanto lhe aplicava um açoite cordial com a mão livre. Dessie
sentiu o bigode a picar-lhe a cara. Tom pôs a irmã no chão, segurou-a pelos ombros e olhou-a. Ambos atiraram a cabeça para trás,
desatando a rir.
O chefe da estação debruçou-se à janela, fincou os cotovelos
no parapeito e lançou ao telegrafista, por cima do ombro:
- Estes Hamilton, mesmo assim! Olhe-me para aquilo!
Tom e Dessie, segurando no dedo mínimo um do outro, entregavam-se a uma quadrilha, cantando e dançando alegremente.
Quando acabaram, abraçaram-se novamente.
Tom olhou para ela.
- A senhora não é Dessie Hamilton? Creio recordar-me de
si. Mas está muito mudada. Que fez às suas tranças?
Tom levou um tempo enorme a pedir-lhe as senhas da bagagem, a perdê-las nos bolsos, a achá-las e a levantar uma bagagem
que não pertencia a Dessie. Por fim, lá conseguiu descobrir as
malas, que empilhou no assento traseiro do carro. Os dois cavalos
baios escarvavam o chão e empinavam-se, fazendo ranger os varais.
Os arreios estavam reluzentes e os cobres brilhavam como se fossem oiro. Tanto o chicote como a crina e a cauda dos animais
estavam enfeitados com laços encarnados.
Tom ajudou Dessie a subir e fingiu que lhe olhava à sorrelfa
para os tornozelos. Depois, fez estalar as rédeas, desenrolou o
chicote e os cavalos deram uma curva tão apertada que as rodas
até chiaram.
Tom propôs:
- Queres dar uma volta por King City? Olha que é uma bela
cidade.
- Não - respondeu ela. - Ainda me lembro muito bem dela.
Tom virou à esquerda e rumou ao sul, enquanto os cavalos se
entregavam a um trote rápido.
Dessie perguntou:
- Onde está o Will?
- Não sei - resmungou ele.
- Ele falou-te?
- Falou, sim, para me dizer que tu não devias vir.
- Ele também me disse a mesma coisa, até pediu ao George
para me escrever nesse sentido.
- Se sentias vontade de vir, porque não haverias de vir? disse Tom com raiva. - Que tem o Will a ver com isso?
Ela pegou-lhe no braço.
- Ele julga que tu estás doido porque escreves poemas.
O rosto de Tom tornou-se sombrio.
- Ele deve ter entrado em casa quando eu não estava. Mas
porque se mete ele onde não é chamado? Ele não tem o direito de
andar a vasculhar os meus papéis.
- Calma! - disse Dessie. - Não te esqueças que o Will é
nosso irmão.
- Que diria ele se eu andasse a remexer nos seus papéis?
- Não há o perigo de isso acontecer - disse Dessie com
secura. - Ele tem os papéis fechados num cofre. Não estraguemos este dia.
- Está bem - disse ele. - Só Deus sabe o esforço que eu
faço, mas ele enerva-me. Lá porque não quero viver como ele entende, chama-me doido.
Dessie mudou de conversa.
- Passou-se qualquer coisa antes da minha partida - disse
ela. - A mamã queria vir. Tu já viste a mamã chorar, Tom?
- Que me recorde, não. Ela nunca teve a lágrima fácil.
- Pois fica sabendo que chorou. Não foi quase nada, mas já
era muito para ela. Tinha a voz embargada, fungou e assoou-se,
limpou os óculos e fechou a boca como a tampa dum relógio.
- Meu Deus! - exclamou Tom.- Não imaginas a satisfação
que me dá a tua vinda, até parece que me fez bem. É como se
estivesse convalescente duma doença.
Os cascos dos cavalos martelavam a estrada municipal.
- O Adam Trask comprou um Ford - disse Tom-, ou antes, foi o Will quem lhe vendeu um Ford.
- Não sabia - disse Dessie. - É ele quem vai comprar a
minha casa. Sabes que fiz um bom negócio? - (Riu-se.) - Eu
tinha-lhe pedido um preço elevado, julgando que ele ia regatear mas,
afinal, aceitou logo. Até fiquei desorientada.
- Então como resolveste o assunto?
- Disse-lhe que tinha pedido um preço alto para poder baixá-lo. Ele não pareceu fazer muito caso.
Tom disse:
- Peço-te o favor de nunca contares isso ao Will, se não
queres que ele te mande internar.
- Mas a casa não valia o preço que eu pedia.
- Acredita no que te digo, não contes nada ao Will. Porque é
que o Adam quer comprar a tua casa?
- Ele vai morar para lá que é para os gémeos poderem ir à
escola em Salinas.
- E que faz ao rancho?
- Não sei, não me disse.
- Gostava de saber o que teria acontecido se o nosso pai
tivesse um rancho como o dele em vez do nosso monte de poeira.
- Não digas mal do nosso rancho.
- É um sítio maravilhoso para se morrer de fome.
Dessie perguntou com fervor:
- Já conheceste alguma família mais feliz do que a nossa?
- Não, mas a culpa é da família e não do rancho.
- Tom, lembras-te daquele dia em que tiraste o canapé para
levar a Jenny e a Belle Williams ao baile?
- A mamã nunca me perdoou. E se nós convidássemos a
Jenny e a Belle para nos virem visitar?
- Tenho a certeza de que viriam.
Quando abandonaram a estrada municipal para se entranharem nas colinas, Dessie disse:
- Fazia delas uma ideia diferente.
- Mais áridas?
- Talvez. Há tanto pasto, Tom!
- Tenho vinte cabeças de gado para o comer.
- Então deves estar rico.
- Não estou, não. Quando o ano é bom, o preço da carne
desce. Gostava de saber o que faria o Will. É o homem da escassez. Ele está sempre a repetir: «É preciso jogar com a escassez.  »
O Will é um espertalhão.
A estrada pouco mudara. Os trilhos estavam mais fundos e
as pedras sobressaiam mais. O resto conservava-se na mesma.
Dessie perguntou:
- O que é aquela folha de papel espetada naquela moita?
Ao passarem, arrancou a folha de papel e leu o que estava
escrito: «Bem-vinda seja. »
- Foste tu, Tom?
- Não, foi alguém que se nos adiantou.
De cinquenta em cinquenta metros, surgiram outros cartazes
pendurados nas moitas, pendentes das árvores ou espetados no
tronco dum castanheiro. Todos diziam «Bem-vinda» e Dessie corava de prazer a cada nova descoberta.
Finalmente, atingiram o alto da colina que dominava a depressão onde se aninhava a velha casa dos Hamilton. Tom parou
o carro para que a irmã pudesse apreciar a vista. Na colina oposta, escritas em pedras caiadas, Dessie leu as palavras: «Bem-vinda, Dessie. » Descansou a cara nos joelhos do irmão e pôs-se a
rir e a chorar ao mesmo tempo.
Tom tinha um olhar espantado.
- Quem terá feito isto? Já um homem não pode sair de casa.
De madrugada, Dessie foi despertada pela dor. O sofrimento
produzia-lhe uma sensação de ameaça. A dor nascia no flanco,
atravessava o abdómen e tornava-se mais aguda, parecendo que
uma garra lhe torcia as entranhas. Quando a garra afrouxava o aperto,
ficava uma espécie de formigueiro. A dor não durava muito mas,
enquanto durava, era como se o mundo exterior deixasse de existir.
A manhã prateada entrou pela janela. Dessie aspirou o ar
matutino que inchava as cortinas, trazendo um aroma de erva, de
raízes e de terra molhada. Depois, chegaram os sons: os pardais
que piavam; uma vaca de mugido monótono que repelia um vitelo
esfomeado; um gaio azul emitindo gritos de falso júbilo; o apelo
agudo da codorniz e a resposta sussurrada da fêmea, ali perto, na
erva alta. No galinheiro reinava a desordem. Uma enorme galinha
Rhode Island, que pesava mais de dois quilos, protestava hipocritamente contra as intenções lúbricas dum galo desplumado que
teria podido desfazer com uma pancada da asa.
O arrulho dos pombos veio acordar as recordações. Dessie
lembrou-se do pai sentado à cabeceira da mesa e a dizer:
«Disse ao Rabbit que ia criar pombos e sabem o que ele me
respondeu?» - «Não os compres brancos.» - «Ora essa, porquê?» - «Porque dão azar. Se comprares pombos brancos, a
tristeza e a morte entram-te em casa. Compra-os antes cinzentos. » - «Mas eu gosto deles brancos. » - «Compra-os cinzentos, já te disse. » «Nem que a terra se me abra debaixo dos pés,
hei-de comprá-los brancos. »
E Lizza dissera com a maior paciência:
«Porque hás-de estar sempre a querer tentar o destino, Samuel? Os pombos cinzentos têm o mesmo gosto e são maiores. »
Samuel respondera:
«Não obedecerei a superstições ridículas. »
Então Lizza retorquira com a sua implacável simplicidade:
«Tu só obedeces ao teu orgulho, Samuel, tu tens a teimosia
duma mula. »
E Samuel dissera num tom melancólico:
- É preciso que haja alguém para fazer estas coisas. Se, de
vez em quando, não aparecesse alguém que fizesse uma negaça
ao destino, a humanidade ainda viveria empoleirada nas árvores. »
E, como é evidente, Samuel comprara pombos brancos, aguardando a tristeza e a morte a pé firme. Os pombos que arrulhavam
naquela manhã eram os tetranetos dos pombos de Samuel. Quando voavam, formavam uma grinalda branca em torno da casa.
Enquanto Dessie ia evocando o passado, surgiram as vozes e
a casa povoou-se. «A tristeza e a morte, reflectiu ela, a morte e a
tristeza - só aquilo e o atordoamento da dor. Basta ter a paciência
de esperar, para que cheguem a morte e a tristeza.»
Ouviu o assobio do ar nos grandes foles da forja e o martelo a
bater na bigorna. Ouviu Lizza a abrir a porta do forno e o barulho da
massa caindo nas lajes quentes. Depois, passou Joe, procurando
os sapatos nos sítios mais variados até os encontrar onde os deixara
na véspera, isto é, debaixo da cama. Ouviu a voz meiga de Mollie
que lia a oração da manhã na Bíblia, enquanto Una lhe corrigia os
erros.
E dizer que o Tom operara a Mollie com o canivete e fora
vomitar quando dera pela coragem do que tinha feito!
- Querido Tom! - exclamou ela.
A coragem de Tom só emparceirava com a sua covardia, como
acontece com todos os homens dignos deste nome. Tanto tinha
de violento como de terno e ele era o campo espezinhado onde as
suas próprias forças tinham travado batalha. Tom sentia-se desamparado, mas Dessie podia indicar-lhe o caminho a seguir, do
mesmo modo que um cavaleiro dirige um puro-sangue e o ajuda a
saltar o obstáculo.
O dia estava a ficar cada vez mais claro. Dessie, acordada
pelas dores, não conseguia expulsar as brumas nocturnas. Lembrou-se de repente que a Mollie ia abrir o grande baile do Quatro
de Julho pelo braço do senador Harry Forbs. E ela que ainda não
cosera as rendas no vestido da Mollie! Fez um esforço para se
levantar. Tinha tanto que fazer e deixava-se ficar para ali a divagar.
- Hei-de acabá-lo, Mollie - gritou ela.
Ergueu-se, atirou um casaco pelas costas e atravessou de
pés descalços a casa povoada de Hamiltons. Mas eles tinham
desaparecido do corredor e haviam-se refugiado nos quartos, e
tinham desaparecido dos quartos com as camas muito bem feitas
para se refugiarem na cozinha, e tinham desaparecido da cozinha
para se esfumarem. Tristeza e morte. A névoa do sonho desfez-se,
deixando-a bem acordada.
A casa estava limpa, esfregada e imaculada. As cortinas estavam lavadas e as vidraças brilhavam de asseio. Mas notava-se a
mão do homem: as cortinas passadas a ferro não caíam a direito;
os vidros tinham fiapos de pano agarrados; quando se tirava um
livro de cima da mesa, ficava um rectângulo formado pela poeira.
O fogão estava aceso; através das grelhas adivinhava-se a
chama cor de laranja, que se engolfava na chaminé com um ruído
surdo de trovão. O pêndulo do relógio faiscava atrás do vidro e o seu
tiquetaque assemelhava-se a um martelo batendo numa caixa de
madeira vazia.
Do exterior veio um assobio agudo e selvagem, que ritmava
uma melodia estranha. Depois, soaram os passos de Tom que
entrou com um braçado de toros de carvalho, tão grande que lhe
tapava a cara, e que ele atirou para o caixote da lenha.
- Já estás levantada? - perguntou ele. - É pena. Estava a
fazer este barulho todo para te acordar.
A alegria resplandecia-lhe no rosto.
- É uma manhã em que a preguiça não se deve apoderar de
nós.
- Tu falas como o papá - disse Dessie.
E ambos se riram.
A alegria de Tom adquiriu um tom selvagem.
- Sim - continuou ele, elevando a voz -, e os tempos dele
ainda hão-de voltar. Tenho andado a rastejar na tristeza como uma
serpente com a espinha partida. Agora compreendo porque é que
o Will me achava doido, mas tu voltaste e eu' hei-de mostrar-te.
Sinto-me renascer para a vida. Estás a ouvir-me? Vou fazer ressuscitar esta casa.
- Então, ainda bem que vim - disse ela.
E pensou com desolação que, sob aquela couraça, batia um
coração frágil. Ele precisava de ser protegido.
- Tu deves ter trabalhado dia e noite para limpar a casa observou ela.
- Isso é o que tu pensas! - disse Tom. - Ficou tudo pronto
num abrir e fechar de olhos.
- Pois sim -tornou ela-, mas tiveste de pegar num balde e
numa escova e pôr-te de joelhos, a não ser que tenhas inventado
alguns pós de perlimpimpim ou aprendido a domesticar o vento.
- A propósito de-invenções, ontem inventei um novo processo
de prender uma gravata a um colarinho engomado.
- Mas tu nunca usas gravata.
- Usei ontem. Foi por isso que inventei o novo processo. E as
galinhas! Vou criar milhares de galinhas em galinheiros espalhados
por todo o rancho, com argolas no telhado para as mergulhar num
banho de cal, e os ovos hão-de chegar até aqui num tapete rolante.
- Então vê se me inventas também um pequeno almoço -
disse Dessie. - És capaz de me arranjar um ovo com presunto?
- Isso é para já! - exclamou ele.
Tom abriu o fogão e atiçou o lume tão de perto que ficou com
os pêlos da mão chamuscados. Meteu mais lenha na fornalha e
recomeçou a assobiar.
Dessie disse:
- Até pareces um sátiro com uma flauta numa montanha da
Grécia.
- E o que é que tu pensas que eu sou? - atirou-lhe ele.
Dessie perguntou a si mesma: «Se a alegria dele é verdadeira, porque é que eu não sinto o coração mais leve? Porque é
que não consigo sair do atoleiro onde me meti? Mas hei-de sair.
Se ele pode, eu também posso.»
- Tom!
- O que é?
- Quero um ovo encarnado.
CAPÍTULO XXXIII
1
As colinas mantiveram-se verdes até ao fim do mês de Junho
e, só então, se tornaram amarelas. A aveia brava tinha tantas
sementes que os caules vergavam com o peso. Os riachos só
secaram quando o Verão já ia adiantado. O gado mal se tinha nas
pernas com tanta gordura e andava de barriga cheia. Era um daqueles anos em que os habitantes do Vale esqueciam os anos
secos. Os lavradores compravam terras que nem sequer podiam
cultivar e calculavam os futuros lucros.
Tom Hamilton trabalhou como um gigante, com os braços vigorosos e as mãos calosas, com o coração cheio de alegria. Na
forja, já se ouvia soar de novo a bigorna. A velha casa foi pintada
de branco e todos os anexos foram caiados. Tom foi a King City
para estudar um modelo de autoclismo que copiou e construiu
com um bocado de folha-de-flandres e madeira. Como o riacho
tinha um caudal muito fraco, instalou ao lado da casa um depósito
de madeira que se enchia por meio dum moinho de vento tão bem
concebido que girava ao mínimo sopro de ar. Tom fez ainda modelos reduzidos das duas invenções com o intento de as mandar
brevetar no Outono.
Mas não era tudo - Tom trabalhava por gosto e com alegria.
Dessie tinha de se levantar muito cedo para evitar que Tom fizesse o trabalho todo. Mas ela não se deixava enganar: aquele entusiasmo devorador não se assemelhava ao de Samuel. Tinha a
mesma aparência e o mesmo ardor, mas era fabricado, tão bem
fabricado que quase induzia em erro.
Dessie, que era quem mais amigos possuía no Vale, não tinha
a quem se confiar. Não falara a ninguém na sua doença e guardava
segredo.
No dia em que Tom descobriu a irmã às voltas com uma crise,
exclamou:
- Dessie, que tens tu?
Ela disfarçou o sofrimento e respondeu:
- É uma dorzinha, uma dorzinha sem importância. Já me
sinto melhor.
Daí a pouco, já ambos se riam.
Riam muito e com frequência, como que para se tranquilizarem.
Só quando se ia deitar é que Dessie reencontrava a solidão e o mal
insuportável. Tom, por seu lado, na escuridão do quarto, sentia-se
indefeso como uma criança. Ouvia bater o coração, esforçava-se
por não pensar e desviava a atenção para os projectos, para os
desenhos, para as máquinas.
Às vezes, subiam ao alto da colina para contemplarem os
reflexos do sol nas montanhas e para respirarem a brisa que vinha do Vale. Geralmente, mantinham-se calados e gozavam a paz
da tardinha. Eram tímidos e nunca falavam de si mesmos. Nada
sabiam um do outro.
Foi por isso que ambos ficaram admirados quando, certa noite, Dessie exclamou de súbito:
- Porque é que tu não te casas, Tom?
Ele olhou para a irmã e, depois, desviou a vista:
- Quem é que me havia de querer?
- Estás a brincar ou pensas isso a sério?
- Quem é que me havia de querer? - repetiu ele. - Quem é
que havia de querer uma pessoa como eu?
- Tu pareces-me sincero! - disse ela, alarmada.
E resolveu violar logo a mútua convenção:
- Já estiveste apaixonado?
- Não.
- Eu queria saber - disse ela, como se não o tivesse ouvido.
Desceram em silêncio para o rancho mas, diante da porta,
Tom disse subitamente:
- Tu aborreces-te aqui, tu não queres cá ficar.
Aguardou um instante, e depois:
- Responde, anda. É verdade, não é?
- Estou melhor aqui do que em qualquer outro sítio.
A seguir, ela perguntou:
- Costumas ir ver as mulheres?
- Costumo.
- E sentes-te melhor, depois?
- Nem por isso.
- Então, que tencionas fazer?
- Não sei.
Entraram silenciosamente em casa. Tom acendeu o candeeiro
da velha sala. O canapé que ele tinha consertado estava encostado
à parede e, entre as portas, os passos haviam puído o tapete.
Tom sentou-se ao lado da mesa redonda e Dessie no canapé.
Viu que o irmão ainda estava embaraçado com a última frase que
pronunciara, e pensou: «Como ele é puro, como é incapaz de viver num mundo que eu própria conheço melhor do que ele. » Não
passava dum destruidor de dragões, dum salvador de donzelas
em perigo, e os pecados pareciam-lhe tão grandes que se sentia
indigno. Dessie desejou que o pai estivesse ali; ele soubera descobrir a grandeza existente em Tom e talvez tivesse sabido libertá-la e dar-lhe asas. Dessie procurou outro meio de atear uma
aparência de chama.
- Já que estamos a falar de nós, já alguma vez pensaste
que o nosso horizonte é limitado pelo Vale, que nunca de cá saímos senão para ir a San Francisco ou a San Luís Obispo?
- É verdade - disse Tom.
- Não achas ridículo?
- Não somos só nós.
- Não é razão. Podíamos ir a Paris, a Roma, a Jerusalém.
Eu gostava tanto de ver o Coliseu.
Tom deitou-lhe um olhar suspeitoso, desconfiando de alguma
partida.
- Como havia de ser? É preciso muito dinheiro para isso.
- Não me parece - disse ela.- Nós não temos precisão de
ir para os pálaces. Podíamos viajar nos barcos menos caros e
nas classes mais baratas. Foi assim que o pai veio da Irlanda. Até
podíamos ir à Irlanda.
Ele mantinha-se na defensiva, mas surgira-lhe uma chama no
olhar.
Dessie prosseguiu:
- Podíamos trabalhar durante um ano, e economizar todos os
tostões. Eu posso fazer costura em King City. O Will ajudava-nos.
Chegado o Verão, vendíamos o gado e íamo-nos embora. Não temos nada que nos prenda.
Tom levantou-se e saiu. Ergueu os olhos para as estrelas de
Verão, Vénus a azul e Marte a vermelha. Tinha as mãos pendentes;
abriu-as e fechou-as várias vezes. Depois, tornou a entrar em casa.
Dessie não se movera.
- Tu estás realmente disposta a partir, Dessie?
- É o que mais desejo.
- Então, partiremos.
- E tu, queres ir?
- É o que mais desejo - disse ele. - O Egipto... já pensaste
no Egipto?
- Atenas - disse ela.
- Constantinopla.
- Belém.
- Belém, pois. (E Tom acrescentou logo a seguir): - Vai-te
deitar, anda. Temos um ano de trabalho à nossa frente. Vai descansar. Eu vou pedir dinheiro emprestado ao Will para comprar um
cento de leitões.
- E com que é que os vais engordar?
- Com bolota - disse Tom.- Vou inventar uma máquina de
apanhar bolota.
Assim que ficou só no quarto, Tom pôs-se a andar dum lado
para o outro e a falar em voz baixa. Dessie debruçou-se à janela e
contemplou a noite estrelada. Sentia-se feliz mas perguntava a si
mesma se ela e o irmão tinham realmente vontade de partir. Estava entregue a estas reflexões quando surgiram os primeiros sintomas da pontada.
Quando se levantou no dia seguinte de manhã, Tom já estava
sentado diante da prancha de desenho, resmungando e dando
punhadas na testa. Dessie espreitou por cima do ombro do irmão.
- É a máquina de apanhar bolotas?
- Não custava nada a fazer - afirmou Tom - se não fosse a
questão de evitar que apanhasse também os ramos e os calhaus.
- Eu bem sei que tu é que és o inventor, mas eu já inventei. O
melhor apanhador de bolotas do mundo, e está pronto a funcionar.
- Que queres tu dizer?
- A criançada - respondeu ela. - Todas essas mãozinhas
que não podem estar quietas.
- Não fariam isso, nem que lhes pagassem.
- Fariam, se houvesse prémios a ganhar. Haverá prémios para
todos e um grande prémio no valor de cem dólares para o vencedor.
Não ficava uma bolota no Vale. Queres que experimente?
Tom coçou a cabeça.
- Porque não? Mas como é que reuníamos a colheita?
- A miudagem trazia tudo para aqui - disse Dessie. - Deixa
o caso comigo. Espero que os celeiros tenham espaço que chegue.
- Tu queres explorar a mocidade?
- Claro que quero! Quando tinha a loja, explorava as raparigas
que queriam aprender costura, mas elas também me exploravam.
Parece-me que vou pôr-lhe o nome de Grande Concurso de Apanha
de Bolotas do Condado de Monterey. E não vou autorizar toda a
gente a participar. Talvez pudéssemos oferecer bicicletas como
prémio? Tu não apanhavas bolota se tivesses a esperança de ganhar
uma bicicleta, Tom?
- Ai não, que não apanhava! - respondeu ele.- Mas nós
não podíamos pagar-lhes também?
- Com dinheiro, não - disse Dessie.-O divertimento transformava-se em trabalho e toda a gente se esquiva ao trabalho,
quando pode. Até eu.
Tom endireitou-se e riu.
- É como eu. Bom. Tu encarregas-te das bolotas e eu encarrego-me dos porcos.
Dessie disse:
- Tom, não achas que teria piada se acabássemos por ganhar dinheiro?
- Tu não ganhaste em Salinas?
- Não ganhei muito, mas promessas não me faltavam. Se
me tivessem pago todas as contas, não precisaríamos dos porcos
e poderíamos partir para Paris amanhã mesmo.
- Vou estar com o Will - disse Tom. (Afastou a cadeira e
largou a prancha de desenho.) - Queres vir comigo?
- Não, preciso de fazer os preparativos para o Grande Concurso de Apanha de Bolotas.
2
De regresso ao rancho, já no fim da tarde, Tom vinha triste e
deprimido. Como de costume, Will despejara-lhe um balde de água
fria no entusiasmo. Will escutara-o beliscando o lábio, esfregando
as pálpebras e coçando o nariz; depois, limpara os óculos e perdera um tempo infinito a cortar e a acender um charuto. O negócio
dos porcos tinha muitos pontos vulneráveis e Will pusera-os logo a
todos em evidência.
Quanto ao Concurso de Apanha de Bolotas, estava votado a
um malogro completo, mas Will não explicou porquê. Todo o projecto se mostrava vacilante, principalmente nos tempos que corriam. O mais que Will podia prometer era voltar a pensar no assunto.
A certa altura da conversa, Tom sentiu vontade de lhe expor
os seus planos de viagem, mas acabou por desistir. Para Will, a
ideia de se ir vadiar para a Europa, a não ser, evidentemente, que
uma pessoa se tivesse retirado dos negócios com um bom rendimento, teria constituído uma loucura dez vezes mais perigosa do
que o negócio dos porcos. Tom não disse nada e deixou Will para
que «voltasse a pensar» no assunto, sabendo de antemão que o
veredicto seria contrário aos porcos e às bolotas.
O pobre Tom não sabia, e era incapaz de aprender, que a
dissimulação é uma das alegrias criadoras do homem de negócios. Mostrar entusiasmo teria sido ridículo. Will tencionava, realmente, voltar a pensar no assunto, pois sentia-se fascinado por
uma parte do projecto. O Tom descobrira uma coisa interessante.
Comprar leitões a crédito, engordá-los com um alimento que não
custava quase nada, vendê-los, reembolsar o empréstimo e guardar os lucros: não havia dúvida, tratava-se duma rica operação. Will
não tencionava roubar o irmão, pois estava disposto a dar-lhe uma
parte dos lucros. Mas o Tom era um sonhador em quem não se
podia confiar para pôr de pé um negócio sólido. Entre outras coisas, ele ignorava o preço de venda da carne de porco. Se o projecto
se realizasse, Will estava disposto a oferecer ao Tom um belo presente, talvez até um Ford. E porque não propor um Ford como único
e primeiro prémio do concurso? Todo o Vale se atiraria às bolotas.
Conduzindo o cabriolé pelas colinas, Tom pensava na maneira
de dizer à Dessie que o projecto não era viável. Se ao menos tivesse
qualquer outra coisa para sugerir em seu lugar... Como se poderia
ganhar num ano o dinheiro suficiente para ir à Europa? Subitamente,
verificou que nem sequer sabia de quanto dinheiro precisavam.
Ignorava o preço das passagens marítimas e de todas as outras
despesas. O melhor que tinham a fazer era passarem o serão a
fazer as contas.
Tom esperava que Dessie viesse a correr ao seu encontro.
Preparou-se, portanto, para disfarçar a desilusão e para dizer uma
graça. Mas Dessie não saiu de casa. «Deve estar a descansar»,
pensou. Deu de beber aos cavalos, levou-os para a estrebaria e
preparou-lhes a ração de aveia.
Quando Tom entrou, Dessie estava estendida no canapé.
- Estás a passar pelas brasas? - (E, ao ver-lhe a cor da
cara):- Mas que tens tu?
Ela juntou todas as forças de que dispunha.
- Dói-me o estômago.
- Ah! bem - disse Tom.- Credo! que susto me meteste!
Para isso posso eu arranjar o remédio.
Foi à cozinha e voltou com um copo cheio dum liquido efervescente que estendeu à irmã.
- O que é isto, Tom?
- É a velha receita da família. Os sais são um pouco violentos, mas fazem-te bem.
Dessie bebeu e fez uma careta.
- Recordo-me deste gosto, era o remédio que a mamã costumava usar na época das maçãs verdes.
- Agora, estende-te à vontade - disse Tom. - Eu vou fazer o
jantar.
Ela ouviu-o às voltas na cozinha. As dores consumiam-na. Tinha medo. O remédio queimava-lhe o estômago. Arrastou-se até à
nova retrete com autoclismo e tentou vomitar. O suor escorria-lhe
pela testa e causava-lhe ardor nos olhos. Quis levantar-se, mas os
músculos do abdómen estavam contraídos. Encolhendo-se toda,
voltou a deitar-se.
Quando Tom trouxe um prato com ovos mexidos, ela abanou a
cabeça.
- Obrigada - disse. - Prefiro ir-me deitar.
- Os sais devem estar quase a produzir efeito - garantiu
Tom. - Vais sentir-te melhor. - (Ajudou-a a deitar-se.) - Que terás
tu comido que te fizesse mal?
Dessie, deitada em cima da cama, lutava com todas as forças
para dominar a dor, mas, por volta das dez horas, deixou-se vencer
e gritou:
- Tom! Tom! - (Ele abriu a porta. Numa das mãos, segurava
o World Almanac. ) - Tom, desculpa, mas não posso aguentar mais.
Ele sentou-se à beira da cama, na semiobscuridade.
- Dói-te assim tanto?
- É horrível!
- Queres vomitar?
- Não posso.
- Vou buscar um candeeiro e ficar ao pé de ti. Talvez consigas adormecer. Amanhã de manhã já não tens nada. É só dar
tempo aos sais para agirem.
A força de vontade voltou a prevalecer e Dessie tentou manter-se calma enquanto Tom lhe lia passagens do Almanac. Suspendeu a leitura quando julgou que ela tivesse adormecido e deixou-se amodorrar na cadeira.
Foi acordado por um grito. Aproximou-se dos lençóis sob os
quais o corpo se debatia. Dessie tinha os olhos baços, desvairados, como os dum cavalo enraivecido. O rosto estava arroxeado e
a espuma irrompia-lhe da boca. Tom meteu a mão debaixo da
roupa e sentiu os músculos retesados, duros como pedras. De
súbito, ela aquietou-se. A cabeça caiu para o lado e os olhos semicerrados brilharam à luz do candeeiro.
Tom não perdeu tempo a selar o cavalo e pôs-lhe apenas as
rédeas. Partiu a galope, arrancando o cinto com a mão para chicotear o animal assustado.
Os Duncan, que dormiam na casa de dois pisos à beira da
estrada municipal, não ouviram as pancadas à porta, mas ouviram
o estrondo formidável que ela fez ao ser arrancada com gonzos e
ferrolhos. Quando Red Duncan desceu armado de espingarda,
deparou com Tom a berrar no telefone de parede para a central de
King City.
-O Dr. Tilson! Procurem-no! Quero lá saber! Procurem-no!
Red Duncan apontava-lhe a espingarda a bocejar.
O Dr. Tilson respondeu: «Já sei, já sei, é o Tom Hamilton. O
que é que ela tem? Tem a barriga muito dura? Que foi que fez?
Sais! Masque grande besta!»
O médico acabou por dominar a fúria. «Tom, Tom, meu rapaz,
veja se se acalma. Volte para casa e aplique-lhe compressas frias,
o mais frias que puder. Não têm gelo, pois não? Está bera, vá
mudando as compressas. Eu vou já a correr. Está-me a ouvir? Tom,
está a ouvir?»
Desligou o aparelho e vestiu-se. Furioso e desanimado, abriu
um armário e foi tirando escalpelos, pinças, esponjas e fio de sutura. Abanou o petromax para ver se estava cheio e guardou na
maleta um frasco de éter e uma máscara. A mulher, de camisa e
barrete de dormir, entrou na sala. O Dr. Tilson disse-lhe:
- Vou à garagem. Telefona ao Will Hamilton e diz-lhe que
preciso que me vá levar ao rancho do pai. Se ele começar a discutir, diz-lhe que a irmã está a morrer.
3
Tom voltou ao rancho uma semana após o enterro da irmã.
Cavalgava muito empertigado na sela, com a cabeça erguida e o
olhar fixo, como um guarda num desfile. Tom fizera tudo devagar
e com perfeição. O cavalo fora almofadado, e escovado; o chapéu
Stetson repousava-lhe dignamente na cabeça. Nem o próprio
Samuel teria sido capaz de tanta dignidade. Um falcão, que picava
como uma flecha sobre uma galinha, nem sequer lhe fez voltar a
cabeça.
Chegado a casa, apeou-se, deu de beber ao cavalo, prendeu-o
e pôs cevada na manjedoura. Em seguida, tirou-lhe a sela e virou a
manta ao contrário para que secasse. Quando o cavalo acabou de
comer, Tom levou-o para fora e soltou-o, para que pastasse à vontade pelos prados do mundo.
Em casa, os móveis, as cadeiras, o fogão pareceram recuar
quando o viram. Um banco afastou-se dele quando entrou na sala.
Os fósforos estavam molhados e foi com uma sensação de vergonha que se dirigiu à cozinha para procurar outros. Só o candeeiro
da sala parecia amistoso. Ao primeiro fósforo, a torcida inflamou-se
e espalhou uma bela claridade.
Tom sentou-se e olhou em torno, evitando reparar no canapé.
Um ligeiro ruído de ratos na cozinha fez-lhe virar a cabeça e viu na
parede uma sombra com um chapéu na cabeça. Tirou-o.
Sentado sob o candeeiro, deixou vaguear o espírito, mas sabia
que iam chamar pelo seu nome e que teria de sentar-se no banco
da infâmia, para ser julgado por si próprio, perante o júri dos seus
crimes.
Uma voz estridente apregoou o seu nome. Tom aproximou-se
dos acusadores: a Vaidade - ele andava mal vestido, sujo, e era
ordinário; o Desejo - ele dera dinheiro às prostitutas; a Desonestidade - ele dera a entender que tinha talento; a Preguiça e a Gula,
de braço dado. Mas Tom sentia-se reconfortado porque os acusadores ocultavam o maior de todos os seus crimes, sentado lá no
fundo à espera. Desesperado, fazia apelo aos pecados menores,
como se fossem virtudes que o pudessem salvar: a Inveja - Will e
o seu dinheiro; a Traição - ao Deus da sua mãe; o Roubo - do
tempo e da esperança.
A voz ponderada de Samuel encheu a sala. «Sê bom, sê puro,
sê grande, sê Tom Hamilton.»
Mas Tom não fez caso do pai e disse: «Preciso de receber os
meus amigos.» E cumprimentou com a cabeça a Indelicadeza e a
Fealdade, e o Mau Amor Filial, e as Unhas Sujas. Depois, voltou à
Vaidade. Nessa altura, o maior de todos os crimes abriu passagem e acercou-se. Já era demasiado tarde para se esconder atrás
dos pecados menores. O maior de todos os crimes era o Assassinato.
Tom sentiu o vidro frio na palma da mão e viu o liquido efervescente e os cristais que se dissolviam rodopiando, e as bolhas de ar
que subiam e repetiu em voz alta na sala vazia, vazia: «Os sais são
um pouco violentos, mas fazem-te bem.» Era o que ele tinha dito. E
as paredes e as cadeiras e o candeeiro tinham-no ouvido e estavam
ali para testemunhar. Já não havia à face da terra um só sítio onde
Tom Hamilton pudesse viver. Não se poupara a canseiras para descobri-lo, virara todas as possibilidades como se fossem cartas de
jogar. Londres? Não. O Egipto? Há pirâmides no Egipto, e a Esfinge. Não. Paris? Não. No entanto, dizem que por lá se cultiva o
pecado. Não. Bom, tentemos outra coisa. Belém? Por amor de
Deus, não! Um estranho deve sentir-se lá muito só.
Custa muito recordar quando e como se morre. Uma sobrancelha que se ergue, um murmúrio, talvez seja isso. Ou uma noite
confusa, um fervilhar de chumbo derretido que descobre o segredo
do ser e se injecta nas veias.
Tom Hamilton tinha morrido e só lhe restavam algumas coisinhas decentes a fazer para que tudo ficasse arrumado.
O canapé emitiu um estalido de crítica. Tom olhou para ele e
para o candeeiro fumarento a que o canapé se tinha querido referir. «Obrigado, disse Tom ao canapé. Não tinha reparado.» E baixou a torcida para que o candeeiro não deitasse fumo.
A mente de Tom pôs-se a dormitar. O Assassinato esbofeteou-o para o acordar. Tom, o sanguinolento Tom, estava muito
cansado para se matar. É um acto que exige decisão e que talvez
cause algum sofrimento e a ida para o Inferno.
Lembrou-se de que a mãe nutria uma profunda repugnância
pelo suicídio, síntese das três coisas que ela desaprovava com
mais violência: a má educação, a covardia e o pecado. Era quase
tão pavoroso como o adultério ou o roubo, talvez até mais pavoroso. Devia haver uma maneira de evitar a desaprovação de Lizza.
Já Samuel não estranharia tanto. Mas também não se podia
evitar Samuel, pois ele enchia o espaço. Tom tinha portanto de lhe
dizer.: «Desculpa, pai. A culpa não é minha. Tu é que me deste
sempre mais valor do que eu merecia, tu é que te enganaste.
Gostaria de poder justificar o amor e o orgulho que em mim depositaste. Talvez tu conseguisses achar uma solução. Eu não consigo. já não posso viver. Matei a Dessie e quero dormir.»
E o seu espírito respondeu pelo pai ausente: «Compreendo
muito bem, meu filho. Há tantas maneiras de regressar à terra. Mas
temos de ver como te havemos de arranjar as coisas com a tua mãe.
Porque estás tu tão impaciente?»
«É porque já não posso esperar mais, disse Tom. É só por
isso, por não poder esperar mais.»
«Podes, sim, meu filho, meu querido filho. Já cresceste como
eu tinha previsto, aí é que está. Abre a gaveta da mesa e utiliza
esse nabo a que chamas a tua cabeça.»
Tom abriu a gaveta e viu um bloco de papel de linho, envelopes
a condizer, dois lápis roídos e alguns selos a um canto. Pôs o
bloco em cima da mesa e aparou os lápis com o canivete.
Em seguida, escreveu:
«Minha querida mamã, desejo que estejas passando
bem. Vou ver se consigo passar mais tempo junto de ti. A
Olive convidou-me para a festa da Acção de Graças e eu
prometo-te que irei. A nossa Olive sabe assar perus tão bem
como tu, mas tu nunca hás-de dar o braço a torcer. Acabo
de aproveitar uma pechincha. Comprei um cavalo por quinze
dólares. Não lhe falta nada e parece mesmo um puro-sangue. Saiu-me barato por ser um animal que não gosta das
pessoas. O primeiro dono passou mais tempo no chão do
que em cima dele. Devo confessar que é bastante mau. Já
atirou comigo a terra duas vezes, mas eu sou teimoso e, se
conseguir domesticá-lo, ficarei comum dos melhores cavalos do condado. E garanto-te que hei-de domá-lo, nem que
tenha de perder todo o Inverno. Não percebi ainda bem porque é que me encarniço tanto, mas talvez seja por causa
duma coisa engraçada que me disse o homem que o vendeu: «Este cavalo é tão mau que era capaz de comer o cavaleiro. » Lembras-te do que o papá dizia quando costumávamos ir à caça? «Volta com o teu escudo ou deitado nele. »
Portanto, até ao Dia de Acção de Graças. Teu filho, Tom.
Perguntou a si mesmo se aquilo chegaria, mas sentia-se muito
cansado para recomeçar e apenas acrescentou:
P. S. - Parece que o Polly continua muito ordinário.
Esse papagaio até me faz corar de vergonha.
Noutra folha de papel escreveu:
Caro Will, podes pensar tudo o que quiseres, mas peço-te que me ajudes. Peço-te, por amor da nossa mãe. Eu fui
morto por um cavalo - deitou-me ao chão e espezinhou-me. Suplico-te... Teu irmão,
Tom.
Selou os envelopes, meteu-os no bolso e, depois, perguntou a
Samuel: «Está bem assim?»
No quarto, abriu uma caixa nova de balas, introduziu uma no
tambor do seu Smith & Wesson 38 e rodou-o de forma que a câmara carregada ficasse um furo à esquerda do detonador.
O cavalo esperava-o junto à cerca e apareceu logo que lhe
assobiou. Tom selou-o.
Eram três da manhã quando Tom pôs as cartas no correio de
King City. Em seguida, fez rumo ao Sul, às colinas áridas dos Hamilton.
Tom era um galante cavaleiro.
QUARTA PARTE
CAPÍTULO XXXIV
Uma criança poderá perguntar: «Qual será a história do mundo?» Um adulto interrogar-se-á: « Que direcção tomará o mundo?
Qual será o seu fim e - enquanto cá estivermos - qual será a sua
história?»
Há um conflito, um só, que sempre nos aterrorizou e nos inspira. Nós vivemos um folhetim em que cada episódio se assemelha
ao precedente e em que a resposta é sempre a mesma: «continua
no próximo número». Os Humanos são apanhados - nas suas
vidas, nos seus pensamentos, nos seus apetites e nas suas ambições, na sua avareza e na sua crueldade, assim como na sua
generosidade e na sua bondade - nas redes do bem e do mal. É a
sua história, a nossa, uma história que se repete em todos os
domínios dos sentidos e da inteligência. A virtude e o vício formaram
a trama e o fio da nossa primitiva consciência e hão-de formar o
material da nossa derradeira consciência, apesar de todas as modificações que infligirmos à terra, aos seus rios e às suas serras, à
sua economia e aos seus costumes. Depois de se ter desembaraçado do pó e dos gravetos da sua vida, o homem terá sempre
de enfrentar esta pergunta, dura e destituída de ambiguidade:
«Pratiquei o bem ou o mal? Agi bem ou mal?»
Heródoto descreve, nas Guerras Pérsicas, a maneira como
Creso, o rei mais rico e mais privilegiado do seu tempo, fez a Sólon
de Atenas uma pergunta capital. Ele não teria feito a pergunta, se
a resposta não o preocupasse: «Quem, perguntou, é o homem
mais feliz do mundo? Ele devia estar sequioso de obter uma certeza. Sólon citou-lhe os nomes de três homens que tinham sido
felizes no passado É mais do que certo que Creso nem sequer o
escutou, pois o único nome que ansiava ouvir era o seu. Por isso,
quando viu que Sólon não o mencionava, Creso, sentiu-se obrigado
a perguntar: Então não me consideras um dos afortunados?»
Sólon respondeu sem hesitar: «Como te posso responder se
ainda não morreste?»
Tal resposta deve ter obcecado Creso quando viu desaparecer a felicidade, as riquezas e o seu reino. E ao subir à fogueira,
evocou o nome de Sólon, compreendendo a verdade da resposta e
a inutilidade da pergunta feita.
Na nossa era, se morre um homem que possuía fortuna, influência, poderio e todos os demais atributos que despertam a inveja,
e se os vivos fazem o inventário da vida desse homem, logo surge
naturalmente a pergunta: «A sua vida foi boa ou foi má?», o que
consiste em dar outra fórmula à pergunta de Creso. Morta a inveja,
o padrão usado é o seguinte: «Foi amado ou odiado? A sua morte
foi uma perda, ou só é motivo de júbilo?»
Lembro-me perfeitamente da morte de três homens. O primeiro era o homem mais rico do seu século. O caminho para a
fortuna abrira-o ele espezinhando as almas e os corpos, mas passara numerosos anos tentando resgatar o amor que traíra. Prestara, assim, enormes serviços à humanidade e talvez tivesse feito
pender a balança para o bom lado. Eu andava no mar quando ele
morreu e a notícia foi inserida no boletim de bordo. Quase toda a
gente a recebeu com prazer e numerosos foram os que disseram:
«Graças a Deus, aquele filho da mãe já morreu.»
O segundo, esperto como o diabo, ignorava a dignidade humana e conhecia bem de mais as fraquezas e as perversidades
do homem, utilizando-se de toda a sua ciência para perverter, comprar, corromper, ameaçar e seduzir, até que alcançou o poder,
dissimulando os verdadeiros objectivos sob a capa da virtude.
Perguntei a mim mesmo se ele saberia que não há presente que
consiga comprar o amor dum homem cujo amor-próprio foi ferido.
O corrompido só pode odiar o seu corruptor. Quando esse homem morreu, toda a nação lhe fez o elogio mas, ao mesmo tempo, suspirou de alívio.
O terceiro talvez tenha praticado numerosos erros, mas votou toda a vida ao serviço do homem, a transmitir-lhe coragem,
dignidade e bondade, numa época em que o homem tinha medo e
em que as forças do mal se tinham desencadeado no mundo para
explorar os terrores do homem. Quando morreu, o povo chorou nas
ruas e soltou este grito: «Que iremos fazer agora? Como poderemos viver sem ele?»
No meio de tanta incerteza há uma coisa de que tenho a certeza: sob as mais espessas camadas da sua fragilidade, os homens desejam ser bons e querem ser amados. Se enveredam pelo
vício é porque julgaram ter tomado por um atalho que os levaria ao
amor. Quando um homem chega às portas da morte, pouco importam o seu talento, o seu poder ou o seu génio. Se morrer odiado,
a sua vida foi um malogro e a morte um gélido horror.
Creio que, se qualquer de nós tiver de escolher entre dois caminhos, de pensamento ou acção, o deverá fazer sempre tendo a
morte em vista e procurando viver de forma que essa mesma morte
não possa constituir um prazer para ninguém.
Nós só temos uma história. Todos os romances e todos os
poemas se baseiam na luta incessante travada dentro de nós pelas forças do bem e do mal. O mal tem de ser constantemente
ressuscitado, enquanto que o bem e a virtude são imortais. O vício
oferece sempre um semblante jovem e cheio de frescura, enquanto
que a virtude é o que de mais venerável existe no mundo.
CAPÍTULO XXXV
Lee ajudou Adam e os gémeos a mudarem-se para Salinas, o
que significa que foi ele quem fez todo o trabalho. Acondicionou
tudo o que tinha de ser levado, foi pôr os volumes no comboio,
empilhou as malas no assento traseiro do Ford, desembrulhou
tudo quando chegaram a Salinas e instalou a família na casinha
de Dessie. Só depois de ter dado os passos necessários para que
ficassem confortavelmente instalados é que pediu, certa noite, uma
audiência a Adam, depois de os gémeos se terem ido deitar. Adam
deve ter compreendido logo do que se tratava ao ver o ar compassado de Lee.
- Já esperava por isso - disse Adam.- Diga então lá de
sua justiça.
Este intróito tornou inútil o discurso que Lee preparara e que
começava assim: «Durante muitos anos, tenho-o servido o melhor que me tem sido possível e, hoje...»
- Tenho adiado esta ocasião o mais possível - disse Lee.
- Até preparei um discurso. Quer ouvi-lo?
- Apetece-lhe dizê-lo?
- Não - disse Lee -, mas olhe que era um belo discurso.
- Quando deseja abalar? - perguntou Adam.
- Assim que puder. Receio fraquejar-me o ânimo se não o
fizer já. Prefere que espere até que tenha encontrado um substituto?
- Não - disse Adam -, bem sabe como sou vagaroso. Podia
levar muito tempo e era até capaz de nunca me resolver a isso.
- Nesse caso, vou-me embora amanhã.
- Isso vai custar muito aos rapazes - disse Adam. - Não
sei o que será deles. Talvez seja melhor ir-se embora sem lhes
dizer nada. Eu depois logo lhes dava a notícia.
- As reacções das crianças são sempre surpreendentes -
observou Lee.
E foram-no. Na manhã do dia seguinte, ao pequeno almoço,
Adam disse:
- Meus filhos, o Lee vai-se embora.
- Ah! sim? - volveu Cal.- Esta tarde há um desafio de
básquete. A entrada custa dez cêntimos. Podemos ir?
- Podem. Mas não ouviram o que eu lhes disse?
- Claro que ouvimos - respondeu Aron. - Disseste que o
Lee se ia embora.
- Ele já não volta.
- Para onde vai? - perguntou Cal.
- Vai viver para San Francisco.
- Ah! - exclamou Aron. - Há um homem à esquina da rua
que tem um fogareiro onde coze salsichas e depois mete-as num
papo-seco. Custa um cêntimo e pode-se pôr a mostarda que nos
apetecer.
Na cozinha, Lee sorriu a Adam.
Assim que os gémeos pegaram nos livros para irem para a
escola, Lee disse-lhes:
- Então, adeus, meninos.
Eles gritaram «adeus» e correram para a rua.
Adam mergulhou a cabeça na chávena e disse como que a
desculpar-se:
- Mas que brutinhos! Aqui tem a recompensa de dez anos
de serviços.
- Foi melhor assim - disse Lee. - Se eles tivessem fingido
um grande desgosto, não teria acreditado. Eu nada represento para
eles. Talvez venham a pensar algumas vezes em mim sem nada
dizerem. E eu não quero que eles fiquem tristes. Espero não ter a
alma suficientemente mesquinha para desejar deixar um vazio. -
Lee colocou uma moeda de cinquenta cêntimos em cima da mesa,
ao lado de Adam.) - Quando eles forem esta tarde ao básquete,
dê-lhes isto da minha parte e diga-lhes que comprem salsichas.
Talvez o meu presente de despedida lhes provoque uma dor de
barriga.
Adam olhou para o grande cesto que Lee trouxera para a sala.
- É essa toda a sua bagagem, Lee?
- Toda, excepto os livros. Esses ficaram encaixotados na
cave. Se não lhe fizer diferença, mandá-los-ei buscar ou virei eu
mesmo depois de estar devidamente instalado.
- Ora essa, faça o que quiser. Vai fazer-me muita falta, Lee,
quer queira quer não. Tenciona realmente abrir uma livraria?
- É o que tenciono fazer.
- Não se esquece de me dar notícias suas?
- Não sei. Terei de pensar nisso. Dizem que uma ferida profunda se cura mais depressa. Acho que não há nada mais triste do
que uma amizade que apenas se mantém graças à cola dos selos.
Quando já se não pode ver, ouvir ou tocar num homem, mais vale
cortar as amarras.
Adam levantou-se.
- Vou acompanhá-lo à estação.
- Não - disse Lee com vigor. - Não, de forma nenhuma.
Adeus, Sr. Trask, adeus, Adam.
Saiu tão depressa de casa, que o «adeus» de Adam apanhou-o nos degraus da entrada e o «escreva-nos» já foi abafado
pelo ruído da porta que se fechava.
Depois do jogo de básquete, Cal e Aron comeram cada um
deles cinco salsichas e foi quanto ganharam, pois Adam esquecera-se de fazer o jantar. Quando voltaram a casa, os gémeos
falaram pela primeira vez na partida de Lee.
- Gostava de saber porque se foi ele embora - disse Cal.
- Ele já tinha prevenido que se ia embora.
- Que achas que vai ser dele sem nós?
- Não sei. Aposto que ainda volta - disse Aron.
- Que estás tu para aí a dizer? - O papá contou-nos que
ele ia abrir uma livraria. Deve ser pândego, uma livraria chinesa.
- Vais ver que volta - disse Aron.- Há-de ter saudades
nossas.
- Aposto dez cêntimos que não volta.
- Até quando?
- Nunca mais.
- Apostado - anuiu Aron.
Aron teve de esperar exactamente um mês e seis dias para
ganhar a aposta.
Lee chegou no comboio das dez e quarenta e entrou em casa
com a chave própria. Havia luz na casa de jantar, mas Lee foi dar
com Adam na cozinha, entretido a raspar com um abre-latas uma
crosta escura no fundo duma frigideira.
Lee largou o cesto.
- Tem de se deixar de molho toda a noite - explicou ele.
- Ah! sim? Tenho queimado a comida toda. Há um tacho de
beterrabas no jardim. Cheirava tão mal que toda a casa tresandava.
Não há coisa pior... Lee! - exclamou ele. (Depois):- Que foi que
houve, Lee?
Lee tirou a frigideira das mãos de Adam, meteu-a no lava-loiça
e encheu-a de água.
- Se tivéssemos um desses novos fogões de gás, podíamos fazer café num instante - disse ele. - Vou acender o lume.
- O fogão não acende - disse Adam.
Lee examinou o fogão.
- Tem despejado as cinzas?
- Que cinzas?
- Ah! - exclamou Lee. - Vá para a sala enquanto eu faço o
café.
Adam aguardou impacientemente, mas não desobedeceu. Daí
a pouco, Lee pôs duas chávenas de café em cima da mesa.
- Fi-lo num fogareiro para demorar menos. - (Inclinou-se
para o cesto, desfez os nós e tirou a botija de pedra.) - Absinto
chinês - disse ele.- O ng-ka-py talvez ainda me dure dez anos.
Esqueci-me de lhe perguntar se tinha arranjado um substituto.
- Deixe-se de rodeios - disse Adam.
- Tem razão. Eu também sei que o melhor é irmos direito ao
assunto e livrar-nos dele.
- Perdeu o seu dinheiro no jogo do fan-tan?
- Não. Antes fosse assim. Ainda tenho o dinheiro. A porcaria
da rolha está partida. Tenho de empurrá-la pelo gargalo abaixo. -
(Deitou um pouco do líquido escuro no café.) - Nunca o tinha
bebido desta maneira - disse ele. - Não é nada mau.
- Sabe a maçãs podres - disse Adam.
- Pois sabe, mas lembre-se de que o Sam Hamilton costumava dizer que era um gosto de boas maçãs podres.
- Quando tenciona dizer-me o que lhe aconteceu?
- Não me aconteceu nada - disse Lee. - Apenas me senti
só. Não acha que chega?
- E a sua livraria?
- Não me interessa. Creio que já o sabia antes de subir para
o comboio, mas queria ter a certeza.
- É o seu último sonho que se vai por água abaixo...
- Deixá-lo ir! - (Lee parecia atacado de histeria.) - Sinhô
Tlask, palece que cliado china vai apanhá uma bebedeila.
Adam ficou alarmado.
- Mas afinal o que é que você tem, Lee?
O chinês levou a garrafa à boca, emborcou uma grande golada
e soprou o ardor que sentia na garganta.
- Adam - disse ele -, sinto-me incomparavelmente, incrivelmente, terrivelmente feliz por ter voltado. Nunca na minha vida
passei por uma solidão tão estuporada.
CAPÍTULO XXXVI
1
Salinas tinha duas escolas secundárias, enormes edifícios amarelos com altas janelas severas e portas sorumbáticas. Chamavam-lhes respectivamente East End e West End. Da primeira não falarei
por ficar muito longe, do outro lado da cidade, e só ser frequentada
pelas crianças que moravam a leste da Main Street.
A West End era constituída por um comprido edifício que se
escondia atrás dum renque de salgueiros nodosos e que se erguia entre os recreios das raparigas e dos rapazes. A escola era
prolongada por uma paliçada destinada ainda a separar os dois
sexos. Ao fundo, o recreio era delimitado por um charco onde cresciam juncos e espadanas. A escola de West End leccionava da
terceira à oitava classe. Os alunos da primeira e da segunda iam à
escola elementar, a pouca distância dali.
Havia uma aula para cada classe: terceira, quarta e quinta,
no rés-do-chão; sexta, sétima e oitava no primeiro andar. Todas,
as aulas estavam mobiladas com as clássicas carteiras, um estrado com uma grande secretária quadrada para o professor, um
relógio, e um quadro - assunto da reprodução identificava a classe. A influência pré-rafaelita era opressiva. Galaaz, enfiado na sua
armadura, indicava o caminho aos da terceira. Atalanta, à desfilada, arrastava os da quarta e assim sucessivamente até Catilina,
denunciado, que enviava os alunos da oitava classe para a Universidade, com uma perfeita noção das altas virtudes cívicas.
Cal e Aron foram parar à sétima classe por causa da idade, e
examinaram até aos mínimos pormenores o quadro que a distinguia: Laocoonte completamente envolvido pelas serpentes.
Os gémeos ficaram estupefactos com o tamanho do edifício,
em comparação com a escola rural de aula única, e profundamente
impressionados por haver um professor para cada classe. Aquilo
parecia-lhes um desperdício. Mas, como era natural, depois de ficarem banzados no primeiro dia, mostraram-se admirados no segundo e, ao terceiro, já não davam pela diferença.
A professora era uma bonita morena. Os gémeos estavam
tranquilos porque Cal tinha inventado um sistema judicioso para
saber quando deviam ou não levantar a mão.
- Repara na maioria dos miúdos - disse ele a Aron. - Só
levantam a mão quando sabem a resposta. Quando não sabem,
escondem-se atrás da carteira. Sabes o que vamos fazer?
- Não, o que é?
- A professora não pergunta sempre aos que levantam a mão.
Em geral, pergunta a outro e ele espalha-se.
- Tens razão - disse Aron.
- Muito bem. Pois então, na primeira semana, vamos estudar
que nem uns danados, mas não levantamos a mão. Ela com certeza que nos interroga, mas nós sabemos as respostas. Há-de ficar
admirada. Na segunda semana, - não estudamos nada e levantamos a mão, mas ela não nos interroga. Na terceira semana, não
nos mexemos e ela há-de ficar sempre sem saber se estudámos
ou não. Até que nos há-de deixar em paz. Não deve estar disposta
a perder o seu tempo fazendo perguntas a quem sabe as respostas.
O método de Cal mostrou ser excelente. Dentro de pouco tempo, os gémeos adquiriram uma reputação invejada. Na realidade, o
sistema era inútil, visto os dois rapazes não terem dificuldade nenhuma em aprender.
