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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LIBÉLULA NO ÂMBAR - P.3 / Diana Galbadon
A LIBÉLULA NO ÂMBAR - P.3 / Diana Galbadon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Eu sabia pouco sobre a batalha, exceto qual dos lados deveria vencer e que as baixas do exército jacobita seriam “poucas”. Da página distante e indistinta do livro de história, retirei novamente a pequena informação: “... enquanto os jacobitas saíram-se vitoriosos, com apenas trinta baixas”.

Baixas. Mortes, corrigi. Qualquer ferimento é uma baixa, em termos de enfermagem, e havia bem mais de trinta em minha cabana depois que o sol ardente traçou seu caminho até o alto do céu através da névoa marinha, por volta do meio-dia. Lentamente, os vitoriosos da batalha voltavam triunfalmente para Tranent, o som de homens ajudando seus companheiros feridos.

Estranhamente, Sua Alteza ordenara que os ingleses feridos fossem retirados primeiro do campo de batalha e cuidadosamente atendidos. “São súditos de meu Pai”, ele dissera com firmeza, enfatizando dramaticamente o P maiúsculo, “e farei com que sejam bem-tratados.” O fato de que os homens das Highlands que acabavam de vencer uma batalha para ele também fossem presumivelmente súditos de seu Pai parecia ter lhe passado despercebido no momento.

— Considerando-se o comportamento do Pai e do Filho – murmurei para Jenny Cameron ao ouvir aquilo -, o exército das Highlands deve rezar para que o Espírito Santo não resolva descer hoje.

 

 

 

 

Uma expressão de choque diante dessa observação blasfema atravessou o rosto da sra. MacPherson, mas Jenny riu.

A gritaria e os berros das comemorações gaélicas abafaram os gemidos dos feridos, trazidos em padiolas improvisadas feitas com tábuas ou mos-quetes amarrados ou, com mais freqüência ainda, amparados nos braços de amigos. Algumas das vítimas vieram, cambaleando, com seus próprios pés, bêbados e exultantes com sua própria vitalidade, a dor de seus ferimentos parecendo uma inconveniência menor diante da gloriosa prova de sua tenacidade. Apesar dos ferimentos que os traziam ali para serem tratados, o conhecimento inebriante da vitória enchia a casa com um sentimento de exultação e regozijo.

— Nossa, você viu como eles corriam que nem camundongos com um gato em seus rabos? — disse um paciente a outro, parecendo alheio à feia queimadura de pólvora que marcara seu braço esquerdo dos nós dos dedos ao ombro.

— E muitos deles já sem os rabos — respondeu o amigo, com uma risada.

A alegria não era universal; aqui e ali, pequenos grupos de melancólicos soldados podiam ser vistos atravessando as colinas, carregando a figura imóvel de um amigo, a ponta do xale de xadrez cobrindo um rosto que se tornara vazio e inexpressivo com a visão do céu.

Foi o primeiro teste das assistentes que eu escolhera e elas enfrentaram o desafio tão bem quanto os guerreiros no campo de batalha. Ou seja, elas empacavam e reclamavam e causavam problemas, mas quando a necessidade se apresentava, atiravam-se à luta com uma fúria sem paralelo.

Não que parassem de reclamar enquanto trabalhavam.

A sra. McMurdo retornou com mais uma garrafa cheia, que pendurou no lugar apropriado na parede da cabana, antes de se inclinar para vasculhar a tina que continha as garrafas de água adocicada com mel. Uma idosa mulher de um pescador de Tranent forçada a prestar serviço militar, ela era a aguadeira em seu turno; sua incumbência era ir de homem em homem, instando cada um deles a beber o máximo que pudesse tolerar de água com mel, e em seguida fazendo uma segunda rodada para recolher os resultados, equipada com duas ou três garrafas vazias.

— Se você não lhes desse tanta água para beber, eles não mijariam tanto — reclamou, não pela primeira vez.

— Eles precisam da água — expliquei pacientemente, não pela primeira vez. — Mantém a pressão sangüínea elevada, repõe uma parte dos fluidos que perderam e evita o estado de choque. Ora, olhe bem, mulher, está vendo muitos deles morrendo? — perguntei, repentinamente perdendo a paciência diante das incessantes queixas e dúvidas da sra. McMurdo; sua boca quase desdentada emprestava um tom lúgubre a uma expressão já sombria, tudo está perdido mesmo, parecia dizer; para que se dar ao trabalho?

— Muhm — ela disse. Uma vez que ela pegou a água e retornou às suas rondas sem novos sinais de protesto, tomei esse som ao menos por um assentimento temporário.

Saí para o ar livre tanto para fugir da sra. McMurdo quanto da atmosfera na cabana. Estava densa de fumaça, calor e ranço de corpos suados, e eu me senti um pouco tonta.

As ruas estavam cheias de homens, bêbados, comemorando, carregados de despojos do campo de batalha. Um grupo de homens com o tartã avermelhado dos MacGillivray puxava um canhão inglês, amarrado com cordas como uma perigosa besta selvagem. A semelhança era acentuada pelos elaborados entalhes de lobos agachados que decoravam o orifício do pavio e a boca. Uma das peças de ostentação do general Cope, suponho.

Então, reconheci uma pequena figura escura atravessada sobre a boca do canhão, os cabelos eriçados como uma escova de garrafa. Fechei os olhos num agradecimento momentâneo, depois os abri e desci a rua correndo para tirá-lo de cima do canhão.

— Patife! — eu disse, dando-lhe uma sacudidela e, em seguida, um abraço. — O que pretendia fugindo assim desse jeito? Se eu não estivesse tão ocupada, iria estapear suas orelhas até sua cabeça chacoalhar!

— Madame — ele disse, piscando estupidamente ao sol da tarde. — Madame.

Compreendi que ele não ouvira nem uma palavra do que eu dissera.

— Você está bem? — perguntei, mais delicadamente.

Um olhar de perplexidade atravessou seu rosto, sujo de lama e manchado de pólvora. Ele balançou a cabeça e uma espécie de sorriso estarrecido surgiu no meio da sujeira.

— Matei um soldado inglês, madame.

— É mesmo? — Eu não sabia ao certo se ele desejava congratulações ou precisava de consolo. Ele tinha dez anos.

Fergus franziu a testa e seu rosto contorceu-se como se tentasse com todas as forças se lembrar de alguma coisa.

— Eu acho que o matei. Ele caiu e eu enfiei a faca nele. — Olhou para mim atordoado, como se eu pudesse lhe dar a resposta.

— Venha, Fergus — eu disse. — Vamos encontrar alguma coisa para você comer e um lugar para dormir. Não pense mais nisso.

— Oui, madame. — Seguiu a meu lado, cambaleando obedientemente, logo pude ver que ele iria cair de cara no chão. Peguei-o no colo, com alguma dificuldade, e carreguei-o na direção das cabanas próximas à igreja onde eu havia sediado nosso hospital. Pretendia dar-lhe de comer primeiro, mas ele dormia profundamente quando cheguei ao local onde O'Sullivan tentava — com pouco sucesso — organizar suas carroças de víveres.

Em vez disso, deixei-o enrascado numa cama improvisada em uma das casas, onde uma mulher tomava conta de diversas crianças, enquanto suas mães cuidavam dos feridos. Pareceu-me o melhor lugar para ele.

No meio da tarde, a cabana já estava repleta com vinte ou trinta homens e o meu grupo de trabalho formado de duas mulheres ia e vinha num pé só. A casa normalmente abrigava uma família de cinco ou seis e os homens em condições de permanecer de pé acomodavam-se sobre as mantas de xadrez dos que estavam deitados. A distância, eu podia ver oficiais entrando e saindo da casa paroquial, a residência do pastor da igreja, confiscada pelo Alto Comando. Fiquei observando a porta velha e mal-conservada, em geral escancarada, mas não vi Jamie entre os que chegavam para relatar baixas e receber congratulações.

Tentei afastar uma incômoda e recorrente preocupação, dizendo a mim mesma que eu também não o vira entre os feridos. Eu não tivera tempo desde o início da manhã de visitar a pequena barraca levantada na encosta da colina, onde os mortos em batalha estavam sendo colocados em fileiras perfeitamente arrumadas, como se aguardassem uma última inspeção. Mas com certeza ele não poderia estar lá.

Certamente não, disse a mim mesma.

A porta abriu-se de par em par e Jamie entrou.

Senti meus joelhos enfraquecerem-se ao vê-lo e estendi a mão para me apoiar na chaminé de madeira da cabana. Ele estivera procurando por mim; seus olhos vasculharam o aposento antes de recaírem sobre mim e um sorriso comovente iluminou seu rosto.

Ele estava imundo, sujo de fumaça preta da pólvora, respingado de sangue e descalço, pernas e pés emplastrados de lama. Mas estava são, e de pé. Eu não estava disposta a me importar com detalhes.

Gritos de saudação de alguns dos feridos deitados no chão desviaram seus olhos de mim. Olhou para baixo, sorriu para George McClure, rindo para seu comandante apesar de uma orelha pendurada da cabeça por uma lasca de carne, depois voltou o olhar rápido para mim.

Graças a Deus, seus olhos azul-escuros diziam, e Graças a Deus, os meus próprios ecoavam de volta.

Não havia tempo para mais nada; homens feridos continuavam a chegar e cada civil capaz da vila fora instado a prestar serviços cuidando deles. O médico Archie Cameron, irmão de Lochiel, corria de uma cabana para outra, nominalmente no comando e realmente fazendo um bom trabalho aqui e ali.

Eu dera ordens para que qualquer homem dos Fraser de Lallybroch fosse levado para a cabana onde eu conduzia minha própria triagem, avaliando depressa a gravidade dos ferimentos, enviando os que ainda podiam se locomover para mais abaixo na rua, para serem tratados por Jenny Cameron, os moribundos para o quartel-general de Archie Cameron na igreja — eu o considerei competente para administrar láudano e o ambiente ao redor podia oferecer algum consolo.

Os feridos gravemente eu tratava como podia. Ossos quebrados na casa ao lado, onde dois cirurgiões do regimento Macintosh podiam aplicar talas e ataduras. Os feridos no peito eram recostados o mais confortavelmente possível contra a parede, numa posição sentada, para ajudar a respiração; não dispondo de oxigênio ou recursos cirúrgicos, havia pouco mais que eu pudesse fazer por eles. Os que possuíam ferimentos graves na cabeça eram despachados para a igreja com os que estavam obviamente morrendo; eu nada tinha a oferecer-lhes e estariam melhor nas mãos de Deus, se não nas de Archie Cameron.

Membros estraçalhados ou amputados e ferimentos abdominais eram os piores. Não havia nenhuma possibilidade de esterilização; tudo que eu podia fazer era lavar minhas próprias mãos entre os cuidados de um paciente e outro e, com uma carranca, obrigar minhas assistentes a fazerem o mesmo — ao menos enquanto estivessem diretamente sob o meu escrutínio -, e tentar assegurar que os curativos que usávamos tivessem sido todos fervidos antes da aplicação. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que precauções semelhantes estavam sendo ignoradas como perda de tempo nas outras cabanas, apesar de minhas instruções. Se eu não conseguira convencer as freiras e médicos do Hôpital des Anges da existência de germes, era improvável que conseguisse com uma mistura de donas-de-casa escocesas e cirurgiões do exército que também serviam de veterinários.

Bloqueei minha mente à idéia dos homens com ferimentos tratáveis que morreriam de infecção. Eu podia dar aos homens de Lallybroch, e a alguns outros, o benefício de mãos e ataduras limpas; não podia me preocupar com o resto. Eu aprendera um ditado nos campos de batalha da França numa guerra muito distante: você não pode salvar o mundo, mas talvez possa salvar o homem que está à sua frente, se trabalhar depressa.

Jamie ficou parado por um instante na soleira da porta, avaliando a situação, depois começou a ajudar com o trabalho pesado, remanejando pacientes, levantando caldeirões de água quente, indo buscar baldes de água limpa no poço da praça de Tranent. Livre do medo por ele e capturada no redemoinho de trabalho e atenção aos detalhes, esqueci-me dele a maior parte do tempo.

O posto de triagem de qualquer hospital de campo sempre se assemelha a um matadouro e aquele não era nenhuma exceção. O chão era de terra batida, o que não era uma superfície ruim, já que absorvia sangue e outros líquidos. Por outro lado, os lugares saturados ficavam lamacentos tornando o ato de caminhar extremamente arriscado.

O vapor elevava-se do caldeirão fervente em cima do fogo, aumentando o calor do esforço físico. Todos suavam copiosamente; os trabalhadores com o suor pegajoso do exercício, os feridos com o suor fedorento do medo e da fúria há muito exauridos. A fumaça preta de pólvora que vinha do campo de batalha lá embaixo se dissipava pelas ruas de Tranent e penetrava pelas portas abertas — uma névoa que fazia arder os olhos, ameaçando a pureza das ataduras de linho recentemente fervidas, penduradas e escorrendo a água numa armação de secar peixe colocada junto à lareira.

O fluxo de feridos vinha em ondas, inundando a cabana como resíduos trazidos pela arrebentação, provocando uma grande agitação à chegada de cada nova leva. Éramos lançados de um lado para o outro, lutando contra a força da maré, para sermos finalmente abandonados, arquejantes, a fim de lidar com os novos destroços do naufrágio, deixados para trás a cada maré vazante.

Existem calmarias, é claro, mesmo na atividade mais frenética. Elas começaram a ocorrer com mais freqüência à tarde e, quase ao pôr-do-sol, quando o fluxo de feridos decaiu para um gotejamento esporádico, começamos a nos acomodar em uma rotina de cuidar dos pacientes que permaneceram conosco. Ainda significava muito trabalho, mas finalmente havia tempo para respirar, ficar parada em um único lugar por um instante e olhar à volta.

Eu estava de pé junto à porta aberta, respirando a refrescante brisa marítima, quando Jamie voltou à cabana, carregando uma braçada de lenha. Largando-a junto à lareira, voltou para ficar ao meu lado, a mão pousada de leve em meu ombro. Gotas de suor escorriam pela borda de seu maxilar e eu estendi a mão para enxugá-las com a ponta do meu avental.

— Esteve nas outras cabanas? — perguntei.

Ele balançou a cabeça afirmativamente, a respiração começando a desacelerar. Seu rosto estava tão manchado de sujeira e sangue que eu não podia dizer ao certo, mas achei que ele parecia pálido.

— Sim. Ainda há pilhagem acontecendo no campo e muitos homens continuam desaparecidos. Mas todos os nossos próprios feridos estão aqui, nenhum em outro lugar. — Fez um sinal com a cabeça indicando o outro lado da cabana, onde os três homens de Lallybroch feridos estavam deitados ou sentados amigavelmente junto à lareira, trocando insultos bem-humorados com os outros escoceses. Os poucos ingleses feridos nesta cabana estavam reunidos junto à porta, separados dos demais. Falavam bem menos, satisfeitos em contemplar as desalentadoras perspectivas do cativeiro.

— Nenhum ferimento grave? — ele me perguntou, olhando para os três. Sacudi a cabeça.

— George McClure pode perder a orelha; não sei. Fora isso, não; acho que todos ficarão bem.

— Ótimo. — Lançou-me um sorriso cansado e limpou o rosto afogueado na ponta de seu xale. Notei que ele o enrolara descuidadamente em volta do corpo, em vez de arrumá-lo sobre um dos ombros. Provavelmente, para que não o atrapalhasse, mas devia estar quente.

Virando-se para ir embora, ele estendeu a mão para pegar a garrafa de água pendurada no gancho da porta.

— Esta aí não! — eu disse.

— Por que não? — ele perguntou, espantado. Sacudiu o frasco de boca larga, produzindo um leve som de líquido. — Está cheia.

— Eu sei que está — eu disse. — É a que estou usando como urinol.

— Ah. — Segurando a garrafa com dois dedos, estendeu a mão para pendurá-la de volta no lugar, mas eu o interrompi.

— Não, vá em frente e leve-a — sugeri. — Pode esvaziá-la lá fora e encher esta aqui no poço. — Entreguei-lhe outra garrafa cinza, de barro vidrado, idêntica à primeira.

— Tome cuidado para não misturá-las — eu disse prestativamente.

— Mmuhm — ele retrucou, lançando-me um olhar escocês para acompanhar o ruído, e depois se virou para a porta.

— Ei! — exclamei, vendo-o claramente de costas. — O que é isso?

— O quê? — perguntou, surpreso, tentando ver por cima do ombro.

— Isso! — Meus dedos traçaram a forma enlameada que eu vira acima do xale caído, impressa no linho sujo de sua camisa com a precisão de um es-têncil. — Parece uma ferradura de cavalo — eu disse, mal podendo acreditar.

— Ah, isso — ele disse, dando de ombros.

— Um cavalo pisou em você?

— Bem, não foi de propósito — ele disse, em defesa do cavalo. — Os cavalos não gostam de pisar em pessoas; acho que sentem a superfície mole demais.

— Imagino que sim — concordei, segurando-o pela manga da camisa para impedi-lo de escapar. — Fique imóvel. Como isso foi acontecer?

— Não é nada — ele protestou. — Não sinto as costelas quebradas, apenas um pouquinho machucadas.

— Ah, só um pouquinho — concordei sarcasticamente. Consegui afastar o tecido manchado de suas costas e pude ver a marca nítida e perfeita de uma ferradura, gravada na sua pele clara, logo acima da cintura. — Meu Deus, pode-se ver os cravos da ferradura. — Ele recuou involuntariamente quando passei o dedo sobre as marcas.

Acontecera durante um dos rápidos ataques dos dragões montados, ele explicou. Seus homens, a maioria acostumada apenas aos pôneis pequenos e peludos das Highlands, estavam convencidos de que os animais da cavalaria inglesa tinham sido treinados para atacá-los com coices e dentadas. Apavorados com a investida dos cavalos, mergulharam sob os cascos, talhando furiosamente pernas e barrigas com espadas, foices e machados.

— E você acha que não são?

— Claro que não, Sassenach — ele disse com impaciência. — Ele não estava tentando me atacar. O cavaleiro queria fugir, mas estava cercado dos dois lados. Ele não tinha para onde ir senão por cima de mim.

Vendo essa conclusão evidenciar-se nos olhos do cavaleiro, uma fração de segundo antes de o soldado aplicar as esporas nas laterais de sua montaria, Jamie lançou-se estendido no chão, de barriga para baixo, os braços protegendo a cabeça.

— No instante seguinte, senti o ar ser expulso dos meus pulmões — ele explicou. — Senti todo o impacto do golpe, mas não doeu. Não na hora. — Estendeu o braço para trás e esfregou a mão distraidamente sobre a marca, com um ligeiro sorriso.

— Certo — eu disse, soltando a ponta da camisa. — Já urinou depois disso?

Olhou-me espantado como se eu tivesse enlouquecido de repente.

— Você levou uma pisada de quatrocentos quilos nos rins — expliquei, com certa impaciência. Havia homens feridos esperando. — Quero saber se há sangue em sua urina.

— Ah — ele disse, a expressão do rosto se desanuviando. — Não sei.

— Bem, vamos descobrir, certo? — Eu colocara minha caixa de remédios grande fora do caminho, em um dos cantos; vasculhei seu interior e retirei um dos pequenos recipientes de vidro para exame de urina que eu adquirira no Hôpital des Anges.

— Encha-o e devolva-o para mim. — Entreguei-lhe o recipiente e virei-me para a lareira, onde um caldeirão em ebulição, cheio de panos de linho, aguardava minha atenção.

Olhei para trás e o vi ainda examinando o frasco com uma expressão ligeiramente intrigada.

— Precisa de ajuda, rapaz? — Um enorme soldado inglês olhava para cima de seu catre no assoalho, rindo para Jamie.

Um lampejo de dentes brancos surgiu na sujeira do rosto de Jamie.

— Ah, sim — disse. Inclinou-se para baixo, oferecendo o frasco para o inglês. — Tome, segure-o para mim enquanto eu tento acertar o alvo.

Uma onda de risadas percorreu os homens ao redor, distraindo-os por um momento de seu infortúnio.

Após um instante de hesitação, a mão grande do inglês cerrou-se em volta do frágil recipiente. O homem recebera uma dose de estilhaços no quadril e sua mão não estava nem um pouco firme, mas ele sorria ainda assim, apesar das gotículas de suor que umedeciam seu lábio superior.

— Aposto seis pence que não consegue — ele disse. Moveu o frasco, posicionando-o no chão a cerca de um metro dos pés descalços de Jamie. — De onde você está agora.

Jamie olhou para baixo pensativo, esfregando o queixo com uma das mãos enquanto media a distância. O homem em cujo braço eu fazia curativo parou de gemer, absorto no desenrolar do drama.

— Bem, não digo que vai ser fácil — Jamie observou, carregando propositadamente no sotaque escocês. — Mas por seis pence? Sim, bem, é uma quantia que vale o esforço, não? — Seus olhos, sempre levemente rasgados, transformaram-se em olhos de gato com seu largo sorriso.

— Dinheiro fácil, rapaz — disse o inglês, respirando com dificuldade, mas ainda assim rindo. — Para mim.

— Duas moedas de prata no garoto — gritou um dos homens do clã MacDonald do canto da chaminé.

Um soldado inglês, o casaco virado do avesso para identificar sua condição de prisioneiro, tateou pelas abas do casaco, à procura da abertura de seu bolso.

— Ah! Uma bolsa de erva contra! — gritou, brandindo triunfalmente uma pequena sacola de pano cheia de tabaco.

Apostas gritadas e comentários grosseiros começaram a cruzar o ar quando Jamie agachou-se e fez uma grande encenação, calculando a distancia até o frasco.

— Está bem — ele disse finalmente, levantando-se e empinando os ombros para trás. — Está pronto?

O inglês no chão sacudiu-se numa risadinha.

— Eu estou pronto, rapaz.

— Muito bem, então.

Um silêncio de expectativa recaiu sobre o aposento. Os homens se erguiam num dos cotovelos para observar a cena, ignorando, em sua curiosidade, tanto o desconforto quanto a inimizade.

Jamie olhou ao redor da sala, balançou a cabeça para seus homens de Lallybroch, em seguida, lentamente, ergueu a barra de seu kilt e enfiou a mão por baixo. Franziu o cenho em concentração, tateando aleatoriamente, depois deixou uma expressão de dúvida atravessar seu semblante.

— Ele estava aqui quando saí — ele disse, provocando uma estrondosa gargalhada dos homens.

Rindo com o sucesso de sua piada, levantou ainda mais o kilt, agarrou sua arma claramente visível e mirou cuidadosamente. Estreitou os olhos, curvou um pouco os joelhos e seus dedos fecharam-se com mais força.

Nada aconteceu.

— A arma falhou! — gritou um dos ingleses.

— A pólvora dele está molhada! — exclamou outro, com uma vaia.

— Não tem bala na pistola, rapaz? — caçoou seu cúmplice no chão. Jamie olhou atentamente, com ar de dúvida, para seu equipamento, provocando uma nova explosão de urros e vaias. Em seguida, seu rosto desanuviou-se.

— Ah! Meu compartimento está vazio, só isso! — Disfarçadamente estendeu o braço para a fileira de garrafas penduradas na parede, arqueou uma das sobrancelhas para mim e, quando confirmei com um sinal de cabeça, retirou uma delas e posicionou-a sobre a boca aberta. A água espir-rou pelo seu queixo e pela frente da camisa, enquanto seu pomo-de-adão subia e descia teatralmente conforme bebia.

— Ahhhh. — Abaixou a garrafa, limpou um pouco da sujeira do rosto com a manga da camisa e fez uma reverência para a platéia.

— Agora, sim — disse, levando a mão para baixo. Mas ele viu meu rosto e parou pelo meio. Ele não podia ver a porta aberta às suas costas nem o homem que estava ali de pé, mas o silêncio repentino que tomou conta do aposento deve ter lhe dito que todas as apostas estavam canceladas.

Sua Alteza o príncipe Carlos Eduardo abaixou a cabeça para passar sob a verga da porta e entrar na cabana. Em visita aos feridos, estava vestido à altura da ocasião: calças amarradas nos joelhos, em veludo cor de ameixa, com meias de seda da mesma cor para combinar; camisa de linho branco imaculado e — certamente para demonstrar solidariedade com as tropas -casaco e colete no tartã dos Cameron, com um xadrez complementar drapeado sobre um dos ombros, preso com um broche de quartzo escocês. Seus cabelos tinham acabado de ser empoados e a Ordem de Santo André reluzia em seu peito.

Ficou parado no vão da porta, nobremente inspirando todos à vista e notoriamente bloqueando a entrada dos que vinham atrás. Olhou lentamente ao redor, assimilando os vinte e cinco homens amontoados no assoalho, os ajudantes agachados sobre eles, o monte de ataduras ensangüentadas atiradas num dos cantos, a diversidade de remédios e instrumentos espalhados sobre a mesa, e eu, de pé atrás dela.

Sua Alteza, de um modo geral, não gostava muito de mulheres no exército, mas jamais esquecia as regras de cortesia. Eu era uma mulher, apesar das manchas de sangue e vômito que marcavam minha saia e o fato de que meus cabelos projetavam-se da touca em meia dúzia de direções diferentes.

— Madame Fraser — ele disse, cumprimentando-me com uma graciosa reverência.

— Alteza. — Inclinei a cabeça em resposta à cortesia, torcendo para que ele não se demorasse muito.

— Seu trabalho em nosso benefício é muito apreciado, madame — ele disse, seu leve sotaque italiano mais forte do que o normal.

— Ah, obrigada — eu disse. — Cuidado com o sangue. Está escorregadio aí. A boca delicada comprimiu-se ligeiramente quando ele contornou a poça que eu indicara. Com a porta livre, Sheridan, O'Sullivan e lorde Balmerino entraram, aumentando o congestionamento na cabana. Agora que as exigências da educação haviam sido cumpridas, Carlos agachou-se com todo o cuidado entre dois catres e colocou a mão gentilmente no ombro de um dos homens.

— Qual é o seu nome, meu bravo soldado?

— Gilbert Munro... hã, Vossa Alteza — acrescentou o sujeito, apressadamente, fascinado com a presença do príncipe.

Os dedos de unhas bem cuidadas tocaram as ataduras e talas que envolviam o que sobrara do braço de Gilbert Munro.

— Seu sacrifício foi notável, Gilbert Munro — Carlos disse com simplicidade. — Prometo-lhe que não será esquecido. — A mão alisou a face barbuda de Munro e ele enrubesceu de enlevado prazer.

Eu tinha um homem diante de mim com um ferimento no couro cabeludo que precisava ser costurado, mas pude observar Carlos com o canto dos olhos, enquanto ele circulava pela cabana. Movendo-se devagar, ia de leito em leito, sem deixar de falar com nenhum ferido, parando para perguntar o nome e a terra natal de cada homem, oferecer agradecimentos e afetuosidade, congratulações e palavras de conforto.

Os homens ficaram mudos de perplexidade, tanto os ingleses quanto os escoceses, mal conseguindo responder a Sua Alteza com murmúrios inaudíveis. Finalmente, ele se pôs de pé e alongou-se, com sonoros estali-dos das juntas. Uma ponta de seu xale de xadrez arrastara-se na lama, mas ele não pareceu notar.

— Trago-lhes as bênçãos e os agradecimentos de meu pai — disse. — Suas façanhas de hoje nunca serão esquecidas.

Os homens no chão não estavam no estado de espírito certo para vivas e aclamações, mas houve sorrisos e um murmúrio geral de apreço.

Virando-se para ir embora, Carlos avistou Jamie, de pé num canto para não ter os pés descalços pisoteados pelas botas de Sheridan. O rosto de Sua Alteza iluminou-se de contentamento.

— Mon cher! Eu não o vi hoje. Receei que algo tivesse lhe acontecido — Um olhar de reprovação atravessou o rosto bonito e corado. — Por que não foi jantar na casa paroquial com os outros oficiais?

Jamie sorriu e inclinou-se respeitosamente.

— Meus homens estão aqui, Alteza.

As sobrancelhas do príncipe ergueram-se diante dessas palavras e ele abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas lorde Balmerino deu um passo à frente e sussurrou em seu ouvido. A expressão de Carlos mudou para um ar de preocupação.

— Mas o que isso é que estou ouvindo? — disse a Jamie, perdendo controle da sintaxe, como lhe acontecia em momentos de emoção. — Sua Excelência está me dizendo que você mesmo sofreu um ferimento.

Jamie pareceu ligeiramente desconcertado. Lançou um rápido olhar em minha direção, para ver se eu havia escutado, e vendo que eu sem dúvida ouvira, virou os olhos rapidamente de volta para o príncipe.

— Não foi nada, Alteza. Só um arranhão.

— Mostre-me. — Foi dito de uma maneira simples, mas indubitavelmente tratava-se de uma ordem. O xale manchado caiu sem mais nenhum protesto.

As pregas do tartã escuro estavam quase negras no lado de dentro. A camisa que usava por baixo estava manchada de vermelho da axila ao quadril, com placas marrons e rígidas onde o sangue começara a secar.

Deixando aos próprios cuidados por um instante o ferimento de cabeça que eu estava tratando, dei um passo à frente e abri a camisa, afastando-a delicadamente do lado machucado. Apesar da quantidade de sangue, vi que não se tratava de um ferimento grave; ele estava firme como uma rocha e o sangue já não escorria.

Era um corte de sabre, enviesado, sobre as costelas. Um ângulo de sorte; se tivesse entrado de frente, teria penetrado fundo nos músculos intercostais entre as costelas. Do jeito que fora, uma aba de vinte centímetros de pele abria-se, solta, o sangue vermelho começando a exsudar sob ela outra vez, com a liberação da pressão. Seria necessário um bom número de pontos para consertar, mas fora o constante perigo de infecção, o ferimento não era de fôrma alguma grave.

Virando-me para relatar isso a Sua Alteza, parei, estancada pela estranha expressão em seu rosto. Por uma fração de segundo, pensei que se tratava de “tremores de recruta”, o choque de uma pessoa não acostumada à visão de sangue e ferimentos. No posto de campanha, muitas enfermeiras novatas removiam um curativo feito no campo de batalha, davam uma olhada e saíam que nem uma flecha, para vomitar silenciosamente lá fora, antes de retornar para cuidar do paciente. Ferimentos de guerra têm um aspecto particularmente desagradável.

Mas não podia ser isso. Embora não fosse de modo algum um guerreiro inato, ainda assim Carlos fora ferido, como Jamie, aos catorze anos de idade, em sua primeira batalha em Gaeta. Não, concluí, ao mesmo tempo em que a expressão momentânea de choque desaparecia dos suaves olhos castanhos. Ele não ficaria estarrecido com sangue ou ferimentos.

Este não era um camponês ou um pastor de ovelhas que ele tinha diante de si. Não era um súdito anônimo, cujo dever era lutar pela causa Stuart. Aquele era um amigo. E achei que talvez o ferimento de Jamie o tivesse feito se dar conta disso repentinamente; de que o sangue era derramado por suas ordens, que homens eram feridos por sua causa — não era de admirar que o conhecimento desse fato o tivesse atingido com tamanha profundidade, como um corte de espada.

Ele olhou para o lado do corpo de Jamie por um longo instante, depois ergueu o rosto e fitou-o nos olhos. Segurou com força a mão de Jamie e inclinou sua própria cabeça.

— Obrigado — disse a meia-voz.

E apenas por aquele instante, achei que talvez ele pudesse ter sido um rei, afinal.

Por ordem de Sua Alteza, uma tenda fora erguida na pequena encosta atrás da igreja, como último abrigo dos mortos em batalha. Tendo recebido prioridade no tratamento, os soldados ingleses não tinham nenhuma ali; os homens jaziam em fileiras, lenços cobrindo os rostos, os escoceses das Highlands distinguidos apenas pelos seus trajes, todos aguardando sepultamento no dia seguinte. MacDonald de Keppoch trouxera um padre francês com ele; o sujeito, os ombros arriados de cansaço, a estola roxa usada de forma incongruente sobre um xale escocês manchado, movia-se devagar pela tenda, parando para rezar ao pé de cada figura deitada.

“O Senhor, conceda-lhe o descanso eterno e permita que a luz brilhe eternamente sobre ele”, dizia. Fazia o sinal-da-cruz e passava ao cadáver seguinte.

Eu vira a tenda antes e, com o coração na boca, contara os corpos dos escoceses mortos. Vinte e dois. Agora, quando entrei na tenda, vi que o alto preço pago em vidas subira para vinte e seis.

O vigésimo sétimo jazia na igreja próxima, no último quilômetro de sua jornada. Alexander Kincaid Fraser, morrendo aos poucos dos ferimentos que destroçaram sua barriga e seu peito, com uma lenta infiltração interna que não podia ser estancada. Eu o vira quando foi trazido, lívido de uma tarde inteira sangrando lentamente para a morte, sozinho no campo entre os corpos de seus inimigos.

Ele tentou sorrir para mim e eu molhei seus lábios ressecados e untei-os com sebo. Dar-lhe algo para beber significava matá-lo instantaneamente, já que o líquido correria por seus intestinos perfurados, causando um choque fatal. Hesitei, vendo a gravidade de seus ferimentos e pensando que uma morte rápida talvez fosse melhor... mas logo parei. Compreendi que ele iria querer ver um padre e fazer sua confissão, ao menos. Assim, despachei-o para a igreja, onde o padre Benin cuidava dos moribundos como eu cuidava dos vivos.

Jamie fizera visitas breves à igreja a cada meia hora mais ou menos, mas Kincaid resistiu por um tempo surpreendentemente longo, agarrando-se à vida apesar da deterioração permanente de seu estado. No entanto, Jamie não voltara de sua última visita. Compreendi que a luta agora estava finalmente terminando e fui ver se podia ajudar.

O espaço sob as janelas que Kincaid ocupara estava vazio, exceto por uma mancha grande e escura. Ele também não estava na tenda dos mortos nem Jamie podia ser visto em nenhum lugar.

Encontrei-os finalmente um pouco acima da colina atrás da igreja. Jamie estava sentado numa rocha, a figura de Alexander Kincaid deitada em seus braços, a cabeça de cabelos cacheados pousada em seu ombro, as pernas longas e cabeludas pendendo, lânguidas, para o lado. Ambos estavam imóveis como a rocha sobre a qual estavam sentados. Imóveis como a morte, embora somente um deles estivesse morto.

Toquei a mão branca e frouxa, para ter certeza, e pousei a mão na espessa cabeleira castanha, parecendo ainda incoerentemente viva. Um homem não devia morrer virgem, mas este morrera.

— Ele se foi, Jamie — murmurei.

Ele não se moveu por um instante, mas depois balançou a cabeça, abrindo os olhos como se relutasse em encarar a realidade da noite.

— Eu sei. Morreu pouco depois que eu o trouxe para fora, mas eu não queria deixar que ele se fosse.

Segurei-o pelos ombros e o estendemos delicadamente no chão. Havia capim ali e o vento da noite agitava as lâminas ao seu redor, roçando-as de leve em seu rosto, um toque afetuoso da terra.

— Você não queria que ele morresse sob um teto — eu disse, compreendendo. O céu nos cobria com a sua vastidão, aconchegante com as suas nuvens, mas infinito em sua promessa de refúgio.

Ele assentiu devagar, depois se ajoelhou junto ao corpo e beijou a testa ampla e lívida.

— Eu gostaria que alguém fizesse o mesmo por mim — ele disse num sussurro. Dobrou uma ponta do xale escocês sobre os cachos castanhos e murmurou alguma coisa em gaélico que eu não compreendi.

Um posto médico de campanha não é um lugar para lágrimas; há trabalho demais a ser feito. Eu não chorara o dia inteiro, apesar de tudo que vira, mas naquele momento cedi, ainda que apenas por alguns instantes. Reclinei o rosto sobre o ombro de Jamie em busca de sua força e ele tocou-me de leve, para me consolar. Quando ergui os olhos, enxugando as lágrimas do rosto, vi-o ainda olhando fixamente, os olhos secos, para a silenciosa figura no chão. Sentindo que eu o observava, olhou para mim.

— Chorei por ele enquanto ainda estava vivo para saber, Sassenach -disse serenamente. — Bem, como vão as coisas na casa?

Funguei, assoei o nariz e tomei seu braço quando começamos a voltar para a cabana.

— Preciso de sua ajuda com um deles.

— Qual?

— Hamish MacBeth. O rosto de Jamie, tenso por tantas horas, relaxou um pouco sob as manchas de sujeira.

— Ele voltou, então? Fico contente. Mas como ele está? Revirei os olhos para cima.

— Você vai ver.

MacBeth era um dos favoritos de Jamie. Um homem forte e pesado, com uma barba marrom encaracolada e modos reticentes, estava sempre ao alcance da voz de Jamie, sempre pronto quando algum serviço era necessário durante a jornada. De poucas palavras, possuía um sorriso tímido e lento que se abria em sua barba como uma flor que desabrocha à noite, rara, porém radiante.

Eu sabia que a ausência do grandalhão após a batalha preocupara Jamie, mesmo entre os outros acontecimentos e tensões. Conforme o dia progredia e os desgarrados voltavam um a um, eu ficara atenta à volta de MacBeth. Mas o pôr-do-sol chegou e as fogueiras irromperam pelo acampamento militar, sem que se tivesse notícia de MacBeth, e eu comecei a temer que o encontrássemos entre os mortos também.

Mas ele entrara no posto de feridos há meia hora, movendo-se lentamente, mas com suas próprias pernas. Uma das pernas estava manchada de sangue até o tornozelo e ele caminhava de um modo saltitante, as pernas meio abertas, mas de maneira alguma deixaria uma “dona” colocar as mãos nele para ver qual era o problema.

O enorme sujeito estava deitado sobre um cobertor perto de um lampião, as mãos entrelaçadas sobre o ventre volumoso, os olhos pacientemente fixos nas vigas do teto. Girou os olhos quando Jamie ajoelhou-se a seu lado, mas não fez nenhum outro movimento. Deixei-me ficar discretamente ao fundo, oculta pelas costas largas de Jamie.

— Muito bem, então, MacBeth — Jamie disse, colocando a mão no pulso grosso como forma de cumprimento. — Como vai indo, amigo?

— Vou indo, senhor — respondeu o gigante com sua voz retumbante. -Vou indo. É que é um pouco... — Hesitou.

— Bem, então, vamos dar uma olhada. — MacBeth não fez nenhum protesto quando Jamie dobrou para trás a barra do kilt. Espreitando através de uma fresta entre o braço e o corpo de Jamie, pude ver a causa das hesitações de MacBeth.

Uma espada ou lança atingira-o bem acima da forquilha entre as virilhas e abrira caminho para baixo. O escroto foi rasgado de um lado e um dos testículos estava parcialmente pendurado para fora, sua superfície lisa e rosada brilhante como um ovo descascado.

Jamie e os dois ou três homens que viram o ferimento empalideceram e eu vi um dos ajudantes tocar-se num movimento reflexo, como se quisesse se assegurar que suas próprias partes estavam ilesas.