Cal tornou-se campeão de berlinde e ganhou todos os berlindes e abafadores que rolavam pelo recreio. Terminada a época
do berlinde, trocou todos os trofeus ganhos por piões. Chegou a
possuir quarenta e cinco piões de todos os tamanhos e feitios,
incluindo algumas peças raras e de estimação.
Quem quer que visse os gémeos notava logo como eram diferentes, o que para toda a gente constituía motivo de espanto. Cal
estava cada vez mais escuro, tanto de pele como de cabelo. Era
um rapaz vivo, senhor do seu nariz e pouco demonstrativo. Mesmo que quisesse, seria incapaz de esconder a inteligência. Os
adultos ficavam incomodados e ligeiramente assustados perante
aquilo a que chamavam uma maturidade precoce. Cal não era muito estimado, mas receavam-no e respeitavam-no. Se bem que não
tivesse amigos, era sempre acolhido com solicitude pelos colegas
e ocupava, por direito natural, o lugar de chefe no pátio de recreio.
Se dissimulava a sensibilidade, também escondia os desgostos e todos o consideravam um rapaz insensível, duro e até cruel.
Aron atraía as amizades. Parecia tímido e delicado. A pele
rosada e branca, os cabelos loiros e os grandes olhos azuis despertavam a atenção. A sua beleza acarretara-lhe alguns inimigos
no recreio, mas depressa se descobriu que Aron era um combatente rijo, hábil e que desconhecia o medo, especialmente quando
chorava. A notícia correu de boca em boca e os reis do recreio
aprenderam a respeitá-lo. Aron não tentava dissimular o seu carácter, pois bastava o aspecto físico para o dissimular. Quando tomava
uma decisão não havia nada que o demovesse. Era simples e pouco
versátil. Tinha o corpo tão insensível à dor como o espírito às
subtilezas.
Cal conhecia o irmão e era capaz de o manobrar provocando-lhe o desequilíbrio, mas isto só até certo ponto. Cal sabia quando
devia esquivar-se e fugir. Uma mudança de direcção desorientava
Aron, mas nada mais. Ele traçava o seu caminho, seguia-o e não
via nem se interessava pelo que não fizesse parte do itinerário.
Comovia-se muito raramente, mas a valer. O seu rosto angélico
definia-o e dispensava-o de responsabilidades.
2
No primeiro dia, Aron aguardou com impaciência a hora do
recreio. Assim que a campainha tocou, dirigiu-se ao pátio das raparigas para falar a Abra. Um bando de raparigas aos berros não
foi suficiente para o afugentar e tornou-se necessária a intervenção
duma professora para que se fosse juntar aos rapazes.
À hora do almoço, não conseguiu falar com ela, porque o pai
a foi buscar no cabriolé de grandes rodas para a levar para casa.
Aron resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas.
Abra saiu, rodeadapelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Aron. Ela era a aluna mais bonita, mas é
pouco provável que Aron o tivesse notado.
O pequeno bando pôs-se em marcha. Aron seguia atrás, a
três passos de distância, paciente e nada embaraçado com as
piadas que as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo
acabou por desfazer-se e Abra, quando chegou à porta branca da
sua casa, só ia acompanhada por três colegas. As raparigas mediram Aron dos pés à cabeça, soltaram umas risadinhas e prosseguiram o seu caminho. Abra entrou em casa.
Aron sentou-se à beira do passeio. Passados alguns minutos,
a porta de casa abriu-se e Abra surgiu. Atravessou o passeio e
contemplou Aron.
- Que é que tu queres?
Aron ergueu para ela os seus grandes olhos.
- Tu não estás noiva?
- Palerma - disse ela.
Ele fez um esforço para se levantar.
- Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar
- observou ele.
- Quem falou em casamento?
Aron não respondeu. Talvez não tivesse ouvido. Puseram-se
a andar lado a lado.
Abra avançava com passo firme e seguro, olhando para a
frente; Aron não afastava os olhos do rosto calmo e meigo, de
expressão pensativa.
Passaram silenciosamente pela escola elementar. A partir dali
a rua deixava de ser pavimentada. Abra voltou à direita e enveredou por um campo semeado de feno. Os torrões de barro preto
desfaziam-se debaixo dos pés.
Na outra extremidade do campo, erguia-se uma fonte. Ao lado,
lamuriava um chorão, nutrido pela humidade do local.
Abra afastou a cortina de ramadas e entrou na casa de folhas. Do interior, podia ver-se através dos ramos. Reinava uma penumbra acolhedora e segura. O sol da tarde enfiava os raios amarelos
pelos interstícios irrequietos.
Abra sentou-se no chão ou, antes, pareceu enterrar-se no
chão, com a saia aberta em corola. Depois, cruzou as mãos em
cima dos joelhos, como se fosse rezar.
Aron sentou-se ao lado dela.
- Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar
- repetiu ele.
- Nem tanto como isso - disse Abra.
- Quem me dera que pudesse ser já.
- Pouco falta - disse Abra.
Aron perguntou:
- Achas que o teu pai dará o consentimento?
Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e olhou para Aron.
- Talvez não precise de lhe pedir.
- E a tua mãe?
- Deixa lá os pais em sossego - disse ela. - Achavam logo
que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de
guardar um segredo?
- Está visto que sou. Não há como eu para guardar segredos.
Já tenho alguns.
- Então põe este ao pé dos outros.
Aron quebrou um raminho e traçou um risco na terra negra.
- Abra, sabes como é que nascem os meninos?
- Sei - disse ela. - Quem foi que te explicou?
- Foi o Lee. Ele contou-me tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter meninos.
Abra sorriu com condescendência.
- Não tanto como tu pensas.
- Um dia, havemos de ter a nossa casa - disse Aron. -
Entramos, fechamos a porta e ficamos à vontade. Mas ainda falta
muito tempo.
Abra estendeu a mão e tocou-lhe no braço.
- Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é como se fosse
uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto
tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me
por «minha mulher».
Aron remexeu os lábios e, depois, pronunciou em voz alta:
- Minha mulher.
- Assim sempre nos vamos treinando - disse Abra.
O braço de Aron estremeceu sob a mão dela. Abra retirou a
mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.
- Enquanto nos vamos treinando, talvez pudéssemos fazer
outra coisa - lembrou Aron, de súbito.
- O quê?
- Talvez tu não gostes disso.
- Mas o que é?
- Podíamos fazer de conta que tu és a minha mãe.
- Isso não custa nada - disse ela.
- Não te aborrecias?
- Não, de forma nenhuma. Queres começar já?
- Está bem - aprovou Aron. - Como é que fazemos?
- Vou mostrar-te.
Abra começou a falar em voz mimalha:
- Vem, meu amor. Deita a tua cabecinha nos joelhos da mamã.
Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.
Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça e Aron não se
conteve, desatando a chorar. Chorou de mansinho e Abra ia-lhe
fazendo festas na cara e enxugando as lágrimas com a bainha da
saia.
O Sol desaparecia ao longe, para lá de Salinas, e um pássaro pôs-se a cantar maravilhosamente no meio do campo dourado.
No mundo nunca houvera nada tão belo como aquilo ali, debaixo
do chorão.
A pouco e pouco foram secando as lágrimas de Aron, deixando-lhe uma sensação de felicidade.
- Meu bebezinho adorado - disse Abra -, anda cá que é
para a tua mamã te pentear.
Aron endireitou-se e disse com uma certa raiva:
- Eu só costumo chorar quando estou furioso. Não percebo
porque é que chorei.
Abra perguntou:
- Ainda te lembras da tua mãe?
- Não, ela morreu quando eu era muito pequeno.
- Não sabes como ela era?
- Não.
- Nunca viste nenhum retrato dela?
- Não, já te disse. Não temos retrato nenhum. Eu perguntei
ao Lee e ele disse-me que não havia. Espera, parece-me que foi
antes o Cal quem perguntou ao Lee.
- Quando foi que a tua mãe morreu?
- Logo depois de o Cal e eu termos nascido.
- Como se chamava?
- O Lee disse-me que se chamava Cathy. Porque me perguntas tudo isso?
- Como era a pele dela? - continuou Abra calmamente.
- Como?
- Era loira ou morena?
- Não sei.
- O teu pai nunca te disse?
- Nós nunca lhe perguntámos.
Abra manteve-se em silêncio e Aron ficou inquieto.
- O que foi? Perdeste a língua?
Abra contemplava o pôr do Sol.
Aron perguntou, extremamente embaraçado:
- Ficaste zangada comigo? - (E acrescentou, para ver a
reacção): - Minha mulher.
- Não, não estou zangada contigo. Estava só a magicar numa
coisa.
- O que é?
- Uma coisa.
- O rosto de Abra estava contraído e reflectia um conflito
interior.
- Qual é a impressão que se sente quando não se tem mãe?
- perguntou ela, finalmente.
- Não sei. A gente não dá por isso.
- Então tu não notas a diferença?
- Onde queres tu chegar? Até parece uma adivinha.
Abra continuou, imperturbável:
- Gostavas de ter mãe?
- Mas que parvoíce - disse Aron. - Claro que gostava. Toda
a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? - Cal já o tem
tentado e, depois, põe-se a rir.
Abra desviou o olhar do Sol poente. Manchas violetas dançavam à sua frente.
- Tu disseste-me que eras capaz de guardar um segredo.
- Pois claro que sou.
- E não terás nenhum no género: «quem este segredo contar
ao inferno vai parar»?
- Tenho, tenho um.
- Então diz-me o que é, Aron.
E, a palavra «Aron» parecia uma carícia.
- Digo-te o quê?
- O maior segredo que tu tiveres.
Aron recuou, inquieto.
- Não posso - disse ele. - Com que direito mo pedes?
Nunca o direi a ninguém.
- Vamos, meu filho, conta tudo à mamã - sussurrou ela.
Os olhos de Aron embaciaram-se de lágrimas, de lágrimas de
raiva.
- Já não tenho a certeza de querer casar contigo - disse ele.
- Acho que vou para casa.
Abra pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou ficar. Quando falou,
a voz readquirira o tom normal.
- Era para te experimentar. Já vi que sabes guardar um segredo.
- Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso. Até me dói o coração.
- Tenho a impressão de que te vou confiar um segredo -
disse ela.
- Ora vejam! - escarneceu ele. - Então eu é que não sabia guardar segredos?
- Eu estava a ver se me resolvia - disse ela.- Mas acho
que te vou dizer porque te faz bem. Hás-de ficar contente.
- E quem foi que te pediu para não contares?
- Ninguém. Eu é que tinha resolvido.
- Isso já é outra coisa. Então o que é?
O Sol encarniçado dardejava um último raio, por detrás da
casa dos Tollot, na estrada de Blanco, e a chaminé parecia um
polegar negro apontado para o céu.
Abra disse docemente:
- Lembras-te daquele dia em que fomos a tua casa?
- Ai não, que não me lembro!
- Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé e, depois, tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus
pais iam a conversar e disseram que a tua mãe não tinha morrido,
que se tinha ido embora. Ouvi-lhes dizer que lhe devia ter acontecido alguma coisa má e que ela fugira.
Aron disse em voz rouca:
- A minha mãe morreu.
- Mas era bem bom se não tivesse morrido.
- O meu pai diz que ela morreu e ele não é mentiroso nenhum.
- Talvez ele julgue que ela morreu.
- Ele havia de saber.
Mas a voz de Aron era incerta.
Abra continuou:
- Não seria estupendo se a pudéssemos encontrar? Supõe
que ela perdeu a memória ou qualquer coisa assim? Já li uma história no género. Podiam tornar a encontrá-la e fazê-la recuperar a
memória.
Abra deixara-se empolgar pelo maravilhoso do romance.
Aron disse:
- Hei-de perguntar ao meu pai!
- Aron - observou ela em tom severo -, o que eu te contei
é segredo.
- Quem disse que era?
- Fui eu. E agora repete comigo: «Ao inferno irei parar, se
este segredo contar. »
Ele hesitou um instante e, depois, repetiu:
- Ao inferno irei parar, se este segredo contar.
- Agora, cospe na mão... Assim... Pronto. Agora, dá-me a
tua mão... Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos a mão ao cabelo.
Executado o ritual, Abra disse com a maior solenidade:
- Conheço uma rapariga que contou um segredo depois
duma jura igual a esta e morreu queimada num celeiro.
O Sol desaparecera, levando a sua luz doirada. Vénus cintilava por cima do monte Toro. Abra disse:
- Eles vão esfolar-me viva. Anda, despacha-te. O meu pai
deve estar à minha espera com a trela do cão para me bater.
Aron olhou-a, incrédulo.
- Para te bater? Costumam bater-te?
- O que é que julgas?
Aron exclamou, apaixonadamente:
- Eu que os apanhe! Se eles te quiserem bater, diz-lhes que
os hei-de matar.
Os grandes olhos azuis lançavam chispas.
- Ninguém tem o direito de bater na minha mulher.
Na meia obscuridade que reinava debaixo do chorão, Abra
passou os braços pelo pescoço de Aron e beijou-lhe a boca aberta.
- Gosto muito de ti, meu marido - disse ela.
Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho
e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a
correr para casa.
3
Aron tornou a entrar na casa de verdura, sentou-se no chão e
encostou-se ao tronco do chorão. Sentia-se confuso e doía-lhe o
estômago. Procurou definir o mal-estar e dividi-lo em pensamentos e imagens. Era difícil. O seu lento raciocínio não conseguia
armazenar ao mesmo tempo tantos pensamentos e tantas emoções. A porta ficara fechada. Só restava a dor física. Passados
instantes, a porta entreabriu-se e deixou penetrar uma coisa, depois, outra, e outra, até que tudo foi absorvido. Mas, atrás da porta, havia algo que barafustava para entrar. Aron impediu-lhe a passagem enquanto pôde.
Primeiro, entrou Abra e ele examinou-lhe o vestido, a cara, a
mão macia, o cheiro que deitava, feito de leite e de erva ceifada.
Viu-a, tocou-lhe, ouviu-a, tornou a cheirá-la. Reparou que ela tinha as mãos e as unhas limpas, que, era completamente diferente das outras parvas do recreio.
Depois, pela ordem dos acontecimentos, pensou nas suas
lágrimas infantis, nas suas lágrimas de desespero. Até certo ponto, desejara alguma coisa e obtivera-a. Talvez tivesse chorado por
isso.
Depois, pensou na prova a que ela o submetera. Perguntou a
si mesmo qual seria a reacção dela se lhe tivesse revelado um
segredo. Qual dos segredos lhe poderia confiar? Não se recordava
de nenhum, excepto daquele que batia à porta para entrar.
Depois, foi a pergunta concreta: «Qual é a impressão que se
sente quando não se tem mãe? » que entrou.
Procurou a resposta: não se dá por isso. Mas dá-se, sim. Na
escola, pelo Natal ou no fim do ano, quando vinham as mães dos
outros rapazes, ele chorava silenciosamente. Então, não se dava
por isso?
Salinas estava rodeada de charcos onde cresciam juncos e
se escondiam milhares de rãs. Quando anoitecia, o coaxar era tão
intenso que dir-se-ia um silêncio estrepitoso. Era um véu, uma atmosfera e, se desaparecesse subitamente, como o silêncio após o
trovão, seria surpreendente. Se uma noite as rãs deixassem de
coaxar, toda a Salinas teria despertado julgando ouvir um grande
estrondo. O coro dos milhares de rãs parecia obedecer a um ritmo,
mas talvez seja o ouvido que lhe dá a cadência, assim como a vista
faz cintilar as estrelas.
Estava escuro debaixo do chorão. Aron perguntou a si mesmo
se estaria preparado para acolher a coisa monstruosa e, enquanto
fazia a pergunta, a coisa entrou.
A mãe estava viva. Muitas vezes a imaginara, deitada debaixo
da terra, fria, imóvel e incorrupta. Mas não era assim. Ela estava
em qualquer lado onde se movia, falava, fazia gestos com as mãos
e tinha os olhos abertos. Mas àquele rio de prazer veio desaguar
uma torrente de tristeza e ele teve a sensação de haver perdido
qualquer coisa. Aron sentia-se desorientado. Quis saber porquê.
Se a mãe estava viva, o pai não passava dum mentiroso. A ressurreição redundava numa morte. Debaixo da árvore, Aron disse
em voz alta:
- A minha mãe já morreu e ficou enterrada num sítio qualquer do Leste.
Na obscuridade que o rodeava, viu a cara de Lee e ouviu-lhe
a falinha mansa. - Lee soubera arquitectar as coisas. Amigo como
era da verdade, não admirava que desprezasse a mentira. Ele soubera fazer-se entender pelos gémeos. Se se ignora uma coisa que
não é verdade, trata-se dum erro. Mas quando se sabe que algo é
verdadeiro e o transformamos numa mentira, passamos a ser desprezíveis.
A voz de Lee disse:
«Eu sei muito bem que às vezes se faz uso da mentira para
não magoar, mas não creio que isso possa ter um efeito benéfico.
A dor fulgurante da verdade dissipa-se, enquanto que a dor lancinante da mentira fica para sempre. É um mal que nos vai consumindo. »
Lee trabalhara pacientemente, lentamente e conseguira transformar Adam no centro, na base, na essência da verdade.
Aron abanou a cabeça na obscuridade em sinal de negação.
- Se o meu pai é um mentiroso, o Lee também é.
Estava perdido. Não tinha ninguém à quem perguntar. Cal era
um mentiroso, mas a educação de Lee fizera dele um hábil mentiroso. Aron compreendeu que algo teria de morrer: a mãe ou o seu
mundo.
A solução surgiu-lhe subitamente. A Abra não mentira. Ela
repetira-lhe apenas o que ouvira e os pais tinham-se limitado também a ouvir a história a alguém. Aron pôs-se de pé e empurrou a
mãe para o túmulo.
Chegou atrasado para jantar.
- Estive com a Abra - explicou Aron.
Depois da refeição, Adam estava sentado na sua nova poltrona e lia o Salinas Index, quando sentiu uma mão no ombro.
- Que se passa, Aron? - perguntou.
- Boa noite, papá - disse Aron.
148
CAPÍTULO XXXVII
1
O mês de Fevereiro em Salinas traz sempre consigo a humidade, o frio e um sem número de misérias. É a época das chuvas
mais abundantes e, se o rio tem de trasbordar, é nesse mês que o
faz. Em 1915, Fevereiro foi muito chuvoso.
Os Trask tinham-se instalado confortavelmente em Salinas.
Assim que renunciou ao sonho da livraria, Lee criou um autêntico
lar na casinha ao lado da padaria Reynaud. No rancho, nunca
chegara a desencaixotar por completo os seus bens, pois sempre
pensara em ir para outro lado. Mas ali, pela primeira vez na vida,
instalou-se para ficar e o mais aconchegadamente possível.
Destinaram-lhe o quarto grande junto à porta da rua. Lee entrou nas economias. Até então, nunca gastara inútilmente um ceitíl,
pois todo o seu dinheiro estava reservado para a livraria. Resolveu comprar uma cama dura e uma secretária. Mandou colocar
estantes nas paredes, desencaixotou os livros, contemplou-se a
si próprio com um tapete e pendurou gravuras nas paredes. Ao
lado duma confortável e profunda poltrona Morris, dispôs o melhor candeeiro de leitura que conseguiu encontrar. Por fim, adquiriu uma máquina de escrever e dedicou-se à sua aprendizagem.
Tendo acabado com os seus hábitos espartanos, entregou-se à tarefa de mobilar luxuosamente a casa dos Trask, sem qualquer oposição de Adam. A cozinha foi equipada com um fogão de
gás, vindo logo a seguir a electricidade e o telefone. Lee despendeu
o dinheiro de Adam sem olhar para trás: móveis, carpetes, esquentador a gás e um grande frigorífico. Dentro em pouco, era a casa
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mais bem posta de Salinas. Lee explicou a Adam.
- O senhor tem muito dinheiro e seria uma pena não o gozar.
- Mas eu não me queixo - protestou Adam. - Só queria era
comprar também alguma coisa.
Lee propôs-lhe:
- Então vá à loja do Logan. Já chegaram os novos gramofones.
- Boa ideia - disse Adam.
E comprou um fonógrafo eléctrico Victor, parecido com uma
capela gótica. Depois, costumava ir regularmente à loja para se
informar das novidades em discos.
A agitação do novo século contribuía para abrir o casulo em
que Adam se escondera. Fez-se assinante do Atlantic Monthly e
da National Geographic. Filiou-se na Maçonaria e via com muito
agrado os Alces.
Fascinado pelo novo frigorífico, comprou um manual de refrigeração e estudou-o.
Adam sentia necessidade de trabalhar. Terminado o longo torpor,
precisava de gastar as forças acumuladas.
- Vou dedicar-me aos negócios - disse ele a Lee.
- É escusado. - O senhor tem que chegue para viver.
- Mas eu gostava de fazer qualquer coisa.
- Nesse caso, é diferente - disse Lee.- Tem alguma ideia?
Não me parece que tenha grande vocação para os negócios.
- Porque diz isso?
- É cá uma ideia minha - disse Lee.
- Gostava que lesse um artigo onde se explica a maneira
como foi desenterrado um mamute na Sibéria. O animal permaneceu enterrado no gelo durante milhares de anos e a carne ainda
estava boa.
Lee sorriu.
- O senhor anda com uma ideia ferrada. O que é que têm
dentro aquelas chávenas todas que guardou no frigorífico?
- Diversas coisas.
- Tenciona vendê-las? Algumas delas cheiram muito mal.
- É uma ideia que não me sai da cabeça - disse Adam.
- Não consigo livrar-me dela. Estou convencido de que se pode
conservar tudo o que quisermos, desde que se consiga obter o frio
necessário.
- Espero que não seja preciso guardar carne de mamute no
frigorífico - disse Lee.
Se a cabeça de Adam estivesse cheia de ideias, como a de
Sam Hamilton, talvez elas se tivessem evaporado. Mas ele só tinha
uma ideia e não fazia outra coisa senão pensar no mamute congelado. Resolveu, portanto, continuar a guardar chávenas de frutos,
de bolos, de carne crua ou cozida, dentro do frigorífico. Comprou
todos os livros existentes sobre as teorias bacterianas e assinou
todas as revistas susceptíveis de conterem artigos científicos. Como
em geral acontece aos homens que só têm uma ideia, a ideia transformou-se em obsessão.
Salinas possuía uma fabriqueta de gelo sem importância, mas
suficiente para acudir às necessidades dos particulares e dos vendedores de gelados. A carroça do gelo todos os dias dava a volta à
cidade.
Adam foi visitar a fábrica e passou a meter as chávenas nas
câmaras de congelação. Chegava a desejar que Sam Hamilton ainda
fosse vivo para discutir o problema com ele. Sam era homem para
estudar o problema a fundo e resolvê-lo duma penada, pensava ele.
Adam regressava a casa numa tarde de chuva, a pensar em
Sam Hamilton e depois de ter estado na fábrica de gelo, quando
viu Will Hamilton entrar no Bar Abbot. Seguiu-o e sentou-se ao
balcão, ao lado dele.
- Venha jantar comigo esta noite; dava-nos muito prazer.
- Lamento muito - respondeu Will -, mas ando às voltas
com um negócio que me convinha liquidar. Se me despachar a
tempo, irei com muito gosto. - O assunto é muito importante?
- Para falar verdade, não sei. Tive uma ideia e gostava de
conhecer a sua opinião.
Sempre que surgia um negócio, Will Hamilton acabava por
ser consultado, mais dia, menos dia. Will podia ter invocado uma
desculpa, mas lembrou-se de que Adam era rico. Uma ideia era
uma coisa, mas, apoiada pelo dinheiro, era outra coisa.
- Não estaria interessado em vender o seu rancho?
- Os gémeos, especialmente o Cal, gostam da terra. Acho
que vou ficar com ele.
- Posso arranjar-lhe um comprador.
- Não, está arrendado e até os impostos são de conta do
arrendatário. Prefiro ficar com ele.
- Se não puder ir jantar, irei logo a seguir.
A reputação de Will estava solidamente firmada. Ninguém sabia a quantos carrilhos comia, mas afirmava-se que era homem de
cabeça e relativamente rico. Naquela noite, não tinha compromisso
nenhum, mas a sua linha de conduta proibia-lhe que se mostrasse
ocioso.
Jantou sozinho no Bar Abbot. Quando lhe pareceu conveniente,
deu a volta à esquina da Central Avenue e bateu à porta de Adam
Trask.
Os gémeos estavam deitados. Lee, com um cesto de costura
no colo, passajava as compridas meias pretas que os rapazes usavam na escola. Adam acabava de ler o Scientific American. Mandou entrar Will e ofereceu-lhe uma poltrona. Lee foi buscar café e
embrenhou-se novamente na sua tarefa.
Will sentou-se na cadeira, tirou um grande charuto preto e
acendeu-o. Depois, aguardou que Adam jogasse a primeira cartada.
- O tempo está bom, para variar - disse este último.- Como
está a sua mãe?
- Bem, obrigado. Cada vez parece mais nova. Os seus filhos já devem estar muito crescidos.
- Ah! pois estão. O Cal vai representar na peça da escola. É
um bom actor. O Aron faz progressos. O Cal pretende dedicar-se
à agricultura.
- É um futuro interessante. O país precisa de ideias novas.
Will continuava a esperar, embaraçado. Perguntou a si mesmo se, por acaso, não teriam exagerado a fortuna de Adam. Iria
ele pedir-lhe dinheiro emprestado? Will calculou rapidamente quanto poderia emprestar pelo rancho e quanto lhe poderiam depois
emprestar a ele. As quantias não eram as mesmas, nem as taxas
de juros. E o Adam que não havia maneira de fazer a proposta!
Will impacientou-se:
- Não posso demorar-me muito. Tenho um encontro marcado para daqui a pouco.
- Tome outra chávena de café - sugeriu Adam.
- Não, obrigado. Faz-me perder o sono. Não desejava falar-me acerca de qualquer coisa?
Adam respondeu:
- Estive a pensar no seu pai e lembrei-me de que gostaria de
falar com um Hamilton.
Will pôs-se mais à vontade na cadeira.
- O meu pai era um grande tagarela.
- A tagarelice dele só nos fazia bem - disse Adam.
Lee olhou por cima do ovo de costura:
- O homem que verdadeiramente sabe cultivar a arte da conversação é aquele que obriga o interlocutor a falar.
Will disse:
- Que impressão me faz ouvi-lo falar assim! Era capaz de
jurar que empregava o pidgim.
- Empreguei-o, em tempos - respondeu Lee.- Devia ser
por vaidade.
Sorriu a Adam e disse a Will:
- Sabe que desenterraram um mastodonte nos gelos da Sibéria? Estava lá há milhares de anos e a carne ainda se mantinha
boa.
- Um mastodonte?
- Sim, um mamute, uma espécie de elefante que há muito
tempo desapareceu da superfície da Terra.
- E a carne ainda estava boa?
- Tenra como uma costeleta de porco - respondeu Lee.
Meteu o ovo de madeira sob o joelho puído de uma meia preta.
- Mas que interessante! - disse Will.
Adam riu-se.
- O Lee ainda não me assoa o nariz, mas é só o que falta.
Eu sei que tenho a mania dos rodeios. Na verdade, estou farto de
descansar e quero fazer qualquer coisa para me entreter.
- Então, porque não explora o seu rancho?
- Isso não me interessa. Veja se compreende, Will, eu não
sou um homem à procura de emprego. O que eu procuro é uma
coisa com que me entreter.
Will abandonou a sua reserva prudente:
- Em que lhe posso ser útil?
- Se lhe disser uma ideia que tive, talvez me possa dar a sua
opinião. Você conhece bem os negócios.
- Estou às suas ordens - disse Will.
- Tenho andado a estudar o problema da refrigeração - disse
Adam. - Surgiu-me uma ideia e não consigo livrar-me dela. Vou
para a cama com ela e no dia seguinte não me larga. Nunca vi nada
que fosse tão maçador. A ideia parece-me interessante, mas deve
ter os seus defeitos.
Will descruzou as pernas e puxou as calças que o estavam a
incomodar.
- Vá, diga o que tem para dizer - pediu ele. - Quer um
charuto?
Adam não ouviu a oferta e não compreendeu, portanto, o que
ela significava.
- O país está em vias de se transformar - disse Adam.
Pouco falta para que a gente passe a viver duma maneira muito
diferente. Sabe qual é, no Inverno, o maior mercado para as laranjas?
- Não. Qual é?
- A cidade de Nova Iorque. Foi o que li. Não acha que os
seus habitantes devem sentir vontade de comer legumes frescos
no Inverno? Ervilhas, alfaces, couves-flores? Numa grande parte
do país, as pessoas nem lhes vêem a cor durante meses e meses
a fio. Ora, no vale do Salinas, nós temos hortaliça durante todo o
ano.
- Isto aqui não é a mesma coisa que lá - disse Will. - Qual
é a sua ideia?
- A minha ideia é esta: o Lee obrigou-me a comprar um frigorífico e eu interessei-me pelo caso. Guardei lá dentro os mais
variados legumes e experimentei diversas técnicas. Pois fique
sabendo, Will, que se meter uma alface em gelo moído e depois
embrulhar tudo em papel-manteiga, passadas três semanas a alface ainda está tão fresca como no primeiro dia.
- Continue - disse prudentemente Will.
-Já sabe que os caminhos de ferro construíram vagões para
o transporte de fruta? Fui vê-los. São muito bem concebidos. Sabe
que podíamos expedir alfaces para a costa Leste em pleno Inverno?
- Qual é o seu papel no meio disso tudo? - perguntou Will.
- Eu tinha pensado comprar a fábrica de gelo de Salinas e
tentar uma primeira experiência.
- Isso custava-lhe uma pequena fortuna.
- Eu tenho a «pequena fortuna» - disse Adam.
Will Hamilton beliscou o lábio inferior.
- Gostava de perceber o que terei eu a ver com o assunto -
observou ele. - Mas não, eu percebo até bem de mais.
- Que quer dizer?
- Veja se me compreende - disse Will.- Quando alguém
me pede uma opinião, já sei onde quer chegar. Quer que eu concorde. Se me interessa manter a amizade, digo-lhe logo que a ideia
é excelente e que a ponha em execução. No seu caso, dá-se a
circunstância de eu lhe ter afeição e de o senhor ser amigo da
família. Portanto, vou falar-lhe com toda a franqueza.
Lee largou o que estava a fazer, pôs o cesto no chão e mudou
de óculos.
Adam perguntou:
- Parece contrariado. Porquê?
- É que eu faço parte do raio duma família de inventores disse
Will. - Na minha casa faziam-se invenções para o almoço em vez
de fazerem o almoço. Todos tinham tantas ideias que se esqueciam de arranjar dinheiro para a mercearia. Assim que juntávamos
uns tostões, o meu pai ou o Tom gastavam-nos logo a brevetar
qualquer coisa. Eu sou o único da família, exceptuando a minha
mãe, que nunca teve ideias e que conseguiu ganhar algum dinheiro. O Tom tinha ideias para ajudar a viver as pessoas e algumas
delas até roçavam pelo socialismo. Se o senhor agora me disser
que não está interessado em ganhar dinheiro, atiro-lhe com esta
cafeteira à cabeça.
- Para ser franco, não estou muito interessado.
- Basta, Adam! Olhe que me põe furioso. Se está disposto a
perder quarenta ou cinquenta mil dólares enquanto o diabo esfrega um olho, ponha o seu projecto em execução. Olhe que o estou
a prevenir. Veja se esquece essa loucura. O melhor é enterrá-la e
não se fala mais nisso.
- Mas que defeito lhe põe?
- Todos. A gente do Leste não está habituada a comer legumes no Inverno. Portanto, não irá passar a comprá-los. Se os vagões tiverem uma avaria e forem metidos num desvio, o senhor
perde toda a remessa. E o mercado está controlado. Valha-me Deus!
Até me dá um aperto no coração quando vejo uns fedelhos a quererem armar em negociantes só porque tiveram uma ideia.
Adam suspirou.
- Quem o ouvir há-de dizer que o Sam Hamilton era um criminoso.
Will olhou para Adam, que parecia estupefacto. De súbito,
Will sentiu-se envergonhado. Abanou lentamente a cabeça.
- Não quero dizer mal dos meus - disse ele.- Era tudo boa
gente, mas isso não exerce qualquer influência no que eu já lhe
disse. É melhor deixar a refrigeração em paz.
Adam voltou-se para Lee.
- Ainda sobrou algum bocado da torta de limão que fez para
o jantar?
- Não me parece - respondeu Lee. - Tenho a impressão de
que ouvi «ratos» a andarem na cozinha. Amanhã, os travesseiros
dos gémeos devem cheirar a limão. Mas temos meia garrafa de
uísque.
- Ah! sim? Então, é melhor bebê-lo.
- Acho que fui um bocadinho exagerado - disse Will, tentando troçar de si mesmo. - Um copito, agora, talvez não me
fizesse mal.
Tinha a cara congestionada e a voz levemente velada.
- Estou a ficar gordo.
Após o segundo copo, Will descontraiu-se. Confortavelmente
sentado, leu a cartilha a Adam:
- Há coisas que nunca mudam de valor. Se pretende fazer
um investimento, olhe em torno de si. A guerra na Europa vai durar ainda muito tempo. Uma guerra significa gente que tem fome.
Não é intenção minha meter-me a adivinhar, mas não ficaria surpreendido se nós entrássemos na guerra. Desconfio muito do Presidente Wilson. Todo ele é teorias e palavras sonoras. Se entrarmos na guerra, vão fazer-se fortunas com os alimentos que não
se deterioram. Tomemos por exemplo o arroz, a cevada, o trigo, o
feijão, tudo produtos que não precisam de gelo. Conservam-se
sozinhos e as pessoas podem viver com eles. Se plantar feijão no
seu rancho, os gémeos não terão que se preocupar com o futuro. O
feijão vale actualmente três cêntimos e, se formos para a guerra,
não me admiraria muito que chegasse aos dez cêntimos. Vá guardando o feijão e espere pela oportunidade. Se quer ganhar dinheiro,
semeie feijão.
Will partiu com a consciência em paz. A vergonha que tinha
sentido desvanecera-se com o bom conselho que dera.
Após a sua partida, Lee foi buscar um grande bocado de torta
de limão e partiu-a ao meio.
- Ele está a ficar gordo - disse Lee.
- Mas eu tinha-lhe dito que só pretendia entreter-me.
- E a fábrica de gelo?
- Acho que vou comprá-la.
- Isso não o impede de semear os feijões - disse Lee.
2
Já o ano ia quase no fim quando Adam efectuou a sua grande
experiência. Foi uma sensação num ano de sensações, tanto locais como internacionais. Durante os preparativos, os homens de
negócios referiam-se a Adam como um homem de visão, um
espirito desempoeirado, uma mentalidade progressiva. A partida
dos seis vagões de alfaces metidas no gelo fez-se sob os auspícios
da Câmara de Comércio. Os vagões levavam grandes cartazes
que diziam: Alfaces do vale do Salinas. Mas ninguém quisera investir um tostão na aventura.
Adam deu provas duma energia que ele próprio desconhecia.
Juntar, escolher, embalar, gelar e carregar as alfaces constituiu
um trabalho penoso. Não havia material adequado. Foi necessário improvisar tudo, contratar muitos operários e ensinar-lhes o
ofício. Todos davam a sua sentença, mas ninguém queria ajudar.
Todos afirmavam que Adam enterrara uma fortuna no negócio,
mas ninguém sabia qual era o montante. Adam também não. Só
Lee é que sabia.
A ideia parecia viável. As alfaces seguiam consignadas em
condições vantajosas a comerciantes de Nova Iorque. O comboio
partiu e todos voltaram para casa. Se a tentativa resultasse, muita
gente estaria disposta a investir dinheiro. Até o próprio Will Hamilton perguntou a si mesmo se não teria feito asneira.
Se a série de incidentes tivesse sido preparada por um inimigo
omnipotente e impiedoso, não teria sido mais eficaz. Quando o
comboio chegou a Sacramento, uma avalancha de neve fechou as
Sierras ao tráfego durante dois dias, e os seis vagões foram metidos num desvio até que a neve derretesse. No terceiro dia, o comboio atravessou as montanhas e o calor que fez não se assemelhava
a nada do que era costume naquela altura do ano. Em Chicago,
houve confusão nas ordens - a culpa não era de ninguém, são
coisas que acontecem - e os seis vagões de alfaces de Adam
ficaram numa gare de triagem durante cinco novos dias. Não é preciso prosseguir, nem os pormenores são necessários. A Nova Iorque
apenas chegaram seis vagões de alfaces podres, boas, quando
muito, para deitar fora. E ainda tiveram de pagar aos descarregadores.
Adam leu o telegrama dos consignatários e deixou-se cair numa
poltrona. Na cara tinha um sorriso estranho que não se apagava.
Lee manteve-se afastado, julgando que Adam se recomporia.
Nas ruas da cidade, os gémeos ouviam os comentários que fervilhavam: Adam era um imbecil. Esses sonhadores que tudo sabem parece que têm um faro especial para se meterem em sarilhos. Os homens de negócios felicitaram-se por não terem querido correr risco nenhum. De resto, quem herdava a fortuna só sabia dar cabo dela. E se queriam uma prova, bastava olhar para a
maneira como Adam explorava o rancho. O dinheiro e um imbecil
nunca viviam muito tempo juntos. Talvez lhe servisse de lição. E
dizer que ele elevara para o dobro a produção da fábrica de gelo!
Will Hamilton recordou a toda a gente que, não só fora contrário ao projecto, como previra em pormenor tudo o que aconteceria. Não se queria gabar, mas que se há-de fazer quando alguém
não faz caso da opinião de um negociante sério? E só Deus sabia
como ele andava farto de ideias loucas! Palavra puxa palavra, todos
se lembraram de que Sam Hamilton nunca tivera muito juízo. Quanto a Tom Hamilton, também não lhe ficava atrás.
Quando Lee concluiu que já passara o tempo suficiente, não
esteve com meias medidas. Sentou-se diante de Adam e entrou a
matar:
- Como é que se sente?
- Bem.
- Não se vai enfiar novamente no seu buraco, pois não?
- Porque é que pensa isso? - perguntou Adam.
- Porque está com a mesma cara com que andava dantes. E
tem o mesmo olhar de sonâmbulo. Sente-se ferido no seu amor-próprio?
- Não - disse Adam. - Só quero saber se fiquei arruinado.
- Não de todo. Ainda lhe restam nove mil dólares e o rancho.
- Tenho uma divida de dois mil dólares - disse Adam.
- Já a incluí nas contas.
- E tenho de pagar o novo aparelho de refrigeração.
-Já está pago.
- E ainda me restam nove mil dólares?
- E o rancho - acrescentou Lee. - Talvez seja melhor vender a fábrica.
O rosto de Adam contraiu-se e o sorriso vago desapareceu.
- Ainda tenho esperanças - disse ele. - Foi tudo uma série
de acidentes. Prefiro ficar com a fábrica. O frio conserva. E, depois,
a fábrica sempre rende alguma coisa. Talvez eu venha a ter outra
ideia.
- Então, veja se descobre uma coisa que não saia muito
cara - disse Lee. - Não gostava de ficar sem o meu fogão de gás.
3
Os gémeos sofreram profundamente com o revés do pai. Tinham quinze anos e já sabiam há tanto tempo que eram filhos
dum homem rico, que a ferida custou a cicatrizar. Se ao menos
aquilo não tivesse sido uma espécie de carnaval... Mas não. Fora
em cheio. Não conseguiam esquecer os enormes cartazes colados nos vagões de mercadorias, reviam com horror todos os
pormenores do grande acontecimento. E se os comerciantes troçavam de Adam, os filhos ainda foram mais cruéis. De um dia para
o outro, os gémeos passaram a ser tratados por «Aron e Cal Alface»
ou, mais simplesmente, por «Pés de Alface». Aron discutiu a questão com Abra.
- É mais um obstáculo - disse ele.
Abra transformara-se numa encantadora rapariguinha. Os seios arredondavam-se com o fermento dos anos e o rosto reflectia a
serenidade cálida da beleza. Já não era apenas bonita. Tinha a
força e a firmeza femininas.
Abra examinou o semblante inquieto de Aron e perguntou:
- Que obstáculo é esse?
- Agora somos pobres.
- De qualquer maneira, terias de trabalhar.
- Sabes que quero continuar a estudar?
- Pois continua, que eu te ajudarei. O teu pai perdeu o dinheiro todo?
- Não sei. É o que se diz.
- Quem é que diz? - perguntou Abra.
- Toda a gente. Talvez os teus pais não consintam que eu
case contigo.
- Nesse caso, não lhes digo nada.
- Não pareces duvidar de coisa nenhuma.
- Pois claro que não duvido. Dá-me um beijo.
- Aqui? Na rua?
- Porque não?
- Podem ver-nos.
- Eu quero que nos vejam - disse Abra.
Aron replicou:
- Não. Há coisas que não se fazem em público.
Ela pôs-se à frente dele e cortou-lhe a passagem.
- Olha para mim. Vais beijar-me e é já.
- Porquê?
Ela respondeu lentamente:
- Para que todos fiquem sabendo que eu sou a Sr.a «Pé de
Alface».
Aron deu-lhe um beijo fugaz e envergonhado, obrigando-a a
passar logo para o seu lado.
- Talvez fosse preferível que eu renunciasse - disse ele.
- Que tu renunciasses a quê?
- Já não sou bastante bom para ti. Agora, não passo dum
pobre tipo igual aos outros. Julgas que não compreendi a atitude do
teu pai?
- És idiota - disse Abra.
Mas franziu ligeiramente as sobrancelhas, porque também vira
a atitude do pai.
Entraram na pastelaria Bell e sentaram-se a uma mesa. Naquele ano, era moda tomar sumo de aipo. No ano anterior, usara-se
o sorvete de gengibre.
Abra soprou delicadamente pela palhinha, provocando algumas bolhas, e pensou na mudança de atitude do pai desde o malogro das alfaces congeladas. Ele dissera-lhe:
- Porque não sais com outro rapaz? Sempre variavas.
- Eu estou noiva de Aron.
- Noiva? -troçara o pai. - Desde quando, é que é moda as
crianças ficarem noivas? Não sejas tola. Olha que há mais peixes
no mar.
Depois lembrou-se de que lhe tinham dado a entender que
certas famílias não podiam ocultar eternamente um escândalo e
que certas honorabilidades estavam sujeitas a caução. Estes remoques tinham coincidido com o revés de Adam que, segundo se
dizia, perdera toda a sua fortuna.
Abra debruçou-se na mesa.
- O que nós podíamos fazer é tão simples que tu até te vais
rir de não teres pensado nisso mais cedo.
- O que é?
- Podíamos explorar o rancho do teu pai. O meu pai diz que
é uma bela terra.
- Não - disse Aron apressadamente.
- Porquê?
- Porque não quero ser lavrador e não quero que sejas a
mulher dum lavrador.
- Eu hei-de ser a mulher do Aron, seja ele o que for.
- Mas eu não quero deixar de estudar.
- Já te disse que te ajudarei - repetiu Abra.
- E onde ias buscar o dinheiro?
- Roubava-o - disse ela.
- Eu quero sair desta cidade. Todos fazem pouco de mim. Já
não posso aguentar mais.
- Eles num instante esquecem.
- Isso é o que resta saber. Não estou disposto a passar mais
dois anos naquela escola.
- Queres ir para longe de mim, Aron?
- Não. Mas porque foi ele meter o nariz em coisas de que não
entendia?
- Não censures o teu pai. Se o negócio tivesse resultado,
toda à gente lhe faria salamaleques.
- Mas falhou e sou eu quem apanha pela tabela. Nem tenho
coragem para levantar a cabeça. Oh! meu Deus, se soubesses
como o odeio!
Abra disse com severidade:
- Aron, proíbo-te que fales dessa maneira.
- E quem me diz que ele não me mentiu a respeito da minha
mãe?
O rosto de Abra tornou-se escarlate.
- Tu merecias um par de açoites - disse ela. - E se estivéssemos sós, era eu mesma quem tos dava. - (Abra examinou o
rosto deformado pela fúria, pelo orgulho ferido e, subitamente,
resolveu mudar de táctica.) - Porque não lhe perguntas acerca
da tua mãe? Vai ter com ele e pergunta-lhe.
- Não posso. Prometi-te.
- Tu só me prometeste não repetir o que eu tinha dito.
- Se eu lhe perguntar, ele há-de querer saber onde foi que ouvi
dizer.
- Muito bem. - disse ela. - Tu não passas duma criança
mimada. Estás desligado do teu juramento. Vai perguntar-lhe.
- Não sei se devo.
- Há dias em que sinto vontade de te matar - disse ela -,
mas... Aron... Gosto tanto de ti. Amo-te tanto.
Vindos do bar, ouviram-se uns risinhos estúpidos. Aron e Abra
tinham elevado a voz e haviam sido escutados por quem os espiava. Aron corou. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Saiu a
correr e desapareceu na rua.
Abra pegou calmamente na bolsa, ajustou a saia e sacudiu-a
com a mão. Dirigiu-se ao Sr. Bell e pagou-lhe a despesa. Na altura
em que se encaminhava para a porta, foi detida por umas risadas
sonsas.
- Deixem-no em paz - disse ela friamente.
Saiu, e os seus passos ritmavam uma frase, sempre a mesma: «Gosto tanto de ti, Aron.»
Subitamente, pôs-se a correr, julgando poder apanhar Aron,
mas não conseguiu encontrá-lo. Telefonou para casa dele. Lee respondeu que Aron ainda não tinha chegado. Mas Aron estava metido
no quarto às voltas com o seu ressentimento. Lee vira-o encafuar-se no quarto e fechar a porta.
Abra percorreu as ruas de Salinas na esperança de o encontrar. Estava furiosa com ele mas, ao mesmo tempo, sentia-se espantosamente só. Aron nunca a deixara com tal violência. Abra
desaprendera a estar só.
Cal, esse, tivera de se habituar à solidão. Nos primeiros tempos tentara juntar-se a Abra e a Aron, mas eles não apreciavam a
sua companhia. Cheio de ciúmes, procurara atrair a rapariga, mas
falhou redondamente.
Os estudos pareciam-lhe fáceis e sem grande interesse. Aron
era obrigado a trabalhar com mais afinco para aprender e, por
consequência, possuía uma noção mais elevada dos seus deveres. O respeito que dedicava aos estudos não condizia com a qualidade do ensino. Cal não se interessava pelas actividades
desportivas da escola. A sua inquietação crescente fazia-o sair de
casa todas as noites. Adolescente ensimesmado, andava sempre
envolto em trevas.
CAPÍTULO XXXVIII
1
Cal, como toda a gente, sempre sentira necessidade de afeição e carinho. Se fosse filho único ou se Aron fosse diferente, Cal
teria podido manter relações normais e fáceis com as outras pessoas. Mas notara desde pequeno que todos eram atraídos pela
beleza e pela simplicidade de Aron. Como é natural, esforçava-se
por despertar a atenção e a amizade do próximo tentando imitar o
irmão. Mas o que era encantador na ingenuidade do louro Aron,
tornava-se desagradável e suspeito em Cal, sempre sombrio e
desconfiado. Os simuladores nunca são convincentes. Onde Aron
era aceitado, Cal era repelido, apesar de dizer e fazer precisamente as mesmas coisas.
Do mesmo modo que alguns piparotes no focinho dum cachorro o intimidam, também as crianças se tornam desconfiadas
e arredias quando são tratadas com maus modos. O cachorrinho
encolhe-se, rola-se no chão e rasteja, enquanto que a criança procurará disfarçar o acanhamento sob a capa da indiferença ou da
bravata. Basta que a criança seja repelida uma vez, para que passe logo a ver essa atitude em toda a parte, mesmo quando não
existe, ou, o que é muito pior, para que a provoque, preparando-se
de antemão para a defrontar.
Em Cal, a evolução fora tão lenta que ele nem sequer a estranhava. Para se defender do mundo, erguera à sua volta uma muralha de indiferença. E se a muralha tinha frestas, devia ser nos
sítios onde se encontrava com Aron e Lee e, mais especialmente,
com Adam. A segurança de Cal residia na indiferença do pai. Mais
vale ser ignorado do que notado com animosidade.
Pequeno ainda, Cal descobrira um segredo; se se aproximasse sem rumor do lugar onde o pai se encontrava sentado, e se se
debruçasse ligeiramente sobre o joelho paterno, a mão de Adam
levantava-se automaticamente e ia afagar-lhe o ombro. É muito provável que o fizesse distraído, mas a carícia despertava uma tal onda
de felicidade que a criança raramente a utilizava, excepto nos momentos em que lhe era necessária. Era um encantamento de que
dependia. Era o cerimonial simbólico duma adoração canina.
As coisas não se modificam com uma mudança de cenário.
Em Salinas, Cal não tinha mais amigos do que em King City. Dispunha de parceiros, exercia uma certa autoridade, era admirado,
mas não tinha amigos. Vivia sozinho e caminhava solitário.
2
Lee sabia que Cal saía de casa à noite e que só voltava muito
tarde, mas nada dizia por ser impotente para remediar a situação.
Os polícias de giro encontravam às vezes o rapaz. O sargento
Heiserman tocou no assunto ao prefeito, que, não só lhe assegurou que Cal não se entregava à vadiagem, como tinha fama de ser
um excelente aluno. O sargento conhecia Adam Trask. Como o
filho não partia vidros e não provocava escândalos, disse aos polícias que andassem de olho bem aberto e que só interviessem no
caso de o rapaz cometer algum desacato.
O velho Tom Watson encontrou Cal certa noite e perguntou-lhe:
- Porque é que andas a passear a uma hora destas?
- Eu não faço mal a ninguém - respondeu Cal, na defensiva.
- Isso sei eu. Mas já devias estar na cama.
- Não tenho sono - respondeu Cal.
O velho Tom achou que a resposta não formava sentido, pois
toda a sua vida tivera sono. O rapaz assistia às partidas de fan-tan
no bairro chinês, mas nunca jogava. Era um mistério, mas muitas
coisas simples constituíam um mistério para Tom Watson, e ele
preferia não as aprofundar.
Durante as passeatas nocturnas, Cal recordava-se muitas vezes da conversa que ouvira no rancho entre Lee e o pai. Queria
saber a verdade. A pouco e pouco, foi acumulando as informações:
uma frase escutada na rua, uma alusão numa loja. Aron não as
teria notado, mas Cal dava-lhes um sentido. Sabia que a mãe não
estava morta. Ficara sabendo também, desde a primeira conversa
através do falatório, que Aron sofreria muito quando conhecesse a
verdade.
Uma noite, Cal encontrou Rabbit Holman que descia de San
Ardo à cidade para apanhar a carraspana semestral. Rabbit acolheu Cal com efusão, como é costume dos camponeses quando
encontram um conhecido em lugar afastado. Rabbit, enquanto metia à boca o gargalo da garrafa, foi contando a Cal tudo o que lhe
passou pela cabeça. Vendera uma parte da sua terra por bom preço
e vinha a Salinas para celebrar o acontecimento com uma paródia
em cheio. As tipas haviam de ficar a saber o que era um homem.
Cal, sentado a seu lado, ouvia calmamente. Quando viu que
Rabbit estava quase sem uísque, foi ter com Louis Schneider e
pediu-lhe que lhe comprasse outra garrafa. Rabbit largou a garrafa e, quando tornou a pegar nela, reparou que estava cheia.
- Tem graça - disse ele -, julgava que estivesse vazia.
A partir desse instante, Rabbit esqueceu não só quem era
Cal, mas também qual a sua idade. Lembrava-se, contudo, de
que ele era o seu melhor amigo.
- Ouve uma coisa, George. Vou beber só mais um ou dois
golos, e depois vamos os dois às pegas. Não me digas que estás
liso, a despesa é por minha conta. Já te disse que vendi quarenta
acres de terra? Também, não valiam nada. - (Depois de uma
pausa, acrescentou): - Escuta, Harry. A gente hoje não vai às
putas baratas, vamos antes à casa da Kate. Sai caro, dez dólares,
mas a gente está-se nas tintas. Elas até têm um circo. Já foste ao
circo, Harry? Aquilo é um circo do camandro. A Kate sabe as linhas com que se cose. Olha lá, George, lembras-te de quem é a
Kate? É a mulher do Adam Trask, a mãe daqueles gémeos do
catano. Que Deus me valha! Nunca me hei-de esquecer daquele
dia em que ela lhe pregou com uma bala no canastro e se pôs a
andar. Deu-lhe cabo do ombro, mas conseguiu safar-se. Talvez não
valesse nada como mulher, mas como puta é de respeito! É bestial.
Sabes porque é que se diz que uma puta dá uma boa mulher?
Porque já sabe tudo e não tem vontade de aprender mais nada.
Ajuda-me a levantar, Harry. Que estava eu dizendo?
- Estavas a falar no circo - disse Cal em voz sumida.
- Ah! pois. Quando vires o circo da Kate até te saltam os
olhos cá para fora. Tu sabes o que elas fazem?
Cal postou-se de maneira que Rabbit não lhe visse a cara.
Rabbit contou-lhe o que elas faziam. Cal sentiu-se agoniado. Não
era, porém, do circo mas sim dos espectadores. Ao ver a expressão de Rabbit, imaginava a cara de todos aqueles homens reunidos
no circo de Kate.
Atravessaram o matagal que crescia no jardim e subiram os
degraus da entrada. Cal era crescido para a idade mas, mesmo
assim, pôs-se no bico dos pés. O homem que abriu a porta não lhe
prestou grande atenção. A casa era escura, parcamente iluminada
pelos candeeirinhos disseminados, e Cal imiscuiu-se no grupo dos
homens que esperavam com impaciência.
3
Cal desejava acumular provas, frases, obscuros materiais que lhe serviriam um dia. Após a visita à casa de Kate, veio-lhe uma
vontade desesperada de se desfazer de tudo o que armazenara.
Certa noite, Lee, que escrevia à máquina, ouviu bater à porta
de mansinho. Mandou entrar Cal. O rapaz sentou-se à beira da
cama, e Lee enfiou o corpo magro na poltrona Morris. Sempre
achara divertido que uma poltrona pudesse dar-lhe tanto prazer.
Cruzou as mãos em cima da barriga, como se usasse mangas
chinesas, e aguardou com paciência. Cal observava qualquer coisa por cima da cabeça de Lee. Quando falou, fê-lo baixinho e depressa.
- Já sei onde está a minha mãe e o que ela faz. Até a vi.
A mente de Lee formulou uma prece convulsiva, pedindo socorro.
- Que queres tu saber? - perguntou ele.
- Ainda não pensei nisso. Ando a ver se descubro. Prometes
que me dizes a verdade?
- Prometo.
As perguntas que borbulhavam no espírito de Cal eram tão
espantosas que ele mal sabia qual escolher.
- O meu pai sabe?
- Claro.
- Porque foi que ele disse que ela tinha morrido?
- Para te evitar um desgosto.
- Que fez o meu pai para que ela o deixasse?
- Amou-a de corpo e alma. Deu-lhe tudo o que lhe podia dar.
- Nunca lhe bateu?
- Que eu saiba, não. Não era homem para bater.
- Porque fez ela aquilo, Lee?
- Não sei.
- Não sabes ou não queres dizer?
- Não sei.
Cal manteve-se calado durante tanto tempo que Lee se pôs a
coçar os pulsos com a ponta dos dedos. Sentiu-se aliviado quando Cal falou de novo. O tom da voz mudara. Agora, era suplicante.
- Lee, tu conheceste-a. Como era ela? Lee suspirou e desenclavinhou as mãos.
- Só posso dizer o que penso. E posso estar
enganado.
- Que é que tu pensas?
- Cal - respondeu Lee - tenho passado muitas horas a
reflectir no assunto e continuo sem saber nada. Tenho a impressão de que ela não é como as outras pessoas. Falta-lhe qualquer
coisa. A bondade, talvez, ou a confiança. Só podemos compreender as pessoas quando somos capazes de as sentir em nós mesmos. Ora, a ela, não sou capaz de a sentir. Assim que me ponho a
pensar nela, tudo começa a ficar escuro. Não sei o que ela queria,
nem qual era o seu objectivo. Era uma mulher que nutria um profundo ódio, contra quem ou contra quê, ainda hoje o ignoro. É um
mistério. E era um ódio doentio. Não era fúria ou raiva, era um ódio
que nada tinha a ver com o coração. Talvez esteja a praticar um erro
falando-te desta maneira.
- Mas eu preciso de saber.
- Para quê? Dantes, não te sentias melhor?
- Sentia, sim. Mas agora já não posso parar.
- Tens razão - disse Lee.- Quando desaparece a primeira
inocência, não se pode parar, a não ser que se seja um hipócrita ou
um imbecil. Nada mais te posso dizer, visto nada mais saber.
Cal pediu:
- Então, fala-me do meu pai.
- É fácil - disse Lee. (Mas logo se calou) - Não estará
ninguém a ouvir-nos? É melhor baixarmos a voz.
- Fala-me dele - pediu Cal.
- Creio que o teu pai traz em si, mas aumentado, o que falta
à tua mãe. Na minha opinião, - a bondade e a confiança dele são
tão grandes que se tornam tão incómodas como se fossem vícios.
Estão sempre a pregar-lhe rasteiras e a cortar-lhe a passagem.
- O que foi que ele fez quando ela se foi embora?
- Cessou de viver - disse Lee.- Continuou a andar, mas
estava morto. Só há pouco tempo é que regressou a uma meia
vida.
Lee viu uma expressão estranha e nova no rosto de Cal. Os
olhos estavam mais abertos e a boca, geralmente fechada e rígida,
descontraíra-se. Pela primeira vez, naquele rosto, e apesar da diferença de tez, Lee via Aron. Os ombros de Cal tremiam ligeiramente,
como fazem os músculos depois dum esforço prolongado.
- Que se passa, Cal?
- Eu gosto do meu pai.
- Também eu. Talvez seja por isso que eu nunca fui capaz de
o deixar. Ele não é inteligente no sentido literal da palavra, mas é
um bom homem. Talvez seja o melhor de todos os homens que eu
conheci até hoje.
Cal ergueu-se de súbito.
- Boa noite, Lee.
- Espera um instante. Falaste no assunto a alguém?
- Não.
- E ao Aron? Não serias incapaz de o fazer.
- E se ele vier a saber?
- Nesse caso, terás de ficar a seu lado para o ajudares. Não
te vás já embora. Depois de saíres deste quarto, talvez nunca mais
tenhamos oportunidade de voltar a falar a sós. E talvez passes a
gostar menos de mim por saberes que eu sei a verdade. Diz-me
uma coisa... Tens ódio à tua mãe?
- Tenho - disse Cal.
- Bem me parecia - disse Lee. - Creio que o teu pai nunca
a odiou. A única coisa que sentiu foi uma grande dor.
Cal recuou lentamente para a porta e enterrou as mãos nos
bolsos.
- Odeio-a porque sei qual foi o motivo que a levou a partir. E
sei-o... porque a sinto dentro de mim.
Baixara a cabeça e falava em voz dilacerada.
Lee levantou-se de um salto.
- Basta! - disse ele com dureza.- Ouve-me bem. Ai de ti se
te torno a apanhar a pensar dessa maneira! Não há dúvida nenhuma que a tens dentro de ti, que te corre nas veias todo o mal que há
nela. Dá-se o mesmo com toda a gente. Mas tu tens outra coisa.
Levanta a cabeça e olha para mim.
Cal levantou a cabeça e olhou-o com cansaço.
- Que é que tu queres?
- Tu tens outra coisa. Estás a ouvir-me? Se não fosse isso,
não tinhas feito a pergunta. E nunca escolhas o caminho mais fácil.
Só os preguiçosos é que gostam de se desculpar com a ancestralidade. Vê se reages! Agora, olha-me bem para ver se nunca
mais me esqueces. Seja o que for que tu fizeres, será um acto
teu... e nunca da tua mãe.
- Achas que sim, Lee?
- Acho, sim, e tu também farás bem em achar se não queres que te faça num bolo.
Após a partida de Cal, Lee instalou-se na poltrona. «Que terei
eu feito à minha calma oriental?», pensou ele.
4
Cal, ao descobrir a mãe, procedeu mais a uma verificação do
que a uma descoberta. Sabia, há muito, que a nuvem lhe pairava
por cima da cabeça, mas desconhecia-lhe a forma. A reacção que
teve foi dupla. Sentia-se mais forte agora que estava a par dos factos. Podia avaliar gestos e expressões, e interpretar vagas alusões.
Podia, até, desenterrar e reconstituir o passado. Mas nada disso
lhe consolava o sofrimento.
O seu corpo ia caminhando para a maturidade e era sacudido
pelos ventos variáveis da adolescência. Num dia, mostrava-se dedicado, puro e devotado; na manhã seguinte, comprazia-se no mal;
passado outro dia, rastejava de vergonha e surgia purificado.
A descoberta aguçou-lhe os sentidos. Convenceu-se de que
tal herança fazia dele um ser único. Não conseguia acreditar nas
palavras de Lee ou conceber que outros rapazes passassem pelos
mesmos tormentos.
O circo de Kate não se lhe desvanecera da memória. Sempre
que pensava nele, sentia-se percorrido pela chama da puberdade
para, logo a seguir, ser dominado pela náusea.
Passou a observar o pai com mais atenção e descobriu nele
uma tristeza e um desapontamento que Adam talvez nunca tivesse
sentido em tal quantidade. O resultado dessa descoberta foi um
amor apaixonado pelo pai, uma vontade de o proteger e de preencher o vácuo deixado pelos sofrimentos passados. Cal imaginava
intoleráveis esses sofrimentos idos. Certo dia, entrou na casa de
banho precisamente na altura em que Adam tomava banho e viu-lhe
a cicatriz produzida pela bala. Se bem que não o desejasse fazer,
perguntou:
- Que cicatriz é essa, papá?
A mão de Adam pareceu querer tapar a cicatriz.
- É um velho ferimento que me fizeram na campanha contra
os índios. Um dia ainda te hei-de contar.
Cal, que observava o pai, vira-o rebuscar no passado à procura duma mentira. Cal não odiava a mentira, mas sim a necessidade que havia de mentir. Mentia de bom grado por razões concretas, mas ser obrigado a mentir parecia-lhe vergonhoso. Teve vontade de gritar: «Eu sei quem te feriu e não tem mal nenhum.» Mas
limitou-se a dizer:
- Gostava que me contasses.
Aron também passou pelas mesmas dificuldades, mas as suas
reacções eram menos violentas. Os sentidos não o atormentavam
com tanta estridência. As paixões adquiriram uma feição religiosa.
Descobriu que tinha vocação para ministro da igreja e que era esse
o seu futuro. Assistia a todos os serviços da igreja episcopal, punha flores no altar e passava muito tempo na companhia do Sr.
Rolf, o jovem pastor de cabelo encaracolado. Aron tomou conhecimento das coisas deste mundo através dum homem que não
possuía nenhuma experiência e que só era capaz de ensinar generalidades, como todas as pessoas sem experiência.
Aron foi confirmado na igreja episcopal e cantava no coro todos os domingos. Abra seguiu-o. Ela sabia que aquelas coisas
eram necessárias mas destituídas de importância.
Era natural que Aron convertido pretendesse converter Cal.
Principiou por orar silenciosamente por Cal, mas acabou por
se lhe dirigir directamente. Censurou-lhe a falta de fé e pediu-lhe
que se modificasse.
Cal talvez estivesse disposto a fazer um esforço se o irmão
tivesse sido mais inteligente, mas Aron atingira aquele vértice de
pureza apaixonada em que todo o resto da humanidade nos parece
maculada. Após alguns sermões, Cal achou que o irmão era insuportavelmente, aborrecido e disse-lho. Ambos respiraram de alívio
quando Aron resolveu abandonar o irmão à condenação eterna.
A religiosidade de Aron adquiriu, como era inevitável, uma feição sexual. Falou a Abra na necessidade da abstinência e resolveu
viver uma vida de celibato. Abra, prudentemente, concordou, esperando que aquela loucura fosse passageira. O celibato era a única
condição que ela conhecera até àquele momento, embora desejasse casar com Aron e ter filhos. Apesar do seu silêncio, começou a
alimentar um ódio instintivo, e talvez justificado, pelo Reverendo
Rolf.
Cal via o irmão triunfar de pecados que ele nunca cometera.
Sentiu vontade de lhe dizer quem era a mãe, para ver a reacção,
mas logo reprimiu esse desejo. Sabia que Aron não poderia resistir à revelação.
CAPÍTULO XXXIX
1
De vez em quando, Salinas soltava pequenos arrotos de moralidade. O processo nunca variava. Os arrotos eram sempre idênticos. Do alto do púlpito ou através duma nova e ambiciosa presidente da Liga Cívica Feminina, era lançada a ofensiva. Na generalidade
dos casos, a vítima era o jogo e já se vai ver porquê. Toda a gente
podia discutir o assunto, o que já não acontecia com a prostituição.
Tratava-se dum pecado evidente, e a maioria das casas de jogo
pertenciam a chineses. Poucas probabilidades havia de pisar os
calos a um parente. E a história repetia-se sempre do mesmo modo.
Depois de incendiar a Igreja e a Liga, o fogo alastrava aos dois
jornais da cidade. Os artigos de fundo exigiam uma limpeza à cidade.
A polícia respondia que não queria outra coisa, mas que lutava com
falta de créditos. Em geral, aproveitava a oportunidade para pedir
uma dotação mais elevada, o que às vezes dava resultado.
Quando se chegava à fase dos editoriais, toda a gente sabia
que as cartas estavam na mesa. A fase seguinte era regulada
com a precisão e a minúcia dum bailado. A polícia preparava-se,
as casas de jogo preparavam-se e os jornais também se preparavam para imprimir editoriais vitoriosos. Depois, seguia-se a rusga
que ia direita ao objectivo sem provocar danos. Vinte ou mais chineses importados de Pajaro, uns tantos saloios, e cinco ou seis
inocentes caixeiros viajantes caíam nas malhas da polícia, eram
inscritos nos cadastros, encarcerados e soltos de manhã após o
pagamento duma multa. Depois daquele banho lustral, a cidade
respirava e as casas de jogo perdiam uma noite de negócio, além
das multas.
Um dos triunfos do ser humano é saber o que se passa e,
mesmo assim, não acreditar...
Numa noite de Outono, em 1916, Cal assistia ao jogo do fantan na casa do Lim Meia-Dose quando foi apanhado numa rusga.
Na escuridão, ninguém o reconheceu e o sargento ficou bastante
atrapalhado quando, na manhã seguinte, foi dar com ele numa
célula. Telefonou logo a Adam que estava a tomar o pequeno almoço.
Adam fez o trajecto a pé, libertou o filho, atravessou a rua para
ir buscar a correspondência ao correio e levou Cal para casa.
Lee pusera os ovos de Adam em banho-maria e preparara
mais dois para Cal.
Aron atravessou a casa de jantar, de caminho para a escola.
- Queres que espere por ti? - perguntou ele a Cal.
- Não - respondeu Cal.
Baixou os olhos e comeu os ovos.
Adam ainda não abrira a boca para falar, excepto quando dissera «Vem comigo», depois de ter agradecido ao sargento.
Cal engoliu o pequeno almoço sem apetite, lançando olhares
de esguelha ao pai. Não compreendia o que significava a expressão de Adam. Parecia simultaneamente embaraçado, furioso, pensativo e triste.
Adam também não despregava os olhos da chávena de café.
O silêncio cresceu até se tornar insuportável.
Lee meteu a cabeça pela porta.
- Café? - perguntou.
Adam fez que não com a cabeça. Lee desapareceu e fechou
a porta da cozinha. No silêncio, apenas cortado pelo tiquetaque
do relógio, Cal deixava-se dominar pelo medo. Sentia desprender-se do pai uma força de que ele nunca suspeitara. Formigueiros percorriam-lhe as pernas, mas tinha receio de as mexer para
restabelecer a circulação. Deixou cair o garfo no prato, para fazer
barulho, e o ruído foi tragado pelo silêncio. O relógio deu nove
horas que também foram tragadas. Com o medo nascia o ressentimento. Cal era como a raposa que, ao cair na armadilha, fica
furiosa com a pata entalada.
De repente, Cal pulou, sem saber que ia pular, e gritou, sem
saber que ia gritar.
- Faça o que lhe apetece fazer! Vamos! e não se fala mais
nisso!
O grito angustiado também foi sorvido pelo silêncio.
Adam ergueu lentamente a cabeça. Cal nunca tinha olhado o
pai nos olhos. Há muita gente que nunca olhou o pai nos olhos. A
íris de Adam era azul-clara com linhas escuras que convergiam
para a pupila. No fundo dos dois olhos, Cal avistou a própria imagem deformada, como se dois Cal estivessem a olhar para ele.
Adam disse devagar:
- Eu traí-te, não é verdade?
Era pior do que um ataque.
- Que queres dizer? - perguntou Cal.
- Foste apanhado numa casa de jogo. Não sei como lá foste
parar, nem porquê, nem o que lá fazias.
Cal tornou a sentar-se desajeitadamente e fitou o prato.
- Tu jogas ao fan-tan?
- Não, papá. Só olho.
- Já lá tinhas ido?
- Já, sim, muitas vezes.
- Que vais lá fazer?
- Não sei. À noite apetece-me mexer... como às mulheres da
vida.
Pensou em Kate e o gracejo de mau gosto pareceu-lhe horrível.
- Quando não consigo dormir, vou passear- disse ele. -
para ver se me estafo.
Adam pesou cada uma das suas palavras antes de falar.
- O teu irmão também costuma ir passear?
- Oh! não! Nem isso lhe passava pela cabeça. Ele não é...
nervoso.
- Vês tu, eu nada sei a respeito de vocês os dois - disse
Adam.
Cal desejaria atirar os braços ao pescoço do pai, abraçá-lo, e
ser abraçado por ele. Desejaria uma grande demonstração de simpatia e de amor. Pegou na argola de madeira do guardanapo e
enfiou nela o dedo.
- Bastava perguntares para saberes - disse ele.
- Mas nunca perguntei. Tenho sido tão mau pai como foi o
meu.
Cal nunca ouvira Adam falar com aquela voz. Era pungente,
lancinante, como se Adam tropeçasse em certas palavras que se
recusavam a ser pronunciadas.
- O meu pai fez uma forma e obrigou-me a entrar nela à
força - disse Adam. - Eu era uma má peça, mas não podia ser
refundido. Ninguém pode ser refundido. E continuei a ser uma má
peça.
Cal disse:
- Não fiques triste. Já sofreste bastante.
- Achas? Talvez... Mas da pior maneira, sem dúvida. Não
conheço os meus filhos e não sei se conseguirei conhecê-los.
- Eu digo-te tudo o que quiseres. Basta perguntares.
- Por onde devo começar? Pelo princípio?
- Estás zangado comigo? Ficaste aborrecido por eu ter sido
preso?
Com grande surpresa de Cal, Adam riu-se.
- Tu só estavas lá, não é verdade? Não fizeste mal nenhum,
pois não?
- Talvez fizesse mal em lá estar.
Cal procurava o castigo.
- Também eu já lá estive uma vez - disse Adam. - E fiquei
na cadeia durante um ano por ter lá estado.
Cal tentou digerir esta heresia.
- Não acredito - disse.
- Há ocasiões em que eu também não. Mas o que eu sei é
que, quando me evadi, assaltei uma loja e roubei roupa.
- Não acredito - repetiu Cal sem convicção.
Mas o calor, a intimidade do momento eram tão deliciosos
que se agarrou a eles. Respirou devagar para não diminuir o calor.
Adam disse.
- Lembras-te do Samuel Hamilton? Claro que te lembras.
Ainda tu não passavas dum bebé, disse-me ele que eu era um
mau pai. Até me bateu para que eu nunca o esquecesse.
- Aquele velho?
- Ele era rijo. Hoje é que eu compreendo o que ele pretendia
dizer. Eu sou o que foi o meu pai. Ele proibiu-me que fosse uma
pessoa e eu não soube ver que os meus filhos eram seres humanos. Era isto o que o Samuel pretendia explicar-me.
Fitou Cal nos olhos e sorriu. Cal sentiu tanta afeição pelo pai
que até lhe doeu.
Cal disse:
- Nós não pensamos que tu sejas um mau pai.
- Pobres crianças - disse Adam. - Como haveriam de sabê-lo? Vocês nunca tiveram outro.
- Estou satisfeito por ter ido parar à cadeia - disse Cal.
- Também eu, também eu. - (Adam riu-se.) -Já estivemos
ambos presos, portanto é assunto que não tem segredos para
nós. - (Invadia-o uma alegria crescente.) - Serás capaz de me
dizer que género de rapaz és tu?
- Sou, sim, papá.
- A sério?
- Sim.
- Então, dize. Sabes, é preciso assumir certas responsabilidades quando se é um indivíduo. Isso não consiste unicamente em
ocupar o lugar do ar no espaço. Quem és tu?
- Não estás a brincar? - perguntou Cal timidamente.
- Não estou. Garanto-te que é a sério. Fala-me de ti... enfim,
se quiseres.
Cal começou:
- Pois bem!... eu... - (Deteve-se.) - Custa muito quando
se experimenta.
- Julgo que deve ser... impossível. Fala-me do teu irmão.
- Que queres saber dele?
- O que tu pensas. Não me podes dizer mais nada.
Cal disse:
- Ele é bom. Nunca faz nada que seja mau nem tem maus
pensamentos.
- Agora estás a falar de ti.
- Como?
- Admites que fazes e pensas coisas más.
As faces de Cal ruborizaram-se.
- É verdade.
- Muito más?
- Sim, papá. Queres que te conte?
- Não, Cal. já compreendi. A tua voz e os teus olhos dizem
que lutas contigo mesmo. Mas não tenhas vergonha. É horrível ter
vergonha. O Aron costuma ter vergonha?
- Ele nada faz para isso.
Adam inclinou-se para a frente.
- Tens a certeza?
-Completamente.
- Dize-me, Cal... tu protege-lo?
- De que maneira?
- Suponhamos que ouvias dizer uma coisa má, cruel ou feia;
serias capaz de lha ocultar?
- Acho que sim.
- Ele é demasiado fraco para suportar o que tu podes suportar?
- Não é isso, papá. Ele é bom, de verdade. Nunca faz mal a
ninguém. Nunca diz mal seja de quem for. Ele não é mau por
natureza. Nunca se queixa e é valente. Não gosta de jogar à pancada, mas fá-lo sempre que é necessário.
-Tu gostas do teu irmão, não é verdade?
- Gosto, sim. E às vezes faço-lhe mal. Engano-o, induzo-o
em erro. Às vezes até o firo sem motivo.
- E depois sentes-te infeliz?
- Pois é.
- O Aron nunca se sente infeliz?
- Não sei. Quando me recusei a ir à igreja, pareceu ficar
desesperado. E uma vez, quando a Abra se zangou e lhe disse
que o odiava, ele ficou com um ar desgraçado. Chegou a adoecer
e a ter febre. Não te recordas? O Lee mandou chamar o médico.
Adam comentou com espanto:
- Mas como consegui eu viver com vocês e ignorar tudo
isso? Porque se zangou a Abra?
- Não sei se devo dizer.
- Então, não digas.
- Não foi nada de importante. Sabes, papá, o Aron quer ser
pastor. O Sr. Rolf falou ao Aron e o Aron disse que nunca se casaria e que talvez se retirasse do mundo.
-Como um frade?
- Sim, papá.
- E a Abra não gostou disso?
- Não gostou? Ficou doida varrida. Às vezes põe-se assim.
Pegou na caneta do Aron, atirou-a para o passeio e desfê-la a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida
por culpa do Aron.
Adam riu-se.
- Que idade tem ela?
- Vai fazer quinze anos. Mas, nalgumas coisas, parece mais
velha.
- Estou a ver. E que fez o Aron?
- Não disse nada, mas pareceu ficar ofendido.
Adam disse:
- Podias ter aproveitado a oportunidade para lhe roubares a
Abra.
- A Abra pertence ao Aron.
Adam olhou intensamente o filho nos olhos e, depois, chamou: - Lee! - ( como não obteve resposta, chamou mais uma
vez): - Lee! - (Depois, acrescentou): - Não o ouvi sair. Apetecia-me mais café.
Cal deu um salto.
- Vou fazê-lo.
- Mas tu devias estar na escola - disse Adam.
- Não quero lá ir.
- Mas devias. O Aron foi.
- Sou feliz - disse Cal.- Prefiro ficar contigo.
Adam baixou a cabeça e olhou as mãos.
- Vai fazer o café - disse ele numa voz cheia de timidez.
Enquanto Cal estava na cozinha, Adam examinou-se com
espanto. Uma espécie de apetite contraía-lhe os nervos e os músculos, os dedos tinham vontade de agarrar, as pernas de correr.
Lançou um olhar ávido à sala. Viu as cadeiras, os quadros, as
rosas vermelhas do tapete, e muitas coisas novas que pareciam
animadas de vida própria, mas amistosa. Sentia vontade de viver
os minutos seguintes, agradáveis e calorosos, como se devessem trazer-lhe o êxtase. Dentro dele estava nascendo uma madrugada que seria o prelúdio dum dia calmo e doirado. Juntou as
mãos atrás da cabeça e estiraçou as pernas.
Na cozinha, Cal observava com impaciência a água que passava através do café, mas sentia-se feliz por ter de esperar. Um
milagre deixa de o ser, assim que se torna familiar. Os termos em
que se encontrava com o pai já não o admiravam, mas o prazer
mantinha-se. O veneno da solidão e a inveja mordente de quem não
é amado já o haviam abandonado; sabia-se purificado e pacífico.
Tentou despertar um velho ódio para se pôr à prova, e verificou que
já não sabia odiar. Teve vontade de servir o pai, de lhe oferecer um
enorme presente, de realizar uma tarefa gigantesca em sua honra.
A cafeteira deitou por fora e Cal perdeu alguns minutos a limpar o fogão. E pensou lá para consigo que, na véspera, não teria
feito aquilo.
Adam sorriu-lhe quando o viu chegar com o café fumegante.
Cheirou-o e disse:
- Deita um cheiro que era capaz de me fazer levantar da tumba.
- A cafeteira deitou por fora - disse Cal.
- O café só ganhou com isso - disse Adam.- Mas onde se
terá metido o Lee?
- Talvez esteja no quarto. Queres que vá ver?
- Não. Se lá estivesse, teria respondido.
- Quando sair da escola, poderei ir para o rancho?
- Já andas a fazer projectos? E o Aron?
- Ele quer continuar os estudos. Não lhe digas que te contei.
Espera que ele te diga e finge que ficas surpreendido.
- Muito bem - disse Adam.- Mas tu também não queres
continuar a estudar?
- Acho que poderei ganhar dinheiro no rancho, pelo menos
o bastante para pagar os estudos do Aron.
Adam bebeu o café.
- É uma ideia generosa - disse. - Não sei se deva dizer-to,
mas quando há pouco te perguntei que espécie de rapaz era o
Aron, tu defendeste-o tão mal que cheguei a julgar que o odiavas.
- Já o odiei - disse Cal com veemência.- E também lhe fiz
mal. Posso dizer-te uma coisa? Agora, já não o odeio. Nunca mais
odiarei ninguém. Acho que nunca mais odiarei ninguém, nem mesmo
a minha mãe...
Calou-se, admirado por ter dado aquele passo em falso, e logo
o seu espirito se imobilizou numa atitude defensiva.
Adam não pestanejou. Continuou a olhar a direito. Depois, passou a mão pela testa e acabou por dizer calmamente:
- Tu sabes tudo a respeito da tua mãe.
Não era uma pergunta.
- Sei... sim, papá.
- Absolutamente tudo?
- Sim.
Adam empertigou-se na cadeira.
- O Aron está ao par?
- Não. Oh! não. Ele não sabe nada.
- Porque dizes isso assim?
- Não teria a coragem de lho dizer.
- Porquê?
Desamparado, Cal disse:
- Não me parece que fosse capaz de suportar. Não tem maldade que chegue. - (E apeteceu-lhe continuar): - «Nem tu».
Mas calou-se.
Adam deu mostras de cansaço e abanou a cabeça.
- Ouve, Cal. Achas que o Aron poderá continuar a ignorá-lo?
Pensa bem no que te pergunto.
Cal respondeu:
- Ele nunca vai aos sítios onde poderiam informá-lo. Ele não é
como eu.
- E se alguém lhe dissesse?
- Não acreditaria. Dava cabo de quem lhe dissesse uma
coisa dessas. Pensava que era um mentiroso.
- Estiveste na casa dela?
- Estive, sim, papá. Eu precisava de saber.
E prosseguiu logo, muito comovido:
- Se o Aron saísse da cidade para ir para a Universidade, se
nunca mais cá voltasse...
- Sim, é possível, mas ainda tem de passar aqui dois anos
- respondeu Adam abanando a cabeça.
- Talvez eu lhe pudesse pedir para se despachar e para acabar tudo num ano. Ele é inteligente.
- Tu és mais do que ele...
- Não sou da mesma maneira - disse Cal.
Adam pareceu crescer a ponto de encher toda a sala. Tinha a
severidade estampada no rosto e o olhar era agudo e penetrante.
- Cal - disse ele bruscamente.
- Papá?
- Tenho confiança em ti.
2
A modificação das relações com o pai originou um fermento de
felicidade em Cal. Passou a andar com mais ligeireza, com a expressão iluminada por um sorriso. Exteriorizou-se.
Lee, que reparara na mudança, perguntou-lhe:
- Não terás, por acaso, arranjado uma namorada?
- Não. Quem é que precisa duma namorada?
- Toda a gente - respondeu Lee.
Depois, Lee perguntou a Adam:
- O que é que se passa com o Cal?
- Ele sabe tudo a respeito dela - respondeu Adam.
- Não me diga! - (Lee sentiu-se aliviado). Lembra-se de lhe
ter dito que era preciso contar-lhes a verdade.
- Eu não contei nada. Ele já sabia.
- Ora vejam! - disse Lee. - Mas com certeza que não é
por isso que ele assobia enquanto estuda e que atira a boina ao ar
quando anda. E o Aron?
- Esse é que me preocupa. Não queria que soubesse.
- Agora talvez já seja tarde de mais.
- Talvez eu pudesse ter uma conversa com o Aron- disse
Adam.
Lee examinou Adam.
- Também o acho mudado. É possível!
Cal não se contentava em assobiar, em atirar a boina ao ar e
em despachar rapidamente os seus deveres escolares. Em seu
novo júbilo, nomeou-se guardião da felicidade paterna. Quando
dissera que não odiava a mãe, não tinha mentido. Mas ela ferira
Adam. O que já fizera uma vez, poderia tornar a fazê-lo. Prometeu
a si mesmo informar-se o mais que pudesse de tudo o que se
referisse a ela. Um inimigo que se conhece é menos perigoso, e
não se corre o risco de se ser surpreendido.
À noite, sentia-se atraído pela casa do outro lado do caminho
de ferro. Em certas tardes, escondia-se nos matagais que cresciam no passeio da frente. Via sair as mulheres, solenemente vestidas de escuro. Saíam sempre aos pares e Cal seguia-as com os
olhos até à esquina de Castroville Street, onde viravam à esquerda para a Main Street. Verificou que, se se ignorasse de onde
vinham, não se poderia dizer quem eram. Mas não era por essas
mulheres que esperava. Queria ver a mãe à luz do dia. Acabou por
descobrir que Kate saía todas as segundas-feiras, à uma e meia.
Cal obteve dispensas para faltar à escola nas segundas-feiras,
mediante a apresentação de exercícios excelentes. Respondeu às
perguntas de Aron dizendo que estava a preparar uma surpresa que
devia manter-se secreta. Esclareça-se que Aron não se mostrou
muito interessado. Imerso em si mesmo, depressa esqueceu.
Cal, depois de ter seguido Kate numerosas vezes, acabou por
aprender o itinerário de cor. Ela ia sempre aos mesmos sítios:
primeiro, ao banco de Monterey, onde gastava um quarto de hora
atrás das grades brilhantes que protegiam a secção dos cofres-fortes; depois, percorria a Main Street observando as montras; entrava nos estabelecimentos Porter e Irvine, olhava os vestidos e, às
vezes, fazia uma compra: alfinetes-de-ama, um véu, um par de luvas; cerca das duas e um quarto, entrava no instituto de beleza de
Minnie Franken onde passava uma hora, e saía com os cabelos
frisados e um lenço de seda enrolado na cabeça.
Às três e meia, subia os degraus que levavam ao consultório
do Dr. Rosen. Em seguida, detinha-se na confeitaria Bell e comprava um quilo de chocolates sortidos. Era sempre a mesma coisa. Quando saía da confeitaria Bell, encaminhava-se directamente para Castroville Street e para casa.
Vestia como toda a gente, podendo ser confundida com qualquer burguesa de Salinas que fizesse as suas compras numa tarde de segunda-feira. Mas usava sempre luvas, o que era raro em
Salinas.
Sob as luvas, as mãos pareciam enchumaçadas. Kate movia-se como se fosse protegida por uma campânula de vidro. Não
dirigia a palavra a ninguém, dir-se-ia não ver ninguém. Às vezes, um
homem voltava a cabeça quando ela passava, mas prosseguia logo
o seu caminho com um ar perturbado. Mas, para a maioria dos
transeuntes, ela deslizava como um ente invisível.
Cal seguiu Kate durante várias semanas, procurando não se
tornar notado. E, como Kate andava sempre olhando a direito, ele
estava convencido de que ela não suspeitava de nada.
Assim que Kate entrava no seu jardim, Cal prosseguia o seu
caminho com um ar desprendido. Seria incapaz de dizer ao certo
porque era que a seguia, a não ser que era para saber tudo a seu
respeito.
Na oitava semana, seguiu-a como de costume, mas não continuou o seu caminho quando ela entrou no jardim.
Esperou um instante e, depois, empurrou também a porta
desconjuntada.
Kate estava escondida atrás dum alfeneiro. Friamente, perguntou-lhe:
- O que é que quer?
Cal ficou varado. O tempo parecia ter parado. Nem sequer
ousava respirar. Muito novo ainda, aprendera a dominar-se para
recuperar a calma. Pôs-se a observar pormenores que nada tinham
a ver com o principal objectivo. Reparou na maneira como o vento
acamava as folhinhas do alfeneiro, observou a vereda traçada por
passos numerosos, e os pés de Kate que se conservavam afastados
da lama, escutou uma locomotiva da Pacífico Sul que se esganiçava
em apitadelas agudas, provou o ar fresco na penugem que lhe
despontava na cara, sem contudo nunca perder Kate de vista. Viu
pela forma e pela cor dos olhos, pelo cabelo e até pelo jeito dos
ombros - pareciam encolhidos - que Aron se lhe assemelhava
muito. Ainda não conhecia bastante bem a própria cara para
reconhecer as suas feições naquela boca, nos dentinhos e nas
maçãs do rosto muito afastadas. Assim ficaram uma eternidade,
separados pelas lufadas de vento do sul.
Kate disse:
- Já não é a primeira vez que me segue. Que quer?
Ele baixou a cabeça.
- Nada.
- Quem lhe pediu para me seguir?
- Ninguém... minha senhora.
- Não quer dizer, não é verdade?
Cal ouviu a sua própria frase com estupefacção. Pronunciou-a
antes de pensar em contê-la:
- A senhora é minha mãe e eu queria saber como era.
Era a verdade exacta e saltara como a chicotada duma serpente.
- Como? O que é? Quem é você?
- Chamo-me Cal Trask - disse ele.
Notou que se operava nela uma ligeira modificação. As posições inverteram-se. Kate conservava a mesma expressão, mas Cal
compreendeu que ela se pusera na defensiva.
Kate observou-o atentamente, esmiuçando as feições uma a
uma. Uma imagem confusa e obscura de Charles surgiu do passado. Subitamente, disse:
- Vem comigo.
Deu meia volta e meteu pela vereda, tendo o cuidado de não
pisar a lama. Cal só hesitou um momento antes de a acompanhar.
Recordava-se da grande sala escura, mas o resto era-lhe estranho.
Kate precedeu-o até ao fim do corredor e no seu quarto. Ao
passar diante da cozinha, gritou:
- Chá. Duas chávenas.
No quarto, deu mostras de ter esquecido o visitante. Despiu o
casaco, puxando as mangas com os dedos enluvados e desajeitados. Depois, dirigiu-se para uma porta recém-aberta na parede,
no canto da sala onde se encontrava a cama. Abriu a porta e entrou.
- Vem cá - disse ela.- Traz a tua cadeira.
Ele penetrou por sua vez na sala nua que parecia uma caixa.
Não havia janelas. As paredes eram cinzento-escuras. Um tapete
cinzento cobria o chão. Os únicos móveis da sala eram uma larga
poltrona com almofadas de seda cinzenta, uma mesa de leitura,
inclinada, e um candeeiro de pé com um quebra-luz espesso. Com
a mão enluvada, Kate puxou o cordão do comutador, descrevendo
um largo circulo com o polegar e o indicador, como se a mão fosse
artificial.
- Fecha a porta - disse ela.
O candeeiro projectava um círculo na mesa de leitura e apenas
espalhava uma débil claridade na sala. Dir-se-ia que o cinzento
absorvia a luz e a destruía.,.
Kate instalou-se nas fofas almofadas e tirou lentamente as luvas. Os dedos das duas mãos estavam envoltos em ligaduras. Violentamente, disse:
- Não olhes dessa maneira. É artritismo. Bom, queres ver?
Desatou a ligadura embebida em óleo que envolvia o indicador
direito e estendeu o dedo deformado para a luz.
- Aqui tens, olha - disse ela. - Agora já sabes o que é o
artritismo.
Fez uma careta de dor ao ligar novamente o dedo.
- Estas luvas doem-me tanto - disse ela. - Senta-te.
Cal instalou-se na borda da cadeira.
- Também virás a ter - disse Kate. - A minha tia-avó tinha e
a minha mãe começava a ter...
Calou-se. A sala estava completamente silenciosa. Ouviu-se
um bater discreto à porta.
- És tu, Joe? - gritou Kate. - Deixa o tabuleiro no meu
quarto. Joe, estás aí?
A porta foi atravessada por um murmúrio. Kate despejou numa
voz monótona:
- A sala está cheia de lixo. Limpa-a. A Anne não arrumou o
quarto. Torna a avisá-la. Diz-lhe que é a última vez que a avisas. A
Eva quis ser esperta ontem à noite. Eu trato dela. Não te esqueças de dizer ao cozinheiro que, se ele nos tornar a servir cenouras
esta semana, vai logo para a rua. Estás a ouvir?
A porta deixou transpirar novo murmúrio.
- Mais nada - disse Kate. - Cambada de porcos! - murmurou. - Eram capazes de apodrecer na própria porcaria se a gente
não andasse com o olho em cima deles. Vai lá fora buscar o chá.
O quarto estava vazio quando Cal abriu a porta. Regressou à
salinha contígua e colocou em equilíbrio na mesa uma grande
bandeja de prata com um bule, duas chávenas finas como papel,
um açucareiro, um jarrinho de leite e uma caixa de chocolates.
- Serve o chá - disse Kate. - Doem-me as mãos.
Meteu um chocolate na boca.
- Reparei que estavas a olhar para esta sala - continuou
ela depois de ter engolido a guloseima. - A luz faz-me mal aos
olhos. Costumo vir descansar para aqui.
Reparou na espreitadela rápida que Cal lhe lançara aos olhos e
acrescentou num tom sem réplica:
- A luz faz-me mal aos olhos.
Depois, bruscamente:
- O que é? Não queres chá?
- Não, minha senhora - respondeu Cal. - Não gosto de
chá. Ela pegou na fina chávena com os dedos ligados.
- Bem. O que é que queres?
- Nada, minha senhora.
- Querias olhar-me?
- Sim, minha senhora.
- Estás contente?
- Sim, minha senhora.
- E que ar tenho eu?
Dirigiu-lhe um sorriso ignóbil e mostrou os dentinhos aguçados.
- Está bem - respondeu Cal.
- Já devia calcular que não dirias nada. Onde está o teu irmão.
- Deve estar na escola, ou em casa.
- Como é ele?
- Parece-se consigo.
- Deveras?
- Ele quer ser pastor - disse Cal.
- Óptimo - disse Kate. - Parece-se comigo e quer entrar
para a Igreja. É lugar onde pode causar muitos estragos. Os homens que aqui vêm põem-se em guarda, enquanto que na igreja se
descobrem.
- Ele quer mesmo ser pastor - disse Cal.
Kate inclinou-se para ele. O seu olhar era vivo.
- Enche a minha chávena. O teu irmão é parvo?
- É muito simpático - disse Cal.
- Perguntei-te se era parvo?
- Não é, não, minha senhora.
Ela voltou a mergulhar nas almofadas e ergueu a chávena. - E
o teu pai?
- Não quero falar nele - disse Cal.
- Ah! não? Então é porque gostas dele?
- Gosto dele, gosto.
Kate perscrutou o jovem rosto e foi sacudida por um estranho
espasmo, uma espécie de dor no peito. Mas voltou logo a dominar-se.
- Queres um chocolate? - perguntou.
- Quero, sim, minha senhora. Porque foi que fez aquilo?
- Que foi que eu fiz?
- Deu um tiro de revólver no papá e abandonou-nos.
- Foi ele quem lhes disse isso?
- Não, ele não nos disse nada.
Kate pôs uma das mãos em cima da outra e retirou-a logo
como se o contacto tivesse despertado uma queimadura. Depois,
perguntou:
- O teu pai nunca recebe raparigas - ou mulheres novas lá
em casa?
- Não - disse Cal. - Porque é que disparou e se foi embora?
Todos os músculos do rosto de Kate endureceram como se
fossem repuxados por um fio invisível. Ao levantar a cabeça, mostrou um olhar implacável.
- Pareces-me bastante adiantado para a idade, mas não o
bastante. Era melhor que te fosses embora, que fosses jogar ao
berlinde e assoasses o nariz.
- Às vezes consigo irritar o meu irmão - disse ele. – Faço-o estrebuchar e até chorar. Ele não percebe como é que eu consigo isso. Sou mais esperto do que ele. Mas não quero tirar proveito. É uma coisa que me põe doente.
Kate falou como se respondesse a uma pergunta.
- Eles julgavam-se inteligentes. Olhavam-me e pensavam
conhecer-me. Eu é que os conhecia. Enganei-os a todos. E quando eles imaginavam que podiam dar-me conselhos, então é que
eu os enganava melhor. Charles, garanto-te que os enganei bem.
- O meu nome é Caleb - disse Cal. - Caleb chegou à Terra
da Promissão. Foi o que me disse o Lee, e vem na Bíblia.
- O chinês! - disse Kate. (E prosseguiu com violência): O
Adam pensou que podia fazer de mim o que quisesse. Quando
me encontrou ferida e toda desfeita, mandou-me entrar, serviu-me e
deu-me de comer. Fez tudo para me prender a ele. A maior parte
das pessoas deixam-se prender assim. E ficam reconhecidas, contraem uma dívida. Que par de algemas. Ninguém me pode prender.
Eu fui esperando, esperando até sentir-me forte e, depois, libertei-me. Não me apanham na esparrela - disse. - Eu ia olhando para
ele e ia esperando.
Na sala cinzenta, o silêncio foi mobilado pela respiração arquejante de Kate.
- Porque disparou contra ele? - perguntou Cal.
- Porque se tinha atravessado no meu caminho. Podia tê-lo
morto, mas não o fiz. Só queria que ele me deixasse passar.
- Nunca se arrependeu de se ter ido embora?
- Não, meu Deus! Mesmo quando era pequena, já podia fazer
tudo o que me apetecia. Eles nunca percebiam como é que eu me
arranjava. Nunca. Estavam sempre certos de terem razão. Nunca
souberam. Nunca ninguém soube.
Kate parecia estar a desenhar o seu retrato diante dos próprios
olhos.
- Tu és da minha raça. Talvez te pareças comigo. Porque
não, afinal?
Cal levantou-se e apertou as mãos atrás das costas. Em seguida, perguntou:
- Quando era pequena... - (Depois, deteve-se para ordenar os pensamentos). - Nunca teve a impressão de que lhe faltava alguma coisa? Como se os outros conhecessem qualquer coisa e a senhora não? Como se não quisessem revelar-lhe um segredo? Já sentiu isso alguma vez?
Enquanto ele falava, o rosto de Kate petrificou-se e, assim
que ele se calou, ela aproveitou para cortar o fio que os unia, dizendo:
- Então não querem ver que me ponho a discutir com miúdos!
Cal desenlaçou as mãos e escondeu-as nos bolsos.
- A falar com fedelhos - disse ela. - Devo estar doida.
Cal tinha o rosto contraído e os olhos esbugalhados.
Kate disse:
- O que é que tens?
Ele manteve-se imóvel, com a fronte inundada de suor e os
punhos fechados.
Kate, por hábito, tentou cravar a faca brilhante mas rígida da
crueldade. Riu docemente:
- Eu poderia ter-te dado coisas interessantes como isto... -
(Mostrou as mãos disformes). - Mas se és epiléptico, não é a
mim que o deves.
Fitou-o, aguardando o choque e procurando adivinhar a inquietação que se ia apoderar dele.
Cal falou alegremente.
- Pronto- disse ele - vou-me embora. Estou contentíssimo.
O Lee tinha razão.
- Que foi que ele disse?
- Eu estava com medo de a ter em mim.
- E tens-me - disse Kate.
- Não tenho, não. Eu sou eu. Não preciso de ser a senhora.
- Como sabes? - perguntou ela.
- Sei, acabou-se. Só agora o percebi. Se sou mau, a maldade é minha.
- O teu chinês encheu-te a cabeça de teias de aranha. Porque me estás a olhar assim?
Cal respondeu:
- Não é verdade que a luz lhe faz mal aos olhos. No fundo, o
que tem é medo.
- Sai daqui - vociferou ela. - Sai já daqui para fora.
- Vou-me embora. (Cal levou a mão à maçaneta da porta).
- Não a odeio - disse ele - mas estou contente por ver que tem
medo.
Kate tentou gritar «Joe», mas a voz estrangulou-se.
Cal abriu a porta e saiu, batendo-a com força.
Joe estava na sala, conversando com uma das mulheres.
Ouviram passos leves e rápidos. Quando ergueram a cabeça, já
uma silhueta imprecisa chegara à porta e se esgueirara para a
rua. O pesado batente estremeceu. Depois, apenas escutaram
passos na escada e o ruído abafado de dois pés que tocavam no
chão após um salto.
- O que é isto?- perguntou a rapariga.
- Só Deus sabe - retorquiu Joe. - Há dias em que julgo ter
visões.
- Também eu - respondeu a rapariga. - Já te disse que a
Clara tem as nádegas todas picadas?
- Pudera! Ela que não abuse da seringa - disse Joe. - Mas
cá na minha opinião, quanto menos um tipo sabe, menos se chateia.
- Lá isso é verdade - aquiesceu a rapariga.
CAPÍTULO XL
1
Kate afundou-se nas almofadas da poltrona. Ondas nervosas
percorriam-lhe o corpo, eriçando os pêlos à medida que passavam
e deixando atrás de si um frio que queimava.
De mansinho, pôs-se a falar consigo mesma:
- Acalma-te. Não é nada. Vê se não pensas. Ranhoso indecente!
Subitamente, veio-lhe à ideia a única pessoa que receara e
odiara simultaneamente. Era Samuel Hamilton com a sua barba
branca, as bochechas cor-de-rosa e os olhos risonhos que pareciam levantar a pele para ver o que ela tapava.
Com o indicador disforme, Kate tirou o fio de ouro que usava ao
pescoço e de onde pendiam duas pequeninas chaves de cofre-forte,
um relógio de ouro e um tubozinho de aço. Com mil cuidados,
desenroscou a tampa do tubo e, depois de ter afastado os joelhos,
fez cair no tecido esticado da saia uma pequena cápsula de gelatina.
Olhou-a à transparência: continha seis cristais de morfina, a conta
certa. Tornou a meter a cápsula no interior do tubo, enroscou a
tampa e escondeu o fio de ouro entre a pele e o vestido.
As últimas palavras de Cal ecoavam interminavelmente: «Tem
medo», «tem medo». Disse a frase em voz alta para lhe destruir o
sentido. As palavras ritmadas desvaneceram-se mas, em compensação, logo se formou uma vigorosa imagem que ela deixou
desenvolver-se para a poder observar à vontade.
2
Era antes da construção da salinha. Kate entrara de posse da
herança de Charles. Convertera o cheque em notas que arrecadara
no seu cofre do banco de Monterey.
Foi pouco mais ou menos nessa época que sentiu as primeiras dores nas mãos. O dinheiro que tinha chegava e sobejava para
abandonar o negócio, mas não queria vender a casa à pressa. E
depois, preferia esperar até ficar curada.
Nunca mais voltou a sentir-se completamente bem. Nova Iorque
parecia ficar muito longe.
Certo dia, recebeu uma carta assinada por uma «Ethel». Quem
seria? Fosse quem fosse, só podia ser doida para cair na asneira
de pedir dinheiro. Há centenas de Ethel. Há uma a cada esquina
das ruas. Aquela escrevia mal em papel quadriculado.
Pouco tempo depois, Ethel veio visitar Kate que teve dificuldade em a reconhecer. Sentada atrás da secretária, mostrou-se
prudente, desconfiada e senhora de si.
- Há muito tempo que a gente não se via - disse Kate.
Ethel respondeu como o soldado que, cinquenta anos depois,
vai visitar o sargento que lhe deu ordens.
- Isto vai mal - disse ela.
Engordara bastante e assemelhava-se a um barril cingido por
arcos de banha. A roupa era limpa, usada e pobre.
- Onde vive agora? - perguntou Kate, ansiosa por que a outra dissesse onde queria chegar.
-Tenho um quarto no Hotel Pacífico Sul.
- Então já não trabalha em nenhuma casa?
- Nunca mais pude voltar ao trabalho. A senhora não me
devia ter posto na rua. - (Limpou a uma luva de algodão as lágrimas que lhe assomavam ao canto dos olhos).- Isto vai o pior
possível - disse ela.- As dificuldades principiaram quando chegou o novo juiz. Apanhei três meses, eu que não tinha cadastro...
Pelo menos aqui. Quando saí do chilindró, pregaram-me um
esquentamento. Eu não sabia o que tinha, e peguei-o a um tipo
porreiro que trabalhava na polícia. Ele ficou danado e saltou em
cima de mim. Desfez-me o nariz, partiu-me quatro dentes e o tal
juiz novo obrigou-me a amochar com mais seis meses. Kate, está
a ver a minha sorte? Em seis meses perdem-se todas as relações
e os amigos esquecem-se de nós. Nunca mais consegui trabalhar.
Kate esboçou um aceno de cabeça falsamente simpático. A
Ethel estava-se a preparar para vibrar o golpe do costume. Antes
que ela o pudesse fazer, Kate abriu a gaveta da secretária, agarrou nalgumas notas e estendeu-as a Ethel.
- Eu nunca abandono uma amiga - disse ela.- Vá para
outra cidade e veja se recomeça pelo princípio. Às vezes é bom
para quebrar o azar.
Ethel contou as notas e afastou-as com o desdém de quem
afasta uma vaza de pôquer... Quatro dez. Quarenta dólares! Com
certa emoção, articulou:
- Pensava que tivesse outra coisa para me oferecer.
- Porquê?
- Então não recebeu a minha carta?
- Qual carta?
- Ah! - disse Ethel. - Deve ter-se extraviado no correio. São
tão desorganizados! Enfim, a minha esperança era que me tomasse à sua conta. Ando tão em baixo. Até parece que sinto um peso
na barriga. - (Suspirou e, depois, falou tão depressa que Kate
compreendeu que ela decorara o discurso). -Talvez se recorde de
que eu sou muito dada aos palpites. Estou sempre a adivinhar coisas que hão-de acontecer. Quando sonho com alguma coisa, dá
sempre certo. Conheço um tipo que me disse que eu devia dedicar-me aos negócios. Ele até diz que eu sou um autêntico médium.
Lembra-se?
- Não - respondeu Kate.
- Ai não? Se calhar é porque não reparou. Todas as minhas
colegas sabiam. Eu disse-lhes uma data de coisas que aconteceram.
- Mas onde quer chegar?
- É que tive um sonho. Lembro-me dele porque foi na mesma noite em que morreu a Faye. - (Ergueu os olhos para a cara
impassível de Kate. Depois, prosseguiu): - Nessa noite estava a
chover e também chovia no meu sonho. Seja como for, estava
tudo molhado. Eu vi-a sair em sonhos pela porta da cozinha. Havia nuvens, mas a Lua aparecia de vez em quando. Tenho a certeza
de que era a senhora. Foi até ao fundo do jardim e fez qualquer
coisa. Não sei o que foi. Depois, voltou sem fazer barulho. E depois... E depois, morreu a Faye.
Deteve-se, aguardando alguma coisa, mas o rosto de Kate
mantinha-se inexpressivo. Ethel continuava à espera. Kate conservou-se silenciosa.
- Como já lhe disse, sempre tive confiança nos meus sonhos.
É engraçado, não havia nada no fundo do jardim, a não ser uns
frasquinhos partidos e a borracha dum conta-gotas.
Kate disse preguiçosamente:
- Nessa altura, levou-os a um médico. E que foi que ele encontrou nos frascos?
- Nunca fiz tal coisa.
- Mas devia ter feito.
- Não gosto de arranjar sarilhos a ninguém. Já me bastam
os que tenho. Guardei os cacos num sobrescrito e escondi-o.
Kate perguntou afavelmente:
- E vem pedir-me um conselho?
- Sim, minha senhora.
- Pois vou dizer-te o que penso - prosseguiu Kate. - Não
passas duma velha puta estafada que já não regula dos miolos.
- Não vai dizer-me que estou doida...
- Talvez não estejas. Mas estás doente e cansada. Já te disse que nunca abandonava as amigas. Podes voltar para cá, claro
que não é para tornares a trabalhar, mas sempre poderás dar uma
ajuda, limpar a casa e ajudar o cozinheiro. Dou-te cama, mesa e
roupa lavada, mais algum dinheiro para os teus alfinetes. Que achas?
Ethel deu dois ou três passos hesitantes.
- Não, minha senhora. Não me apetece... dormir aqui. Não
carrego o envelope comigo. Fique sabendo que o confiei a um
amigo.
- O que é que tu esperavas?
- Pensei que estivesse disposta a compreender de que lado
está o seu interesse e que me desse cem dólares por mês para
me ajudar a endireitar a vida e a tratar da saúde.
- Tu moras no Hotel Pacífico Sul?
- Sim, minha senhora. O meu quarto fica no corredor ao
lado do escritório, o guarda-nocturno é muito meu amigo e nunca
dorme durante o serviço. Um tipo estupendo.
Kate disse:
- É escusado molhares as calças, Ethel. Só deves pensar
numa coisa: quanto vai custar o teu tipo «estupendo»? Espera um
instante.
Kate contou seis novas notas de dez dólares e entregou-as a
Ethel, que perguntou:
- Manda-me o dinheiro no dia um de cada mês ou prefere
que venha cá buscá-lo?
- Está descansada que lá irá ter - disse Kate. - Acho que
devias mandar analisar os frascos -acrescentou.
- Só farei tal coisa se for obrigada a isso.
Ethel arrebanhou as notas. Exultava de alegria. Triunfara. Era
a primeira vez que a vida lhe sorria.
Depois de se ter ido embora, Kate foi ao fundo do jardim.
Após tantos anos, ainda restava um montinho no sitio onde a terra
fora revolvida.
Na manhã seguinte, o juiz escutou distraidamente o resumo
das actividades nocturnas, e perguntou ao quarto queixoso:
- Quanto lhe roubaram?
O homem de cabelos castanhos respondeu:
- Uns cem dólares.
O juiz voltou-se para o agente que efectuara a prisão.
- Quanto lhe encontraram?
- Noventa e seis dólares. Ela comprou uísque, cigarros e
jornais ao guarda da noite aí pelas seis da manhã.
Ethel gritou:
- Eu nunca vi esse tipo na minha vida!
O juiz ergueu a cabeça.
- Condenada duas vezes por prostituição e hoje por roubo.
Está-nos a sair muito cara. Saia desta cidade antes do meio-dia.
- (Virou-se para o polícia): - O xerife que a vá pôr fora da minha
comarca.- (Depois, falando novamente para Ethel):- Se a torno
a ver aqui, aplico-lhe a pena máxima, e isso significa que vai parar
a San Quentin. Percebeu?
Ethel pediu:
- Senhor juiz, desejava falar-lhe a sós.
- Porquê?
- É preciso. Trata-se duma maquinação.
- É sempre uma maquinação - disse o juiz.- O caso que
se segue.
Enquanto o xerife adjunto levava Ethel para o outro lado da
ponte que atravessa o rio Pajaro, o queixoso flanava pela Castroville
Street e, na altura em que ia entrar em casa de Kate, mudava de
ideias e arrepiava caminho para a barbearia Kenoe.
3
A visita de Ethel não afligiu muito Kate. Sabia que não fariam
caso das acusações duma prostituta. E a análise dos fragmentos
de vidro não revelaria nenhuns vestígios de veneno. Quanto a Faye,
já quase a esquecera e aquela cena não era mais do que um incidente desagradável.
Contudo, gradualmente, a recordação do facto foi-se avolumando. Uma noite, quando conferia a conta do merceeiro, sentiu-se varada por uma ideia fulgurante. Foi tudo tão rápido que desviou, os olhos da soma. Porque seria que aquela angústia tinha o
rosto sombrio de Charles? E o olhar admirado e alegre de Samuel
Hamilton? Porque tinha tido um arrepio?
Voltou a mergulhar nas contas. Mas a cara de Charles debruçava-se por cima do seu ombro. Doíam-lhe os dedos. Arrumou a
factura e vagueou pela casa. Era uma noite silenciosa... uma noite
de terça-feira. Não havia espectadores em número suficiente para
organizar o circo.
Kate sabia qual era o sentimento que infundia nas pensionistas: o terror. Ela assim o quisera. Odiavam-na mas isso não
tinha importância. As mulheres confiavam em Kate. Desde que
respeitassem as regras, Kate tomaria conta delas e protegê-las-ia. No contrato não se fazia referência ao amor nem ao respeito.
Kate nunca as recompensava e só avisava as infractoras duas
vezes antes de as despedir. As mulheres tinham a certeza de não
serem castigadas sem motivo.
Quando viam chegar Kate, as raparigas assumiam um falso ar
de naturalidade. Kate sabia por que era e não se surpreendia. Mas,
naquela noite, tinha a impressão de não estar sózinha. Acompanhava-a Charles, ora a seu lado, ora atrás dela.
Atravessou a sala de jantar, entrou na cozinha e abriu o frigorífico. Em seguida, levantou a tampa do caixote de lixo para ver
se não haveria desperdício. Fazia aquilo todas as noites.
Assim que saiu da sala, as mulheres interrogaram-se com o
olhar e encolheram os ombros. Eloíse, que falava com Joe, o homem dos cabelos castanhos, disse:
- Que se passa?
- Nada. Porquê?
- Não sei. Ela tinha um ar nervoso.
- Há qualquer coisa que não corre bem.
- O que é?
- Eh lá! - disse Joe. - Eu não sei nada e tu também não
sabes nada.
- Já percebi. Não tenho nada a ver com a vida dos outros.
- Tens toda a razão. Assim mesmo é que é.
- Não me interessa saber nada.
- Muito bem dito.
Kate tornou a atravessar a sala depois do seu giro pela casa.
- Vou deitar-me - disse ela a Joe. - Não me incomodes
sem motivo.
- Deseja alguma coisa?
- Desejo, sim. Faz-me chá. Passaste a ferro o teu vestido,
Eloíse?
- Sim, minha senhora.
- Ninguém diria.
- Pois não, minha senhora.
Kate não tinha sono. Pôs todos os papéis em ordem. Quando
Joe lhe levou o chá, pediu que colocasse o tabuleiro ao lado da
cama.
Enterrada nas almofadas, saboreando o chá, Kate reflectia.
Charles? Era isso mesmo.
Charles era inteligente e Sam Hamilton também o era a seu
modo. Fora isso que dera lugar à angústia. Eles eram inteligentes.
Sam e Charles tinham morrido, mas havia outros. Lentamente, foi
estudando o assunto.
«Se eu tivesse desenterrado os frascos, o que é que teria pensado e o que é que teria feito?» Encheu-se logo de medo. Porque é
que os frascos estavam partidos e enterrados? Não era veneno!
Porque os enterrara então? Imbecil! Devia tê-los atirado para a valeta ou para o caixote de lixo. O Dr. Wilde já morrera. Mas talvez
tivesse um ficheiro? Ela não sabia de nada. Se tivesse encontrado
os frascos e se soubesse o que eles continham, não teria perguntado a alguém: «Qual é o efeito do óleo de cróton sobre o organismo? Que acontece se ministrarmos pequenas doses com frequência?» A pessoa interrogada saberia responder. Muitas outras pessoas poderiam sabê-lo.
«E se ouvisse falar numa rica proprietária que morreu depois
de ter legado tudo a uma nova pensionista?» Kate sabia perfeitamente qual seria a sua primeira reacção. Que grande asneira
ter afastado a Ethel! Agora, ninguém a conseguiria achar. Devia
ter pago à Ethel e obrigá-la a devolver os cacos do frasco. Onde
estariam? Num sobrescrito... Mas onde? Como se poderia encontrar a Ethel?
A Ethel não tardaria a conhecer os motivos da expulsão. Era
estúpida mas poderia falar a alguém que o não fosse. E se ela
contasse a história: a doença de Faye, os sintomas, o testamento?
Kate arquejava e tinha a pele toda arrepiada. Mais valia partir
para Nova Iorque ou para outro lado qualquer. Era escusado vender
a casa. Não precisava de dinheiro. Até tinha de mais. Ninguém
conseguiria descobri-la. Pois sim, mas se fugisse e se alguém que
não fosse parvo ouvisse a história de Ethel? Não ligaria imediatamente
uma coisa à outra?
Kate levantou-se e tomou uma forte dose de sonífero.
Fora a partir de então que o medo nunca mais a largara. Quase ficou contente por saber que as dores provinham do artritismo.
Uma voz maldosa murmurara-lhe que aquilo talvez fosse o castigo.
Daí em diante, passou a ter repugnância em sair. Sabia que
os homens a olhavam e a conheciam. E se um deles tivesse a
cara de Charles ou os olhos de Samuel? Viu-se obrigada a fazer
um esforço para sair uma vez por semana.