Apesar da terrível aparência do ferimento, o próprio testículo não parecia danificado e não havia sangramento excessivo. Toquei Jamie no ombro e sacudi a cabeça, querendo dizer que o ferimento não era grave, independentemente de qual fosse o efeito na psique masculina. Captando meu gesto com o canto do olho, Jamie deu uns tapinhas no joelho de MacBeth.

— Ah, não é tão grave, MacBeth. Não se preocupe, você ainda vai ser pai. O grandalhão estivera olhando para baixo apreensivamente, mas diante dessas palavras transferiu o olhar para seu comandante.

— Bem, isso não me preocupa, senhor, já que eu tenho seis filhos. É que eu não sei o que minha mulher iria dizer se eu... — MacBeth ficou roxo quando os homens à sua volta começaram a rir e caçoar.

Lançando um olhar para trás, para mim, em busca de confirmação, Jamie reprimiu seu próprio riso e disse com firmeza:

— Isso também vai ficar bem, MacBeth.

— Obrigado, senhor — o sujeito respirou aliviado, com absoluta confiança na afirmação de seu comandante.

— Ainda assim — Jamie continuou rapidamente -, vai ser preciso costurar, amigo. Agora, você é quem decide.

Ele enfiou a mão no estojo aberto para pegar uma das agulhas de sutura feitas à mão. Horrorizada com os objetos rústicos que barbeiros-cirurgiões geralmente usavam para costurar seus clientes, eu reunira três dúzias para mim, selecionando-as entre as mais finas agulhas de bordar que consegui obter e esquentei-as em fórceps sobre a chama de um lampião a álcool, curvando-as delicadamente até conseguir a curva em meia-lua adequada, necessária para costurar vários tecidos. Da mesma forma, eu fizera meu próprio categute — fios para sutura feitos de tripas de animais. Uma tarefa suja e desagradável, mas ao menos eu tinha certeza da esterilidade de meus materiais.

A minúscula agulha de sutura parecia ridícula, segura entre os enormes dedos polegar e indicador de Jamie. A ilusão de competência médica não era ajudada pelas vesgas tentativas de Jamie de passar o fio na agulha.

— Ou eu mesmo faço isso — ele disse, a ponta da língua ligeiramente para fora em sinal de concentração — ou — interrompeu-se ao deixar cair a agulha e começar a tatear as pregas do xale de MacBeth à procura do instrumento. — Ou — disse, retomando a frase, enquanto exibia a agulha triun-falmente diante dos olhos apreensivos de seu paciente — minha mulher pode fazer isso para você. — Uma ligeira sacudida da cabeça convocou-me para entrar em cena. Fiz o melhor possível para exibir uma expressão prática e trivial, pegando a agulha da mão incompetente de Jamie e passando o fio por ela perfeitamente com um único gesto.

Os grandes olhos castanhos de MacBeth viajaram lentamente entre as enormes patas de Jamie — que ele conseguiu fazer parecer o mais desajeitadas possível colocando a mão direita deformada em cima da esquerda — e as minhas mãos pequenas e ágeis. Por fim, ele deitou-se com um suspiro de desalento e resmungou seu consentimento em deixar uma mulher colocar as mãos em suas partes privadas.

— Não se preocupe, meu amigo — Jamie disse, dando uns tapinhas camaradas em seu ombro. — Afinal, ela tem manipulado os meus já há algum tempo e não me emasculou até agora. — Em meio à risada dos ajudantes e pacientes próximos, Jamie começou a se levantar, mas eu o impedi empurrando um pequeno frasco em suas mãos.

— O que é isso? — perguntou.

— Álcool e água — eu disse. — Solução desinfetante. Se não quisermos que ele tenha febre, inflamação ou algo pior, o ferimento terá que ser lavado.

MacBeth obviamente andara um bom pedaço desde o local onde fora ferido e havia manchas de terra e de sangue próximas ao ferimento. Álcool de cereais era um desinfetante muito forte, mesmo suavizado com cinqüenta por cento de água destilada esterilizada como eu usava. Ainda assim, era o único recurso mais eficaz contra infecção e eu era inflexível quanto à necessidade de sua utilização, apesar das queixas dos ajudantes e dos gritos angustiados dos pacientes submetidos a ele.

Jamie olhou do frasco de álcool para o ferimento aberto e estremeceu ligeiramente. Ele tivera o seu próprio quinhão quando costurei o corte na lateral do seu corpo naquela manhã.

— Bem, MacBeth, melhor você do que eu — ele disse e, colocando o joelho firmemente sobre a região da barriga do escocês, aspergiu o conteúdo do frasco sobre os tecidos expostos.

Um rugido apavorante sacudiu as paredes e MacBeth contorceu-se de dor como uma cobra cortada. Quando o urro enfim se acalmou, seu rosto estava esverdeado e ele não fez absolutamente nenhuma objeção quando comecei o trabalho rotineiro, ainda que doloroso, de costurar o escroto. A maioria dos pacientes, mesmo aqueles terrivelmente feridos, comportava-se estoicamente em relação ao tratamento primitivo a que os submetíamos e MacBeth não era nenhuma exceção. Permaneceu quieto, terrivelmente constrangido, os olhos fixos na chama do lampião, e não moveu nenhum músculo enquanto eu fazia a sutura. Apenas as cores alternantes em seu rosto, de verde ao branco ao vermelho e de volta ao verde outra vez, traíam suas emoções.

Finalmente, entretanto, ele ficou roxo. Quando terminei a costura, o pênis frouxo começou a enrijecer-se levemente, roçado de leve pelo movimento de minha mão. Completamente abalado por essa comprovação de sua fé na palavra de Jamie, MacBeth puxou o kilt para baixo assim que terminei, pôs-se de pé num salto e saiu cambaleando para a escuridão, deixando-me com um riso reprimido, a cabeça quase enfiada no meu estojo.

Encontrei um canto onde um baú de suprimentos médicos estava estocado e me apoiei na parede. Uma onda de dor subiu pelas minhas pernas; a repentina liberação da tensão e a reação dos nervos. Tirei os sapatos e recostei-me contra a parede, deliciando-me com os pequenos espasmos que se lançavam pela espinha dorsal e pelo pescoço, à medida que o esforço de ficar em pé era aliviado.

Cada centímetro quadrado de pele parece repentinamente sensível em tal estado de fadiga; quando a necessidade de forçar o corpo a trabalhar é subitamente suspensa, o ímpeto remanescente parece forçar o sangue ao perímetro do corpo, como se o sistema nervoso relutasse em acreditar no que os músculos já haviam prazerosamente aceitado; você não precisa se mover agora.

O ar na cabana estava quente e barulhento com a respiração de seus ocupantes; não a algazarra saudável de homens roncando, mas as arfadas superficiais de homens para quem respirar era doloroso e os gemidos daqueles que encontraram uma amnésia temporária que os liberta da obrigação máscula de sofrer em silêncio.

Os homens nesta cabana eram os que estavam gravemente feridos, mas não corriam perigo imediato de morte. Eu sabia, entretanto, que a morte caminha à noite pelos corredores de uma enfermaria, procurando aqueles cujas defesas estão baixas, que possam inconscientemente vagar e cruzar seu caminho por causa da solidão e do medo. Alguns dos feridos possuíam esposas que dormiam a seu lado, para confortá-los na escuridão, mas não havia nenhuma nesta cabana.

Eles tinham a mim. Se pouco eu podia fazer para curá-los ou reduzir seu sofrimento, podia ao menos deixar que soubessem que não morriam sozinhos; que havia alguém ali de guarda, entre eles e a escuridão. Além de qualquer coisa que eu pudesse fazer, era meu dever apenas estar ali.

Levantei-me e percorri mais uma vez, lentamente, os espaços estreitos entre os catres no chão, agachando-me junto a cada um dos homens, murmurando e tocando, ajeitando um cobertor, alisando cabelos desgrenhados, massageando os nós que se formam nos músculos contraídos. Um gole de água aqui, uma troca de curativo ali, a percepção de uma atitude de tenso constrangimento que significava que um urinol era necessário e a oferta simples e prática do utensílio que permitia ao homem aliviar-se, a garrafa de barro vidrado tornando-se pesada e aquecida em minhas mãos.

Saí para esvaziar uma dessas e parei por um instante, absorvendo a noite úmida e fria, deixando o chuvisco remover a sensação do toque de peles ásperas e cabeludas e o cheiro de homens suados.

— Você não dormiu muito, Sassenach. — A suave voz escocesa veio da direção da estrada. As outras cabanas que serviam de hospital estavam naquela direção; os alojamentos dos oficiais do outro lado, na casa paroquial.

— Você também não dormiu muito — respondi secamente. Há quanto tempo ele estaria sem dormir, perguntei a mim mesma.

— Dormi no campo ontem à noite, com os homens.

— Ah, é mesmo? Um sono muito reparador — eu disse, com uma ironia que o fez rir. Seis horas de sono em um campo úmido, seguido de uma batalha na qual ele fora pisado por um cavalo, ferido por uma espada e Deus sabe o que mais. Em seguida, ele reunira seus homens, recolhera os feridos, cuidara dos machucados, chorara os mortos e servira seu príncipe. E durante tudo isso eu não o vira parar para comer, beber ou descansar.

Não me dei ao trabalho de censurá-lo. Nem valia a pena mencionar que ele devia estar entre os pacientes no chão. Era sua função estar ali, de pé, também.

— Há outras mulheres, Sassenach — ele disse ternamente. — Quer que eu peça a Archie Cameron para mandar uma delas para cá?

Era uma tentação, mas uma tentação que eu recusei antes de poder considerá-la melhor, por medo de que se eu reconhecesse meu cansaço não conseguiria me levantar outra vez.

Alonguei-me, as mãos atrás dos quadris.

— Não — eu disse. — Vou agüentar até o amanhecer. Então, outra pessoa poderá me render por algum tempo. — De certo modo, eu achava que tinha que ajudar os pacientes a atravessar a noite; de manhã eles estariam a salvo.

Ele também não me censurou; apenas colocou a mão em meu ombro e puxou-me para ele por um instante. Compartilhamos o pouco da força que nos restava, em silêncio.

— Vou ficar com você, então — ele disse, afastando-se finalmente. — Eu mesmo não vou conseguir dormir antes do dia clarear.

— E os outros homens de Lallybroch?

Ele fez um sinal com a cabeça em direção aos campos próximos à cidade onde o exército estava acampado.

— Murtagh está no comando.

— Ah, bem. Não há com que se preocupar — eu disse e vi seu sorriso à luz da janela. Havia um banco do lado de fora da cabana, onde a dona da casa sentava-se nos dias de sol para limpar peixe ou consertar roupas. Puxei-o para que se sentasse a meu lado e ele deixou-se arriar contra a parede da cabana com um suspiro. Seu óbvio estado de exaustão me fez lembrar de Fergus e da atordoada expressão de perplexidade do menino depois da batalha.

Estendi o braço para acariciar a nuca de Jamie e ele virou a cabeça cegamente em minha direção, descansando a fronte contra a minha.

— Como foi ontem, Jamie? — perguntei num sussurro, os dedos massa-geando lentamente e com força os músculos tensos de seu pescoço e ombros. — Como foi? Conte-me.

Fez-se um breve silêncio, depois ele suspirou e começou a falar, com hesitação no começo, em seguida mais rápido, como se quisesse desabafar.

— Não tínhamos fogueira, porque lorde George achava que devíamos deixar a serra antes da aurora e não queria que nenhum vestígio de movimentação pudesse ser visto lá de baixo. Ficamos sentados no escuro por algum tempo. Não podíamos nem falar, pois o som seria levado à planície. Assim, ficamos aguardando.

— Então, senti alguma coisa agarrar minha coxa no escuro e quase caí duro. — Enfiou o dedo na boca e esfregou-o cautelosamente. — Quase arranquei a língua com uma mordida. — Senti o movimento de seus músculos quando sorriu, embora seu rosto estivesse escondido.

— Fergus?

O fantasma de uma risada flutuou pela escuridão.

— Sim, Fergus. Arrastou-se pela grama sobre a barriga, o diabinho, e eu achei que ele fosse uma cobra. Me contou, sussurrando, sobre Anderson; eu saí rastejando atrás dele e levei Anderson para ver lorde George.

Sua voz estava arrastada e enleada, murmurando sob o feitiço do toque de minhas mãos.

— Então, veio a ordem de que iríamos partir, seguindo a trilha de Anderson. O exército inteiro se levantou e pôs-se a caminho na escuridão.

A noite estava límpida e sem lua, livre da costumeira camada de nuvens que captava a luz das estrelas e enviava uma luz difusa em direção à terra. Conforme o exército das Highlands seguia em silêncio pelo caminho estreito atrás de Richard Anderson, cada homem não conseguia ver nada além dos calcanhares em movimento do homem à sua frente, cada passo alargando a trilha pelo capim molhado.

O exército locomovia-se quase sem ruído. As ordens eram passadas em murmúrios de um homem para outro, não gritadas. Espadas de lâmina larga e machados estavam ocultos nas dobras dos xales, frascos de pólvora enfiados dentro das camisas, junto a corações acelerados.

Tão logo chegaram a solo firme, ainda em completo silêncio, os homens das Highlands sentaram-se, arranjaram-se o mais confortavelmente possível sem fogueira, comeram o que tinham de alimentos frios e prepararam-se para dormir, enrolados em seus xales, à vista das fogueiras do acampamento do inimigo.

— Podíamos ouvi-los conversar — Jamie disse. Seus olhos estavam cerrados, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça e recostado contra a parede da cabana. — Estranho, ouvir homens rindo de uma piada ou pedindo uma pitada de sal ou um gole do odre de vinho... e saber que dentro de poucas horas você podia matá-los... ou eles matarem você. Você não consegue parar de pensar, sabe; como será o rosto por trás daquela voz? Você reconhecerá o sujeito se encontrá-lo pela manhã?

Ainda assim, os temores da expectativa da batalha não podiam sobrepujar o absoluto cansaço, e “os Fraser negros” — assim chamados por causa dos vestígios de carvão que ainda adornavam seus rostos — e seu chefe já estavam acordados há mais de trinta e seis horas a essa altura. Ele pegara um feixe de junco para servir de travesseiro, enrolou bem o xale em volta dos ombros e deitou-se no capim ondulante ao lado de seus homens.

Quando servia no exército francês, anos antes, um dos sargentos explicara aos mercenários mais jovens o truque de adormecer na noite anterior à batalha.

— Ajeite-se confortavelmente, examine sua consciência e faça um bom ato de contrição. O padre Hugo diz que, em tempos de guerra, mesmo que não haja nenhum sacerdote para absolvê-lo, seus pecados podem ser perdoados dessa forma. Como não pode cometer pecados enquanto dorme, você acordará em estado de graça, pronto para cair sobre o inimigo. E sem nada mais a esperar senão a vitória ou o céu, como pode ter medo?

Embora particularmente notando algumas falhas nesse argumento Jamie ainda assim o considerava um bom conselho; libertar a consciência tranqüilizava a alma e a reconfortante repetição de uma prece distraía a mente de fantasias atemorizantes e a embalava em direção ao sono.

Ele ergueu os olhos para a abóbada negra do céu e obrigou a tensão dos músculos dos ombros e do pescoço a relaxar no abraço duro do solo. As estrelas estavam fracas e indistintas nesta noite, não se comparando ao clarão das fogueiras inglesas próximas.

Sua mente voltou-se para os homens à sua volta, parando por um instante em cada um deles, um por um. A mancha do pecado era leve em sua consciência, em comparação à preocupação com seus homens. Ross, McMurdo, Kincaid, McClure... parou para agradecer por ao menos sua mulher e o menino Fergus estarem a salvo. Sua mente demorou-se em sua mulher, desejando comprazer-se na lembrança de seu sorriso confiante, no calor sólido, maravilhoso, do seu corpo em seus braços, pressionado com força contra ele quando lhe dera um beijo de despedida naquela tarde. Apesar de seu próprio cansaço e da presença de lorde George à sua espera lá fora, teve vontade de derrubá-la no colchão ali mesmo e possuí-la rápida e imediatamente, sem se despirem. Estranho como a iminência da luta deixava-o tão excitado, sempre. Mesmo agora...

Mas ele ainda não terminara seu rol mental e sentia as pálpebras se fechando, conforme o cansaço procurava arrastá-lo para as profundezas do sono. Descartou o leve aperto dos testículos que sentiu ao pensar nela e retomou sua lista de chamada, um pastor traiçoeiramente levado a dormir pela contagem dos carneiros que conduzia ao matadouro.

Mas não seria um massacre, tentou assegurar a si mesmo. Poucas baixas no lado jacobita. Trinta homens mortos. De um contingente de dois mil, apenas uma débil possibilidade de algum dos homens de Lallybroch estar entre eles, certo? Se ela estivesse certa.

Estremeceu ligeiramente sob o xale e esforçou-se para afastar a dúvida momentânea que revirava suas entranhas. Se. Meu Deus, se. Ainda tinha dificuldade de acreditar nisso, embora a tivesse visto junto àquela pedra maldita. Vira o rosto dissolvendo-se em terror ao redor dos olhos dourados, arregalados de pânico, os próprios contornos de seu corpo esvaindo-se conforme ele, também em pânico, agarrara-se a ela, puxando-a de volta, sentindo pouco mais do que o frágil osso duplo de seu braço sob sua mão. Talvez devesse ter deixado que ela se fosse, de volta à sua própria época. Não, talvez, não. Tinha certeza de que deveria ter deixado. Mas ele a puxara de volta. Dera-lhe a escolha, mas mantivera-a com ele pela pura força de querê-la a seu lado. E, assim, ela ficara. E dera a ele a escolha -acreditar nela, ou não. Agir ou fugir. E a escolha estava feita agora e nenhuma força terrena poderia impedir a chegada do alvorecer.

Seu coração batia com força, a pulsação ecoando nos pulsos, nas virilhas e na boca do estômago. Procurou acalmá-lo, retomando sua contagem, um nome para cada batida do coração. Willie McNab, Bobby McNab, Geordie McNab... Graças a Deus, o jovem Rabbie McNab estava a salvo, em casa... Will Fraser, Ewan Fraser, Geoffrey McClure... McClure... Ele se lembrara de George e Sorley? Remexeu-se ligeiramente, com um débil sorriso, apalpando o local dolorido ao longo de suas costelas. Murtagh. Sim, Murtagh, botina velha e boa... ao menos com você minha mente não precisa se preocupar. William Murray, Rufus Murray, Geordie, Wallace, Simon...

Finalmente, cerrara os olhos, encomendara todos eles aos cuidados do céu escuro acima e perdera-se no murmúrio das palavras que ainda vieram à sua lembrança muito naturalmente em francês — “Mon Dieu, je regrette...

Fiz minhas rondas na cabana, trocando um curativo encharcado de sangue da perna de um dos homens. O sangramento já devia ter estancado, mas não o fizera. Má nutrição e ossos fracos. Se o sangramento não tivesse parado antes de o galo cantar, eu teria que mandar chamar Archie Cameron ou um dos cirurgiões-veterinários para amputar a perna e cau-terizar o toco.

Detestava a idéia. A vida já era suficientemente difícil para um homem com todos os seus membros em bom estado. Esperando o melhor, aspergi o novo curativo com uma pequena quantidade de sulfato de alumínio e enxofre. Se não adiantasse, mal não faria. O provável é que doesse, mas quanto a isso nada poderia ser feito.

— Vai arder um pouco — murmurei para o sujeito, enquanto envolvia sua perna nas bandagens.

— Não se preocupe, madame — ele sussurrou. Sorriu para mim, apesar do suor que corria pelo seu rosto, brilhante à luz da minha vela. — Eu agüento.

— Ótimo. — Dei um tapinha em seu ombro, alisei seus cabelos para trás e lhe dei um gole de água. — Darei outra olhada daqui a uma hora, se você conseguir agüentar o curativo tanto tempo.

— Eu agüento — repetiu.

Lá fora outra vez, achei que Jamie tivesse adormecido. Seu rosto descansava nos braços cruzados sobre os joelhos. Mas ele ergueu o rosto ao ouvir meus passos e segurou minha mão quando me sentei a seu lado.

— Ouvi o canhão ao amanhecer — eu disse, pensando no homem lá dentro, a perna destruída por um tiro de canhão. — Temi por vocês.

Ele riu baixinho.

— Eu também, Sassenach. Todos nós.

Silenciosos como tufos de neblina, os escoceses avançaram pelo mato, um pé de cada vez. Não havia nenhum indício de que a escuridão estivesse diminuindo, mas a sensação física da noite se modificara. O vento mudara de direção, era isso; soprava do mar para a terra fria e o débil rugido de ondas em areias distantes podia ser ouvido.

Apesar de sua impressão de escuridão continuada, a luz se aproximava. Viu o homem a seus pés bem a tempo; mais um passo e ele teria caído de cabeça sobre o corpo curvado do homem.

O coração batendo forte com o choque da descoberta, agachou-se depressa para poder ver melhor. Um “casaco vermelho”, e dormindo, nem morto nem ferido. Estreitou os olhos com força para espreitar a escuridão ao redor, aguçando os ouvidos para ouvir a respiração de outros homens adormecidos. Nada além de ruídos do mar, do mato e do vento, o leve sussurro de pés furtivos quase amortecido pelos rugidos abafados da noite.

Olhou apressadamente para trás, umedecendo os lábios ressecados apesar do ar úmido. Havia homens bem perto atrás dele; não ousou hesitar por muito tempo. O próximo homem podia não ser tão cuidadoso em ver onde pisava e não podiam correr o risco de nenhuma gritaria.

Colocou a mão na adaga, mas hesitou. Guerra era guerra, mas ia contra seus princípios assassinar um inimigo dormindo. O homem parecia estar sozinho, a alguma distância de seus companheiros. Não era uma sentinela; nem mesmo o mais desleixado dos guardas dormiria, sabendo que o exército das Highlands estava acampado nas colinas acima. Talvez o soldado tenha se levantado para ir aliviar-se e se afastara uma boa distância de seus camaradas para isso. Depois, perdendo-se no escuro, deitou-se para dormir ali mesmo onde estava até o dia clarear.

O metal do mosquete estava escorregadio com o suor da palma de sua mão. Esfregou a mão no xale, depois se levantou, segurou o mosquete pelo cano e fez a coronha girar num arco maligno para baixo. O choque do impacto deu um tranco em suas omoplatas; uma cabeça imóvel é sólida. Os braços do sujeito saltaram para os lados com a força da colisão, mas fora uma explosão de ar dos pulmões, ele não fez nenhum barulho e agora jazia, esparramado de barriga para baixo, flácido como um trapo.

Com as palmas das mãos formigando, ele inclinou-se outra vez e tateou embaixo do maxilar do inglês à procura de uma pulsação. Encontrou-a e, tranqüilizado, levantou-se. Ouviu-se um abafado grito de surpresa vindo de trás e ele girou nos calcanhares, o mosquete já no ombro, o cano quase tocando o rosto de um dos homens do clã MacDonald, de Keppoch.

— Mon Dieu! — o homem murmurou, benzendo-se, e Jamie cerrou os dentes de irritação. Era o maldito padre francês de Keppoch, vestido, por sugestão de O'Sullivan, com xale escocês e camisa, como os combatentes.

— O homem insistiu que era seu dever levar os sacramentos aos feridos e mortos no campo de batalha — Jamie explicou-me, prendendo seu xale manchado mais alto no ombro. A noite estava ficando ainda mais fria. — A idéia de O'Sullivan era de que se os ingleses o pegassem em seu hábito o fariam em pedacinhos. Quanto a isso, talvez sim, talvez não. Mas ele parecia um palerma em trajes escoceses — acrescentou com ar de censura.

O comportamento do padre também não ajudara a amenizar a impressão causada por sua vestimenta. Percebendo tardiamente que seu assaltante era um escocês, suspirou de alívio e em seguida abriu a boca. Com um rápido movimento, Jamie tampou-a antes que qualquer pergunta imprudente pudesse emergir.

— O que faz aqui, padre? — grunhiu, a boca pressionada contra o ouvido do sacerdote. — Você deve ficar atrás das linhas.

Os olhos arregalados do padre revelaram a verdade a Jamie — o homem de Deus, perdido na escuridão, achou que realmente estava atrás das linhas e a compreensão tardia de que na verdade ele estava na vanguarda dos escoceses que avançavam fez seus joelhos amolecerem.

Jamie olhou para trás; não ousava mandar o padre de volta pelas linhas. Na escuridão enevoada, ele poderia facilmente dar de cara com um escocês, ser tomado por um inimigo e ser morto ali mesmo. Segurando o homenzinho pela nuca, forçou-o a ajoelhar-se.

— Deite-se no chão e fique aí até o fogo cessar — sussurrou no ouvido do padre. Ele assentiu balançando a cabeça de modo frenético, depois de repente viu o corpo do soldado inglês, deitado no chão a poucos passos de distância. Ergueu os olhos aterrorizados para Jamie e pegou os frascos de crisma e água benta que trazia presos ao cinto, no lugar de uma adaga.

Revirando os olhos para cima de exasperação, Jamie fez uma série de gestos enérgicos, tentando indicar que o sujeito não estava morto e assim não precisava dos serviços do padre. Tendo os gestos fracassado em sua intenção, ele inclinou-se, segurou a mão do sacerdote e pressionou seus dedos no pescoço do inglês, como o método mais simples de ilustrar que o homem não era na verdade a primeira vítima da batalha. Surpreendido nessa posição ridícula, ficou paralisado quando uma voz atravessou a neblina atrás dele.

— Pare! — disse a voz. — Quem está aí?

— Tem um pouco de água, Sassenach — Jamie perguntou. — Minha boca está ficando seca de falar.

— Filho-da-mãe! — eu disse. — Não pode parar agora! O que aconteceu?

— Água — ele disse, rindo —, e então lhe contarei.

— Está bem — eu disse, entregando-lhe uma garrafa de água e observando-o virá-la na boca. — O que aconteceu depois?

— Nada — ele disse, abaixando a garrafa e limpando a boca na manga da camisa. — O que você acha que eu ia responder? — Riu deslavadamente para mim e desviou-se quando mirei um tapa em seu ouvido.

— Ora, ora — disse em tom de reprovação. — Isso não são modos de tratar um homem ferido a serviço de seu rei, não é?

— Ferido, hein? — eu disse. — Acredite-me Jamie Fraser, um leve corte de sabre não é nada comparado ao que vou fazer se você...

— Ah, e ainda por cima ameaças, hein? Como era mesmo aquele poema que você me disse...? “Quando a dor e a angústia enrugam a fronte, um anjo protetor”... Ai!

— Da próxima vez, arranco sua orelha pela raiz — eu disse, soltando-a. — Ande, continue, tenho que voltar lá para dentro em um minuto.

Ele esfregou a orelha delicadamente, mas voltou a recostar-se contra a parede e retomou a história.

— Bem, ficamos lá parados, de cócoras, o padre e eu, entreolhando-nos e ouvindo as sentinelas a dois metros de distância. “O que foi isso?”, disse um dos soldados, e fiquei pensando se conseguiria me levantar a tempo de golpeá-lo com a minha adaga antes que ele pudesse atirar em mim, ou o amigo dele. Já que eu não poderia esperar ajuda do padre, a não ser, talvez, uma última prece sobre meu cadáver.

Houve um silêncio longo e exasperante, enquanto os dois jacobitas permaneciam agachados na grama, as mãos ainda enlaçadas, com medo de fazer sequer o mais leve movimento, até mesmo para se soltarem.

— Ahhh, você está vendo coisas — disse a outra sentinela finalmente e Jamie sentiu um estremecimento de alívio percorrer o corpo do padre, enquanto seus dedos suados soltavam-se. — Não há nada lá em cima além de moitas de tojo. Não se preocupe, rapaz — a sentinela disse de modo tranqüilizador, e Jamie ouviu um tapa num ombro e batidas pesadas de pés calçados de botas, de alguém tentando se manter aquecido. — Com certeza há um bando deles por aí e, nesta escuridão, poderia ser o maldito exército das Highlands inteiro, pelo que se pode enxergar. — Jamie achou ter ouvido o sopro de um riso abafado vindo de uma das “moitas de tojo” na encosta dentro do seu campo de audição.

Olhou para o topo da colina, onde as estrelas começavam a esmaecer. Menos de dez minutos para os primeiros raios de luz, calculou. Quando, então, as tropas de Johnnie Cope logo perceberiam que o exército das Highlands não estava, como pensavam, a uma hora de marcha dali, na direção oposta, mas já cara a cara com suas linhas de frente.

Ouviu-se um ruído à esquerda, na direção do mar. Era fraco e indistinto, mas o tom de alarme era claro para ouvidos experientes. Alguém, ele supôs, tropeçara numa moita de tojo.

— Hein? — O tom de alarme fora captado por uma das sentinelas próximas. — O que está acontecendo?

O padre teria que cuidar de si mesmo, pensou. Jamie sacou a espada de folha larga enquanto se levantava e, com uma única e larga passada, eliminou a distância até o inimigo. O homem não passava de um vulto na escuridão, mas suficientemente distinto. A lâmina implacável abateu-se com toda a força e rachou o crânio do sujeito ali mesmo onde ele estava.

— Escoceses! — O grito de alarme eclodiu do companheiro e a segunda sentinela saltou como um coelho desentocado com jato d'água, fugindo aos pulos na noite evanescente antes que Jamie pudesse arrancar sua espada da fenda ensangüentada. Colocou o pé nas costas do homem caído e deu um puxão na arma para trás, rangendo os dentes contra a sensação desagradável de carne mole e osso rangente.

O alarme espalhava-se para cima e para baixo das linhas inglesas; podia senti-lo tanto quanto ouvi-lo — uma agitação de homens bruscamente acordados, tateando às cegas em busca de suas armas, procurando em todas as direções a ameaça oculta.

As gaitas de foles de Clanranald estavam atrás, para a direita, mas até então nenhum sinal fora dado para o ataque. A ordem, então, era para continuar avançando, o coração acelerado e o braço esquerdo formigando do esforço do golpe mortal, os músculos da barriga contraídos e os olhos estreitando-se para ver através da escuridão minguante, o sangue morno salpicado pelo seu rosto tornando-se frio e pegajoso.

— Eu pude ouvi-los primeiro — ele disse, os olhos fitos na noite como se ainda procurasse os soldados ingleses. Inclinou-se para frente, abraçando os joelhos. — Depois, eu pude ver, também. Os ingleses, contorcendo-se pelo chão como larvas na carne, e os homens atrás de mim. George Mc-Clure alcançou-me, e Wallace e Ross surgiram do outro lado. Prosseguíamos em silêncio, um passo de cada vez, mas cada vez mais rápido vendo os ingleses irrompendo à nossa frente.

Ouviu-se uma explosão abafada à direita; o disparo de um único canhão. Um instante mais tarde, outro disparo, e em seguida, como se este fosse o sinal, um grito retumbante ergueu-se do meio dos escoceses que avançavam.

— Então, as gaitas de foles começaram — ele disse, os olhos cerrados. -Não me lembrei do meu mosquete até que ouvi um disparo bem atrás de mim; eu o deixara no chão ao lado do padre. Num momento assim, você não vê nada além daquilo que está acontecendo imediatamente à sua volta.

“Você ouve um grito e, de repente, está correndo. Devagar, por um ou dois passos, enquanto desata o cinto, então seu xale cai, livre, e você está saltando, os pés respingando lama pelas suas pernas e o frio do mato molhado nos seus pés e as abas de sua camisa voando pelo seu traseiro nu. O vento entra por dentro de sua camisa, sobe pela sua barriga e sai pelos seus braços... Em seguida, o barulho o invade e você está gritando, como você desce uma colina a toda a velocidade, gritando ao vento, quando é criança, para ver se consegue se erguer no ar com a força do som.”

Cavalgaram as ondas de seus próprios gritos até a planície e a força do ataque dos escoceses arrebentou sobre os bancos de areia do exército inglês, engolfando-os num vagalhão de sangue e terror.

— Eles correram — ele disse a meia-voz. — Um homem virou-se para me enfrentar... durante toda a luta, apenas um. Todos os outros, eu peguei por trás. — Esfregou a mão encardida no rosto e pude sentir um ligeiro tremor desprender-se do âmago de seu ser. — Eu me lembro... de tudo — ele disse, quase num murmúrio. — Cada golpe. Cada rosto. O homem deitado no chão à minha frente que se mijou todo de medo. Os cavalos berravam-Todos os odores: pólvora, sangue e o cheiro do meu próprio suor. Tudo. Mas era como se eu estivesse do lado de fora, observando a mim mesmo. Eu não estava realmente lá. — Ele abriu os olhos e olhou para mim pelo canto do olho. Estava quase dobrado ao meio, a cabeça sobre os joelhos, o tremor visível agora.

— Sabe como é? — ele perguntou.

— Sei.

Embora eu não tivesse lutado com espada ou adaga, havia lutado muitas vezes com as mãos e a força de vontade; atravessando o caos da morte somente porque não havia outra escolha. E isso realmente deixava aquela sensação estranha de distanciamento; o cérebro parecia erguer-se acima do corpo, avaliando e instruindo com frieza, as vísceras obedientemente subjugadas até a crise passar. Era sempre algum tempo depois que os tremores começavam.

Eu ainda não havia atingido esse ponto. Retirei o manto dos meus ombros e o cobri antes de voltar para dentro da cabana.

O dia amanheceu e fui substituída por duas mulheres da vila e um cirurgião militar. O homem com a perna ferida estava pálido e trêmulo, mas o sangramento parara. Jamie tomou-me pelo braço e levou-me dali, pela rua de Tranent.

As constantes dificuldades de O'Sullivan com as provisões para abastecer o exército foram temporariamente aliviadas pela captura das carroças de mantimentos dos ingleses, e havia abundância de suprimentos. Comemos rapidamente, mal provando o mingau quente, considerando a comida apenas uma necessidade do corpo, como respirar. A sensação de saciedade começou a tomar conta do meu corpo, deixando-me livre para pensar na segunda necessidade mais premente — dormir.

Os feridos foram aquartelados em cada casa e cabana, os sãos, em sua maioria, dormiam nos campos fora da vila. Embora Jamie pudesse ter reivindicado um lugar na casa paroquial com os outros oficiais, em vez disso ele me tomou pelo braço e me conduziu por entre as cabanas, em direção a uma colina. Subimos a encosta, até um dos pequenos bosques que se espalhavam pela periferia de Tranent.

— É uma boa caminhada — ele dissera, em tom de desculpas, olhando para mim —, mas achei que você gostaria de um pouco de privacidade.

— Sim, gostaria. — Embora eu tivesse sido criada em condições que pareceriam primitivas às pessoas da minha época, em geral dormindo em barracas e casas de taipa durante as expedições de campo de tio Lamb, ainda assim não estava acostumada a viver amontoada com várias outras pessoas, como era costume aqui. As pessoas comiam, dormiam e muitas vezes copulavam comprimidas em cabanas minúsculas e asfixiantes, iluminadas e aquecidas pela queima fumarenta de turfa. A única coisa que não faziam juntas era se banhar — em grande parte porque elas não tomavam banho.

Jamie liderou o caminho, por baixo dos galhos inclinados de um enorme castanheiro-da-índia, até uma pequena clareira, forrada de folhas caídas de freixo, carvalho e plátano. O sol mal nascera e ainda fazia frio sob as árvores, uma linha fina de geada orlando algumas das folhas amareladas.

Ele formou uma espécie de trincheira raspando a espessa camada de folhas com o calcanhar, depois se postou em uma das extremidades da depressão, colocou a mão na fivela do cinto e sorriu para mim.

— É um pouco inconveniente para vestir, mas muito fácil de tirar. — Soltou o cinto com um puxão e o tecido de xadrez do seu traje caiu em dobras em torno de seus tornozelos, deixando-o vestido apenas até a metade da coxa com sua camisa. Ele geralmente usava o “pequeno kilt” militar, que era preso com um cinto em volta da cintura, sendo o xale de xadrez uma tira de pano separada, drapeada em torno dos ombros. Mas neste momento, estando seu próprio kilt rasgado e sujo da batalha, ele arranjara um traje antigo, consistindo apenas em um xale cingido por um cinturão — nada mais do que uma longa tira de tecido, enrolada em torno do corpo e presa na cintura apenas por um cinto.

— Como é que você veste isso? — perguntei, curiosa.

— Bem, você o estica no chão, assim — ajoelhou-se, estendendo a tira de xadrez de modo que ela forrasse a depressão coberta de folhas —, depois faz pregas a alguns centímetros de intervalo, deita-se sobre ele e rola.

Soltei uma gargalhada e deixei-me cair de joelhos, ajudando a alisar a grossa lã do tartã.

— Isso eu quero ver — eu lhe disse. — Acorde-me antes de se vestir. Ele sacudiu a cabeça, divertindo-se, e a luz do sol filtrando-se através das folhas das árvores refletiu-se em seus cabelos.

— Sassenach, as chances de eu acordar antes de você são menores do que as de uma minhoca sobreviver num quintal de galinhas. Não me importo se outro cavalo me pisotear, não vou me mexer até amanhã. -Deitou-se cuidadosamente, afastando as folhas.

— Deite-se aqui comigo. — Estendeu a mão para cima de forma convidativa. — Vamos nos cobrir com nosso manto.

As folhas sob a lã macia formavam um colchão surpreendentemente confortável, apesar de que, a essa altura, eu teria ficado feliz de dormir numa cama de pregos. Meu corpo relaxou-se completamente contra o dele, comprazendo-se no delicioso prazer de apenas se deitar.

A friagem inicial dissipou-se rápido, conforme nossos corpos aqueciam o bolsão onde nos abrigáramos. Estávamos suficientemente longe da cidade para que os sons de sua ocupação só nos alcançassem em fragmentos trazidos pelo vento. Pensei com sonolenta satisfação que, se alguém procurasse por Jamie, provavelmente só nos encontraria amanhã.

Na noite anterior, eu tirara minhas anáguas e as rasgara para fazer mais ataduras. Agora, não havia mais nada entre nós além do tecido fino da saia e do camisão de baixo. Um calor rijo e sólido agitou-se brevemente contra meu ventre.

— Não pode ser, pode? — eu disse, achando graça, apesar do cansaço. -. Jamie, você deve estar semimorto.

Ele deu uma risada cansada, segurando-me bem junto ao seu corpo com uma das mãos grandes e quentes na base da minha coluna.

— Bem mais do que semimorto, Sassenach. Estou exausto e meu pau é a única parte estúpida do meu corpo que não sabe disso. Não consigo me deitar com você sem desejá-la, mas desejar talvez seja tudo que vou conseguir fazer.

Tateei em busca da barra de sua camisa, puxei-a para cima e minha mão envolveu-o delicadamente. Mesmo mais quente do que a pele de sua barriga, seu pênis era sedoso sob a carícia do meu polegar, pulsando com força a cada batida do seu coração.

Ele emitiu um pequeno gemido de dolorida satisfação e virou-se lentamente de costas, deixando as pernas abrirem-se, relaxadas, parcialmente cobertas pelo meu manto.