Mandou construir a salinha cinzenta. Explicou que a luz lhe
fazia mal aos olhos e, a pouco e pouco, acabou por acreditá-lo.
Doíam-lhe sempre os olhos após um passeio pelas ruas. Cada vez
era maior o tempo que passava encafuada na salinha.
Há pessoas, como Kate, por exemplo, que conseguem sustentar simultaneamente duas teses contrárias. Ela acreditava que
a luz lhe fazia mal aos olhos, mas sabia, ao mesmo tempo, que a
salinha cinzenta era um esconderijo, uma caverna subterrânea,
um sítio onde os olhares não a podiam lobrigar. Um dia em que
estava sentada na sua poltrona, veio-lhe à ideia mandar abrir uma
saída secreta. Mas logo renunciou instintivamente. Deixaria de estar protegida. Se ela pudesse sair, também qualquer coisa poderia
entrar, essa coisa que deslizava no jardim, trepava pelas paredes e
a espreitava pelas janelas. Kate teve de fazer um esforço cada vez
maior para sair nas tardes de segunda-feira.
Quando Cal começou a segui-la, teve um medo terrível. E
quando se escondeu atrás do alfeneiro para o apanhar de surpresa,
já se sentia à beira do pânico.
Mas, naquela noite, a sua cabeça descansava nas fofas almofadas e as pálpebras fechavam-se deliciosamente sob a acção do
sonífero.
CAPÍTULO XLI
1
Assustada e seduzida ao mesmo tempo, a América caminhava imperceptivelmente para a guerra. Já havia mais de sessenta anos que as pessoas não eram sacudidas pela emoção. A
luta contra a Espanha, em Cuba, fora mais uma expedição do que
uma guerra. O Presidente Wilson fora reeleito em Novembro e, da
plataforma do comboio presidencial, prometera manter-se à margem dos conflitos europeus. Mas todos lhe aconselhavam firmeza,
o que significava, inevitavelmente, a guerra. O comércio prosperava
e os preços subiam. O país era percorrido por enviados da
Intendência britânica que adquiriam víveres, tecidos, metais e produtos químicos. O pulso do país batia a ritmo acelerado. Todos se
preparavam para a guerra, mas ninguém queria acreditar nela. No
vale do Salinas prosseguia a vida rotineira como se nada estivesse
para acontecer.
2
Cal ia para as aulas com Aron.
- Tens um ar cansado - disse Aron.
- Achas?
- Ontem à noite, ouvi-te entrar, já eram quatro horas. Que
andas tu a fazer até tão tarde?
- Passeio e penso. Que dirias se deixássemos a escola e se
voltássemos para o rancho?
- Para fazer o quê?
- Para ganharmos dinheiro para o papá.
- Só quero acabar o curso para me ir logo embora. Quem me
dera sair desta cidade. Toda a gente faz pouco de nós.
- Isso é imaginação tua.
- Não é, não. Não fui eu quem perdeu o dinheiro. Não fui eu
que tive a ideia idiota das alfaces. Apesar disso, é de mim que
troçam. Eu nem sei se o dinheiro que temos chega para eu tirar o
curso.
- O pai não fez de propósito.
- Mas, mesmo assim, perdeu tudo.
Cal disse:
- Só te falta mais um ano para ires para a Universidade.
- Julgas que não sei isso?
- Se trabalhares a valer, talvez possas fazer exame este Verão e entrar para a Universidade no Outono.
Aron deu uma volta:
- Isso é impossível.
- Não me parece. Fala ao director. Tenho a certeza de que o
Reverendo Rolf te ajudava.
Aron disse:
- Quero sair desta cidade e nunca mais cá voltar. Continuam
a chamar-nos Pés de Alface e a fazer pouco de nós.
- E a Abra?
- Depois se vê.
- Que dirá se te fores embora?
- Ela fará o que eu quiser.
Cal reflectiu um momento:
- Ouve. Vou tentar ganhar algum dinheiro. Se fizeres um
esforço e se fores a exame com um ano de antecedência, ajudar-te-ei a continuar os estudos.
- Eras capaz disso?
- Claro que era.
- Vou já falar com o director.
Aron apressou o passo. Cal chamou-o.
- Aron! Espera. Escuta. Se ele te disser que é possível, não
contes nada ao papá.
- Porquê?
- É para lhe fazermos uma surpresa agradável.
- Que vantagem tem isso?
- Não tem?
- Não. Parece uma parvoíce.
Cal sentiu uma vontade desesperada de gritar: «Eu sei quem é
a nossa mãe e até ta posso mostrar. »
Seria o suficiente para o meter na linha.
Cal encontrou Abra à entrada da escola. A sineta ainda não
tinha tocado.
- O Aron anda esquisito - disse ele.
- É possível.
- Tu deves saber porquê.
- Ele anda nas nuvens. A culpa é do Reverendo.
- Ele costuma acompanhar-te a casa?
- Costuma, mas parece que se tornou transparente. Já não
toca no chão. É como se tivesse asas.
- Anda chateado com a história das alfaces.
- Bem sei - disse Abra. - Tenho tentado acalmá-lo, mas ele
deve estar convencido de que assim se torna mais interessante.
- Que queres tu dizer?
- Nada - respondeu Abra.
Naquela noite, depois do jantar, Cal pediu licença ao pai para ir
ao rancho na sexta-feira seguinte. Adam voltou-se para ele:
- Para fazer o quê?
- É só para deitar uma vista de olhos.
- O Aron vai contigo?
- Não, tenciono ir só.
- Não tenho objecção nenhuma a fazer. E você, Lee, tem?
- Não- respondeu Lee.
- Pensas a sério em dedicar-te à lavoura? - perguntou Lee
observando Cal.
- Talvez. Se tu me confiasses o rancho, papá, estava disposto a explorá-lo.
- O arrendamento ainda dura mais de um ano.
- E depois, poderia ir para lá?
- E os teus estudos?
- Nessa altura, já terei acabado.
- Logo se vê - disse Adam. - Talvez tenhas vontade de ir
para a Universidade.
Quando Cal saiu, Lee acompanhou-o.
- Porque queres tu lá ir? - perguntou.
- Para passear.
- Já percebi. Não me queres meter no segredo.
Lee dispunha-se a entrar novamente em casa, mas mudou
de ideias e chamou Cal. O rapaz deteve-se.
- Tiveste alguma contrariedade, Cal?
- Não.
- Eu tenho um pé-de-meia de cinco mil dólares. Está à tua
disposição.
- Para quê?
- Não sei - disse Lee.
3
Will Hamilton gostava do seu escritório envidraçado. O campo
das suas actividades não se confinava ao comércio de automóveis,
mas preferia manter-se na garagem.
Costumava sentar-se na sua grande poltrona de coiro encarnado e passava a maior parte do tempo saboreando a vida regalada
que conseguira alcançar. Sempre que lhe falavam no irmão Joe,
que ganhava tanto dinheiro na publicidade, Will respondia que, em
comparação, ele não passava duma grande rã num pequeno charco.
«As grandes cidades metem-me medo», dizia ele. «Eu não
passo dum rústico». E gostava de ouvir o riso provocado por esta
frase. Aquilo só demonstrava que os amigos sabiam que ele desfrutava uma óptima situação.
Cal foi visitá-lo num sábado de manhã. Perante o olhar espantado de Will, explicou:
- Chamam-me Cal Trask.
- Ah! pois claro! Como está crescido! O seu pai também veio?
- Não, vim só.
- Então, sente-se. Não fuma, pois não?
- Só cigarros, de vez em quando.
Will pôs um maço de Murads em cima da secretária. Cal pegou nele, mas largou-o logo.
- Fica para mais tarde, obrigado.
Will observou o jovem rosto sombrio. Aquele rapaz agradava-lhe.
«É inteligente, pensou. Não é dos que se deixam levar. »
- Suponho que tenciona dedicar-se aos negócios - disse
em voz alta.
- Tenciono, sim. Penso explorar o nosso rancho quando sair
da escola.
- Isso não dá nada - disse Will. - Os lavradores não ganham um tostão. Os lucros vão todos para os intermediários. A
lavoura é um negócio desgraçado.
Will sentia que Cal o examinava, o avaliava, o experimentava.
Não podia deixar de o aprovar.
Cal, embora decidido, não foi direito ao fim.
- O senhor não tem filhos?
- Não, e lastimo muito. É esse mesmo o meu maior desgosto. Porque pergunta?
Cal ignorou a pergunta.
- Seria capaz de me dar um conselho?
Will sentiu-se invadido por uma baforada de prazer.
- Se estiver ao meu alcance, é com muito gosto. Que deseja
saber?
Cal fez então uma coisa que Will Hamilton aprovou, como
homem experimentado que era. Cal empregou a candura como
arma.
- Queria ganhar muito dinheiro e gostava que me dissesse o
que hei-de fazer.
Will refreou a vontade de rir. A frase talvez fosse ingénua,
mas Cal não o era.
- Isso é o desejo de toda a gente. Que entende por muito
dinheiro?
- Vinte ou trinta mil dólares.
- Que Deus nos acuda! - exclamou Will.
E debruçou-se para o rapaz. Tomou, então, a liberdade de rir,
mas não era para troçar de Cal. Este também se pôs a sorrir.
- Pode dizer-me porque é que quer ganhar tanto dinheiro? perguntou Will.
- Posso, sim - disse Cal. - Vai já saber.
Pegou no maço de Murads, tirou um dos cigarros achatados
com ponta de cortiça e acendeu-o.
- O meu pai perdeu muito dinheiro.
- Bem sei - atalhou Will. - Eu bem o preveni de que era
perigoso lançar vagões de alfaces naquela aventura.
- Ah!sim? E porquê?
- Não havia garantias - explicou Will. - Um comerciante
deve proteger sempre a retaguarda. Em caso de acidente, ele não
dispunha de nenhuns recursos, e foi o que sucedeu. Continue.
- Eu quero ganhar o dinheiro necessário para lhe devolver o
que ele perdeu.
Will esbugalhou os olhos.
- Porquê?
- Porque quero.
- Gosta muito dele?
- Gosto.
A cara gorda de Will contorceu-se enquanto ele era açoitado
pelo vento duma recordação. Não foi um lento regresso ao passado, mas uma imagem bem definida que lhe surgiu. Todos aqueles anos, uma paisagem, um desespero, tudo se imobilizou e cristalizou como num instantâneo fotográfico. Lá estavam Samuel,
irradiante, belo como o Sol, elegante como um voo de andorinha;
Tom, chocando um fogo sombrio; Una, que cavalgava as tempestades; a deliciosa Mollie; Dessie e o seu riso; George e a sua elegância e o seu perfume que enchia uma casa e, depois, Joe, o mais
novo, o adorado. Cada um deles, sem o mínimo esforço, trouxera
um dom à família.
Não há ninguém que não possua um cofre onde encerra as
suas dores e cuja chave não confia a ninguém. Will dissimulara o
seu atrás das gargalhadas, e nunca deixara que o ciúme viesse à
tona. Pensava de si mesmo que tinha o espírito lento, conservador,
sem génio, terra a terra. Não havia sonho de envergadura que o
fizesse elevar, não havia desespero que o esmagasse. Era o homem das coisas no seu lugar que se mantinha no circulo familiar
graças a uma fraca contribuição: a prudência, a lucidez e a vontade. Era ele quem fazia as contas, contratava os advogados,
encomendava os funerais e, eventualmente, liquidava as facturas. Os outros nem sabiam que precisavam dele. Ele conhecia a
arte de ganhar dinheiro e de o conservar. Julgava ser desprezado
pelos Hamilton precisamente por causa desse dom. Sempre gostara deles e estava sempre disposto a pagar os erros que cometiam. Pensava que tinham vergonha dele e lutava desesperadamente para continuar a ser um deles. Fora tudo isso que detivera
o avanço do tempo.
Os olhos um pouco proeminentes estavam húmidos e fitavam
um ponto para lá de Cal. O rapaz perguntou:
- Que tem, Sr. Hamilton? Não se sente bem?
Will não compreendera a família. Ela aceitara-o sem saber
que havia algo a compreender. E agora aparecia-lhe aquele rapaz, franco, transparente, próximo. Era aquele o filho que ele devia ter tido, ou o irmão, ou o pai. As personagens do instantâneo
recomeçaram a mover-se. Will sentiu-se atraído por Cal que não
fizera um gesto, continuando à espera.
Will obrigou o olhar a mudar de direcção. Não sabia quanto
tempo durara o seu silêncio.
- Estava a pensar - disse desajeitadamente.
Mas deu logo à voz o tom severo:
- Pediu-me qualquer coisa. Eu sou um negociante. Não dou;
vendo.
- Pois.
Cal mantinha-se na defensiva, mas compreendia que Will
Hamilton gostava dele.
Will disse:
- Vai responder-me à pergunta que vou fazer. Está disposto
a dizer a verdade?
- Depende - disse Cal.
- Prefiro assim. Não quer comprometer-se antes de conhecer a pergunta. É inteligente e honesto. Muito bem. . . Sei que tem
um irmão. O seu pai gosta mais dele do que de si?
- Como toda a gente - respondeu calmamente Cal. - Toda
agente prefere o Aron.
- E você?
- Eu também. Pelo menos...
- Que quer dizer esse «pelo menos»?
- Às vezes acho-o estúpido, mas também gosto dele.
- Muito bem. E do seu pai?
- Gosto muito dele - disse Cal.
- Mas ele prefere o seu irmão?
- Não sei.
- Disse que queria devolver ao seu pai o dinheiro que ele
perdeu. Porquê?
O olhar de Cal, geralmente desconfiado, adquiriu uma acuidade insuportável. Cal vivia tão chegado à sua alma quanto é possível fazê-lo.
- O meu pai é bom - disse ele. - E eu quero dar-lhe o que
puder, visto não ser bom.
- Isso torná-lo-ia melhor?
- Não - respondeu Cal. - Os meus pensamentos são ruins.
Will nunca encontrara ninguém que falasse uma linguagem tão
despida. Sentia-se embaraçado diante daquela nudez, mas sabia
qual era a segurança de Cal, desembaraçado da sua armadura.
- Mais uma pergunta - disse ele. - Mas a esta não é preciso responder. Pessoalmente, acho que não responderia. Ei-la:
suponhamos que conseguia arranjar o dinheiro e o dava ao seu pai.
Não ficaria com a impressão de que estava tentando comprar-lhe o
amor?
- Lá isso é verdade.
- Era tudo o que eu queria saber.
Will deixou cair a testa húmida entre as mãos. Nunca se sentira tão perturbado na sua vida. Cal pressentia o triunfo ao alcance
da mão. Sabia que ganhara, mas não o dava a entender.
Will endireitou a cabeça, tirou os óculos e limpou-os.
- Venha daí dar uma volta de carro - disse ele.
Naquela época, Will possuía um enorme Winton com um potente motor coberto por uma tampa tão grande que mais parecia
um longo ataúde. Deixaram King City pelo sul e meteram pela estrada municipal. A Primavera desabrochava por toda a parte, as
flores resplandeciam nos prados e os pássaros cantavam em todos
os ramos.
O pico Blanco elevava-se a Poente, todo coroado de neve, e,
no Vale, as filas de eucaliptos pareciam escorrer prata.
Quando chegou ao caminho que levava ao rancho dos Trask,
Will parou à beira da estrada. Não abrira a boca desde que tinham
saído de King City. O potente motor calou-se depois de emitir um
silvo prolongado.
Will, olhando para a frente, perguntou:
- Cal, quer ser meu sócio?
- Quero, sim, senhor.
- Não costumo associar-me com quem não tem dinheiro. É
evidente que lho podia emprestar, mas isso só daria maçadas.
- Eu posso arranjar o dinheiro - disse Cal.
- Quanto?
- Cinco mil dólares.
- Acha... Não acredito.
Cal não retorquiu.
- Pensando melhor, acredito - disse Will. - Emprestado?
- Emprestado, sim, senhor.
- Quais são os juros?
- Nenhuns.
- Boa ideia. E onde?
- Não lhe posso dizer.
Will abanou a cabeça e riu. Estava encantado.
- Talvez não passe dum imbecil, mas creio em si. Aliás, não
sou nenhum imbecil.
Ligou o motor e deixou-o aquecer.
- Oiça. Costuma ler os jornais?
- Costumo.
- Estamos quase a entrar na guerra.
- É o que parece.
- Assim pensa muita gente. Sabe qual é o preço actual do
feijão? Quanto é que pagam por cem sacos de feijão em Salinas?
- Não tenho a certeza, mas julgo que anda à volta de seis a
sete cêntimos por quilo.
- E diz que não tem a certeza? Como é que sabe?
- Faço tenção de explorar o rancho.
- Estou a ver. Mas não precisa de fazer isso. Seria tempo
perdido. O rendeiro do seu pai chama-se Rantani. É um suíço-italiano, que percebe do ofício. Actualmente, está cultivando cerca
de quinhentos acres. Se nós lhe garantirmos dez cêntimos por quilo e lhe dermos um sinal para a semente, está disposto a plantar
feijão. O mesmo acontece com todos os outros lavradores da região. Poderíamos contratar cinco mil acres de feijão.
Cal perguntou:
- E que vamos nós fazer do feijão a dez cêntimos, quando
só pagam por ele sete cêntimos? Ah! já percebi. Mas tem a certeza?
Will perguntou:
- Ficamos sócios?
- Sim, senhor.
- Trate-me por Will.
- Está bem, Will.
- Quando poderá arranjar os cinco mil dólares?
- Quarta-feira próxima.
- Toque.
E, solenemente, o homem gordo e o rapazinho magro trocaram um aperto de mão.
Will, sem largar a mão de Cal, disse-lhe:
- Agora passamos a ser sócios. Eu estou em ligação com a
Junta de Compras Britânica e tenho um amigo na Intendência. Poderemos vender todo o feijão que conseguirmos desencantar a
vinte cêntimos o quilo ou mais.
- Quando poderá vendê-lo?
- Mesmo antes de ter sido semeado! Quer ir ao rancho falar
com o Rantani?
- Quero, sim senhor.
Will destravou o Winton e o grande carro verde lá foi aos saltos pela estrada fora.
CAPÍTULO XLII
Os outros é que sofrem sempre com a guerra. Em Salinas,
todos sabíamos que os Estados Unidos eram a maior e a mais
poderosa nação do mundo. Cada americano era um atirador nato e
um americano valia dez ou vinte inimigos.
A expedição de Pershing ao México, para combater Villa, contribuíra para destruir um dos nossos mitos. Acreditávamos sinceramente que os Mexicanos atiravam de esguelha e que dormiam todo
o dia. Afinal, quando as nossas tropas voltaram de orelha murcha,
ficámos a saber que tudo isso era falso. Os Mexicanos, raios os
partam!, sabiam atirar. E os cavaleiros de Vilia tinham destroçado
os nossos campeões. Não haviam sido suficientes as duas tardes
mensais de treinos. Para mais, os Mexicanos enrolaram o nosso
Pershing conforme lhes apeteceu. Quando a disenteria se aliou
aos Mexicanos, foi o fim do mundo. Os nossos soldados só se
recompuseram passados muitos anos.
Seja como for, não comparávamos os Alemães aos Mexicanos. A pílula tornou a ser dourada. Um americano valia vinte alemães. Partindo deste principio, bastava que fizéssemos um gesto
para que o Kaiser caísse de joelhos.
Ele não ousaria atacar o nosso comércio... Mas atacou. Ele
não ousaria afundar os nossos barcos... Mas afundou. Tal atitude,
da parte dele, era ridícula, mas como a tomou, só nos restava
entrar na luta.
A guerra, pelo menos a princípio, só atingiu os outros. Nós,
eu, a minha família, os meus amigos, ocupávamos excelentes lugares donde seguíamos o combate com interesse apaixonado.
A guerra atinge sempre os outros e são os outros que se
deixam matar. Virgem Santíssima!... também não era verdade. Os
horríveis telegramas começaram a deslizar por debaixo das portas,
comunicando a dor e o luto, e os mortos eram gente nossa. Não
era o facto de estarmos a seis mil milhas da fúria e do estrondo que
deixava de nos poupar.
Uma época medonha. As Liberty Belles podiam desfilar de
chapéu branco e alvo saiote, o nosso tio podia tornar a impingir o
discurso do 4 de Julho para vender bónus da Defesa, nós podíamos, na escola, brandir espingardas de pau e decorar o Manual de
Infantaria durante a aula de educação física, que tudo era escusado. Deus nos valha! Não era por isso que Martin Hopps deixava de
ser morto, nem o filho dos Berges, que morava do outro lado da rua,
de ser reduzido a migalhas por um obus. Lembram-se dele, não é
verdade? Era aquele bonito rapaz por quem a minha irmã mais nova
andava apaixonada desde os três anos de idade.
Os rapazes novos, de mala na mão, desfilavam arrastando os
pés pela Main Strect, em direcção à gare da Pacífico Sul. Lá iam,
como carneiros, precedidos pela banda de Salinas que tocava Stars
and Stripes Forever, enquanto as famílias choravam e a música
soava a Requiem. Os recrutas não olhavam para as mães. Faltava-lhes a coragem. Nunca acreditáramos que a guerra pudesse chegar até nós.
Os boatos principiaram a fervilhar em Salinas. Umas pessoas
tinham sido informadas por um soldado... Não nos diziam a verdade. Os nossos homens eram enviados para a frente de batalha
sem armas. Os transportes de tropas eram afundados e o Governo ocultava-nos o facto. O poderio do exército alemão era tão grande que nós não tínhamos nenhuma probabilidade de vencer. O Kaiser
era um tipo esperto. Até já se preparava para desembarcar na
América. O Presidente Wilson ainda estaria disposto a moer a
mesma cantiga? Com certeza que não. Em geral, as tais pessoas
bem informadas eram as que tinham dito que um americano valia
vinte alemães... precisamente as mesmas.
Pequenos grupos de soldados ingleses em uniforme de campanha - mas tinham um ar elegante - percorriam o país e compravam tudo o que não estava pregado ao chão. E pagavam bem.
Na sua maioria, eram mutilados, mas usavam farda apesar disso.
Entre outras coisas, adquiriam feijão, pois o feijão é fácil de transportar, conserva-se bem e alimenta o soldado. O feijão - muito
raro - valia vinte e cinco cêntimos o quilo. E os lavradores arrependiam-se de o terem vendido por quatro cêntimos na planta,
seis meses antes da subida de preços.
Toda a nação e o vale do Salinas mudaram de disco. Primeiro,
tínhamos berrado que íamos arrasar Heligoland, enforcar o Kaiser e
reparar os estragos que os malandros dos estrangeiros haviam feito na própria casa. E, de repente, pusemo-nos a cantar: «Na maldição vermelha da guerra, ergue-se a enfermeira da Cruz Vermelha.
Ela é a rosa da Terra de Ninguém». E depois: «Está, está, ligue-me
para o Paraíso, que está lá o meu paizinho». E mais ainda: «É a
oração duma criança que voa para as estrelas quando cai a noite:
Ó meu Deus, pede ao papá que tenha cuidado consigo. »
Parecíamos um garoto espadaúdo que leva um soco no nariz
mal começa a zaragata. Dói-lhe e só deseja que aquilo acabe depressa.
CAPÍTULO XLIII
1
Um dia, quase no fim do Verão, Lee entrou em casa com o
grande cesto das compras no braço. Desde que habitava em Salinas, vestia-se como um conservador. Sempre que saía, punha um
fato preto. Usava camisas brancas, altos colarinhos engomados e
enrolava ao pescoço umas fitas pretas iguais às dos senadores
sulistas. Cobria a cabeça com um chapéu de coco, como se precisasse de espaço para guardar uma trança. O seu aspecto era esplêndido.
Certa vez, Adam manifestara-lhe a sua admiração e Lee respondera a sorrir:
- É preciso. Só uma pessoa rica se vestia tão mal como o
senhor. Os pobres têm de se vestir bem.
- Pobre! - explodira Adam. - Um destes dias, é você quem
nos empresta dinheiro.
- Quem sabe? - respondera Lee.
Naquela tarde, ao chegar, pôs o pesado cesto no chão.
- Vou ver se faço uma sopa de abóbora, à moda chinesa.
Tenho um primo no bairro chinês que me deu a receita. Ele trabalha
numa casa de jogo.
- Pensava que não tivesse parentes - disse Adam.
- Todos os chineses são aparentados e o nome de Lee é
mais um laço que nos une. O meu primo é um Suey Dong. Ainda
há muito pouco tempo teve de fazer uma cura de repouso, e aproveitou a oportunidade para aprender a cozinhar. Mete-se a abóbora
numa panela, corta-se a parte de cima com todo o cuidado e enfia-se lá dentro uma galinha, cogumelos, avelãs e uma pitada de gengibre. Depois, torna-se a pôr a tampa na abóbora e deixa-se cozer,
a fogo lento, durante dois dias. Deve ser estupendo.
Adam estava estiraçado na poltrona, com as mãos enlaçadas
atrás da nuca, e sorria para o tecto.
- Muito bem, Lee. Muito bem - disse ele.
Adam endireitou-se.
- Afinal, julgamos conhecer os nossos filhos e verificamos
que é um engano.
Lee sorriu.
- Passou-lhe despercebida alguma particularidade da vida
deles? - perguntou.
Adam soltou um risinho.
- Só por acaso é que descobri - disse ele. - Eu já tinha
reparado que o Aron se ausentava muito, mas pensava que andasse a divertir-se lá por fora.
- A divertir-se? - disse Lee. - Há muitos anos já que ele
deixou de se divertir.
- Seja como for - prosseguiu Adam - encontrei esta tarde o
Sr. Kilkenny; sabe quem é, o reitor do liceu? Ele imaginava que eu
estivesse ao par. Sabe o que é que o meu filho anda a preparar?
- Não - disse Lee.
- Já estudou o programa do ano que vem e vai fazer os dois
anos num só para poder entrar para a Universidade. O Kilkenny
está convencido de que ele passa. Que me diz a isto?
- Digo que é extraordinário - respondeu Lee. - Porque será
que ele fez isso?
- Para ganhar um ano.
- E depois?
- Valha-me Deus!, Lee. Então não vê que ele é ambicioso?
Não compreende?
- Não - disse Lee. - Nunca consegui compreender.
Adam disse:
- Ele nunca deixou escapar uma palavra. Até o irmão é capaz
de não saber.
- Ele é capaz de querer fazer-lhe uma surpresa. O melhor é
não falarmos no caso.
- Deve ter razão, Lee. Não imagina o orgulho que sinto. São
coisas como esta que me fazem feliz. Quem me dera que o Cal
fosse tão ambicioso como ele.
- Talvez seja - disse Lee. - Quem nos diz que também
não tem um segredo?
- Tudo é possível. A verdade é que quase não lhe temos posto a vista em cima nestes últimos tempos. Acha que seja bom para
ele nunca estar em casa?
O Cal anda a ver se se descobre - disse Lee. - Penso que
isso de andar a brincar às escondidas com ele mesmo nada tem de
extraordinário. Certas pessoas levam toda a vida nisso e nunca
conseguem descobrir-se.
- Veja lá uma coisa destas - disse Adam. - Realizar o
trabalho de dois anos num ano! Quando nos disser, temos de lhe
dar uma prenda.
- Um relógio de oiro.
- Isso mesmo - disse Adam. - Vou comprar um e mandar
gravá-lo. Que acha que devo mandar inscrever?
- O joalheiro logo lhe dirá - respondeu Lee. - Passados os
dois dias, tiram-se os ossos à galinha e torna-se a metê-la na
abóbora...
- Que galinha?!
- O caldo de abóbora - explicou Lee.
- Temos dinheiro que chegue para mandá-lo para a Universidade,Lee?
- Se tivermos cuidado e se ele não adquirir hábitos dispendiosos...
- Descanse que não adquire.
- Também eu pensava não os ter... e, afinal, tenho.
E Lee olhou com admiração para o tecido do casaco.
2
A reitoria da igreja episcopal de São Paulo era um espaçoso
edifício, que fora construído para ministros com família numerosa.
O Sr. Rolf, homem solteiro de hábitos simples, condenara quase
todas as portas. Mas, quando Aron queria estudar, o Reverendo
punha à sua disposição uma grande sala e ajudava-o a trabalhar.
O Sr. Rolf gostava muito de Aron. Gostava da beleza angélica
do seu rosto, das faces redondas e macias, das ancas estreitas e
das pernas finas. Gostava de se sentar na sala onde Aron estudava
e observar a tensão do esforço no rosto do rapaz. Compreendia que
Aron não conseguisse estudar em casa, onde a atmosfera era imprópria para a concentração do espírito. O Sr. Rolf tinha a impressão de que Aron era criação sua, o seu filho espiritual, o seu
contributo à Igreja. Encaminhando-o para o celibato, julgava conduzi-lo para uma angra de paz e sossego.
As suas discussões eram prolongadas e íntimas.
- Eu sei que sou criticado - disse um dia o Sr. Rolf -,
acusam-me de ser católico por não querer admitir que a confissão
seja um sacramento menos importante do que a comunhão. Mas
oiça bem o que lhe vou dizer: estou disposto a restabelecer a confissão, mas gradualmente e com muito tacto.
- Tenciono fazer o mesmo quando tiver uma igreja.
- É preciso o maior cuidado.
Aron disse:
- Gostava que houvesse na nossa Igreja... que houvesse...
mais vale não estar com rodeios... gostava que houvesse lugares
como os conventos dos Agostinhos ou dos Franciscanos, lugares
onde nos pudéssemos retirar. Às vezes, sinto-me conspurcado.
Desejaria abandonar o mundo e purificar-me.
- Sei o que sente - disse o Sr. Rolf com fervor - mas não
posso concordar consigo. Não creio que Jesus, Nosso Senhor,
deseje que o seu clero viva separado do mundo. Não se esqueça
de quanto Ele insistiu para que pregássemos o Evangelho, auxiliássemos o doente e o desamparado, e não hesitássemos em
nos conspurcar se estivesse em jogo a salvação duma alma. Devemos respeitar a integridade do Seu exemplo. - (Passou-lhe um
clarão pelo olhar e a voz tornou-se rouca, como se fizesse um
sermão). -Talvez não devesse dizer-lhe isto e espero que não me
acuse de orgulho. Mas a verdade é que me sinto arrebatado. Nas
últimas cinco semanas, uma mulher tem assistido a todos os ofícios nocturnos. Não me parece que a possa avistar do coro. Ela
senta-se sempre no último banco, do lado esquerdo... Sim, claro
que a pode ver. Usa véu e retira-se sempre antes de eu ter tempo
para voltar.
- Quem é? - perguntou Aron.
- Bom, é melhor dizer-lhe já porque são coisas que acabará
por saber. Fiz umas indagações muito discretas e... Não consegue
adivinhar... É... enfim, ela tem uma casa de má nota.
- Aqui, em Salinas?
- Aqui, sim. - (O Sr. Rolf inclinou-se para Aron). - Estou a
ver-lhe a repulsa estampada no rosto. Temos de passar por cima
dessas coisas. Não se esqueça de Nosso Senhor e de Maria Madalena. Sem querer incorrer no pecado de orgulho, sempre lhe direi
que gostaria de redimir essa criatura.
- Que vem ela cá buscar? - perguntou Aron.
- Deve vir procurar o que lhe podemos oferecer: a salvação. É
preciso muito tacto. Já estou a ver a cena: um dia, bate-me à porta
e suplica que a deixe entrar - essa gente é muito tímida. Espero,
então, Aron, ter a paciência e a sabedoria necessárias. Acredite no
que lhe digo: quando acontece uma coisa dessas, quando uma
alma perdida procura a luz, trata-se da maior e da mais maravilhosa
experiência que a um pastor é dado viver. Nós estamos na terra
para isso, Aron. É para isso que estamos na terra. - (O Sr. Rolf
respirava com dificuldade). - Permita Deus que eu não falhe.
3
Adam Trask imaginava a guerra através das vagas recordações
que conservava da campanha contra os índios. Ninguém sabia o
que era uma chacina generalizada. Lee pôs-se a ler a História da
Europa, tentando prefigurar o futuro pelo que sucedera no passado.
Lizza Hamilton morreu com um sorrisinho murcho e as maçãs
do rosto tornaram-se surpreendentemente bicudas depois de ficarem lívidas.
Adam aguardava com impaciência que Aron lhe viesse comunicar o resultado dos exames. O relógio de oiro maciço estava à
espera debaixo duma pilha de lenços. Adam dava-lhe corda e via se
regulava comparando-o com o seu.
Lee já tinha as suas instruções. Na noite do grande dia, assaria um peru e faria um bolo.
- Tem de ser uma festa - dissera Adam. - E se comprássemos champanhe?
- Boa ideia - respondera Lee. - Já leu alguma vez Von
Clausewitz?
- Quem é?
- É um homem que escreve coisas bastante desanimadoras.
Só uma garrafa de champanhe?
- Há-de chegar. É para fazer uma saúde ao Aron.
Não lhe passava pela cabeça que o filho pudesse reprovar.
Uma tarde, Aron entrou em casa e perguntou a Lee:
- Onde está o meu pai?
- Está a fazer a barba.
- Esta noite não janto em casa - informou Aron.
Na casa de banho, pôs-se atrás do pai e falou à cara ensaboada que se reflectia no espelho.
- O Sr. Rolf convidou-me para jantar na reitoria.
Adam limpou a navalha a uma folha de papel higiénico.
- Muito bem - disse.
- Posso tomar banho?
- Só me demoro mais um minuto - respondeu Adam.
Quando Aron atravessou a sala, deu as boas-noites a toda a
gente e saiu. Cal e Adam acompanharam-no com os olhos.
- Tornou a servir-se da minha água-de-colónia - disse Cal.
- Até aqui cheira.
- Pôs-se de ponto em branco - comentou Adam.
- Ele tem razões para estar satisfeito. Praticou uma verdadeira proeza.
- Que proeza?
- O exame. Ele não te disse? Ficou aprovado.
- Ah pois, o exame - disse Adam. - Disse-me, sim. Trabalhou a valer. Sinto-me muito orgulhoso. Acho que lhe vou oferecer um relógio de ouro.
Cal atirou com violência:
- Ele não te disse coisa nenhuma!
- Disse, sim, disse-me esta manhã.
- Esta manhã ainda ele não sabia - replicou Cal.
E saiu.
Caminhou apressadamente através das trevas que se adensavam, atravessou a Central Avenue, passou rente ao parque e à
loja de Stonewall Jackson, indo até ao fim da rua, onde deixava de
haver candeeiros e começava a estrada municipal que tornejava a
casa dós Tollot.
Por volta das dez horas, Lee saiu para ir pôr uma carta no
correio e encontrou Cal sentado no primeiro degrau da entrada.
- Por onde andaste? - perguntou.
- Tenho andado a passear.
- Que se passa com o Aron?
- Não sei.
- Ele parece andar rancoroso com alguém. Queres vir comigo
ao correio?
- Não.
- Que estás tu a fazer aqui?
- Vou partir-lhe a cara.
- Não faças isso - disse Lee.
- Porquê?
- Porque não podes. Ele dava cabo de ti.
- Talvez tenhas razão - disse Cal. - Que filho da mãe!
- Vê lá como falas.
Cal riu-se.
- Acho que vou contigo.
- Já leste Von Clausewitz?
- Nunca ouvi falar.
Quando Aron regressou a casa, era Lee quem o esperava no
primeiro degrau da entrada.
- Poupei-te uma sova - disse Lee. - Senta-te.
- Vou-me deitar.
- Senta-te. Preciso de falar contigo. Porque não disseste ao
teu pai que tinhas passado no exame?
- Ele era incapaz de compreender.
- O que tu merecias era um pontapé dos rijos.
- Não gosto que me falem nesses termos.
- E porque julgas tu que eu os utilizo? Não pertenço ao número das pessoas que são grosseiras sem querer. Aron, o teu pai só
vivia na expectativa dessa notícia.
- Como é que ele sabia?
- Tu próprio é que lhe devias ter dito.
- Não tens nada com isso.
- Vais já ao quarto dele e acordá-lo caso esteja a dormir, mas
não creio que seja preciso, para lhe dares a novidade.
- Isso é que não vou.
Lee perguntou baixinho:
- Aron, já alguma vez tiveste de lutar com alguém duas vezes
mais pequeno do que tu?
- Onde queres tu chegar?
- Não conheço nada tão embaraçoso. O pequeno adversário atira-se a nós e chega o momento em que temos de lhe bater.
Não há nada pior. Aí é que começam as verdadeiras contrariedades.
- Que estás tu a dizer?
- Se não fizeres o que te peço, Aron, vou bulhar contigo. Não
achas ridículo?
Aron tentou passar. Lee postou-se diante dele, com os punhos
fechados, mas a pose era tão cómica que desatou a rir.
- Não sei como há-de ser, mas vou experimentar.
Aron recuou, enervado. Por fim, resolveu sentar-se no degrau e Lee suspirou.
- Apre! - disse ele.- Acabou-se. Sempre evitámos uma
coisa terrível. Que tens tu, Aron? Antigamente, costumavas desabafar sempre comigo.
Subitamente, Aron falou:
- Quero ir-me embora desta cidade nojenta.
- Não digas isso. É uma cidade como outra qualquer.
- Eu não sou de cá. Quem me dera nunca aqui ter vindo.
Não sei o que tenho, mas quero ir-me embora.
Lee passou-lhe o braço pelos ombros robustos.
- Estás a ficar um homem - disse ele. -Talvez seja essa a
razão. É a altura da vida em que somos submetidos às mais duras
provações. Pomo-nos a olhar para dentro de nós e a contemplar-nos com horror. Chegamos a acreditar que os estranhos conseguem ver o que vai cá por dentro. Tudo o que é repelente se torna
mais repelente ainda, e a pureza parece muitíssimo mais pura.
Tudo isso passa, Aronw Basta esperar um bocadinho. Bem sei que
não te parecerá muito reconfortante, pois não acreditas que seja
possível, mas nada mais posso fazer por ti. Faz por compreender
que as coisas não são tão boas nem tão más como parecem. Mas,
apesar do que disse, talvez te possa ajudar. Vai deitar-te e, amanhã
de manhã, levanta-te cedo e vai dar a notícia de que passaste no
exame a teu pai. Mostra-te satisfeito. O teu pai está muito mais só
do que tu, pois já não tem nenhuma esperança de futuro. Toma a
iniciativa, era um dos conselhos que costumava dar Sam Hamilton.
Faz os gestos da felicidade que talvez te sintas feliz. Faz os gestos, faz... Agora, vai deitar-te. Eu vou fazer um bolo para o pequeno
almoço. Aron... o teu pai escondeu um presente debaixo do teu
travesseiro.
CAPÍTULO XLIV
1
Abra só aprendeu a conhecer a família Trask depois de Aron
ter partido para a Universidade, pois ambos viviam enclausurados
na sebe do seu amor. Quando Aron se afastou, a cerca ruiu e Abra
afeiçoou-se aos outros Trask, descobrindo que tinha mais confiança em Adam e que gostava mais de Lee do que do próprio pai.
Pelo que respeitava a Cal, sentia-se indecisa. Umas vezes
despertava-lhe raiva, outras pena e outras, ainda, apenas curiosidade. Parecia estar sempre disposto a brigar com ela. Como ignorava os sentimentos de Cal, não se mostrava inclinada a gostar
dele. E ficava aliviada quando chegava a casa dos Trask e Cal não
estava lá para a olhar de soslaio a julgá-la, observá-la e desviar o
olhar assim que se via surpreendido.
Abra era uma mulher robusta, bem constituída e só esperava
pelo sacramento do matrimónio - mas esperava. Adquiriu o hábito de ir a casa dos Trask quando saía da escola e de se sentar
na cozinha para ler a Lee trechos da carta quotidiana de Aron.
Aron aborrecia-se em Stanford. Todas as cartas vinham impregnadas do desejo de rever a amiga. Perdera o ar distante com
que a tratava em Salinas. A solidão e o afastamento ateavam-lhe a
paixão. Estudava, comia, dormia e escrevia a Abra, voltando as
costas a tudo o que não fosse o seu amor.
Quando Abra chegava a casa dos Trask, ao fim da tarde, ajudava Lee a descascar vagens ou ervilhas. Algumas vezes fazia
um doce e, frequentemente, preferia ficar para jantar a ir para casa.
Não havia assunto que não discutisse com Lee. As raras coisas de
que podia conversar com o pai ou a mãe pareciam-lhe insípidas,
sem interesse e inconsistentes. Com Lee, era diferente. Abra só
gostava de contar a Lee o que era verdade, mesmo quando não
tinha a certeza absoluta de estar dizendo a verdade.
Lee, sentado, sorria, e as suas mãozinhas ágeis pareciam
adejar como se estivessem animadas de vida própria. Abra não
compreendia que só falava de si mesma. Por isso, às vezes, enquanto ela falava, o espírito de Lee corria à aventura, deixava a
cozinha, voltava como um cão vadio e o chinês abanava a cabeça, aquiescendo com um murmúrio.
Lee gostava de Abra por sentir que era uma criatura forte, bondosa e de temperamento ardente. Os músculos do rosto, audaciosamente vincados, prometiam uma grande beleza ou, quem sabe,
uma grande fealdade. Lee, enquanto a ouvia conversar, pensava
nas caras redondas e delicadas dos Cantoneses. Lee devia preferir
essa espécie de beleza pois quase sempre se prefere aquilo que
se nos assemelha, mas não era assim. Quando pensava nos Chineses, só se lembrava dos rostos dos rapazes Manchus, rostos
arrogantes e desapiedados dum povo que herdara a autoridade.
-Talvez tenha sido sempre assim - disse um dia Abra. - Não
sei. Ele nunca me falou muito no pai. Só depois de o Sr. Trask ter
o aborrecimento das... das alfaces é que o Aron se mostrou zangado.
- Porquê?
- Porque faziam pouco dele.
Lee retomou o fio à meada.
- Troçaram do Aron? E porquê dele? Ele não tinha culpa
nenhuma.
- É o que ele pensava. Quer saber o que eu acho?
- Com certeza - disse Lee.
- Encontrei uma solução, mas ainda não está bem definida.
Acho que ele se sentiu sempre... digamos, mutilado... ou antes,
incompleto, pelo facto de não ter mãe.
Lee arregalou os olhos e tornou logo a fechá-los.
- Estou a ver - disse ele. - Pensa que se dá o mesmo com
o Cal?
- Não.
- Porquê com o Aron, então?
- Ainda não descobri. Talvez seja porque certos seres têm
necessidades maiores, ou talvez odeiem com mais força. O meu
pai sempre detestou os nabos e ninguém sabe porquê. Assim que
vê nabos fica furioso. Mas furioso a valer. Um dia, a minha mãe,
levada não sei por que ideia, fez um puré de nabos gratinado no
forno. O meu pai comeu um prato inteiro antes de perguntar o que
era. A minha mãe respondeu-lhe que eram nabos. Quando ouviu
aquilo, o meu pai atirou o prato para o chão, levantou-se e saiu de
casa. Tenho a impressão de que nunca lhe perdoou.
Lee soltou uma risada.
- Pois devia perdoar-lhe, visto a sua mãe ter respondido que
eram nabos. Mas suponha, Abra, que a sua mãe tinha respondido
outra coisa à pergunta do seu pai, que ele tinha achado aquilo
excelente e que tinha comido um segundo prato? Suponha que
ele descobria em seguida a verdade? Talvez a tivesse matado.
- Nunca se sabe. Seja como for, acho que o Aron precisava
mais duma mãe do que o Cal. Creio que sempre censurou o pai.
- Porquê?
- Isso não sei. É só o que penso.
- Ninguém a engana, hem?
- Acha mal?
- De forma nenhuma.
- Quer que faça um doce?
- Hoje não. Ainda temos.
- Então, que hei-de fazer?
- Pode preparar as costeletas. Janta connosco?
- Hoje não posso. Vou a um aniversário. Acha que ele virá a
ser pastor?
- Como quer que saiba? - disse Lee. - Talvez a ideia lhe
passe.
- Espero que não venha a ser pastor - disse Abra.
E fechou logo a boca, admirada com o que tinha dito.
Lee levantou-se, pegou na tábua de bater a carne e numa peneira
com farinha.
- Sirva-se da faca ao contrário - disse ele, colocando a
carne em cima da tábua.
- Eu sei.
Abra esperava que ele não tivesse percebido, mas Lee perguntou:
- Porque não quer que ele seja pastor?
- Não devia ter dito isso.
- Pode dizer o que lhe apetecer, que não é obrigada a dar
explicações.
Lee voltou a sentar-se. Abra peneirou a farinha em cima da
carne e começou a bater com a faca. Taque, taque, taque.
- Eu não devia falar desta maneira.
Taque, taque, taque.
Lee virou a cara para pôr a rapariga à vontade.
- O Aron nunca está com meias medidas - disse ela enquanto continuava a tarefa. - Se se fizer religioso, há-de escolher
a ordem mais ascética. Ele disse-me uma vez que os pastores não
deviam casar.
- Não era isso o que ele parecia dizer na última carta -
observou Lee.
- Bem sei, mas foi antes. - (A faca imobilizou-se. No jovem
rosto assomava um desânimo doloroso). - Lee, eu não sou suficientemente boa para ele.
- Então, então! Mas que ideia é essa?
- Não estou a brincar. Quando ele pensa em mim, não vê a
Abra mas sim uma outra pessoa qualquer que imaginou e a quem
eu sirvo de capa. Eu não me pareço com... com aquela que ele
inventou.
- Como é ela?
- Pura - respondeu Abra. - Toda ela é pureza. Não tem
maldade nenhuma. Eu não sou assim.
- Ninguém é assim - comentou Lee.
- Ele não me conhece nem me quer conhecer. Só gosta desse tal fantasma branco.
Lee tirou do forno um tabuleiro de biscoitos.
- Não gosta dele? Bem sei que ainda é muito nova, mas a
idade não conta.
- Como quer que não goste se vou ser mulher dele? Mas
desejava que ele também gostasse de mim. E como será isso
possível se ele não me conhece? Eu imaginava que ele soubesse
quem eu era, mas agora já sei que me enganei.
- Talvez ele esteja atravessando um período difícil. A Abra
é inteligente. Porque não tenta parecer-se com o fantasma branco?
- Tenho sempre receio de me trair. Posso zangar-me, ou cheirar mal, ou sei lá o quê. Ele dava logo por isso.
- Quem sabe? - disse Lee. - Não deve ser fácil conseguir
ser ao mesmo tempo um fantasma etéreo e um ente humano de
carne e osso. Não se pode impedir que os humanos cheirem mal.
Abra afastou-se da mesa.
- Lee, eu queria...
- Não deixe cair farinha no chão - disse ele. - Que queria?
- Foi uma ideia que me veio à cabeça. Julgo que o Aron,
como não conheceu a mãe, imaginou que ela possuía todas as
qualidades que ele desejaria encontrar numa mulher.
- É muito possível. E vai daí, está convencida de que ele a
enfeitou com essa tralha toda?
Ela fitou-o com insistência e passou os dedos pela lâmina da
faca.
- Apetecia-lhe devolver a tralha, não é verdade? - perguntou
ele.
- Pois.
- E se ele deixar de gostar de si?
- Prefiro correr esse risco e mostrar-me tal qual sou - declarou ela.
Ele disse:
- Nunca conheci ninguém que andasse tão metido na vida
dos outros como eu. Ora eu não sou homem para dar conselhos
definitivos. Arranja-me as costeletas ou não?
Abra recomeçou a trabalhar.
- Acha que seja divertido abordar questões deste género,
quando ainda ando na escola?
- As coisas não se poderiam passar de outra maneira -
disse Lee. - O riso virá mais tarde, como os dentes do siso, e quando tiver aprendido a rir de si, talvez tarde de mais, já estará lançada
numa corrida desenfreada contra a morte.
As pancadas que Abra vibrava na tábua tornaram-se mais
violentas e desordenadas.
Lee colocou cinco caroços de lima em cima da mesa e pôs-se a desenhar figuras geométricas - uma linha, um ângulo, um
círculo.
As pancadas detiveram-se.
- A Sr.a Trask está viva?
O indicador de Lee manteve-se em suspenso, depois, empurrou um caroço e o «O» transformou-se num «Q». Sabia que
Abra estava a olhar para ele. Adivinhava até o pânico que dela se
apossara pela pergunta que fizera. Procurou a resposta como um
rato que procura a saída da ratoeira. Suspirou e renunciou. Voltou-se lentamente para ela, olhou e viu que adivinhara. Numa voz
sem timbre, disse:
- Temos falado muito, mas não me lembro de já termos falado
de mim. - (Sorriu com timidez). - Abra, deixe que lhe fale de mim.
Sou um criado. Sou velho. Sou chinês. Tudo isto já sabe. Mas
sinto-me cansado e sou covarde.
- Não diga... - começou ela.
- Caluda - interrompeu ele. - Sou muito, muito covarde. Ao
ponto de não querer influir num destino.
- De que modo?
- Abra, o seu pai só detesta os nabos?
A rapariga não quis ceder.
- Eu fiz-lhe uma pergunta.
- Não ouvi pergunta nenhuma - disse ele suavemente. (E a
voz adquiriu um tom de confidência). - Não me fez pergunta nenhuma, Abra.
- Deve pensar que eu sou ainda muito nova... - principiou
Abra.
Mas Lee atalhou:
- Trabalhei em casa duma mulher de trinta e cinco anos que
era feia e estúpida. Se tivesse seis anos, teria feito o desespero
dos pais. Mas aos trinta e cinco anos tinha o direito de dispor duma
fortuna e das vidas humanas que a rodeavam. Não, Abra, a idade
não tem nada a ver com o caso. E se eu tivesse qualquer coisa a
dizer... era a si que diria.
A rapariga sorriu.
- Eu sei ser má - disse ela. - Quer que experimente?
- Não, por amor de Deus!
- Então, não quer que eu tente compreender?
- Faça o que lhe apetecer, mas não quero imiscuir-me nisso.
O homem, por muito bom que seja, também é fraco e negativo, e
carrega consigo todos os pecados que pode suportar. Ora eu já
tenho bastantes pecados que me aflijam. Talvez não sejam grandes pecados, em comparação com outros, mas os que tenho chegam-me perfeitamente. Peço-lhe que me perdoe.
Abra estendeu a mão e tocou na de Lee. Lee olhou para a
marca branca que fora deixada pela farinha na pele lisa e esticada.
Abra disse:
- O meu pai preferia ter um filho. Acho que ele detesta os
nabos e as raparigas. Anda sempre a contar a toda a gente que me
pôs um nome ridículo.
Lee sorriu-lhe.
- Você é um encanto de rapariga. Se vier jantar amanhã,
compro-lhe nabos.
Abra perguntou timidamente:
- Ela está viva?
- Está - respondeu Lee.
Ouviu-se bater a porta da entrada e Cal entrou na cozinha.
- Bom dia, Abra. O meu pai está cá?
- Ainda não veio - respondeu Lee. - Porque trazes esse
ar tão radiante?
Cal mostrou-lhe um cheque.
- Toma, é para ti.
- Lee olhou para a quantia.
- Eu não te exigi juros - disse.
- Assim é melhor. Pode ser que ainda me venha a fazer falta.
- Não me queres dizer como o arranjaste?
- Não, ainda não. Tenho uma boa ideia...
- Os olhos de Cal voltaram-se para Abra.
- Vou para casa - anunciou ela.
Cal disse:
- Mais vale preveni-la. Resolvi fazer a tal coisa no dia de Acção de Graças e a Abra há-de estar cá assim como o Aron.
- Qual coisa? - perguntou Abra.
- O presente ao meu pai.
- O que é?
- Não posso dizer. Logo vês nesse dia.
- O Lee já sabe?
- Já, mas esse não conta nada.
- Acho que nunca te vi tão satisfeito - disse Abra. - Tenho
até a impressão de que nunca te vi satisfeito.
Havia qualquer coisa em Cal que a atraía. Mal saiu, Cal sentou-se.
- Não sei se lho dê antes ou depois do jantar.
- É melhor depois - disse Lee.
- Sempre é verdade que tens o dinheiro?
- Quinze mil dólares.
- Dinheiro honesto?
- Queres saber se o roubei?
- Pois claro.
- Então fica sabendo que é dinheiro honesto - disse Cal.
lembras-te de quando tivemos champanhe por causa do Aron? Pois
bem! Havemos de tê-lo outra vez. E até podíamos enfeitar a sala. A
Abra ajudava-nos.
- Estás convencido de que o teu pai aceita o dinheiro?
- Porque não?
- Espero que não te enganes - disse Lee. - Como vão
esses estudos?
- Fracos. Vou ver se ganho o tempo perdido - disse Cal.
2
Quando terminaram as aulas, no dia seguinte, Abra correu atrás
de Cal e apanhou-o.
- Bom dia, Abra. O teu doce estava estupendo.
- Ficou muito seco. Devia estar mais solto.
- O Lee anda perdido de amores por ti. O que foi que lhe
fizeste?
- Eu gosto muito do Lee - disse ela. - (Depois): - Tenho
uma coisa a pedir-te, Cal.
- O que é?
- Tu conheces bem o Aron, não conheces?
- Porquê?
- Parece que só pensa nele.
- Isso não é novidade. Zangaste-te com ele?
- Não. Quando se pôs a falar da Igreja e do celibato, tentei
lutar contra ele, mas ele não quis.
- Não me digas que ele já não queria casar contigo. Mas que
disparate!
- Pois, agora, escreve-me cartas de amor, mas não é a mim
que as dirige.
- Então?
- Parecem escritas a si mesmo.
Cal disse:
- Descobri o esconderijo debaixo do chorão.
Ela não pareceu admirada.
- É verdade?
- Estás aborrecida com o Aron?
- Não. Não consigo atingi-lo. Eu não o conheço.
- Vai tendo paciência. Deixa ver se ele se descobre.
- Gostava de saber se ele chegará a descobrir-se. Achas que
tenho andado enganada desde o princípio?
- Como queres que saiba?
- Cal - perguntou ela - é verdade que passeias de noite e
que vais para sítios de má fama?
- É - respondeu ele. - É verdade. Foi o Aron quem te disse?
- Não, não foi o Aron. Porque vais a lugares desses?
Cal continuou a caminhar ao lado dela e não respondeu.
- Dize-me, anda.
- Que tens tu com isso?
- É por seres mau?
- Achas que sou?
- Eu também não sou boa - disse ela.
- Tu és doida - disse Cal. - O Aron logo te tira essa ideia
da cabeça.
- Achas que consegue?
- Pois claro - disse Cal. - Não tem outro remédio.
CAPÍTULO XLV
1
Joe Valery ia vivendo menos mal, de olho alerta e ouvido apurado, e expondo o cachaço o menos possível. Armazenara os seus
ódios a pouco e pouco, primeiro por uma mãe desmazelada e, depois, por um pai choramíngão que lhe batia. Fora-lhe fácil transferir
as sementes de ódio para o professor que o castigara, para o polícia que o prendera e para o padre que lhe pregara um sermão.
Muito antes de um primeiro magistrado se ter interessado por ele,
já Joe possuía um sortido completo de ódios que iam atingir toda a
gente conhecida.
Mas o ódio não pode viver sozinho. Tem de caminhar a par do
amor, servindo de mola real, de aguilhão ou de estimulante. Joe
passou a amar Joe. Reconfortou, lisonjeou e estremeceu Joe. Construiu muros para proteger Joe do mundo hostil. E, insensivelmente,
Joe transformou-se em tabu. Se Joe tinha desgostos, era porque o
mundo queria mal a Joe. Mas quando Joe atacava o mundo, era
uma vingança bem merecida - sim, essa corja de malandros não
merecia outra coisa. Joe embalava o seu amor e aperfeiçoou uma
série de regras dispostas pela seguinte ordem:
1 - Não acredites em ninguém. Todos te querem mal.
2 - Bico calado. Não dês o flanco.
3 - Ouvidos bem abertos. Se os gajos disserem alguma coisa, guarda-a bem guardada que ainda te pode vira servir.
4 - São todos uns filhos da puta que começam a afiar o dente
mal te vêem chegar.
5 - Nunca te atires de caras. Vai sempre de roda.
6 - Nunca te fies numa mulher para coisa nenhuma.
7- Confia só no dinheiro. Todos o querem. Todos se vendem.
Havia outras regras, mas não passavam de subtilezas. O seu
sistema era bom e, como não conhecia outros, a comparação tornava-se impossível. Joe sabia que era preciso ser vivaço e considerava-se vivaço. Se o golpe resultava, era um espertalhão. Se falhava, era uma vítima. Joe defendia-se o melhor que podia e vivia com
um mínimo de esforço. Kate mantinha-o ao seu serviço por o saber
capaz de fazer fosse o que fosse por cupidez ou por medo. Não
tinha ilusões nenhumas a respeito dele - os Joe são necessários
a quem trabalha.
Quando entrou para a casa de Kate, Joe procurou as fraquezas
em que se apoiava para viver: vaidade, concupiscência, angústia,
remorso, histeria. Havia de descobri-las, pois Kate era uma mulher. Teve, porém, um grande choque quando compreendeu que,
se Kate tinha algum ponto fraco, era impossível dar com ele. Aquela
mulher pensava e agia como um homem, embora fosse mais dura,
mais rápida e mais inteligente. Joe cometeu alguns erros e Kate
deu-lhe uma lição para que não voltasse a repeti-los. Passou a ter
por ela uma verdadeira admiração baseada no medo.
Quando chegou à conclusão de que certas espertezas não
resultavam com Kate, resolveu pô-las inteiramente de lado. Kate
fez dele um escravo, como sempre fizera escravas as mulheres
que dirigia. Alimentou-o, vestiu-o, deu-lhe ordens e castigou-o.
Assim que Joe reconheceu que ela era mais forte do que ele,
só lhe faltava dar um passo para concluir que ela era a mais forte de
todas as criaturas. Kate possuía dois dons que ele julgava indispensáveis: era vivaça e tinha sorte. Que mais se podia pedir? Por
isso, fazia o seu trabalho com prazer e só receava não ser capaz
de o fazer.
- A Kate nunca se engana - dizia Joe. - E é escusado
armar em esperto com ela.
A opinião transformou-se num hábito. Quando se tratou de pôr
Ethel fora de acção, nem sequer fez perguntas; aquilo constituía
parte do seu trabalho quotidiano. Ninguém tinha nada com isso e
Kate sabia o que fazia.
2
Kate nunca conseguia dormir quando tinha um ataque de
artritismo. Ficava com as articulações inchadas e emperradas, e
preferia pensar noutra coisa, mesmo que fosse desagradável, para
esquecer o mal que lhe paralisava os dedos. Procurava recordar-se de todos os pormenores duma casa onde não entrava há muito
tempo ou fitava o tecto enquanto fazia contas de somar. Certas
vezes, evocava recordações, a cara do Sr. Edwards, a sua roupa, a
palavra gravada na barra dos suspensórios. Nunca prestara atenção mas, contudo, sabia que a marca era «Excelsior».
Muitas vezes, de noite, pensava em Faye e lembrava-se dos
seus olhos, do cabelo, do timbre da voz, da tagarelice das mãos e
duma grainha de carne no polegar esquerdo, cicatriz duma ferida
antiga. Kate perguntava a si mesma que sentimento a ligara a Faye.
Desprezo? Afeição? Pena? Sentia remorsos de a ter matado? Kate
media os pensamentos como a lagarta que anda a intervalos
regulares. E acabava por se convencer de que Faye lhe fora
indiferente. Que se recordasse, nunca a amara ou odiara. Houvera uma época, durante a agonia, em que o ruído e o cheiro emitidos
pela velha tinham despertado em Kate uma fúria assassina: apetecera-lhe matá-la imediatamente para se ver livre dela.
Kate lembrava-se da última vez em que vira Faye, estendida
no caixão forrado de veludo violeta, vestida de branco, com um
sorriso na boca arranjado pelos gatos-pingados e a cara toda pintada para disfarçar a lividez.
Uma voz atrás de Kate dissera:
- Há muitos anos que não parecia tão bonita.
A outra voz retorquira:
- Talvez fosse disso que eu precisasse.
E tinham-se ouvido duas fungadelas. A primeira voz devia
pertencer a Ethel e a segunda a Trixie. Kate também se recordava
da sua própria reacção. Ora! uma puta morta era igual a outra pessoa qualquer.
Sim, a primeira voz devia ser a de Ethel. A Ethel desempenhava
um grande papel nas divagações nocturnas de Kate. Trazia sempre
com ela um vendaval de medo. Ethel... essa velha puta bronca,
idiota, esse estafermo. Frequentemente, elevava-se uma voz que
dizia a Kate:
«Mais devagar! Porque é que lhe chamas puta velha? Por teres
cometido um erro? Porque a mandaste expulsar? Se tivesses raciocinado e se ficasses com ela aqui... »
Kate perguntava a si mesma onde estaria Ethel. Porque não
pagar a uma agência para a descobrir ou, pelo menos, para saber
que direcção havia tomado? Sim, mas depois a Ethel era capaz
de dar à língua e de mostrar os frascos. E, em vez de um, seriam
logo dois a fazer chantagem. Mas que importância tinha se, sempre que a Ethel bebia uma cerveja, se punha a despejar o saco ao
primeiro que lhe aparecesse? Pois era, mas todos pensavam que
eram histórias da carochinha. E um detective particular...? Não.
Detectives, não.
Kate passava muitas horas na companhia de Ethel. Teria o juiz
percebido que se tratava duma marosca com os cordelinhos todos
à vista? Cem dólares eram uma conta demasiado certa. E o xerife?
O Joe viera dizer que tinham levado a Ethel para a província de
Santa Cruz. Teria ela dito alguma coisa ao adjunto que a acompanhara? A Ethel era uma velha preguiçosa. Se calhar, tinha ficado
em Watsonville. Havia Pajaro, depois era o entroncamento ferroviário e, a seguir, o rio Pajaro, e a ponte para Watsonville, sempre
cheia dum constante vai-e-vem de operários: mexicanos e alguns
hindus. A besta da Ethel era muito capaz de ter imaginado que
conseguia ganhar a vida com os trabalhadores do caminho de ferro.
Mas que piada se ela nunca tivesse saído de Watsonville, que só
distava cinquenta quilómetros! Afinal, se lhe desse na gana, podia
atravessar a fronteira e vir visitar os amigos. Talvez viesse a Salinas
algumas vezes? Talvez estivesse em Salinas naquela altura? Os
pasmas tinham mais que fazer do que perder o tempo com a Ethel.
Talvez fosse boa ideia mandar o Joe a Watsonville. A Ethel talvez
tivesse ido até Santa Cruz. O Joe podia lá ir deitar uma vista de
olhos. Não levava muito tempo. O Joe era capaz de descobrir uma
puta em poucas horas, por mais escondida que estivesse. Se a
encontrasse, poderia obrigá-la a voltar. A Ethel era uma parva. Mas,
se a encontrasse, talvez fosse preferível que Kate a fosse ver. Fechar a casa. Pôr um letreiro. «Encerrado». Poderia ira Watsonville,
liquidava o assunto e voltava. Táxis, não. Num autocarro. Não se
costuma reparar nas pessoas que viajam de noite nos autocarros.
Os passageiros dormem depois de terem tirado os sapatos e enrolado os casacos em almofada atrás da cabeça. Subitamente, percebeu que teria medo de ir a Watsonville. Mas tinha que tomar uma
decisão, para pôr termo a todas aquelas perguntas. Era estranho
que não tivesse pensado no Joe mais cedo. Ele estava mesmo a
calhar. O Joe tinha habilidade para certos trabalhinhos e, ainda por
cima, julgava-se um alho. Portanto, não custava a manejar. Mas a
Ethel era estúpida e isso é que tornava as coisas mais complicadas.
As mãos e o cérebro de Kate iam-se deformando. Cada vez
confiava mais em Joe Valery, braço direito, intermediário e carrasco. Desconfiava das pensionistas, não porque fossem piores
do que Joe, mas porque alimentavam uma histeria latente que
poderia destruir o edifício comum ao mínimo abalo. Kate sempre
soubera dominar esse perigo permanente, mas a lenta petrificação
das articulações e o medo crescente obrigavam-na a valer-se de
alguém; Joe, neste caso.
Kate podia depositar inteira confiança em Joe, pois tinha nos
seus arquivos um relatório sobre um certo Joseph Venuta que se
evadira de San Quentin um ano antes de cumprir a pena de cinco
anos por ataque à mão armada. Kate nunca tocara no assunto a
Joe Valery, mas estava convencida de que aquilo chegaria para o
acalmar, caso se mostrasse atrevido.
Joe trazia-lhe todas as manhãs o pequeno almoço - chá verde, leite e torradas. Depois de colocar a bandeja em cima da mesa
de cabeceira, fazia um resumo dos acontecimentos e recebia as
instruções diárias. Joe sabia que ela dependia cada vez mais dele.
Devagar, com toda a prudência, ia procurando o meio de deitar mão
ao negócio. Se ela ficasse bastante doente, talvez fosse uma boa
oportunidade. Mas Joe tinha medo de Kate.
- Bom dia - disse ele.
- Não posso sentar-me, Joe. Serve-me uma chávena de chá,
que eu não posso segurá-la.
- Doem-lhe as mãos?
- Doem. Daqui a bocadinho já estarei melhor.
- Parece que passou mal a noite.
- Não - disse Kate. - A noite foi boa. O novo remédio deu
resultado.
Joe levou a chávena aos lábios de Kate. Ela bebeu aos Bolinhos, soprando o líquido para o arrefecer.
- Não quero mais - disse ela, depois de beber metade da
chávena. - Que se passou ontem à noite?
- Estive quase para a vir acordar - disse Joe. - Apareceu aí
um gajo de King City, cheio de massa. Acho que tinha acabado de
vender a colheita. Largou uma data de pastel: setecentos dólares
sem contar com o que deu às pequenas.
- Como se chamava?
- Não sei. Mas espero que torne a aparecer.
- É preciso tomar sempre nota do nome, Joe. Já te tenho dito
isto.
- Ele era acanhado.
- Mais uma razão. Nenhuma das raparigas o enrolou?
- Não sei.
- Pois trata de saber.
- Joe achou que ela tinha génio e sentiu-se bem.
- Hei-de saber - garantiu. - Não custa nada.
Kate examinou-o com o olhar, perscrutando-o e avaliando-o.
Joe compreendeu que se ia passar qualquer coisa.
- Gostas do teu lugar? - perguntou ela baixinho.
- Ai, não, que não gosto!
- Pois podias arranjar um lugar bem melhor ou... pior.
- Gosto de cá estar - repetiu ele, pouco à vontade, procurando descobrir que falta teria cometido. - Sinto-me como peixe
na água.
Kate humedeceu os lábios com a ponta da língua aguçada.
- Podíamos trabalhar juntos.
- Como quiser - disse ele com um sorriso encorajador.
Joe sentiu-se invadido por uma lufada de satisfação. Pacientemente, esperou até que ela se decidisse.
- Joe, eu não gosto de ser roubada.
- Eu não lhe tirei nada.
- Eu também não te acusei.
- Quem foi, então?
- Já lá chegamos, Joe. Lembras-te daquela ranhosa que tivemos de pôr a andar?
- Refere-se à Ethel-não-sei-quê?
- Sim. Ela foi-se embora levando uma coisa. Quando dei por
isso, já era tarde de mais.
- O que era?
A voz tornou-se cortante:
- Não tens nada com isso, Joe. Tu não és parvo nenhum. Se
eu te pedisse para a encontrares, onde a irias procurar?
Joe fez trabalhar a matéria cinzenta com rapidez, pondo de
parte o raciocínio e apelando para a experiência e para o instinto.
- Ela ficou muito abatida e não se deve ter afastado muito.
Esses estupores nunca vão para muito longe.
- Muito bem raciocinado. Achas que esteja em Watsonville?
- Talvez. Ou em Santa Cruz. Seja como for, aposto que não
passou de San José.
Kate afagou os dedos.
- Queres ganhar quinhentos dólares, Joe?
- Quer que a descubra?
- Sim, mas mais nada. Quando souberes onde está, é preciso que ela não suspeite de nada. Arranja-me só a morada, compreendeste? Apenas desejo saber onde está.
- Muito bem - disse Joe. - Ela deve ter-lhe levado uma boa
maquia.
- Isso não é da tua conta.
- Está bem, minha senhora - disse ele.- Quer que vá já?
- Sim, é melhor andares depressa, Joe.
- Talvez custe um bocado. Já passou muito tempo.
- Arranja-te como puderes.
- Vou a Watsonville esta tarde.
- Está bem, Joe.
Kate ficou pensativa. Sabia que tinha ainda qualquer coisa a
dizer, mas receava continuar. Por fim, resolveu-se:
-Joe, naquele... dia... Depois do julgamento... ela não disse
nada?
- Não. Só disse que era tudo premeditado. É o que todos
dizem.
Joe lembrou-se então duma coisa em que não reparara nesse
momento e tornou a ouvir a voz de Ethel:
«Senhor juiz, precisava de lhe falar a sós. Tenho uma coisa
para lhe dizer».
Joe procurou manter uma expressão impassível para não ser
obrigado a repetira frase.
Kate perguntou:
- O que foi?
Não soubera dissimular. Procurou uma resposta.
- Há qualquer coisa - disse ele para ganhar tempo. - Estou a ver se me lembro.
- Trata de te lembrares!
A voz era aguda e ansiosa.
- Então?...
Joe já descobrira.
- Ouvi-a dizer aos chuis... Espere... Ela perguntou-lhes porque é que não podia ir para o Sul, e disse-lhes que tinha família
em San Luís Obispo.
Kate inclinou-se para ele.
- E depois?
- Os chuis responderam-lhe que era muito longe.
- Tens boa memória, Joe. Onde vais primeiro?
- A Watsonville - respondeu ele. - Tenho um amigo em
San Luís. Vou telefonar-lhe para que ele também faça buscas por
minha conta.
- Joe - disse ela secamente - não quero que isto transpire.
- Por quinhentos dólares, faz-se trabalho rápido e perfeito.
Sentia-se satisfeito consigo mesmo, embora Kate o examinasse de novo com os olhos semicerrados. A frase seguinte quase
lhe virou o estômago do avesso.
- A propósito, Joe... O nome de Venuta diz-te alguma coisa?
Tratou de responder antes que a voz se lhe estrangulasse.
- Absolutamente nada.
- Volta assim que puderes. Diz à Helen para subir. Ela fica a
substituir-te.
3
Joe fez a mala, foi à estação e comprou um bilhete para
Watsonville. Em Castroville, primeira estação do percurso, desceu
do comboio e esperou quatro horas pelo expresso de San Francisco, o Del Monte, que pára em Monterey. Aí, alugou um quarto no
Hotel Central, sob o nome de John Vicker, tornou a sair, foi comer
um bife ao restaurante Pop Ernst, comprou uma garrafa de uísque e
voltou para o quarto.
Tirou os sapatos, o casaco, o colete, o colarinho e a gravata e
estendeu-se na cama de ferro, colocando o uísque e um copo ao
alcance da mão. A luz do candeeiro instalado à cabeceira da cama
não o incomodava. Nem sequer dava por ela. Com método, começou por beber meio copo de uísque para desentorpecer o cérebro,
depois, juntou as mãos atrás da cabeça, cruzou as pernas e pôs-se a comparar ideias, impressões e suposições.
Não se saíra mal da conversa e tinha-a ludibriado. Mas como é
que ela sabia que ele se tinha evadido? Teve vontade de partir para
Reno ou talvez para Seattle. Um porto sempre é mais seguro. E
depois - mas espera: deixa-me pensar um instante.
A Ethel não roubara nada, mas devia saber qualquer coisa. A
Kate tinha medo da Ethel. Quinhentos dólares era muita massa só
para desencantar uma puta velha. Em primeiro lugar, o que a Ethel
queria dizer ao juiz era verdade. Em segundo lugar, a Kate tinha
medo do que ela dissesse. Mas que inferno! E o cadastro? Joe
não estava interessado em regressar a San Quentin para cumprir
o ano, mais o castigo pela evasão.
Mas não fazia mal pensar no caso. Suponhamos que tinha de
apostar quatro anos contra... digamos dez mil dólares. Valeria a
pena? Pergunta ociosa. A Kate já sabia há muito tempo e nunca o
denunciara. Talvez, no fundo, a Kate confiasse em Joe.
Talvez a Ethel não passasse duma carta furada.
Agora... um instante só. Vejamos. Talvez fosse a grande oportunidade. Que devia fazer com o jogo de que dispunha? A Kate não
faltavam recursos. Teria envergadura para jogar com ela? Seria melhor
jogar a cartada ou passar?
Sentou-se e encheu o copo. Apagou a luz e ergueu o estore.
Enquanto bebia o uisque, observou, num quarto do outro lado da
rua, uma mulher magra metida num roupão a lavar as meias numa
bacia. Joe sentia o álcool a latejar nas fontes.
Talvez fosse a sua grande oportunidade. Há quanto tempo esperava por ela! Só Deus sabia o ódio que tinha àquela putéfia de
dentinhos afiados! Mas era preciso cuidado.
Abriu a janela sem fazer barulho, pegou numa caneta que estava em cima da mesa e atirou-a aos vidros da janela em frente.
Sentiu-se divertido com o susto da mulher, que correu o estore mal
viu do que se tratava.
Bebido o terceiro copo, a garrafa ficou vazia. Joe teve vontade
de descer à rua e de ir visitar a cidade, mas preferiu obedecer à
regra que sempre se impusera: nunca sair do quarto quando se
bebe. É assim que se evitam as maçadas. E as maçadas significam os chuis, os chuis significam a verificação dos documentos e
isso significaria, mais certo do que a morte, um passeio a San
Quentin e, desta vez, não o mandariam trabalhar numa estrada
para o recompensar do seu bom comportamento. Pôs de parte a
ideia de ir dar uma volta.
Joe dispunha de outro prazer que reservava para os momentos de solidão, mas ele não sabia que era um prazer. O quarto de
hotel era um local propicio. Estendido na cama, rememorou a infância infeliz e a adolescência tormentosa. Raio de azar... nunca
tivera sorte nenhuma. Só os figurões é que têm sorte. Claro que
conseguira fazer certos trabalhinhos sem ser fisgado, mas... e a
mala cheia de navalhas? Os pasmas saltaram em cima dele e
filaram-no. A partir dessa altura passara a ter cadastro e a polícia
nunca mais o largara da mão. Em Daly City, se um gajo qualquer
se cortava com um punhado de framboesas, era logo o Joe quem
pagava as favas. E na escola fora a mesma coisa. Os professores
estavam contra ele, o director estava contra ele. Era de mais. Joe,
o indesejável, pusera-se a cavar.
À força de repisar tantas ilusões perdidas, começou a encher-se de tristeza até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Pôs-se a
chorar pensando na criança desgraçada que fora e no homem em
que se tinha tornado - olhem para ele - um falhado, um tipo que
trabalhava numa casa de putas enquanto outros tinham os seus
lares e os seus carros. Eles, à noite, sentiam-se felizes e tranquilos, e depois fechavam as janelas na cara do pobre Joe. Chorou de
mansinho até adormecer.
Na manhã seguinte, levantou-se às dez horas e foi tomar um
copioso pequeno almoço ao restaurante Pop Ernst. Depois, embarcou num autocarro para Watsonville e jogou três partidas de bilhar
com um amigo a quem telefonara. Joe, após ter ganho a última
partida, arrumou o taco e estendeu duas notas de dez dólares ao
adversário.
- É escusado - disse o amigo. - Guarda o teu dinheiro.
- Fica com ele - disse Joe.
- Mas eu não te prestei serviço nenhum.
- Pelo contrário. Disseste-me que ela não estava cá e, se
havia alguém que me pudesse informar, eras tu.
- Não me queres dizer porque é que andas à procura dela?
- Wilson, já te disse e torno a repetir que não sei nada. Trata-se apenas dum serviço.
- Pois eu não sei mais nada. Espera lá... Ouvi dizer que há
um congresso de... deixa ver... de cirurgiões-dentistas ou lá o que
é. E já nem sei se ouvi dizer que ela ia lá, ou se fui eu que imaginei.
Devo estar a perder a memória. Telefona para Santa Cruz. Não conheces lá ninguém?
- Tenho alguns conhecimentos - disse Joe.
- Vai ter com o H. V. Maliler. Hal Maliler. Ele tem uma sala de
bilhar e nas traseiras faz-se batota.
- Obrigado - disse Joe.
- Vamos, Joe, guarda o teu dinheiro.
- O dinheiro não é meu... É para comprares um charuto.
O autocarro depô-lo a duas portas de distância dos bilhares.
Era a hora do jantar, mas continuava-se a jogar. Joe teve de esperar uma hora. Por fim, Hal saiu da mesa para ir aos lavabos. Joe foi
atrás dele. Não custa nada travar conhecimento nos urinóis. Hal
examinou Joe com os olhos pálidos, aumentados por lentes espessas. Abotoou a braguilha, ajustou as mangas de alpaca e endireitou a pala verde.
- A gente logo conversa depois de acabar o jogo - disse ele.
- Queres jogar?
- Já tens parceiro, Hal?
- Só um.
- Então vou ser teu parceiro.
- São cinco dólares por hora - disse Hal.
- E dez por cento se eu ganhar?
- Entendido. A banca é dum tipo aloirado que dá pelo nome
de Williams.
À uma hora da manhã, Hal e Joe entraram no Grill Barlow.
- Duas costeletas e batatas fritas. Queres sopa? - perguntou Hal a Joe.
- Não. Nem batatas fritas. Dão-me azia.
- A mim também - disse Hal - mas sempre vou comendo.
O que eu tenho é falta de exercício.
Hal era um tipo silencioso, excepto, à hora das refeições. Só
abria a boca quando a tinha cheia.
- De que se trata? - perguntou ele através da costeleta.
- Dum trabalhinho. Eu recebo cem dólares e passo-te vinte
e cinco? Convém?
- Precisas de provas, de documentos?
- Não. Era preferível, mas cá me arranjarei sem eles.
- Bem. Então, ouve. A tipa veio pedir-me para eu a deixar
trabalhar na minha casa mediante uma comissão. A gaja não valia nada, nem sequer me rendeu vinte dólares por semana. O mais
certo era eu nunca ter sabido o que lhe aconteceu, se não fosse o
Bill Primus que a tinha visto na minha casa e que me veio fazer
perguntas quando a encontraram. O Bill é um tipo porreiro. Aqui, a
policia é tudo gajada fixe.
Ethel não era má mulher - desmazelada, porca, mas um
bom coração. Só desejava ser tratada com dignidade e que lhe
dessem importância. Não era esperta nem bonita e, portanto, não
tinha sorte. Ficaria aflita se soubesse que, quando a tiraram da
areia onde as ondas a tinham deixado, a saia arregaçada lhe deixara as coxas à vela.
Hal prosseguiu:
- Os pescadores de sardinha estavam cheios de massa e
foram fazer uma pândega lá a casa. Eu estou mesmo a ver como
as coisas se passaram: um dos tipos meteu-a no barco e depois
atirou com ela pela borda fora. Não percebo como é que teria conseguido cair à água.
- Talvez se tenha atirado do cais?
- Ela? - disse Hal, apesar das batatas fritas. - Macacos
me mordam se não era preguiçosa de mais para se matar! Queres
ver o corpo?
- Se tu dizes que é ela, é porque é - disse Joe.
E pôs uma nota de vinte dólares e outra de cinco em cima da
mesa.
Hal enrolou as notas como um cigarro e meteu-as no bolso do
colete. Em seguida, cortou um bocado de carne e levou-o à boca.
- Garanto-te que é ela - disse. - Queres uma dose de
torta?
Joe tencionava dormir até ao meio-dia, mas acordou às sete
horas. Deixou-se ficar na cama, pois só queria voltar a Salinas depois da meia-noite. Precisava de tempo para reflectir.
Quando se levantou, aproximou-se do espelho e mimou a
expressão que tencionava arvorar. Queria mostrar-se desapontado, mas não muito. Com Kate, era preciso desconfiar. O melhor
seria deixá-la falar e procurar uma saída. O diabo é que ela nunca
se abria. Joe teve de admitir que Kate lhe infundia um pavor terrível.
A sua prudência ditava-lhe: «Volta para casa, conta-lhe tudo e
empocha os teus quinhentos dólares.»
Mas respondeu com raiva à prudência: «E a sorte? Quantas
ocasiões já tive? Quando se tem uma oportunidade, é preciso é
agarrá-la. Terei de ser um chuleco toda a vida? Tenho mas é de
fazer um jogo cerrado. Vou deixá-la falar. Isso não tem mal nenhum. Se der mau resultado, posso dizer-lhe depois que acabei de
receber a informação. »
«Olha que ela é mulher para te pôr à sombra enquanto o diabo esfrega um olho.»
«Só se eu não jogar cerrado. Que tenho a perder? Já alguma
vez tive uma oportunidade destas?»
4
Kate sentia-se melhor. O novo remédio parecia dar resultado.
A dor acalmara-se e tanto as articulações como os dedos já não
estavam tão inchados. Dormira bem naquela noite, coisa que não
lhe sucedia há muito tempo. Apeteceu-lhe um ovo escalfado para o
pequeno almoço. Levantou-se, vestiu um robe, pegou num espelho
de mão e voltou para a cama. Aí, encostada às almofadas, pôs-se
a estudar a cara.
O repouso operara maravilhas. A dor contrai as maxilas, dá
aos olhos um falso brilho angustioso e incha levemente os músculos das têmporas, das faces e, até, do nariz. Assim fica o rosto
do doente que luta contra a doença.
Mas que diferença naquele rosto repousado! Tinha menos
dez anos. Abriu a boca e examinou os dentes. Já ia sendo tempo
de os mandar limpar. Sempre fora muito cuidadosa com eles. Só
tinha uma ponte de ouro no sítio onde faltavam os três molares.
Estou com um ar extraordinariamente jovem», pensou Kate. Uma
boa noite de sono e logo readquiria toda a sua vitalidade. Era essa
outra coisa que os enganava a todos. Julgavam-na frágil e delicada. Sorriu para a imagem - delicada como uma ratoeira de aço.
Mas não havia cuidados que não tivesse consigo. Nada de álcool
e nada de drogas. E, recentemente, até pusera de parte o café. O
resultado estava à vista. Tinha uma expressão angélica. Inclinou
ligeiramente o espelho para não ver as rugas que tinha debaixo do
queixo.
De repente, pensou noutra fisionomia angélica que se assemelhava à sua - mas como se chamava o rapaz? Alec? Não?
Estava a vê-lo, de cruz alçada, caminhando lentamente, com a sobrepeliz branca orlada de renda, de cabeça baixa e com os cabelos
que resplandeciam à luz dos círios. Havia nele algo de maravilhosamente longínquo, puro e inacessível. De resto, já alguma
coisa ou alguém atingira ou conspurcara Kate? Com certeza que
não. Só a couraça sofrera escoriações. Por dentro, mantinha-se
intacta, tão pura e brilhante como esse rapaz... Mas como se chamava ele?
Sorriu-se. Era mãe de dois rapazes e parecia uma criança. Se
alguém a visse com o loirinho, desconfiaria de alguma coisa? Imaginou-se ao lado dele, deixando que os outros adivinhassem os
laços que os uniam. Que faria o... Aron - era esse o nome dele -
se soubesse a verdade? O irmão, esse, sabia. O filho da puta -
não, isso também era de mais, até eram capazes de acreditar.
Bastardo? Também não. Ele nascera dum sagrado matrimónio. Kate
riu-se, encantada.. Mas que engraçado!
O outro, o moreno, preocupava-a. Parecia-se com Charles. A
Charles tivera ela respeito - e o Charles acabaria por a matar se
tivesse podido.
Que remédio maravilhoso! Não só acabava com a dor como
dava coragem. Dentro em pouco, venderia tudo, iria para Nova Iorque
e realizaria o seu projecto. E dizer que tivera medo da Ethel! Era
preciso ter estado muito doente! Medo daquele traste estúpido! E
se a matasse só à força de bondade? Assim que o Joe a
encontrasse, porque não haveria de levá-la para Nova Iorque e mantê-la ao alcance da mão?
Kate teve uma ideia divertida. Seria um crime cómico e um
caso insolúvel. Chocolates! Caixas de chocolates! Pacotes de bombons! Toucinho cozido, do mais gordo, vinho do Porto e manteiga
com fartura! Todos os pratos a nadarem em manteiga e em creme
desnatado. Nada de legumes e nada de fruta. E distracções nenhumas. Fica em casa, querida. Pois claro, então não havia de confiar
em ti? Olha pelas coisas. Tu estás cansada. Vai-te deitar. Deixame encher-te o copo. Trouxe-te bombons. Porque não os comes na
cama? Se não te sentes bem, toma um clister. Que ricas nozes,
não achas? A refinadíssima cadela estoirava em seis meses. E a
bicha solitária? Nunca teriam assassinado ninguém com a bicha
solitária? Como se chamava aquele homem que morreu de sede...
Tântalo?
Kate babava-se de prazer. Antes de se ir embora, ofereceria
uma festa aos filhos. Uma festinha simples com uma sessão de
circo para terminar, só para os queridinhos - as suas jóias. E
então lembrou-se do lindo rosto de Aron, tão semelhante ao seu.
A recordação despertou-lhe uma dor estranha no peito, uma espécie de vertigem. Aron era uma criatura indefesa, incapaz de se
proteger. Mas o moreno podia ser perigoso. Medira forças com ele
e fora vencida. Antes de se ir embora, havia de lhe dar uma lição.
Talvez... pois claro, porque não?... uma boa blenorragia o ensinasse a ter juízo.
Mas não queria que Aron descobrisse a verdade a seu respeito. Talvez ele a fosse visitar a Nova Iorque? Nesse caso, era
capaz de pensar que ela sempre tinha vivido numa elegante casinha do East Side. Iriam os dois ao teatro, à ópera, e as pessoas
ficariam admiradas com a sua beleza, tomando-os umas vezes por
irmãos e, outras, por mãe e filho. Eram tão parecidos! Também
iriam juntos ao enterro da Ethel. Seria necessário encomendar um
caixão especial e contratar seis matulões para carregar com tamanho peso. Kate divertia-se tanto que não ouviu Joe bater à porta.
Farto de esperar, o rapaz espreitou pela nesga da porta e avistou a
expressão jovial de Kate.
- O pequeno almoço - disse ele. (E empurrou a porta com o
canto da bandeja, fechando-a com o joelho). - Quer que ponha lá
dentro? - perguntou ele designando com o queixo a salinha
cinzenta.
- Não, aqui. E traz-me um ovo escalfado e torradas com
canela. O ovo que coza quatro minutos e meio para não ficar muito
encruado.
- A senhora parece estar muito melhor.
- E estou - disse ela. - O novo remédio é miraculoso. Mas
que cara a tua, Joe. Não te sentes bem?
- Não tenho nada. (Joe colocou a bandeja em cima da mesa,
diante da grande poltrona). - Quatro minutos e meio?
- Sim. E se encontrares uma boa maçã, das rijas, trá-la também.
- Nunca a vi nesse estado desde que a conheço.
Na cozinha, enquanto esperava que o ovo cozesse, sentiu-se
ligeiramente apreensivo. E se ela soubesse? Cuidado! No fim de
contas, ela não o podia censurar por ignorar qualquer coisa. Não
era um crime. De regresso ao quarto, Joe disse:
- Não havia maçãs, mas o cozinheiro recomendou-me esta
pêra.
- Melhor ainda - disse Kate.
Viu-a cortar a casca do ovo e introduzir a colher na gema.
- Que tal?
- Está óptimo - disse Kate. - Mesmo como eu gosto.
- Está com um aspecto esplêndido - disse ele.
- Sinto-me perfeita. Agora, tu é que me pareces esquisito.
Que há?
- Patroa, não há alguém que necessite tanto de quinhentos
dólares como eu...
Kate emendou:
- Não há ninguém...
- Como?
- Nada. Que estás tu para aí a querer dizer? Que não a
encontraste, não é verdade? Se, de facto, a procuraste com cuidado, podes estar descansado que recebes os teus quinhentos
dólares. Conta lá o que se passa.
Kate pegou no saleiro e sacudiu-o em cima do ovo.
Joe repetiu a mímica que estudara diante do espelho do hotel.
- Muito agradecido - disse. - Estou sem cheta e vai-me
fazer arranjo. Para começar, estive em Pajaro e em Watsonville.
Em Watsonville deram-me uma pista e fui até Santa Cruz, mas ela
já tinha tornado a desaparecer.
Kate provou o ovo e pôs mais sal.
- Mais nada?
- Não - respondeu Joe. Depois de procurá-la ao acaso, dei
um salto até San Luís. Disseram-me que a tinham visto, mas que
se tinha posto na alheta.
- Sem deixar vestígios? Não fazes ideia do sítio para onde
possa ter ido?
Joe pôs-se a brincar com os dedos. Tudo dependia das palavras que iria proferir e sentia relutância em dizê-las.
- Então? - disse ela. - Sabes alguma coisa? Fala.
- O que sei pouco interessa. Nem sei que pensar.
- Não penses. Fala, que eu me encarrego de pensar - disse
ela com secura.
- Talvez não seja verdade.
- Por amor de Deus!
- Tive uma conversa com o último tipo que a viu. Chama-se
Joe como eu...
- E não te disse também o nome da avó? - perguntou Kate
com sarcasmo.
- Esse tal Joe contou-me que, numa noite em que ela estava
com um carregamento de cerveja, lhe disse que ia voltar para Salinas e ajustar umas certas contas. Depois, ela esfumou-se. O tipo
não sabia mais nada.
Kate não conseguia disfarçar a aflição. Joe leu-lhe na cara a
apreensão, o medo, o desespero e o pânico. Acertara em cheio.
Fosse o que fosse, não havia dúvida de que estava ali a sua grande
oportunidade.
Kate ergueu a cabeça:
- É desnecessário tornar a pensar nesse estafermo - disse
ela. - Vais receber os teus quinhentos dólares, Joe.
Ele respirou devagar, receando distraí-la. Kate acreditara.
E, o que era melhor, estava acreditando em coisas que ele nunca dissera. Tinha de sair daquele quarto o mais depressa possível.
- Muito obrigado, minha senhora - disse ele em voz muito
baixa, encaminhando-se silenciosamente para a porta.
Já tinha a mão na maçaneta quando Kate perguntou num tom
falsamente indiferente:
- A propósito, Joe...
- Minha senhora?
- Se ouvires dizer alguma coisa, não te esqueças de me
prevenir.
- Claro. Quer que continue a indagar?
- Não. É escusado. Não vale a pena.
Mal fechou a porta do quarto à chave, Joe sentou-se, cruzou
os braços, sorriu de contentamento e tratou logo de estabelecer o
seu plano. O melhor seria deixá-la chocar a história durante, digamos, uma semana. Quando ela ficasse mais sossegada, voltaria
novamente à baila com a Ethel. Ignorava o alcance e a potência da
sua arma, mas tinha uma vontade enorme de se servir dela. E Joe
teria rebentado a rir se soubesse que Kate estava sentada, de olhos
fechados, na poltrona da sala cinzenta, com a porta fechada à chave.
CAPÍTULO XLVI
Não é frequente chover no vale do Salinas em Novembro. O
acontecimento é tão raro que tanto o Journal como o Index lhe
costumam consagrar um artigo de fundo. Basta uma noite de chuva
para que as colinas se cubram de verdura e o ar rescenda a tudo o
que é bom. Mas a chuva nessa época do ano não traz nenhum
benefício especial à lavoura, a não ser que se prolongue, o que é
extremamente invulgar. Na maior parte dos casos, dá-se o regresso da seca. Os rebentos murcham ou são queimados pela geada e
lá se vai a futura colheita.
Os anos de guerra foram chuvosos. Muita gente dizia que a
inconstância do tempo era devida aos tiros de canhão que se disparavam em França, opinião esta que chegou a ser seriamente
debatida pelos jornais.
Não enviámos muitas tropas para França durante este primeiro
Inverno, mas treinámos intensamente milhões de homens que para
lá deveriam seguir.
A guerra, por muito horrível que fosse, era apaixonante. Os
Alemães não tinham sido detidos. Pelo contrário, haviam retomado
a iniciativa, avançando metodicamente sobre Paris. Só Deus sabia quando poderiam ser sustidos, caso isso fosse possível. Se
nos restava alguma esperança de salvação, estava nas mãos do
General Pershing. O seu magnífico perfil marcial surgia todos os
dias nos jornais. Tinha uma queixada de granito e não se lhe notava
uma prega no capote. Era o padrão do verdadeiro soldado. Ninguém sabia ao certo o que ele pensava.
Nós só sabíamos que não podíamos perder, apesar de tudo
indicar que caminhávamos para a derrota. Já não se conseguia
arranjar farinha branca, a não ser que se comprasse quatro vezes
mais farinha escura. As pessoas de maiores posses faziam pão e
biscoitos de farinha branca e davam às crianças papas de farinha
escura.
Na velha sala de armas, a Milícia, constituída por homens com
mais de cinquenta anos, envergando estranhos uniformes, exercitava-se duas vezes por semana. Todos davam ordens uns aos outros e havia discussões intermináveis para saber quem devia comandar. William C. Burt faleceu na sala de armas durante uma
cena de pancadaria; o coração não aguentou.
Havia ainda os Homens- Minuto, assim chamados porque faziam discursos de um minuto a favor da América nos cinemas e nas
igrejas. Também usavam farda.
As mulheres enrolavam ligaduras, ostentavam uniformes da Cruz
Vermelha e consideravam-se Anjos da Caridade. Todas tricotavam
qualquer coisa para alguém. Estavam na moda os punhos de lã,
destinados a evitar que o vento entrasse nas mangas dos soldados, e os capuzes de lã só com um buraco na frente para se poder
olhar. Estes últimos pretendiam evitar que os capacetes de metal
gelassem na cabeça.
Todos os pedaços de coiro de qualidade eram aproveitados
para fabricar botas e os elegantes cinturões Sam Browne, reservados apenas aos oficiais. Estes cinturões compunham-se de um
largo cinto e de uma correia que atravessava o peito e passava sob
a dragona esquerda. Creio que eram copiados pelos dos Ingleses,
que já haviam certamente esquecido a sua primitiva função, isto é,
segurar uma pesada espada. As espadas só se usavam nas paradas, mas nenhum oficial queria morrer no campo de batalha sem
um cinturão Sam Browne. Os de melhor qualidade custavam vinte e
cinco dólares.
Os Britânicos ensinaram-nos muitas coisas e não os teríamos
copiado se não fossem magníficos combatentes. Os homens começaram a usar o lenço na manga e certos tenentes aperaltados já
não se mostravam em público sem o pingalim na mão. Apenas
houve uma moda a que resistimos mais tempo por nos parecer
extremamente idiota: o relógio de pulso.
Também tínhamos os nossos inimigos internos e exercíamos
uma aturada vigilância. San José praticava a caça ao espião e Salinas não se deixaria ficar para trás - Salinas era uma grande
cidade.
O Sr. Fenchel Pinha oficina de alfaiate, em Salinas, há mais de
vinte anos. Era um homenzinho gorducho com um sotaque bastante cómico. Trabalhava todo o dia na sua loja de Alisal Street e, à
noite, regressava a pé à sua casa da Central Avenue. Passava o
tempo a pintar as paredes e a cerca branca que delimitava o jardim.
Ninguém dera pelo seu sotaque até ao dia em que rebentou a guerra.
De repente, todos compreendemos. Era um sotaque alemão.
Finalmente, tínhamos um alemão muito nosso. Não lhe serviu de
nada arruinar-se na compra de Bónus da Defesa. Que maneira tão
fácil de disfarçar!
A Milícia não queria prendê-lo. Introduzir um espião na sede
da Defesa Nacional? Nunca! E quem estaria disposto a usar um
fato cortado pelo inimigo? Ninguém! O Sr. Fenchel continuou a ir à
oficina, mas passava o dia a alinhavar e a coser o mesmo bocado
de pano.
Fomos extremamente cruéis com o Sr. Fenchel. Ele era o nosso alemão. Todos os dias o víamos passar à nossa porta e tempo
houvera em que cumprimentava todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças e todos os bichos, e em que todos retribuíam, Mas, agora, já ninguém lhe falava e, quando penso nele, torno
a ver a sua pobre cara em que se estampavam a tristeza, a solidão
e o amor-próprio ferido.
A minha irmã mais nova e eu desempenhámos um papel no
caso do Sr. Fenchel. É uma dessas amargas recordações que eu
não consigo evocar sem sentir um aperto na garganta e a testa
coberta de suor. Uma noite, quando estávamos no nosso jardim,
vimo- lo avançar pelo passeio do outro lado. Levava o impecável
chapéu preto muito direito na cabeça. Não me lembro se estávamos combinados, mas não seria para admirar, dado o brio com que
efectuámos o ataque.
Mal ele se aproximou, a minha irmã e eu atravessámos a rua.
O Sr. Fenchel levantou a cabeça quando viu que nos dirigíamos
para ele e que nos detínhamos à beira do passeio.
Assomou-lhe um sorriso aos lábios e disse:
- Poa nôte, Chon, poa nôte, Mary.
Nós não nos mexemos e, de repente, gritámos em coro:
- Hoch der Kaiser!
Estou a ver-lhe a cara, os grandes olhos azuis, o olhar inocente e estupefacto. Ele quis dizer qualquer coisa, mas desatou a
chorar. Nem sequer tentou defender-se, dizer que não era alemão.
Deixou-se ficar quieto e continuou a soluçar. Então, a Mary e eu
virámos as costas e tornámos a entrar no nosso jardim. Sentíamo-nos horrivelmente culpados. Ainda hoje nos sentimos.
Mas nós não tínhamos idade suficiente para acometer o Sr.
Fenchel. Por isso, foram homens vigorosos - uns trinta que tomaram conta do caso. Numa noite de sábado, reuniram-se num
bar e, formados a quatro, subiram a Central Avenue gritando:
«Hurra! Hurra!» Depois, arrancaram a cerca branca do Sr. Fenchel
e pegaram fogo à casa. Os filhos da puta do grandíssimo Kaiser
que fossem gozar para a terra deles! E agora Salinas já podia pedir
meças a San José.
Isto teve o condão de excitar os de Watsonville. Para que
não nos ficássemos a rir, pegaram num polaco que tomaram por
um boche e mergulharam-no em alcatrão, cobrindo-o depois de
penas. A verdade é que o homem também tinha sotaque.
Nós, em Salinas, fizemos o que se faz inevitavelmente quando há guerra, e pensámos como se costuma pensar. Soltámos
brados de alegria quando os comunicados oficiais eram bons, e
morríamos de medo quando as notícias eram más. Todos tinham
um segredo que confiavam sem mencionar a origem. O nosso padrão de vida mudou como é hábito em tais conjunturas, os salários
e os preços treparam. Quando se falou em racionamento, todos
nos pusemos a comprar e a armazenar víveres. Pacatas senhoras
da melhor sociedade arrepelavam-se umas às outras por causa
duma latinha de tomates.
Mas nem tudo era maldade, mesquinhez ou histeria. Também houve heroísmo. Muitos homens, que não eram obrigados a
alistar-se, foram para a guerra. Outros, que recusavam combater
por motivos de consciência moral ou religiosa, sofreram o inevitável calvário. Alguns, deram tudo o que tinham, pois tratava-se da
última guerra e, se a ganhássemos, seria como se arrancássemos
um espinho da carne do mundo e não se tornaria a repetir tamanha
insensatez. . .
A morte no campo de batalha não se reveste de dignidade. Na
maioria dos casos, consiste numa pavorosa confusão de carne e
sangue oferecendo um espectáculo assaz repugnante. Mas existe
uma grande e quase serena dignidade no desgosto, nesse desgosto
impotente e desesperado que se abate sobre uma família quando
se recebe um telegrama. Não há nada a dizer, nada a fazer, só
resta uma esperança - espero que não tenha sofrido - e é a
esperança mais atroz que se possa imaginar. É bem certo que
algumas pessoas, atenuado o desgosto, o substituíram por uma
espécie de orgulho muito mais arrogante e embaraçoso. Algumas,
mesmo, até dele tiraram proveito depois da guerra. É tudo quanto
há de mais natural, assim como é natural que um homem cujo
ofício é ganhar dinheiro o ganhe com a guerra. Não se censurava
um homem por isso, mas esperava-se que investisse uma parte
dos lucros em Bónus da Defesa. Em Salinas, julgávamos ter inventado tudo isso, incluindo o desgosto.
CAPÍTULO XLVII
1
Na casa dos Trask, ao pé da padaria Reynaud, Lee e Adam
penduraram na parede um mapa da frente de batalha e semearam-no de alfinetes de cabeça colorida. Tinham a impressão de
participar na guerra. Quando morreu o Sr. Kelly, Adam Trask foi
convidado a substituí-lo na Junta de Recrutamento. Adam era o
homem indicado. Tinha uma honrosa folha de serviços e a fábrica
de gelo não lhe roubava muito tempo.
Adam Trask já estivera na guerra - uma pequenina guerra
de manobras e emboscadas - mas, de qualquer modo, vivera
essa experiência que consiste em infringir as leis e matar o maior
número possível de homens. Adam só muito vagamente se recordava da sua guerra. Certas imagens tinham-lhe ficado gravadas na
memória: um rosto, um monte de corpos queimados, uma carga de
cavalaria de sabre desembainhado, o som arrepiante e irregular das
salvas de carabina, a voz fria dum clarim na noite. Mas não passavam de ilustrações nas páginas de um livro, gravuras estáticas,
confusas e mal desenhadas.
Adam cumpriu o seu novo dever com regularidade e tristeza.
Não conseguia escapar à sensação de que estava enviando para
a morte os rapazes que apurava para o serviço. E como se sabia
fraco, tornou-se cada vez mais rigoroso e menos propenso a aceitar desculpas e alegações que poderiam justificar a passagem à
reforma de determinados indivíduos. Levava as listas para casa,
ia visitar os pais e, na realidade, realizou muito mais trabalho do
que se lhe poderia exigir. Parecia um daqueles juízes que lavram
sentenças de morte e têm horror à forca.
Henry Stanton observava Adam tornando-se cada vez mais
calado e soturno. Henry gostava de rir - o riso fazia-lhe falta. Um
colega de cara bisonha punha-o doente.
- Descontraia esses nervos - disse ele um dia a Adam. -
Parece que resolveu carregar sozinho com o peso da guerra. Afinal
de contas, você não tem responsabilidade nenhuma. A sua tarefa
consiste em obedecer a uma série de regras. Siga as regras e
deixe o resto. Não é você quem dirige a guerra.
Adam desceu o estore de madeira para esconder o sol do fim
da tarde e fitou as sombras paralelas projectadas na secretária.
- Eu sei - disse ele com lassidão - Oh! se sei. Só me
apoquento quando a resolução depende de mim, quando depende do meu próprio juízo. Apurei o filho do juiz Kendal e ele, afinal,
morreu na instrução.
- Isso não é consigo, Adam. Porque não bebe uns copos
antes de se deitar? Ou vá ao cinema, para mudar de ideias. -
(Henry enfiou os polegares nas cavas do colete e entornou-se na
cadeira).- E já que estamos a falar no assunto, Adam, deixe-me
dizer-lhe que os rapazes não ganham nada com os seus escrúpulos. Eu até o vi recrutar homens que seriam dispensados por mim
do serviço.
- Bem sei - disse Adam. - Só gostava de saber quanto
tempo isto ainda vai durar.
Henry lançou-lhe um olhar penetrante, tirou um lápis do bolso
do colete e pôs-se a tamborilar com ele nos incisivos superiores.
- Percebo o que quer dizer.
Adam olhou-o com espanto.
- O que é que eu quero dizer? - perguntou.
- Peço-lhe que não seja susceptível. Só agora é que me dou
conta da minha felicidade. Não há nada como ter filhas.
Adam percorreu com o dedo uma das sombras que atravessavam a secretária.
- Pois é - disse ele numa voz débil, acompanhada por um
suspiro.
- Os seus filhos só terão de se apresentar daqui a bastante
tempo.
- Pois é.
Adam percorreu uma linha luminosa e, depois, penetrou numa
zona de sombra.
- Não gostaria nada de... - principiou Henry.
- De quê?
- Gostava de saber o que sentiria se tivesse de decidir a
sorte de dois filhos.
- Eu demitia-me - disse Adam.
- Compreendo perfeitamente. Um pai talvez se sentisse tentado a dispensar os filhos.
- Não - disse Adam. - Demitia-me precisamente porque
seria incapaz de os livrar, mesmo que eles o merecessem.
Henry juntou as mãos e pô-las em cima da secretária.
- Não - disse ele. - Tem razão. - (Henry gostava de se
divertir e, sempre que podia, evitava as discussões a sério que,
para ele, eram sinónimo de aborrecimento). - Que tal se dá o
Aron em Stanford?
- Muito bem. Manda-me dizer que é difícil, mas que irá até ao
fim. Já me prometeu vir passar o Dia de Acção de Graças connosco.
- Gostaria de o ver. Uma noite destas, encontrei o Cal na rua.
A esse não lhe fazem o ninho atrás da orelha.
- Pois sim, mas não conseguiu acabar o curso um ano antes.
- Talvez não estivesse interessado nisso. Eu, por exemplo,
não frequentei a Universidade. E você?
- Também não. Estive na guerra.
- Isso é uma experiência magnífica.
Adam levantou-se vagarosamente, tirou o chapéu do cabide de
chifre de veado e disse:
- Boa noite, Henry.
2
De regresso a casa, Adam ia pesando as suas responsabilidades. Ao passar diante da padaria Reynaud, viu Lee a sair com
um pão doirado.
- Apetecia-me pão de alho - disse Lee.
- Pois eu gosto dele com carne - disse Adam.
- É o que temos para ojantar. Havia correio?
- Esqueci-me de olhar para a caixa.
Entraram em casa e Lee encaminhou-se para a cozinha. Poucos instantes depois, Adam foi ter com ele e sentou-se à mesa.
- Lee - perguntou - se mandarmos um homem para a
guerra e o matarem, seremos responsáveis?
- Vá para a frente - disse Lee. - Prefiro sempre ouvir de
uma só vez tudo o que têm a dizer-me.
- Suponha que surge uma pequena dúvida, mas que, apesar disso, mandamos o homem para a guerra e lá o matam?
- Estou a ver. O que é que o apoquenta? A responsabilidade
ou a censura?
- Não se trata de recear a censura.
- Às vezes a responsabilidade é pior.
- Tenho andado a pensar naquele dia em que o Sam Hamilton
e você tiveram uma interminável discussão acerca duma palavra.
Que palavra era?
- Agora compreendo. A palavra era Timshel.
- Timshel! E você disse...
- Eu disse que essa palavra conferia grandeza ao homem que
soubesse tirar partido dela.
- Recordo-me que o Sam Hamilton se sentiu muito reconfortado.
- Porque a palavra o libertou - disse Lee. - Dava-lhe o direito de ser um homem com um destino diverso do dos outros homens.
- Isso corresponde à solidão.
- Como tudo o que é valioso.
- Como era a tal palavra?
- Timshel... Tu podes...
3
Adam aguardava com impaciência o Dia de Acção de Graças, data marcada para a visita de Aron. Embora o filho se tivesse
ausentado havia muito pouco tempo, já o esquecera e formava dele
uma imagem diferente; como todos os que amam, transformava o
objecto amado. Com Aron ausente, os silêncios eram a
consequência desse afastamento e com ele se relacionavam todos os pequenos dissabores. Adam falava no filho, orgulhava-se
dele e contava mesmo a quem isso não interessava que Aron era
inteligente e que fizera dois anos num só. Queria transformar o Dia
de Acção de Graças numa autêntica festa para demonstrar ao rapaz que tinham sabido apreciar os seus esforços.
Aron vivia num quarto mobilado, em Paio Alto, e percorria
todos os dias, a pé, o caminho até à Universidade. Andava desgostoso. Esperara entrar num mundo vago e maravilhoso. Imaginara
rapazes de olhar franco, raparigas imaculadas, envergando togas
académicas e encaminhando-se para um alvo templo no cimo
duma colina. Os rostos eram luminosos, as vozes entoavam um
cântico radioso e a cena passava-se à tardinha. Não sabia onde
fora desencantar aquela visão da vida escolar. Talvez fosse nas
ilustrações de Gustave Doré para o Inferno de Dante. A Universidade construída por Leland Stanford em nada se parecia com isso.
Era um cubo de pedra castanha erguido no meio dum prado. Ao
lado, havia uma igreja ornada de mosaicos italianos; as aulas tinham móveis de pinho envernizado e eram um universo como outro
qualquer onde campeavam os sórdidos e mesquinhos antagonismos humanos, de mistura com alardes de fraternidade e quedas
espectaculares. Quanto aos supostos anjos, não passavam de pálidos adolescentes com calças sebentas de bombazina. Uns enfronhavam-se nos estudos. Outros já praticavam os vícios dos progenitores.
Aron, que sempre supusera não ter lar, sentia agora saudades
pungentes do seu. Não quis adaptar-se à nova vida, nem participar
dela. Após o que sonhara, o banzé e as palhaçadas dos estudantes pareceram-lhe horríveis. Trocou o dormitório da Universidade
por um sinistro quarto mobilado onde se poderia entregar a outro
sonho mais recente.
Depois das aulas, regressava logo a casa para viver no meio
das recordações que pusera a descoberto. A vivenda contígua à
padaria Reynaud era objecto de constantes e saudosas peregrinações. Lee era o melhor dos amigos e dos conselheiros, o pai era
um ídolo, o irmão um encanto, e Abra... Abra era um sonho
imaculado. Criado o sonho, irrompeu a paixão. À noite, terminado o
estudo, Aron mergulhava na carta quotidiana como se entrasse num
banho perfumado. À medida que essa imagem de Abra ia ficando
mais radiosa, mais pura e mais bela, Aron ia sentindo um prazer
crescente em se considerar perverso. Freneticamente, lançava no
papel jubilosas abjecções a respeito de si próprio, até que se deitava purificado, como se saísse dum acto sexual. Bastava-lhe descrever os seus desejos para renunciar a eles. O resultado eram
cartas banhadas de melancolia, mas uma melancolia tão elevada
que deixava Abra apreensiva. Ela era incapaz de perceber que a
sexualidade de Aron enveredara por um caminho normal.
Aron cometera um erro. Embora o admitisse, tinha de suportar
as consequências. Assim que voltasse a casa, adquiriria a certeza. Talvez nunca mais regressasse à Universidade. Lembrou-se de
que Abra sugerira que fossem viver para o rancho, e era esse, agora,
o seu sonho. Pôs-se a recordar os frondosos carvalhos e o ar puro,
o vento perfumado que descia dos montes e a ramaria a tremular.
Abra esperava-o debaixo duma árvore. Era ao anoitecer. Lá, após o
trabalho, como é evidente, viveria em pureza e em paz com o mundo, dele separado pelo pequeno vale. E, à noite, ficaria ao abrigo de
tudo quanto é vil...
CAPÍTULO XLVIII
1
No fim de Novembro, a Negra morreu e foi enterrada na austeridade, conforme pedira no seu testamento. Esteve exposta durante um dia na capela funerária da casa Muller, encerrada num caixão
de ébano e prata, onde o seu perfil severo e magro parecia ainda
mais ascético à luz dos quatro enormes candelabros dispostos a
cada canto do ataúde.
O marido, um preto de baixa estatura, acocorou-se como um
gato junto ao seu ombro direito, e ali se deixou estar várias horas
tão imóvel como ela. Não houve flores, nem coroas, nem sermões,
nem lágrimas. Mas apareceu uma estranha colecção de homens,
que entraram no bico dos pés e deitaram uma olhadela à defunta:
advogados, operários, empregados de escritório e de banco, muitos deles já com mais de meia idade. Depois, vieram, uma a uma,
as pequenas da Negra, por decoro e porque dava sorte.
Com a morte da Negra desaparecia uma instituição de Salinas. A cidade perdia o templo onde se adorava o fatal e escuro
sexo com o mesmo desespero e a mesma selvajaria dum sacrifício
humano. Ficava a casa de Jenny com o seu estardalhaço de gargalhadas. Na casa de Kate, os homens continuariam a deleitar-se em
êxtases maléficos que os deixavam transtornados, fracos e assustados com a própria perversidade. Mas nunca mais se assistiria à
sombria comunhão que tanto se assemelhava a uma oferenda da
liturgia vudu.
O enterro, também por exigência do testamento, apenas foi
constituído pelo carro funerário e por um automóvel onde seguia
amarfanhado o homenzinho preto. O dia estava cinzento e, mal a
casa Muller desceu o caixão com roldanas lubrificadas e silenciosas,
a carreta desapareceu e foi o próprio marido que teve de atirar a
terra para o coval com uma pá nova. O porteiro do cemitério, que
aparava a relva um pouco mais longe, ouviu um gemido levado pelo
vento.
Joe Valery fora beber um copo com Butch Beavers e aproveitaram a ocasião para deitar uma vista de olhos à Negra. Butch
estava cheio de pressa, pois tinha de ir a Natividad para leiloar um
rebanho de Herefords de cabeça branca por conta dos Tavernetti.
Ao saírem da casa mortuária, Joe encontrou Alf Nichelson -
o estarola do Alf Nichelson - um dos raros sobreviventes duma
era remota. Alf era o homem dos sete ofícios: carpinteiro, canalizador, ferreiro, electricista, estucador, amola-tesouras e remendão. Alf, que sabia fazer de tudo e trabalhava sem descanso, nunca conseguira amealhar fortuna. Era um homem que sabia tudo
sobre todos, desde que o mundo era mundo.
No tempo em que fora novo, havia dois géneros de pessoas
que tinham acesso a todas as casas e a todas as bisbilhotices: a
costureira e o homem-que-dava-uma-ajuda. Alf conhecia todas as
histórias de todas as casas que ficavam dos dois lados da Main
Street. Era um bisbilhoteiro inveterado, insaciavelmente curioso e
vingativo, embora sem maldade.
Olhou para Joe e tentou recordar-se onde já o tinha visto.
- Eu conheço-te - disse ele. - Espera, não me digas.
Joe recuou. Desconfiava das pessoas que o conheciam.
- Já sei. Tu trabalhas em casa da Kate.
Joe soltou um suspiro de alívio. Receava que Alf o tivesse conhecido mais cedo.
- Isso mesmo - concordou ele rapidamente.