O sol alcançara nossa pilha de folhas e meus ombros relaxaram-se sob o toque cálido da luz. Tudo parecia recoberto com uma fina camada de ouro, um resultado da mistura de começo de outono com fadiga extrema. Senti-me lânguida e vagamente separada do meu corpo, observando a pequena agitação de sua carne sob meus dedos. Todo o terror, cansaço e barulho dos dois últimos dias começaram a se esvair aos poucos, deixando-nos a sós.

A névoa da exaustão parecia agir como uma lente de aumento, exagerando minúsculos detalhes e sensações. A ponta do seu ferimento a sabre podia ser vista sob a camisa embolada para cima, uma crosta escura contra a pele clara. Dois ou três mosquitinhos zumbiam baixo, investigando, e eu abanei a mão, afastando-os. O silêncio ressoava em meus ouvidos, o murmúrio das árvores não se comparando aos dissonantes ecos da cidade.

Recostei o rosto sobre ele, sentindo a curva lisa e rígida do osso do seu quadril, proeminente sob a pele. Na dobra de sua virilha, a pele era transparente e os vasos capilares finos e azuis como os de uma criança.

Sua mão ergueu-se devagar, flutuando como as folhas, e descansou de leve em minha cabeça.

— Claire. Eu preciso de você — ele murmurou. — Eu preciso muito de você.

Sem as incômodas anáguas, foi fácil. Senti-me como se eu mesma estivesse flutuando, erguendo-me sem esforço, levantando as minhas saias pelo comprimento de seu corpo, dispondo-me sobre ele como uma nuvem no topo de uma colina, dando abrigo ao seu desejo.

Seus olhos estavam fechados, a cabeça para trás, o ouro avermelhado de seus cabelos esparramado sobre as folhas. Mas suas mãos ergueram-se e assentaram-se com firmeza em minha cintura, descansando sem peso na curva dos meus quadris.

Meus olhos também se fecharam e eu senti as formas de sua mente, tão claramente como sentia as do seu corpo sob mim; a exaustão bloqueava cada pensamento e cada lembrança; cada sensação, exceto o reconhecimento um do outro.

— Não... muito tempo — ele murmurou. Balancei a cabeça, sabendo que ele sentia o que não via, e ergui-me em cima dele, as coxas frementes e firmes sob o tecido manchado do meu vestido.

Uma, duas vezes, outra vez, e mais outra, e o tremor ergueu-se por dentro dos nossos corpos, como a subida da água pelas raízes de uma planta, até as folhas.

Soltou a respiração com um suspiro e senti sua perda de consciência como o lento apagar de um lampião. Deixei-me cair a seu lado, mal conseguindo puxar as pesadas dobras do manto sobre nós antes que a escuridão me dominasse, e deitei meu peso sobre a terra, o calor de sua semente dentro de mim. Dormimos.

 

Abatida na minha porta surpreendeu-me, interrompendo uma inspeção de minhas recém-reabastecidas caixas de remédios. Após a impressionante vitória em Prestonpans, Carlos conduzira seu exército triunfante de volta a Edimburgo, para comprazer-se nas adulações. Enquanto ele se deliciava, seus generais e chefes trabalhavam, reorganizando seus homens e adquirindo todo equipamento que pudessem obter, em preparação para o que quer que viesse.

Encorajado pelo sucesso, Carlos discorria livremente sobre tomar Stirling, em seguida Carlyle e depois, talvez, em avançar para o sul, até mesmo sobre Londres. Eu passava meu tempo livre contando agulhas de sutura, armazenando casca de salgueiro e me apoderando de qualquer quantidade, por menor que fosse, de álcool que pudesse encontrar, para ser transformado em desinfetante.

— O que é? — perguntei, abrindo a porta. O mensageiro era um garoto, pouco mais velho do que Fergus. Ele tentava parecer compenetrado e deferente, mas não conseguia conter sua natural curiosidade. Vi seus olhos moverem-se rápido pela sala, pousando, fascinados, na grande caixa de remédios no canto. Obviamente, os rumores a meu respeito haviam se espalhado pelo palácio de Holyrood.

— Sua Alteza solicita sua presença, sra. Fraser — ele disse. Os grandes olhos castanhos examinaram-me detidamente, sem dúvida em busca de indícios de possessão sobrenatural. Pareceu um pouco decepcionado com a minha aparência desalentadoramente normal.

— Ah, é mesmo? — eu disse. — Está bem. Onde ele está, então?

— Na sala de visitas matinal, senhora. Devo acompanhá-la. Ah... — O pensamento ocorreu-lhe quando se virou e ele girou de volta antes que eu pudesse fechar a porta. — A senhora deve levar sua caixa de remédios, por gentileza.

Meu acompanhante exultava com a importância que ele mesmo atribuía à sua missão e escoltou-me pelo longo corredor, até a ala real do palácio. Obviamente, alguém andara lhe ensinando as regras do comportamento adequado a um pajem real, mas um saltitar exuberante em seus passos de vez em quando traía sua recente admissão ao trabalho.

O que Carlos poderia querer comigo?, perguntei-me. Embora me tolerasse por causa de Jamie, a história de La Dame Blanche obviamente o desconcertara e o deixara inquieto. Mais de uma vez, eu o surpreendera benzendo-se furtivamente em minha presença ou fazendo o rápido sinal de “chifres” feito com dois dedos e usado contra o mal. A idéia de que ele fosse me pedir para tratá-lo de algum problema médico era extremamente improvável.

Quando a pesada porta de madeiras cruzadas se abriu para a pequena sala de visitas matinal, pareceu-me ainda mais improvável. O príncipe, obviamente gozando de boa saúde, inclinava-se sobre a espineta pintada, tentando extrair uma melodia claudicante com um único dedo. Sua pele delicada estava ligeiramente ruborizada, mas de empolgação, não de febre, e seus olhos estavam límpidos e atentos quando os ergueu para mim.

— Sra. Fraser! Que gentileza a sua em me atender tão prontamente! — Estava vestido nesta manhã com ainda mais pompa do que de costume, usando peruca e um casaco novo de seda bege, rebordado de flores. Deve estar entusiasmado com alguma coisa, pensei; seu inglês se deteriorava sempre que ficava agitado.

— É um prazer, Vossa Alteza — eu disse decorosamente, fazendo uma ligeira mesura. Ele estava sozinho, uma situação inusitada. Seria possível que quisesse meus serviços médicos para si mesmo, afinal?

Fez um gesto rápido e nervoso em direção a uma das cadeiras damas-quinadas pintadas em ouro, instando-me a sentar. Uma segunda cadeira foi puxada, de frente para a minha, mas ele andava de um lado para o outro à minha frente, irrequieto demais para se sentar.

— Preciso de sua ajuda — ele disse de repente.

— Hum? — Fiz um barulho educadamente indagador. Gonorréia?, imaginei, examinando-o veladamente de alto a baixo. Eu não ouvira falar de nenhuma mulher desde Louise de La Tour, mas, por outro lado, bastava uma única vez. Ele abriu e fechou os lábios, como se procurasse a melhor maneira de me contar, mas por fim desistiu.

— Tenho um capo, um chefe, sabe?, aqui. Ele quer se unir à causa de meu pai, mas ainda tem alguma dúvida.

— Um chefe de clã, é o que quer dizer? — Ele balançou a cabeça confirmando, a testa franzida sob os cachos cuidadosos da peruca.

— Sim, madame. Ele obviamente apoia as reivindicações de meu pai—

— Ah, é claro — murmurei.

— ...Mas ele quer falar com a senhora, antes de empenhar seus homens a me seguirem.

Ele parecia incrédulo, ouvindo suas próprias palavras, e eu compreendi que o rubor em suas faces era proveniente da combinação de perplexidade irritada e fúria reprimida.

Eu mesma estava mais do que um pouco confusa. Minha imaginação prontamente visualizou um chefe de clã com uma terrível doença, cuja adesão à causa dependia da realização de uma cura milagrosa.

— Tem certeza de que ele deseja falar comigo? — perguntei. Com certeza, minha reputação não tinha ido tão longe assim.

Carlos inclinou a cabeça friamente em minha direção.

— É o que ele diz, madame.

— Mas eu não conheço nenhum chefe de clã — eu afirmei. — Fora Glengarry e Lochiel, é claro. Ah, e Clanranald e Keppoch. Mas todos eles já se comprometeram com Vossa Alteza. E por que, afinal...

— Bem, ele é da opinião de que a senhora o conhece — o príncipe interrompeu, a sintaxe ainda mais atrapalhada com a elevação do seu mau humor. Ele cerrou os punhos, obviamente obrigando-se a falar de modo educado. — É de importância, da maior importância, madame, que ele se convença a se unir a mim. Eu exijo... eu lhe peço... portanto, que... o convença.

Esfreguei o nariz pensativamente, olhando para ele. Mais um ponto de decisão. Mais uma oportunidade para fazer com que os acontecimentos seguissem o caminho que eu escolhesse. E mais uma vez, a incapacidade de saber qual a melhor atitude a tomar.

Ele tinha razão; era importante convencer esse chefe de clã a comprometer seus recursos à causa jacobita. Com os Cameron, os vários MacDonald e os outros que haviam se unido à causa até agora, o exército jacobita não reunia mais do que dois mil homens, e esses formavam o grupo mais heterogêneo de gentalha já impingido a qualquer general. E no entanto, esse bando de maltrapilhos tomara a cidade de Edimburgo, derrotara uma força inglesa muito superior em Preston e demonstrava toda disposição de continuar atravessando a zona rural como uma turba de saltimbancos.

Nós não conseguíramos impedir Carlos em sua aventura; talvez, como Jamie dissera, a única maneira de evitar a calamidade era agora fazer todo o possível para ajudá-lo. O acréscimo de um importante chefe de clã à lista de partidários influenciaria enormemente as chances de outros aderirem. Esse podia ser um momento decisivo, em que as forças jacobitas poderiam ser aumentadas ao nível de um verdadeiro exército, realmente capaz de realizar a proposta invasão da Inglaterra. E se assim fosse, o que iria acontecer depois?

Suspirei. Independentemente do que eu resolvesse fazer, não poderia tomar nenhuma decisão enquanto não visse quem era essa misteriosa pessoa.

Olhei para baixo para ver se meus trajes estavam adequados para encontros com chefes de clã, infectados ou não, e me levantei, enfiando a caixa de remédios embaixo do braço.

— Vou tentar, Alteza — eu disse.

Os punhos cerrados relaxaram-se, revelando as unhas roídas, e sua testa desanuviou-se.

— Ah, ótimo — ele disse. Virou-se para a porta mais larga da sala de visitas da tarde. — Venha, eu mesmo a conduzirei.

O guarda postado à porta deu um salto de surpresa quando Carlos escancarou a porta e passou por ele a passos largos sem lançar sequer um olhar em sua direção. Do outro lado da sala longa, as paredes cobertas de tapeçarias, havia uma enorme lareira de mármore, recoberta de azulejos brancos de Delft, pintados com cenas campestres holandesas em tons de azul e amora. Um pequeno sofá estava disposto em frente à lareira e um homem muito alto e forte, de ombros largos, em trajes das Highlands, estava de pé a seu lado.

Em um aposento menos imponente, ele teria parecido enorme, as pernas como troncos de árvores em suas meias de xadrez sob o kilt. Na situação como agora se apresentava, neste salão imenso com tetos altos ornamentados em gesso, era apenas grande — bem de acordo com as figuras heróicas da mitologia que decoravam as tapeçarias nas paredes da sala.

Parei repentinamente ao ver o enorme visitante, o choque do reconhecimento ainda misturado à absoluta incredulidade. Carlos seguira adiante e parou para olhar para trás com alguma impaciência, fazendo sinal para que eu fosse me unir a ele junto à lareira. Balancei a cabeça cumprimentando o enorme sujeito. Em seguida, contornei devagar a ponta do sofá e fitei o homem deitado sobre ele.

Ele sorriu debilmente ao me ver, os olhos cinza da cor de um pombo iluminando-se com uma centelha de diversão.

— Sim — ele disse, em resposta à minha expressão. — Eu certamente também não esperava encontrá-la outra vez. Deve-se sempre acreditar no destino. — Virou a cabeça e ergueu a mão para seu enorme guarda-costas.

— Angus. Poderia ir pegar uma dose de conhaque para madame Claire. Receio que a surpresa de me ver possa tê-la perturbado.

Isso, pensei, era colocar a situação de forma extremamente branda. Deixei-me cair em uma cadeira estranha, de pés abertos para fora, e copo de haste, de cristal, que Angus Mhor me estendia.

Os olhos de Colum MacKenzie não haviam mudado; nem sua voz. Ambos conservavam a essência do homem que liderava o clã MacKenzie há trinta anos, apesar da doença que o aleijara na adolescência. No entanto, tudo o mais havia mudado tristemente para pior; os cabelos negros estavam fartamente estriados de branco, as rugas do rosto mais profundas na pele que se tornara flácida sobre os contornos distintos dos ossos. Até mesmo o peito largo havia minguado e os ombros poderosos estavam caídos, os músculos desaparecidos do esqueleto frágil que os sustentava.

Ele já segurava um copo pela metade com um líquido âmbar, brilhando à luz do fogo na lareira. Ergueu-se com dificuldade à posição sentada e levantou o copo num brinde irônico.

— Você está com uma ótima aparência... sobrinha. — Do canto do olho, vi a boca de Carlos abrir-se de espanto.

— Você não está — eu disse secamente.

Ele olhou para baixo sem emoção, para as pernas arqueadas e deformadas. Dali a cem anos, dariam a essa doença o nome de seu mais ilustre portador — síndrome de Toulouse-Lautrec.

— Não — eu disse. — Mas, por outro lado, já faz dois anos que você me viu pela última vez. Na ocasião, a sra. Duncan estimou minha sobrevivência em menos de dois anos.

Tomei um gole do conhaque. De excelente qualidade. Carlos estava ansioso.

— Não imaginei que pudesse dar muita importância à maldição de uma bruxa — eu disse.

Um sorriso torceu os lábios finos. Ele possuía a beleza arrojada de seu irmão Dougal, apesar de desfeita como estava, e quando levantava o véu do desligamento de seus olhos, o poder do homem sobrepujava a devastação de seu corpo.

— A maldições, não. Entretanto, eu tinha a distinta impressão de que aquela senhora lidava com observação, não bruxaria. E nunca encontrei uma observadora mais perspicaz do que Geillis Duncan... com uma exceção. — Inclinou a cabeça graciosamente em minha direção, deixando claro o que pretendia dizer.

— Obrigada — eu disse.

Colum ergueu os olhos para Carlos, que continuava boquiaberto, estupefato e confuso com essa conversa.

— Agradeço-lhe por sua gentileza em permitir que eu use suas instalações para uma reunião com a sra. Fraser, Alteza — ele disse, com uma ligeira mesura. As palavras eram perfeitamente corteses, mas o tom com que foram ditas tornava óbvio um pedido para que se retirasse. Carlos, que de modo algum estava acostumado a ser mandado embora, ficou intensamente ruborizado e abriu a boca. Em seguida, recompondo-se, fechou-a, fez uma curta reverência e girou nos calcanhares.

— Também não vamos precisar do guarda — eu disse às suas costas. Seus ombros arriaram e sua nuca ficou vermelha sob o rabo-de-cavalo da peruca, mas gesticulou rispidamente e o guarda postado à porta, com um olhar surpreso para mim, seguiu Sua Alteza para fora.

— Hum. — Colum lançou um breve olhar de desaprovação em direção à porta, depois retornou sua atenção para mim.

— Pedi para vê-la porque eu lhe devo desculpas — ele disse, sem preâmbulos.

Recostei-me na cadeira, o copo de conhaque pousado calmamente sobre o estômago.

— Ah, um pedido de desculpas? — eu disse, com o máximo de sarcasmo que pude reunir sem aviso prévio. — Por tentar me mandar para a fogueira por bruxaria, imagino? — Abanei a mão, descartando graciosamente a oferta. — Ah, por favor, não se dê a esse trabalho. — Fitei-o furiosamente. -Desculpas?!

Ele sorriu, nem um pouco desconcertado.

— Suponho que pareça um pouco inadequado — ele começou.

— Inadequado?! Por mandar me prender e atirar no buraco dos ladrões por três dias sem água ou comida decente? Por mandar me despir, me deixar quase nua, e açoitar-me diante de todos os habitantes de Cranesmuir? Por deixar-me por um triz de um barril de piche e um feixe de lenha? -Parei e respirei fundo. — Agora que mencionou — eu disse, um pouco mais calma —, “inadequado” é exatamente o que eu chamaria a isso.

O sorriso desaparecera.

— Peço-lhe perdão por minha aparente frivolidade — ele disse serenamente. — Não tive intenção de zombar de você.

Olhei para ele, mas não encontrei nenhum vestígio de divertimento nos olhos de pestanas negras.

— Não — eu disse, com outra respiração profunda. — Suponho que não. Suponho que vá dizer que também não tinha nenhuma intenção de me mandar prender por bruxaria.

Os olhos cinzentos aguçaram-se.

— Você sabia disso?

— Geilie me disse. Quando estávamos no buraco dos ladrões. Contou-me que era dela que você pretendia se livrar; eu fui envolvida por acidente.

— E foi mesmo. — Pareceu subitamente muito cansado. — Se você estivesse no castelo, eu poderia tê-la protegido. O que, em nome de Deus, levou-a a descer para a vila?

— Disseram-me que Geilie Duncan estava doente e pedia a minha presença — respondi secamente.

— Ah — ele disse num sussurro. — Disseram-lhe. Quem, se posso perguntar?

— Laoghaire. — Mesmo agora, não pude reprimir uma breve explosão de cólera diante do nome da jovem. Por causa de uma inveja doentia por eu ter me casado com Jamie, ela deliberadamente tentara fazer com que me matassem. Muita malignidade para uma jovem de dezesseis anos. Mesmo agora, em meio à raiva, senti uma minúscula ponta de cruel satisfação; ele é meu, pensei, quase subconscientemente. Meu. Você nunca o tirará de mim. Nunca.

— Ah — Colum repetiu, fitando pensativo meu semblante afogueado. — Foi o que achei que tivesse acontecido. Diga-me — continuou, erguendo uma das sobrancelhas escuras —, se um simples pedido de desculpas lhe parece inadequado, você preferiria a vingança?

— Vingança? — Devo ter parecido surpresa com a idéia, porque ele sorriu debilmente, embora sem humor.

— Sim. A garota casou-se há seis meses com Hugh MacKenzie de Muldaur, um dos meus colonos. Ele fará com ela o que eu mandar, se você quiser castigá-la. O que quer que eu faça?

Pestanejei, desconcertada com sua oferta. Ele não parecia ter pressa para receber uma resposta; permanecia calmamente sentado, bebericando o novo copo de conhaque que Angus Mhor lhe servira. Não me fitava, mas levantei-me e me afastei em direção às janelas, desejando ficar sozinha por alguns instantes.

As paredes ali tinham um metro e meio de espessura; ao me recostar no profundo vão da janela, pude assegurar alguma privacidade a mim mesma. O sol brilhante iluminou os pêlos finos e louros dos meus braços quando os recostei no parapeito. Fez-me pensar no buraco dos ladrões, o poço fétido e úmido, e na única fresta de luz do sol que brilhava através de uma abertura em cima, fazendo, com o contraste, o buraco escuro abaixo parecer ainda mais uma sepultura.

Passei meu primeiro dia lá embaixo no frio e na imundície, perplexa e incrédula; o segundo, num estado deplorável, trêmula, o medo crescente, quando descobri toda a extensão da traição de Geillis Duncan e as medidas de Colum contra ela. E no terceiro dia, levaram-me a julgamento. E eu ficara lá, envergonhada e aterrorizada, sob as nuvens de um céu de outono cada vez mais carregado, sentindo as mandíbulas da armadilha de Colum fecharem-se ao meu redor, provocadas por uma palavra de Laoghaire.

Laoghaire. A pele clara e os olhos azuis, com um rosto redondo e bonito, mas sem nada mais que a distinguisse das outras jovens de Leoch. Eu pensara nela — no buraco com Geillis Duncan, tive tempo de pensar em muitas coisas. Mas apesar de furiosa e aterrorizada como eu estava, furiosa como eu ainda estava, eu não podia, nem na época nem agora, vê-la como intrinsecamente má.

— A menina tinha apenas dezesseis anos, pelo amor de Deus!

— Idade suficiente para casar — disse uma voz irônica atrás de mim e percebi que tinha pensado em voz alta.

— Sim, ela queria Jamie — eu disse, voltando-me. Colum ainda estava sentado no sofá, as pernas curtas e deformadas cobertas com um cobertor. Angus Mhor permanecia de pé a seu lado, em silêncio, os olhos de pálpebras pesadas fixos em seu senhor. — Talvez achasse que amava Jamie.

Homens exercitavam-se no pátio, entre gritos e confronto de armas. O sol refletia-se do metal das espadas e mosquetes, das tachas de latão dos escudos — e dos cabelos dourado-avermelhados de Jamie, esvoaçando na brisa conforme ele passava a mão pelo rosto, afogueado e suado com o esforço físico, rindo de um dos chistes de Murtagh, sempre ditos com a expressão impassível.

Eu havia talvez cometido uma injustiça com Laoghaire, afinal, ao presumir que seus sentimentos fossem menores do que os meus. Quer ela tenha agido em função de uma raiva imatura ou de uma verdadeira paixão, eu jamais saberia. Fosse como fosse, ela fracassara. Eu sobrevivera. E Jamie era meu. Enquanto observava, ele levantou seu kilt e descuidadamente coçou o traseiro, a luz do sol atingindo a penugem ruivo-dourada que suavizava a curva dura como aço de sua coxa. Sorri e voltei para a minha cadeira perto de Colum.

— Aceito o pedido de desculpas — eu disse. Ele assentiu, os olhos cinza pensativos.

— Acredita no perdão, então, madame?

— Mais na justiça — eu disse. — Por falar nisso, não imagino que tenha viajado de Leoch a Edimburgo apenas para me pedir desculpas. Deve ter sido uma viagem infernal.

— Sim, foi. — A figura silenciosa e enorme de Angus Mhor deslocou-se alguns centímetros atrás dele e a cabeça maciça inclinou-se para seu chefe num eloqüente testemunho. Colum pressentiu o movimento e ergueu a mão brevemente, está tudo bem, o gesto dizia, estou bem por enquanto.

— Não — Colum continuou. — Na verdade, eu não sabia que você estava em Edimburgo, até que Sua Alteza mencionou Jamie Fraser, e eu perguntei. — Um sorriso repentino surgiu em seu rosto. — Sua Alteza não a tem em grande estima, madame Claire. Mas suponho que saiba disso, não?

Ignorei o comentário.

— Então, está realmente considerando unir-se ao príncipe Carlos?

Colum, Dougal e Jamie, todos eles tinham a capacidade de esconder o que estavam pensando quando assim desejavam, mas Colum era indubitavelmente o melhor dos três. Era possível obter mais de uma das cabeças esculpidas na fonte no pátio da frente, se ele não estivesse num estado de espírito comunicativo.

— Eu vim vê-lo — foi tudo que ele disse.

Permaneci sentada por um instante, imaginando o que, se é que havia alguma coisa, eu poderia — ou deveria — dizer em favor de Carlos. Talvez fosse melhor eu deixar a tarefa para Jamie. Afinal, o fato de Colum sentir remorso por quase ter me matado por acidente não significava que ele estivesse necessariamente inclinado a confiar em mim. E embora o fato de eu estar ali, fazendo parte da comitiva de Carlos, certamente contrariasse a idéia de eu ser uma espiã inglesa, não era impossível que eu fosse.

Ainda ponderava comigo mesma quando Colum subitamente colocou seu copo na mesinha e olhou-me direto nos olhos.

— Faz idéia de quantos desses eu já tomei desde manhã?

— Não.

Suas mãos estavam firmes, calejadas e ásperas da doença, mas bem cuidadas. As pálpebras avermelhadas e os olhos ligeiramente injetados poderiam com facilidade ser atribuídos tanto aos rigores da viagem quanto à bebida. Sua fala não estava arrastada e não havia mais do que uma certa deliberação de movimentos para indicar que ele não estava sóbrio como um juiz. Mas eu já vira Colum beber antes e tinha uma idéia muito respeitosa de sua capacidade.

Com um gesto, afastou a mão de Angus Mhor, pairando acima da garrafa de conhaque.

— Meia garrafa. A noite, já a terei terminado.

— Ah. — Era por isso, então, que eu fora solicitada a levar minha caixa de remédios. Peguei-a de onde eu a colocara no chão.

— Se está precisando de tanto conhaque, não há muita coisa que possa ajudá-lo senão algum tipo de ópio — eu disse, remexendo no meu sortimento de frascos e botijas. — Acho que tenho um pouco de láudano aqui, mas posso lhe dar um pouco de...

— Não é isso que quero de você. — O tom de autoridade em sua voz me fez parar e erguer os olhos. Se ele conseguia guardar seus pensamentos para si mesmo, também podia demonstrá-los quando assim o desejava.

— Eu poderia obter láudano com muita facilidade — ele disse. -Imagino que exista um boticário na cidade que venda láudano ou, pelo menos, semente de papoula ou ópio não diluído.

Deixei a tampa do pequeno baú fechar-se e descansei as mãos sobre ela. Então, ele não queria ir se acabando num estado de torpor, drogado, deixando a liderança do clã numa situação incerta. E se não era um esquecimento temporário o que ele queria de mim, o que mais poderia ser? Um definitivo, talvez. Eu conhecia Colum MacKenzie. E a mente límpida e cruel que planejara a destruição de Geillis Duncan não hesitaria sobre a sua própria.

Agora tudo estava claro. Ele viera ver Carlos Stuart, para tomar a decisão final se comprometeria os MacKenzie de Leoch à causa jacobita. Uma vez comprometidos, seria Dougal quem comandaria o clã. E então...

— Eu tinha a impressão de que suicídio era considerado um pecado mortal — eu disse.

— Imagino que sim — ele disse, sem se perturbar. — Um pecado de orgulho, pelo menos, que eu escolha uma morte digna no momento que julgar melhor, segundo as minhas conveniências. Não espero, entretanto, sofrer indevidamente pelo meu pecado, já que não pus nenhuma fé na existência de Deus desde que tinha mais ou menos dezenove anos.

A sala estava silenciosa, fora os estalidos do fogo e os gritos abafados da falsa batalha que ocorria lá embaixo. Eu podia ouvir sua respiração, um suspiro lento e regular.

— Por que pedir a mim? — perguntei. — Tem razão, você pode obter láudano onde quiser, desde que tenha dinheiro, e você tem. Certamente sabe que uma dose excessiva pode matá-lo. Aliás, é uma morte fácil.

— Fácil demais. — Sacudiu a cabeça. — Tenho tido pouco com que contar em minha vida, exceto minha inteligência. Gostaria de conservá-la, mesmo no encontro com a morte. Quanto à facilidade... — Remexeu-se ligeiramente no sofá, não fazendo nenhum esforço para disfarçar seu desconforto. — Logo terei o suficiente.

Fez um sinal com a cabeça indicando minha caixa.

— Você compartilhava os conhecimentos da sra. Duncan sobre remédios. Achei que talvez soubesse o que ela usou para matar o marido. Pareceu rápido e direto. E adequado — acrescentou ironicamente.

— Ela usou feitiçaria, segundo o veredicto da corte judicial. — O tribunal que a condenou à morte, de acordo com seu plano, pensei. — Ou não acredita em bruxaria? — perguntei.

Ele riu, um som puro, despreocupado, no aposento iluminado pelo sol.

— Alguém que não acredita em Deus dificilmente daria crédito a Satã, não acha?

Eu ainda hesitava, mas ele era um homem que julgava os outros tão astuciosamente quanto julgava a si próprio. Ele me pedira perdão antes de me pedir um favor e verificara que eu possuía um senso de justiça — ou de compaixão. E era, como ele disse, adequado. Abri a caixa e tirei o pequeno frasco de cianureto que eu guardava para matar ratos.

— Agradeço-lhe, sra. Claire — ele disse, novamente formal, embora o sorriso ainda se demorasse em seus olhos. — Mesmo que meu sobrinho não tivesse provado sua inocência com tanta extravagância em Cranesmuir, ainda assim eu jamais acreditaria que você era uma bruxa. Não tenho nenhuma noção melhor agora do que eu tinha na ocasião de quem você é, ou por que está aqui, mas uma bruxa não é uma das possibilidades que jamais tenha considerado. — Parou, uma das sobrancelhas arqueadas. -Suponho que não estaria inclinada a me dizer quem, ou o quê, você é?

Hesitei por um instante. Mas não era provável que um homem que não acreditava nem em Deus nem no diabo acreditasse na verdade da minha presença ali. Apertei seus dedos levemente e soltei-os.

— É melhor me chamar de bruxa — eu disse. — É o mais próximo a que provavelmente poderia chegar.

Quando saía para o pátio na manhã seguinte, encontrei-me com lorde Balmerino nas escadas.

— Ah, sra. Fraser! — cumprimentou-me jovialmente. — Exatamente quem eu estava procurando.

Sorri-lhe; um homem alegre, gorducho, era uma das reanimadoras características da vida em Holyrood.

— Se não for febre, diarréia ou sífilis — eu disse -, dá para esperar um pouco? Meu marido e o tio estão dando uma demonstração de luta de espadas em benefício de dom Francisco de La Quintana.

— Ah, é mesmo? Devo dizer, eu também gostaria de ver isso. — Balmerino começou a acompanhar meus passos, a cabeça sacudindo-se alegremente ao nível do meu ombro. — Gosto de ver um homem bonito com uma espada — ele disse. — E qualquer coisa que possa adoçar os espanhóis tem a minha mais sincera aprovação.

— A minha também. — Achando perigoso demais que Fergus roubasse a correspondência de Sua Alteza dentro de Holyrood, Jamie dependia das informações que obtinha do próprio Carlos. Entretanto, isso parecia ser muito; Carlos considerava Jamie um amigo íntimo, literalmente o único chefe escocês a ser agraciado com essa marca de favoritismo, apesar da pequena contribuição que ele representava em termos de homens e dinheiro.

No que dizia respeito a dinheiro, entretanto, Carlos confidenciara que tinha grandes esperanças de apoio de Filipe de Espanha, cuja última carta para Jaime em Roma tinha sido particularmente encorajadora. Dom Francisco, embora não fosse propriamente um enviado, era certamente um membro da corte espanhola e podia-se contar que levaria de volta seu relatório sobre a situação da revolta dos Stuart. Essa era a oportunidade de Carlos de ver até onde sua própria crença em seu destino o levaria, em convencer chefes das Highlands e reis estrangeiros a se unirem a ele.

— Por que queria me ver? — perguntei quando saíamos para a passagem que circundava o pátio de Holyrood. Uma pequena multidão de espectadores estava se reunindo, mas nem dom Francisco nem os dois combatentes estavam à vista ainda.

— Ah! — Tendo se lembrado, lorde Balmerino tateou dentro de seu casaco. — Nada de muita importância, minha cara. Recebi isso de um dos meus mensageiros, que o obteve de um parente do sul. Pensei que acharia interessante.

Entregou-me um maço fino de papéis grosseiramente impressos. Eu os reconheci como cartazes volantes, as populares circulares distribuídas em tavernas ou penduradas em batentes de portas e cercas pelas cidades e vilarejos.

“CARLOS EDUARDO STUART, conhecido por todos como o “Jovem Pretendente”, dizia um deles. “Que seja do conhecimento de todos que essa pessoa depravada e perigosa, tendo aportado ilicitamente nas costas da Escócia, incitou a população desse país à revolta e deslanchou sobre cidadãos inocentes a fúria de uma guerra injusta.” Havia muito mais, tudo na mesma linha de argumentação, concluindo com uma exortação aos cidadãos inocentes que lessem essa denúncia “para fazerem tudo que estivesse em seu poder para entregar essa pessoa à justiça que ele tanto merece”. O cartaz era ilustrado com o que imaginei se tratar do retrato desenhado de Carlos; não se assemelhava muito ao original, mas definitivamente parecia depravado e perigoso, o que, pensei, era o objetivo.

— Esse até que está bastante comedido — disse Balmerino, espreitando por cima do meu cotovelo. — Mas alguns dos outros revelam um leque mais impressionante tanto de imaginação quanto de invectiva; olhe este aqui. Este sou eu — ele disse, apontando para o papel com evidente deleite.

O cartaz mostrava um escocês das Highlands magro, com grandes suíças, sobrancelhas hirsutas e olhos que fitavam assustadoramente arregalados por baixo de um gorro escocês. Olhei de soslaio para lorde Balmerino vestido, como de costume, em calças presas nos joelhos e casaco do melhor bom gosto; feitos de tecidos nobres, mas discretos tanto no corte quanto na cor, para beneficiar sua figura baixa e roliça. Ele fitou o cartaz, alisando pensativamente o rosto redondo e bem barbeado.

— Não sei — ele disse. — As suíças me emprestam um ar muito romântico, não acha? Ainda assim, uma barba é que é o inferno. Não sei se conseguiria usar barba, ainda que ficasse pitoresco.

Virei para a folha seguinte e quase deixei cair o maço inteiro.

— Fizeram um trabalho ligeiramente melhor em conseguir uma semelhança com seu marido — Balmerino observou —, mas é claro que nosso querido Jamie realmente se parece um pouco com a popular concepção inglesa de um brutamontes das Highlands... com seu perdão, minha querida, sem nenhuma intenção de ofender. Mas ele é de fato grandão, não é?

— Sim — eu disse frouxamente, lendo com atenção as acusações do cartaz.

— Não sabia que seu marido tinha o hábito de assar e comer criancinhas, sabia? — disse Balmerino, gargalhando. — Sempre achei que seu tamanho devia-se a algo especial em sua dieta.

A atitude irreverente do nobre inglês ajudou-me bastante a recobrar a calma. Eu mesma quase conseguia sorrir diante das acusações e descrições ridículas, embora me perguntasse quanto crédito os leitores dariam aos cartazes. Muito, eu receava; as pessoas em geral pareciam não só dispostas, mas ansiosas para acreditar no pior — e quanto pior, melhor.

— É no último que achei que estaria interessada. — Balmerino interrompeu meus pensamentos, folheando o maço até a penúltima folha.

“A BRUXA STUART” proclamava o cabeçalho. Uma mulher de nariz comprido com pupilas minúsculas fitava-me de volta, acima de um texto que acusava Carlos Stuart de invocar “os poderes das trevas” para apoiá-lo em sua causa ilícita. Ao manter em sua comitiva mais íntima uma conhecida bruxa — uma bruxa com poder de vida e morte sobre os homens, assim como o poder mais comum de destruir plantações, ressecar gado e causar cegueira -, Carlos dava evidência do fato de que vendera a própria alma ao diabo e, assim, iria “arder no inferno para sempre!”, como o panfleto animadamente concluía.

— Presumo que seja você — Balmerino disse. — Embora eu lhe assegure, minha cara, o retrato não lhe faz justiça.

— Muito interessante — eu disse. Devolvi o maço de folhas para lorde Balmerino, contendo a vontade de limpar a mão na saia. Sentia-me levemente enjoada, mas fiz o melhor que pude para sorrir para Balmerino. Ele olhou-me atentamente, depois sacudiu meu cotovelo com um aperto tranqüilizador.

— Não se perturbe com isso, minha querida — ele disse. — Quando Sua Majestade tiver reconquistado o trono, toda essa bobagem será logo esquecida. O vilão de ontem é o herói de amanhã aos olhos do populacho; já vi isso muitas vezes.

— Plus ça change, plus c'est Ia même chose — murmurei. E se Sua Majestade não recuperar o trono...

— E se por infelicidade nossos esforços não forem bem-sucedidos — Balmerino disse, fazendo eco aos meus pensamentos -, o que os cartazes dizem será o menor de nossos problemas.

— Engarde. — Com a abertura formal em francês, Dougal colocou-se na posição clássica de duelo, de lado em relação ao adversário, o braço da espada curvado com a lâmina pronta, o braço de apoio erguido num arco gracioso, a mão pendendo do pulso numa demonstração clara de que não havia nenhuma adaga de reserva.

A lâmina de Jamie cruzou-se com a de Dougal, o metal tocando-se com um sussurro.

—Je suis prest. — Jamie olhou-me e pude ver o lampejo de humor atravessar seu rosto. A resposta de praxe do duelista era o próprio lema de seu clã. Je suis prest. — Estou pronto.

Por um instante, achei que talvez ele não estivesse e soltei um gemido involuntário quando a espada de Dougal brilhou com uma repentina estocada. Mas Jamie vira o início do movimento e, quando a lâmina atravessou o local onde ele estivera, ele já se deslocara.

Em seguida um rápido toque da lâmina e um contragolpe, que fez com que as lâminas rangessem ao longo de sua extensão. As duas espadas mantiveram-se unidas uma à outra na altura do punho apenas por um segundo, depois os espadachins soltaram-se, deram um passo para trás, andaram em círculo e retornaram ao ataque.

Com uma colisão e um toque, uma parada e uma estocada em tierce, Jamie ficou a um triz do quadril de Dougal, que habilidosamente deu uma guinada para o lado com um fulgor de kilt verde. Uma parada, uma esquivada e um rápido toque para cima que afastou a espada adversária para o lado, e Dougal deu um passo para frente, forçando Jamie a recuar.

Eu podia ver dom Francisco, de pé do outro lado do pátio com Carlos, Sheridan, o velho Tullibardine e algumas outras pessoas. Um ligeiro sorriso curvava os lábios do espanhol sob um bigode ralo e encerado, mas eu não sabia dizer se era de admiração pelos lutadores ou apenas uma variação de sua expressão normalmente presunçosa. Colum não estava em nenhum lugar à vista. Não me surpreendi; fora sua relutância normal em aparecer em público, devia estar exausto de sua viagem a Edimburgo. Ambos os espadachins brilhantes, e ambos canhotos, tio e sobrinho ofereciam uma hábil exibição — um espetáculo ainda mais impressionante pelo fato de que lutavam de acordo com as regras mais exatas do duelo francês, mas sem usar a espada pequena semelhante ao florete que fazia parte do costume de um cavalheiro nem o sabre de um soldado. Em vez disso, ambos brandiam a espada de folha larga das Highlands, cada qual de um metro de aço temperado, com uma lâmina chata que podia rachar a cabeça de um homem do topo ao pescoço. Manejavam as armas enormes com uma graciosidade e uma ironia que não poderiam ser imitadas por homens de menor porte.

Vi Carlos sussurrar ao ouvido de dom Francisco e o espanhol balançar a cabeça, sem jamais tirar os olhos dos lampejos e estrépitos do confronto no pátio gramado. Compatíveis no tamanho e na agilidade, Jamie e seu tio davam a nítida impressão de pretenderem se matar. Dougal fora o instrutor de Jamie na arte da esgrima e já haviam lutado muitas vezes costas contra costas e ombro a ombro; cada um conhecia as sutilezas do estilo do outro tão bem quanto as suas próprias — ou ao menos assim eu esperava.

Dougal pressionou sua vantagem com uma estocada dupla, forçando Jamie a recuar na direção da beira do pátio. Jamie deu um passo rápido para o lado, tirando o corpo fora, afastou a espada de Dougal com um toque, em seguida contra-atacou na direção oposta, com uma velocidade que fez a lâmina de sua espada perfurar o tecido da manga direita de Dougal. Ouviu-se um barulho rascante de tecido rasgado e uma tira de linho branco soltou-se, flutuando na brisa.

— Ah, belo golpe, senhor! — Virei-me para ver quem falara e deparei-me com lorde Kilmarnock parado junto ao meu ombro. Um homem sério, de rosto inexpressivo, com trinta e poucos anos, ele e seu filho mais novo Johnny também estavam residindo na ala de hóspedes de Holyrood.

O filho raramente se afastava de seu pai e eu olhei em volta à sua procura. Não tive que procurar muito longe; ele estava de pé do outro lado do pai, a boca ligeiramente aberta, observando a luta. Meu olhar captou um leve movimento do outro lado da pilastra: Fergus, os olhos negros fixos em Johnny, sem piscar. Fechei a cara e olhei-o ameaçadoramente.

Johnny, um pouco arrogante por ser o herdeiro de Kilmarnock, e ainda mais arrogante pelo seu privilégio de ir para a guerra com seu pai com a idade de doze anos, tendia a querer mandar nos outros garotos. Como é próprio dos meninos, a maioria ou evitava Johnny ou esperava o momento propício, quando ele se afastasse da sombra protetora do pai.

Fergus definitivamente recaía na segunda categoria. Ofendendo-se com uma observação depreciativa de Johnny sobre “chefes de gorro”, que ele — com toda a razão — interpretara como um insulto a Jamie, Fergus fora forçosamente impedido de atacar Johnny no jardim de pedras alguns dias antes. Jamie aplicara um rápido castigo físico e depois explicara a Fergus que, embora a lealdade fosse uma virtude admirável e altamente valorizada por quem a recebia, a burrice não era.

— O garoto é dois anos mais velho do que você e bem mais forte – ele dissera, sacudindo Fergus delicadamente pelo ombro. — Acha que vai me ajudar machucando-se numa briga? Há ocasiões em que se deve lutar sem medir as conseqüências, mas há outras em que se deve morder a língua e esperar o momento certo. Ne pétez plus haut que votre cul, ouviu?

Fergus assentiu, limpando o rosto molhado de lágrimas com a ponta da camisa, mas eu tinha minhas dúvidas se as palavras de Jamie haviam realmente calado fundo em Fergus. Eu não gostava do olhar especulativo que eu via agora naqueles grandes olhos negros e pensei que, se Johnny fosse um pouco mais inteligente, ficaria entre mim e seu pai.

Jamie dobrou ligeiramente um dos joelhos e deu um golpe cruel para cima, fazendo a lâmina de sua espada passar zunindo pela orelha de Dougal. O MacKenzie deu um salto para trás, momentaneamente surpreso, depois riu com um lampejo de dentes brancos e bateu a espada chata no topo da cabeça de Jamie, com um ruído oco e ressonante.

Ouvi o som de aplausos vindo do outro lado da praça. A luta estava se degenerando de um elegante duelo francês para uma briga escocesa, e os espectadores divertiam-se imensamente.

Lorde Kilmarnock, também ouvindo os aplausos, olhou para o outro lado da praça e fez uma careta de desaprovação.

— Os conselheiros de Sua Alteza foram convocados para conhecer o espanhol — observou sarcasticamente. — O'Sullivan e o velho almofadinha Tullibardine. Ele se aconselha com lorde Elcho? Balmerino, Lochiel ou mesmo minha humilde pessoa?

Essa era sem dúvida uma pergunta de retórica e eu me contentei com um leve murmúrio de simpatia, mantendo os olhos nos lutadores. O estrépito de aço contra aço reverberava nas pedras, quase abafando as palavras de Kilmarnock. Uma vez iniciada, ele parecia ser incapaz de conter sua amargura.

— Não, claro que não! — disse. – O’Sullivan e O'Brien e o resto dos irlandeses; eles não estão arriscando nada! Se o pior vier a acontecer, podem alegar imunidade em juízo, em função de sua nacionalidade. Mas nós... nós que estamos arriscando propriedade, honra... a própria vida. Nós somos ignorados e tratados como soldados comuns. Dei bom-dia a Sua Alteza ontem e ele passou voando por mim, o nariz empinado, como se eu tivesse cometido uma violação de etiqueta por me dirigir assim a ele.

Kilmarnock estava obviamente furioso e com boa razão. Ignorando os homens que ele havia cortejado e seduzido a fornecer os soldados e o dinheiro para sua aventura, Carlos em seguida os rejeitara, voltando-se para o conforto de seus antigos conselheiros do continente — a maioria dos quais considerava a Escócia como uma região desolada e inóspita, e seus habitantes pouco mais do que selvagens.

Ouviu-se uma exclamação de surpresa de Dougal e uma sonora risada de Jamie. A manga esquerda de Dougal pendurava-se do ombro, a carne sob ela morena e lisa, sem a mácula de um arranhão ou de uma gota de sangue.

— Vou pagar na mesma moeda, menino — Dougal disse, rindo. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto.

— É mesmo, tio? — Jamie disse, arquejante. — Com o quê? — Um lampejo de metal, estimado com precisão, e a bolsa do kilt de Dougal voou, tilintando, pelas pedras, arrancada do seu cinto.

Notei um movimento com o canto do olho e virei o rosto repentinamente.

— Fergus! — eu disse.

Kilmarnock virou-se na direção em que eu estava olhando e viu Fergus. O garoto segurava um pedaço de pau em uma das mãos, com uma casualidade tão fingida que chegava a ser ridícula, se não fosse pela ameaça implícita.

— Não se preocupe, milady Broch Tuarach — disse lorde Kilmarnock, após uma rápida olhadela. — Meu filho sabe se defender honrosamente, se a ocasião exigir. — Sorriu indulgentemente para Johnny, voltando-se em seguida novamente para os duelistas. Virei-me também, mas mantive um ouvido atento na direção de Johnny. Não é que eu achasse que Fergus não tivesse noção de honra; eu apenas tinha a impressão de que essa noção divergia profundamente da concepção dessa virtude que lorde Kilmarnock possuía.

— Gu leoir! — Ao grito de Dougal, a luta parou bruscamente. Suando copiosamente, os dois espadachins agradeceram com uma mesura os aplausos do grupo real e deram um passo à frente para aceitar as congratulações e serem apresentados a dom Francisco.

— Milorde! — gritou uma voz aguda dos pilares. — Por favor, le parabolal Jamie virou-se, franzindo a testa com a interrupção, mas depois deu de ombros, sorriu e voltou para o centro do pátio. Le parábola era o nome que Fergus dera a um determinado truque.

Com uma rápida reverência a Sua Alteza, Jamie pegou a espada larga com todo o cuidado pela ponta da lâmina, inclinou-se ligeiramente e, com um tremendo impulso, lançou a arma no ar, girando direto para cima. Todos os olhos se fixaram na espada provida de guarda-mão, a lâmina temperada brilhando ao sol conforme ela virava e virava sobre si mesma, com tal inércia que pareceu pairar no ar por um instante antes de mergulhar em direção ao solo.

A essência do truque, é claro, era arremessar a arma de modo que, ao cair, a ponta da lâmina se enterrasse no chão. O refinamento de Jamie era postar-se direto sob o arco de descida, dando um passo para trás no último instante para não virar carne no espeto.

A espada enterrou-se no chão a seus pés, seguindo-se um “ah” coletivo dos espectadores. Somente quando Jamie inclinou-se para retirar a espada de sua bainha de grama foi que eu notei que havia dois espectadores a menos na platéia.

Um, o Senhor de Kilmarnock, de doze anos, jazia de cara no chão na beira do gramado, o crescente galo em sua cabeça já evidente em meio aos cabelos castanhos, lisos e soltos. O segundo não era visto em nenhum lugar, mas ouvi um leve murmúrio das sombras atrás de mim.

— Ne pétez plus haut que votre cul — disse a voz, com grande satisfação. Não peide mais alto que seu eu.

; O tempo estava extraordinariamente quente para novembro e as nuvens onipresentes haviam se separado, permitindo que um fugidio sol de outono brilhasse brevemente sobre o tom cinzento de Edimburgo. Eu aproveitara o calor temporário para ficar ao ar livre, ainda que por pouco tempo, e estava me arrastando de joelhos pelo jardim de pedras que havia atrás de Holyrood, para grande divertimento de vários escoceses espalhados por ali, desfrutando o sol a seu próprio modo, com uma jarra de uísque caseiro.

— Está caçando burras, madame? — gritou um dos homens.

— Não, devem ser fadas, com certeza, não lagartas — pilheriou o outro.

— É mais fácil vocês encontrarem fadas nessa jarra do que eu sob as pedras — retruquei.

O homem ergueu a jarra de uísque, fechou um dos olhos e espreitou de forma teatral as profundezas do recipiente.

— Sim, bem, desde que não haja lagartas em minha jarra — ele respondeu, tomando um grande gole.

De fato, o que eu estava caçando faria tão pouco — ou tanto — sentido para eles quanto lagartas, refleti, afastando uma pedra alguns centímetros para o lado para expor o líquen marrom-alaranjado em sua superfície. Uma delicada raspagem com um pequeno canivete e vários flocos do estranho simbionte caiu na palma de minha mão, sendo transferidos com o devido cuidado para a barata latinha de rapé que guardava o tesouro penosamente acumulado.

Algo da atitude relativamente cosmopolita de Edimburgo havia se entranhado nos escoceses das Highlands em visita; enquanto nos remotos vilarejos das montanhas tal comportamento teria feito com que eu fosse vista com desconfiança, se não franca hostilidade, aqui parecia não mais do que uma excentricidade inofensiva. Embora os montanheses me tratassem com grande respeito, senti-me aliviada ao constatar que não havia nenhum medo misturado a esse sentimento.

Até minha origem inglesa era esquecida, quando ficavam sabendo quem era meu marido. Provavelmente eu jamais iria saber mais do que Jamie me contara sobre suas façanhas na Batalha de Prestonpans, mas o que quer que tenha sido havia impressionado enormemente os escoceses, e “Jamie, o Ruivo” arrancava gritos e saudações toda vez que se aventurava fora de Holyrood.

De fato, um grito dos homens próximos chamou minha atenção neste ponto e eu ergui os olhos para ver o próprio “Jamie, o Ruivo” caminhando pelo gramado, acenando distraidamente para os homens enquanto examinava com atenção os aglomerados de rochas atrás do palácio.

Seu rosto iluminou-se ao me ver e ele atravessou o gramado até onde eu estava ajoelhada no jardim de pedras.

— Aí está você — ele disse. — Pode vir comigo por um instante? E traga sua cestinha, se quiser.

Fiquei de pé com certa dificuldade, batendo no meu vestido, na altura dos joelhos, para tirar a grama seca, e joguei o canivete dentro da cesta.

— Está bem. Aonde vamos?

— Colum mandou um recado dizendo que quer conversar conosco. Com nós dois juntos.

— Onde? — perguntei, alongando os passos para acompanhar as longas passadas de Jamie pelo caminho de descida.

— A igreja no Canongate.

Isso era interessante. O que quer que Colum quisesse nos dizer, ele obviamente não queria que o fato de ter conversado conosco em particular fosse conhecido em Holyrood.

Nem Jamie; daí a cesta. Passando de braços dados pelo portão, minha cesta fornecia uma evidente desculpa para nos aventurarmos pela Royal Mile, quer fosse para trazer compras para casa, quer para distribuir remédios aos homens e suas famílias que estavam aquartelados nos becos e aléias de Edimburgo.

Edimburgo subia por encostas íngremes a partir de sua única rua principal. Holyrood assentava-se dignamente no sopé, a abóbada rangente da abadia ao lado conferindo um ar espúrio de piedosa segurança. Ele ignorava altivamente a presença hostil do Castelo de Edimburgo, empoleirado no alto da colina rochosa acima da cidade. Entre os dois castelos, a Royal Mile subia a um ângulo aproximado de quarenta e cinco graus. Arfando, afogueada, ao lado de Jamie, perguntei-me como Colum MacKenzie conseguira cobrir os quatrocentos metros de subida de calçamento de pedras do palácio à igreja.

Encontramos Colum no pátio da igreja, sentado em um banco de pedra onde o sol do fim de tarde podia aquecer suas costas. Sua bengala de abrunheiro jazia no banco a seu lado e as pernas curtas, arqueadas, balançavam-se a alguns centímetros do chão. Os ombros curvados e a cabeça abaixada pensativamente, a distância ele parecia um gnomo, um habitante natural deste jardim de pedras feito pelo homem, com suas pedras inclinadas e liquens rastejantes. Avistei uma espécie de excelente qualidade em uma reentrância na rocha curtida pelo tempo, mas achei que não devíamos parar.

A grama abafava o ruído dos nossos passos, mas Colum ergueu a cabeça enquanto ainda estávamos a uma certa distância. Não havia nada errado com seus sentidos, ao menos.

A sombra sob uma tília próxima moveu-se ligeiramente à nossa aproximação. Não havia nada de errado com os sentidos de Angus Mhor, tampouco. Satisfeito com nossa identidade, o enorme criado retomou sua guarda silenciosa, tornando-se novamente parte da paisagem.

Colum cumprimentou-nos com um sinal da cabeça e indicou o lugar a seu lado para que nos sentássemos. De perto, não havia nenhuma sugestão de um gnomo, apesar de seu corpo deformado. Cara a cara, via-se apenas o homem.

Jamie achou um lugar para mim numa laje tumular próxima, antes de aceitar o local indicado ao lado de Colum. O mármore era surpreendentemente frio, mesmo através de minhas saias espessas, e remexi-me um pouco, o relevo do crânio e dos ossos cruzados esculpidos na lápide causando uma sensação desconfortável sob mim. Vi o epitáfio inscrito abaixo e sorri:

Aqui jaz Martin Elginbrod.Tenha piedade de minha alma, Senhor Deus, como eu teria se fosse o Senhor Deus e o Senhor fosse Martin Elginbrod.

Jamie ergueu uma das sobrancelhas para mim em sinal de aviso, depois se voltou para Colum.

— Pediu para nos ver, tio?

— Tenho uma pergunta para você, Jamie Fraser — Colum disse, sem preâmbulos. — Você me considera seu parente?

Jamie ficou em silêncio por um instante, analisando o rosto do tio. Em seguida, sorriu debilmente.

— O senhor tem os olhos de minha mãe — ele disse. — Devo negar isso?

Colum pareceu surpreso por um instante. Seus olhos tinham o cinza límpido e aveludado da asa de um pombo, orlado com espessas pestanas negras. Apesar de toda a sua beleza, podiam brilhar com a frieza do aço e me perguntei, não pela primeira vez, como teria sido a mãe de Jamie.

— Lembra-se de sua mãe? Você era apenas um garotinho quando ela morreu.

A boca de Jamie contorceu-se ligeiramente diante dessas palavras, mas ele respondeu com toda a calma.

— Tinha idade suficiente. Quanto a isso, a casa de meu pai possui um espelho; dizem que eu me pareço um pouco com ela.

Colum deu uma risada curta.

— Mais do que um pouco. — Olhou com atenção para Jamie, os olhos ligeiramente apertados contra o sol brilhante. — Ah, sim, rapaz; você é filho de Ellen, não resta dúvida. Para começar, esses cabelos... — Gesticulou vagamente indicando os cabelos de Jamie, reluzindo castanho-avermelhados e âmbar, cobre e cinábrio, uma massa espessa, ondeada, com mil tons de vermelho e ouro. — ...E essa boca. — A própria boca de Colum ergueu-se no canto, como em relutantes reminiscências. — Larga como a de uma jarra noturna, eu costumava caçoar. Você poderia pegar insetos como um sapo, eu lhe dizia, se você tivesse uma língua pegajosa.

Tomado de surpresa, Jamie riu.

— Willie me disse isso uma vez — ele disse, e em seguida os lábios cheios se trancaram; ele raramente falava de seu falecido irmão mais velho e nunca, eu imaginava, mencionara Willie a Colum antes.

Se Colum notou o deslize, não deu nenhum sinal disso.

— Escrevi para ela na ocasião — ele disse, olhando distraidamente para uma das lápides próximas. — Quando seu irmão e o bebê morreram de varíola. Foi a primeira vez, desde que ela deixara Leoch.

— Desde que ela se casara com meu pai, você quer dizer. Colum balançou a cabeça devagar, os olhos ainda distantes.

— Sim. Ela era mais velha do que eu, sabe, uns dois anos; mais ou menos como sua irmã e você. — Os olhos cinza e fundos giraram de volta e fixaram-se em Jamie.

— Nunca conheci a sua irmã. Vocês dois eram muito ligados um ao outro?

Jamie não disse nada, mas balançou a cabeça de leve, analisando seu tio atentamente, como se procurasse a resposta a um enigma no rosto desgastado diante dele.

Colum balançou a cabeça, também.

— Era assim entre Ellen e mim. Eu era doente e ela sempre cuidava de mim. Lembro-me do sol brilhando através dos seus cabelos e ela me contando histórias enquanto eu estava deitado na cama. Mesmo mais tarde -os lábios cinzelados ergueram-se num leve sorriso -, quando minhas per nas começaram a ceder; ela ia e vinha, andava por Leoch inteira, e parava toda manhã e toda noite no meu quarto, para me contar quem ela vira e o que disseram. Conversávamos, sobre os arrendatários e os sublocatários e como as coisas deviam ser feitas. Eu era casado na época, mas Letitia não se preocupava com essas coisas e não tinha interesse. — Abanou a mão, descartando sua mulher.

— Conversávamos, às vezes com Dougal, às vezes sozinhos, sobre a melhor maneira de preservar as riquezas do clã; como a paz deveria ser mantida entre as famílias, que alianças poderiam ser feitas com outros clãs, como administrar as terras e a madeira... E então ela foi embora — ele disse bruscamente, fitando as mãos largas dobradas sobre o joelho. — Sem nenhum pedido de licença ou palavra de despedida. Ela simplesmente foi embora. E eu tinha notícias dela de vez em quando por outras pessoas, mas dela mesma... nada.

— E ela não respondeu à sua carta? — perguntei delicadamente, não querendo me intrometer. Ele sacudiu a cabeça, ainda olhando para baixo.

— Ela estava doente; perdera uma criança e tinha varíola. E talvez pretendesse escrever mais tarde; é uma tarefa fácil de adiar. — Sorriu brevemente, sem humor, e em seguida seu rosto relaxou numa expressão melancólica. — Mas, no Natal, ela estava morta.

Olhou direto para Jamie, que o fitou sem desviar os olhos.

— Fiquei um pouco surpreso, portanto, quando seu pai escreveu para me dizer que estava levando você para Dougal e queria que depois você ficasse comigo em Leoch para sua educação.

— Foi acordado assim, quando se casaram —Jamie respondeu. — Que eu deveria ficar com Dougal como pai adotivo e depois vir morar com você por algum tempo.

Os galhinhos secos de um larício farfalharam com um sopro do vento, e ele e Colum arquearam os ombros contra o frio repentino, a semelhança familiar ampliada pela similaridade do gesto.

Colum viu meu sorriso diante da semelhança entre eles e um canto de sua boca torceu-se em resposta.

— Ah, sim — ele disse para Jamie. — Mas os acordos só valem pelo que valem os homens que o fizeram, nada mais. E eu não conhecia seu pai na ocasião.

Abriu a boca para continuar, mas achou melhor reconsiderar o que estivera prestes a dizer. O silêncio do cemitério da igreja fluiu de volta para o espaço que haviam criado com sua conversa, preenchendo a lacuna como se nenhuma palavra jamais tivesse sido pronunciada.

Foi Jamie, finalmente, quem quebrou o silêncio outra vez.

— O que achava de meu pai? — perguntou, e percebi em seu tom de voz aquela curiosidade de uma criança que perdeu os pais muito cedo, procurando pistas da identidade dessas pessoas conhecidas apenas do ponto de vista restrito de uma criança. Compreendi o impulso; o pouco que eu sabia de meus próprios pais veio quase inteiramente das respostas breves e insatisfatórias de tio Lamb às minhas perguntas, ele não era um homem afeito a análise de caráter.

Colum, ao contrário, era.

— Como ele era, você quer dizer? — Analisou seu sobrinho atentamente, depois soltou a respiração com um pequeno ronco, achando graça.

— Olhe-se no espelho, rapaz — ele disse, um sorriso quase rancoroso pairando em seu rosto. — Se é o rosto de sua mãe que você vê, é o seu pai olhando para você com aqueles malditos olhos de gato dos Fraser. — Ele esticou-se e mudou de posição, ajeitando os ossos no banco de pedra coberto de líquen. Seus lábios estavam cerrados com força, por hábito, contra qualquer exclamação de desconforto, e pude compreender o que acarretara aqueles sulcos profundos dos dois lados do nariz e da boca.

— Para responder a você, entretanto — ele continuou, outra vez mais confortavelmente instalado —, eu não gostava muito do sujeito, nem ele de mim, mas logo reconheci nele um homem honrado. — Parou, depois disse, com muita brandura. — Reconheço o mesmo em você, Jamie MacKenzie Fraser.

A expressão de Jamie não se alterou, mas suas pálpebras adejaram levemente; somente alguém que o conhecesse tão bem quanto eu — ou fosse tão observador quanto Colum — teria notado.

Colum soltou a respiração num longo suspiro.

— Portanto, rapaz, foi por isso que eu quis falar com você. Devo decidir, sabe, se os MacKenzie de Leoch ficam do lado do rei Jaime ou do rei Jorge. — Sorriu melancolicamente. — É um caso, eu acho, do diabo que você conhece ou do diabo que não conhece, mas é uma escolha que eu tenho que fazer.

— Dougal... — Jamie começou, mas seu tio interrompeu-o com um movimento brusco da mão.

— Sim, eu sei o que Dougal pensa. Ele tem me importunado com isso nos últimos dois anos — ele disse com impaciência. — Mas eu sou o MacKenzie de Leoch e cabe a mim decidir. Dougal obedecerá ao que eu disser. Queria saber o que você me aconselharia a fazer, em nome do clã cujo sangue corre em suas veias.

Jamie ergueu os olhos, azul-escuros e impenetráveis, protegidos contra o sol da tarde que iluminava seu rosto.

— Eu estou aqui, e meus homens comigo — ele disse. — Minha escolha é evidente, não?

Colum remexeu-se de novo em sua posição, a cabeça inclinada atentamente para seu sobrinho, como se quisesse captar quaisquer nuances de voz ou expressão que pudesse lhe dar uma pista.

— É mesmo? — ele perguntou. — Os homens empenham sua fidelidade por inúmeras razões, rapaz, e poucas têm a ver com as razões que alegam em voz alta. Eu conversei com Lochiel, Clanranald, Angus e Alex MacDonald de Scotus. Pensa que estão aqui apenas porque acham que Jaime Stuart é seu rei legítimo? Agora eu queria conversar com você... e ouvir a verdade, em nome da honra de seu pai.

Vendo Jamie hesitar, Colum continuou, ainda observando atentamente o sobrinho.

— Não pergunto por mim mesmo; se você tem olhos, pode ver que a questão não vai me preocupar por muito tempo. Mas por Hamish, o garoto é seu primo, lembre-se. Se deverá haver um clã para ele liderar, quando atingir a idade... então, tenho que fazer a escolha certa, agora.

Parou de falar e permaneceu imóvel, a cautela habitual em suas feições agora abandonada, os olhos cinza abertos e atentos.

Jamie permaneceu tão imóvel quanto Colum, paralisado como o anjo de mármore na sepultura atrás dele. Eu conhecia o dilema que o preocupava, embora nenhum sinal transparecesse no rosto austero e cinzelado. Era o mesmo que enfrentáramos antes, escolhendo vir com os homens de Lallybroch. A revolta de Carlos equilibrava-se no fio de uma faca; a adesão de um clã das dimensões dos MacKenzie de Leoch poderia encorajar outros a se unirem ao precipitado Jovem Pretendente, e levá-lo à vitória. Mas se ainda assim terminasse em fracasso, os MacKenzie de Leoch poderiam muito bem deixar de existir.

Finalmente, Jamie virou a cabeça deliberadamente e olhou para mim, os olhos azuis fitando os meus sem vacilar. Você tem participação nisso, seu olhar dizia. O que devo fazer?

Eu podia sentir os olhos de Colum sobre mim, também, e senti mais do que vi o arqueamento das sobrancelhas espessas e escuras num ar de interrogação. Mas o que eu via com os olhos da mente era o jovem Hamish, um garoto ruivo de dez anos de idade que se parecia tanto com Jamie que poderia ser seu filho, em vez de seu primo. E o que a vida poderia ser para ele e para o resto do clã, se os MacKenzie de Leoch apoiassem Carlos em Culloden. Os homens de Lallybroch tinham Jamie para salvá-los do massacre final, se a revolta chegasse a esse ponto. Os homens de Leoch não teriam. E, no entanto, a escolha não podia ser minha. Encolhi os ombros e abaixei a cabeça. Jamie

— Volte para casa em Leoch, tio — ele disse. — E mantenha seus homens lá. Colum permaneceu imóvel, em silêncio, por um longo instante, fitando-me. Finalmente, sua boca curvou-se para cima, mas a expressão do seu rosto não era exatamente a de um sorriso.

— Eu quase detive Ned Gowan, quando ele partiu para impedir que você fosse queimada na fogueira — ele disse para mim. — Acho que estou feliz por não tê-lo feito.

— Obrigada — eu disse, no mesmo tom.

Ele suspirou, esfregando a nuca com a mão calosa, como se ela doesse sob o peso da liderança.

— Muito bem, então. Vou me reunir com Sua Alteza pela manhã e comunicar-lhe minha decisão. — A mão desceu, repousando, inerte, no banco de pedra, entre ele e seu sobrinho. — Obrigado, Jamie, por seu conselho. — Hesitou, depois acrescentou: — Que Deus os acompanhe.

Jamie inclinou-se para frente e colocou a mão sobre a de Colum. Ele sorriu com o sorriso meigo e largo de sua mãe e disse:

— E a você também, mo caraidh.

A Royal Mile estava movimentada, apinhada de gente que aproveitava as poucas horas de calor. Caminhamos em silêncio em meio à multidão, minha mão enfiada na curva do cotovelo de Jamie. Finalmente, ele sacudiu a cabeça, murmurando algo para si mesmo em gaélico.

— Você agiu certo — eu lhe disse, respondendo ao pensamento, não às palavras. — Eu teria feito o mesmo. O que quer que aconteça, ao menos os MacKenzie estarão a salvo.

— Sim, talvez. — Ele balançou a cabeça em retribuição ao cumprimento de um oficial que passou por nós, acotovelando-se pela multidão que cercava o Worlds End. — Mas e quanto aos demais, os MacDonald, os MacGillivray e os outros que vieram? Serão destruídos agora, quando talvez não o fossem, se eu tivesse a coragem de dizer a Colum para se unir a eles? — Sacudiu a cabeça, o rosto anuviado. — Não há como saber, não é, Sassenach?

— Não, não há — eu disse, apertando seu braço. — Não sabemos o suficiente. Ou talvez saibamos demais. Mas não podemos fazer nada a esse respeito, não é?

Ele me devolveu um breve sorriso e apertou minha mão contra seu corpo.

— Não, Sassenach. Acho que não podemos. E agora já está feito e nada pode mudar isso, portanto não adianta ficar se preocupando. Os MacKenzie ficarão fora disso.

A sentinela no portão de Holyrood era um MacDonald, um dos homens de Glengarry. Ele reconheceu Jamie e, com um ligeiro movimento da cabeça, nos deixou entrar no pátio, mal erguendo os olhos, empenhado em catar piolhos do corpo. O tempo quente tornava os parasitas ainda mais ativos e quando deixavam seus confortáveis ninhos nos pêlos do púbis e das axilas, em geral podiam ser surpreendidos atravessando o perigoso terreno da camisa ou do tartã e removido do corpo de seu anfitrião

Jamie disse-lhe algo em gaélico, sorrindo. O homem riu, pegou algo de sua camisa e lançou-o em cima de Jamie, que fingiu pegá-lo, examinar com ar grave a minúscula criatura imaginária, e depois, com uma piscadela para mim, jogá-la dentro da boca.

— Ei, como vai a cabeça de seu filho, lorde Kilmarnock? — perguntei educadamente quando entramos juntos na pista de dança da Grande Galeria de Holyrood. Eu não me importava muito, mas achei que, já que o assunto não poderia ser totalmente evitado, talvez fosse melhor trazè-lo à baila em um lugar onde seria pouco provável que a hostilidade fosse demonstrada abertamente.

A Galeria atendia ao meu critério, pensei. O longo salão, de teto alto, com duas enormes lareiras e imponentes janelas, tinha sido o cenário de freqüentes bailes e festas desde a entrada triunfal de Carlos em Edimburgo em setembro. Agora, apinhado com as personalidades mais ilustres da alta classe de Edimburgo, todas ansiosas para prestar homenagens ao seu príncipe — Já que parecia que ele de fato poderia sagrar-se vitorioso -, o aposento decididamente resplandecia. Dom Francisco, o convidado de honra, estava de pé no extremo oposto do salão com Carlos, vestido ao deprimente estilo espanhol, com pantalonas escuras e fartas, casaco sem forma e até mesmo um pequeno rufo — uma golinha de tufos engomados — que parecia provocar consideráveis risos reprimidos entre os indivíduos mais jovens e mais bem-vestidos.

— Ah, bastante bem, sra. Fraser — respondeu Kilmarnock, imperturbável. — Um galo na cabeça não incomoda um garoto dessa idade por muito tempo; mas o seu orgulho pode demorar um pouco mais para se recuperar — ele acrescentou, com uma repentina torcida bem-humorada de sua larga boca.

Sorri-lhe, aliviada ao ver sua expressão.

— Então, não está zangado?

Ele sacudiu a cabeça, olhando para baixo para certificar-se de que seus pés não iriam pisar nas minhas saias ondulantes.

— Tenho tentado ensinar a John tudo que ele deveria saber como herdeiro de Kürnarnock. Parece que fracassei redondamente em ensinar-lhe humildade; talvez seu empregado tenha tido mais sucesso.

— Espero que não tenha lhe dado uma surra depois — eu disse distrai-damente.

— Como?

— Nada — eu disse, enrubescendo. — Olhe, não é Lochiel ali? Pensei que ele estivesse doente.

Dançar exigia quase todo o meu fôlego e lorde Kilmarnock não parecia inclinado a conversas, de modo que eu tinha tempo para olhar à volta. Carlos não estava dançando; embora fosse um bom dançarino e as moças de Edimburgo competissem por sua atenção, esta noite ele estava inteiramente empenhado no entretenimento de seu hóspede. Eu vira um pequeno barril com a marca de um produtor português queimada em um dos lados sendo rolado para as cozinhas à tarde e copos do líquido cor de rubi continuavam a surgir como por mágica ao lado da mão esquerda de dom Francisco durante toda a noite.

Cruzamos o caminho de Jamie, impulsionando uma das senhoritas Williams pelos passos da dança. Havia três delas, quase indistinguíveis uma da outra —jovens, de cabelos castanhos, atraentes e todas “terrivelmente interessadas, sr. Fraser, nesta causa nobre”. Elas me cansavam insuportavelmente, mas Jamie, sempre a imagem da paciência, dançava com todas elas, uma por uma, e respondia às mesmas perguntas tolas sem parar.

— Bem, coitadas, para elas é uma oportunidade de sair da rotina — ele explicou amavelmente. — E o pai é um rico comerciante, de modo que Sua Alteza gostaria de angariar as simpatias da família.

A srta. Williams que ele entretinha no momento parecia encantada e eu me perguntei sombriamente até que ponto ele estava se esforçando para angariar simpatias. Em seguida, minha atenção desviou-se, quando Bal-merino passou dançando com a mulher de lorde George Murray. Eu vira os Murray trocarem olhares carinhosos ao se cruzarem, ele com outra das senhoritas Williams, e senti-me ligeiramente envergonhada de estar prestando atenção a quem Jamie tirava para dançar.

Como não era de admirar, Colum não estava no baile. Perguntei-me Se ele tivera a chance de falar com Carlos anteriormente, mas concluí que talvez não; Carlos parecia muito alegre e animado para ter recebido más notícias recentemente.

Em um dos lados da Galeria, avistei duas figuras troncudas, quase idênticas em trajes formais desconfortáveis. Era John Simpson, chefe da Associação dos Fabricantes de Espadas de Glascow, e seu filho, também John Simpson. Tendo chegado no começo da semana para presentear Sua Alteza com uma das magníficas espadas de lâmina larga, com guarda-mão no cabo, pelas quais eram famosos em toda a Escócia, os dois artesãos obviamente haviam sido convidados para o baile desta noite para mostrar a dom Francisco até onde ia o apoio que os Stuart desfrutavam.

Ambos possuíam barbas e cabelos espessos e escuros, ligeiramente entremeados de branco. Os do Simpson pai eram grisalhos, enquanto os do Simpson filho davam a impressão de uma encosta escura de colina com uma orla de neve endurecida ao redor, os fios brancos confinados às têmporas e à parte superior das faces. Enquanto eu observava, o fabricante de espadas cutucou o filho fortemente nas costas e balançou a cabeça significativamente na direção de uma das filhas do comerciante, pairando junto à pista de dança sob a proteção do pai.

Simpson filho lançou um olhar cético a seu pai, mas depois deu de ombros, adiantou-se e ofereceu o braço com uma reverência para a terceira srta. Williams.

Fiquei observando, entretida e fascinada, à medida que eles rodopiavam nos passos da dança, porque Jamie, que fora apresentado aos Simpson antes, dissera-me que Simpson filho era totalmente surdo.

— De tanto martelar na forja, eu imagino — ele dissera, mostrando-me com orgulho a bela espada que ele comprara dos artesãos. — Surdo como uma porta; seu pai é quem conversa, mas o filho vê tudo.

Vi os astutos olhos escuros saltitarem rapidamente pelo assoalho agora, avaliando com precisão a distância de um casal para o seguinte. O jovem fabricante de espadas tinha uma pisada um pouco pesada, mas acompanhava o ritmo da dança muito bem — ao menos tão bem quanto eu. Fechando os olhos, senti a batida da música vibrar pelo assoalho de madeira, dos violoncelos apoiados nele, e presumi que era isso que ele seguia. Depois, abrindo os olhos para não colidir com ninguém, vi o Simpson filho contrair-se com uma falha dissonante de um dos violinos. Talvez ele conseguisse ouvir alguns sons, afinal.

A circulação dos pares de dançarinos levou Kilmarnock e a mim mesma para perto do lugar onde Carlos e dom Francisco estavam, aquecendo as abas de seus casacos diante da lareira enorme e azulejada. Para minha surpresa, Carlos olhou para mim de cara feia por cima do ombro de dom Francisco, fazendo um sinal furtivo com uma das mãos para que eu me afastasse. Vendo o movimento quando nos viramos, Kilmarnock soltou uma pequena risada.

— Então Sua Alteza está com medo de ter que apresentá-la ao espanhol — disse.

— É mesmo? — Olhei para trás por cima do ombro enquanto rodopiávamos, mas Carlos retornara à sua conversa, agitando as mãos com expressivos gestos italianos conforme falava.

— Creio que sim. — Lorde Kilmarnock dançava com habilidade, e eu estava começando a relaxar o suficiente para conseguir falar, sem me preocupar o tempo inteiro em não tropeçar nas minhas saias.

— Viu aquele cartaz tolo que Balmerino estava mostrando a todo mundo? — ele perguntou e, quando balancei afirmativamente a cabeça, ele continuou: — Imagino que Sua Alteza o tenha visto também. E os espanhóis são suficientemente supersticiosos para serem ridiculamente sensíveis a idiotices desse tipo. Nenhuma pessoa de bom senso ou educação poderia levar tal coisa a sério — afirmou-me -, mas sem dúvida Sua Alteza acha melhor não correr o risco. O ouro espanhol vale um considerável sacrifício, afinal — acrescentou. Aparentemente incluindo o sacrifício de seu próprio orgulho; Carlos ainda tratava os nobres escoceses e os chefes de clãs das Highlands como mendigos em sua mesa, embora tivessem ao menos sido convidados para as festividades desta noite, sem dúvida, para impressionar dom Francisco.

— Notou os quadros? — perguntei, querendo mudar de assunto. Havia mais de cem deles ao longo das paredes da Grande Galeria, todos retratos de reis e rainhas. E todos com uma impressionante semelhança.

— Ah, o nariz? — ele disse, um sorriso divertido substituindo a expressão contrariada que tomara conta de seu rosto ao ver Carlos e o espanhol. — Sim, claro. Sabe qual a história desses quadros?

Os retratos, parecia, eram todos obras de um único pintor, Jacob DeWitt, que fora incumbido por Carlos II, após a restauração de sua dinastia, de produzir retratos de todos os ancestrais do rei, desde Robert Bruce em diante.

— Para assegurar a todos a antigüidade de sua linhagem e a absoluta propriedade de sua restauração — Kilmarnock explicou, um ricto amargo em sua boca. — Será que o rei Jaime empreenderá um projeto semelhante quando recuperar o trono?

De qualquer modo, ele continuou, DeWitt pintara furiosamente, terminando um retrato a cada duas semanas a fim de atender a exigência do monarca. A dificuldade, é claro, era que DeWitt não tinha como saber como eram na realidade os ancestrais de Carlos e havia, assim, usado como modelo qualquer pessoa que ele pudesse arrastar para seu estúdio, simplesmente equipando cada retrato com o mesmo nariz proeminente, a fim de garantir uma semelhança familiar.

— Aquele é o próprio rei Carlos — Kilmarnock disse, indicando com a cabeça um retrato de corpo inteiro, resplandecente em veludo vermelho e chapéu de plumas. Lançou um olhar crítico ao Carlos mais jovem, cujo rosto afogueado evidenciava que, por força da hospitalidade, ele andara fazendo companhia a seu hóspede nas doses de bebida.

— Pelo menos tem um nariz melhor — o lorde murmurou, como se falasse consigo mesmo. — A mãe dele era polonesa.

Estava ficando tarde e as velas nos candelabros de prata começavam a tremular e se apagar antes que as boas famílias de Edimburgo tivessem se saciado de vinho e dança. Dom Francisco, provavelmente não tão acostumado como Carlos a beber sem rédeas, balançava a cabeça dentro de seu rufo.

Jamie, tendo, com uma óbvia expressão de alívio, devolvido a última srta. Williams a seu pai para a jornada de volta para casa, veio unir-se a mim num canto onde eu encontrara uma cadeira que me permitiu tirar os sapatos sob o abrigo de minhas saias espraiadas. Esperava não ter que calçá-los outra vez apressadamente.

Jamie sentou-se numa cadeira desocupada ao meu lado, enxugando o rosto brilhante com um grande lenço branco. Estendeu a mão por cima de mim para alcançar uma mesinha onde ainda restavam alguns bolos.