- Nunca me esqueço duma cara - disse Alf. - Vi-te lá em
casa quando andava a fazer a salinha cinzenta. Para que era que
ela queria aquilo? Nem sequer tinha janela!
- Ela gosta de estar às escuras - explicou Joe. - Tem
dores nos olhos.
Alf fungou. Podiam dizer-lhe as coisas mais simples que ele
não acreditava. Se alguém desse os bons-dias a Alf, ele procuraria
logo descortinar o sentido oculto dessa palavra. Convencera-se de
que toda a gente dissimulava um segredo e de que só ele o poderia
decifrar.
Com um aceno da cabeça, designou a casa Muller.
- Mais uma - disse ele. - Já desapareceram quase todos os
pioneiros. Quando a Jenny se for, será o fim. E já falta pouco.
Joe sentia-se nervoso. Apetecia-lhe ir-se embora, e Alf bem o
sabia. Alf descobria sempre quais eram as pessoas que se queriam furtar à sua companhia. Talvez fosse esse o motivo que o levava a armazenar tanta coscuvilhice; quem não escutaria um homem
que conhecia tantas histórias saborosas a respeito dos vizinhos?
No coração de todos nós, há uma bisbilhoteira em embrião. Ninguém
gostava de Alf, mas todos lhe davam ouvidos. O mexeriqueiro
compreendeu que Joe ia invocar um pretexto para se afastar.
Subitamente, lembrou-se de que havia já muito tempo que não sabia
novidades de Kate. Talvez pudesse trocar algumas velhas histórias
por outras mais recentes.
- Bons tempos que nunca mais voltam - prosseguiu ele.
Nessa altura, eras tu um petiz.
- Tenho de me encontrar com um tipo meu amigo - disse
Joe.
Alf fingiu que não tinha ouvido.
- Olha a Faye, por exemplo - disse ele. - Aquilo é que era
uma mulher. - (E acrescentou entre parêntesis): - Dantes era a
Faye quem mandava na barraca. Ninguém sabe como foi que a
Kate lhe sucedeu. É um mistério que chegou a levantar suspeitas.
Alf teve a satisfação de perceber que o tipo a quem Joe marcara um encontro ia ter de esperar um bom bocado.
- Que suspeitas? - perguntou Joe.
- Ora! Tu sabes o que são os boatos. Se calhar não tinham
fundamento nenhum. Mas a verdade é que tudo aquilo foi bastante
esquisito.
- Queres tomar qualquer coisa? - perguntou Joe.
- Já não era sem tempo - respondeu Alf - Há quem diga
que os funerais dão vontade de ir para a cama com uma mulher.
Eu devo estar a ficar velho; a mim, só me dão sede. A Negra
também era um caso sério. Se eu contasse o que sei... Há trinta e
cinco... não, há trinta e sete anos que a conhecia.
- Quem era a Faye? - perguntou Joe.
Entraram no bardo Griffin. Era um homem que tinha horror ao
álcool e que desprezava soberanamente os alcoólicos. Amo e senhor absoluto do seu bar, havia certos sábados em que chegava a
recusar uma rodada de vinte copos aos fregueses que, na sua
opinião, já estavam demasiado tocados. O negócio corria-lhe às
mil maravilhas e frequentava-se o seu bar limpo e sossegado para
efectuar transacções ou para discutir sem receio de ser interrompido.
Joe e Alf sentaram-se à mesa redonda do fundo e cada qual
bebeu três canecas de cerveja. Joe foi posto ao corrente do verdadeiro e do falso, do que era fundado e infundado, das suspeitas
e das insinuações. De toda aquela trapalhada confusa, extraiu algumas ideias. Devia haver algo de equívoco na morte da Faye. Kate
talvez fosse mulher de Adam Trask. Não se mostrou interessado
por isto - o Trask talvez estivesse disposto a pagar. Quanto à
história da Faye, ainda estava muito quente para lhe tocar. Precisava de pensar no assunto - mas a sós.
Ao cabo de duas horas de tagarelice, Alf estava danado. O Joe
não se tinha descaído. Em troca do que ficara a saber, não havia
fornecido a mínima ideia nem a mínima indicação. Alf concluiu então:
se um tipo não quer abrir a boca é porque pretende esconder alguma coisa. A quem hei-de pedir informações dele?
Finalmente, Alf disse:
- Sabes, eu gosto muito da Kate. De vez em quando, arranja-me trabalho, paga-me bem e sem demoras. Tudo o que contam a respeito dela deve ser mentira. Mas, se pensarmos melhor, é
uma mulher muito estranha. E tem um destes olhares! Não achas?
- Eu não me tenho dado mal - afirmou Joe.
A perfídia de Joe teve o condão de enraivecer Alf que resolveu
vingar-se com uma alfinetada:
- Uma vez, passou-me uma ideia esquisita pela cabeça. Eu
estava a fazer a salinha sem janela e ela olhou-me com aquele
olhar frio. Vai daí, pus-me a matutar que se ela soubesse tudo o
que eu sei dela e me oferecesse um copo ou uma fatia de bolo...
pois sim! dizia-lhe logo: «Não minha senhora, muito obrigado».
- Pois eu entendo-me muito bem com ela - repetiu Joe. - E
agora tenho de ir estar com o tal tipo.
Joe encaminhou-se para casa, pois queria pensar em sossego
no seu quarto. Sentia-se apreensivo. De repente, pôs-se de pé,
examinou a mala da roupa e abriu todas as gavetas. Receava que
alguém lhe tivesse revistado o quarto. Uma desconfiança, sem mais
nem menos. Mas estava tudo em ordem. Contudo, ficou nervoso.
Procurou dar uma arrumação ás coisas que acabara de saber.
Bateram à porta e Thelma entrou, de olhos inchados e nariz
vermelho.
- Gostava de saber o que é que deu à Kate.
- Ela tem andado doente.
- Não me refiro a isso. Estava eu na cozinha a beber um
copo de leite, quando ela chegou e me deu uma bofetada.
- Tens a certeza de que não havia uísque no teu leite?
- Não. Juro-te que era só leite com baunilha. Ela não tem o
direito de me tratar deste modo.
- Mas tratou-te, não tratou?
- Pois sim, mas eu é que não estou disposta a aturar uma
coisa destas.
- Ai não, que não estás! Agora, pisga-te!
Thelma fitou-o com o seu belo olhar sombrio e misterioso.
Recuperada a calma, já se sentia mais forte.
- Joe - perguntou ela - tu és realmente um filho da puta ou
apenas finges ser?
- Que tens tu com isso?
- Nada, seu filho da puta!
2
Joe resolveu agir devagar, com muita cautela e só depois de
madura reflexão.
«Agora que tenho os cordelinhos na mão, não posso desperdiçá-los. »
Foi receber ordens ao quarto de Kate, mas apenas lhe viu as
costas. Ela estava sentada à secretária, com a pala verde em cima
dos olhos, e nem sequer se voltou para ele. Após ter dado as ordens numa voz seca, prosseguiu:
- Joe, não sei se tens tomado conta da casa como deve ser.
Eu estive doente, mas agora já me sinto melhor.
- Passa-se alguma coisa?
- É muito possível. Tenho a impressão de que a Thelma estava a beber uísque em vez de leite com baunilha. Não gosto que ela
beba uísque. Aí deve andar desmazelo teu.
Joe procurou uma desculpa.
- Tenho tido muito que fazer!
- Muito que fazer?
- Pois claro. Tenho andado às voltas com o seu caso.
- Que caso?
- Então, não sabe? A Ethel.
- Deixa lá a Ethel!
- Está bem - disse Joe. (Depois, sem querer, acrescentou): - Vi ontem um tipo que me disse que a tinha encontrado.
Se Joe não a conhecesse, não teria feito a pequenina pausa,
não lhe teria concedido os rígidos dez segundos de silêncio, ao
cabo dos quais ela perguntou:
- Onde?
- Aqui.
Kate rodou lentamente a cadeira giratória e encarou-o.
- Eu não te devia ter deixado trabalhar às escuras, Joe. Custa
muito confessar um erro, mas, às vezes, não há outro remédio.
Escusado será lembrar-te que fiz com que a polícia pusesse a
Ethel fora da comarca. Pensava que ela me tivesse feito algum
mal. - (A voz adquiriu um tom melancólico). - Afinal, tinha-me
enganado. Só mais tarde é que compreendi. Agora sinto remorsos
por lhe ter causado dissabores sem nenhuma necessidade. Quem
me dera encontrá-la e ajudá-la a esquecer. «És capaz de achar
estranho este meu desejo.
- Não acho, não.
- Então vê se a encontras, Joe. Só me sentirei melhor quando tiver recompensado essa pobre desgraçada.
- Vou tentar descobri-la.
- Joe, se precisares de dinheiro, é só dizer-me. Se a encontrares, repete-lhe o que te disse. Se ela não quiser vir cá, pergunta-lhe para onde posso telefonar. Precisas de dinheiro?
- Para já, não. Mas vou ter que me ausentar muitas vezes de
casa.
- Muito bem. Podes ir, Joe.
Joe estava delirante de alegria. No corredor, cruzou os braços
e abraçou os ombros, como se quisesse conter a satisfação que
se apoderara dele. Por pouco, era capaz de pensar que fora tudo
imaginado por ele. Atravessou a sala quase às escuras e cheia de
murmúrios, abriu a porta da rua e contemplou o céu onde as estrelas apareciam e desapareciam entre as nuvens arrastadas pelo vento.
Joe pensou no pai. Recordava-se de qualquer coisa que o velhote lhe tinha dito: «Desconfia das almas caridosas, aconselhara
o pai. É preciso muita cautela com essas damas que andam sempre de mão estendida. »
Joe murmurou:
- Uma alma caridosa! Sempre a julguei mais forte do que
isso.
Lembrou a conversa que acabara de ter com ela e pesou cada
uma das palavras para ter a certeza de que não eram uma faca de
dois gumes. Não, não era nada disso. Tornou a pensar no que Alf
lhe dissera: «Se ela me oferecesse um copo ou uma fatia de bolo...»
3
Kate continuava sentada à secretária. Ouvia o vento que assobiava nos alfeneiros, e tanto o vento como a escuridão estavam
cheios de Ethel, gorda, flácida, viscosa como uma alforreca. Kate
sentiu-se tremendamente exausta.
Entrou na salinha cinzenta, fechou a porta e sentou-se no escuro, escutando as pequeninas dores que marinhavam pelos dedos
como formigas. O sangue latejava-lhe nas fontes. Apalpou a cápsula pendente do fio de ouro e esfregou na cara o tubinho de metal
ainda morno do contacto com os seios. A coragem voltou a pouco
e pouco. Foi lavar a cara, pintou-se, penteou-se e tufou o cabelo.
Depois, desceu até à sala, mas deteve-se à porta, como de costume, para escutar.
Duas mulheres e um homem estavam a conversar, mas todos
se calaram quando Kate entrou e disse:
- Helen, precisava de falar contigo se não estivesses ocupada.
A rapariga acompanhou-a até ao quarto. Era uma loira deslavada com uma pele cor de osso encerado.
- Que há, minha senhora? - perguntou ela receosamente.
- Senta-te. Não há nada de especial. Tu foste ao enterro da
Negra?
- Não queria que fosse?
- Isso não interessa. Foste ou não?
- Fui, sim, minha senhora.
- Conta-me.
- O quê?
- Tudo de que te lembrares. Como foi?
Helen respondeu nervosamente:
- Foi horrível e magnífico ao mesmo tempo.
- Que queres tu dizer?
- Não sei. Não havia flores, nem coisa nenhuma. Mas havia...
uma espécie... uma espécie de dignidade. A Negra estava estendida num caixão preto com quatro enormes candelabros até parecia
nem sei como dizer.
- Já disseste, deixa lá. Como ia ela vestida?
- Vestida?
- Sim. Não a enterraram toda nua, pois não?
Helen tentou concentrar-se.
- Não sei - acabou por dizer. - Não me lembro.
- Foste ao cemitério?
- Não, minha senhora. Ninguém foi a não ser ele.
- Quem?
- O homem dela.
Kate perguntou depressa, quase com demasiada pressa:
- Tens fregueses esta noite?
- Não, minha senhora. Hoje é véspera do Dia de Acção de
Graças. O negócio está fraco.
- Já me tinha esquecido - disse Kate. - Podes ir-te embora.
Mal a rapariga saiu, aproximou-se da secretária. E enquanto
examinava a conta discriminada do canalizador, ia afagando com a
mão esquerda o fio pendurado ao pescoço: aquilo dava-lhe uma
vaga sensação de conforto e de segurança.
CAPÍTULO XLIX
1
Lee e Cal procuraram dissuadir Adam de ir à estação esperar
o expresso San Francisco-Los Angeles.
- Porque não deixas ir antes a Abra sozinha? - perguntou
Cal. - É a primeira pessoa que ele deve querer ver.
- Se fôssemos todos, ele até era capaz de não dar por nós
- acrescentou Lee.
- Eu quero vê-lo sair do comboio - disse Adam. - Ele deve
estar muito mudado.
Lee disse:
- Só se foi embora há dois meses; é impossível que tenha
mudado ou envelhecido.
- Pois eu ia jurar que sim.
- Se tu fores, teremos todos de ir - disse Cal.
- Não tens vontade de ver o teu irmão? - perguntou Adam
com severidade.
- Claro que tenho. Mas ele é que não deve ter vontade de me
ver... pelo menos, em primeiro lugar.
- Tem, sim - disse Adam. - Não subestimes o teu irmão.
Lee levantou as mãos em sinal de desistência:
- Então, vamos.
- É formidável - disse Adam. - Quantas coisas não terá
ele aprendido? Só queria saber se já fala de outra maneira. Sabe,
por acaso, Lee, que no Leste os estudantes costumam adoptar a
linguagem da Universidade que frequentaram? É fácil distinguir um
estudante de Harvard dum estudante de Princeton. Pelo menos, é
o que se diz.
- Hei-de apurar o ouvido - disse Lee. - Sempre gostava de
saber que dialecto usam em Stanford.
O chinês e Cal trocaram um sorriso, mas Adam não achou
graça nenhuma.
- Pôs fruta no quarto dele? Não se esqueça de que ele adora
a fruta.
- Pus pêras, maçãs e uvas moscatéis.
- É verdade, ele gosta muito de uvas moscatéis. Agora me
lembro.
Empurrados por Adam, chegaram à estação meia hora antes
da tabela do comboio. Abra já lá se encontrava.
- Amanhã não posso ir almoçar, Lee - disse ela. - O meu
pai quer que fique em casa. Irei logo depois do jantar, assim que
estiver despachada.
- Parece-me um pouco ansiosa - observou Lee.
- E você não está?
- Também estou, sim. Espreite lá para a linha para ver se o
sinal já está verde.
A pontualidade dos comboios constitui motivo de orgulho e de
apreensão para muita gente. Quando o sinal passa do encarnado
ao verde e surge o farol da locomotiva pondo em relevo todos os
pormenores da estação, os homens costumam consultar o relógio
e dizer: «Chega à tabela. »
A sensação de orgulho é acompanhada de alívio. A noção da
importância do segundo nas actividades humanas tem aumentado
cada vez mais. Pouco falta para que o segundo seja substituído
pelo décimo de segundo, depois, pelo centésimo, até ao dia custa-me a crer que ele chegue - em que o homem extenuado háde dizer: «E depois, no fim de contas, o que é uma hora na vida
dum homem?» Mas esta preocupação da fracção de segundo não
é ridícula. Um facto que se produz demasiado cedo ou demasiado
tarde pode escangalhar o mecanismo moderno e as consequentes
perturbações propagar-se-ão, como círculos num charco para onde
se atirou uma pedra.
O expresso, lançado a toda a velocidade, penetrou na gare
como se não tivesse a intenção de parar. A máquina e os furgões já
tinham passado quando se ouviu o silvo dos freios de ar comprimido.
Do comboio desceu muita gente, especialmente parentes que
vinham visitar a família naquele dia de festa, ajoujados ao peso da
bagagem e das prendas. A família de Aron não o descobriu logo. O
rapaz parecia ter crescido.
Aron trazia um chapéu de copa achatada com fita estreita,
extremamente elegante. Assim que avistou a família, desatou a
correr e tirou o chapéu. Tinha os cabelos loiros cortados à escovinha. Os olhos brilhavam-lhe e o grupo riu de prazer ao vê-lo.
Aron largou a mala e ergueu Abra nos braços. Depois de a
colocar no chão, estendeu as mãos a Adam e a Cal. Finalmente,
empunhou Lee pelos ombros e abraçou-o com risco de o sufocar.
De regresso a casa, todos falavam ao mesmo tempo: «Como
estás?» «Pareces vender saúde. » «Abra, tu estás esplêndida. »
«Porque cortaste o cabelo?» «É a moda. » «Tinhas um cabelo tão
bonito. » Percorreram rapidamente a Main Street. À esquina da
Central Avenue, passaram diante da montra da padaria Reynaud,
onde se amontoavam as belas carcaças doiradas, e a dona acenou-lhes com a mão enfarinhada. Finalmente, entraram em casa.
Adam perguntou:
- Há café, Lee?
- Deixei-o ao lume antes de sair.
As chávenas tinham ficado prontas. Subitamente, compreenderam que estavam todos novamente reunidos, Aron e Abra no
divã, Adam na sua poltrona debaixo do candeeiro, Lee que servia o
café, e Cal de pé, de braços cruzados, na moldura da porta. Conservaram-se calados por já ser muito tarde para as banalidades e
muito cedo ainda para outra coisa qualquer.
Adam rompeu o silêncio:
- Quero que me contes tudo. Tiveste boas notas?
- Só faço exame no mês que vem, papá.
- Estou certo de que hás-de ter boas notas.
Mesmo contra vontade, Aron esboçou uma careta de impaciência.
- Amanhã logo falamos - disse Adam. - Tu deves estar
cansado.
- Apostava o contrário - disse Lee. - Ele deve ter é vontade
de ficar só.
Adam olhou para Lee e disse:
- Evidentemente... evidentemente. Queres que nos vamos
deitar?
Abra resolveu o problema.
- Eu não posso ficar muito tempo - disse ela. - Acompanhas-me a casa, Aron? Amanhã logo nos vemos todos outra vez.
Durante o trajecto, Aron sentia arrepios apesar de ir aconchegado ao braço de Abra.
- Vamos ter geada - disse ele.
- Gostaste de voltar a casa?
- Gostei. Tenho muitas coisas a dizer-te.
- Boas?
- Isso depende de ti.
- Estás com um ar muito sério.
- O caso é sério.
- Quando te vais embora?
- No domingo à noite.
- Então, temos muito tempo à nossa frente. Eu também preciso de falar contigo. Ainda temos o dia de amanhã, sexta, sábado
e todo o domingo. Não te importas de não entrares esta noite em
minha casa?
- Porquê?
- Depois te explico.
- Eu queria saber já.
- O meu pai anda com uma crise.
- Contra mim?
- Sim. Amanhã não posso jantar contigo. Mas tenciono comer pouco em casa. Não te esqueças de pedir ao Lee para me
guardar alguma coisa.
A timidez apoderara-se novamente de Aron. Abra podia senti-lo pelo braço que se soltara, pelo silêncio e pela cabeça levantada.
- Não te devia ter dito isto esta noite.
- Fizeste bem - respondeu ele devagar. - Diz-me com
franqueza: continuas a gostar de mim?
- Continuo.
- É tudo o que pretendo saber. Vou-me embora, adeus. Amanhã nos tornaremos a ver.
Abra ficou um instante à porta, guardando nos lábios o gosto
do beijo fugaz e sentindo-se um pouco vexada por ele ter concordado
em se ir embora tão depressa. Depois, troçou de si mesma, pois
era ridículo ficar vexada quando se obtinha o que se pedia. Os passos afastavam-se rapidamente e Abra entrou em casa. «Devo estar
doida. Não passou tudo de imaginação minha.»
2
No seu quarto, depois de ter dado as boas-noites aos demais,
Aron sentou-se à beira da cama e contemplou as mãos cruzadas
entre os joelhos. Sentia-se abandonado, incapaz de se defender da
ambição do pai. Até àquela noite nunca avaliara a amplitude dessa
ambição e perguntava a si mesmo se não lhe faltariam as forças
para se libertar. Não conseguia ordenar as ideias. A casa parecia
húmida e fria. Arrepiou-se, levantou-se e abriu de mansinho a porta
do quarto. A luz de Cal estava acesa. Bateu à porta e entrou sem
esperar pela resposta.
Cal estava sentado diante duma secretária nova, entretido a
recortar papéis de cor. Ao ouvir entrar Aron, tapou apressadamente
qualquer coisa com o mata-borrão.
Aron sorriu-se.
- Presentes? - perguntou.
- Sim - respondeu Cal, sem acrescentar mais nada.
- Posso falar contigo?
- Evidentemente. Mas fala em voz baixa se não queres que
o papá apareça. Ele tem sempre medo de perder alguma coisa.
Aron sentou-se na cama, mantendo-se calado durante tanto
tempo que Cal lhe perguntou:
- Há alguma coisa? Tiveste alguma contrariedade?
- Não, não tive. Queria falar contigo. Cal, eu não quero voltar para a Universidade.
Cal teve um sobressalto e voltou-se:
- Que dizes? Porquê?
- Não gosto daquilo.
- Espero que ainda não tenhas dito nada ao papá? Ele ficava
desapontado. Já basta que eu também não queira ir. Que tencionas
fazer?
- Gostava de ir viver para o rancho.
- E a Abra?
- Foi ela quem me fez a proposta.
Cal observou-o atentamente.
- Não sabes que o rancho está arrendado?
- Sei, sim.
- E sabes que a lavoura não dá nada?
- Eu de pouco preciso. Contento-me com o suficiente para
viver.
- Isso para mim não me chegava - disse Cal. - Tenciono
ganhar muito dinheiro e hei-de consegui-lo.
- De que maneira?
Cal sentia-se mais velho e mais maduro do que o irmão. Mais
forte, também.
- Se continuares a estudar, durante esse tempo montarei eu
um negócio. Quando tiveres terminado, faço-te meu sócio. Cada
um de nós dirigirá um ramo diferente. Seria uma boa ideia.
- Que necessidade tenho eu de voltar à Universidade?
- Porque assim quer o nosso pai.
- Não é razão.
Cal lançou um olhar feroz ao irmão. Analisou os cabelos loiros, os olhos muito abertos e, de súbito, compreendeu porque é
que o pai preferia Aron. Apressadamente, disse:
- Espera por amanhã. Mais valia que terminasses o período e
que não fizesses nada por enquanto.
Aron ergueu-se e encaminhou-se para a porta.
- Para quem é a prenda?
- Para o papá. Amanhã, depois do jantar, logo vês.
- Não estamos no Natal.
- Pois não - disse Cal. - Mas ainda há-de ser melhor do
que no Natal.
Assim que Aron saiu do quarto, Cal afastou o mata-borrão e
tornou a contar as quinze notas novinhas em folha. O banco de
Monterey mandara-as vir de propósito de San Francisco e só depois de ter procedido a indagações. Causava escândalo que um
garoto de dezassete anos pudesse ter tanto dinheiro e que andasse com ele, ainda por cima. Os banqueiros não gostam de ver o
dinheiro a passear, mesmo que a viagem tenha um objectivo sentimental. Fora necessário que Will Hamilton afirmasse que o dinheiro pertencia a Cal, que ele o ganhara honradamente e que
podia fazer dele o que lhe apetecesse.
Cal embrulhou as notas em papel de seda e atou-as com uma
fita encarnada, tentando, desajeitadamente, fazer o laço. O embrulho era tão pequeno que se poderia pensar que continha um
lenço. Depois de o esconder debaixo das camisas, no armário, foi-se deitar. Mas não conseguiu conciliar o sono. Estava ansioso.
Apetecia-lhe que o dia seguinte já tivesse decorrido e que o presente já estivesse nas mãos do dono. Pôs-se a imaginar o que tencionava dizer:
« Isto é para ti.»
«O que é?»
«Um presente.»
A partir daqui, não conseguia prever o que se passaria. Deu
voltas e reviravoltas na cama e, mal amanheceu, vestiu-se e saiu de
casa com pezinhos de lã.
Na Main Street, o velho Martin conduzia a carroça da limpeza. A edilidade inscrevera no orçamento municipal a aquisição
dum veículo automóvel para aquele serviço, e o velho Martin tinha
esperanças de vir a ser o condutor, mas referia-se sempre à novidade com um cínico desengano. Os novos é que tiravam proveito
de tudo. A carroça do lixo dos Bacigalupi passou por ele e Martin
lançou-lhe um olhar cheio de rancor. Aquilo, sim, é que era negócio. Aqueles, já estavam cheios dele.
Na rua não se avistava vivalma, excepto alguns cães que
farejavam junto às portas fechadas e um simulacro de actividade
no restaurante San Francisco. O táxi novo de Pet Bulene esperava à porta pois, na véspera, tinham prevenido Pet de que as
irmãs Williams tomariam o comboio da manhã para San Francisco.
O velho Martin chamou Cal.
- Eh! amigo! Tens um cigarro?
Cal deteve-se e apresentou-lhe o maço de Murads.
- Cigarros de luxo - comentou Martin. - Também não tenho
lume.
Cal deu-lhe lume tendo o cuidado de não inflamar as barbas de
Martin.
O velho soltou um suspiro de dilacerar a alma.
- Os novos é que tiram proveito de tudo - disse ele. - Tenho
a certeza de que não mo deixam conduzir.
- O quê? - perguntou Cal.
- Ora o que há-de ser? O novo carro da limpeza. Então tu
não sabes? Mas por onde tens andado?
Parecia-lhe incrível que um ser humano, a não ser que acabasse de chegar duma ilha deserta, ignorasse a compra do carro
da limpeza. Mas esqueceu-se logo de Cal. Talvez os Bacigalupi
estivessem dispostos a dar-lhe trabalho. Ganhavam dinheiro em
barda. Já tinham três carros e um camião novo.
Cal virou para Alisai Street, entrou no correio e olhou para o
apartado 632. Estava vazio. Regressou vagarosamente a casa e
encontrou Lee na cozinha entretido a rechear um enorme peru.
- Passaste toda a noite fora? - perguntou Lee.
- Não, fui dar um passeio.
- Estás enervado?
- Estou.
- É natural. No teu lugar, eu também estaria. Custa muito
dar, mas ainda custa mais receber. Achas isto ridículo? Queres
café?
- Pois sim.
Lee limpou as mãos e encheu duas chávenas de café.
- Como achaste o Aron?
- Achei-o bem.
- Conseguiste falar com ele?
- Não - respondeu Cal.
Assim era mais fácil. Lee quereria saber o que ele tinha dito.
Ora, aquele dia não pertencia ao Aron, mas sim a Cal. Marcara-o
no calendário e pretendia aproveitá-lo o mais possível.
Aron entrou com uma cara ainda ensonada.
- A que horas é o almoço, Lee?
- Não sei... Às três e meia, quatro horas.
- Não podias adiá-lo para as cinco?
- Se não fizer desarranjo ao Adam. Porquê?
- Porque a Abra não pode vir antes disso. Eu queria pedir
uma coisa ao papá e gostava que ela estivesse presente.
- Havemos de dar um jeito - prometeu Lee.
Cal levantou-se precipitadamente e correu para o quarto. Sentou-se à secretária, acendeu o candeeiro e deixou-se invadir por
uma vaga sensação de angústia a que não faltava um certo ressentimento. Sem se dar ao menor esforço, Aron roubara-lhe o seu
dia. Pelos vistos, seria o dia de Aron. Depois, subitamente, encheu-se de vergonha, e mergulhou a testa nas mãos. Estou com
ciúmes. Sou ciumento, é o que sou. Mas não quero ter ciúmes.» E
repetiu: «Ciumento, ciumento, ciumento, como se a palavra perdesse a virulência com a repetição. Já que fora tão longe, resolveu
prosseguir na senda da punição: «Porque é que dou o dinheiro ao
meu pai? Para bem dele? Não. Só para o meu. Foi o Will Hamilton
quem disse... É uma tentativa para o comprar. Tudo isto é ignóbil.
Tudo em mim é ignóbil. Aqui estou eu cheio de ciúmes do meu
irmão. Sim, o melhor é chamarmos as coisas pelo seu nome.
Porque não hei-de ser honesto? Eu bem sei porque é que o meu pai
gosta do Aron. É por ele ser parecido com ela. O meu pai nunca a
conseguiu esquecer. Talvez ele nem o saiba, mas é a verdade.
Gostava de saber se ele dá por isso. Pronto, agora também tenho
ciúmes dela. Mais valia que pegasse no meu dinheiro e me pusesse
a andar. Não faço falta a ninguém. Não seria preciso muito tempo
para que se esquecessem de que eu até tinha existido... Todos,
excepto o Lee. E, mesmo esse, não sei se gosta de mim. Se calhar,
não gosta.» Cal dava punhadas na testa. «O Aron também terá de
lutar assim contra si mesmo? Não me parece. Mas que sei eu? E
se lhe perguntasse? Não me respondia, pela certa.»
Cal oscilava entre a raiva de si mesmo e o dó por si mesmo.
Ouviu-se, então, uma voz desdenhosa: «Se és honesto, porque
não confessas que gostas de te infligir essas torturas? Essa é que
é a verdade. Porque não te limitas a seres o que és e a fazeres o
que desejas?» Cal ficou perplexo. Gostava de se torturar? Era evidente. Pelo facto de se açoitar a si mesmo, evitava que outros o
fizessem em seu lugar. Concentrou-se. «O melhor é entregar o dinheiro, mas sem ligar muita importância. Não esperar por nada e
não prever coisa nenhuma. Dá-lo e esquecê-lo. E esquecer logo.
Dar... dar. Dar este dia ao Aron. Porque não?» Ergueu-se de um
salto e precipitou-se para a cozinha.
Aron mantinha aberta a pele do peru enquanto Lee metia o
recheio. O fogão estoirava de calor.
Lee disse:
- Ora vejamos, nove quilos, a quarenta minutos por quilo,
faz nove vezes quarenta. Portanto, trezentos e sessenta minutos.
Seis horas. Das onze ao meio-dia; do meio-dia à uma...
Pôs-se a contar pelos dedos.
Cal disse:
- Quando estiveres despachado, Aron, vamos dar uma volta.
- Onde? - perguntou Aron.
- Pela cidade. Queria pedir-te uma coisa.
Cal levou o irmão aos estabelecimentos Berges & Garrisière,
importadores de vinhos e licores que ficavam do outro lado da rua.
- Tenho algum dinheiro - disse Cal - e pensei que gostasses de comprar vinho para o almoço. Vou dar-te o dinheiro.
- Que género de vinho?
- Tem de ser uma festa a sério. Levamos champanhe. Será
a tua prenda.
Joe Garrisière disse-lhes:
- Vocês ainda são muito novos. Lamento, mas não posso
vender-lhes vinho.
Cal disse:
- Já sei o que vamos fazer. Nós pagamos e depois manda
entregar o vinho ao meu pai.
- Muito bem - disse Joe Garrisière. - Tenho um Oeil de
Perdrix que é uma especialidade.
E deu um estalo com a língua como se estivesse a prová-lo.
- O que é isso? - perguntou Cal.
- É um champanhe da mesma cor do olho da perdiz, um
pouco mais escuro que o rosado, mas muito seco. Cada garrafa
custa quatro dólares e meio.
- Não é caro de mais? - perguntou Aron.
- Claro que é - respondeu Cal a rir-se. - Mande entregar
três garrafas, Joe. - (Depois, dirigindo-se a Aron): - É a tua prenda.
3
Parecia a Cal que o dia nunca mais passava. Apetecia-lhe sair
de casa, mas não havia maneira de se resolver. Às onze horas,
Adam foi para a Junta de Recrutamento, embora estivesse fechada, para estudar as fichas duma nova batelada de recrutas.
Aron mostrava-se perfeitamente calmo. Estava sentado na sala,
entretido a olhar os bonecos das aventuras cómicas de velhos números da Revista das Revistas. Da cozinha vinha um cheiro de
peru assado que enchia toda a casa.
Cal foi ao quarto, tirou o presente da gaveta e pô-lo em cima da
secretária. Tentou escrever um cartão para lhe juntar. Para o meu
pai, da parte do Ca/eb. Para Adam Trask, da parte de Caleb Trask.
Rasgou os dois cartões aos bocadinhos e atirou-os para a retrete,
puxando, em seguida, a corrente do autoclismo.
Começou a reflectir: «Porque lho hei-de dar hoje? Amanhã
também podia falar com ele calmamente e dizer-lhe: «Aqui tem
isto», indo-me logo embora. Seria mais fácil. Não, acrescentou
em voz alta. Quero que os outros estejam presentes.» Assim é
que seria. Mas respirava com dificuldade e sentia a humidade nas
palmas das mãos. Era o medo. Tornou a pensar na manhã em que
o pai o fora buscar à cadeia. Que calor, que intimidade! Isso é que
ele devia recordar: a confiança do pai. Ele até afirmara: «Tenho
confiança em ti.» Ao evocar estas palavras, Cal sentiu-se melhor.
Cerca das três horas, ouviu os passos de Adam e um rumor de
conversa na sala. Cal desceu na altura em que o pai dizia:
- Os tempos mudaram. Só alcança sucesso o homem que se
especializar. É por isso que eu estou tão satisfeito por tu continuares a estudar.
Aron replicou:
- Estive a pensar nisso e pergunto...
- Não penses mais. A primeira escolha que fizeste foi a melhor. Olha para o meu caso. Tenho conhecimentos superficiais sobre muitas matérias, mas não conheço nenhuma o bastante para
poder ganhar a vida.
Cal sentou-se sem fazer ruído. Adam não deu por ele. Estava
absorvido na conversa.
- É natural que um homem queira ver o filho bem sucedido -
prosseguiu Adam. - Talvez eu esteja em melhor posição do que tu
para o saber.
Lee enfiou a cabeça pela porta.
- A balança da cozinha deve estar escangalhada. O peru vai
ficar pronto antes do que eu pensava. Aposto que o bicho não pesava nove quilos.
- Deixe-o ficar ao pé do lume - disse Adam. (Depois, continuou): - O velho Sam Hamilton tinha razão quando dizia que já
passara a época dos filósofos universais. O peso da sapiência é
grande de mais para um só cérebro. Ele dizia que tempos viriam
em que o homem se limitaria a explorar uma parcela, mas que a
conheceria a fundo.
- Pois - disse Lee do limiar da porta - mas também o
deplorava. Ele antevia essa época com horror.
- Sério? - perguntou Adam.
Lee entrou na sala. Segurava a colher do molho na mão direita, mantendo a esquerda por debaixo. Mas, ao entrar na sala, esqueceu-se da precaução que tomara e brandiu a colher. Alguns
pingos de gordura caíram no tapete.
- Já que me fez a pergunta, sempre gostava de saber se era
ele que tinha horror ou se sou eu que tenho horror por ele.
- Não se exalte - disse Adam. - Já não se lhe pode dizer
nada sem que leve a coisa à conta de insulto pessoal.
- Talvez o saber se tenha tornado demasiado vasto, mas
quem sabe se o homem também não se tornou demasiado pequeno - disse Lee. - É muito possível que à força de se ajoelhar
diante dos átomos ele acabe por ter uma alma do tamanho do que
adora. Pode ser que o especialista não passe dum covarde que
tem medo de olhar para o que existe fora da sua gaiola. Pense só
no que perde o seu especialista: todo um mundo que palpita do
outro lado das grades.
- Mas nós estávamos a falar da maneira como um homem
pode ganhar a vida.
- Ganhar dinheiro! - disse Lee. - Se é essa a sua finalidade,
não custa nada a atingir. Mas, salvo raras excepções, não é dinheiro o que as pessoas procuram. O que elas querem é luxo, amor e
admiração.
- Bom, bom. Tem alguma coisa a dizer aos estudos? Era
disso que estávamos falando.
- Desculpem - disse Lee. - Têm razão. Num instante me
excito. Se na Universidade o homem puder aprender a conhecer
os seus semelhantes, nada tenho a objectar. Será assim, Aron?
- Não sei - disse Aron.
Ouviu-se um som sibilante na cozinha.
- Ai as miudezas do peru que estão a deitar por fora! - gritou
Lee correndo para a porta.
Adam acompanhou-o com um olhar afectuoso.
- Que bom homem! Que bom amigo!
Aron disse:
- Espero que viva cem anos.
- Quem te diz que ele já não os fez? - retorquiu-lhe o pai.
Cal perguntou:
- Como vai a fábrica de gelo, papá?
- Assim-assim. Paga as despesas e deixa um pequeno lucro. Porquê?
- Tive uma ou duas ideias que poderiam aumentar o rendimento...
- Hoje não - disse apressadamente Adam. - Segunda-feira, se ainda te lembrares, mas hoje não. Não imaginam como me
sinto bem. Tenho uma sensação... como dizer... de plenitude. Talvez seja apenas o resultado duma boa noite de sono e duma profícua viagem à casa de banho. Talvez seja também por estarmos
todos reunidos - (E sorriu a Aron.) - Só com a tua ausência é
que tivemos a noção do que representavas para nós.
- Nos primeiros dias, cheguei a crer que não aguentava
-confessou Aron.
Abra entrou, ligeiramente ofegante. Tinha as faces coradas e
um aspecto radiante.
- Já viram? O pico do Toro está coberto de neve.
- Já vimos, já - disse Adam. - Dizem que é de bom augúrio para o ano que vem. Oxalá assim seja.
- Só petisquei umas coisas - disse Abra. - Queria ter fome
aqui.
Durante todo o almoço, Lee não parou de se queixar. Acusou o
fogão de gás de não dar um calor tão bom como os antigos fogões
de lenha. Acusou os perus modernos de não serem iguais aos
perus dos velhos tempos. E acabou por se rir com toda a gente
quando lhe redarguiram que se estava a portar como uma velha à
cata de elogios.
Assim que veio o pudim de ameixas para a mesa, Adam serviu
o champanhe. Beberam cerimoniosamente, fazendo brindes com
um ar mundano; cada um deles bebeu à saúde dos outros e Adam
endereçou uma breve saudação a Abra quando as taças se estenderam para ela.
Os olhos de Abra brilhavam e, debaixo da mesa, Aron segurava-lhe na mão. O vinho desfizera o nervosismo de Cal que já não
tinha receio do presente.
Quando acabou de comer a fatia de pudim, Adam declarou:
- Este dia será a nossa mais bela recordação.
Então, Cal rebuscou no bolso de dentro, tirou o embrulho com
o laçarote e pô-lo diante do pai.
- O que é isto?
- É um presente.
Adam estava encantado.
- Não estamos no Natal e oferecem-me prendas. Estou com
curiosidade em saber o que é.
- Um lenço - disse Abra.
Adam tirou a fita e desdobrou o papel de seda. Ao ver o dinheiro, pareceu ficar aparvalhado.
Abra perguntou:
- O que é? - E levantou-se para ir ver.
Aron estendeu a cabeça. Lee, da porta, tentava disfarçar a
inquietação e olhava para Cal que se revia no seu triunfo.
Vagarosamente, Adam passou os dedos pelas notas. A sua
voz parecia vir de muito longe.
- O que é isto? O que...
Não foi capaz de dizer mais nada.
Cal engoliu em seco.
-... Fui eu que o ganhei... para ti... para substituir o dinheiro
das alfaces.
Adam endireitou lentamente a cabeça:
- Ganhaste-o? Como?
- O Sr. Hamilton... e eu... com o feijão. - (As palavras seguintes saíram em tropel): - Comprámos o feijão na terra a dez
cêntimos e quando os preços subiram... É para ti. Quinze mil dólares. É para ti.
Adam juntou as notas, acertou-as e tornou a embrulhá-las.
Depois, lançou um olhar desesperado a Lee. Cal captou uma impressão... uma ameaça de calamidade, de destruição. Pairava no
ar um mal-estar incrível. Ouviu o pai declarar:
- Tu vais devolver este dinheiro.
- Devolvê-lo? A quem?
- À pessoa de quem o recebeste.
- À Junta de Compras Britânica? Eles não o querem. Pagam
vinte e cinco cêntimos pelo feijão que compram em todos os países.
- Então, vais devolvê-lo aos produtores que roubaste.
- Roubei? - berrou Cal.- Mas nós pagámos-lhes quatro
cêntimos acima do preço corrente. Ninguém os roubou.
Cal sentia-se suspenso no espaço e os segundos pareciam
intermináveis.
O pai levou muito tempo a responder. Dir-se-ia que havia grandes traços-de-união entre cada palavra que proferia.
- Ando eu a mandar rapazes para a guerra. Sou eu que assino para eles irem, uns para morrerem e outros para perderem as
pernas ou os braços. Raros são os que voltam ilesos. E tu, meu
filho, ainda queres que eu venha a lucrar com uma coisa dessas?
- Fiz isto por ti - disse Cal. - Só pretendia recompensar o
prejuízo que sofreste.
- Não me interessa o dinheiro, Cal. Quanto às alfaces... a
minha intenção não era obter lucro. Era um jogo. Queria ver se
conseguia expedir as alfaces para a outra costa e perdi. Mas não
quero o teu dinheiro.
Cal não desviava os olhos da sua frente e sentia os olhares
de Lee, de Aron e de Abra que lhe queimavam as faces. Mantinha-se suspenso dos lábios do pai.
- Agradeço-te muito teres pensado em dar-me um presente
- prosseguiu Adam. - A tua intenção...
- Vou pôr o dinheiro de parte. Vou guardá-lo para ti - atalhou
Cal.
- Não. Nunca hei-de querê-lo. Teria ficado tão contente se tu
tivesses dado... o que me deu o teu irmão... o orgulho que sinto
pelo que está fazendo, a alegria de o ver progredir. O dinheiro, por
honrado que seja, nunca poderá valer uma coisa dessas. -
(Soergueu ligeiramente as pálpebras e perguntou): - Ficaste aborrecido? Deixa lá, meu filho. Se quiseres oferecer-me uma prenda,
dá-me uma vida boa. A isso é que eu dou apreço.
Cal tinha a impressão de sufocar. O suor escorria-lhe pela
testa e a língua sabia-lhe a sal. Levantou-se com tanta violência
que atirou a cadeira ao chão. Mal podendo respirar, precipitou-se
para fora da sala.
Adam gritou-lhe:
- Não fiques zangado comigo.
Todos o deixaram em paz. Cal sentou-se à secretária, julgando que ia chorar, mas as lágrimas não vieram. Evaporavam-se
ao tomarem contacto com o braseiro que lhe enchia a cabeça.
Passados momentos, a respiração tornou-se mais regular e
deixou-o apto a pensar com uma certa calma. Tentou lutar contra
o ódio que o habitava, procurou repeli-lo, mas depressa fraquejou
e o ódio, destilado, penetrou nas veias, envenenando-lhe todos os
nervos. Principiava a não ter mão em si.
Por fim, a luta e o medo deram lugar a uma sensação de
doloroso triunfo. A mão apoderou-se de um lápis e começou a
desenhar espirais no mata-borrão. Quando Lee entrou, uma hora
mais tarde, havia centenas de espirais que se tinham tornado cada
vez mais pequenas. Cal não ergueu a cabeça.
Lee fechou a porta sem fazer ruído.
- Trouxe-te café - disse ele.
- Não quero... Pois sim, deixa ficar. Obrigado pela lembrança,
Lee.
Lee disse:
- Pára. Pára com isso, peço-te.
- Parar com quê?
Lee estava embaraçado.
- Já uma vez te disse quando tu me perguntaste: é uma coisa
que está em ti. Os teus actos só de ti dependem.
- Não percebo o que estás a dizer.
Lee tornou:
- Não me ouves? julgas que não adivinho o que vai em ti? Cal,
será verdade que não percebes a que estou a referir-me?
- Estou a escutar-te, Lee. Que queres dizer?
- Ele não podia agir de outra maneira, Cal. O feitio dele é
assim. Não tem por onde escolher. Mas tu tens, compreendes?
Tu tens por onde escolher.
As espirais tinham-se tornado tão pequenas que não passavam de simples manchas.
Cal disse com frieza:
- Estás a dar muita importância a uma coisa que não a tem.
Deves estar enganado. Quem te ouvisse diria que matei alguém.
Vai-te embora, Lee. Vai-te embora.
O silêncio assenhoreou-se do quarto e, quando Cal se voltou,
já o chinês tinha desaparecido. Em cima da cómoda, fumegava
uma chávena de café. Cal bebeu o líquido escaldante e desceu
para a sala.
O pai atirou-lhe um olhar de quem pedia desculpa.
Cal disse:
- Peço perdão, papá. Não imaginava que tivesse essa reacção. - (Pegou no maço de notas que estava em cima da chaminé
e meteu-o na algibeira do casaco.) - Vou ver o que posso fazer. -
(Depois, com muita naturalidade): - Para onde foram os outros?
- A Abra tinha de se ir embora e o Aron foi acompanhá-la. O
Lee também saiu.
- Vou tomar ar - disse Cal.
4
Estava-se em Novembro e já era de noite. Cal foi até à porta e
avistou a sombra de Lee que se recortava na parede branca da
padaria francesa, do outro lado da rua. Lee estava sentado nos
degraus e parecia inchado sob o espesso sobretudo.
Cal tornou a atravessar a sala.
- O champanhe dá sede - disse.
O pai não levantou a cabeça.
Cal escapuliu-se pela porta da cozinha e atravessou a horta de
Lee. Saltou por cima da cerca, rodeou o charco e desembocou na
Castroville Street, entre a padaria Lang e a loja do canalizador.
Encaminhou-se para Stone Street, onde se ergue a igreja católica, voltou à esquerda, passou diante da casa dos Carriaga, da
dos Wilson, da dos Zabala, e tornou a voltar à esquerda para a
Central Avenue, depois da casa dos Steinbeck. Dois quarteirões de
casas mais adiante, voltou novamente à esquerda, depois da escola do West End.
Os choupos que marginavam o pátio de recreio estavam quase
desnudados, mas o vento empurrava ainda algumas folhas amarelecidas.
Cal caminhava como se levasse antolhos. Não sentia a corrente de ar gelado que descia dos montes. Três casas à sua frente,
avistou o irmão à luz dum candeeiro, avançando na sua direcção.
Cal reconheceu-o pelo andar e pela silhueta.
Cal afrouxou o passo e, quando se aproximou de Aron, disse:
- Viva! Andava à tua procura.
Aron disse:
- Lamento o que se passou esta tarde.
- Tu não podias fazer nada. O melhor é esqueceres.
Deu meia volta e os dois rapazes puseram-se a andar lado a
lado.
- Queria que me acompanhasses - disse Cal. - Tenho uma
coisa para te mostrar.
- Oqueé?
- Ah! é uma surpresa. Mas tem muito interesse. Principalmente para ti.
- Leva muito tempo?
- Não. É um instante.
Atravessaram a Central Avenue em direcção à Castroville
Street.
Em geral, era o sargento Axel Dane quem abria a Junta de
Recrutamento de San José às oito da manhã mas, se chegava
atrasado, era o cabo Kemp quem se encarregava disso, e este não
era homem para se queixar. Axel era um caso vulgar. Alguns anos
de serviço no exército americano entre as guerras contra a Espanha
e a Alemanha tinham-no tornado incapaz tanto para a vida civil como
para a guerra. Por esse motivo é que ocupava o seu posto na Junta
de Recrutamento de San José. Além disso, namorava a filha mais
nova dos Ricci.
Kemp não contava tantos anos de serviço, mas já conhecia
todas as regras básicas: entender-se bem com o sargento e evitar
os oficiais na medida do possível. As raras descomposturas do
sargento Dane não o afligiam.
Dane entrou no escritório às oito e meia e deparou com o
cabo Kemp a dormir em cima da secretária e com um rapaz que o
aguardava, de ar completamente esgotado. Dane lançou um olhar
ao rapaz, antes de se dirigir a Kemp e de lhe pôr uma mão no
ombro.
- Acorda, querido - disse ele. - Já ouço o rouxinol na madrugada que desponta.
Kemp levantou a cabeça dos braços, espirrou e limpou o nariz às costas da mão.
- Santinho! - disse o sargento. - Põe-te de pé que temos
um freguês.
Kemp esfregou os olhos ensonados.
- A guerra que espere - disse.
Dane examinou o rapaz com mais atenção.
- Meu Deus! mas que beleza! Oxalá tenham cuidado com
ele. Se calhar, o nosso cabo julga que ele deseja pegar em armas
contra o adversário? Pois desengane-se; apenas foge ao amor.
Kemp, sentiu-se aliviado. O sargento já não devia estar em
jejum.
- Julga que foi alguma boneca que lhe fez mal? - (O cabo
estava sempre disposto a afinar pela música do sargento.) - Nesse
caso, seria melhor mandá-lo para a Legião Estrangeira, não acha?
- Talvez ande a fugir ao passado.
Kemp disse:
- Eu vi essa fita. Por sinal, havia um sacana dum sargento...
- Pura invenção - redarguiu Axel Dane. - Em sentido, mancebo. Tem dezoito anos?
- Sim, senhor.
Dane voltou-se para o subordinado.
- Que pensas?
- Que se lixe! - disse Kemp. - Se têm o tamanho, também
têm a idade.
O sargento disse:
- Fica então assente: dezoito anos. E daqui ninguém sai.
Está de acordo?
- Estou, sim, senhor.
- Preenche este impresso. Conta pelos dedos o ano em que
nasceste e escreve-o aqui. E trata de não o esqueceres.
CAPÍTULO L
1
Kate ficava imóvel, horas a fio, olhando à toa, o que era um
tormento para Joe. Aquilo significava que estava pensando e, como
o rosto nada exprimia, Joe não tinha acesso aos seus pensamentos. O homem andava deveras preocupado; temia perder a sua
primeira grande oportunidade.
O seu plano era simples- atazaná-la até ela perder a cabeça.
Nessa altura, agiria conforme as circunstâncias o exigissem. Mas
que fazer se ela se contentasse em fitar a parede? E já estaria de
cabeça perdida, ou não?
Joe sabia que ela não se deitava e, quando lhe perguntava se
queria o pequeno almoço, abanava a cabeça tão imperceptivelmente que não se chegava a perceber se o tinha ouvido ou
não.
Joe acautelava-se o mais possível: «Não tentes nada. Anda
de ouvidos e de olhos bem abertos e deixa o resto. » As pensionistas sabiam que se passava qualquer coisa, mas todas forneciam versões diferentes e inverosímeis.
A verdade é que Kate não pensava. No seu cérebro, apenas
adejavam impressões tal como os morcegos se debatem num recinto sem saída. Via a expressão do belo rosto loiro e os seus
olhos arregalados de horror. Ouvia as palavras grosseiras que ele
proferira, dirigidas mais a ele do que a ela. E via o irmão moreno,
encostado à porta e torcendo-se de riso.
Kate também rira - primeiro reflexo de autodefesa. Que faria o
filho? Que teria ele feito depois de se ter ido embora?
Ainda sentia pesar sobre si o olhar cruel de Cal na altura em
que ele fechava a porta.
Porque teria ele trazido o irmão? Que quereria? Que procuraria?
Se ela soubesse, teria agido de acordo com as circunstâncias.
Mas não sabia. A dor tornava a enviar as formigas devoradoras que,
depois de se terem apoderado das mãos, atacavam uma nova região do corpo: a anca direita. A dor há-de penetrar lentamente até
ao centro e, mais cedo ou mais tarde, todas as dores se juntarão
como os ratos numa cloaca.»
Por mais conselhos que desse a si mesmo, Joe não pôde conter-se mais naquele dia. Pegou num bule, bateu discretamente à
porta do quarto e entrou. Kate continuava na mesma posição.
- Trouxe-lhe chá.
- Põe-no em cima da mesa - disse ela. (Depois):- Obrigada, Joe.
- A senhora não se sente bem?
- Voltaram-me as dores. O remédio já não dá resultado.
- Quer que faça alguma coisa?
Kate ergueu e estendeu as mãos:
- Corta-as... pelos pulsos. - (O esforço obrigou-a a fazer
uma careta de dor). - Uma pessoa até fica desesperada - queixou-se ela.
Joe nunca a ouvira falar num tal tom de fraqueza e o instinto
avisou-o de que chegara o momento de passar ao ataque.
- Eu bem sei que não quer ser incomodada, mas soube uma
coisa a respeito daquela... pessoa.
Percebeu, pelo tempo que ela levou a responder, que acertara no alvo.
- Que pessoa? - perguntou ela baixinho.
- O estafermo.
- Ah! referes-te à Ethel?
- Pois.
- Já começo a estar farta da Ethel. Que há de novo?
- Vou-lhe contar como as coisas se passaram. Pela parte
que me toca, não entendo patavina. Estava eu na tabacaria Kellog
quando me apareceu um tipo. «Chamas-te Joe?» - disse ele, e eu
respondi-lhe: «Porquê?»; «Tens andado à procura de alguém» -
diz-me ele. «Despeja o saco» - digo-lhe eu. A cara do gajo não
me dizia nada. Vai daí, sai-se-me com esta: «A tal pessoa disse-me que queria falar contigo. » «Pois que me venha falar» - respondi-lhe eu. O tipo, então, deitou-me um destes olhares cheios de
intenção e disse-me: «Se calhar já esqueceste o que disse o juiz.»
Acho que se referia à expulsão.
Observou a expressão de Kate. Estava calma e pálida, e não
desviava os olhos da parede.
- E depois pediu-te dinheiro? - perguntou Kate.
- Não. Nem isso. Disse-me uma coisa que não fazia sentido. Perguntou-me: «O nome de Faye não te diz nada?» «Coisa
nenhuma» - respondi-lhe eu. O tipo então disse-me: «Talvez fizesses bem em falar-lhe. » «Talvez» - respondi eu. E fui-me embora. Isto para mim não tem pés nem cabeça e é por isso que lhe
pergunto.
- O nome de Faye diz-te alguma coisa? - perguntou Kate.
- Não me diz absolutamente nada.
A voz tornou-se muito suave:
- O quê? Então não sabias que a Faye era a dona desta
casa?
Joe sentiu uma dor de barriga. Pobre besta! Se não era melhor
ter ficado calado. Procurou emendar a asneira.
- Ah! sim... é possível... tenho a impressão de que já ouvi
dizer... mas estava convencido de que era um nome parecido com
Faith.
Este súbito alarme fez bem a Kate. Esqueceu a dor e a cabeça loira. Agora tinha com que se entreter. Lançou-se ao ataque
com uma espécie de júbilo.
Ouviu-se um risinho abafado:
- Faith! Serve-me chá, Joe.
Não deu mostras de notar o tremor da mão que fazia com que
o bico do bule batesse na borda da chávena. Não o olhou, nem
mesmo quando ele pôs a chávena à sua frente e recuou logo para
fora do seu campo visual. Joe suava de medo.
Kate pediu em voz suplicante:
- Joe, serias capaz de me ajudar? Se eu te desse dez mil
dólares, achas que serias capaz de arranjar coisas?
Aguardou um segundo antes de virar a cabeça e de o fitar nos
olhos.
Joe tinha o olhar húmido e lambia os lábios. Quando viu o movimento de Kate, recuou um passo, como se ela lhe tivesse batido.
Kate não desviou os olhos.
- Apanhei-te com a boca na botija, Joe.
- Não percebo.
- Então, vai para o teu quarto e tenta perceber. Quando descobrires, volta cá outra vez. Tu és pessoa para compreenderes
muitas coisas. Não te esqueças de mandar cá a Therese.
Joe tinha pressa de sair daquele quarto, onde acabava de ser
vencido. Dera cabo de tudo. Teria deixado escapar a sua grande
oportunidade? E aquela cróia que ainda tinha a lata de lhe dizer:
«Obrigada, pelo chá. Foste muito amável. »
A sua vontade era bater com a porta, mas não teve coragem.
Kate levantou-se com dificuldade por causa da dor no quadril.
Sentou-se à secretária e pegou numa folha de papel. Custava-lhe
segurar na caneta. Movendo todo o braço, escreveu: «Caro Ralph,
pede ao xerife que verifique as impressões digitais de Joe Valery.
Tu conhece-lo: é o Joe que trabalha em minha casa. Tua, Kate».
Estava a dobrar a folha de papel quando Therese entrou com ar
medroso.
- A senhora chamou por mim? Fiz alguma coisa? Não posso
fazer melhor, minha senhora. Ultimamente não me tenho sentido bem.
- Chega cá - disse Kate. (Enquanto a rapariga aguardava ao
lado da secretária, Kate endereçou e selou o envelope). - Queria
que me fizesses um recado. Vais à confeitaria Bell e compras uma
caixa de dois quilos e meio de bombons sortidos e outra de um
quilo. A maior é para ti e para as tuas colegas. Depois, passas pela
drogaria Krough e compras-me duas escovas de dentes e um tubo
de pasta dentífrica.
- Sim, minha senhora.
Era evidente o alívio de Therese.
- Tu és boa pequena - prosseguiu Kate. - Tenho andado
a observar-te. Eu estou doente, Therese. Se tu te portares bem,
ficarás a substituir-me enquanto eu estiver no hospital.
- A senhora... vai para o hospital?
- Ainda não sei bem, querida. Mas vou precisar de ti. Aqui
tens dinheiro para os bombons. E não te esqueças das escovas de
dentes.
- Sim, minha senhora. Muito agradecida. Posso ir já?
- Vai, sim. E sai sem fazeres barulho. Quero que os bombons sejam uma surpresa.