— Estou morto de fome — ele disse. — Dançar dá um apetite terrível e conversar é pior ainda. — Lançou um bolinho inteiro na boca de um só golpe, mastigou-o rápido e pegou outro.

Vi o príncipe Carlos inclinar-se sobre a figura desmoronada do convidado de honra e sacudi-lo pelo ombro, em vão. A cabeça do embaixador espanhol estava caída para trás e sua boca frouxa sob o bigode arriado. Sua Alteza levantou-se, um pouco cambaleante, e olhou ao redor em busca de ajuda, mas Sheridan e Tullibardine, ambos cavalheiros idosos, haviam eles próprios adormecido, apoiando-se amistosamente um no outro como uma dupla de velhos beberrões do vilarejo, vestidos em rendas e veludo.

— Não seria melhor você dar uma mãozinha a Sua Alteza? — sugeri.

— Mmuhm.

Resignado, Jamie engoliu o restante do bolo, mas antes que pudesse se levantar, eu vi o jovem Simpson, que logo percebera a situação, cutucar seu pai nas costelas.

O Simpson pai adiantou-se e inclinou-se cerimoniosamente para o príncipe Carlos e, antes que o príncipe de olhar vidrado pudesse reagir, os fabricantes de espadas já haviam segurado o embaixador espanhol pelos pulsos e tornozelos. Com um impulso de músculos enrijecidos na forja, levantaram-no de sua cadeira e o levaram embora, sacudindo-o delicadamente entre eles como um grande animal abatido numa caça. Desapareceram pela porta no extremo oposto do salão, seguidos de forma instável por Sua Alteza.

Essa saída pouco cerimoniosa assinalou o fim do baile.

Os outros convidados começaram a relaxar e andar de um lado para o outro, as senhoras desaparecendo em uma sala de entrada para pegar seus xales e mantos, os cavalheiros de pé, em pequenos grupos impacientes, reclamando uns com os outros sobre o tempo que as mulheres estavam levando para se aprontarem para partir.

Como estávamos hospedados em Holyrood, saímos pela outra porta, no extremo norte da galeria, atravessando as salas de visitas da manhã e da tarde, até a escadaria principal.

O patamar e o alto vão da escada estavam recobertos de tapeçarias, suas figuras turvas e prateadas à luz de velas. E abaixo delas estava a forma gigantesca de Angus Mhor, sua sombra imensa na parede, tremulando como uma das figuras de tapeçaria conforme se agitavam na corrente de ar.

— Meu senhor está morto — ele disse.

— Sua Alteza disse — Jamie reportou — que talvez tenha sido melhor assim. — Falou com um tom de sarcástica amargura.

— Por causa de Dougal — ele acrescentou, vendo meu espanto e perplexidade diante dessa declaração. — Dougal sempre esteve mais do que inclinado a unir-se a Sua Alteza no campo. Agora que Colum se foi, Dougal é o chefe. E assim os MacKenzie de Leoch marcharão com o exército das Highlands — ele disse calmamente — para a vitória... ou não.

As rugas de tristeza e cansaço marcavam seu rosto profundamente e ele não resistiu quando me aproximei por trás e coloquei as mãos sobre seus ombros largos. Ele emitiu um pequeno som de alívio incoerente quando as pontas dos meus dedos pressionaram com força os músculos da base de seu pescoço e deixou a cabeça pender para frente, descansando nos braços cruzados. Ele estava sentado diante da mesa em nosso quarto e pilhas de cartas e despachos estavam perfeitamente arrumadas à sua volta. Entre os documentos, havia um pequeno caderno de notas, um pouco gasto, encadernado em couro marroquino vermelho. O diário de Colum, que Jamie pegara nos aposentos de seu tio na esperança de que contivesse uma anotação recente confirmando a decisão de Colum de não apoiar a causa jacobita.

— Não que seja provável que isso fizesse Dougal mudar de idéia — ele dissera, melancolicamente folheando as páginas densamente escritas -, mas não há mais nada a tentar.

Na verdade, entretanto, não havia nada escrito no diário de Colum Pelos últimos três dias, exceto por uma pequena entrada, obviamente feita ao retornar do pátio da igreja no dia anterior.

Encontrei-me com o jovem Jamie e sua esposa. Fiz as pazes com Ellen finalmente.

E isso era, é claro, importante — para Colum, para Jamie e, provavelmente, para Ellen —, mas de pouca utilidade para abalar as convicções de Dougal MacKenzie.

Jamie endireitou-se após um instante e virou-se para mim. Seus olhos estavam escuros de preocupação e resignação.

— O que isso significa é que agora nós estamos comprometidos com ele, Claire... com Carlos, quero dizer. Há menos chance do que já houve. Temos que tentar assegurar sua vitória.

Minha boca estava seca de tanto vinho. Umedeci os lábios antes de responder.

— Imagino que sim. Droga! Por que Colum não podia ter esperado um pouco mais? Até ao menos pela manhã, quando poderia ter se encontrado com Carlos?

Jamie exibiu um sorriso enviesado.

— Acho que ele não teve muita escolha nessa questão, Sassenach. Poucos homens podem escolher a hora de sua morte.

— Colum pretendia fazê-lo. — Eu não conseguia decidir se devia contar a Jamie o que se passara entre mim e Colum em nosso primeiro encontro em Holyrood, mas agora já não adiantava guardar os segredos de Colum.

Jamie sacudiu a cabeça, incrédulo, e suspirou, os ombros sucumbindo sob a revelação de que Colum pretendia tirar a própria vida.

— Isso me faz pensar — ele murmurou, em parte consigo mesmo. -Seria um sinal, você acha, Claire?

— Um sinal?

— A morte de Colum agora, antes que pudesse fazer o que pretendia e recusar o pedido de ajuda de Carlos. Seria um sinal de que Carlos está destinado a vencer esta luta?

Lembrei-me da minha última visão de Colum. A morte viera para ele quando estava sentado na cama, um copo de conhaque intocado perto de sua mão. Então, ele a encontrara como desejava, com a mente desanuviada e alerta; sua cabeça caíra para trás, mas seus olhos estavam arregalados, alheios às visões que deixara para trás. Sua boca estava cerrada com força, as costumeiras rugas em sulcos profundos do nariz ao queixo. A dor que era sua companheira constante o acompanhara até onde lhe fora possível.

— Só Deus sabe — eu disse finalmente.

— Sim? — ele disse, a voz outra vez abafada em seus braços. — Sim, bem. Espero que alguém saiba.

 

Ocatarro instalou-se em Edimburgo como a nuvem de chuva fria que encobria a vista do castelo em sua colina. Uma torrente pluvial escorria dia e noite pelas ruas e se as pedras do calçamento estavam temporariamente limpas da imundície e do esgoto, o alívio do mau cheiro era mais do que compensado pelos escarros de expectorações que enlameavam cada quintal e cada beco, além da nuvem sufocante de fumaça das lareiras que ocupava todo aposento da altura da cintura ao teto.

Apesar de frio e desolador como o tempo estava do lado de fora, eu me vi passando um bom período andando pelos terrenos de Holyrood e de Canongate. O rosto encharcado de chuva parecia preferível a pulmões impregnados de fumaça e de ar empestado de germes. Os barulhos de tosses e espirros percorriam o palácio, embora a restrição da presença refinada de Sua Alteza fizesse com que a maioria dos encatarrados cuspisse em lenços imundos ou nas lareiras de azulejos de Delft, em vez de fazê-lo nos lustrosos assoalhos escoceses de carvalho.

A luz cessava cedo nesta época do ano e eu comecei a voltar, do meio da High Street, a fim de chegar a Holyrood antes do anoitecer. Eu não tinha absolutamente nenhum medo de um ataque na escuridão; mesmo que eu ainda não fosse conhecida a essa altura por todas as tropas jacobitas que ocupavam a cidade, o horror dominante ao ar fresco mantinha todos dentro de casa.

Os homens que ainda estavam suficientemente saudáveis para deixar suas casas a trabalho terminavam seus afazeres apressadamente antes de mergulhar com satisfação no santuário da taverna de Jenny Ha. Ali permaneciam, aconchegados e aninhados no ambiente quente e abafado, onde o cheiro de madeira úmida, de corpos não afeitos ao banho, de uísque e cereja quase conseguia sobrepujar a fumaça fétida da lareira.

Meu único temor era o de tropeçar no escuro e quebrar um tornozelo nas pedras escorregadias. A cidade era iluminada apenas pelos lampiões fracos das sentinelas e esses tinham o hábito desconcertante de abrigarem-Se de um vão de porta para outro, aparecendo e desaparecendo como vaga-lumes. E às vezes sumindo completamente por meia hora de cada vez, quando o portador do lampião arremessava-se para dentro do Worlds End no fim de Canongate para um gole salvador de cerveja quente.

Olhei para a fraca claridade acima da igreja de Canongate, estimando quanto tempo restaria até escurecer. Com sorte, eu teria tempo de dar uma passada na farmácia do sr. Haugh. Embora não oferecesse nenhuma das variedades encontradas no empório de Raymond em Paris, o sr. Haugh tinha um bom comércio de castanheiro-da-índia e casca de um tipo de olmo empregado como emoliente, e em geral era capaz de me fornecer menta e uva-espim também. Nesta época do ano, sua principal fonte de renda vinha da venda de bolas de cânfora, considerada um excelente remédio para resfriados, catarro e tuberculose. Se não era mais eficaz do que os remédios modernos para gripes, refleti, não era pior, e ao menos possuía um cheiro saudável e revigorante.

Apesar do predomínio de narizes vermelhos e rostos pálidos, as festas eram realizadas no palácio várias noites por semana enquanto a nobreza de Edimburgo saudava seu príncipe com entusiasmo. Mais duas horas e os lampiões dos criados que acompanhavam os convidados em seu caminho para o baile começariam a tremular na High Street.

Suspirei à idéia de mais um baile, freqüentado por cavalheiros espirran-do, prestando suas homenagens com vozes roucas de muco. Talvez fosse melhor eu acrescentar um pouco de alho à lista; usado num medalhão para perfume em volta do pescoço, acreditava-se, afastava doenças. O que realmente fazia, eu imaginava, era manter os amigos doentes a uma distância segura — igualmente satisfatório, do meu ponto de vista.

A cidade estava ocupada pelas tropas de Carlos, e os ingleses, embora não sitiados, estavam ao menos isolados no castelo acima. Ainda assim, notícias — de duvidosa veracidade — tendiam a vazar em ambas as direções. Segundo o sr. Haugh, o boato mais recente era de que o duque de Cumberland estava reunindo tropas ao sul de Perth, com a intenção de marchar para o norte quase imediatamente. Eu não fazia a menor idéia se isso era verdade; na realidade, duvidava, não me lembrando de nenhuma menção a atividades de Cumberland antes da primavera de 1746, que ainda não chegara. Ainda assim, era impossível ignorar o boato.

A sentinela no portão cumprimentou-me com um sinal da cabeça, tossindo. O som foi reproduzido pelos guardas de serviço nos corredores e patamares. Resistindo ao impulso de balançar minha cesta de alho diante deles como um incensório enquanto eu passava, subi as escadas para a sala de visitas da tarde, onde fui admitida sem reservas.

Encontrei Sua Alteza com Jamie, Aeneas MacDonald, O’Sullivan, o secretário de Sua Alteza e um homem sombrio chamado Francis Townsend, que ultimamente havia caído nas boas graças de Sua Alteza. A maioria espirrava e tinha os narizes vermelhos. Escarradas lambuzavam a lareira diante de seu gracioso consolo. Lancei um olhar penetrante para Jamie, que estava desmoronado, exausto, em sua cadeira, o rosto pálido e desanimado.

Acostumados às minhas incursões à cidade e ansiosos por qualquer informação referente aos movimentos dos ingleses, os homens ouviram-me com grande atenção.

— Estamos imensamente agradecidos por suas informações, sra. Fraser — disse Sua Alteza, com uma reverência cortês e um sorriso. — Por favor, diga-me se existir uma maneira pela qual eu possa recompensá-la por seus generosos préstimos.

— Há, sim — eu disse, aproveitando a oportunidade. — Quero levar meu marido para a cama. Agora.

Os olhos do príncipe arregalaram-se ligeiramente, mas ele logo se recompôs. Não tão contido, Aeneas MacDonald irrompeu num acesso de tosse estranhamente abafada. O rosto branco de Jamie ficou repentinamente vermelho. Ele espirrou e enterrou o rosto em um lenço, os olhos azuis lançando faíscas em minha direção por cima das dobras do linho.

— Ah... seu marido — disse Carlos, recompondo-se galhardamente e enfrentando o desafio. — Hum. — Um leve rubor tingiu suas faces.

— Ele está doente — eu disse, com certa aspereza. — Certamente pode ver isso, não? Quero que ele vá para a cama repousar.

— Ah, repousar — murmurou MacDonald, como se falasse consigo mesmo.

Busquei palavras suficientemente educadas.

— Lamentaria privar Vossa Alteza temporariamente da presença de meu marido, mas se ele não puder descansar o suficiente agora, é provável que não continue a servi-lo por muito mais tempo.

Carlos, recuperado de seu desconforto momentâneo, agora parecia estar achando divertido o evidente embaraço de Jamie.

— Sem dúvida — ele disse, observando Jamie, cujo semblante agora desbotara em uma espécie de palidez matizada. — A contemplação de tal perspectiva, como descrita pela senhora, madame, nos deixaria profundamente aborrecidos. — Inclinou a cabeça em minha direção. — Que seu desejo seja cumprido, madame. Cher James tem licença de não comparecer à nossa presença até estar recuperado. Por favor, leve seu marido para seus aposentos imediatamente e, hã... adote todas as medidas de cura que lhe parecerem... hã... apropriadas. — O canto da boca do príncipe contorceu-Se repentinamente e, tirando um grande lenço do bolso, seguiu o exemplo de Jamie e enterrou a metade inferior do rosto no lenço, tossindo delicadamente.

— É melhor tomar cuidado, Alteza — MacDonald avisou um tanto zombeteiro. — Pode pegar a indisposição de Jamie.

— Pode-se desejar ter metade das queixas do sr. Fraser — murmurou Francis Townsend, sem nenhum esforço para esconder o sorriso irônico que o fazia parecer uma raposa num galinheiro.

Jamie, agora lembrando fortemente um tomate queimado pelo frio levantou-se bruscamente, fez uma reverência para o príncipe com um breve: “Obrigado, Alteza”, e encaminhou-se para a porta, segurando-me pelo braço.

— Solte-me — rosnei, depois que passamos pelos guardas na ante-sala. -Está quebrando meu braço.

— Ótimo — ele murmurou. — Assim que estivermos a sós, vou quebrar seu pescoço. — Mas eu notei o canto torcido de sua boca e percebi que a raiva era apenas de fachada.

Uma vez em nossos aposentos, com a porta bem trancada, puxou-me para ele, recostou-se contra a porta e soltou uma risada, a face pressionada contra o topo da minha cabeça.

— Obrigado, Sassenach — ele disse, ligeiramente ofegante.

— Não está zangado? — perguntei, a voz um pouco abafada no peito de sua camisa. — Não tive a intenção de constrangê-lo.

— Não, não tem importância — ele disse, soltando-me. — Meu Deus, eu não teria me importado nem se você tivesse dito que pretendia me deixar pegando fogo no meio da Grande Galeria, desde que eu pudesse largar Sua Alteza e vir descansar um pouco. Estou morto de cansaço do sujeito e todos os meus músculos estão doendo. — Um repentino acesso de tosse sacudiu-o e ele recostou-se contra a porta outra vez, desta vez para se apoiar.

— Você está bem? — Fiquei na ponta dos pés e coloquei a mão em sua testa. Não fiquei surpresa, mas um pouco alarmada, ao sentir como sua testa estava quente sob a palma de minha mão.

— Você está com febre! — eu disse em tom acusador.

— Sim, bem, todo mundo está com febre, Sassenach — ele disse, um pouco irritado. — Só que uns estão mais quentes do que outros, certo?

— Não tente se esquivar — eu disse, aliviada ao ver que ele ainda estava bastante bem para tentar argumentar. — Tire a roupa. E não diga nada -acrescentei energicamente, vendo o riso que se formava enquanto ele abria a boca para retrucar. — Não tenho absolutamente nenhum plano em relação à sua carcaça doente além de enfiá-la num camisolão de dormir.

— Ah, é? Não acha que o exercício iria me fazer bem? — Caçoou, começando a desamarrar a camisa. — Pensei que você tivesse dito que exercícios eram saudáveis. — Sua risada transformou-se de repente num acesso de tosse rouca que o deixou afogueado e sem respiração. Ele deixou a camisa cair no chão e quase imediatamente começou a tremer de frio.

— Saudáveis demais para você, meu caro. — Enfiei o camisão de lã grossa pela sua cabeça, deixando que se debatesse para vesti-lo, enquanto tirava seu kilt, sapatos e meias. — Santo Deus, seus pés parecem blocos de gelo!

— Você podia... aquecê-los... para mim. — Mas seus dentes rangiam e ele mal conseguia pronunciar as palavras. Assim, não fez nenhum protesto quando eu o conduzi para a cama.

Ele sacudia-se demais para falar quando consegui tirar um tijolo quente do fogo com o auxílio de tenazes, envolvê-lo em uma flanela e enfiá-lo sob as cobertas, junto a seus pés.

Os tremores de frio foram intensos, mas breves, e ele estava sereno outra vez quando coloquei uma panela de água para ferver com um punhado de menta e groselha-preta.

— O que é isso? — ele perguntou, desconfiado, cheirando o ar quando abri outro recipiente de minha cesta. — Não espera que eu beba isso, não é? Tem cheiro de um pato que ficou pendurado tempo demais.

— Quase acertou — eu disse. — É gordura de ganso misturada com cânfora. Vou esfregá-la em seu peito.

— Não! — Puxou as cobertas até o queixo para se proteger.

— Vou, sim — eu disse com firmeza, avançando com determinação. Em meio aos meus esforços, percebi que tínhamos uma platéia. Fergus

estava parado do outro lado da cama, observando os procedimentos com grande fascínio, o nariz escorrendo livremente. Retirei o joelho da barriga de Jamie e estendi-lhe um lenço.

— E o que você está fazendo aqui? — Jamie perguntou, tentando puxar a frente de seu camisolão para baixo outra vez.

Sem parecer desconcertado pelo tom pouco amistoso dessa saudação, Fergus ignorou o lenço oferecido e limpou o nariz na manga da camisa, fitando com arregalada admiração o peito brilhante, largo e musculoso, à mostra.

— O senhor magro me mandou vir buscar um pacote que ele diz que o senhor tem para ele. Todos os escoceses têm tanto pêlo assim no peito, milorde?

— Santo Deus! Esqueci-me completamente dos despachos. Espere, eu mesmo vou levá-los a Cameron. — Jamie começou a tentar sentar-se na cama, um processo que levou seu nariz até bem perto do local de meus recentes esforços.

— Cruzes! — Abanou-se com a aba do camisão, numa tentativa de dissipar o cheiro pungente, depois me olhou fixamente, com ar acusador. — -Como é que eu vou tirar esse fedor de mim? Espera que eu saia na companhia de outras pessoas cheirando a ganso morto, Sassenach?

— Não, não espero — eu disse. — Espero que você fique deitado quietinho na cama, repousando, ou você será um ganso morto. — Eu mesma produzi um olhar furioso de bom tamanho.

— Posso levar o pacote, milorde — Fergus assegurava-lhe.

— Não vai fazer nada disso — eu disse, notando o rosto afogueado e os olhos excessivamente brilhantes do menino. Coloquei a mão em sua testa.

— Não me diga — Jamie disse sarcasticamente. — Ele também está com febre?

— Está, sim.

— Ah! — exclamou para Fergus com sombria satisfação. — Agora você vai ver o que é ser besuntado.

Um breve período de intenso esforço resultou em Fergus enfiado sob as cobertas em seu catre junto à lareira, gordura de ganso e chá medicinal quente profusamente administrados aos doentes e um lenço limpo depositado sob o queixo de cada um.

— Pronto — eu disse, lavando as mãos escrupulosamente na bacia. -Agora, eu vou levar esse precioso pacote de despachos para o sr. Cameron. Vocês dois vão repousar, tomar chá quente, repousar, assoar o nariz e repousar, nessa ordem. Entenderam?

A ponta de um nariz longo e vermelho surgiu, quase invisível, acima das cobertas. Oscilou devagar de um lado para o outro conforme Jamie sacudia a cabeça.

— Embriagada de poder — observou com desaprovação para o teto. — Uma atitude bem pouco feminina.

Dei um beijo em sua testa quente e tirei meu manto do gancho.

— Como você conhece pouco as mulheres, meu amor — eu disse.

Ewan Cameron era encarregado do que passava como “operações de inteligência” em Holyrood. Suas dependências ficavam no final da ala oeste, escondidas perto das cozinhas. De propósito, eu imaginava, já tendo testemunhado seu apetite voraz em ação. Provavelmente uma tênia, pensei, vendo o semblante cadavérico do oficial enquanto ele abria o pacote e examinava os despachos.

— Tudo em ordem? — perguntei após alguns instantes. Tive que conter a necessidade automática de acrescentar “senhor”.

Arrancado de seus pensamentos, ele ergueu bruscamente a cabeça dos despachos e piscou os olhos em minha direção.

— Hein? Ah! — De volta a si mesmo, sorriu e apressou-se a pedir desculpas.

— Sinto muito, sra. Fraser. Que indelicadeza a minha me distrair e deixá-la aí de pé. Sim, tudo parece estar em ordem... muito interessante -murmurou consigo mesmo. Em seguida, repentinamente tomando consciência de minha presença outra vez, disse: — Poderia fazer a gentileza de dizer a seu marido que eu gostaria de discutir esses despachos com ele o mais breve possível? Sei que ele está doente — acrescentou com cautela, evitando os meus olhos. Aparentemente, Aeneas MacDonald não precisara de muito tempo para fazer um relatório de nossa entrevista com o príncipe.

— Está, sim — eu disse laconicamente. A última coisa que eu desejava era que Jamie saísse da cama e ficasse analisando despachos da inteligência a noite inteira com Cameron e Lochiel. Isso seria tão ruim quanto ficar dançando a noite toda com as damas de Edimburgo. Bem, provavelmente não tão ruim assim, eu me corrigi, lembrando-me das três senhoritas Williams.

— Tenho certeza de que ele virá vê-lo assim que estiver em condições — eu disse, juntando as pontas de meu manto. — Direi a ele. — E o faria... amanhã. Ou talvez depois de amanhã. Onde quer que as forças inglesas estivessem no momento, eu tinha certeza que não estavam a menos de duzentos quilômetros de Edimburgo.

Uma rápida espiada no quarto ao voltar mostrou dois montículos, imóveis sob as cobertas, e os sons de respiração — lenta e regular, ainda que um pouco congestionada — enchiam o aposento. Tranqüilizada, retirei o manto e sentei-me na sala de estar com uma xícara preventiva de chá quente, ao qual adicionei uma boa dose medicinal de conhaque.

Bebericando devagar, senti o calor do líquido fluir pelo meio do meu peito, espalhar-se confortavelmente pelo meu abdômen e começar a abrir caminho com firmeza em direção aos meus pés, congelados após uma corrida atravessando o pátio, empreendida preferencialmente à tortuosa passagem interna, com suas infindáveis voltas e escadarias.

Segurei a xícara sob o queixo, inalando o cheiro agradável e amargo, sentindo os vapores aquecidos do conhaque purificarem os seios da minha face. Enquanto inspirava, admirei-me, imaginando exatamente por que, numa cidade e num prédio assolados com gripes e resfriados, minhas próprias cavidades nasais permaneciam desobstruídas.

Na verdade, com exceção da febre puerperal, depois do parto, eu não ficara doente nem uma vez desde a minha passagem pelo círculo de pedras. Aquilo era estranho, pensei; considerando-se os padrões de saneamento e higiene, e o amontoamento em que com freqüência vivíamos, eu deveria sem dúvida ter adoecido ou pelo menos ter pego uma gripe a essa altura. Mas continuava tão acintosamente saudável como sempre.

Obviamente, eu não era imune a todas as doenças, ou não teria tido febre. Mas e quanto às doenças facilmente transmissíveis? Algumas eram explicáveis com base na vacinação, é claro. Eu era imune, por exemplo à varíola, ao tifo, à cólera e à febre amarela. Não que febre amarela fosse uma possibilidade por ali, mas ainda assim. Coloquei a xícara de volta na mesinha e apalpei meu braço esquerdo, por cima do tecido da manga. A marca de vacina se abrandara com o tempo, mas ainda era bastante proeminente para ser detectável; uma cicatriz mais ou menos circular de pele marcada, com pouco mais de um centímetro de diâmetro.

Estremeci ligeiramente, lembrando-me outra vez de Geillis Duncan, depois afastei o pensamento, mergulhando de novo na contemplação do meu estado de saúde, a fim de evitar pensar tanto na mulher que morrera numa fogueira quanto em Colum MacKenzie, o homem que a mandara para lá.

A xícara estava quase vazia e eu me levantei para enchê-la outra vez, pensando. Uma imunidade adquirida, talvez? Eu aprendera durante o curso de enfermagem que os resfriados são causados por diversos vírus, cada qual distinto do outro e em contínua evolução. Uma vez exposto a um determinado vírus, o instrutor explicara, você tornava-se imune a ele. Você continuava a pegar resfriados conforme se deparava com novos e diferentes vírus, mas as chances de se deparar com algum ao qual não tivesse sido exposta antes diminuíam à medida que você envelhecia. Assim, ele dissera, enquanto as crianças pegavam uma média de seis resfriados ao ano, as pessoas de meia-idade pegavam apenas dois e os idosos podiam ficar anos sem pegar resfriados, simplesmente porque já haviam se deparado com a maioria dos vírus comuns e se tornado imunes.

Havia uma possibilidade, pensei. E se alguns tipos de imunidade se tornassem hereditários, à medida que os vírus e as pessoas evoluíssem? Os anticorpos a muitas doenças podiam ser passados de mãe para filho, isso eu sabia. Via placenta ou leite materno, de modo que a criança ficasse imune — temporariamente — a qualquer doença à qual a mãe já tivesse sido exposta. Talvez eu nunca pegasse resfriados porque eu guardava anticorpos ancestrais a vírus do século XVIII, beneficiando-me dos resfriados dos meus ancestrais nos últimos duzentos anos.

Eu ponderava sobre essa interessante idéia, tão absorta em meus pensamentos que não me preocupara em sentar, mas bebericava meu chá de pé no meio do aposento, quando ouvi uma leve batida na porta.

Suspirei com impaciência, aborrecida com a interrupção. Não me dei ao trabalho de colocar a xícara na mesa, mas dirigi-me para a porta preparada para receber — e repelir — as indagações esperadas a respeito da saúde de Jamie. Era provável que Cameron tivesse se deparado com uma passagem enigmática em um dos despachos ou Sua Alteza tivesse reconsiderado sua generosidade em liberar Jamie do comparecimento ao baile. Bem, eles só iriam conseguir tirar Jamie da cama esta noite por cima do meu cadáver. Abri a porta com um safanão e as palavras de saudação morreram em minha garganta. Jack Randall estava parado nas sombras do vão da porta.

A sensação de umidade causada pelo chá derramado infiltrando-se pela minha saia me devolveu os sentidos, mas ele já dera um passo para dentro da sala. Olhou-me de cima a baixo com seu ar costumeiro de desdenhosa avaliação, depois relanceou o olhar pela porta fechada do quarto de dormir.

— Está sozinha?

— Sim!

O olhar cor de avelã pestanejou de mim para a porta, calculando a verdade da minha resposta. Seu rosto estava marcado por rugas de uma saúde precária, pálido de má nutrição e de um inverno passado dentro de casa, mas não mostrava nenhuma diminuição do seu estado de vigilância. O cérebro ágil e cruel havia recuado um pouco mais para trás, encoberto pela cortina daqueles olhos glaciais, mas continuava lá; quanto a isso não havia dúvidas.

Tomando sua decisão, agarrou-me pelo braço, pegando meu manto com a outra mão.

— Venha comigo.

Eu teria permitido que ele me cortasse em pedacinhos antes de produzir qualquer ruído que fizesse a porta do quarto se abrir.

Estávamos no meio do corredor quando achei seguro falar. Não havia guardas de serviço dentro dos limites das dependências dos oficiais, mas as áreas externas eram fortemente patrulhadas. Ele não poderia esperar me conduzir pelos pátios de pedras ou pelos portões laterais sem ser detectado, quanto mais através da entrada principal do palácio. Portanto, o que quer que ele quisesse comigo, tinha que ser um assunto conduzido dentro dos recintos de Holyrood.

Assassinato, talvez, por vingança do ferimento que Jamie lhe causara? Com o estômago revirando diante desse pensamento, inspecionei-o o mais atentamente que pude enquanto atravessávamos depressa as poças de luz lançadas dos castiçais nas paredes. Não sendo destinadas à decoração ou beleza, as velas nesta parte do palácio eram pequenas e bem espaçadas, e as chamas fracas serviam apenas para fornecer luz suficiente para ajudar os hóspedes a retornarem a seus aposentos.

Ele não estava de uniforme e parecia completamente desarmado. Vestia um indefinível tecido rústico, com um grosso casaco sobre calças marrons simples e meias compridas. Nada, exceto a altivez de sua postura e a inclinação arrogante de sua cabeça sem peruca, denunciava sua identidade — ele poderia facilmente ter se infiltrado nas dependências do palácio com um dos grupos que chegavam para o baile, fazendo-se passar por um criado.

Não, concluí, examinando-o atentamente quando passávamos da escuridão para a luz, ele não estava armado, embora a mão que agarrava meu braço fosse dura como aço. Ainda assim, se ele estivesse pensando em estrangulamento, não iria me achar uma vítima fácil; eu era quase tão alta quanto ele e muito mais bem-nutrida.

Como se lesse meus pensamentos, parou perto do fim do corredor e virou-me para encará-lo, as mãos segurando meus braços com força, acima dos cotovelos.

— Não quero lhe fazer nenhum mal — ele disse, a voz baixa, mas firme.

— Conte-me outra — eu disse, avaliando as chances de alguém me ouvir se eu gritasse ali. Eu sabia que deveria haver um guarda ao pé das escadas, mas isso ficava do outro lado de dois aposentos, um pequeno patamar e uma longa escadaria.

Por outro lado, estávamos num beco sem saída. Se ele não podia me levar dali, eu também não conseguiria ajuda onde estava. Essa ponta do corredor era quase desabitada e os poucos residentes sem dúvida estariam na outra ala agora, ou participando ou prestando serviços no baile.

Ele falou com impaciência.

— Não seja idiota. Se eu quisesse matá-la, poderia fazê-lo aqui mesmo. Seria muito mais seguro do que levá-la para fora. Quanto a isso — acrescentou -, se quisesse lhe fazer algum mal, dentro ou fora, por que teria trazido seu manto? — Ergueu a peça de vestuário do braço, ilustrando seu ponto de vista.

— Como eu poderia saber? — eu disse, embora me parecesse um ponto definitivo. — Por que você o trouxe?

— Porque quero que saia comigo. Tenho uma proposta a lhe fazer e não vou correr o risco de ser ouvido. — Olhou para a porta no final do corredor. Como todas as demais em Holyrood, era construída ao estilo de cruz-e-Bíblia, os quatro painéis superiores arranjados de modo a formar uma cruz, os dois painéis inferiores mais altos, dando a impressão de uma Bíblia aberta. Holyrood um dia fora uma abadia.

— Poderia vir até a igreja? Lá poderemos conversar sem medo de interrupção. — Era verdade; a igreja ao lado do palácio, parte da abadia original, estava abandonada, considerada insegura por falta de manutenção ao longo dos anos. Hesitei, sem saber o que fazer.

— Pense, mulher! — Sacudiu-me levemente, depois me soltou e recuou um passo. A luz das velas o colocava em silhueta, de modo que suas feições não passavam de uma mancha escura encarando-me. — Por que eu correria o risco de entrar no palácio?

Era uma boa pergunta. Depois de deixar a proteção do castelo disfarçado, as ruas de Edimburgo estavam abertas para ele. Poderia ter percorrido furtivamente os becos e vielas até me avistar em minhas expedições diárias, e me atacado. A única razão possível para não tê-lo feito era a que ele me deu; precisava falar comigo sem risco de ser visto ou ouvido.

Viu a conclusão tornar-se clara em meu rosto e seus ombros relaxaram ligeiramente. Abriu o meu manto, segurando-o para mim.

— Tem minha palavra de que voltará de nossa conversa sem ser molestada, madame.

Tentei ler sua expressão, mas as feições delgadas e cinzeladas nada deixavam transparecer. Seus olhos estavam fixos e não me revelavam mais do que os meus próprios, vistos em um espelho.

Vesti o manto.

— Está bem — eu disse.

Saímos para a escuridão do jardim de pedras, passando pela sentinela com nada além de um rápido cumprimento com a cabeça. O guarda me reconheceu e não era incomum para mim sair à noite, para atender um caso urgente de doença na cidade. Ele olhou atentamente para Jack Randall — em geral, era Murtagh quem me acompanhava, caso Jamie não pudesse -, mas vestido como estava, não havia nenhum indício da verdadeira identidade do capitão. Ele devolveu o olhar do guarda com indiferença e a porta do palácio fechou-se atrás de nós, deixando-nos na escuridão fria do lado de fora.

Havia chovido, mas a tempestade cessara. Nuvens carregadas se rasgavam e voavam acima de nós, levadas por um vento que abria as abas do meu manto e fazia minhas saias grudarem em minhas pernas.

— Por aqui.

Segurei com força o veludo pesado em volta do corpo, abaixei a cabeça contra o vento e segui a figura magra de Jack Randall pelo caminho do jardim de pedras.

Saímos na outra extremidade e, após uma pausa para uma rápida olhada ao redor, atravessamos rapidamente o gramado até o portal da igreja.

A porta havia entortado e travara escancarada; não era usada há vários anos por causa de falhas estruturais que tornavam o prédio perigoso e ninguém se dera ao trabalho de consertá-la. Abri caminho através de uma barreira de escombros e folhas mortas, passando agachada do bruxuleante luar do jardim posterior do palácio para a absoluta escuridão da igreja.

Ou nem tão absoluta; à medida que meus olhos se acostumaram à escuridão, pude ver as linhas altas das colunas que se alinhavam de cada lado da nave e a delicada estrutura em pedra da enorme janela na extremidade oposta, a maior parte dos vitrais já desaparecida.

Um movimento nas sombras mostrou-me para onde Randall fora; passei entre os pilares e o encontrei em um espaço onde um recesso antes usado como pia batismal deixara uma laje de pedra ao longo da parede. De cada um dos lados, havia manchas claras nas paredes; as placas em memória daqueles que estavam enterrados na igreja. Outras dispunham-se no chão, embutidas no piso de cada lado do corredor central, os nomes desgastados pela passagem de pés.

— Muito bem — eu disse. — Não podemos ser ouvidos agora. O que deseja de mim?

— Sua habilidade médica e sua absoluta discrição. Em troca de informações que possuo com relação às manobras e planos das tropas do eleitor. — Ele respondeu prontamente.

Quase perdi a respiração. O que quer que eu estivesse esperando, não era isso. Ele não podia estar querendo dizer...

— Está buscando tratamento médico? — perguntei, sem fazer nenhum esforço para disfarçar a mistura de horror e espanto em minha voz. — De mim? Eu entendi que você... hã, quero dizer... — Com um esforço supremo, parei de tropeçar nas palavras e falei com firmeza. — Você com certeza já recebeu todo tratamento médico possível, não? Parece estar em condições razoavelmente boas. — Externamente, ao menos. Mordi o lábio, reprimindo uma vontade incontrolável de rir histericamente.

— Fui informado de que tenho sorte de estar vivo, madame — ele respondeu friamente. — A questão é discutível. — Colocou o lampião em um nicho na parede, onde a bacia escavada de uma pia de água benta jazia seca e vazia em seu retiro.

— Presumo que sua inquisição seja motivada por curiosidade médica em vez de preocupação com o meu bem-estar — ele continuou. A luz do lampião, projetada na altura da cintura, iluminava-o das costelas para baixo, deixando a cabeça e os ombros escondidos. Colocou a mão na cinta de suas calças, virando-se ligeiramente para mim.

— Quer examinar o ferimento, a fim de julgar a eficácia do tratamento? — As sombras ocultavam seu rosto, mas as farpas de gelo em sua voz tinham veneno nas pontas.

— Talvez mais tarde — eu disse, tão friamente quanto ele. — Se não para si mesmo, para quem solicita minhas habilidades?

Ele hesitou, mas era tarde demais para reticências. =

— Para meu irmão.

— Seu irmão? — Eu não pude evitar o choque em minha voz. -Alexander?

— Já que meu irmão mais velho, William, está, até onde eu saiba, virtuosamente empenhado na administração das propriedades da família em Sussex, e sem nenhuma necessidade de ajuda — ele disse secamente. — Sim, meu irmão Alex.

Espalmei as mãos sobre a pedra fria de um sarcófago para me amparar.

— Conte-me a respeito — eu disse.

Era uma história bastante simples, e triste. Se fosse qualquer outra pessoa que não Jonathan Randall que a tivesse contado, eu teria sucumbido à compaixão.

Privado de seu emprego com o duque de Sandringham por causa do escândalo em torno de Mary Hawkins, e de saúde frágil demais para arranjar outro trabalho, Alexander Randall fora forçado a pedir ajuda a seus irmãos.

— William enviou-lhe duas libras e uma carta de fervorosas exortações. — Jack Randall recostou-se contra a parede, cruzando os tornozelos. — Receio que William seja um tipo muito fervoroso. Mas não estava preparado para ter Alex em casa em Sussex. A mulher de William é um pouco... radical, digamos assim. Em suas opiniões religiosas. — Houve uma nuance de humor em sua voz que me fez apreciá-lo por um momento. Em circunstâncias diferentes, ele poderia ter sido como o bisneto com quem se parecia fisicamente?

A lembrança repentina de Frank transtornou-me de tal forma que eu perdi sua observação seguinte.

— Desculpe-me. O que foi que disse? — Agarrei minha mão esquerda com a direita, os dedos segurando com força minha aliança de ouro. Frank se fora. Eu precisava parar de pensar nele.

— Eu disse que procurei acomodações para Alex perto do castelo, de modo que eu mesmo pudesse lhe dar assistência, já que meus recursos financeiros não eram suficientes para me permitir empregar um criado adequado para ele.

No entanto, a ocupação de Edimburgo havia, é claro, tornado tal atendimento difícil e Alex Randall ficara mais ou menos entregue a si mesmo no último mês, fora os serviços esporádicos de uma mulher que ia fazer a limpeza de vez em quando. Com a saúde abalada desde o início, suas condições pioraram com o clima frio, a dieta pobre e as condições esquálidas em que vivia, até que, seriamente abalado, Jack Randall resolvera buscar minha ajuda. E a oferecer em troca dessa ajuda a traição de seu rei.

— Por que você viria a mim? — perguntei finalmente, virando-me da placa honorífica.

Ele pareceu ligeiramente surpreso.

— Por você ser quem é. — Seus lábios curvaram-se num pequeno sorriso escarnecedor. — Se uma pessoa quer vender a alma, não é certo recorrer aos poderes das trevas?

— Você realmente pensa que eu sou um poder das trevas, não é? -Obviamente, ele achava; ele era mais do que capaz de sarcasmo, mas não havia nenhum em sua proposta original.

— Fora as histórias a seu respeito em Paris, você mesma me disse isso. — Ele ressaltou. — Quando deixei que se fosse de Wentworth. — Virou-se no escuro, remexendo-se na laje de pedra.

— Foi um erro grave — ele disse serenamente. — Você jamais deveria ter deixado aquele lugar viva, perigosa criatura. E no entanto eu não tinha escolha; sua vida foi o preço que ele estabeleceu. E eu teria corrido riscos ainda maiores do que esse pelo que ele me deu.

Emiti um leve som sibilante, que abafei imediatamente, mas tarde demais para impedir que ele me ouvisse. Ele ficou parcialmente sentado na laje, um dos quadris repousando sobre a pedra, uma perna esticada para baixo para dar-lhe equilíbrio. A lua surgiu lá fora, através das nuvens que passavam rapidamente, iluminando-o por trás, pela janela quebrada. Na semi-obscuridade, a cabeça ligeiramente virada e os sulcos da crueldade ao redor da boca apagados pela escuridão, eu podia confundi-lo outra vez, como acontecera anteriormente, com o homem que eu amara. Com Frank.

Entretanto, eu traíra esse homem; por causa da minha escolha, esse homem jamais existiria. Porque os filhos deverão pagar pelos pecados dos pais. E você o destruirá, completamente, de modo que seu nome não mais seja conhecido entre as tribos de Israel.

— Ele lhe contou? — a voz descontraída, agradável, perguntou das trevas. — Ele lhe contou tudo que se passou entre nós, entre mim e ele, naquele cubículo em Wentworth? — Através do meu choque e do meu ódio, notei que ele obedecia à imposição de Jamie; nem uma vez ele usou o nome dele. “Ele.” Nunca “Jamie”. Esse era meu.

Meus dentes estavam cerrados com força, mas forcei as palavras a saírem-

— Ele me contou. Tudo.

Ele emitiu um pequeno som, uma espécie de suspiro.

— Quer a idéia lhe agrade ou não, minha cara, nós estamos ligados, você e eu. Não posso dizer que isso me agrada, mas admito a verdade dessa afirmação. Você conhece, como eu, a sensação do toque da pele dele... tão quente, não é? Quase como se ele queimasse por dentro. Você conhece o cheiro do seu suor e a aspereza dos pêlos de suas coxas. Você sabe o som que ele faz no final, quando ele se perde. Eu também sei.

— Cale-se — eu disse. — Fique quieto! — Ele me ignorou, reclinando-se, falando pausadamente, como se falasse consigo mesmo. Reconheci, com uma nova onda de ódio, o impulso que o conduzia a isto, não a intenção, como eu pensara, de me perturbar, mas uma necessidade incontrolável de falar de alguém amado; rememorar em voz alta e reviver detalhes desaparecidos. Porque, afinal, com quem ele poderia falar de Jamie dessa forma, senão comigo?

— Vou embora! — eu disse em voz alta, girando nos calcanhares.

— Vai embora? — disse a voz calma atrás de mim. — Posso entregar o general Hawley em suas mãos. Ou você pode deixá-lo tomar o exército escocês. A escolha é sua, madame.

Senti uma vontade incontrolável de responder que o general Hawley não valia o preço. Mas pensei nos chefes de clãs escoceses agora aquartelados em Holyrood — Kilmarnock, Balmerino e Lochiel, a apenas alguns metros de distância, do outro lado da parede da abadia. No próprio Jamie. Nos milhares de escoceses que eles conduziam. A chance de vitória valeria o sacrifício de meus sentimentos? Seria este um momento decisivo, novamente um lugar de escolha? Se eu não o ouvisse, se eu não aceitasse a proposta de Randall, o que aconteceria?

Virei-me, devagar.

— Fale, então — eu disse. —Já que precisa. — Ele não parecia perturbado com minha raiva, nem preocupado com a possibilidade de que eu recusasse a barganha. A voz na igreja escura soou regular, controlada como a de um professor.

— Imagino, sabe — ele disse. — Se você teve dele tanto quanto eu. -Inclinou a cabeça para o lado, as feições marcantes entrando em foco conforme ele saía das sombras. A luz fugidia alcançou-o momentaneamente pela lateral, iluminando o avelã-claro de seus olhos e fazendo-os brilhar, como os de um animal selvagem vislumbrado no meio de arbustos.

O tom de triunfo em sua voz era fraco, mas inconfundível.

— Eu — ele disse calmamente -, eu o tive de uma maneira que você jamais o terá. Você é mulher; não pode compreender, mesmo sendo a bruxa que é. Eu tive a alma de sua masculinidade, tirei dele o que ele tirou de mim. Eu o conheço, como ele agora me conhece. Estamos ligados, ele e eu, pelo sangue. Dou-lhe meu corpo, para que nós dois sejamos um só...

— Você escolheu uma maneira muito estranha de obter minha ajuda -eu disse, a voz trêmula. Meus punhos estavam cerrados nas pregas da minha saia, o tecido frio e embolado entre meus dedos.

— É mesmo? Acho melhor você compreender, madame. Eu não suplico sua piedade, não me submeto a seu poder como um homem poderia buscar a compaixão de uma mulher, na dependência do que as pessoas chamam de compreensão feminina. Para isso, você poderia socorrer meu irmão por ele mesmo. — Uma mecha de cabelos escuros caiu sobre sua testa; afastou-a para trás com uma das mãos.

— Prefiro que seja um trato feito diretamente entre nós, madame; por serviço prestado e preço pago. Perceba, madame, que meus sentimentos em relação a você são muito semelhantes ao que os seus em relação a mim devem ser.

Foi um choque; enquanto eu esforçava-me para encontrar uma resposta, ele continuou.

— Estamos ligados, você e eu, pelo corpo de um homem... ele. Eu não teria tal vínculo formado através do corpo de meu irmão; busco sua ajuda para curar o corpo dele, mas não corro nenhum risco de que a alma dele caia em seu poder. Diga-me, então; o preço que lhe ofereço é aceitável para você?

Virei-me e caminhei pelo centro da nave ressonante. Eu tremia tanto que sentia os passos incertos e o choque da pedra dura sob a sola dos meus sapatos me sacudiam. O rendilhado de pedra da grande janela acima do altar abandonado destacava-se, escuro, contra o branco das nuvens velozes, e tênues raios de luar iluminavam meu caminho.

No final da nave, o mais longe que eu podia ficar dele, parei e pressionei as mãos contra a parede para me apoiar. Estava escuro demais até mesmo para ver as letras da placa de mármore sob minhas mãos, mas eu podia sentir as linhas frias, afiadas, do entalhe. A curva de um pequeno crânio, descansando sobre iemures cruzados, uma versão piedosa da famosa bandeira dos piratas. Deixei minha cabeça pender para frente, testa contra testa do crânio invisível, liso como osso contra a minha pele.

Esperei, os olhos cerrados, que minha ânsia de vômito se aplacasse e a pulsação intensa que latejava em minhas têmporas abrandasse.

Não faz diferença, disse a mim mesma. Não importa o que ele seja. Não importa o que ele diga.

Estamos ligados, você e eu, pelo corpo de um homem... Sim, mas não pelo corpo de Jamie. Não por ele!, insisti, para ele, para mim mesma. Sim, você o possuiu, seu canalha! Mas eu o tomei de volta, eu o libertei de você. Você não possui nenhuma parte dele! Mas o suor que escorria pelas minhas costelas e o som da minha própria respiração ofegante desmentiam a minha convicção.

Seria esse o preço que eu teria de pagar pela perda de Frank? Mil vidas que poderiam ser salvas, talvez, em compensação por essa única perda?

A forma escura do altar assomava à minha direita e desejei de todo o coração que pudesse haver alguma presença lá, qualquer que fosse sua natureza; algo ao qual recorrer em busca de uma resposta. Mas não havia ninguém aqui em Holyrood; ninguém, a não ser eu. Os espíritos dos mortos guardavam seus próprios conselhos, silenciosos nas pedras da parede e do assoalho.

Tentei tirar Jack Randall da mente. Se não fosse ele, se fosse qualquer outro homem a pedir, eu iria? Havia Alex Randall a considerar, independentemente de todo o resto. “Para isso, você poderia socorrer meu irmão por ele mesmo”, o capitão dissera. E certamente eu o faria. Eu podia negar o que quer que eu pudesse lhe oferecer em termos de cura por causa do homem que pedira?

Um longo tempo decorreu até eu me endireitar, forçando meu corpo exausto a se aprumar, as mãos úmidas e escorregadias na curva do crânio. Sentia-me exaurida e fraca, a nuca doendo e a cabeça pesada, como se a doença da cidade tivesse finalmente se apoderado de mim.

Ele continuava lá, paciente na escuridão fria.

— Sim — eu disse abruptamente, assim que cheguei ao alcance da voz. — Está bem. Irei amanhã, pela manhã. Onde?

— Alameda Ladywalk — ele disse. — Conhece?

— Sim. — Edimburgo era uma cidade pequena, nada além da High Street, de onde partiam vielas e becos minúsculos e mal-iluminados. A alameda Ladywalk era uma das mais pobres.

— Eu a encontrarei lá — ele disse. — Terei a informação para você. Levantou-se e deu um passo à frente, depois parou, esperando que eu me movesse. Vi que ele não queria passar perto de mim, para alcançar a porta.

— Está com medo de mim? — eu disse, com uma risada contrafeita. -Acha que vou transformá-lo em um cogumelo?

— Não — ele disse, examinando-me calmamente. — Eu não a temo, madame. Você não pode ter duas verdades, sabe. Você procurou me aterrorizar em Wentworth dando-me o dia da minha morte. Tendo me dito isso, não pode agora me ameaçar, pois se devo morrer em abril do próximo ano, você não pode me matar agora, não é?

Se eu tivesse uma faca comigo, talvez lhe mostrasse, num momento de gratificante impulso, que ele estava enganado. Mas a maldição da profecia estava sobre mim, bem como o peso de mil vidas escocesas. Ele estava a salvo de mim.

— Mantenho distância, madame, apenas porque eu preferia não correr o risco de tocá-la.

Ri outra vez, agora genuinamente.

— E esse, capitão, é um impulso com o qual estou inteiramente de acordo. — Virei-me e saí da igreja, deixando que me seguisse como bem entendesse.

Eu não precisava perguntar-lhe ou temer que ele não mantivesse a palavra. Ele me libertara uma vez de Wentworth porque dera sua palavra que o faria. Sua palavra, uma vez dada, era sua fiança. Jack Randall era um cavalheiro.

O que você sentiu quando entreguei meu corpo a Jack Randall?, Jamie me perguntara.

Raiva, eu dissera. Nojo. Horror.

Apoiei-me contra a porta da sala de estar, sentindo tudo isso outra vez. O fogo se apagara e o aposento estava frio. O cheiro de gordura de ganso canforada ardeu em minhas narinas. Tudo estava em silêncio, a não ser pela respiração pesada e áspera que vinha da cama e o longínquo sopro do vento, correndo pelas paredes de um metro e meio de espessura.

Ajoelhei-me junto à lareira e comecei a reacender o fogo. Apagara-se por completo e empurrei para dentro a lenha parcialmente queimada, afastando as cinzas antes de iniciar o fogo em uma pequena pilha de gravetos no centro da lareira. Tínhamos lenha em Holyrood, e não turfa. Infelizmente, pensei; um fogo de turfa não teria se apagado tão facilmente.

Minhas mãos tremiam um pouco e deixei cair a caixa de sílex antes de conseguir produzir uma faísca. O frio, disse a mim mesma. Fazia muito frio ali.

Ele lhe contou tudo que se passou entre nós?, disse a voz zombeteira de Jack Randall.

— Tudo que eu preciso saber — murmurei comigo mesma, encostando um pedaço de papel torcido na minúscula chama e levando-o de ponto em ponto, ateando fogo à lenha em seis pontos diferentes. Um de cada vez, acrescentei pequenos gravetos, enfiando cada um na chama e segurando-o ali até que pegasse fogo. Quando a pilha de gravetos queimava alegremente, peguei a tora grande pela ponta, levantando-a com todo o cuidado e colocando-a no meio da fogueira. Era madeira de pinho; verde, mas com um pouco de seiva, borbulhando de uma rachadura na madeira numa gota pequena e dourada.

Cristalizada e congelada com o tempo, formaria uma gota de âmbar, dura e permanente como uma pedra preciosa. Agora, ela brilhou por um instante com o calor repentino, inflou e explodiu numa minúscula chuva de centelhas, rapidamente desaparecidas.

— Tudo que eu preciso saber — murmurei. A cama de Fergus estava vazia; tendo acordado com frio, arrastara-se da cama em busca de um paraíso aquecido.

Ele estava enroscado na cama de Jamie, a cabeça escura e a ruiva pousadas lado a lado no travesseiro, as bocas ligeiramente abertas conforme roncavam pacificamente juntos. Não pude deixar de sorrir diante da cena, mas eu não pretendia dormir no chão.

— Saia daí — murmurei para Fergus, empurrando-o para a ponta da cama e tomando-o nos braços. Ele era magro e seus ossos leves para uma criança de dez anos, mas ainda assim terrivelmente pesado. Levei-o até seu catre de palha sem dificuldade e ajeitei-o sob as cobertas, ainda inconsciente, voltando em seguida para a cama de Jamie.

Despi-me devagar, parada junto à cama, fitando-o. Ele virara de lado e se enroscara contra o frio. Suas pestanas repousavam longas e curvas sobre a face; eram castanho-escuras, quase pretas nas pontas, mas louro-claras nas raízes. Isso lhe dava um ar estranhamente inocente, apesar do nariz longo e reto e das linhas firmes do queixo e da boca.

Vestida em minha camisola, entrei na cama por trás dele, aconchegando-me contra as costas largas e quentes em seu camisão de lã. Ele remexeu-se um pouco, tossindo, e eu coloquei a mão sobre seu quadril para acalmá-lo. Ele se mexeu, enroscando-se ainda mais e empurrando-se para trás, contra meu corpo, com um pequeno suspiro de consciência. Passei o braço em torno de sua cintura, minha mão roçando a maciez de seus testículos. Eu podia excitá-lo, eu sabia, mesmo dormindo como estava; era necessário muito pouco para excitá-lo, não mais do que alguns movimentos firmes de meus dedos.

Mas eu não queria perturbar seu repouso e me contentei em bater delicadamente em sua barriga. Ele estendeu a enorme mão para trás e de modo desajeitado devolveu os tapinhas em minha coxa.

— Eu a amo — ele murmurou, semi-acordado.

— Eu sei — eu disse. E adormeci imediatamente, abraçada a ele.

 

Não era propriamente um barraco, mas estava bem próximo de ser. Pisei cuidadosamente para o lado a fim de evitar uma grande poça de imundície, deixada ali pelo esvaziamento de urinóis das janelas acima, à espera de remoção pela próxima chuva forte.

Randall segurou meu cotovelo para impedir que eu escorregasse nas pedras viscosas do calçamento. Enrijeci-me ao toque de sua mão, e ele retirou-a imediatamente.

Viu meu olhar à ombreira da porta caindo aos pedaços e disse defensivamente:

— Não tive condições financeiras para removê-lo para instalações melhores. Não é tão ruim lá dentro.

Não era — não inteiramente. Algum esforço fora feito em mobiliar o aposento confortavelmente, ao menos. Havia um grande jarro com uma bacia, uma mesa sólida, com pão, queijo e uma garrafa de vinho em cima, e a cama tinha um colchão de penas e vários cobertores grossos.

O homem deitado na cama havia afastado as cobertas, acalorado pelo esforço de tossir, imaginei. Seu rosto estava muito vermelho e a força de sua tosse sacudia a estrutura da cama, apesar de robusta.

Atravessei o aposento até a janela e a escancarei, sem dar ouvidos às exclamações de protesto de Randall. Com o ar frio que varreu o quarto abafado, o mau cheiro de corpo suado, lençóis sujos e urinol cheio arrefeceu um pouco.

A tosse diminuiu gradualmente e o semblante afogueado de Alexander Randall desbotou até um branco sem viço. Seus lábios estavam azulados e seu peito subia e descia no esforço de recuperar o fôlego.

Olhei à volta do aposento, mas não vi nada adequado aos meus propósitos. Abri meu estojo médico e retirei uma folha rígida de pergaminho. Estava um pouco esfarrapada nas pontas, mas ainda serviria. Sentei-me na beira da cama, sorrindo da maneira mais tranqüilizadora possível.

— Foi... bondade sua... ter vindo — ele disse, esforçando-se para não tossir entre uma palavra e outra.

— Vai se sentir melhor daqui a pouco — eu disse. — Não fale e não reprima a tosse. Eu preciso ouvi-la.

Sua camisa já estava aberta na frente; afastei-a ainda mais para expor o peito assustadoramente afundado. Era praticamente pele e osso; as costelas eram claramente visíveis do abdômen à clavícula. Ele sempre fora magro, mas a doença do último ano deixara-o emaciado.

Enrolei o pergaminho formando um tubo e coloquei uma das extremidades contra seu peito, meu ouvido junto à outra. Era um estetoscópio rústico, mas surpreendentemente eficaz.

Ouvi atentamente em vários pontos, instruindo-o para respirar fundo. Não precisei dizer-lhe para tossir, pobre rapaz.

— Deite-se de barriga para baixo por um instante. — Levantei sua camisa e ouvi, depois bati delicadamente em suas costas, testando a ressonância em ambos os pulmões. As costas nuas estavam pegajosas e suadas sob meus dedos.

— Muito bem. De costas outra vez. Apenas permaneça deitado agora, quieto, e relaxe. Não vai doer nada. — Mantive a conversa amena enquanto verificava o branco de seus olhos, as glândulas linfáticas intumescidas no pescoço, a língua recoberta com placas e as amídalas inflamadas.

— Você tem um pouco de catarro — eu disse, batendo de leve em seu ombro. — Vou preparar um remédio que vai abrandar a tosse. Enquanto isso... — Apontei o dedo do pé desagradavelmente para o recipiente de louça, com tampa, sob a cama, e lancei um olhar para o homem parado à porta, esperando, as costas empertigadas e rígidas como se estivesse de prontidão.

— Livre-se disso — ordenei. Randall olhou-me furiosamente, mas adiantou-se e inclinou-se para obedecer.

— Não pela janela! — eu disse incisivamente, quando ele fez um movimento naquela direção. — Leve-o lá para baixo. — Ele deu meia-volta e saiu sem olhar para mim.

Alexander inspirou, uma respiração superficial, quando a porta fechou-se atrás de seu irmão. Sorriu para mim, os olhos cor de avelã brilhando no rosto pálido. A pele era quase transparente, distendida sob os ossos da face.

— É melhor andar depressa antes que Johnny volte. O que eu tenho?

Seus cabelos escuros estavam desalinhados pela tosse; tentando reprimir os sentimentos que essa visão despertava em mim, ajeitei-os para ele. Eu não queria lhe dizer, mas obviamente ele já sabia.

— Você está com catarro. Também está com tuberculose.

— E?

— E insuficiência cardíaca — eu disse, fitando-o nos olhos.

— Ah. Achei que... devia ser algo assim. Meu coração palpita no peito de vez em quando... como as asas de um pássaro bem pequeno. — Colocou a mão de leve sobre o coração.

Eu não conseguia suportar a aparência de seu peito, arfando sob seu fardo impossível, e delicadamente fechei sua camisa e amarrei o laço no pescoço. A mão longa e branca agarrou a minha.

— Quanto tempo? — ele disse. Seu tom de voz era calmo, quase despreocupado, não revelando mais do que uma leve curiosidade.

— Não sei — eu disse. — Esta é a verdade. Eu não sei.

— Mas não muito tempo — ele disse, com convicção.

— Não. Não muito tempo. Meses talvez, mas certamente menos de um ano.

— Você pode... parar a tosse?

Peguei meu estojo.

— Sim. Posso ao menos abrandá-la. E as palpitações cardíacas; posso preparar-lhe um extrato de digitalina que ajudará. — Encontrei o pequeno pacote de folhas secas de dedaleira; levaria algum tempo para preparar a infusão.

— Seu irmão... — eu disse, sem olhar para ele. — Quer que eu...

— Não — ele disse categoricamente. Um dos cantos de sua boca se curvou para cima e ele se pareceu tanto com Frank que por um instante tive vontade de chorar por ele.

— Não — ele disse. – Ele já deve saber. Nós sempre... soubemos o que se passa um com o outro.

— É mesmo? — perguntei, encarando-o. Ele não desviou os olhos dos meus, mas sorriu debilmente.

— Sim — disse a meia-voz. — Sei tudo a respeito dele. Não importa.

Ah, não? Pensei. Não para você, talvez. Não podendo confiar nem no meu rosto nem na minha voz, virei-me e procurei me ocupar, tentando acender um pequeno fogareiro de álcool que trouxera comigo.

— Ele é meu irmão — a voz branda disse atrás de mim. Respirei fundo e firmei as mãos para medir a quantidade de folhas.

— Sim — eu disse -, ao menos isso ele é.

Desde que a notícia da surpreendente derrota de Cope em Prestonpans se espalhara, ofertas de apoio, de homens e dinheiro fluíram do norte aos borbotões. Em alguns casos, essas ofertas até se materializaram: lorde Ogilvy, o filho mais velho do conde de Airlie, trouxe seiscentos arrendatários de seu pai, enquanto Stewart de Appin apareceu à frente de quatrocentos homens dos distritos de Aberdeen e BanfF. Lorde Pitsligo sozinho era responsável pela maior parte da cavalaria escocesa. Ele trouxe um grande número de cavalheiros e seus criados dos condados do nordeste, todos bem montados e bem armados — ao menos em comparação a alguns membros de clãs diversos, que vinham armados com antigas espadas de dois gumes salvas por seus avôs da revolução de 1715, machados enferrujados e forcados retirados das tarefas mais domésticas de limpar currais.

Formavam um grupo diversificado, mas nem por isso menos perigoso, refleti, abrindo caminho em meio a um grupo de homens reunidos em torno de um amolador de facas itinerante, que amolava adagas, facas e foices com absoluta indiferença. Um soldado inglês que se defrontasse com eles estaria arriscado a morrer de tétano em vez de uma morte instantânea, mas os resultados provavelmente seriam os mesmos.

Embora lorde Lewis Gordon, o irmão mais novo do duque de Gordon, viera prestar suas homenagens a Carlos em Holyrood, anunciando a esplêndida perspectiva de trazer todo o clã Gordon, havia um longo caminho a ser percorrido entre o beija-mão e o real fornecimento de homens.

E as terras baixas da Escócia, as Lowlands, embora perfeitamente dispostas a celebrar ruidosamente as notícias de vitória de Carlos, eram estranhamente avessas a enviar homens para apoiá-lo; quase todo o exército Stuart era composto de escoceses das Highlands, e talvez assim permanecesse. Entretanto, as Lowlands não tinham sido um fracasso total; lorde George Murray dissera-me que o recolhimento de alimentos, mercadorias e dinheiro nos burgos do sul havia resultado em uma contribuição muito significativa aos cofres e suprimentos do exército, capaz de mantê-lo por algum tempo.

— Só de Glasgow, temos cinco mil e quinhentas libras. Embora seja uma ninharia, comparada às quantias prometidas pela França e Espanha -Sua Excelência confidenciara a Jamie. — Mas não estou inclinado a virar o nariz para ela, particularmente porque Sua Alteza não recebeu nada da França além de palavras tranqüilizadoras, mas nenhum ouro.

Jamie, que sabia exatamente o quanto era improvável que o ouro francês se materializasse, simplesmente balançou a cabeça.

— Descobriu mais alguma coisa hoje, mo duinne? — ele me perguntou quando entrei. Tinha um despacho parcialmente redigido diante dele e enfiou a pena no tinteiro para molhá-la de novo. Tirei o capuz úmido dos cabelos com um estalido de eletricidade estática, balançando a cabeça afirmativamente.

— Há um boato de que o general Hawley está formando unidades de cavalaria no sul. Ele tem ordens para a formação de oito regimentos.

Jamie rosnou. Considerando-se a aversão dos escoceses das Highlands à cavalaria, essa não era uma boa notícia. Distraidamente, esfregou as costas onde a contusão feita pela pata de um cavalo em Prestonpans ainda não desaparecera.

— Registrarei isso para o coronel Cameron, então — ele disse. — Até que ponto acha que o boato pode ser verdadeiro, Sassenach? — Quase automaticamente, ele olhou por cima do ombro, para certificar-se de que estávamos sozinhos. Ele agora só me chamava de Sassenach quando estávamos a sós, usando a formalidade de “Claire” em público.

— Pode apostar nele — eu disse. — Quer dizer, acho que é verdadeiro.

Não se tratava em absoluto de um boato; era a mais recente informação da inteligência britânica, fornecida por Jack Randall, a mais nova prestação do pagamento da dívida que ele insistiu em assumir para que eu cuidasse de seu irmão.

Jamie sabia, é claro, que eu visitava Alex Randall, assim como todos os doentes do exército jacobita. O que ele não sabia, e que eu jamais poderia lhe contar, era que uma vez por semana — às vezes, com mais freqüência — eu me encontrava com Jack Randall, para tomar conhecimento das notícias que se infiltravam no Castelo de Edimburgo, provenientes do sul.

Às vezes, ele ia ao quarto de Alex quando eu estava lá; outras vezes, eu voltava para casa na penumbra do crepúsculo de inverno, andando com cuidado pelas pedras escorregadias do calçamento da Royal Mile, quando repentinamente um vulto empertigado como uma vara, em roupas de tecido rústico marrom, acenava da entrada de um pátio ou uma voz calma saía da neblina atrás do meu ombro. Era assustador; como ser assombrada pelo fantasma de Frank.

Teria sido bem mais simples para ele deixar uma carta no alojamento de Alex, mas ele não colocava nada por escrito e eu podia entender sua cautela. Se tal carta fosse encontrada, mesmo sem assinatura, poderia comprometer não só o próprio Jack, como Alex também. No momento, Edimburgo fervilhava de estranhos; voluntários para o estandarte do rei Jaime, visitantes curiosos do sul e do norte, enviados estrangeiros da França e da Espanha, espiões e informantes em abundância. As únicas pessoas nas ruas que não eram de fora eram os oficiais e homens da guarnição militar inglesa, que permanecia reclusa no castelo. Desde que ninguém o ouvisse conversando comigo, ninguém o reconheceria pelo que ele era, nem acharia nada de estranho em nossos encontros, ainda que fôssemos vistos — e raramente o éramos, tais eram suas precauções.

De minha parte, estava igualmente satisfeita; eu teria tido que destruir qualquer coisa colocada por escrito. Embora eu duvidasse que Jamie reconhecesse a caligrafia de Randall, eu não poderia explicar uma fonte regular de informações sem mentir abertamente. Era bem melhor fazer parecer que as informações que ele me dava eram somente parte da coleção de novidades que eu adquiria nas minhas rondas diárias.

A desvantagem, é claro, era que ao tratar as contribuições de Randall à mesma luz dos outros boatos que eu coletava, elas podiam ser menosprezadas ou ignoradas. Ainda assim, embora eu acreditasse que Randall estivesse fornecendo informações em boa-fé — presumindo-se que fosse possível manter tal conceito em relação ao sujeito -, não significava necessariamente que estivessem sempre corretas. Nem que devessem ser encaradas com ceticismo.

Transmiti as notícias dos novos regimentos de Hawley com a costumeira pontada de culpa com a minha quase fraude. Entretanto, eu chegara à conclusão de que embora a honestidade entre marido e mulher fosse essencial, não devia ser levada a terríveis extremos. E eu não via nenhuma razão pela qual o fornecimento de informações úteis para os jacobitas devesse causar mais sofrimento a Jamie.

— O duque de Cumberland ainda está esperando suas tropas retornarem de Flandres — acrescentei. — E o cerco do Castelo Stirling não está indo a lugar nenhum.

Jamie grunhiu, escrevendo rapidamente.

— Isso eu sabia; lorde George recebeu um despacho de Francis Townsend há dois dias; ele domina a cidade, mas as trincheiras que Sua Alteza tanto insiste que sejam cavadas estão desperdiçando tempo e homens. Não há necessidade delas; seria melhor simplesmente atacar o castelo de longe com artilharia de canhão e depois invadi-lo.

— Então, por que estão cavando trincheiras?

Jamie abanou a mão distraidamente, ainda concentrado em seu documento. Suas orelhas estavam róseas de frustração.

— Porque o exército italiano cavou trincheiras quando tomaram o Castelo Verano, que é o único cerco que Sua Alteza já viu, portanto, obviamente, é assim que deve ser feito, cerrrrto?

— Oh, cerrrrto — eu disse, imitando seu sotaque.

Funcionou; ele ergueu os olhos para mim e riu, os olhos oblíquos quase se fechando.

— Boa tentativa, Sassenach — ele disse. — O que mais você tem para me dizer?

— Contente-se com o padre-nosso em gaélico, está bem? — eu disse.

— Não — ele retrucou, espalhando areia sobre o despacho. Levantou-se, beijou-me rapidamente e pegou seu casaco. — Mas me contentarei com um jantar. Vamos, Sassenach. Encontraremos uma taverna aconchegante e confortável e eu lhe ensinarei um monte de coisas que você não deve dizer em público. Estão fresquinhas em minha cabeça.

Por fim, o Castelo Stirling caiu. O preço foi alto, as probabilidades de manter a ocupação eram pequenas e o benefício de mantê-la, questionável. Ainda assim, o efeito em Carlos foi eufórico — e desastroso.

— Consegui finalmente convencer Murray... aquele teimoso idiota! -Carlos aparteou, franzindo o cenho. Em seguida, lembrou-se de sua vitória e sorriu, radiante, à volta da sala outra vez. — Mas eu venci. Marchamos para a Inglaterra daqui a uma semana, para reclamar todas as terras do meu pai!

Os chefes de clã escoceses reunidos na sala de visitas da manhã se en-treolharam e viu-se um considerável ataque de tosse e agitação de pés. O estado de espírito geral não parecia ser de grande entusiasmo com a notícia.

— Ha, Alteza — começou lorde Kilmarnock, cautelosamente. — Não seria mais prudente considerar...?

Tentaram. Todos eles tentaram. A Escócia, ressaltaram, já pertencia a Carlos, com tudo que tinha de melhor. Do norte, continuavam a chegar homens em grandes números, embora do sul parecesse haver pouca esperança de apoio. E os lordes escoceses tinham plena consciência de que os homens das Highlands, ainda que guerreiros ferozes e leais partidários, também eram fazendeiros. Os campos tinham que ser trabalhados para o plantio na primavera; o gado precisava de provisões para passar o inverno. Muitos dos homens resistiriam a seguir avançando na direção sul nos meses de inverno.

— E esses homens, não são meus súditos? Não vão aonde eu lhes ordenar? Tolice — Carlos disse com firmeza. E ponto final. Ou quase.

— James, meu amigo! Espere, quero falar com você um instante em particular, por favor. — Sua Alteza virou-se de uma áspera troca de palavras com lorde Pitsligo, o queixo longo e determinado abrandando-se um pouco ao acenar para Jamie.

Achei que eu não estava incluída no convite. Entretanto, não tinha a menor intenção de sair dali e instalei-me com mais firmeza em uma das cadeiras douradas e adamascadas, enquanto os lordes e chefes de clã jaco-bitas saíam em fileira, conversando uns com os outros em voz baixa.

— Ah! — Carlos estalou os dedos desdenhosamente na direção da porta que se fechava. — Parecem umas velhas, todos eles! Eles vão ver. Meu primo Luís também, e Filipe. Preciso da ajuda deles? Vou mostrar a todos eles. — Vi os dedos pálidos, manicurados, tocarem rapidamente em um ponto logo acima do peito. Podia-se ver um leve contorno retangular através da seda de seu casaco. Ele carregava o retrato em miniatura de Louise; eu o vira.

— Desejo a Vossa Alteza toda boa sorte no empreendimento — Jamie murmurou -, mas...

— Ah, muito obrigado, cher James! Ao menos, você acredita em mim! -Carlos lançou um dos braços em volta dos ombros de Jamie, massageando seus deltóides afetuosamente.

— Estou desolado por você não me acompanhar, por você não estar ao meu lado para receber os aplausos de meus súditos quando entrarmos marchando na Inglaterra — Carlos disse, apertando vigorosamente os músculos do ombro de James.

— Não vou? — Jamie parecia perplexo.

— Ah, mon cher ami, o dever exige de você um grande sacrifício. Sei como seu enorme coração anseia pelas glórias da batalha, mas preciso de você para outra tarefa.

— Precisa? — Jamie disse.

— O quê? — perguntei sem rodeios.

Carlos lançou um olhar de desagrado, embora bem-educado, em minha direção, em seguida voltou-se novamente para Jamie e retomou a cordialidade.

— É uma tarefa das mais importantes, James, e que só você pode executar. É verdade que os homens estão aderindo em massa à luta de meu pai; chegam mais a cada dia. Ainda assim, não devemos descuidar da segurança, não é? Tive a sorte de que seus parentes, os MacKenzie, vieram em minha ajuda. Mas você tem outro lado de sua família, não é?

— Não —Jamie disse, uma expressão de horror assomando ao seu rosto.

— Mas claro que sim — disse Carlos, com um aperto final no ombro de Jamie. Girou nos calcanhares para encarar o amigo, com um sorriso radiante. — Você irá para o norte, para a terra de seus parentes, e retornará para mim à frente dos homens do clã Fraser!

 

Você conhece bem seu avô? — perguntei, abanando a mão para afastar uma mutuca fora de estação que parecia incapaz de decidir-se se eu ou o cavalo daríamos uma refeição melhor. Jamie sacudiu a cabeça.

— Não. Ouvi dizer que ele age como um terrível monstro velho, mas você não deve ter medo dele. — Sorriu para mim enquanto eu atacava a mutuca com a ponta do meu xale. — Eu estarei com você.

— Ah, velhos rabugentos não me incomodam — assegurei-lhe. — Vi muitos desses na minha época. No fundo são como manteiga, a maioria deles. Imagino que seu avô seja bem parecido.

— Mm, não — retrucou, pensativamente. — Ele realmente é um terrível monstro velho. Só que, se você demonstrar medo dele, fica pior ainda. Como uma fera farejando sangue.

Lancei um olhar para a imensidão à nossa frente, onde as colinas distantes que ocultavam o Castelo Beaufort repentinamente assomaram de uma maneira um pouco sinistra. Aproveitando-se de minha momentânea falta de atenção, a mutuca deu um vôo rasante junto à minha orelha esquerda. Soltei um gritinho agudo e esquivei-me para o lado, e o cavalo, assustado com esse movimento repentino, fez um movimento brusco.

— Ei! Cuir stad! — Jamie lançou-se para o lado para agarrar as rédeas das minhas mãos. Mais bem treinado do que minha montaria, seu cavalo relin-chou, mas acomodou essa manobra, apenas estremecendo as orelhas, de uma maneira complacente e arrogante.

Jamie enfiou os joelhos nas laterais de seu cavalo, puxando o meu para uma parada ao lado do seu.

— Bem — ele disse, os olhos estreitados seguindo o vôo em ziguezague da mutuca, que zumbia desafiadoramente. — Deixe-a pousar, Sassenach, e eu a pegarei. — Ele esperou, as mãos erguidas na posição certa, os olhos apertados contra a luz do sol.

Fiquei parada como uma estátua ligeiramente nervosa, semi-hipnotizada pelo zumbido ameaçador. O inseto de asas pesadas, enganadora-mente lento, continuava zumbindo de um lado para o outro entre as orelhas do cavalo e as minhas próprias. As orelhas do cavalo torciam-se de modo frenético, um impulso que eu podia compreender muito bem.

— Se essa coisa pousar na minha orelha, Jamie, eu vou... — comecei a dizer.

— Shhh! — ele ordenou, inclinando-se para frente na expectativa, a mão esquerda curvada como uma pantera pronta para o ataque. — Mais um segundo e eu a pegarei.

Nesse instante, eu vi a pequena mancha escura pousar em seu ombro. Outra mutuca, procurando um lugar para se refestelar. Abri a boca outra vez.

— Jamie...

— Silêncio! — Bateu as palmas das mãos triunfalmente sobre meu torturador, uma fração de segundo antes que a mutuca em seu colarinho enfiasse os ferrões em seu pescoço.

Os homens dos clãs escoceses lutavam de acordo com suas antigas tradições. Desdenhando a estratégia, a tática e a sutileza, seu método de ataque era simplesmente a própria simplicidade. Detectando o inimigo dentro de seu alcance, deixavam cair os xales, sacavam a espada e avançavam para cima do inimigo, berrando a plenos pulmões. A gritaria gaélica sendo como é, este método em geral era bem-sucedido. Muitos inimigos, vendo a multidão de banshees cabeludos, seminus, lançando-se sobre eles, simplesmente acovardavam-se e fugiam.

Apesar de bem treinado como deveria ser, nada havia preparado o cavalo de Jamie para um grito gaélico classe A, proferido no mais alto volume de um ponto a sessenta centímetros acima de sua cabeça. Apavorado, arremessou as orelhas para trás e disparou como se o próprio diabo estivesse atrás dele.

Minha montaria e eu ficamos parados, paralisados, no meio da estrada, observando uma impressionante exibição da arte escocesa de equitação, conforme Jamie, os dois estribos perdidos e as rédeas soltas, quase lançado para fora de sua sela pela brusca arrancada do cavalo, arremessava-se desesperadamente para frente, procurando agarrar-se à crina do animal. Seu xale de xadrez tremulava loucamente ao seu redor, agitado pelo deslocamento do vento provocado por sua passagem, e o cavalo, completamente em pânico a essa altura, considerava o esvoaçante tartã colorido uma desculpa para correr mais ainda.

Com uma das mãos agarrada à longa crina, Jamie içava-se assustadoramente ereto, as pernas longas pressionadas com força contra os flancos do cavalo, ignorando os estribos de metal que se sacudiam sob a barriga do animal. Fragmentos do que até meu gaélico limitado reconhecia como linguagem de baixíssimo calão flutuavam de volta até mim trazidos pela brisa.

Um som vagaroso, de batidas de cascos de cavalos, me fez olhar para trás, para onde Murtagh, conduzindo o cavalo de carga, surgia no cimo da pequena elevação que eu e Jamie acabáramos de descer. Avançou com cuidado pela estrada, até o local onde eu o esperava. Devagar, levou o animal a uma parada total, protegeu os olhos com a mão e olhou para frente, para onde Jamie e sua montaria em pânico acabavam de desaparecer por cima do topo da colina seguinte.