- Vou sair pelas traseiras.
Therese encaminhou-se para a porta. Kate tornou a chamá-la.
- Ah! já me esquecia. Não te importas de deitar esta carta no
correio?
- Com certeza, minha senhora. Mais nada?
- Não, querida. Mais nada.
Assim que a rapariga saiu, Kate poisou os braços e as mãos
em cima da secretária de forma que cada um dos dedos retorcidos
ficasse apoiado. Agora é que era. Talvez o tivesse sempre sabido.
Claro. Mas não valia a pena pensar já naquilo. Ficaria para depois.
Iam levar o Joe, mas haveria alguém mais e, depois, a Ethel continuava a existir. Mais dia menos dia... Era escusado pensar já naquilo. O raciocínio deteve-se perante uma coisa que surgiu de repente e logo desapareceu. Surgira-lhe precisamente na ocasião
em que pensara no filho de cabelos loiros. A recordação fora despertada por aquele rosto onde se lia o espanto, o pavor e o desespero.
Ela não passava duma petiza com uma cara tão bonita e tão
pura como a do filho... sim, era apenas uma garotinha. Mas já
sabia que era mais bonita e mais inteligente do que as outras.
Porém, às vezes, enchia-se de terror, julgando-se cercada por uma
floresta de inimigos do tamanho de árvores. Nessas ocasiões, não
havia pensamento, palavra ou olhar que não fosse destinado a
magoá-la, e ela nem sequer tinha onde se esconder. Chorava, então, de susto, ao ver-se metida naquele beco sem saída. Depois,
certo dia, leu um livro - aos cinco anos já sabia ler. Lembrava-se
perfeitamente da capa castanha, rasgada, do título a letras prateadas e das folhas sujas. Era Alice no Pais das Maravilhas.
Kate mexeu lentamente as mãos e ergueu-se um pouco para
aliviar os braços. Recordava-se das ilustrações, Alice tinha cabelos
compridos. Mas o que modificara a sua vida fora a garrafa com o
rótulo onde se lia: «Bebe-me». Fora com Alice que aprendera aquilo.
Quando ficava cercada pela floresta de inimigos, não a apanhavam desprevenida. No bolso, tinha um frasco de água açucarada,
e o rótulo com cercadura encarnada dizia: «Bebe-me». Bastava
beber um golo para se tornar muito pequena, tão pequena quanto
quisesse. Os inimigos bem a podiam procurar. Cathy estava debaixo duma folha ou escondida num formigueiro. E ria-se. Não conseguiam encontrá-la. Não havia porta que a encerrasse, não havia
porta que fosse capaz de lhe impedir a entrada, pois podia passar
por debaixo de todas as portas.
E Alice nunca a abandonava, Alice companheira de todos os
jogos, Alice que gostava dela e que tinha confiança nela. Alice era
sua amiga e estava sempre disposta a recebê-la no reino do minúsculo.
Era tão agradável... tão agradável que quase valia a pena sentir-se desgraçada. E, depois, havia sempre outra coisa de reserva.
Uma ameaça e uma certeza. Se bebesse todo o conteúdo do frasco, evaporar-se-ia, desapareceria e deixaria de existir. Mas havia
ainda melhor: quando deixasse de ser, nunca teria sido. Que maravilhosa certeza! Às vezes, na cama, bebia a quantidade necessária
de «Bebe-me» para ficar do tamanho duma pulga. Mas nunca desaparecera, porque nunca fora preciso. Tinha aquilo de reserva, sem
que ninguém soubesse.
Kate abanou tristemente a cabeça, recordando-se da garotinha. Porque teria ela esquecido o maravilhoso truque? Já a salvara de tantos desastres! A luz filtrada pelas folhas dum trevo era tão
bonita! Cathy e Alice passeavam abraçadas pela cintura no meio
da erva da altura duma torre... a erva era a melhor amiga do mundo.
E Cathy nunca precisara de beber todo o «bebe-me» porque tinha
Alice a seu lado.
Kate descansou a testa no mata-borrão, entre as mãos deformadas. Tinha frio, sentia-se só e desolada. Por mais que quisesse, fora obrigada àquilo. Ela era diferente. Tinha algo mais que os
outros. Levantou a cara e nem sequer tentou limpar as lágrimas
que lhe escorriam pelas faces. Era verdade. Era mais forte do que
os outros. Tinha qualquer coisa que eles não tinham.
O rosto sombrio de Cal flutuou diante dela, exibindo um sorriso
cruel. Sentia-se esmagada por um peso enorme que lhe fazia pressão nos pulmões.
Eles tinham qualquer coisa que ela não tinha. E não sabia o
que era. Uma vez ciente disso, ficou pronta. Compreendeu que estava pronta há muito tempo, que talvez o tivesse estado desde sempre. O cérebro funcionava como um cérebro de pau, o corpo movia-se aos sacões, como se fosse uma marioneta mal accionada, mas
fez tudo o que tinha a fazer.
Era meio-dia, pois as raparigas palravam na sala de jantar.
Aquelas mandrionas acabavam de se levantar da mesa.
Kate teve dificuldade em girar a maçaneta da porta até que a
conseguiu rodar entre as palmas das mãos.
As raparigas pararam subitamente de rir e olharam-na. O cozinheiro entrou vindo da cozinha.
Kate era um fantasma doente, disforme e assaz horrível. Encostou-se à parede da casa de jantar e sorriu-se. O que assustou
ainda mais as raparigas, pois os lábios de Kate pareciam abertos
para soltar um grito.
- Onde está o Joe? - perguntou ela.
- Saiu, minha senhora.
- Oiçam - disse ela. - Há muito tempo que não durmo. Vou
tomar um sonífero e não quero ser incomodada. Não me levem o
jantar. Quero dormir enquanto me der na gana. Digam ao Joe que
não quero ver ninguém, sob pretexto nenhum, até amanhã de manhã.
Perceberam?
- Sim, minha senhora.
- Boa noite. Bem sei que é de dia, mas é caso para dizer boa
noite.'
- Boa noite, minha senhora - respondeu o coro obediente.
Kate voltou-se e dirigiu-se para o quarto caminhando como
um caranguejo.
Fechou a porta, olhou à sua volta, e sentou-se à secretária. Desta vez, apesar da dor, obrigou a mão a escrever em letra bem
clara: «Lego tudo o que tenho a meu filho Aron Trask. Datou e
assinou: Catherine Trask». Os dedos largaram a caneta. Levantou-se e deixou o testamento bem em evidência sobre a secretária. Encheu uma chávena de chá frio, levou-a para a salinha cinzenta e pô-la em cima da mesa de leitura. Em seguida, sentou-sediante do toucador, penteou-se, espalhou um pouco de rouge pelo rosto, aplicou
uma ligeira camada de pó e pintou os lábios com acor habitual: encarnado esmaecido. Depois, limpou e limou as unhas.
Quando fechou a porta da saleta cinzenta, a claridade exterior
desapareceu e apenas ficou o cone de luz projectado pelo candeeiro de leitura na mesa. Ajeitou as almofadas e sentou-se. Escorou a
cabeça numa posição confortável. Sentia-se contente como se fosse para uma festa. Pegou no fio de ouro, desenroscou o tubinho e
sacudiu-o. A cápsula caiu-lhe na mão. Kate sorriu-lhe.
- Come-me - disse ela.
E meteu a cápsula na boca.
Pegou na chávena de chá.
- Bebe-me - disse ela, engolindo o chá frio e amargo.
Só queria pensar em Alice... tão pequena, e que a esperava.
Debruçados sobre ela, havia outros rostos que a observavam: o
pai, a mãe, Charles, Adam, Samuel Hamilton e, depois, Aron e,
até Cal que lhe sorria. Ele não teve necessidade de falar, pois o
brilho dos olhos afirmava: «Tu ignoraste uma coisa: havia neles
algo que não foste capaz de descobrir. »
Só a Alice é que contava. Na parede cinzenta da frente, havia
um buraco deixado por um prego. A Alice devia lá estar escondida.
Passaria o braço pela cintura de Cathy e Cathy passaria o braço
pela cintura de Alice. Afastar-se-iam as duas, as melhores amigas
do mundo, do tamanho de cabeças de alfinete.
Os braços e as pernas começavam a ficar entorpecidos. A
dor fugia das mãos. As pálpebras pesavam como chumbo. Bocejou.
Pensou ou disse ou pensou que disse: «A Alice não sabe que
vou voltar ao passado. »
Os olhos fecharam-se e foi sacudida por uma náusea. Tornou a
abrir os olhos e olhou aterrorizada à sua volta. O quarto cinzento
escureceu e o cone de luz transformou-se em água corrente. Os
olhos cerraram-se mais uma vez e as mãos crisparam-se como
se agarrassem pequeninos seios. O coração pulsou com solenidade, a respiração afrouxou, Kate começou a diminuir, a diminuir
e desapareceu - como se nunca tivesse existido.
2
Depois de Kate o ter mandado embora, Joe foi ao barbeiro. Era
o seu remédio contra as preocupações. Cortou e lavou o cabelo,
deu-se ao luxo duma massagem ao couro cabeludo e à cara, aplicou uma máscara de lama, arranhou as unhas e engraxou os sapatos. Geralmente, este pequeno tratamento e a aquisição duma nova
gravata eram suficientes para retemperar as forças de Joe. Mas,
desta vez, ao sair do barbeiro, depois de ter dado uma gorjeta de
cinquenta cêntimos, continuava a sentir-se deprimido.
Caíra que nem um rato. Kate apanhara-o com a boca na botija.
A rapidez com que ela reagira deixara-o desorientado. E aquela
mania que ela tinha de os deixar adivinhar o que queria dizer, ainda
piorava mais as coisas.
O serão principiou tristemente, mas dezasseis membros e
dois candidatos do Sigma Alpha Epsilon, de Stanford, entraram de
roldão vindos de San Juan. Vinham todos em plena forma.
Florence, que tinha de fumar durante o seu número de circo
estava cheia de tosse. A cada tentativa que fazia, punha-se a tossir e desistia. Além disso, o pónei garanhão estava com diarreia.
Os estudantes berravam e davam palmadas nas costas uns
dos outros para manifestarem a sua alegria. Finalmente, acabaram por roubar tudo o que não estava aparafusado ao chão.
Assim que saíram, duas das mulheres encetaram uma discussão monótona e Therese descobriu os primeiros sintomas dum
cavalo duro. Oh! senhores! Que noite!
E pensar que ao fundo do corredor, atrás da porta fechada,
estava aquele ser secreto e maléfico. Joe foi escutar antes de se
deitar, mas não ouviu nada. Encerrou a casa às duas e meia e
deitou-se às três horas. Mas não conseguiu dormir. Sentou-se na
cama, leu sete capítulos da Vitória de Barbara Worth e, mal amanheceu, foi até à cozinha fazer café.
Bebeu com os cotovelos apoiados na mesa e segurando a
chávena com ambas as mãos. Não havia maneira de compreender
porque é que aquilo acabara mal. Talvez ela tivesse sabido que a
Ethel estava morta. Era necessário agir com calma. Tomou, então,
uma decisão e resolveu mantê-la com firmeza. Iria vê-la às nove
horas e trataria de abrir bem os ouvidos. Talvez não tivesse percebido bem na véspera? O melhor seria pôr os pontos nos ii e deixar-se
de fantasias. Pedir, suponhamos, mil dólares e dar às de vila-diogo
e, se ela dissesse que não, pôr-se a cavar na mesma. Já estava
saturado de trabalhar com fêmeas. Talvez pudesse encaixar-se numa
casa de jogo de Reno... trabalhinho a horas certas e nada de gajas.
Quem sabe se não poderia arranjar um apartamento e mobilá-lo
com grandes poltronas e um canapé? Era escusado estar a cansar
a mioleira naquela cidade de merda. Talvez, até, tivesse toda a
vantagem em sair daquele Estado. Pensou mesmo em partir logo,
dois minutos para fazer a mala, passassem bem suas pécoras.
Três ou quatro minutos quando muito. Sem dizer água-vai a ninguém. Quase se sentiu tentado a fazê-lo. Talvez a marosca da Ethel
não fosse tão boa como ele julgara, mas mil dólares sempre eram
alguma coisa. Mais valia esperar.
O cozinheiro apareceu muito mal disposto. Tinha um furúnculo do tamanho dum ovo de pomba, e as dores eram insuportáveis,
de modo que não queria ver ninguém na cozinha.
Joe voltou ao quarto, leu um pouco mais e arranjou a mala.
Estava resolvido a ir-se embora, fosse qual fosse o resultado.
Às nove horas, bateu à porta de Kate e abriu-a. A cama estava
vazia. Poisou a bandeja, encaminhou-se para a saleta cinzenta,
bateu várias vezes e chamou. Finalmente, abriu a porta.
O cone da luz iluminava a mesa de leitura. A cabeça de Kate
estava profundamente mergulhada nas almofadas.
- Dormiu aqui toda a noite - disse Joe.
Aproximou-se, viu os lábios descorados e os olhos brancos,
entre as pálpebras semicerradas. Percebeu que ela estava morta.
Abanou a cabeça e saiu apressadamente da saleta para se
assegurar de que deixara fechada a porta que dava para o corredor. Rapidamente, passou revista à cómoda, gaveta por gaveta,
abriu as malas de mão, o cofrezinho ao pé da cama - e imobilizou-se. Ela não tinha nada. Nem mesmo o raio duma escova com
cabo de prata.
Voltou à sala cinzenta e examinou a morta. Nada. Nem um
anel, nem um broche, nem coisa nenhuma. Depois, viu um fio de
ouro pendurado ao pescoço e puxou-o: um relógio de ouro, um
tubinho e duas chaves com os números 27 e 29.
- É então aí que guarda a massa, sua puta?
Tirou o relógio do fio e meteu-o no bolso. Sentia vontade de lhe
esmurrar as ventas. Mas lembrou-se da secretária.
O testamento em duas linhas atraiu-lhe logo a atenção. Talvez
fosse negócio. Guardou-o na algibeira. Na gaveta superior da secretária encontrou um punhado de papéis, facturas e recibos; por
debaixo, apólices de seguros; a seguir, uma agenda com o
curriculum vitae de todas as raparigas. Enfiou-a no bolso. Extraiu o
elástico que segurava um maço de sobrescritos castanhos, abriu
um e tirou uma fotografia. Nas costas estavam escritos, com a
caligrafia nítida de Kate, um nome, uma morada e um título.
Joe riu com gosto. Ali estava a sua grande oportunidade. Abriu
mais dois ou três envelopes. Uma mina de oiro! É Uma verdadeira
reforma para a velhice! Olhem-me só para o cu deste conselheiro
municipal. Tornou a pôr o elástico no maço. Em seguida, descobriu
oito notas de dez dólares e um molho de chaves. Meteu tudo na
algibeira. Na altura em que abria outra gaveta, cheia de papel de
carta, de lacre e de tinta, ouviu bater à porta. Entreabriu-a:
- Está um tipo à tua procura - disse o cozinheiro.
- Quem é?
- Sei lá.
Joe deitou um olhar ao quarto, saiu, fechou a porta à chave e
guardou-a no bolso. Talvez se tivesse esquecido de alguma coisa.
Oscar Noble estava parado na sala da frente, com o habitual
chapéu cinzento e a capa de oleado abotoada até ao pescoço.
Tinha olhos cinzentos-claros, da mesma cor do bigode. A sala estava meio às escuras. Ainda ninguém se lembrara de abrir as persianas.
Joe entrou despreocupadamente e Oscar perguntou:
- És tu, Joe?
- Quem é que está aí?
- O xerife deseja falar-te.
Joe teve a impressão de que lhe aplicavam um saco de gelo
na barriga.
- Vem prender-me? - perguntou ele. - Traz um mandato
de captura?
- Nada disso - respondeu Oscar. - É por causa duma informação. Anda comigo.
- Ora essa - disse Joe. - Porque não?
Quando chegaram à rua, Joe sentiu um arrepio.
- Devia ter trazido o sobretudo.
- Queres ir buscá-lo?
- Não vale a pena - disse Joe.
Enquanto desciam a Castroville Street, Oscar perguntou:
- Tens cadastro?
Joe conservou-se silencioso.
- Tenho - disse ele finalmente.
- Motivo?
- Estava bêbado. Arreei num chui.
- Isso depois se vê - disse Oscar, dobrando a esquina.
Joe saltou como uma lebre e atravessou a rua em direcção ao
bairro chinês.
Oscar teve de descalçar a luva e desabotoar o impermeável
para tirar o revólver. Disparou uma só vez e falhou o alvo.
Joe continuou a correr aos ziguezagues. Já percorrera cerca
de cinquenta metros e aproximava-se dum espaço vazio entre duas
casas.
Oscar acercou-se dum poste telefónico, firmou o cotovelo esquerdo, apoiou o pulso direito na mão esquerda e desfechou segundo tiro em direcção à esquina do beco, precisamente na altura em
que lá entrava Joe. O fugitivo deu uma cambalhota no ar e estatelou-se.
Oscar entrou no café Filipino para telefonar. Quando saiu, já
se aglomerava uma porção de gente em torno do cadáver.
CAPÍTULO LI
1
Em 1903, Horace Quinn venceu o Sr. R. Keef nas eleições
para o cargo de xerife. Há bastante tempo já que desempenhava
as funções de adjunto principal. A maior parte dos eleitores pensou, e com razão, que se era ele quem fazia todo o trabalho, também era justo que gozasse as vantagens inerentes ao posto de
xerife, lugar onde se manteve até 1919. Para nós, que tínhamos
crescido no Condado de Monterey, «xerife» e «Quinn» eram meros sinónimos. Nem sequer podíamos imaginar que, um dia, viria a
ser substituído. Mas a idade não perdoa. Além disso, manquejava
devido a um antigo ferimento. Sabíamos que era um homem intrépido, pois dera o corpo ao manifesto em numerosos recontros com
bandidos. Para mais, tinha físico de xerife: uma larga cara
vermelhusca, bigode branco em forma de cornos e ombros possantes. À medida que envelhecia, foi ficando barrigudo, o que o
tornava ainda mais imponente. Usava um belíssimo chapéu
Stetson, e um casaco Norfolk; nos últimos anos do seu mandato,
trazia a pistola num coldre guardado sob a axila. O antigo coldre
pendurado à cintura pesava-lhe demasiado na barriga. Em 1903, já
ele conhecia bem o Condado. Em 1917, não havia nada que ele
ignorasse. Fazia parte integrante do vale do Salinas do mesmo
modo que as montanhas que o rodeavam.
A partir da época afastada em que Adam fora ferido, Quinn
nunca mais largara Kate de vista. Quando Faye morrera, suspeitara de Kate mas chegara à conclusão de que era quase impossível
fazê-la condenar. Um xerife sensato não tenta o impossível. Afinal
de contas, não passavam de duas meretrizes.
Nos anos que se seguiram àquele acontecimento, Kate fez
jogo franco com ele e acabou por lhe despertar um certo respeito.
Já que tem de haver bordéis, mais vale manter relações vantajosas
com as donas. Sempre que Kate descobria um homem procurado
pela polícia, tratava de denunciá-lo. O xerife Quinn e Kate entendiam-se na perfeição.
No sábado após o Dia de Acção de Graças, por volta do meio-dia o xerife Quinn entretinha-se a examinar os papéis encontrados
nos bolsos de Joe Valery. A bala de 38 atravessara o coração e
tinha despedaçado duas costelas.
O buraco por onde saíra era do tamanho dum punho. Os envelopes castanhos estavam feitos num bolo pelo sangue derramado.
O xerife molhou-os com um lenço para os separar.
Leu o testamento que, pelo facto de estar dobrado, só ficara
manchado de sangue pelo lado de fora.
Examinou as fotografias e suspirou profundamente. Em cada
sobrescrito jaziam a honra dum homem e o sossego duma vida.
Bem utilizadas, aquelas fotografias poderiam ter provocado meia
dúzia de suicídios. Mas Kate estava deitada na mesa de mármore
da casa Múller, com as veias cheias de formol, enquanto o estômago se encontrava num frasco, em casa do juiz de instrução.
Depois de ter observado todas as fotografias, Quinn marcou
um número telefónico.
- Pode vir ao meu gabinete? Ah! sim? Então, deixe o almoço
para depois! Sim, é muito importante. Fico à sua espera.
Alguns minutos mais tarde, quando o homem sem nome entrou no gabinete da velha cadeia por detrás do tribunal, o xerife
Quinn estendeu-lhe o testamento.
- O senhor, que é advogado, diga-me se este papel tem valor.
O visitante leu as duas linhas e respirou profundamente pelo
nariz.
- É quem eu penso?
- É.
- Se ela se chamava Catherine Trask, se a letra é dela e se
Aron Trask for seu filho, o testamento é ouro de lei.
Quinn afagou a ponta do bigode com o reverso do indicador.
- O senhor conhecia-a, não é verdade?
- Conhecia-a, não é bem assim. Apenas sabia quem era.
Quinn fincou os cotovelos na mesa e inclinou-se para a frente.
- Sente-se. Precisamos de falar.
O visitante aproximou uma cadeira. Sentou-se e começou a
brincar com um botão do casaco.
- Kate fazia chantagem consigo? - perguntou o xerife.
- Porquê? Mas que pergunta!
- É uma pergunta de amigo. Bem sabe que ela já morreu e
que não tem mais nada a temer.
- Não percebo onde quer chegar. Ninguém me faz chantagem.
Quinn extraiu uma fotografia dum envelope, virou-a como se
fosse uma carta e pô-la em cima da secretária.
O visitante ajeitou os óculos e começou a respirar com dificuldade.
- Valha-me Deus! - exclamou em voz aturdida.
- O senhor não sabia que ela a tinha?
- Sabia, sim. Ela já me tinha avisado. Por amor de Deus,
Horace, que vai fazer com isso?
Quinn tirou-lhe a fotografia.
- Que vai fazer, Horace?
- Queimá-las. - (O xerife pegou nos envelopes e juntou-os
num maço.) - Com esta arma infernal podia-se aniquilar todo o
Condado.
Quinn escreveu uma lista de nomes numa folha de papel.
Depois, levantou-se apoiando-se na perna boa, e encaminhou-se
para a salamandra que servia para aquecer o gabinete. Amarrotou o Salinas Morning Journal, pegou-lhe fogo e introduziu-o na
salamandra. Assim que todo o papel se incendiou, atirou-lhe para
cima o maço de envelopes e fechou a porta do fogão. O fogo crepitou e avistou-se uma chama amarelada pelo visor da salamandra.
Quinn esfregou as mãos, como se estivessem sujas.
- Os negativos também arderam - disse ele. - Fiz uma
busca em casa dela e não há mais cópias nenhumas.
O visitante tentou falar mas apenas conseguiu emitir um murmúrio roufenho.
- Obrigado, Horace.
O xerife regressou à secretária e pegou na lista.
- Vai-me fazer um favor. Aqui tem uma lista. Vai prevenir todos estes cavalheiros de que queimei as fotografias. Eu sei que os
conhece a todos. Se a coisa vier de si, não lhes custará tanto
engolir a pílula. Ninguém é santo. Chame- os a todos de parte
diga-lhes o que aconteceu. Olhe.
Foi até ao fogão, abriu-o e remexeu as cinzas até se transformarem em cisco.
- Diga-lhes... isto.
O visitante olhou para o xerife e Quinn compreendeu que não
haveria poder no mundo que pudesse impedir esse homem de o
odiar. Dali em diante, haveria sempre um obstáculo entre ambos,
embora não o quisessem admitir.
- Horace, não sei como agradecer-lhe.
E o xerife disse tristemente:
- Não tem importância. Era o que eu esperaria que me fizesse um amigo.
- Que indecência! - disse o visitante em surdina.
E Horace Quinn percebeu que uma parte do insulto lhe era
destinada. Percebeu também que já não seria xerife por muito
tempo. Aqueles homens sentiam-se culpados e não descansariam
enquanto o não derrubassem, o que era lógico. Suspirou e sentou-se.
- Vá acabar de almoçar - disse ele. - Eu tenho muito que
fazer.
À uma menos um quarto, o xerife Quinn virou a esquina da
Main Street e da Central Avenue. Na padaria Reynaud, adquiriu um
pão branco ainda quente que exalava um maravilhoso odor de trigo
levedado.
Agarrado ao corrimão, subiu os degraus da entrada da casa
dos Trask.
Lee abriu a porta com uma rodilha atada à cintura.
- Ele ainda não chegou - disse.
- Deve estar a chegar. Telefonei-lhe para o escritório e pediu-me que esperasse.
Lee recuou e conduziu o xerife para a sala.
- Deseja uma chávena de café? - perguntou.
- Nunca recuso.
- Fi-lo agora mesmo - disse Lee dirigindo-se para a cozinha.
Quinn examinou o confortável aposento. Já não se importava
de perder o cargo. Um médico dissera-lhe certo dia: «Gosto de
trazer uma criança ao mundo porque, se cumprir bem a minha obrigação, concorro para criar uma atmosfera de júbilo. » O xerife pensara com frequência nessa observação. Se cumprisse bem a sua
obrigação, concorreria para levar a dor a alguém. E o facto de ser
indispensável já não lhe parecia motivo suficiente. Em breve se reformaria, quer quisesse quer não.
Todos os homens imaginam a reforma como uma espécie de
evasão, de possibilidade de fazerem o que nunca puderam fazeruma viagem ou a leitura dos livros que não tiveram tempo de ler.
Durante muitos anos, o xerife acalentara a ideia de passar o tempo
livre pescando, caçando, passeando na serra de Santa Lucia e
acampando à beira dos rios entrevistos. Mas agora, que esse tempo já se avizinhava, perdera de todo a vontade de o gozar. Dormir no
chão seria doloroso para a perna aleijada. Lembrava-se de quanto
custava a carregar com um veado e, depois, com toda a franqueza,
nunca apreciara caça. Tanto fazia que Madame Reynaud a pusesse a abeberar em vinho e a enchesse de temperos; o resultado era
sempre o mesmo - não se notava a diferença entre um bocado de
carne e um sapato velho cozinhado daquela maneira.
Lee comprara uma máquina de fazer café. Quinn ouviu a água
a ferver no globo de vidro e desconfiou de que o chinês lhe mentira. O café não estava feito.
Os anos de árduo labor tinham aguçado o espírito do velho
xerife. Aprendera a observar e era capaz de evocar um rosto e de
perscrutá-lo, assim como de recordar cenas completas e conversas trocadas. Era até capaz de tocá-las como um disco ou de
passá-las como um filme. Ao pensar na caça, pusera-se a examinar a sala e chegara à conclusão de que havia ali qualquer coisa
que não estava certa: poltronas forradas de tecido de ramagens,
cortinas de renda, pano de mesa de croché e as almofadas do
canapé forradas com um tecido de padrão vistoso e impudente. Era
uma sala feminina numa casa onde só havia homens.
Pensou na sua própria sala. Tudo o que lá estava, excepto o
porta-cachimbos, fora escolhido e comprado pela Sr.a Quinn. De
resto, pensando melhor, também fora ela quem comprara o portacachimbos. Era uma sala feminina. Mas a sala dos Trask era demasiado feminina. Uma sala de mulher concebida por um homem.
Passava as marcas. Devia ser obra do Lee. O Adam, se calhar,
nem dava por isso.
Horace Quinn recordou-se do interrogatório que fizera a Adam
muitos anos antes, a um Adam na agonia e de olhar aterrorizado.
Adam tinha a honestidade no sangue. Pela vida fora, muitas haviam
sido as oportunidades de se encontrarem. Ambos pertenciam à
Maçonaria, fazendo parte da mesma loja e ocupando os mesmos
graus. Horace substituíra Adam no posto de Mestre da Loja e ambos usavam as insígnias na lapela. No entanto, Adam afastara-se
da comunidade, erguendo um muro intransponível atrás do qual se
mantinha prisioneiro. Mas naquele dia, no dia do interrogatório, a
parede ainda não estava de pé.
Por intermédio da mulher, Adam travara conhecimento com o
mundo dos vivos. Horace imaginou Kate ligada aos tubos de formol,
cinzenta e lavada, com agulhas espetadas na garganta.
Adam não desejava nada e, portanto, era incapaz de actos
desonestos. Só se é desonesto quando há necessidades a satisfazer. O xerife perguntou a si mesmo o que se passaria atrás da parede: que angústias, que prazeres, que mágoas não iriam por lá?
Mudou de posição na cadeira para aliviar a perna aleijada. A
casa estava em silêncio. Apenas se ouvia o ruído da máquina de
café. Adam levou muito tempo a chegar do escritório. O xerife
pensou divertido:
«Estou a ficar velho e é coisa que não me desagrada. »
Adam entrou a sorrir e estendeu-lhe a mão:
- Bom dia, Horace... Trouxe a ordem de prisão?
Se não estava realmente alegre, a imitação era perfeita.
- Como vai isso? - perguntou Quinn. - Há bocado, falaram-me numa chávena de café...
Lee, na cozinha, pôs-se a fazer barulho com a loiça.
Adam perguntou:
- Nada de grave? Horace?
- No meu cargo as coisas são sempre graves. Se não se
importa, prefiro esperar pelo café.
- Não se incomode por causa do Lee. Ele ouve sempre tudo.
Mesmo através das portas fechadas. Não tenho segredos para ele,
até porque seria impossível.
Lee entrou com a bandeja. Arvorava um sorrisinho satisfeito
e, depois de ter servido o café e de se ter ido embora, Adam tornou
a perguntar:
- Nada de grave, Horace?
- Acho que não. Adam, você ainda estava casado com aquela mulher?
Adam ficou hirto.
- Estava, sim - disse ele. - Porquê?
- Suicidou-se na noite passada.
O rosto de Adam contraiu-se e as lágrimas assomaram-lhe
aos olhos. Por instantes, tentou ainda manter a boca fechada mas
acabou por renunciar e deixou cair a cabeça entre as mãos, pondo-se a chorar.
- Minha pobre querida.
Quinn tornou a sentar-se. Passados momentos, Adam ergueu
a cabeça.
- Desculpe, Horace.
Lee entrou e entregou uma toalha a Adam, que enxugou os
olhos e tornou a devolver a toalha.
- Não esperava por isto - disse Adam. (Parecia estar envergonhado. ) - Que devo fazer? Vou reclamar o corpo e enterrá-lo.
- É escusado - disse Horace. - A não ser que tenha vontade de o fazer. Mas não foi para isso que eu cá vim.
Tirou do bolso o testamento dobrado e estendeu-o a Adam,
que esboçou um gesto de repulsa.
- É o... sangue dela?
- Não. Nem pensar nisso. Leia.
Adam leu as duas linhas e ficou a contemplar o papel como se
olhasse para muito longe.
- Ele não sabe... que ela é mãe dele.
- Você nunca lhe disse?
- Não.
- Valha-me Deus! - exclamou o xerife.
Adam prosseguiu com uma espécie de convicção:
- Tenho a certeza de que ele não aceitaria nada que viesse
dela. O melhor é rasgarmos este papel e esquecê-lo.
- Receio que seja impossível - disse Quinn. - Já cometi
algumas ilegalidades. Ela tinha um cofre-forte. Escuso de lhe dizer
onde obtive o testamento e a chave. Estive no banco sem sequer
esperar pelo mandato do tribunal.
Não queria dizer a Adam que desconfiara de que houvesse
mais fotografias no banco.
- O velho Bob deixou-me abrir o cofre. Estamos sempre a
tempo de negar que o fizemos. Havia mais de cem mil dólares em
dinheiro. Também havia acções, mas absolutamente mais nada.
- Mais nada?
- Isto é... um contrato de casamento.
Adam deixou-se cair na cadeira. Após ter dado alguns passos
no mundo exterior, voltava para trás da sua parede. Viu o café e
bebeu um golo.
- Que conselho me dá? - perguntou numa voz indiferente.
- Só lhe posso dar a minha opinião pessoal - respondeu
Quinn. - Não é obrigado a acatá-la. Mande chamar imediatamente
o seu filho. Conte-lhe tudo em pormenor. Diga-lhe porque foi que
nunca lhe contou nada até agora. Que idade tem ele?
- Dezassete anos.
- Já é um homem. Mais dia, menos dia, terá de saber a verdade. Mais vale que venha a saber tudo de uma só vez.
- O Cal está ao corrente - disse Adam. - Gostava de saber porque seria que ela contemplou apenas o Aron.
- Isso só Deus sabe! Então, que resolve?
- Como não tenho ideia nenhuma, vou seguir a sua. Não se
importa de ficar comigo?
- Certamente.
- Lee! - chamou Adam. - Diga ao Aron que preciso de
falar com ele. Ele veio dormir a casa, não veio?
Lee deteve-se à porta. As pesadas pálpebras fecharam-se um
instante e tornaram a abrir-se.
- Ainda não chegou. Talvez tenha voltado para a Universidade?
- Nesse caso, avisava-me. Sabe, Horace, todos nós bebemos anteontem muito champanhe. Onde está o Cal?
- No quarto - disse Lee.
- Diga-lhe que venha cá. Ele há-de saber onde pára o irmão.
Cal tinha a cara cansada e os ombros descaídos, mas a sua
expressão era dura, fechada, desconfiada e agressiva.
Adam perguntou-lhe:
- Sabes onde está o teu irmão?
- Não, não sei - disse Cal.
- Não lhe puseste a vista em cima?
- Não.
- Há duas noites que não vem a casa. Onde se meteu ele?
- Não faço a menor ideia. Ninguém me paga para tomar conta
dele.
Adam baixou a cabeça, encolheu-se na cadeira e pareceu estremecer com um arrepio. No fundo dos seus olhos cintilou uma luz
azul, extraordinariamente brilhante. Numa voz surda, disse:
-Talvez tenha voltado para a Universidade. - (As palavras
pareciam articuladas por lábios gretados e a voz tinha o timbre dum
sonâmbulo.) - Achas que voltou para a Universidade?
O xerife Quinn levantou-se.
- Não temos pressa nenhuma. Veja se descansa, Adam. Foi
um grande choque.
Adam ergueu os olhos para ele:
- Um choque... Ah! pois. Obrigado, George, muito obrigado!
- George?
- Muito obrigado - disse Adam.
Após a saída do xerife, Cal regressou ao quarto. Adam enterrou-se na cadeira e adormeceu logo a seguir. Pouco depois,
ressonava de boca aberta.
Lee observou-o um instante antes de voltar para a cozinha.
Levantou a cesta do pão e pegou num pequeno volume encadernado a pele, cujo título em letras prateadas estava quase completamente apagado. Era uma tradução inglesa das Meditações de
Marco Aurélio. Lee limpou os óculos de aros de aço. Abriu o livro e
folheou-o. Depois, sorriu, procurando tranquilizar-se conscienciosamente.
Mexendo os lábios, foi lendo devagar: Tudo dura apenas um
dia, tanto o que lembra como o que é lembrado.
Observa constantemente que todas as coisas ocorrem mediante mudança, e acostuma-te a considerar que nada há que a
natureza do universo ame mais do que transformar o que é naquilo
que se lhe assemelha. Pois tudo quanto existe é, de certo modo, a
semente daquilo que virá a ser.
Lee lançou um olhar ao fundo da página: Em breve morrerás e,
contudo, ainda não és simples nem te livraste de perturbações;
nem sequer da suspeita de seres ferido por causas externas; tãopouco te sentes bondosamente disposto a encarar todas as coisas, pois nem usas de sabedoria agindo com equidade.
Lee ergueu os olhos e respondeu ao livro como teria respondido a um dos seus veneráveis parentes. «É certo, disse ele, mas
que dureza. Desculpe. Mas não se esqueça de que também disse:
«Toma sempre o caminho mais curto, pois é o caminho natural.
Não o esqueça. » Deixou escorregar as páginas ao longo do polegar
e parou na página de guarda onde se lia, escrito a lápis: Samuel
Hamilton.
Lee sentiu-se melhor.. Perguntou a si mesmo se Samuel teria
procurado o livro, se saberia que ele lho tinha roubado. Lee achara
que era o meio mais puro de se apropriar dele. Com a ponta dos
dedos, acariciou o coiro suave antes de tornar a meter o livro debaixo da cesta do pão. Depois, reflectiu: «Com certeza que sabia.
Quem mais é que lhe poderia ter roubado o Marco Aurélio?» Voltou
para a sala e puxou uma cadeira para perto de Adam que continuava a dormir.
2
Fechado no quarto, Cal estava sentado à secretária com a
cabeça mergulhada nas mãos. A náusea dava-lhe tonturas e o
cheiro agridoce do uísque impregnava-lhe os poros e a roupa, corria-lhe pelas veias misturado com o sangue.
Cal nunca sentira necessidade de beber. A visita a casa de
Kate não lhe aliviara o sofrimento e a vingança não correspondera
a um triunfo. As suas recordações não passavam de nuvens em
turbilhão, de fragmentos de som, de visão e de sensação. Não conseguia definir o que era verdade e o que tinha imaginado. Ao saírem
da casa de Kate, poisara a mão no ombro do irmão sacudido pelos
soluços, e Aron atirara-o ao chão com um murro. Aron ficara de pé
no escuro e, depois, largara a correr, chorando como uma criança
infeliz. Cal lembrava-se dos soluços rouquenhos e dos passos
desordenados. Cal deixara-se ficar estendido no sítio onde caira,
ao lado do grande alfeneiro, no jardim de Kate. Ouvira as locomotivas a arfar e a apitar, e o som abafado dos vagões nas calhas.
Fechara os olhos mas, ao ouvir passos ligeiros, tornara a abri-los.
Alguém se debruçara para ele, talvez Kate, mas a silhueta afastara-se sem rumor.
Cal levantara-se a seguir, limpara a roupa e afastara-se em
direcção à Main Street, surpreendido por ainda ter ânimo para cantar: Há uma rosa que cresce na Terra de Ninguém, nunca se viu tal
maravilha...
Na sexta-feira, Cal andou todo o dia ao deus-dará. À noite,
Joe Laguna comprou-lhe a garrafa de uísque. Cal ainda era muito
novo. Joe não se teria importado de fazer companhia a Cal, mas
deu-se por satisfeito com o dólar que o rapaz lhe deu para comprar
a garrafa de zurrapa.
Cal encaminhou-se para o beco atrás da casa dos Abbot e
sentou-se no recanto sombrio de onde avistara a mãe pela primeira
vez. Vencendo a náusea e a repugnância, bebeu quase toda a garrafa de uísque. Vomitou duas vezes, mas continuou a beber até que
a terra se pôs a dançar e os candeeiros encetaram uma valsa majestosa.
A garrafa escorregou-lhe das mãos e Cal mergulhou na inconsciência, continuando a vomitar. Um cão vadio de pêlo raso e
ar muito sério, percorreu o beco de rabo no ar, parando em cada
pedra. Quando deu pela presença de Cal, evitou-o com um grande desvio. Daí a pouco, Joe Laguna encontrou Cal e pôs-se a
farejá-lo também. Depois, pegou na garrafa caída ao lado da perna de Cal e olhou-a contra a luz. Ainda tinha um resto no fundo.
Procurou a rolha e não a encontrou. Então, afastou-se com o polegar metido no gargalo para que o precioso líquido não se derramasse.
De madrugada, Cal foi acordado pela geada. Abriu os olhos
para um mundo de pesadelo e arrastou-se até casa como um boneco desarticulado. A casa ficava próxima. Bastava sair do beco e
atravessar a rua.
Lee ouviu-o entrar, tropeçar em todos os móveis e atirar-se
para cima da cama. A cabeça de Cal parecia prestes a explodir,
mas a lucidez era perfeita. Perdera a resistência à dor e sentia-se
incapaz de se proteger contra a vergonha. Defendeu-se conforme
pôde: tomou um banho gelado e esfregou o corpo com um pedaço
de pedra-pomes, cuja queimadura lhe pareceu benéfica.
Sabia que tinha de confessar a falta a seu pai e pedir-lhe perdão. Sabia que tinha de se humilhar perante Aron, não só hoje,
mas até ao fim dos seus dias. No entanto, quando o chamaram e
se viu perante o xerife Quinn e o pai, voltou-lhe a fúria dum cão
faminto e projectou sobre tudo o que o rodeava o ódio que sentia
por si mesmo - sim, era apenas um cão vicioso desprezado por
todos e a todos desprezando...
Mal regressou ao quarto, sentiu-se novamente assaltado pela
culpa sem que dispusesse de armas para a combater.
Subitamente, teve receio pelo que pudesse suceder a Aron.
Talvez estivesse ferido? Aron não podia defender-se. Devia ir procurá-lo, encontrá-lo e reconstruir o mundo que destruira. Mesmo que
tivesse de dar a sua vida em troca. Então, implantou-se nele uma
ideia do sacrifício, como em toda a consciência culpada. Talvez um
sacrifício pudesse trazer Aron de volta...
Cal pegou no embrulho achatado escondido debaixo das camisas. Procurou e encontrou um pires que colocou em cima da secretária. Aspirou avidamente o ar fresco da manhã. Agarrou numa
das notas, dobrou-a ao meio, riscou um fósforo e deitou-lhe fogo.
O papel retorceu-se e escureceu. A chama subiu e só quando
estava quase a tocar-lhe nos dedos é que Cal largou a nota no
pires. Pegou noutra nota e inflamou-a. Quando ia na sexta, Lee
entrou sem bater.
- Cheirou-me a fumo - disse ele. (Mas, ao ver o que Cal
fazia, exclamou): - Oh!
Cal voltou-se, disposto a lutar. Mas Lee cruzou as mãos na
barriga e, deixou-se ficar, calado e atento. Cal queimou nota após
nota, até que ardessem todas; em seguida, esmagou as cinzas
para as transformar num pó negro, e ficou aguardando os comentários de Lee. Mas Lee não falou nem buliu.
Finalmente, Cal disse:
- Avia-te. Queres falar comigo? Então, fala!
- Não - disse Lee. - Estás enganado. Se não tens vontade
de falar comigo, fico só mais um instante e depois vou-me embora.
Vou-me sentar ali.
Sentou-se numa cadeira, enlaçou as mãos e esperou. Iluminava-o uma espécie de sorriso interior e tinha a expressão a que se
chama «impenetrável».
Cal virou-lhe as costas.
- Sou capaz de ficar sentado mais tempo do que tu.
- Noutra competição qualquer talvez tu me vencesses. Mas
em teimosia, não me parece.
Passados alguns instantes, Cal lançou com azedume:
- Podes começar o sermão.
- Não é essa a minha intenção.
- Então, o que é que vieste cheirar aqui? Sabes muito bem o
que fiz e também sabes que me embebedei ontem à noite.
- Do primeiro crime já eu suspeitava; quanto ao segundo,
cheirou-me.
- Cheirou-te?
- Tu fedes que tresandas.
- Foi a primeira vez - disse Cal - e não gostei.
- Eu também não gosto - disse Lee. - O meu estômago
não suporta o álcool. E, depois, torna-me brincalhão. Intelectual,
mas brincalhão.
- Que queres dizer?
- Posso dar-te um exemplo. Quando era novo, jogava ao
ténis, não só porque gostava, mas também porque é uma excelente distracção para um criado. Pode aproveitar-se das asneiras
do patrão e ganhar alguns dólares em vez de simples agradecimentos. Uma vez, num dia em que tinha abusado da ginjinha, deu-me
para desenvolver a teoria de que o animal mais rápido e mais
esquivo do mundo era o morcego. Fui apanhado a meio da noite no
campanário da igreja metodista de San Leandro. Tinha uma raqueta
na mão e teimava em explicar ao agente da policia que me prendeu
que estava a aperfeiçoar o meu estilo com os morcegos.
Cal riu com tanto gosto que Lee lamentou que a sua história
não fosse verdadeira.
Cal disse:
- Pois eu sentei-me atrás dum poste e bebi que nem um
porco.
- Sempre os animais...
- Tinha medo de meter uma bala na cabeça se não me embebedasse - interrompeu Cal.
- Tu nunca farias uma coisa dessas. Falta-te envergadura
disse Lee. - A propósito, onde está o Aron?
- Fugiu a correr não sei para onde.
- Esse tem alguma envergadura!
- Eu sei. Achas que se terá suicidado?
Lee disse com desdém:
- É espantoso! Sempre que alguém deseja tranquilizar-se,
pede a um amigo que partilhe a sua opinião. É a mesma coisa que
perguntar a uma peixeira se o peixe é fresco. Como queres que te
responda?
Cal perguntou:
- Porque fiz eu isto?
- Não compliques as coisas - respondeu Lee. - Tu bem
sabes porquê. Ficaste a detestá-lo por o teu pai te ter magoado.
Não custa nada a perceber. E agiste com baixeza.
- Mas porquê? Eu não quero fazer mal a ninguém. Ajuda-me,
Lee.
- Espera, pareceu-me ouvir o teu pai.
Lee precipitou-se para a porta.
Cal ouviu vozes em baixo e, depois, Lee tornou a entrar.
- Ele vai ao correio. Nós nunca recebemos correio de tarde.
Aliás, ninguém recebe. Pois, apesar disso, todos os homens de
Salinas vão ao correio de tarde.
- Talvez bebam um copito pelo caminho.
- Deve ser antes um hábito. E uma espécie de repouso. Vão
passear e ver os amigos.- (Em seguida, Lee acrescentou):
- Cal, ando preocupado com o teu pai. Tem um ar aparvalhado.
Ah! já me esquecia: sabes, a tua mãe matou-se ontem à noite.
- Ah! pois - disse Cal. (Riu com escárnio.) - Espero que
tenha sofrido. Não! Não era isso o que eu queria dizer. Nem o que
queria pensar. Não! de forma nenhuma.
Lee coçou um ponto da cabeça e acabou por coçá-la inteiramente, o que lhe dava o ar de estar imerso em profunda meditação.
Finalmente, perguntou:
- Sentiste um grande prazer em queimar todas as notas?
- Acho... que sim.
- E também sentes prazerem te castigares como o fazes?
Gozas com o teu desespero?
- Lee!
- Muito presunçoso és tu! Sentes-te maravilhado com o trágico espectáculo oferecido por Caleb Trask. Caleb o magnífico! Caleb o único! Caleb, cujo sofrimento está a pedir um novo Homero. Já
terás pensado que não passas dum ranhoso, às vezes mesquinho,
outras incrivelmente generoso, com um comportamento indecente
e uma alma inocente? Talvez possuas mais energia - mas só
energia - do que muitos outros, mas, fora isso, és igual a todos os
outros ranhosos. Será caso que te tomes a sério? Estarás convencido de que és uma personagem sublime lá porque a tua mãe era
rameira? E se acontecesse alguma coisa ao teu irmão, estarias
disposto a arcar com as responsabilidades de assassino? Ranhoso!
Cal foi vagarosamente sentar-se à secretária. Lee observava-o, contendo a respiração, como um médico que aguarda o efeito
da injecção. Cal, transparente, exprimia tudo o que sentia. A raiva
ante o insulto, a vontade de brigar, o vexame e, por fim... um princípio de acalmia.
Lee suspirou. Trabalhara com afinco, com ternura, e parecia
ter sido bem sucedido. Em voz baixa, disse:
- Nós somos um povo violento, Cal. Achas estranho que me
inclua no vosso número? Sim, devemos descender de gente inquieta, de loucos, de criminosos, de heróis e de fanfarrões, mas
também corre nas nossas veias o sangue dos bravos, dos independentes e dos generosos. O sangue de todos aqueles que mão
quiseram morrer de fome nas terras esgotadas do velho mundo.
Cal voltou para Lee um rosto descontraído. Sorriu e Lee compreendeu que não conseguira enganar inteiramente o rapaz. Cal
sabia que Lee lhe administrara um remédio, um excelente remédio, e estava-lhe grato.
Lee prosseguiu:
- É por isso que eu me incluo no vosso número. Todos nós
herdámos o mesmo, embora os nossos pais viessem de terras
diferentes. Os Americanos, por mais mestiçados que sejam, apresentam quase todos os mesmos traços de carácter. É uma raça
seleccionada acidentalmente. Nós somos inutilmente bravos e poltrões. Somos meigos e cruéis como as crianças. Temos a mania
de atirar a nossa amizade à cara das pessoas e, ao mesmo tempo,
desconfiamos dos estranhos. Gostamos de nos gabar e deixamo-nos impressionar com qualquer coisa. Somos sentimentais e realistas, mundanos e materialistas. Apesar disso, conheces mais
alguma nação que se deixe arrastar tanto por ideais como a nossa? Comemos exageradamente e não temos o gosto nem o sentido das proporções. Desperdiçamos a nossa energia. Nos velhos
continentes, dizem de nós que passamos directamente da barbárie
à decadência, sem o apogeu intermédio da cultura. Será possível
que os nossos críticos não consigam descobrir a chave nem a linguagem da nossa cultura? Aqui tens o que todos nós somos, Cal.
E tu não diverges muito disto.
- Continua - disse Cal, sorridente.- Vai falando.
- Não é preciso - disse Lee. - Já acabei. Quem me dera
que o teu pai voltasse para casa. Ando preocupado com ele.
E Lee sorriu com nervosismo.
Lee foi dar com Adam encostado à parede, ao lado da entrada.
Tinha os ombros descaídos e o chapéu em cima dos olhos.
- Que tem, Adam?
- Não sei. Sinto-me cansado, muito cansado.
Lee pegou-lhe pelo braço e conduziu-o para a sala. Adam
deixou-se cair na poltrona e Lee tirou-lhe o chapéu. Adam esfregou as costas da mão esquerda com a mão direita. Tinha um olhar
luminoso, muito estranho, mas fixo. Os lábios estavam secos, inchados, e a voz parecia vir de muito longe. Esfregava a mão com
violência.
- É estranho - disse ele. - Desmaiei no correio. Nunca me
tinha acontecido uma coisa assim. O Sr. Pioda ajudou-me a levantar. Pouco mais durou do que um segundo. Nunca tinha desmaiado.
Lee perguntou:
- Havia correspondência?
- Sim... sim, acho que havia. - (Levou a mão esquerda ao
bolso e tornou a tirá-la.) - Parece que tenho a mão entorpecida -
disse ele como que a pedir que o desculpassem.
E vasculhou o bolso com a mão direita, extraindo um postal
com franquia militar.
- Estava convencido de que já o tinha lido - disse ele. Devo
tê-lo lido. - (Levou o postal aos olhos e, depois, deixou-o cair em
cima dos joelhos.) - Lee, preciso de arranjar óculos. Nunca me
tinham feito falta, mas já não consigo ler. As letras põem-se a dançar diante dos olhos.
- Quer que eu leia?
- É engraçado... vou ter de arranjar óculos. Que diz o postal?
Lee leu: Querido papá, estou no exército. Disse que tinha dezoito anos. Tudo irá bem. Não te apoquentes. Aron.
- É estranho - disse Adam - tenho a impressão de já o ter
lido, mas devo estar enganado.
E continuou a esfregar a mão.
CAPÍTULO LII
1
Medonho e sombrio foi aquele Inverno de 1917-1918! Os Alemães tudo destruíam à sua passagem. Os Ingleses tiveram trezentas mil baixas em três meses. Várias unidades francesas amotinaram-se. A Rússia saíra da guerra. As divisões alemãs da frente
leste, repousadas e reequipadas, eram lançadas na frente ocidental. A guerra parecia perdida.
Só em Maio é que conseguimos dispor de doze divisões prontas para o combate, o Verão já principiara quando as nossas tropas
começaram a atravessar o Oceano em número apreciável. Os generais aliados lutavam entre si. Os submarinos afundavam os nossos navios de transporte.
Todos aprendemos que a guerra não é uma carga heróica e
rápida, mas sim uma operação lenta e incrivelmente complicada.
Os nossos ânimos andaram muito abatidos naquele Inverno. Perdêramos o entusiasmo e não tínhamos ainda aprendido a obstinação.
Ludendorff parecia invencível. Nada o detinha. Lançava ataques sucessivos contra os exércitos esgotados da França e da
Inglaterra. Tínhamos medo de chegar tarde de mais e de nos vermos sós perante os temíveis Alemães.
As pessoas procuravam esquecer a guerra, buscando a evasão no sonho, no vício ou numa alegria artificial. Os videntes e
cartomantes estavam na moda e os cabarés faziam uma fortuna.
Alguns, para fugirem ao medo circundante e ao desencorajamento,
fechavam-se dentro de si mesmos com as suas alegrias e as suas
tragédias íntimas. Não é de estranhar que hoje nos tenhamos esquecido de tudo isso - Lembramos a primeira guerra mundial como
se fosse uma rápida vitória, com bandeiras e fanfarras, paradas,
multidões ululantes, combatentes aclamados e desordens nos bares com as bestas dos Ingleses que estavam convencidos de ter
ganho a guerra. Como esquecemos depressa esse Inverno em que
Ludendorff reinava e em que muita gente se preparava para aceitar
uma derrota!
2
Adam Trask sentia-se desamparado. Não precisou de se demitir
porque lhe concederam uma licença por motivo de doença. Passava horas a esfregar as costas da mão com uma escova rija molhada
em água quente.
- É a circulação - dizia ele. - Assim que o sangue começar a circular, ficarei bom. O que me apoquenta são os olhos. Nunca tinha tido nada na vista e, agora, preciso de ir ao médico. Usar
óculos, eu! Vai custar-me a habituar. Vou hoje ao oculista, mas
sinto-me ainda um pouco tonto.
Na verdade, sentia-se mais tonto do que pretendia admitir.
Não podia caminhar dentro de casa sem se apoiar às paredes. Lee
ajudava-o a levantar-se da poltrona ou da cama e a atar os atacadores dos sapatos, pois ele não podia servir-se da mão esquerda
entorpecida.
Referia-se a Aron quase todos os dias.
- Compreendo perfeitamente que um rapaz se queira alistar
- dizia ele. - Se o Aron tivesse pedido a minha opinião, procuraria dissuadi-lo, mas seria incapaz de o proibir. Você sabe que
é esta a minha maneira de pensar, Lee.
- Sei, sim.
- O que eu não percebo é porque se foi embora sem dizer
palavra. Porque não escreve? Julgava conhecê-lo melhor. Terá escrito à Abra? Com certeza que lhe escreveu.
- Hei-de lhe perguntar.
- Pergunte. Vá já perguntar.
- Os treinos são muito fatigantes. Pelo menos, é o que dizem. Talvez seja por isso que não tem tempo para escrever.
- Um postal escreve-se num instante.
- Quando estava na tropa, também escrevia ao seu pai?
- Julga que me atrapalha com essa pergunta? Não escrevia,
não; mas eu tinha uma razão. Não queria alistar-me. Foi o meu pai
quem me obrigou. Fiquei ofendido com ele. Como vê, tinha uma
boa razão. Mas o Aron... estava a ir tão bem na Universidade. Eles
até escreveram a pedir noticias. Leu a carta? Ele não levou roupa
nenhuma, nem sequer o relógio de oiro.
- Onde está não precisa de roupa nem de relógios de oiro. Lá
só o deixam usar coisas castanhas.
- Tem razão. Mas não compreendo. Tenho de fazer alguma
coisa pelos meus olhos; você não pode passar o tempo todo a ler
em meu lugar. - (Os olhos preocupavam-no deveras). - Vejo as
letras, mas não consigo formar as palavras.
Era frequente pegar num jornal ou num livro, segurá-lo, diante
dos olhos e pô-lo de parte.
Para o impedir de pensar noutra coisa, Lee lia-lhe todos os
jornais e, muitas vezes, Adam adormecia. Ao acordar, perguntava:
- Lee? És tu, Cal? Nunca tive dores nos olhos. Amanhã, vou
mandar examiná-los.
Em meados de Fevereiro, Cal entrou na cozinha e disse:
- Lee, ele está sempre a falar no mesmo. O melhor é levá-lo
ao oculista.
Lee estava a fazer compota de alperche. Afastou-se do fogão
para fechar a porta da cozinha, e aproximou-se de Cal.
- Convém evitar que ele lá vá.
- Porquê?
- Aquilo deve ter outra origem e, se ele a descobrir, poderá
ficar ainda mais abalado. Precisa de descansar mais uns tempos.
Apanhou um choque muito grande. Primeiro, tem de se recompor.
Prefiro passar os dias a ler-lhe os jornais.
- Que te parece que seja?
- Não sei bem. Talvez o Dr. Edwards pudesse passar um dia...
por acaso.
- Faz como quiseres - disse Cal.
- Tornaste a ver a Abra?
- Tornei, sim. Mas ela evita-me.
- Vê se descobres um meio de te aproximares.
- Pois claro. Atiro-a ao chão, dou-lhe um murro e obrigo-a a
responder. Mas não estou para isso.
- Há outros processos. Às vezes, a barreira é tão frágil que
basta tocar-lhe para que caia. Tens de falar com ela. Diz-lhe que
preciso de vê-la.
- Não.
- Deves sentir-te muito culpado.
Cal não respondeu.
- Não gostas dela?
Cal não respondeu.
- Se mantiveres essa atitude, só poderás ir de mal a pior.
Mais valia que abrisses o coração.
- Queres que diga ao meu pai o que fiz? Se me aconselhas
isso, obedecerei.
- Não, Cal, por enquanto, não. Mas terá de ser, quando ele
estiver melhor. Terá de ser por causa de ti.É um fardo demasiado
pesado, que acabaria por te esmagar e por te matar.
- Talvez eu mereça morrer.
- Basta! - disse Lee com secura. - Não há forma mais
mesquinha de indulgência para consigo mesmo. Basta!