— Uma mutuca — eu disse, à guisa de explicação.

— Já é tarde para elas. Ainda assim, não pensei que ele estivesse com tanta pressa de reencontrar-se com seu avô a ponto de deixá-la para trás -Murtagh observou, com sua frieza habitual. — Não que eu ache que uma mulher vá fazer muita diferença em sua recepção.

Pegou as rédeas e esporeou seu pônei, fazendo-o começar a se locomover com relutância, e o cavalo de carga amistosamente o acompanhou. Minha própria montaria, animada com a companhia e tranqüilizada pela ausência temporária de mutucas, alegremente pôs-se a caminho ao lado deles.

— Nem mesmo uma mulher inglesa? — perguntei com curiosidade. Pelo pouco que eu sabia, as relações de lorde Lovat com qualquer coisa inglesa eram muito animadoras.

— Inglesa, francesa, holandesa ou alemã. Provavelmente, não faria muita diferença; vai ser o fígado do rapaz que a raposa velha vai comer no desjejum, não o seu.

— O que quer dizer com isso? — Olhei fixamente para o circunspecto escocês, muito parecido a uma de suas próprias trouxas, sob as dobras frouxas de seu xale e de sua camisa. Por alguma razão, toda roupa que Murtagh vestia, por mais nova ou bem talhada que fosse, imediatamente assumia a aparência de algo salvo por um triz de um monte de lixo.

— Em que pé estão as relações de Jamie com lorde Lovat?

Captei um olhar de soslaio de um olho preto, pequeno e astuto, e em seguida a cabeça de Murtagh virou-se para o Castelo Beaufort. Encolheu os ombros, de resignação ou expectativa.

— Absolutamente nenhum, até agora. O garoto nunca falou com seu avô em toda a sua vida.

— Mas como você sabe tanto sobre ele se nunca se encontraram?

Ao menos, eu estava começando a compreender a relutância inicial de Jamie em buscar a ajuda de seu avô. Novamente ao lado de Jamie e seu cavalo, este último com ar de quem foi severamente repreendido, e o primeiro um pouco irritado, Murtagh olhara especulativamente para Jamie e ofereceu-se para seguir na frente até Beaufort com o animal de carga, deixando Jamie e a mim para trás, almoçando à beira da estrada.

Enquanto fazíamos uma restauradora refeição de cerveja e pão de aveia, ele por fim contou-me que seu avô, lorde Lovat, não aprovara a escolha de seu filho para esposa. Assim, achara melhor não abençoar a união nem se comunicar mais com o filho — ou com os filhos de seu filho — depois do casamento de Brian Fraser e Ellen MacKenzie, há mais de trinta anos.

— Mas ouvi falar muito dele, de uma maneira ou de outra — Jamie disse, mastigando um pedaço de queijo. — Ele é o tipo de homem que causa uma forte impressão nas pessoas.

— Foi o que ouvi. — O idoso Tullibardine, um dos jacobitas de Paris, me regalara com várias opiniões isentas de censura, relativas ao líder do clã Fraser e pensei que talvez Brian Fraser não tenha ficado desolado com o afastamento de seu pai. Disse isso a Jamie e ele balançou a cabeça, concordando.

— Ah, sim. Não me lembro de meu pai ter muitos elogios a fazer ao velho, mas ele nunca foi desrespeitoso. Apenas não falava dele com freqüência. — Esfregou o lado do pescoço, onde uma marca vermelha produzida pela mordida da mutuca começava a empolar. O tempo estava estranhamente quente e ele estendera seu xale para eu me sentar. A missão junto ao chefe do clã Fraser foi considerada merecedora de algum investimento na dignidade da aparência e Jamie usava um kilt novo, de corte militar, preso com fivela, o xale uma tira de pano em separado. Menos apropriado para se abrigar das intempéries do que o modelo antigo, um longo xale preso apenas por um cinto era bem mais eficiente para ser vestido às pressas.

— Eu às vezes me perguntava — ele disse pensativamente — se meu pai era o tipo de pai que era por causa da maneira como o Velho Simon o tratara. Eu não percebia isso na época, é claro, mas não é muito comum para um homem demonstrar seus sentimentos em relação aos filhos.

— Você pensou muito sobre isso. — Ofereci-lhe mais cerveja e ele retribuiu com um sorriso que se demorou sobre mim, mais quente do que o sol fraco do outono.

— Sim, pensei. Eu imaginava que tipo de pai eu seria para meus próprios filhos e, olhando um pouco para trás, meu pai era o melhor exemplo que eu tinha. No entanto, eu sabia, pelo pouco que ele dissera, ou que Murtagh me dissera, que seu próprio pai não era absolutamente como ele. Assim, pensei em como ele deve ter decidido fazer tudo diferente, quando tivesse a chance.

Suspirei, deixando meu pedaço de queijo.

— Jamie — eu disse. — Você realmente acha que nós um dia...

— Acho — ele disse, com segurança, sem me deixar terminar a frase. Inclinou-se e beijou-me na testa. — Eu sei que sim, Sassenach, e você também

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sabe. Você nasceu para ser mãe e eu certamente não pretendo deixar ninguém mais ser o pai de seus filhos.

— Bem, isso é ótimo — eu disse. — Eu também não.

Ele riu e ergueu meu queixo para me beijar nos lábios. Correspondi ao seu beijo, depois ergui a mão para tirar um farelo de pão que grudara ao redor de sua boca, nos pêlos curtos da barba por fazer.

— Você deveria fazer a barba, não acha? — eu disse. — Em homenagem ao primeiro encontro com seu avô.

— Ah, eu já o vi uma vez antes — ele disse despreocupadamente. — E ele me viu, também. Quanto ao que ele possa achar da minha aparência agora, ele pode me aceitar como sou e ir para o inferno.

— Mas Murtagh disse que você nunca se encontrou com ele!

— Muhm. — Ele limpou o resto dos farelos do peito da camisa, franzindo a testa ligeiramente, como se decidisse o quanto deveria me contar. Finalmente, deu de ombros e deitou-se na sombra de um arbusto de tojo, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, fitando o céu.

— Bem, nós nunca nos encontramos de verdade. Bem, não exatamente. Foi assim...

Aos dezessete anos, o jovem Jamie Fraser zarpou para a França, para terminar sua educação na Universidade de Paris e para aprender outras coisas que não são ensinadas nos livros.

— Parti do porto de Beauly — ele disse, balançando a cabeça na direção da próxima colina, onde uma estreita faixa cinza no horizonte longínquo marcava a beira do estuário Moray. — Havia outros portos por onde eu poderia sair, Inverness seria o mais provável, mas meu pai reservou minha passagem e era de Beauly. Ele cavalgou comigo até lá, para me ver partir para o mundo, pode-se dizer.

Brian Fraser raramente deixara Lallybroch nos anos seguintes a seu casamento e, enquanto cavalgavam, comprazia-se em mostrar vários locais a seu filho, onde ele havia caçado ou viajado quando era menino ou rapaz.

— Mas ele ficou muito quieto quando nos aproximamos de Beaufort. Ele não falara sobre meu avô nessa viagem e eu sabia que era melhor eu mesmo não tocar no assunto. Mas sei que ele tinha uma razão para me fazer partir de Beauly.

Vários pardais pequenos aproximaram-se cuidadosa e paulatinamente, entrando e saindo das moitas baixas, prontos a partirem como uma flecha de volta para a segurança ao mais leve indício de perigo. Vendo-os, Jamie pegou um pedaço de pão que sobrara e atirou-o com grande precisão no meio do bando, que explodiu como metralha, todos fugindo da repentina intrusão.

— Eles voltarão — ele disse, indicando os pássaros espalhados. Colocou o braço sobre o rosto, como para protegê-lo do sol, e continuou com sua história.

— Ouviu-se um barulho de cavalos ao longo da estrada que saía do castelo e quando nos viramos para ver, havia um pequeno grupo se aproximando, seis cavaleiros com uma carroça, e um deles carregava o estandarte de Lovat; assim, eu sabia que meu avô estava entre eles. Olhei rapidamente para meu pai, para ver se ele pretendia fazer alguma coisa, mas ele apenas sorriu, deu um leve aperto no meu ombro e disse: “Vamos embarcar, então, rapaz.”

“Eu podia sentir os olhos de meu avô em mim enquanto descia pela costa, com meus cabelos e minha altura, berrando: “MacKenzie”, e fiquei satisfeito de estar com as minhas melhores roupas e não parecer um mendigo. Não olhei à volta, mas mantive-me o mais aprumado possível e tive orgulho de ser meia cabeça mais alto do que o homem mais alto lá. Meu pai caminhou ao meu lado, com seu jeito quieto, e também não olhou para os lados, mas pude senti-lo ali, orgulhoso de ter me gerado.”

Ele sorriu para mim, um sorriso enviesado.

— Essa foi a última vez que eu tive certeza que o fiz ter orgulho de mim, Sassenach. Tempos depois, eu não tive tanta certeza, mas fiquei feliz com aquele dia.

Enlaçou os joelhos com os braços, olhando fixamente para frente, como se revivesse a cena no cais.

— Entramos no navio e fomos recebidos pelo mestre, depois ficamos junto à balaustrada, conversando um pouco à toa, ambos tomando cuidado para não olhar para os homens de Beaufort que embarcavam a carga ou olhar para a costa onde estavam os cavaleiros. Então, o mestre deu as ordens para soltarem as amarras. Beijei meu pai e ele saltou por cima da balaustrada, para a doca, e caminhou para seu cavalo. Ele só olhou para trás quando estava montado e a essa altura o navio já partia para a enseada.

“Eu acenei e ele acenou de volta, depois se virou, puxando meu cavalo, e pegou a estrada de volta a Lallybroch. Então, o grupo de Beaufort virou-se também e começou a voltar. Pude ver meu avô à frente do grupo, aprumado na sela. E eles cavalgaram, meu pai e meu avô, a vinte metros de distância um do outro, pela colina acima e depois dela, fora do alcance de minha vista, e nenhum dos dois voltou-se para o outro nem agiu sequer como se o outro estivesse ali.”

Virou a cabeça para a estrada, como se buscasse sinais de vida da direção de Beaufort.

— Nossos olhos se encontraram uma única vez. Esperei até meu pai chegar ao seu cavalo, depois me virei e olhei para lorde Lovat, o mais ousadamente que eu pude. Queria que ele soubesse que não queríamos nada dele e que eu não tinha medo dele. — Sorriu para mim, de um lado só. -Mas eu tinha.

Coloquei a mão sobre a dele, acariciando os nós dos seus dedos.

— Ele estava olhando para você? Soltou um riso irônico.

— Sim, estava. Acho que ele não tirou os olhos de mim do momento em que eu desci a colina até meu navio zarpar; podia senti-los perfurando minhas costas como verrumas. E quando olhei para ele, lá estava ele, com seus olhos negros sob as sobrancelhas, fitando os meus.

Ficou em silêncio, ainda olhando para o castelo, até eu cutucá-lo delicadamente.

— Como ele era, então?

Tirou os olhos da massa de nuvens escuras no horizonte longínquo para olhar para mim, a habitual expressão de bom humor ausente da curva de sua boca, das profundezas de seus olhos.

— Frio como pedra, Sassenach. Frio como pedra.

Nós tivemos sorte com o tempo; esteve quente o dia inteiro, desde Edimburgo.

— Não vai durar muito — Jamie previu, estreitando os olhos em direção ao mar à frente. — Está vendo o aglomerado de nuvens lá longe? Ele estará em terra firme até hoje à noite. — Farejou o ar e enrolou o xale nos ombros. — Sente o cheiro do ar? Pode-se sentir a chuva se aproximando.

Não tão experiente em meteorologia olfativa, ainda assim achei que eu realmente podia sentir o cheiro; uma umidade no ar, aguçando os aromas comuns de resina de pinheiro e urzes secas, misturados a um odor leve e úmido de algas-marinhas da orla distante.

— Será que os homens já chegaram de volta a Lallybroch? — perguntei.

— Duvido. — Jamie sacudiu a cabeça. — Eles têm uma distância menor a percorrer do que nós, mas estão a pé e deve estar sendo difícil todos prosseguirem juntos. — Ergueu-se em seus estribos, protegendo os olhos para examinar a distante camada de nuvens. — Espero que seja apenas chuva, não vai atrapalhá-los muito. De qualquer forma, não deverá ser uma forte tempestade. Talvez não chegue tão longe ao sul.

Puxei meu arisaid, um quente xale de tartã, mais apertado em volta dos meus próprios ombros, em reação à brisa crescente. Eu havia considerado o tempo ameno daquela viagem de poucos dias um bom presságio; esperava que não tivesse sido um engano.

Jamie passara uma noite inteira sentado junto à janela em Holyrood, depois de receber a ordem de Carlos. Pela manhã, ele primeiro foi ver Carlos, para dizer a Sua Alteza que ele e eu cavalgaríamos sozinhos para Beauty, acompanhados apenas de Murtagh, para transmitir as saudações de Sua Alteza a lorde Lovat, e seu pedido de que Lovat honrasse sua promessa de homens e ajuda.

Em seguida, Jamie convocou Ross, o ferreiro, a nosso quarto e lhe deu suas ordens, numa voz tão baixa que eu não pude compreender o que ele dizia de meu lugar junto à lareira. Mas vi os ombros do musculoso ferreiro se aprumarem e permanecerem firmes enquanto ele absorvia suas instruções.

O exército das Highlands viajava com pouca disciplina, um bando desordenado de gente comum do povo, que dificilmente poderia ser dignificado com o título de “coluna”. No decurso de um dia de marcha, os homens de Lallybroch deveriam ir abandonando o grupo, um a um. Desgarrando-se para dentro de um bosque como se fossem descansar por um instante ou se aliviar, não deveriam voltar para o grupo principal, mas afastarem-se silenciosamente e seguirem seu caminho, um a um, para um local de encontro com os outros homens de Lallybroch. Uma vez reunidos outra vez sob o comando do ferreiro Ross, deveriam ir para casa.

— Duvido que a ausência deles seja percebida durante algum tempo, se é que será percebida. — Jamie dissera, discutindo o plano comigo antes de falar com Ross. — A deserção é grande, em todo o exército. Ewan Cameron disse-me que havia perdido vinte homens de seu regimento na última semana. É inverno e os homens querem preparar suas casas e tomar as providências para o plantio na primavera. De qualquer forma, os comandantes não podem abrir mão de ninguém para ir atrás deles, mesmo que sua ausência seja notada.

— Então, você desistiu, Jamie? — eu perguntara, colocando a mão em seu braço. Ele esfregou o rosto de modo cansado antes de responder.

— Não sei, Sassenach. Pode ser tarde demais; pode não ser. Não sei dizer. Foi tolice ir para o sul tão perto do inverno; e mais tolice ainda perder tempo no cerco a Stirling. Mas Carlos não foi derrotado e alguns chefes estão vindo, atendendo à sua convocação. Os MacKenzie, agora, e outros por causa deles. Ele tem o dobro de homens hoje do que tinha em Preston. O que isso significará? — Lançou as mãos para cima, num gesto de frustração.

— Não sei. Não há oposição. Os ingleses estão aterrorizados. Bem, você sabe; você viu os cartazes. — Sorriu, um sorriso forçado. — Colocamos criancinhas no espeto e assamos na brasa e desonramos as mulheres e filhas de homens honestos. — Fez um muxoxo de irônica repugnância. Embora crimes como roubo e insubordinação fossem comuns no exército das Highlands, o estupro era de fato desconhecido. Suspirou, um som breve e irado.

— Cameron ouviu um boato de que o rei Jorge está se preparando para fugir de Londres, com medo de que o exército do príncipe vá tomar a cidade em breve. — Ele ouvira, na verdade, um boato que chegara a Cameron através de mim, que ouvira de Jack Randall. — E lá estão Kilmarnock e Cameron. Lochiel e Balmerino, e Dougal, com seus MacKenzie. Guerreiros do príncipe, todos eles. E se Lovat enviar os homens que prometeu... meu Deus, talvez seja suficiente. Se invadirmos Londres... — Encolheu os ombros, depois esticou-os repentinamente, estremecendo como se quisesse sair de uma camisa muito apertada.

— Mas não posso correr o risco — disse simplesmente. — Não posso ir para Beauly e deixar meus homens aqui, para serem levados Deus sabe para onde. Se eu estivesse lá para comandá-los, seria diferente. Mas não vou deixá-los para que Carlos ou Dougal os atirem sobre os ingleses, e eu a cento e sessenta quilômetros de distância, em Beauly.

Assim ficou planejado. Os homens de Lallybroch — inclusive Fergus, que protestara clamorosamente, mas fora rejeitado — desertariam e partiriam para casa discretamente. Logo que nossa missão em Beauíy estivesse terminada e tivéssemos voltado a nos reunir com Carlos — bem, então já teria havido tempo suficiente para ver como a situação estava evoluindo.

— É por isso que estou levando Murtagh conosco — Jamie explicara. — Se tudo parecer bem, eu o enviarei a Lallybroch para levar os homens de volta. — Um breve sorriso iluminou seu rosto sombrio. — Ele não parece grande coisa sobre um cavalo, mas é um excelente cavaleiro. Veloz como um raio.

No momento, ele não parecia, refleti, mas agora, por outro lado, não havia nenhuma emergência. De fato, ele avançava mais devagar do que de costume; quando chegamos ao topo de uma colina, pude vê-lo lá embaixo, parando o cavalo. Quando o alcançamos, ele havia apeado e examinava a sela do cavalo de carga.

— O que houve? —Jamie fez menção de descer de sua própria sela, mas Murtagh desencorajou-o com um gesto irritado da mão.

— Não, não, nada com que se preocupar. Uma das cordas se partiu. Vão em frente.

Apenas com um sinal da cabeça em concordância, Jamie puxou as rédeas e continuou em frente, e eu o segui.

— Ele não está muito bem-humorado hoje, não é? — observei, abanando a mão rapidamente para trás, em direção de Murtagh. De fato, o pequeno escocês ficava mais irritado e impaciente a cada passo na direção de Beauly. — Ele não está muito animado com a perspectiva de visitar lorde Lovat, não é?

Jamie sorriu, com um breve olhar para trás, para a figura pequena e escura, inclinada em profunda concentração sobre a corda que ele estava emendando.

— Não, Murtagh não é nem um pouco amigo do Velho Simon. Ele amava meu pai — sua boca curvou-se num trejeito enviesado — e minha mãe também. E não gostava do tratamento que Lovat lhes dispensava. Ou dos métodos de Lovat de obter esposas. Murtagh tem uma avó irlandesa, mas ele tem parentesco com Primrose Campbell pelo lado de sua mãe -ele explicou, como se isso tornasse tudo muito claro.

— Quem é Primrose Campbell? — perguntei, confusa.

— Ah. — Jamie coçou o nariz, pensando. O vento que soprava do mar intensificava-se e açoitava seus cabelos, soltando-os da tira que os amarrava e fazendo pequenas mechas ruivas tremularem pelo seu rosto.

— Primrose Campbell foi a terceira mulher de Lovat... ainda é, suponho, embora ela o tenha deixado há alguns anos e voltado para a casa de seus pais.

— Popular com as mulheres, hein? — murmurei.

Jamie soltou um riso desdenhoso.

— Suponho que possa dizer que sim. Arranjou sua primeira mulher com um casamento forçado. Arrancou a viúva e herdeira lady Lovat da cama no meio da noite, casou-se com ela ali mesmo e voltou direto para a cama com ela outra vez. Mesmo assim — ele acrescentou, com imparcialidade -, ela mais tarde resolveu que o amava, de modo que talvez ele não fosse tão ruim.

— Deve ter sido especial na cama, pelo menos — eu disse, de forma irreverente. — É de família, eu acho.

Ele me lançou um olhar ligeiramente chocado, que se dissolveu num sorriso tímido.

— Sim, bem — ele disse. — Se era ou não, isso não o ajudou muito. As criadas da viúva o denunciaram e Simon foi obrigado a fugir para a França.

Casamentos forçados e fugitivo da lei, hein? Abstive-me de fazer mais comentários sobre semelhanças familiares, mas particularmente confiava em que Jamie não seguiria os passos do avô com relação a esposas subseqüentes. Aparentemente, uma não fora suficiente para Simon.

— Ele foi visitar o rei Jaime em Roma e jurou sua fidelidade aos Stuart — Jamie continuou. Depois virou as costas e foi direto falar com Guilherme de Orange, rei da Inglaterra, que estava em visita à França. Fez com que Jaime lhe prometesse seu título e propriedades, caso uma restauração da dinastia Stuart ocorresse, e depois, só Deus sabe, obteve um perdão total de Guilherme e pôde voltar para casa na Escócia.

Agora foi a minha vez de erguer as sobrancelhas. Aparentemente, não se tratava apenas de atração pelo sexo oposto, então.

Simon continuara suas aventuras voltando posteriormente para a França, desta vez para espionar os jacobitas. Tendo sido descoberto, foi atirado na prisão, mas conseguiu fugir, retornou à Escócia, engendrou a reunião dos clãs sob o disfarce de uma caçada em Braes of Mar em 1715 — e depois conseguiu obter todo o crédito junto à Coroa inglesa por sufocar a revolução resultante.

— Um velhaco mentiroso, hein? — eu disse, completamente intrigada. — Embora eu suponha que ele não pudesse ser muito velho na época, talvez uns quarenta e poucos anos. — Tendo ouvido que lorde Lovat estava agora com cerca de setenta e cinco anos, eu esperava alguém bastante envelhecido e decrépito, mas estava revendo rapidamente minhas expectativas, em vista dessas histórias.

— Meu avô — Jamie observou sem se alterar — possui, segundo todos que o conhecem, um caráter que lhe permitiria esconder-se convenientemente atrás de uma escada em espiral. De qualquer modo — continuou, descartando o caráter de seu avô com um abano da mão -, ele então se casou com Margaret Grant, filha de Grant o' Grant. Depois que ela morreu, ele se casou com Primrose Campbell. Ela devia ter mais ou menos dezoito anos na época.

— O Velho Simon era um partido tão bom para sua família forçá-la a casar-se com ele? — perguntei, compreensivamente.

— De modo algum, Sassenach. — Ele fez uma pausa para afastar os cabelos do rosto, enfiando as mechas soltas atrás das orelhas. — Ele sabia muito bem que ela não iria querê-lo, ainda que fosse rico como Creso, o que ele não era. Assim, ele enviou-lhe uma carta, dizendo que a mãe dela adoecera em Edimburgo e dando o endereço da casa aonde ela deveria ir.

Dirigindo-se às pressas para Edimburgo, a jovem e bela srta. Campbell encontrou não sua mãe, mas o velho e engenhoso Simon Fraser, que lhe informou que ela estava numa famosa casa de prazer e que sua única esperança de preservar seu bom nome era casando-se com ele imediatamente.

— Ela devia ser muito idiota para cair nessa cilada — observei sarcastica-mente.

— Bem, ela era muito nova — Jamie disse, defendendo-a -, e não era uma ameaça vazia, não; se ela o tivesse recusado, o Velho Simon teria arruinado sua reputação sem pensar duas vezes. De qualquer forma, ela se casou com ele... e se arrependeu.

— Hum. — Eu estava ocupada, fazendo contas mentalmente. O encontro com Primrose Campbell havia sido há apenas alguns anos, ele dissera. Então... — Sua avó foi a viúva lady Lovat ou Margaret Grant? — perguntei, curiosa.

As maçãs do rosto altas estavam ressecadas pelo vento e pelo sol; neste momento, uma vermelhidão, repentina e penosa, inundou-as.

— Nenhuma das duas — ele disse. Não olhou para mim, mas manteve o olhar fixo direto à frente, na direção do Castelo Beaufort. Seus lábios estavam cerrados com força.

— Meu pai era bastardo — ele disse finalmente. Sentou-se ereto como uma espada na sela e os nós de seus dedos estavam brancos, a mão agarrada às rédeas. — Reconhecido, mas bastardo. Filho de uma das criadas do Castelo Downie.

— Oh — eu disse. Não parecia haver muito a acrescentar.

Ele engoliu em seco; pude ver a ondulação em sua garganta.

— Devia ter lhe contado antes — ele disse, com dificuldade. — Desculpe-me.

Estendi a mão e toquei em seu braço; estava duro como aço.

— Não tem importância, Jamie — eu disse, sabendo, no instante mesmo em que falava, que nada do que eu dissesse poderia fazer diferença. — Não ligo a mínima.

— Ah, é? — ele disse finalmente, ainda com o olhar fixo à frente. -Bem... eu ligo.

O vento cada vez mais fresco que soprava do estuário Moray murmurava por uma encosta de pinheiros escuros. A região era uma estranha combinação de vertentes de montanhas e litoral. Uma densa extensão de carvalhos, larícios e vidoeiros cobria o terreno dos dois lados do caminho estreito que seguíamos, mas quando nos aproximávamos da figura escura do Castelo Beaufort, sobre tudo flutuava o eflúvio de lamaçais e algas marinhas.

Éramos, de fato, esperados; as sentinelas de guarda no portão, trajando seus kilts e armadas com machados, não opuseram nenhum obstáculo à nossa entrada. Olharam-nos com muita curiosidade, mas aparentemente sem nenhuma animosidade. Jamie sentava-se empertigado como um rei em sua sela. Ele balançou a cabeça uma vez para o homem ao seu lado e recebeu um sinal semelhante em resposta. Eu tinha a distinta sensação de que entráramos no castelo levando uma bandeira branca de trégua; só não sabíamos quanto tempo essa trégua iria durar.

Continuamos a cavalgar, sem sermos interpelados, pelo pátio do Castelo Beaufort, um edifício pequeno em se tratando de um castelo, mas ainda assim bastante imponente, construído com as pedras da região. Não tão fortificado quanto alguns dos castelos que eu vira ao sul, mesmo assim parecia capaz de resistir a uma boa dose de abrasão. As aberturas para canhões abriam suas grandes bocas a intervalos ao longo da base das muralhas externas e a fortaleza ainda ostentava uma entrada de estábulo aberta para o pátio.

Vários dos pequenos pôneis das Highlands estavam abrigados ali, as cabeças projetando-se das meias-portas de madeira para relinchar em boas-vindas aos nossos próprios cavalos. Junto à parede, viam-se várias trouxas, pacotes e malas, recentemente descarregados dos pôneis no estábulo.

— Lovat convocou alguns homens para nos receberem — Jamie observou asperamente, observando as bagagens. — Parentes, espero. — Deu de ombros. — Ao menos no começo serão bem amistosos.

— Como sabe?

Ele deslizou para o chão e estendeu os braços para me ajudar a descer.

— Deixaram as espadas com a bagagem.

Jamie entregou as rédeas para um cavalariço que saiu do estábulo e veio em nossa direção, limpando as mãos nas calças.

— Hã, e agora? — murmurei para Jamie. Não havia nenhum sinal de uma castelã ou de um mordomo; nada semelhante à figura alegre e investida de autoridade da sra. FitzGibbons que nos recebera no Castelo Leoch há dois anos.

Os poucos cavalariços e ajudantes de estábulo que estavam por ali nos olhavam de vez em quando, mas continuavam com seus afazeres, assim como os criados que atravessavam o pátio, carregando cestos de roupa lavada, maços de turfa e todas as outras volumosas parafernálias que a vida em um castelo de pedras exigia. Olhei com ar de aprovação para um homem musculoso suando sob o fardo de dois vasilhames de cobre, de cinco galões cada, de água. Quaisquer que fossem as deficiências no departamento de hospitalidade, o Castelo Beaufort ao menos dispunha de uma banheira em algum lugar.

Jamie ficou parado no centro do pátio, os braços cruzados, inspecionando o lugar como um possível comprador de propriedades que alimentava sérias dúvidas quanto aos drenos.

— Agora, nós esperamos, Sassenach — ele disse. — As sentinelas devem ter mandado avisar que estamos aqui. Ou alguém virá nos receber... ou não.

— Hum — eu disse. — Bem, espero que se decidam logo; estou com fome e precisando de um banho.

— Está mesmo — Jamie concordou, com um breve sorriso enquanto me examinava. — Está com uma mancha de fuligem no nariz e várias flores de cardo emaranhadas em seus cabelos. Não, deixe-as — ele acrescentou, quando levei a mão aos cabelos, horrorizada. — Estão bonitos, você fez isso de propósito ou não?

Definitivamente, não, mas deixei-as. Mesmo assim, afastei-me furtivamente até um cocho de água, para inspecionar minha aparência e remediá-la até onde fosse possível usando apenas água fria.

Era uma situação um pouco delicada, no que dizia respeito ao Velho Simon Fraser, pensei, inclinando-me sobre o cocho e tentando descobrir quais manchas na minha imagem refletida eram realmente de sujeira e quais eram causadas por pedacinhos flutuantes de feno.

Por um lado, Jamie era um emissário formal dos Stuart. Se as promessas de Lovat de apoio à causa eram sinceras ou apenas conversa fiada, as chances eram de que ele se sentiria obrigado a dar as boas-vindas ao enviado do príncipe, ainda que apenas por cortesia.

Por outro lado, o dito representante era um neto de ascendência ilegítima que, se não exatamente ele mesmo um renegado, com certeza não era tampouco um membro íntimo da família. E a essa altura eu conhecia o suficiente a respeito dos feudos das Highlands para saber que hostilidades desse tipo eram improváveis de diminuir com o passar do tempo.

Passei a mão molhada pelos meus olhos fechados e pelas têmporas, alisando alguns tufos de cabelos desgrenhados. Tudo considerado, eu não achava que lorde Lovat iria nos deixar esperando de pé no pátio. Ele poderia, entretanto, deixar-nos ali tempo suficiente para compreendermos inteiramente a natureza dúbia de nossa recepção.

Depois disso — bem, quem poderia saber? Seríamos muito provavelmente recebidos por lady Francês, uma das tias de Jamie, uma viúva que -de tudo que ouvíramos de Tullibardine — administrava os assuntos domésticos para seu pai. Ou, se ele decidisse nos receber como uma representação diplomática em vez de conexões familiares, imaginei que o próprio lorde Lovat apareceria para nos receber, formalmente escudado pela panópüa de secretário, guardas e criados.

Essa última possibilidade parecia a mais provável, tendo em vista o tempo que estava levando; afinal, você não iria manter uma comitiva para-mentada o tempo todo de prontidão — era necessário algum tempo para reunir adequadamente as pessoas necessárias. Visualizando a repentina aparição de um nobre seguido de um séquito completo, fiquei em dúvida sobre deixar flores de cardo emaranhadas em meus cabelos e inclinei-me sobre o cocho outra vez.

Nesse momento, fui interrompida pelo som de passos no caminho atrás das manjedouras. Um homem de idade, troncudo, com a camisa aberta e as calças desafiveladas, entrou no pátio, afastando para o lado uma égua gorda, de cor castanha, com uma cotovelada e uma exclamação irritada. Apesar da idade, tinha as costas retas como uma vareta de arma de fogo e ombros quase tão largos quanto os de Jamie.

Parando junto ao cocho dos cavalos, olhou ao redor do pátio como se procurasse alguém. Seus olhos passaram por mim sem registrar minha presença, depois voltaram de repente, obviamente espantados. Deu um passo adiante e empurrou o rosto belicosamente para a frente, a barba grisalha por fazer espetada como um porco-espinho.

— Quem diabos é você? — perguntou.

— Claire Fraser, hã, quero dizer, lady Broch Tuarach — eu disse, tardiamente me lembrando de minha posição. Reuni todo o meu autocontrole e limpei uma gota d'água do meu queixo. — Quem diabos é você? — perguntei.

A mão firme de Jamie agarrou meu cotovelo por trás e uma voz resignada de algum lugar acima de minha cabeça disse:

— Este, Sassenach, é meu avô. Senhor, posso apresentar-lhe a minha mulher?

— Hein? — exclamou lorde Lovat, concedendo-me o benefício de um frio olho azul. — Ouvi dizer que você se casou com uma inglesa. — Seu tom de voz deixou claro que esse ato confirmava suas piores suspeitas a respeito do neto que ele nunca conhecera.

Ele ergueu uma sobrancelha espessa e grisalha em minha direção e voltou o olhar de verruma para Jamie.

— Tão sem juízo quanto o pai, ao que parece.

Pude notar as mãos de Jamie contorcerem-se ligeiramente, resistindo a necessidade de cerrar os punhos.

— Pelo menos, não tive necessidade de arranjar uma mulher por estupro ou trapaça — ele observou sem alterar a voz.

Seu avô grunhiu, sem se deixar abalar pelo insulto. Pensei ter visto o canto de sua boca enrugada se torcer, mas não tive certeza.

— Sim, e de pouco lhe valeu esse negócio que você fez — ele observou. — Embora, quanto a isso, esta é menos cara do que aquela vagabunda MacKenzie por quem seu pai se enrabichou. Se esta vadia sassenach não lhe traz nada, ao menos tem a aparência de quem lhe custa pouco. — Os olhos oblíquos azuis, tão parecidos com os de Jamie, percorreram meus trajes sujos da viagem, observando a bainha desfeita, a costura arrebentada e os respingos de lama na saia.

Pude sentir uma leve vibração percorrer o corpo de Jamie e não soube ao certo se era raiva ou riso.

— Obrigada — eu disse, com um sorriso amistoso para o senhor de Lovat. — Não como muito, também. Mas gostaria de me lavar um pouco. Apenas água; não se preocupe com sabão, se for muito caro.

Desta vez, tive certeza a respeito do movimento do canto da boca.

— Sim, sei — disse o senhor de Lovat. — Mandarei uma criada ir atendê-la em seus aposentos, então. E lhe fornecerei o sabão. Nós os veremos na biblioteca antes do jantar... neto — ele acrescentou para Jamie e, girando nos calcanhares, desapareceu de novo sob a passagem em arco.

— Quem é nós? — perguntei.

— O Jovem Simon, eu suponho — Jamie respondeu. — O herdeiro do senhor de Lovat. Um ou dois primos desgarrados, talvez. E alguns colonos, eu imagino, a julgar pelos cavalos no pátio. Se Lovat pensa em mandar tropas para se unir aos Stuart, seus colonos e arrendatários devem ter algo a dizer sobre o assunto.

— Já viu uma minhoca pequena no terreiro, no meio de um bando de galinhas? — ele murmurou quando percorríamos o corredor uma hora mais tarde, atrás de um criado. — Sou eu... ou nós, melhor dizendo. Fique perto de mim, agora.

As várias conexões do clã Fraser estavam de fato reunidas; quando fomos introduzidos à biblioteca do Castelo Beaufort, deparamo-nos com mais de vinte homens sentados pelo aposento.

Jamie foi adequadamente apresentado e fez um discurso formal, em nome dos Stuart, transmitindo os cumprimentos do príncipe Carlos e do rei Jaime a lorde Lovat e solicitando a sua ajuda. Ao discurso, lorde Lovat respondeu de forma rápida, eloqüente e evasiva. Uma vez cumpridas as formalidades da etiqueta, fui então levada à frente e apresentada, depois do que o ambiente ficou mais relaxado.

Fui cercada por vários cavalheiros das Highlands, que se revezavam trocando palavras de boas-vindas comigo, enquanto Jamie conversava com alguém de nome Graham, que parecia ser primo de lorde Lovat. Os colonos me olhavam com uma certa reserva, mas todos mostraram-se gentis — com uma única exceção.

O Jovem Simon, muito parecido com seu pai na silhueta troncuda, mas quase cinqüenta anos mais novo, adiantou-se e fez uma mesura sobre a minha mão. Endireitando-se, examinou-me de alto a baixo com uma intensidade que chegou às raias da falta de educação.

— Mulher de Jamie, hum? — ele perguntou. Possuía os mesmos olhos rasgados de seu pai e de seu sobrinho, mas os dele eram castanhos, da cor de um lamaçal. — Acho que isso significa que posso chamá-la de “sobrinha”, não? — Tinha aproximadamente a idade de Jamie, claramente alguns anos mais novo do que eu.

— Hum-hum — eu disse educadamente, enquanto ele ria de sua própria esperteza. Tentei retirar minha mão, mas ele não queria soltá-la. Em vez disso, sorriu jovialmente, lançando-me aquele olhar de cima a baixo outra vez.

— Já ouvi falar de você, sabe — ele disse. — É bastante famosa nas High-lands, madame.

— Ah, é mesmo? Que gentileza. — Puxei a mão discretamente; em resposta, sua mão apertou-se ainda mais em torno da minha, quase a ponto de doer.

— Ah, sim. Ouvi dizer que é muito popular entre os homens sob o comando de seu marido — ele disse, sorrindo com tanta ênfase que seus olhos transformaram-se em duas fendas marrom-escuras. — Eles a chamam de neo-geimnidh meala, eu soube. Significa “senhora dos lábios de mel”, ele traduziu, vendo meu olhar confuso diante do gaélico pouco familiar.

— Ora, obrigada... — comecei, mas foi tudo que consegui dizer antes do punho de Jamie atingir em cheio o maxilar de Simon filho e enviar seu tio girando de encontro a uma mesa de tortas, espalhando doces e talheres pelas pedras polidas do assoalho com uma barulhada terrível.

Ele se vestia como um cavalheiro, mas possuía os instintos de um lutador. O Jovem Simon girou sobre os joelhos, os punhos em riste, e ficou ali paralisado. Jamie olhou-o de cima, os punhos cerrados, mas abaixados, seu silêncio e imobilidade mais ameaçadores do que palavras ou gestos.

— Não — ele disse sem se alterar -, ela não compreende bem o gaélico. E agora que você o demonstrou para satisfação de todos, vai pedir desculpas gentilmente a minha mulher, antes que eu enfie seus dentes goela abaixo. — O Jovem Simon olhou para cima, para Jamie, com raiva, depois olhou para o lado, para o pai, que assentiu imperceptivelmente, parecendo impaciente com esta interrupção. Os cabelos negros e cheios do Jovem Simon haviam se soltado da fita que os prendia e espalhavam-se como musgo ao redor de seu rosto. Analisou Jamie cautelosamente, mas também com uma estranha nuança de divertimento, mesclado a respeito. Limpou a boca com as costas da mão e fez uma solene reverência para mim, ainda de joelhos.

— Perdão, madame Fraser, e minhas desculpas por qualquer ofensa que possa ter sofrido.

Eu não pude fazer nada além de balançar a cabeça educadamente em resposta, antes de Jamie me conduzir para fora do aposento. Já havíamos quase alcançado a porta ao fim do corredor quando eu falei, olhando para trás para me certificar de que não éramos ouvidos.

— O que, afinal, neo-geimnidh meala significa? — perguntei, puxando sua manga para que ele andasse mais devagar. Olhou para baixo, como se acabasse de ser lembrado de minha presença.

— Hein? Ah, significa lábios de mel, sim. Mais ou menos. -Mas...

— Não era à sua boca que ele estava se referindo, Sassenach — Jamie disse secamente.

— Ora, que... — Fiz menção de voltar à biblioteca, mas Jamie apertou meu braço com mais força.