- E o que hei-de fazer para esquecer?
Lee mudou de assunto.
- Não percebo porque é que a Abra não veio cá.
- Já não tem motivos para vir.
- Ná, ela não costuma proceder desse modo. Aí anda mistério. Não a tens visto?
Cal franziu as sobrancelhas.
- Já te disse. Parece que também estás maluco. Já tentei
falar-lhe por três vezes mas esquiva-se sempre.
- Acho estranho. Ela é uma mulher franca e sensata.
- É uma rapariga - disse Cal. - Tem piada ouvir-te chamar-lhe mulher.
- Não digas isso. Algumas já nascem mulheres. A Abra tem
o encanto, a coragem, a força e o senso comum da mulher. Ela
compreende as coisas e aceita-as. Estou convencido de que não
há nela mesquinhez, nem maldade, nem futilidade, a não ser que
se trate da futilidade que contribui para realçar a beleza.
- Parece que tens muita consideração por ela.
- A consideração suficiente para saber que ela seria incapaz
de nos trair. A Abra faz-me muita falta. Pede-lhe que me venha ver.
- Já te disse que não me quer falar.
- Pois, então, corre atrás dela. Diz-lhe que a quero ver, que
me faz falta.
Cal perguntou:
- E se falássemos dos olhos do papá?
- Não.
- E se falássemos do Aron?
- Não.
3
No dia seguinte, Cal tentou encontrar Abra e só ao sair do liceu
é que a viu à sua frente, de regresso a casa. Enfiou a correr por uma
rua transversal, depois seguiu pela paralela e, quando imaginou
que ela deveria ter chegado ao fundo da rua, dobrou a esquina.
- Bom dia - disse ele.
- Bom dia. Tinha a impressão de te ter visto atrás de mim.
- É verdade. Fui dar a volta ao quarteirão para te encontrar de
frente. Preciso de te falar.
Ela olhou-o com gravidade.
- Não era preciso andares a correr.
- Tentei falar-te na escola, mas tu evitaste-me.
- Tu parecias completamente doido e eu não queria falar a
um doido.
- Notava-se muito?
- Sim, pela cara e pela maneira como andavas. Hoje, já estás com um ar diferente..
- Tens razão.
- Não te importas de levar os meus livros? - perguntou ela a
sorrir.
Cal respondeu calorosamente:
- Com todo o prazer.
Meteu os livros debaixo do braço e pôs-se a caminhar ao lado
de Abra.
- Lee pediu-me para te dizer que gostava de te ver.
Abra estava encantada.
- A sério? Então diz-lhe que irei. Como está o teu pai?
- Não vai lá muito bem. Sofre da vista.
Prosseguiram em silêncio mas, pouco depois, Cal não se conteve mais:
- Sabes o que sucedeu ao Aron?
- Sei. Abre o meu livro de história e vê na primeira página. Cal
encontrou um bilhete postal.
Querida Abra.
Sinto-me impuro e indigno de ti.
Perdoa-me. Alistei-me no exército.
Não vás visitar o meu pai.
Adeus.
Cal fechou o livro com violência.
- Filho da mãe! - disse ele num sussurro.
- O quê?
- Nada.
- Eu ouvi o que tu disseste.
- Sabes porque se foi embora?
- Não. Mas, se quisesse, sabia. Bastava procurar. Mas não
quero. Não estou disposta... A não ser que tu queiras dizer-me.
De súbito, Cal perguntou:
- Abra... tu detestas-me?
- Não. Mas sei que tu me detestas um pouco. Porquê?
- Porque tenho medo de ti.
- Não há razão nenhuma.
- Eu fiz-te mais mal do que tu pensas. E tu és a noiva do
meu irmão.
- Tu fizeste-me mal? Eu não sou a noiva do teu irmão.
- Muito bem - disse ele com coragem. - Vou contar-te. E
não esqueças que foste tu que me pediste. A nossa mãe era uma
prostituta que tinha uma casa nesta cidade. Há muito tempo que
eu o sabia. Na noite de Acção de Graças, levei lá o Aron e mostrei-lhe a mãe.
Abra atalhou,
- E que fez ele?
- Ficou furioso, quase como louco. Depois de a descompor e
de termos saído, deu-me um murro e fugiu. A nossa querida mãe
suicidou-se. O meu pai... adoeceu. Agora, já me conheces e já
tens motivos para te afastares de mim.
- Agora, já o conheço a ele - disse ela calmamente.
- Ao meu irmão?
- Sim, ao teu irmão.
- Ele era bom. Porque disse eu que era? É bom. Não é mau
nem perverso como eu.
Tinham afrouxado o passo. Abra deteve-se. Cal também. A
rapariga olhou-o de frente.
- Cal - disse ela - há muito tempo já que eu sabia quem
era a tua mãe.
- Ah! sim?
- Ouvi dizer aos meus pais quando me julgavam a dormir.
Queria confessar-te uma coisa difícil e agradável ao mesmo tempo.
- Queres mesmo confessar?
- É preciso. Ainda não há muito tempo que deixei de ser
uma simples menina. Compreendes o que eu quero dizer?
- Compreendo - disse Cal.
- Tens a certeza?
- Tenho.
- Pior para mim. Assim ainda vai custar mais. Devia ter dito
isto mais cedo. Cal, eu já não gosto do Aron.
- Porquê?
- Vou tentar explicar-te. Quando éramos crianças, vivíamos
uma história que tínhamos inventado. Mas eu cresci e a história já
não me chega. Preciso de outra coisa. A história já deixou de ser
verdadeira.
- Mas...
- Espera, deixa-me acabar. O Aron, esse, não cresceu. Talvez até fique uma criança toda a vida. Quer viver a sua história tal
como a sonhou e não suporta de modo nenhum que ela prossiga de
outra forma.
- Etu?
- Eu nunca estive interessada no remate da história. A única
coisa que me interessa é vivê-la. Há muito tempo já... que nós
éramos como dois estranhos. Ainda mantivemos a história porque
estávamos habituados, mas eu já não acreditava nela.
- E o Aron?
- Esse, só quer que a história continue como ele entender,
nem que, para isso, tenha de destruir tudo à sua volta.
Cal baixou os olhos para o chão.
Abra perguntou-lhe:
- Acreditas em mim?
- Esforço-me por compreender.
- Quando somos crianças, julgamos ser o centro do mundo.
Tudo o que acontece é a nós que acontece. Os outros? São fantasmas postados ao pé de nós com quem nos dignamos dialogar.
Mas quando crescemos e ocupamos o lugar que nos compete,
ficamos reduzidos ao tamanho e ao formato exactos. As coisas
passam a dar-se com reciprocidade. É pior mas também não deixa
de ser melhor. Ainda bem que me falaste no Aron.
- Porquê?
- Porque, doravante, já sei que não sou inteiramente responsável. Ele não podia suportar a verdade acerca da mãe porque ela não fazia parte da sua história e porque não estava de forma
nenhuma disposto a viver uma outra. Foi por isso que esfrangalhou
tudo à sua volta, do mesmo modo que já me tinha esfrangalhado a
mim quando quis ser padre.
Cal disse:
- Preciso de reflectir bem nisso tudo.
- Dá-me os livros - pediu ela. - Diz ao Lee que irei vê-lo.
Agora já me sinto liberta. Também preciso de reflectir muito. Acho
que gosto muito de ti, Cal.
- Eu não valho nada.
- Talvez seja por isso.
Cal entrou a correr em casa.
- Ela vem cá amanhã.
- Que agitação é essa, rapaz? - perguntou Lee.
4
Abra entrou em casa na ponta dos pés e encostou-se à parede
para não fazer ranger o soalho. Na altura em que assentava o pé no
primeiro degrau da escada, mudou de opinião e dirigiu-se para a
cozinha.
- Até que enfim - disse-lhe a mãe. - Não vieste directamente da escola?
- As aulas, hoje, acabaram mais tarde. O papá está melhor?
- Acho que sim.
- Que disse o médico?
- A mesma coisa. Que tem trabalhado de mais e que precisa de repouso.
- Mas o papá não parecia nada cansado.
A mãe tirou três batatas dum cesto e lançou-as na pia.
- O teu pai tem muita coragem, minha filha. Eu já devia ter
desconfiado. Além das suas próprias obrigações, tem trabalhado
imenso para o esforço de guerra, e o médico diz que os nervos
cederam de repente.
- Posso ir vê-lo?
- Acho que ele não quer ver ninguém. Há bocado, telefonou
o juiz Knudsen e o teu pai mandou dizer que estava a dormir.
- Queres que te ajude?
- Vai mudar de vestido, querida. Não quero que enxovalhes
esse.
Abra passou diante da porta do pai no bico dos pés e entrou no
seu quarto. O papel das paredes era agressivamente colorido e os
móveis brilhavam sob a camada de cera. Havia fotografias dos pais
em cima da cómoda, poemas encaixilhados pendiam das paredes
e, no guarda-fato, tudo estava nos seus lugares. O soalho estava
encerado e os sapatos meticulosamente arrumados. Era a mãe
quem fazia tudo, quem dirigia, quem punha e dispunha de Abra.
Abra já abandonara há muito tempo a ideia de ter algo de pessoal no seu quarto. Ali nada lhe pertencia, excepto as suas ideias.
Por isso, até as poucas cartas que recebera guardava na sala,
escondidas entre páginas das Memórias de Ulysses S. Grant livro
só por ela folheado desde que saíra da tipografia.
Abra sentia-se, agora, feliz e não procurava descortinar as razões desse seu estado. Havia certas coisas que ela sabia sem
sombra de dúvida e que nunca comentava. Sabia, por exemplo, que
o pai não estava doente e que se escondia. Adam Trask, esse,
estava doente, pois vira-o andar na rua. Saberia a mãe que o marido
estava com medo?
Abra despiu-se e vestiu a blusa de algodão que a mãe destinara, de uma vez para sempre, «à lida da casa». Escovou o cabelo e passou novamente diante da porta do pai sem fazer ruído. No
fundo da escada, abriu o livro de história e tirou o postal de Aron.
Na sala, sacudiu o segundo volume das Memórias e fez cair as
cartas de Aron. Dobrou-as e, depois de erguer a blusa, entalou-as
no elástico das cuecas. Quando chegou à cozinha, pôs um avental
para disfarçar o volume.
- Vai descascando as cenouras - disse-lhe a mãe. - Essa
água já está quente?
- Já.
- Então, deita-lhe um cubo de caldo de carne. O médico
disse que fazia bem ao teu pai.
Assim que a mãe saiu para ir levar a tigela de caldo ao doente, Abra abriu o incinerador, atirou as cartas lá para dentro e ateoulhes fogo.
A mãe observou, ao chegar:
- Cheira aqui a fumo.
- Fui eu que deitei fogo ao lixo. Já estava cheio.
- Podias ter perguntado a minha opinião. Só tencionava acender o incinerador amanhã, para aquecer a cozinha.
- Desculpe, mamã - disse Abra. - Foi falta de pensar.
- Pois devias ter pensado. Ultimamente, acho-te muito distraída.
- Peço desculpa, mamã.
- Mais valia que pensasses em vez de pedires desculpa.
O telefone tocou na casa de jantar. A Sr.a Bacon foi responder.
- Não, o médico recomendou que não recebesse visitas. Ninguém. Não. Não. Ninguém.
Voltou à cozinha.
- Era o juiz outra vez - disse ela.
CAPÍTULO LIII
1
No dia seguinte, durante as aulas, Abra andava satisfeita só
com a ideia de ir ver Lee.
- Disseste-lhe que eu ia visitá-lo? - perguntou ela a Cal num
intervalo.
- Começou logo a fazer uma torta qualquer - respondeu Cal.
Vestia uniforme: um dólman mal cortado de gola muito alta e
polainitos nas pernas.
- Vais aos exercícios? - perguntou Abra. - Nesse caso,
chego antes de ti. Que género de torta?
- Não sei. Mas deixa-me um bocado. Pareceu-me que cheirava a morangos. Não te esqueças de me deixar um ou dois bocados.
- Queres ver a prenda que eu vou dar ao Lee? Olha.
Abra destapou uma caixinha de cartão.
- É um novo modelo de descascador de batatas. Só tira a
pele. Não custa nada a usar.
- Com isso, ele vai dar-te a torta toda - disse Cal. (Depois,
acrescentou): - Se eu me atrasar, espera por mim.
- Vais levar-me a casa?
- Vou - disse Cal.
Ela fitou-o insistentemente, até ele baixar os olhos. Depois,
correu para a aula.
2
Adam adquirira o hábito de dormir até tarde ou, antes; habituara-se a dormir com frequência. Sonos curtos, de noite e de dia.
Lee entrou várias vezes no quarto antes que ele acordasse.
- Sinto-me bem esta manhã - disse Adam.
- Se a isto se pode chamar manhã. Já são onze horas.
- Valha-me Deus! Tenho de me levantar.
- Para quê? - perguntou Lee.
- Para quê? Sim, de facto, para quê? Mas a verdade é que me
sinto bem. Talvez pudesse ir até ao escritório. Como está o tempo?
- Frio - respondeu Lee.
Ajudou Adam a levantar-se. Os botões e os atacadores dos
sapatos eram uma carga de trabalhos para Adam.
Enquanto Lee o auxiliava, Adam disse:
- Tive um sonho bastante real. Sonhei com o meu pai.
- Era um homem de grande merecimento - disse Lee. - Li
os recortes de jornais que mandou o advogado do seu irmão. Era
um homem de grande valor.
Adam olhou calmamente para Lee.
- Sabe que era um ladrão?
- Talvez fosse no seu sonho - disse Lee. - Ficou enterrado em Arlington. Num dos artigos, li que o Vice-Presidente e o
Ministro da Guerra tinham assistido ao funeral. Talvez isso tivesse
interesse para um artigo de fundo dum dos jornais cá da terra. Como
estamos em guerra, vinha a propósito. E se nós reuníssemos os
elementos necessários?
- Ele era um ladrão - disse Adam. - Naquela altura, não
quis acreditar, mas agora tenho a certeza. Desviou os fundos do G.
A. R.
- É incrível - disse Lee.
Os olhos de Adam estavam marejados de lágrimas. Já era
costume. Lee disse:
- Sente-se que eu já lhe trago o café. Sabe quem vem cá
esta tarde? A Abra!
- A Abra? Ah! pois, a Abra! É boa rapariga.
- Eu gosto dela - disse Lee com simplicidade. (Sentou Adam
diante da mesa de jogo) - Quer entreter-se com o puzzle enquanto
eu preparo o pequeno almoço?
- Não, obrigado. Esta manhã, não. Prefiro pensar no meu
sonho antes que o esqueça.
Quando Lee voltou com a bandeja, Adam já adormecera na
cadeira. Lee despertou-o, leu-lhe o jornal enquanto ele comia e,
depois, levou-o à casa de banho.
Toda a cozinha rescendia a bolos. Alguns morangos tinham-se
queimado e espalhavam um cheiro agradável, agridoce e adstringente.
Lee sentia-se feliz, aguardando o grande acontecimento do dia.
« O Adam está com os pés para a cova, pensou ele. Eu também devo estar, mas não o sinto. A sensação que tenho é de ser
imortal. Quando era muito novo, sentia-me mortal, mas acabou-se.
A morte recuou. » E perguntava a si mesmo se seria normal pensar
daquela maneira.
«Que queria dizer Adam quando se referia às roubalheiras do
pai? Devia fazer confusão com o sonho. Depois, Lee deixou-se arrastar pela imaginação, como tantas vezes lhe acontecia. «Supondo
que era verdade - Adam, o homem mais estritamente honesto que
se pudesse encontrar, vivera toda a vida à custa duma fortuna roubada. » Lee riu-se para dentro. «E o seu filho Aron, confortavelmente instalado numa pureza egoísta, beneficiará toda a vida dos lucros dum bordel. Seria uma ironia do destino, ou estariam as forças
assim equilibradas para que o fiel da balança se mantivesse horizontal?»
Lee pensou em Sam Hamilton. Batera a tantas portas. Tinha
tantas ideias, tantos projectos, e ninguém lhe dera dinheiro. Mas
possuía outra riqueza. Que mais lhe poderiam dar? A riqueza parece chegar aos pobres sob uma forma espiritual e, para restabelecer o equilíbrio, os ricos não passam duma corja de brutos. Lee
perguntou a si mesmo se não estaria a ir longe de mais. Mas havia
exemplos.
Pensou em Cal, queimando o dinheiro para se punir. Mas o
castigo não o ferira tão profundamente como o crime. Lee disse
para consigo: «Se, de facto, existe um lugar onde um dia me hei-de encontrar com o Sam Hamilton, quantas histórias não terei para
lhe contar!» E acrescentou: « E ele, então!»
Lee voltou ao quarto de Adam e encontrou-o a tentar abrir a
caixa que continha os artigos necrológicos sobre o pai.
3
Naquela tarde soprava um vento frio. Adam teimou em ir ao
escritório da Junta de Recrutamento. Lee vestiu-o e acompanhou-o
até à porta.
- Se se sentir mal, sente-se mesmo no sítio onde estiver.
- Está bem - anuiu Adam. - Mas hoje sinto-me bem. Talvez pudesse aproveitar para examinar os olhos.
- Deixe isso para amanhã. Eu irei consigo.
- Logo se vê - disse Adam.
E pôs-se a caminho, balançando os braços com um ar marcial.
Abra chegou com os olhos a brilhar e o nariz avermelhado
pelo vento frio. Vinha tão radiante que Lee se pôs a rir de satisfação.
- Onde está a torta? - gritou ela. - Vamos escondê-la para
o Cal não a encontrar! - (Abra sentou-se na cozinha.) - Estou tão
contente por ter voltado!
Lee quis falar, mas engasgou-se. O que tinha a dizer era agradável, mas delicado.
- Poucas coisas tenho desejado na minha vida - começou
ele. - Aprendi muito cedo a ser pouco exigente; é a única maneira
de evitarmos as decepções.
Abra disse alegremente:
- Mas agora deseja qualquer coisa. O que é?
- Gostaria que fosse minha filha...
Sentiu-se extremamente chocado com o que dissera, aproximou-se do fogão a gás, apagou-o e tornou a acendê-lo.
Abra respondeu docemente:
- Pois eu gostaria que fosse meu pai.
Ele olhou-a de soslaio, mas desviou logo o olhar.
- A sério?
- A sério.
- Porquê?
- Porque gosto de si.
Lee saiu precipitadamente e foi sentar-se no seu quarto, apertando as mãos com força até que a respiração se normalizasse.
Então, levantou-se e tirou da cómoda uma caixinha de ébano com
um dragão na tampa. Voltou à cozinha e depôs a caixa nas mãos
de Abra.
- É para si - disse ele numa voz sem timbre.
Ela abriu a caixa e viu um pequeno alfinete de jade verde escuro trabalhado em forma de mão humana. Abra pegou na jóia, levou-a à boca, molhou-a com a ponta da língua, passou-a pelos lábios e
encostou-a à cara.
- Era a única jóia da minha mãe - disse Lee.
Abra levantou-se, envolveu-o nos braços e beijou-o no rosto.
Era a primeira vez que tal coisa acontecia a Lee.
- Parece que perdi a minha placidez oriental. O único meio de
a recuperar é fazer chá, querida. - (Fez uma ligeira pausa.) - É a
primeira vez na minha vida que emprego esta palavra. Nunca tratei
ninguém assim.
Abra disse:
- Esta manhã, quando acordei, senti-me feliz.
- Também eu - disse Lee. - E já sei porquê. Era por saber
que vinha.
- Eu também era por isso, mas...
- Noto uma grande mudança em si - disse Lee. - Já deixou
de ser a menina que era.
- Foi por ter queimado todas as cartas do Aron.
- Ele portou-se mal consigo?
- Não. Não me parece. Ultimamente, eu nunca me sentia
suficientemente boa. Há muito tempo que andava com vontade
de explicar-lhe que era má.
- E agora que já não precisa de ser perfeita, pode ser boa,
não é isso?
- Talvez. Acho que sim.
- Sabe quem era a mãe dos rapazes?
- Sei. Mas ainda não me ofereceu uma fatia de torta. E estou
cheia de sede.
- Beba chá, Abra. Gosta do Cal?
- Gosto.
- Ele está abarrotado de tudo o que é bom e o que é mau.
Pareceu-me que bastaria apenas um empurrão com um dedo duma
certa pessoa...
Abra baixou a cabeça para a chávena de chá.
- Ele pediu-me para ir com ele ao monte Alisal quando as
azáleas estiverem em flor.
Lee pousou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
- É escusado perguntar-lhe se aceitou.
- É escusado, é. Aceitei.
- Não esteja tanto tempo sem voltar a esta casa.
- Os meus pais não querem que venha.
- Só os vi uma vez, mas pareceram-me boa gente. Às vezes, convém aplicar estranhos remédios. Gostaria de saber se eles
não modificariam a atitude quando soubessem que o Aron acabou
de herdar cem mil dólares.
Abra abanou a cabeça com gravidade, esforçando-se por não
sorrir.
- Tem razão - disse ela. - Qual será a melhor maneira de
lhes dar a notícia?
- Olhe, minha querida - disse Lee - se me dessem uma
tal novidade, a primeira coisa que eu fazia era telefonar a alguém.
Talvez me enganasse no número.
- E diria a esse tal número a proveniência do dinheiro?
- Claro que não - disse Lee.
Abra olhou para o relógio pendurado na parede.
- São quase cinco horas. Tenho de me ir embora. O meu pai
não tem passado bem. Pensei que o Cal já estivesse de volta dos
exercícios.
- Apareça assim que puder - disse Lee.
4
Abra encontrou Cal à saída da porta.
- Espera - disse ele, entrando em casa.
- Toma conta dos livros de Abra! - gritou-lhe Lee da cozinha.
Com a aproximação da noite, o vento tornara-se mais frio, fazendo baloiçar os candeeiros e bailar as sombras dos transeuntes.
Os homens que regressavam do trabalho escondiam o queixo na
gola do sobretudo e apressavam o passo em direcção ao calor.
Ouvia-se a música monótona que vinha do rinque de patinagem.
Cal disse:
- Não te importas de segurar um instante nos livros, Abra?
Queria desapertar a gola que me está a cortar o pescoço.
Abriu-a e suspirou de alívio. No jardim dos Berges, os ramos
da palmeira davam palmadas secas, enquanto um gato miava sem
interrupção diante duma porta de cozinha fechada.
Abra disse:
- Nunca hás-de dar um bom soldado. És independente de
mais.
- Talvez - disse Cal. - Todas aquelas ordens que nos berra o velho Krag-Jorgensens me parecem ridículas. Se um dia me
vier a interessar por elas, talvez faça um bom soldado.
- A torta estava maravilhosa - disse Abra. - Deixei ficar um
pedaço para ti.
- Obrigado. O Aron, esse, deve dar um bom soldado.
- Também acho. Deve ser o melhor de todos. Quando iremos
colher as azáleas?
- Nunca antes da Primavera.
- Então, ela que venha depressa! Poderemos almoçar no
campo.
- E se chover?
- Pior para nós. Seja como for, não deixaremos de ir.
Abra pegou nos livros e entrou no jardim da sua casa.
- Até amanhã - disse.
Cal não regressou directamente a casa. Enfiou pela noite
gelada, passou diante da escola e do rinque de patinagem que era
constituído por um estrado tapado com uma grande tenda de onde
saía o som estridente duma orquestra mecânica. Não havia
patinadores. O velho proprietário estava sentado na sua cabina e
folheava com a ponta dos dedos um maço sebento de bilhetes de
entrada.
A Main Street estava deserta. O vento empurrava detritos pelo
chão. Tom Meek, o guarda de serviço, saiu da confeitaria Bell e
travou conversa com Cal.
- Era melhor que abotoasse a gola, seu militar das dúzias -
disse ele.
- Olá, Tom. Faz-me doer o pescoço.
- Já ninguém te vê a vadiar de noite.
- Pois não.
- Resolveste ter juízo?
- Quem sabe?
Tom gabava-se da sua aptidão para gozar as pessoas com o
ar mais sério deste mundo.
- Não andará aí mouro na costa?
Cal não respondeu.
- Ouvi dizer que o teu irmão conseguiu alistar-se. Estarás tu
apaixonado pela noiva dele?
- Então, não havia de estar?
O interesse de Tom aguçou-se.
- O Will Hamilton anda a contar por toda a parte que ganhaste quinze mil dólares com o feijão. Será verdade?
- Claro que é - disse Cal.
- Tu não passas dum miúdo. Que tencionas fazer a tanto
dinheiro?
Cal sorriu-lhe.
- Queimei-o.
- Queimaste-o, como?
- Risquei um fósforo e queimei-o.
Tom perscrutou-lhe o rosto.
- Ah! pois claro. Era o que tinhas de melhor a fazer. Eu vou
para aquele lado. Boa noite, rapaz.
Tom Meek não gostava que fizessem pouco dele. «Ora o filho
da mãe, pensou ele. Não querem ver que agora também arma em
esperto?»
Cal desceu vagarosamente a Main Street olhando para as
montras. Gostava de saber onde estaria Kate enterrada. Se soubesse, iria pôr um ramo de flores na sepultura. Achou graça a tal
impulso. Estaria a ser fingido? O vento do Vale era capaz de levantar uma pedra sepulcral, quanto mais um ramo de cravos... Sem
saber porquê, lembrou-se do nome mexicano dos cravos - deviam
ter-lho dito quando era pequeno. Chamavam-lhes cravos de amor, e
aos malmequeres, cravos de morte. Era uma palavra assim...
claveles. Talvez fosse melhor pôr malmequeres na tumba da mãe.
«Estou começando a pensar como o Aron. »
CAPÍTULO LIV
1
O Inverno parecia relutante em afrouxar a pressão da sua garra fria, húmida e ventosa. E toda a gente dizia:
«É por causa dos tiros de canhão que disparam em França
que dão cabo do tempo em todo o mundo.,,
As sementes levaram tanto tempo a germinar no vale do Salinas e as flores silvestres abriram tão tarde que se chegou a recear
que nunca mais desabrochassem.
Mas nós sabíamos - ou pelo menos tentávamos convencer-nos - que no Dia de Maio, dia destinado aos piqueniques escolares nas faldas do Alisal, estariam em flor as azáleas que crescem
à beira das torrentes, pois elas faziam parte integrante desse dia
festivo.
Mas o dia foi frio. O piquenique dissolveu-se sob uma chuva
glacial e as azáleas não tinham um único botão. Duas semanas
depois, continuava tudo na mesma.
Cal não previra esse contratempo quando marcara a floração
das azáleas como sinal para o passeio. Forçoso era esperar.
O Ford estava recolhido no barracão dos Windham, com os
pneus cheios e duas pilhas secas para facilitar o arranque. Lee
tinha tudo preparado para fazer as sandes no dia a indicar, mas
cansou-se de esperar e desistiu de comprar pão de forma dia sim
dia não.
- Deixem-se de coisas e vão de qualquer maneira - dizia
ele.
- Não posso - respondia Cal. - Estou à espera das azáleas.
- E como é que sabes que já floriram?
- Os Silacci moram para aqueles lados e vêm à escola todos
os dias. Eles dizem que só deve faltar uma semana.
- Ó meu Deus! - disse Lee, erguendo os olhos para o céu.
- Porque não nos concedes o piquenique?
Adam recuperava as forças a pouco e pouco. A mão esquerda
estava mais vigorosa. Todos os dias ia aumentando o tempo que
podia dedicar à leitura.
- As letras só se põem a dançar quando estou cansado -
dizia ele. - Ainda bem que não comprei óculos. Era capaz de
estragar a vista.
Lee abanava a cabeça e sentia-se feliz. Fora a San Francisco
procurar os livros de que precisava e encomendara pelo correio numerosos exemplares de revistas.
Já nada ignorava da anatomia do cérebro, dos sintomas e da
gravidade das lesões e das tromboses. Estudara e fizera perguntas com a mesma tenacidade de que dera provas ao espiolhar e
analisar um verbo hebraico. O Dr. H. C. Murphy aprendera a conhecer Lee e a sua impaciência profissional para com o criado chinês
transformara-se em profunda admiração pelo estudante. O Dr.
Murphy chegara mesmo a pedir emprestadas a Lee algumas das
suas revistas especializadas. Certo dia, confessou ao Dr. Edwards:
«Este chinês já sabe mais do que eu e, pelo menos, tanto como
você, acerca da patologia da hemorragia cerebral. » Falava com uma
espécie de raiva afectuosa. A profissão médica é inconscientemente irritada pela concorrência.
Lee veio comunicar-lhe que Adam estava melhor.
- Parece que prossegue a reabsorção.
- Tive um doente... - começou o Dr. Murphy.
E contou uma história optimista.
- Receio novo ataque - disse Lee.
- Não temos outro remédio senão confiar na vontade do Todo-Poderoso - disse o Dr. Murphy. - Ainda não podemos remendar
uma artéria como se fosse uma velha câmara de ar. Gostava de
saber como é que faz para lhe medir a tensão arterial?
- Aposto na dele e ele aposta na minha. É muito mais divertido do que as corridas de cavalos.
- E quem é que ganha?
- Poderia ser eu - disse Lee - mas não quero. Isso estragava o jogo.
- Como é que consegue mantê-lo calmo?
- Isso é uma invenção minha - disse Lee. - Chamo-lhe
tagareloterapia.
- Deve tomar-lhe o tempo todo.
- Pois toma - disse Lee.
2
No dia 28 de Maio de 1918, as tropas americanas efectuaram
a sua primeira grande intervenção na guerra mundial. A Primeira
Divisão, comandada pelo General Bullard, recebeu ordens para
capturar a aldeia de Cantigny. Esta, situada numa eminência, dominava todo o vale do Avre. A defesa estava organizada por um
sistema de trincheiras, de ninhos de metralhadoras e de artilharia.
A frente tinha pouco mais de quilómetro e meio de extensão.
Às seis e quarenta e cinco do dia 28 de Maio de 1918, teve
início o ataque com uma hora de preparação pela artilharia. Tomaram parte as seguintes tropas: o 28 de Infantaria (Coronel Ely),
uma companhia do 18 de Infantaria (Parker), uma companhia de
sapadores e a artilharia divisionária (Summerall), apoiadas por
blindados franceses e lança-chamas.
O ataque teve êxito completo. Os Americanos apoderaram-se das posições e repeliram dois poderosos contra-ataques alemães.
A Primeira Divisão foi felicitada por Clemenceau, Foch e Pétain.
3
Só no fim do mês de Maio é que os Silacci anunciaram que as
flores rosa-salmão das azáleas tinham acabado de abrir. Era quarta-feira e estava a tocar para a aula das nove.
Cal precipitou-se para a aula de inglês e, na altura em que
Miss Norris ia sentar-se à secretária, agitou o lenço e assoou-se
ruidosamente. Depois, desceu para as retretes dos rapazes e esperou até que accionassem o autoclismo do lado das raparigas. Saiu
pela porta da cave, esgueirou-se ao longo da parede de tijolos encarnados, escondeu-se atrás do pimenteiro e caminhou lentamente até que Abra se lhe juntasse.
- Quando floriram? - perguntou ela.
- Esta manhã.
- Esperamos por amanhã?
Cal olhou para o belo sol doirado, o primeiro daquele ano.
- Queres esperar?
- Não - respondeu ela.
- Eu também não.
Partiram a correr, compraram pão na padaria Reynaud e obrigaram Lee a despachar-se.
Adam, ao ouvir gritos na cozinha, entrou.
- Que barulho é este? - perguntou.
- Vamos fazer um piquenique - disse Cal.
- Hoje não há aulas?
- Abra respondeu: - Há, mas resolvemos fazer gazeta. Adam
sorriu-lhe.
- Estás corada como uma rosa. Abra atirou-lhe:
- Porque não vem connosco? Vamos apanhar azáleas ao
Alisal.
- Teria muito prazer em ir - disse Adam. (Depois, acrescentou): - Não, não posso. Prometi ir à fábrica. Estão a montar
novas máquinas. Que lindo dia!
- Havemos de lhe trazer flores - prometeu Abra.
- Divirtam-se bem.
Assim que ele saiu, Cal disse:
- Porque não vens tu, Lee?
Lee lançou-lhe um olhar penetrante.
- Nunca julguei que pudesses ser tão parvo.
- Venha, Lee! - insistiu Abra.
- Não sejam tolos! - disse Lee.
Aprazível é o riacho que rumoreja pelo monte Alisal, vindo da
serra dos Gabilanes, a nascente do vale do Salinas. A água desliza
pelos calhaus e lava incessantemente as raízes das árvores.
O aroma das azáleas e das folhas verdes aquecidas pelo sol
enchia o ar. O Ford estava parado à beira do regato, ofegante
ainda pelo esforço despendido. No banco de trás amontoavam-se
os ramos de azáleas.
Cal e Abra estavam sentados na margem, entre os papéis do
almoço, com os pés mergulhados na água.
- As flores murcham sempre antes de chegarem a casa
- disse Cal.
- Mas são uma desculpa tão boa. Se não fores tu, estou a ver
que terei de ser eu...
- A fazer o quê?
Ela pegou-lhe na mão.
- Isto - disse.
- Eu não me atrevia.
- Porquê?
- Não sei.
- Mas eu atrevi-me.
- As raparigas são mais atrevidas do que os rapazes.
- Talvez seja verdade.
- Tu nunca tens medo?
- Tenho, sim - disse ela. - Tive medo de ti no dia em que
me disseste que tinha feito chichi nas calças.
- Foi por maldade - disse ele. - Não sei porque foi que fiz
isso.
Subitamente, Cal ficou silencioso.
Ela apertou-lhe a mão.
- Sei no que estás a pensar e quero que esqueças.
Cal olhou para a água e virou uma pedra escura com a ponta
do pé.
Abra disse:
- Julgas-te pior do que os outros? Estás convencido de que
atrais o mal...
- É que...
- Vou dizer-te uma coisa. O meu pai está em apuros.
- Que género de apuros?
- Não andei a escutar às portas, mas o que ouvi chegou-me.
Ele não está doente. Tem medo por causa de qualquer coisa que
fez.
Cal voltou a cabeça.
- Suponho que roubou dinheiro. Ele ainda não sabe se os
sócios o vão mandar prender ou se lhe vão dar tempo para devolver
o dinheiro.
- Como sabes tu isso?
- Ouvi-os gritar no quarto. A minha mãe pôs um disco a tocar
para abafar as vozes.
- Tu não estás a inventar tudo isso? - perguntou ele.
- Não. É verdade.
Cal aproximou-se dela, poisou a cabeça no seu ombro e enlaçou-lhe timidamente a cintura.
- Como vês, não és o único...
Abra deteve-se e olhou-o de soslaio.
- Agora, estou com medo - disse ela em voz débil.
5
Nessa mesma tarde, às três horas, Lee folheava as páginas
dum catálogo de sementes. As ervilhas-de-cheiro eram a cores.
- Ficavam bem na cerca das traseiras. Ainda por cima, tapavam o charco. Só não sei se terão sol que chegue.
Ao ouvir a própria voz, levantou a cabeça e sorriu. Acontecia-lhe cada vez mais surpreender-se a falar em voz alta, quando a
casa estava vazia.
- É da idade - disse ele. - A cabeça a divagar... - (Deteve-se e ficou imóvel.) - É esquisito, pareceu-me ouvir qualquer coisa.
Terei deixado o gás aceso? Não... agora me lembro. - (Apurou
novamente o ouvido.) - Graças a Deus, não sou supersticioso. Se
fosse impressionável, acabaria por ouvir fantasmas a deslizar.
Tocaram à porta da rua.
- Era isto. Era isto o que eu esperava. Pois toca à vontade.
Não me deixarei guiar por pressentimentos. Podes tocar enquanto
te apetecer.
Mas não tornaram a tocar.
Uma grande lassidão apoderou-se de Lee. Os ombros descaíram vergados ao peso da impotência. Procurou gracejar.
- Se lá for, encontro um prospecto debaixo da porta, mas se
me deixar aqui ficar, a minha velha cabeça cansada há-de teimar
que foi a morte que nos bateu à porta. Prefiro o prospecto.
Lee sentou-se na sala e contemplou o envelope que tinha nos
joelhos. De repente, cuspiu-lhe em cima.
- Toma - disse ele. - É para que saibas.
Abriu-o e pô-lo logo em cima da mesa.
- Não - disse ele, fitando o chão intensamente. - Não tenho o direito. Ninguém tem o direito de poupar uma experiência, por
mais pequena que seja. A vida e a morte são-nos devidas. Todos
temos direito ao sofrimento.
Sentiu uma contracção no estômago.
- Não tenho coragem. Sou um covarde indecente. Não conseguirei aguentar.
Foi à casa de banho, deitou três colheres de brometo num
copo e acrescentou água até que o remédio encarnado ficasse
cor-de-rosa. Levou o copo para a sala e sentou-se. Dobrou o telegrama e meteu-o no bolso. Depois, disse em voz alta:
- Meu Deus, odeio a covardia! Ninguém imagina como odeio
os covardes!
Tremiam-lhe as mãos e escorria-lhe um suor frio pela testa.
Às quatro horas, ouviu Adam a abrir a porta da entrada. Lee
humedeceu os lábios. Ergueu-se e dirigiu-se lentamente para a porta.
Na mão firme, levava o copo de brometo.
CAPÍTULO LV
1
Todas as luzes brilhavam em casa dos Trask. A porta da rua
ficara entreaberta e a casa estava gelada. Na sala, Lee parecia
uma folha caída numa cadeira. Pela porta aberta do quarto de Adam
saíam vozes.
Quando Cal entrou, inquiriu:
- Que se passa?
Lee ergueu os olhos e designou com a cabeça a mesa onde
estava o telegrama aberto.
- Morreu o teu irmão - disse ele. - O teu pai teve um ataque.
Cal encaminhou-se para o quarto. Lee deteve-o.
- Não vás. O Dr. Murphy e o Dr. Edwards estão ao pé dele.
Deixa-os sós.
Cal plantou-se diante de Lee.
- É grave? Lee, é grave?
- Não sei.
Pôs-se a falar como se contasse uma velha história.
- Voltou fatigado. Mas eu tinha de lhe ler o telegrama. Era
esse o seu direito. Durante cinco minutos, ficou a repeti-lo em voz
alta e, depois, de repente, as palavras penetraram na cabeça e
explodiram.
- Está consciente?
Lee disse com cansaço:
- Senta-te e espera, Cal. Senta-te e espera. Tens de te habituar. Eu estou a ver se consigo.
Cal pegou no telegrama e leu a fórmula digna e seca.
O Dr. Edwards saiu, acenou amavelmente com a cabeça, atravessou a porta e fechou-a sem ruído.
O Dr. Murphy pôs a maleta em cima da mesa, sentou-se e
suspirou.
- O Dr. Edwards pediu-me que o prevenisse.
- Como está ele? - perguntou Cal.
- Vou dizer-lhe tudo quanto sabemos. Doravante, será você
o chefe da família. Cal, sabe o que é uma hemorragia cerebral? -
(Não esperou pela resposta de Cal). - É um derramamento de
sangue no cérebro. Certas partes são atingidas. Ele já teve derramamentos, mas menos importantes. O Lee sabe o que eu quero
dizer.
- Evidentemente - disse Lee.
O Dr. Murphy deitou-lhe um olhar e dirigiu-se novamente a Cal.
- O lado esquerdo ficou paralisado. O lado direito tem uma
paralisia parcial. É provável que não veja nada do olho esquerdo,
mas não podemos garantir. Por outras palavras, o seu pai está
reduzido a completa impotência.
- Pode falar?
- Muito pouco. Só com dificuldade. Não o fatigue.
Cal tinha a garganta seca.
- Poderá curar-se?
- Já ouvi falar em casos de reabsorção. Mas, pessoalmente,
nunca vi nenhum.
- Então, vai morrer?
- Não sabemos. Pode viver uma semana, um mês, um ano
ou mesmo dois. E pode morrer esta noite.
- Será capaz de me reconhecer?
- Verifique por si mesmo. Vou mandar-lhe uma enfermeira e,
depois, arranje duas que se revezarão à cabeceira do doente. - (O
médico levantou-se). -Tenho muita pena, Cal. Coragem! Vai precisar de muita coragem. A coragem das pessoas surpreende-me,
sempre. O Dr. Edwards vem cá amanhã. Boa noite.
Estendeu a mão para tocar no ombro de Cal, mas o rapaz
recuou e dirigiu-se para o quarto de Adam.
O pai descansava, encostado às almofadas. O rosto estava
calmo e pálido, a boca mantinha-se firme, nem sorridente, nem
severa. Os olhos estavam abertos, parecendo extremamente profundos e muito luminosos. Dir-se-iam dotados duma nova acuidade.
Quando Cal entrou no quarto, mexeram e pousaram-se nele. Depois de passarem pelo peito, subiram até ao rosto e ali se fixaram.
Cal sentou-se na cadeira ao lado da cama e disse:
- Lamento muito.
As pálpebras subiram e desceram como as duma ave nocturna.
- Ouves-me? És capaz de me compreender? - (Os olhos
não mexeram). - Sou eu - soluçou Cal. - Sou eu o responsável
pela morte do Aron e pela tua doença. Fui eu que o levei a casa da
Kate e lhe mostrei a mãe. Foi por isso que ele fugiu. Eu não quero
agir mal, mas sinto-me arrastado.
Poisou a cabeça na borda da cama para evitar o terrível olhar,
mas continuava a senti-lo. Sabia que aqueles olhos nunca mais o
largariam, como se fossem uma nódoa.
Bateram à porta. Pouco depois, Lee entrou no quarto, precedendo a enfermeira, uma mulher corpulenta com bastas sobrancelhas pretas. A mulher abriu simultaneamente a mala e a boca.
- Onde está o meu doente? Ah! aqui está. Mas que rico aspecto que ele tem! Que faço eu aqui? Mais valia que se levantasse
e que tratasse de mim. Importava-se de tratar de mim? Oh! mas
que doente tão bonito!
Segurou Adam com um braço musculado e ergueu-o sem
dificuldade enquanto, com a outra mão, virava as almofadas.
- Almofadas frescas! - disse ela.- Não gosta de almofadas
frescas? Onde é a casa de banho? Quem me arranja uma arrastadeira e uma bacia? Podem pôr aqui um canapé?
- Faça uma lista - disse Lee. - E se precisar de ajuda por
causa dele...
- Precisar de ajuda para quê? Vamo-nos entender os dois
muito bem, não é verdade, meu amor?
Lee e Cal retiraram-se para a cozinha. Lee disse:
- Antes de ela chegar, ia obrigar-te a comer. Percebes, como
certas pessoas que usam a comida para todos os fins, sejam eles
bons ou maus. Ela deve ser desse género. Come ou não, como te
der na gana.
Cal sorriu-lhe.
- Se me tivesses obrigado, acho que teria adoecido. Mas,
visto que levas as coisas para esse lado, parece-me que vou fazer
uma sandes.
- Uma sandes não.
- Pois eu quero uma.
- Dá sempre resultado. Chega a ser triste. Acho mesmo indecente que toda a gente reaja da mesma forma.
- Já não me apetece a sandes - disse Cal. - Sobrou torta?
- Procura no cesto do pão. Deve estar um pouco dura.
- Eu gosto dela dura - disse Cal.
Pôs o prato em cima da mesa e sentou-se à frente.
A enfermeira meteu a cabeça pela porta.
- Mas que rica torta! - disse ela. (Pegou num bocado de
torta, deu-lhe uma dentada e falou com a boca cheia). - Posso
telefonar ao Krough por causa dos remédios? Onde é o telefone?
Onde guardam a roupa? Onde está a minha cama? Já acabou de
ler esse jornal? Onde foi que disse que ficava o telefone?
Pegou noutro bocado de torta e retirou-se.
Lee perguntou em voz baixa:
- Ele falou-te?
Cal abanou a cabeça da esquerda para a direita, num movimento que parecia nunca mais acabar.
- Isto vai ser horrível. Mas o doutor tem razão. Nós somos
uns animais maravilhosos que conseguimos suportar tudo.
- Eu não. - (A voz de Cal era branca). - Eu não posso
suportar. Não, não posso. Sou incapaz. Tenho de... Tenho de...
Lee segurou-lhe no pulso com violência.
- Ranhoso! Não tens vergonha de pensar em tal coisa quando te vês rodeado por tanta bondade? Em que é que o teu sofrimento é mais requintado do que o meu?
- Não se trata de sofrimento. Eu contei-lhe tudo. Matei o
meu irmão. Sou um assassino e ele sabe-o.
- Ele disse-te? Então... ele disse-te?
- Era escusado. Via-se-lhe nos olhos. Disse-me com os olhos.
Não há lugar onde me esconda para escapar àqueles olhos.
Lee suspirou e afrouxou a mão.
- Cal, escuta-me. Os centros vitais de Adam foram atingidos.
Tudo o que vês nos seus olhos talvez não passe do resultado da
infiltração do sangue no seu cérebro. Não te recordas? Ele já não
conseguia ler. Não era por causa dos olhos, mas sim da tensão. Tu
não sabes se ele te acusou. É uma coisa que não podes afirmar.
- Acusou-me, sim. Eu sei que me acusou. Ele disse que eu
era um criminoso.
- Ele há-de perdoar. Prometo-te.
A enfermeira surgiu no enquadramento da porta.
- O que é que tu prometes, Ching-Chong? Não me tinhas
prometido uma chávena de café?
- Vou fazê-lo. Como está ele?
- Dorme que nem uma criança. Há alguma coisa que se leia
nesta casa?
- Que quer?
- Qualquer coisa que me faça esquecer os meus calos.
- Com o café, levo-lhe umas histórias indecentes escritas por
uma rainha de França. Talvez as ache demasiado...
- Podes levá-las com o café - disse ela. - Porque não vais
passar pelas brasas, catraio? O Ching-Chong e eu ficamos de atalaia. Não te esqueças do meu livro, Ching-Chong.
Lee pôs a máquina de café em cima do fogão. Depois, disse:
- Cal?
- Que queres?
- Vai ver a Abra.
2
Cal apoiou o dedo na campainha até que se acendesse uma
luz e fosse corrido o fecho de segurança. A Sr.a Bacon deitou-lhe
uma mirada.
- Queria falar à Abra - disse Cal.
Estupefacta, ela abria a boca.
- Que quer?
- Ver a Abra.
- Não pode ser. Já está deitada. Vá-se embora.
Cal repetiu com mais força:
- Já lhe disse que quero ver a Abra.
- Vá-se embora ou chamo a polícia.
- O que é? Quem é? - perguntou a voz do Sr. Bacon.
- Não faças caso. Vai deitar-te que estás doente. Eu trato de
tudo.
Voltou-se para Cal.
- Saia da minha porta. E se tornar a bater, telefono à polícia.
A porta bateu, o ferrolho rangeu e a luz apagou-se.
Cal ficou imóvel, sorrindo à ideia de que a polícia era representada por Tom Meek. Já o via a perguntar:
- Então, Cal, que andas tu a magicar?
A Sr.aBacon gritou de dentro:
- Olhe que o estou a ver. Vá-se embora.
Atravessou vagarosamente o jardim e encaminhou-se para casa.
Ainda não dera vinte passos quando Abra chegou a correr ofegante.
- Saí pela porta da cozinha - disse ela.
- Os teus pais vão dar por isso.
- Estou-me nas tintas.
- A sério?
- Claro que estou.
- Abra, eu matei o meu irmão e o meu pai ficou paralítico por
minha causa.
Ela agarrou-lhe o braço com as duas mãos.
Cal perguntou:
- Ouviste?
- Ouvi.
- Abra, a minha mãe era uma perdida.
- Bem sei. Tu já me disseste. O meu pai é um ladrão.
- O sangue da minha mãe corre nas minhas veias, Abra.
- E o sangue do meu pai corre nas minhas.
Marcharam em silêncio, enquanto Cal tentava recuperar o equilíbrio. O vento estava gelado e aceleraram o passo para se aquecerem. Passaram diante do último candeeiro de Salinas. Para a frente, só havia escuridão. Debaixo dos pés, o solo era escorregadio.
Tinham chegado ao fim da rua, ao fim da luz. A lama era pegajosa e a erva estava coberta de geada. Abra perguntou:
- Para onde vamos?
- Quero fugir ao olhar do meu pai. Vejo os olhos dele à minha
frente. Quando fecho os meus, continuo a vê-los. Hei-de vê-los sempre. O meu pai vai morrer, mas os seus olhos continuarão a olhar-me para me dizerem que matei o meu irmão.
- Tu não o mataste.
- Matei, sim. Disseram-me os olhos do meu pai.
- Não fales assim. Para onde vamos?
- Um pouco mais adiante. Há uma fonte e um chorão ao lado.
Recordas-te do chorão?
- Recordo-me, sim.
Cal disse:
- Os ramos caem como uma cortina e cobrem o chão.
- Eu sei.
- À tarde, quando fazia sol, o Aron e tu afastavam os ramos e
entravam. E ninguém podia vê-los.
- Tu espreitaste-nos?
- Claro. Quero ir contigo para debaixo do chorão. É só isso o
que eu quero.
Ela parou e deteve-o.
- Não - disse ela. - Tu não tens o direito.
- Não queres ir comigo?
- Se é para te esconderes, não!
- Então, que devo fazer? Diz-me.
- Dás-me ouvidos?
- Não sei.
- Vamos voltar para casa.
- Que casa?
- Para a casa do teu pai.
3
Estavam todos violentamente iluminados pelo candeeiro da
cozinha. Lee acendera o fogão para aquecer a casa.
- Ela obrigou-me a voltar - disse Cal.
- Por isso esperava eu.
Abra disse:
- Ele teria voltado mesmo sozinho.
- Isso é o que nunca saberemos - disse Lee.
Saiu da cozinha e voltou pouco depois.
- Continua a dormir.
Colocou uma botija de pedra e três pequenas xícaras de porcelana transparente em cima da mesa.
- Lembro-me dessa botija - disse Cal. Naturalmente. - (Lee
serviu a bebida negra). - Bebe-se um golo e deixa-se ficar na boca.
Abra fincou os cotovelos na mesa.
- Ajude-o - pediu ela.- Você sabe aceitar as coisas, Lee.
Ajude-o.
- Eu não sei se as aceito - disse Lee. - Nunca tive ocasião
de verificar. Sempre me tenho visto... cada vez menos na possibilidade de enfrentar a incerteza. Eu, tive de chorar... sozinho.
- Chorar? Você?
- Quando Samuel Hamilton morreu, o mundo extinguiu-se
como uma vela. Tornei a acendê-lo para ver as suas maravilhosas
criações, mas afinal só vi os seus filhos atirados uns contra os
outros, dilacerados e destruídos, como se se tratasse duma vingança. Devem conservar o ng-ka-py em cima da língua. - (Prosseguiu): - Eu próprio descobri os meus erros. Julgava que os bons
são destruídos, enquanto que os maus sobrevivem e prosperam...
julgava que um deus furioso derramava fogo líquido para destruir ou
purificar a sua obra de argila. Julgava ter herdado as cicatrizes deixadas pelo fogo, assim como as impurezas que tinham tornado o
fogo necessário. Sim, julgava tê-las herdado. É isso o que sentem?
- Acho que sim - disse Cal.
- Eu não sei - disse Abra.
Lee abanou a cabeça.
- Mas não basta. É preciso ir mais longe. Talvez...
Calou-se.
Cal sentia o calor do álcool no estômago.
- Talvez o quê, Lee?
- Talvez tu venhas a compreender que é necessário que cada
homem de cada geração passe pela prova do fogo. Supões que um
artífice, mesmo já velho, perde a ambição de fazer uma chávena
perfeita, fina, sólida, translúcida? - (Olhou a chávena à transparência). - Todas as impurezas são queimadas e a chávena fica
pronta a receber um líquido glorioso ou a regressar à fornalha. Então, ou se amontoam as escórias, ou se obtém o que todos pretendem: a perfeição. - (Despejou a chávena e disse em voz alta):
- Ouve, Cal: achas que quem quer que presidiu à nossa criação
estará disposto a desistir de tentar aperfeiçoar-nos?
- Não consigo convencer-me do contrário. Pelo menos, por
enquanto.
Os passos pesados da enfermeira retumbaram na sala. A mulher deteve-se à porta e observou Abra que continuava de cotovelos
fincados na mesa e com o rosto entalado nas mãos.
- Têm uma garrafa para a água? Os doentes estão sempre
com sede. Não sei se percebem, ele respira pela boca.
- Está acordado? - perguntou Lee. - Aqui tem a garrafa.
- Está acordado, está. E muito bem disposto. Lavei-lhe a
cara e penteei-o. É um bom doente. Até tentou sorrir-me.
Lee levantou-se.
- Vem comigo, Cal. Venha também, Abra. É preciso que venha.
A enfermeira encheu a garrafa na torneira do lava-loiças e saiu
à frente.
Quando entraram no quarto, Adam estava sentado, muito bem
escorado pelas almofadas. As mãos brancas repousavam de ambos os lados do corpo e as veias, desde os pulsos até às falanges,
pareciam mais salientes. O rosto tinha a cor da cera e os ossos
destacavam-se com nitidez. Respirava lentamente. Os olhos azuis
reflectiam a luz.
Lee, Cal e Abra colocaram-se ao lado da cama e os olhos de
Adam percorreram-nos sucessivamente enquanto os lábios tentavam formar uma palavra de saudação.
A enfermeira disse:
- Olhem como está bonito! É o meu amorzinho, o meu torrão
de açúcar.
- Cale a boca! - disse Lee.
- Não vão cansar o doente?
- Saia deste quarto - disse Lee.
- Hei-de queixar-me ao doutor.
Lee voltou-se para ela com ar resoluto.
- Saia do quarto e feche a porta. E vá queixar-se ao doutor.
- Não estou habituada a receber ordens dum china.
Cal disse:
- Saia e feche a porta.
A enfermeira bateu com a porta de forma a demonstrar a sua
desaprovação. Adam teve um ligeiro sobressalto.
Lee disse:
- Adam.
Os grandes olhos azuis procuraram a voz e acabaram por pousar no rosto de Lee.
- Adam, não sei o que pode ouvir ou compreender. Quando
tinha a mão entorpecida e não conseguia ler, eu tentava ajudá-lo.
Hoje, está só, entregue a si mesmo. É muito possível que, por
detrás desses olhos claros, haja vida e lucidez. Quem sabe se vive
num sonho obscuro e confuso ou se só descortina a luz e o movimento, como sucede aos recém-nascidos? O seu cérebro foi atingido e talvez seja agora um novo homem. Talvez já não seja justo,
nem honesto. Ninguém o sabe, a não ser você. Adam, está a ouvir-me?
Os olhos azuis fecharam-se e tornaram a abrir-se.
Lee disse:
- Obrigado, Adam. Eu sei quanto deve custar. Mas vou pedir-lhe um esforço ainda maior. Aqui tem o seu filho Caleb, o seu único
filho. Olhe para ele, Adam.
Os olhos claros moveram-se até encontrarem Cal. A boca de
Cal formou uma palavra, mas não se ouviu nada.
A voz de Lee continuou:
- Não sei quanto tempo lhe resta de vida, Adam. Anos ou
uma hora. Mas o seu filho viverá. Há-de casar e os seus filhos serão
tudo o que restar de si.
Lee enxugou os olhos com os dedos.
- Ele agiu movido pela ira, Adam, por ter julgado que você o
rejeitava. E a sua ira matou o irmão, o seu filho.
Cal disse:
- Lee, não tens o direito...
- Tem de ser- disse Lee.-Tenho de o fazer, mesmo que o
mate. Sou obrigado a escolher - (Sorriu tristemente e repetiu a
frase de Samuel): - «Se censura houver, a mim me cabe». -
(Depois, endireitou-se e disse com vigor): - O seu filho sofre uma
culpa... alheia... alheia... O fardo é grande demais para ele. Não o
esmague com o desdém, Adam. Não o esmague. - (Na garganta
seca de Lee, sibilou o ar aspirado). - Adam, dê-lhe a sua bênção.
Não o deixe só com a sua culpa. Adam, está a ouvir-me? Dê-lhe a
sua bênção.
Nos olhos de Adam ateou-se um clarão terrível. Os olhos fecharam-se e assim se mantiveram, enquanto se formava uma ruga
entre as sobrancelhas.
Lee disse:
- Ajude-o, Adam, ajude-o. Dê-lhe essa oportunidade. Liberte-o. - É a única coisa que eleva o homem acima do animal. Liberte-o... abençoe-o!
Toda a cama pareceu estremecer. Esgotado pelo esforço, Adam
respirou mais depressa, e, depois, lentamente. A mão direita ergueu-se um pouco acima do lençol e tornou a cair.
Lee tinha o olhar esgazeado. Aproximou-se da cabeceira da
cama e limpou o rosto molhado do doente com a ponta do lençol.
Em seguida, debruçou-se para aqueles olhos fechados.
- Obrigado, Adam. Obrigado, meu amigo. És capaz de mover
os lábios? Forme o nome dele com os lábios.
As pálpebras abriram-se, deixando ver os olhos extenuados.
Os lábios afastaram-se, colaram-se, tentaram de novo. Depois,
encheu os pulmões de ar e expeliu-o por entre os dentes. A palavra murmurada pairava no ar:
- Timshel!
Fechou os olhos e adormeceu.

 

 

                                                                  John Steinbeck

 

 

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