— Não se preocupe, Sassenach. Eles só estão me testando. Tudo vai ficar bem.

Fui deixada aos cuidados de lady Francês, irmã do Jovem Simon, enquanto Jamie retornava à biblioteca, os ombros empertigados, prontos para a luta. Esperava que ele não batesse em mais nenhum de seus parentes; embora os Fraser não fossem, de um modo geral, tão grandes quanto os MacKenzie, possuíam uma espécie de vigilância agressiva que era um sinal de agouro para qualquer um que tentasse alguma coisa em sua vizinhança imediata.

Lady Francês era jovem, talvez vinte e dois anos, e inclinada a me ver com uma espécie de aterrorizado fascínio, como se eu fosse saltar sobre ela se não fosse incessantemente aplacada com chá e doces. Tentei ser o mais agradável e inofensiva possível e, após algum tempo, ela relaxou o suficiente para confessar que nunca conhecera uma mulher inglesa antes. “Mulher inglesa” sendo, pelo que pude apreender, uma espécie exótica e perigosa.

Tive o cuidado de não fazer movimentos bruscos e, depois de algum tempo, ela sentiu-se suficientemente à vontade para apresentar-me timidamente a seu filho, um garotinho robusto de mais ou menos três anos, mantido em um estado de limpeza artificial pela vigilância permanente de uma criada de ar severo.

Eu falava a Francês e sua irmã mais nova, Aline, sobre Jenny e sua família, que elas não conheciam, quando se ouviu um barulho repentino e um grito no corredor. Levantei-me num salto e cheguei à porta da sala de estar a tempo de ver uma trouxa de roupas tentando ficar de pé no corredor de pedra. A pesada porta da biblioteca estava aberta e a figura troncu-da do Velho Simon Fraser emoldurada nela, maligno como um sapo.

— Vai ser pior ainda, mulher, se não puder fazer um serviço melhor do que esse — ele disse. Seu tom de voz não era particularmente ameaçador; apenas uma declaração. A figura embolada levantou a cabeça e eu vi um rosto estranho, anguloso, mas bonito, os olhos escuros arregalados acima da mancha cada vez mais vermelha em sua maçã do rosto. Ela me viu, mas não deu nenhuma atenção à minha presença, apenas pondo-se de pé e saindo às pressas, sem nenhuma palavra. Ela era muito alta e extremamente magra, e movia-se com a estranha e um pouco desajeitada elegância de uma grua, sua sombra seguindo-a pelas pedras.

Fiquei parada, olhando espantada para o Velho Simon, a silhueta recortada contra a luz do fogo da lareira na biblioteca atrás dele. Ele sentiu meus olhos sobre ele e virou a cabeça para olhar para mim. Os velhos olhos azuis pousaram em mim, frios como safiras.

— Boa-noite, minha cara — ele disse, fechando a porta.

Fiquei ali parada, olhando atônita para a porta de madeira escura.

— O que foi aquilo? — perguntei a Francês, que surgira atrás de mim.

— Nada — ela disse, passando a língua pelos lábios nervosamente. — Vamos, prima. — Deixei que ela me afastasse dali, mas estava decidida a perguntar a Jamie mais tarde o que acontecera na biblioteca.

Havíamos chegado ao quarto que nos destinaram para passar a noite e Jamie amavelmente dispensou nosso pequeno guia com um tapinha em sua cabeça.

Deixei-me afundar na cama, olhando à minha volta desamparadamente.

— Agora o que vamos fazer? — perguntei. O jantar transcorrera sem maiores incidentes, mas eu sentira os olhos de Lovat sobre mim de vez em quando.

Jamie deu de ombros, tirando a camisa pela cabeça.

— Não faço a menor idéia, Sassenach — ele disse. — Perguntaram-me sobre as condições em que estava o exército das Highlands, as condições das tropas, o que eu sabia sobre os planos de Sua Alteza. Eu lhes disse. Então, perguntaram tudo de novo. Meu avô não acredita que alguém possa lhe dar uma resposta franca — acrescentou secamente. — Ele acha que todo mundo deve ser tão ardiloso quanto ele próprio, com uma dúzia de motivos diferentes; um para cada ocasião.

Sacudiu a cabeça e jogou a camisa sobre a cama, a meu lado.

— Ele não consegue saber se eu posso estar mentindo sobre o estado do exército das Highlands ou não. Porque se eu quisesse que ele se unisse aos Stuart, então eu devia dizer que as condições eram melhores do que de fato eram, enquanto se eu pessoalmente não me importasse, de um modo ou de outro, então eu devia falar a verdade. E ele não pretende se comprometer nem de um jeito nem de outro, enquanto não souber qual a minha posição.

— E exatamente como ele pretende saber se você está de fato dizendo a verdade? — perguntei com ceticismo.

— Ele tem uma vidente — ele respondeu distraidamente, como se isso fosse parte comum do mobiliário de um castelo das Highlands. Até onde eu sabia, era.

— É mesmo? — Sentei-me na cama, intrigada. — É aquela mulher estranha que ele atirou no corredor?

— Sim. O nome dela é Maisri e ela tem o dom da vidência desde que nasceu. Mas ela não conseguiu lhe dizer nada... ou não quis — ele acrescentou. — Ficou bem claro que ela sabia alguma coisa, mas não fazia nada além de sacudir a cabeça e dizer que não conseguia ver. Foi quando meu avô perdeu a paciência e a agrediu.

— Velho miserável! — eu disse, indignada.

— Bem, ele não é nenhum exemplo de cavalheirismo — Jamie concordou. Ele encheu a bacia de água e começou a lavar o rosto, jogando água em abundância. Ergueu os olhos, surpreso e escorrendo água, quando me ouviu soltar a respiração com uma arfada.

— Hein?

— Sua barriga... — eu disse, apontando. A pele entre o esterno e o kilt exibia uma grande mancha roxa, espalhada como uma flor enorme e feia sobre a pele clara.

Jamie olhou para a barriga com ar de pouco caso e depois continuou lavando o rosto.

— O que aconteceu — eu disse, aproximando-me para examinar melhor.

— Não foi nada — ele disse, a fala vindo quase indistinta através da toalha. — Falei um pouco impensadamente esta tarde e meu avô fez o Jovem Simon me dar uma pequena lição.

— Então, ele fez dois dos Frasers menos importantes o segurarem enquanto ele o socava na barriga? — eu disse, sentindo-me ligeiramente doente.

Atirando a toalha para o lado, Jamie pegou seu camisolão de dormir.

— Muito lisonjeiro de sua parte supor que foram precisos dois para me segurar — ele disse, rindo enquanto sua cabeça surgia pela abertura. — Na verdade, havia três; um estava por trás, me estrangulando.

— Jamie!

Ele riu, sacudindo a cabeça pesarosamente enquanto pegava o kilt que estava em cima da cama.

— Eu não sei o que é que você tem, Sassenach, que sempre me faz querer me exibir para você. Vou acabar sendo morto um dia desses, tentando impressioná-la. — Suspirou, cuidadosamente alisando o camisão de lã sobre a barriga. — É só encenação, Sassenach. Não precisa se preocupar.

— Encenação! Pelo amor de Deus, Jamie!

— Nunca viu um cachorro de fora tentando se juntar a um bando de cachorros, Sassenach? Os outros o cheiram, mordiscam suas canelas e rosnam, para ver se ele vai se acovardar ou rosnar de volta para eles. E às vezes chegam mesmo a se morder, às vezes não, mas, no final, cada cachorro no bando fica sabendo seu lugar e quem é o líder. O Velho Simon quer ter certeza de que eu sei quem lidera esse bando; só isso.

— Ah, é? E você sabe? — Deitei-me, esperando-o vir para a cama. Ele pegou a vela e riu para mim, a luz bruxuleante captando um brilho azul em seus olhos.

— Uuuf— ele disse, soprando a vela.

Vi Jamie bem pouco nas duas semanas seguintes, exceto à noite. Durante o dia, ele estava sempre com seu avô, caçando ou cavalgando -pois Lovat era um homem vigoroso, apesar da idade -, ou bebendo no gabinete, enquanto a Velha Raposa lentamente tirava suas conclusões e traçava seus planos.

Eu passava a maior parte do tempo com Francês e as outras mulheres. Longe da sombra assustadora do pai, Francês adquiria coragem suficiente para expressar seus próprios pensamentos, e demonstrou ser uma companhia interessante e inteligente. Ela era responsável pelo andamento sem atropelos do castelo e de seus empregados, mas quando o pai surgia em cena, ela reduzia-se à sua insignificância, raramente erguendo os olhos ou falando mais do que um sussurro. Não sei se poderia culpá-la.

Duas semanas após nossa chegada, Jamie foi me buscar na sala de visitas onde eu estava sentada com Francês e Aline, dizendo que lorde Lovat queria me ver.

O Velho Simon gesticulou displicentemente na direção das garrafas de bebidas na mesa junto à parede, depois se instalou numa grande cadeira de braços de nogueira entalhada, com estofamento em um veludo azul desbotado. A cadeira encaixava-se em sua forma atarracada e troncuda como se tivesse sido construída ao seu redor; imaginei se de fato havia sido feita sob encomenda ou se, após longo uso, ele tivesse se adaptado à forma da cadeira.

Sentei-me sossegadamente a um canto com meu copo de Porto e permaneci em silêncio enquanto Simon interrogava Jamie outra vez sobre a situação e as perspectivas de Carlos Stuart.

Pela vigésima vez em uma semana, Jamie pacientemente repetiu todas as informações: o número de tropas disponíveis; a estrutura de comando - admitindo-se que havia uma; o armamento disponível e suas condições - em sua maior parte, precárias; as perspectivas de Carlos receber o apoio de lorde Lewis Gordon ou dos Farquharson; o que Glengarry dissera depois de Prestonpans; o que Cameron soube ou deduziu a respeito das manobras das tropas inglesas; por que Carlos resolvera marchar para o sul; e assim por diante. Eu me vi balançando a cabeça por cima do copo em minha mão e, com um sobressalto, despertei repentinamente, bem a tempo de impedir que o líquido cor de rubi entornasse em minha saia.

— ...E lorde George Murray e Kilmarnock ambos acham que Sua Alteza faria melhor retirando-se para as Highlands durante o inverno — Jamie concluiu, bocejando. Apertado na cadeira estreita que haviam lhe dado, ele ergueu-se e espreguiçou-se, sua sombra tremulando nas tapeçarias claras que cobriam as paredes de pedra.

— E o que você mesmo pensa? — Os olhos do Velho Simon cintilaram sob as pálpebras semicerradas, enquanto ele se reclinava na cadeira. O fogo ardia em chamas altas e luminosas na lareira; Francês havia abafado o fogo no salão principal, cobrindo-o com turfas, mas este fora aceso de novo por ordem de Lovat, e com lenha, não turfa. O aroma de resina de pinheiro da lenha queimada era penetrante, misturado ao cheiro mais pesado de fumaça.

A luz lançava a sombra de Jamie bem alto na parede enquanto ele se movia sem parar, não querendo sentar-se outra vez. O ambiente estava confinado e escuro no pequeno gabinete, com as cortinas cerradas — muito diferente do pátio da igreja aberto e ensolarado em que Colum lhe fizera a mesma pergunta. E a situação agora mudara; não mais a figura popular e bem-amada a quem os chefes de clãs se submetiam, Carlos agora estava enviando recados aos chefes, implacavelmente exigindo que cumprissem suas obrigações. Mas a natureza do problema era a mesma — uma natureza amarga e sombria, pairando como uma sombra sobre nós.

— Eu lhe disse o que penso... mais de doze vezes. —Jamie falou rispidamente. Ele movia os ombros com impaciência, encolhendo-os como se o casaco estivesse apertado demais.

— Ah, sim. Você me disse. Mas desta vez eu acho que devemos ter a verdade. — O Velho Simon acomodou-se melhor em sua cadeira estofada, as mãos entrelaçadas no colo.

— É mesmo? — Jamie soltou uma breve risada e virou-se para encarar seu avô. Apoiou-se contra a mesa, as mãos entrelaçadas às costas. Apesar das diferenças de figura e de postura, havia uma tensão entre os dois homens que revelava uma semelhança fugaz entre eles. Um alto e o outro atarracado, mas ambos fortes, teimosos e determinados a vencer aquele embate.

— Não sou seu parente? E seu chefe? Eu comando sua lealdade, não? Então, essa era a questão. Colum, tão acostumado à fraqueza física aprendera o segredo de usar a fraqueza de outro homem em seu próprio proveito. Simon Fraser, forte e vigoroso mesmo na velhice, estava acostumado a ser acatado por meios mais diretos. Eu podia ver pelo sorriso amargo no rosto de Jamie que ele, também, estava comparando o apelo de Colum com a exigência de seu avô.

— Você pode? Não me lembro de ter lhe feito nenhum juramento. Vários pêlos longos e hirsutos eriçaram-se nas sobrancelhas de Simon, como acontece com homens idosos. Eles estremeceram à luz do fogo, embora eu não soubesse dizer se de indignação ou divertimento.

— Juramento, hein? E não é o sangue dos Fraser que corre em suas veias?

A boca de Jamie contorceu-se ironicamente ao responder.

— Dizem que uma criança é sábia quando conhece o próprio pai, não? Minha mãe era uma MacKenzie; disso eu sei.

O rosto de Simon ficou roxo e suas sobrancelhas uniram-se. Em seguida, sua boca abriu-se e ele soltou uma sonora gargalhada. Riu até ser forçado a endireitar-se na cadeira e inclinar-se para frente, lançando perdigotos e engasgando. Finalmente, batendo uma das mãos no braço da cadeira num riso incontrolável, enfiou a outra na boca e retirou os dentes postiços.

— Deus — disse, salpicando cuspe e respirando com um chiado. Com lágrimas e saliva pelo rosto, tateou cegamente em direção à mesinha junto à sua cadeira e largou a dentadura no prato de bolo. Os dedos nodosos fecharam-se em um guardanapo de linho que ele apertou contra o rosto, ainda emitindo roncos sufocados de riso enquanto conduzia a limpeza.

— Nossa, rapaz — ele disse finalmente, ciciando os esses. — Passe-me o uísque.

Com as sobrancelhas erguidas, Jamie pegou a garrafa da mesa atrás dele e passou-a a seu avô, que tirou a rolha e tomou um grande gole da bebida sem se incomodar com a formalidade de um copo.

— Você acha que não é um Fraser? — ele disse, abaixando a garrafa e expirando com uma rajada. — Ah! — Reclinou-se na cadeira outra vez, a barriga subindo e descendo rapidamente enquanto ele recuperava o fôlego. Apontou um dedo longo e descarnado para Jamie.

— Seu próprio pai ficou bem aí onde você está, rapaz, e me disse a mesma coisa, no dia em que deixou o Castelo Beaufort para sempre. — O Velho Simon estava mais calmo agora; tossiu várias vezes e limpou o rosto outra vez.

— Sabia que eu tentei impedir o casamento de seus pais alegando que o filho de Ellen MacKenzie não era de Brian?

— Sim, eu sabia. — Jamie apoiava-se na mesa outra vez, inspecionando seu avô através dos olhos estreitados.

Lorde Lovat fez um muxoxo.

— Não vou dizer que sempre houve boa vontade entre mim e os meus, mas eu conheço meus filhos. E meus netos — ele acrescentou explicitamente. — Diabos me carreguem se eu não acho que qualquer um deles poderia ser um corno, tanto quanto eu.

Jamie não moveu um fio de cabelo, mas não pude deixar de desviar os olhos do Velho Simon. Vi-me fitando sua dentadura descartada, a madeira de faia manchada estava brilhando molhada entre os farelos de bolo. Felizmente, lorde Lovat não notou minha ligeira distração.

Ele continuou, novamente sério.

— Bem, então. Dougal MacKenzie de Leoch declarou-se a favor de Carlos. Você o considera seu chefe? É isso que você está me dizendo, que prestou um juramento a ele?

— Não. Não prestei juramento a ninguém.

— Nem mesmo a Carlos? — A reação do velho foi rápida, lançando-se sobre isso como um gato sobre um rato. Eu quase podia ver sua cauda torcer-se enquanto observava Jamie, os olhos rasgados e fundos brilhando sob as pálpebras enrugadas.

Os olhos de Jamie estavam fixos nas chamas saltitantes, sua sombra imóvel na parede às suas costas.

— Ele não me pediu. — Isso era verdade. Carlos não precisara exigir um juramento de Jamie, tendo eliminado a necessidade ao assinar o nome de Jamie em sua Lista de Adesão. Ainda assim, eu sabia que o fato de não ter dado sua palavra era importante para Jamie. Se tivesse que trair o homem, que não fosse como um chefe reconhecido. A idéia de que o mundo inteiro achasse que tal juramento existia era uma questão de menor importância.

Simon resmungou outra vez. Sem seus dentes postiços, seu nariz e seu queixo quase se uniam, tornando a parte de baixo de seu rosto estranhamente reduzida.

— Então, nada o impede de fazer um juramento a mim, como chefe de seu clã — ele disse serenamente. A cauda abanando era menos visível, mas ainda estava lá. Eu quase podia ouvir os pensamentos em sua cabeça, deslizando de um lado para outro em pantufas. Com a lealdade de Jamie jurada a ele, e não a Carlos, o poder de Lovat aumentaria. Assim como sua riqueza, com uma parte da renda de Lallybroch que ele poderia reclamar como um imposto do chefe. A perspectiva de um ducado aproximava-se um pouco, brilhando através do nevoeiro.

— Nada a não ser minha própria vontade — Jamie concordou amavelmente.

— Mas este é um obstáculo pequeno, não é? — Seus próprios olhos enrugaram-se nos cantos ao se estreitarem ainda mais.

— Mmuhm. — Os olhos de Lovat estavam quase fechados e ele sacudiu a cabeça devagar de um lado para o outro. — Ah, sim, rapaz, você é mesmo o filho de seu pai. Teimoso como uma mula e duas vezes mais idiota. Eu devia saber que Brian não geraria nada além de estúpidos daquela vagabunda.

Jamie adiantou-se e pegou a dentadura de madeira de faia do prato.

— É melhor colocar isso de volta, velho idiota — ele disse rispidamente. — Não consigo conversar com você desse jeito.

A boca de seu avô abriu-se num sorriso contrafeito que mostrava o toco amarelado de um único dente quebrado na arcada inferior.

— Não? — ele disse. — Mas você conversaria sobre um acordo? — Lançou um rápido olhar para mim, não vendo nada além de outra ficha no jogo. -Seu juramento pela honra de sua esposa, que tal?

Jamie deu uma sonora risada, ainda segurando os dentes em uma das mãos.

— Ah, é? Quer dizer, subjugá-la diante dos meus olhos, então, vovô? — Inclinou-se relaxadamente para trás, com ar de desdém, a mão sobre a mesa. — Vá em frente, e quando ela tiver acabado com você, mandarei tia Francês vir para varrer os pedaços.

Seu avô examinou-o calmamente.

— Eu não, rapaz. — Um dos lados da boca desdentada ergueu-se num sorriso enviesado quando ele virou a cabeça para olhar para mim. -Embora eu tenha tido meu prazer com vagabundas. — A malícia fria nos olhos escuros me fez desejar puxar meu manto sobre meus seios como forma de proteção; infelizmente, eu não o estava usando.

— Quantos homens há em Beaufort, Jamie? Quantos gostariam de colocar sua sassenach para o único uso que ela serve? Não pode guardá-la noite e dia.

Jamie aprumou-se devagar, a enorme sombra imitando seus movimentos na parede. Ele olhou para seu avô de cima para baixo, sem nenhuma expressão no rosto.

— Ah, acho que não tenho com que me preocupar, vovô — ele disse serenamente. — Porque minha mulher é uma pessoa rara. Uma mulher sábia. Uma dama branca, como dame Aliset.

Eu nunca ouvira falar em dame Aliset, mas lorde Lovat obviamente havia; virou a cabeça subitamente para me olhar, os olhos arregalados de choque e espanto. Ficou boquiaberto, mas antes que pudesse falar, Jamie continuara, uma malícia subjacente claramente audível em sua fala macia.

— O homem que a tomar num abraço profano terá suas partes privadas ulceradas como uma maçã destruída pela geada — ele disse, com notória satisfação -, e sua alma arderá para sempre no inferno. — Exibiu um ricto de sarcasmo para seu avô e recolheu a mão. — Como isso. — Os dentes de madeira aterrissaram no meio do fogo com um baque seco e imediatamente começaram a queimar com um chiado.

 

A maioria dos escoceses das terras baixas havia aderido ao protestantismo nos dois séculos anteriores. Alguns dos clãs das Highlands se juntaram a eles, mas outros, como os Fraser e os MacKenzie, mantiveram a fé católica. Especialmente os Fraser, com seus estreitos laços familiares com a França católica.

Havia uma pequena capela no Castelo Beaufort, para atender às necessidades religiosas do conde e sua família, mas o convento de Beauly, em ruínas como estava, continuava a ser o local de sepultamento dos Lovat, e o assoalho da capela-mor de teto desmoronado estava densamente pavimentado com as lajes planas dos túmulos daqueles que estavam sob elas.

Era um lugar tranqüilo e eu costumava andar por ali às vezes, apesar do tempo frio e tempestuoso. Eu não fazia a menor idéia se o Velho Simon falara a sério em sua ameaça contra mim ou se o fato de Jamie me comparar à dame Aliset — que vinha a ser uma lendária “mulher branca” ou curandeira, a equivalente escocesa a La Dame Blanche — tinha sido suficiente para anular essa ameaça. Mas eu achava que ninguém teria a coragem de se aproximar de mim entre os túmulos de antepassados dos Fraser.

Certa tarde, poucos dias depois da cena no gabinete, atravessei uma brecha na parede em ruínas do convento e descobri que desta vez eu não a tinha só para mim. A mulher alta que eu vira fora do gabinete de Lovat estava lá, reclinada em um dos túmulos de pedra vermelha, os braços cruzados sobre o peito para se proteger do frio, as pernas longas atiradas para fora como as de uma cegonha.

Fiz menção de dar meia-volta, mas ela me viu e fez sinal para que eu fosse me unir a ela.

— É a sra. Broch Tuarach? — ela disse, embora não houvesse mais do que uma leve nuance de interrogação em sua voz suave das Highlands.

— Sou. E você é... Maisri?

Um pequeno sorriso iluminou seu rosto. Possuía feições muito intrigantes, ligeiramente assimétricas, como uma pintura de Modigliani, e longos cabelos negros, soltos pelos ombros, entremeados de fios brancos, embora ela obviamente ainda fosse nova. Uma adivinha, hein? Achei que ela se parecia mesmo a uma adivinha.

— Sim, eu tenho o dom da vidência — ela disse, o sorriso ampliando-se um pouco em sua boca torta.

— Também lê a mente? — perguntei.

Ela riu, o som perdendo-se no vento que gemia pelas paredes em ruínas.

— Não, madame. Mas eu leio rostos e...

— E o meu é um livro aberto. Eu sei — eu disse, resignada.

Ficamos lado a lado por alguns instantes, observando minúsculos respingos de uma chuva fina misturada com neve que se lançava contra o arenito, bem como a grama espessa e queimada que cobria o cemitério da igreja.

— Dizem que você é uma dama branca — Maisri mencionou de repente. Podia senti-la observando-me intensamente, mas sem nenhum sinal do nervosismo que parecia comum a tal observação.

— Realmente, é o que dizem — concordei.

— Ah. — Ela não voltou a falar, ficou apenas olhando para baixo, fitando os pés, longos e elegantes, calçados em meias de lã e sandálias de couro. Os próprios dedos dos meus pés, mais agasalhados, estavam ficando dor-mentes e imaginei que os dela deviam estar congelados como uma pedra de gelo, caso ela estivesse ali há algum tempo.

— O que está fazendo aqui? — perguntei. O convento era um lugar belo e tranqüilo no tempo bom, mas não era propriamente um abrigo na chuva fina e gelada do inverno.

— Eu venho aqui para pensar — ela disse. Deu um leve sorriso, mas estava obviamente preocupada. O que quer que estivesse em sua mente, seus pensamentos não eram dos mais agradáveis.

— Pensar em quê? — perguntei, alçando o corpo para sentar-me ao lado dela na tumba. Via-se a figura desgastada de um cavaleiro na tampa, sua espada de dois gumes presa junto ao peito, o punho formando uma cruz sobre seu coração.

— Quero saber por quê! — ela explodiu. Seu rosto fino iluminou-se repentinamente de indignação.

— Por que o quê?

— Por quê! Por que posso ver o que vai acontecer, quando não há nada que eu possa fazer para mudar ou impedir isso? De que adianta um dom como esse? Aliás, não é um dom, é uma desgraçada maldição, embora eu não tenha feito nada para ser amaldiçoada assim!

Ela virou-se e olhou com ódio para Thomas Fraser, sereno sob seu elmo, com o punho de sua espada agarrado sob as mãos cruzadas.

— Sim, e talvez seja praga sua, velho idiota! Sua e do resto de sua maldita família. Você alguma vez já pensou sobre isso? — ela perguntou de repente, virando-se para mim. Suas sobrancelhas arquearam-se bem alto acima dos olhos castanhos que faiscavam com furiosa inteligência.

— Você já pensou que talvez não seja absolutamente o seu destino que faz você ser quem é? Que talvez você tenha o dom ou o poder da vidência apenas porque é necessário para outra pessoa, que isso não tem nada a ver com você, exceto que é você quem tem e deve sofrer pelo fato de possuir esse dom? Já pensou?

— Não sei — eu disse devagar. — Oh, sim, agora que mencionou, eu tenho me perguntado. Por que eu? Você se pergunta isso o tempo todo, é claro. Mas nunca encontrei uma resposta satisfatória. Você acha que talvez tenha o dom da vidência porque essa é uma maldição sobre os Fraser... saber sua morte antes da hora? É uma idéia infernal.

— Infernal é a palavra certa — ela concordou com amargura. Reclinou-se contra o sarcófago de pedra vermelha, olhando fixamente para fora, para a mistura de chuva e neve que pulverizava por cima da parede em ruínas.

— O que você acha? — ela perguntou repentinamente. — Devo contar a ele?

Fiquei perplexa.

— Quem? Lorde Lovat?

— Sim, ele mesmo. Ele me pergunta o que eu vejo e me bate quando eu lhe digo que não há nada para ser visto. Mas ele sabe; ele vê em meu rosto quando eu tenho uma visão. Mas esse é o único poder que tenho; o poder de não dizer. — Os dedos longos e brancos deslizaram de modo sinuoso de dentro do seu manto, brincando nervosamente com as dobras de tecido molhado.

— Há sempre a chance, não é? — ela disse. Sua cabeça estava inclinada de modo que o capuz de seu manto escondia seu rosto do meu olhar. — Há a chance de o fato de eu contar fazer alguma diferença. E faz, de vez em quando, sabe. Eu disse a Lachlan Gibbons quando vi seu genro enrolado em algas marinhas e as enguias remexendo-se embaixo de sua camisa. Lachlan ouviu; ele saiu imediatamente e fez um rombo no barco de seu genro. — Ela riu, lembrando-se. — Meu Deus, foi a maior confusão! Mas quando veio a grande tempestade na semana seguinte, três homens morreram afogados e o genro de Lachlan estava a salvo em casa, ainda consertando o barco. E da próxima vez que o vi, sua camisa estava seca em seu corpo e as algas marinhas haviam desaparecido de seus cabelos.

— Então pode acontecer — eu disse num sussurro. — Às vezes.

— ela disse, balançando a cabeça, ainda olhando fixamente para o chão. Lady Sarah Fraser jazia a seus pés, a lápide da senhora coroada por um crânio em cima de ossos cruzados. Hodie mihi eras tibi, dizia a inscrição. Sic transit gloria mundi. Minha vez hoje, a sua amanhã. E assim morre a glória do mundo.

— Às vezes não. Quando vejo um homem enrolado em sua mortalha, a doença vem em seguida... e não há nada que se possa fazer a respeito.

— Talvez — eu disse. Olhei para minhas próprias mãos, espalmadas na lápide a meu lado. Sem medicina, sem instrumentos, sem conhecimento, sim, então a doença era destino e nada podia ser feito. Mas se houvesse um curandeiro por perto e tivesse os recursos necessários para curar... seria possível que Maisri visse a sombra de uma doença iminente como um sintoma real, embora geralmente invisível, como uma febre ou uma erupção? E então apenas a falta de recursos médicos fizesse a leitura desses sintomas uma sentença de morte? Eu jamais saberia.

— Nós nunca vamos saber — eu disse, voltando-me para ela. — Não temos como saber. Temos conhecimento de coisas que outras pessoas não têm, mas não sabemos por que ou como. Mas temos esse dom... e você está certa, é uma maldição. Mas se você tem o conhecimento e esse conhecimento pode evitar danos... acha que ele poderia causar danos?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não sei dizer. Se você soubesse que iria morrer em breve, há coisas que faria? E seriam apenas coisas boas que você faria ou iria aproveitar a última chance que poderia ter para fazer o mal a seus inimigos, mal que de outra forma poderia ser deixado em paz?

— Não faço a menor idéia. — Ficamos em silêncio por algum tempo, observando a chuva transformar-se em neve e os flocos soprados pelo vento girarem em rajadas pelos adereços arruinados da parede do convento.

— Às vezes, eu sei que há alguma coisa lá — Maisri disse repentinamente -, mas posso bloqueá-la fora da minha mente, não olhar. Foi assim com lorde Lovat; eu sabia que havia algo, mas eu conseguira não ver. Mas ele me ordenou que olhasse e dissesse as palavras mágicas que fazem a visão clarear. E eu o fiz. — O capuz de seu manto escorregou para trás quando ela inclinou a cabeça, erguendo os olhos para a parede do convento que assomava acima de nós, ocre, branca e vermelha, com a argamassa esfare-lando entre as pedras. Cabelos negros entremeados de branco derramaram-se pelas suas costas, livres ao vento.

— Ele estava lá, de pé diante do fogo, mas era dia e podia-se ver com clareza. Um homem estava de pé atrás dele, imóvel como uma árvore, o rosto coberto de preto. E sobre o rosto do lorde recaía a sombra de um machado.

Ela falava com naturalidade, mas ainda assim um calafrio percorreu minha espinha. Ela suspirou finalmente e virou-se para mim.

— Bem, eu lhe direi, então, e deixarei que faça o que achar melhor. Condená-lo ou salvá-lo, isso eu não posso fazer. A escolha é dele e que o Senhor Jesus Cristo o ajude.

Virou-se para ir embora e eu deslizei de cima da tumba, aterrissando na laje de lady Sarah.

— Maisri — eu disse. Ela virou-se para olhar para mim, os olhos negros como as sombras entre os túmulos.

— Sim?

— O que você vê, Maisri? — perguntei e fiquei parada, à espera, encarando-a, as mãos abandonadas ao lado do corpo.

Ela fitou-me intensamente, acima e abaixo, atrás e dos lados. Por fim, sorriu debilmente, balançando a cabeça.

— Não vejo nada além de você mesma, senhora — ela disse serenamente. — Há apenas você.

Ela se virou e desapareceu pela trilha entre as árvores, deixando-me entre os flocos de neve esvoaçantes.

Condenar ou salvar. Isso eu não posso fazer. Porque não tenho poder além do conhecimento, nenhuma capacidade de submeter os outros à minha vontade, nenhum modo de impedi-los de fazer o que eles desejarem. Há apenas eu.

Sacudi a neve das dobras do meu manto e virei-me para seguir Maisri pela trilha, compartilhando seu amargo conhecimento de que havia apenas eu. E eu sozinha não era suficiente.

O comportamento do Velho Simon não se alterou muito nas próximas duas ou três semanas, mas eu imaginei que Maisri tivesse mantido sua intenção de contar-lhe sobre suas visões. Enquanto ele parecia, até então, a ponto de convocar seus arrendatários e colonos para sair em marcha, repentinamente ele recuou, dizendo que não havia pressa, afinal. Esse adiamento enfureceu o Jovem Simon, que estava mordendo os freios de impaciência para ir à guerra e cobrir-se de glória.

— Não é uma questão urgente — disse o Velho Simon, pela centésima vez. Ergueu um pão de aveia, cheirou-o e colocou-o de volta na mesa. — Talvez seja melhor esperarmos o plantio na primavera.

— Eles já poderão estar em Londres na primavera! — O Jovem Simon olhou colericamente para seu pai do outro lado da mesa de jantar e estendeu a mão para pegar a manteiga. — Se você mesmo não quiser ir, então me deixe levar os homens para nos unirmos a Sua Alteza!

Lorde Lovat rosnou.

— Você tem a impaciência do próprio diabo — ele disse —, mas não tem a metade de seu juízo. Nunca vai aprender a esperar?

— A hora de esperar já passou há muito tempo! — Simon irrompeu. -Os Cameron, os MacDonald, os MacGillivray, todos estão lá desde o primeiro instante. Vamos chegar no final, encolhidos de medo, como supli-cantes, ficando atrás de Clanranald e Glengarry? Grande chance você terá de um ducado então!

Lovat possuía uma boca larga e expressiva; mesmo na velhice, ela conservava traços de humor e sensualidade. Nenhum dos dois era visível no momento. Ele pressionava os lábios com força, examinando seu herdeiro sem entusiasmo.

— Case-se com pressa e vai se arrepender devagar — ele disse. — E isso é mais verdade ainda na escolha de um chefe do que de uma rapariga. De uma mulher é possível se livrar.

O Jovem Simon resfolegou e olhou para Jamie em busca de apoio. Nos últimos dois meses, sua desconfiada hostilidade inicial esvaíra-se num respeito relutante pela óbvia competência de seu parente bastardo na arte da guerra.

— Jamie diz que... — ele começou.

— Sei muito bem o que ele diz — o Velho Simon interrompeu. – Ele já repetiu muitas vezes. Tomarei minha decisão no devido tempo. Mas não se esqueça, rapaz: no que diz respeito a você se declarar em uma guerra, pouco se perde em esperar.

— Esperar para ver quem vence — Jamie murmurou, diligentemente limpando o prato com um pedaço de pão. O velho lorde levantou os olhos abruptamente, mas evidentemente decidido a ignorar essa contribuição.

— Você deu sua palavra aos Stuart — o Jovem Simon continuou obstinadamente, sem prestar atenção à contrariedade de seu pai. — Com certeza, não pretende faltar com a palavra, não é? O que as pessoas dirão de sua honradez?

— O mesmo que disseram em 1715 — seu pai respondeu calmamente. — Muitos daqueles que “disseram coisas” na ocasião, agora estão mortos, falidos ou pobres na França. Mas eu ainda estou aqui.

— Mas... — O Jovem Simon estava vermelho, o resultado habitual desse tipo de conversa com seu pai.

— Basta — o velho chefe interrompeu incisivamente. Sacudiu a cabeça, olhando colericamente para o filho, os lábios contraídos em desaprovação. — Santo Deus. Às vezes, eu chego a desejar que Brian não tivesse morrido. Ele pode ter sido um tolo também, mas ao menos sabia quando parar de falar.

Tanto o Jovem Simon quanto Jamie ruborizaram-se de raiva, mas depois de trocarem um olhar cauteloso, voltaram a atenção para sua comida

— E o que está olhando? — grunhiu lorde Lovat, quando desviou os olhos do filho e flagrou meus olhos sobre ele.

— O senhor — respondi rispidamente. — Não está com uma aparência nada boa. — Não estava, mesmo para um homem de setenta e poucos anos. Pouco acima de uma altura mediana, ele normalmente ainda era um homem de aparência sólida, dando a impressão de que seu peito e sua barriga arredondados eram firmes e saudáveis sob a camisa de linho. Mas ultimamente começara a parecer flácido, como se tivesse encolhido um pouco dentro da pele. As bolsas enrugadas sob seus olhos acentuavam as olheiras e a pele apresentava uma palidez doentia.

— Muhm — ele grunhiu. — E por que não? Não obtenho nenhum descanso quando durmo, nem consolo quando estou acordado. Não seria de admirar se eu estivesse parecendo um noivo.

— Ah, mas você está, pai — disse o Jovem Simon maliciosamente, vendo ali uma chance de revide. — E um noivo do fim da lua-de-mel, com toda a sua seiva drenada do corpo.

— Simon! — disse lady Francês. Ainda assim, ouviu-se uma onda de risadinhas ao redor da mesa e até a boca de lorde Lovat contorceu-se ligeiramente.

— Ah, é mesmo? — ele disse. — Bem, eu preferia que a causa do meu sofrimento fosse essa, sabe, rapaz. — Remexeu-se desconfortavelmente em sua cadeira e afastou o prato de nabos cozidos que estava sendo servido. Pegou seu copo de vinho, levou-o ao nariz para sentir o aroma e, em seguida, recolocou-o devagar de volta na mesa.

— É falta de educação olhar fixamente para as pessoas — ele observou friamente para mim. — Ou talvez os ingleses tenham padrões diferentes de cortesia.

Fiquei um pouco ruborizada, mas não abaixei os olhos.

— Eu só estava pensando... o senhor não tem apetite e não bebe. Que outros sintomas tem?

— Quer provar que vale alguma coisa, hein? — Lovat reclinou-se para trás em sua cadeira, cruzando as mãos sobre o largo ventre como uma rã velha. — Uma curandeira, meu neto diz. Uma dama branca, hein? -Lançou um olhar reptiliano para Jamie, que simplesmente continuou a comer, ignorando seu avô. Lovat grunhiu e inclinou a cabeça ironicamente em minha direção.

— Bem, eu não bebi, dona, porque não consigo mijar e não pretendo explodir como a bexiga de um porco. E não descansei, porque me levanto uma dúzia de vezes por noite para usar meu urinol e quase não consigo usá-lo. Então, o que tem a dizer sobre isso, dame Aliset?

— Pai — murmurou lady Francês -, francamente, não acho que deveria...

— Poderia ser uma infecção de bexiga, mas me parece prostatite — respondi. Peguei meu copo de vinho e tomei um bom gole, saboreando-o antes de deixar que deslizasse pela minha garganta. Sorri com recato para lorde Lovat por cima do meu copo enquanto o abaixava.

— Ah, é mesmo? — ele disse, as sobrancelhas muito arqueadas. — E o que é isso, por favor?

Empurrei minhas mangas para trás e ergui as mãos, flexionando meus dedos como uma mágica prestes a realizar um ato de prestidigitação. Ergui o indicador esquerdo.

— A glândula da próstata nos homens — eu disse instrutivamente -envolve o tubo da uretra, que é a passagem que vai da bexiga ao exterior. -Juntei dois dedos da minha mão direita em um círculo em torno do meu indicador esquerdo, para ilustrar. — Quando a próstata fica inflamada ou aumentada, e quando isso acontece é que se chama de prostatite, ela comprime a uretra — estreitei o círculo dos meus dedos -, interrompendo o fluxo da urina. Muito comum em homens mais velhos. Entendeu?

Lady Francês, não tendo conseguido causar nenhuma impressão em seu pai com suas opiniões sobre conversas apropriadas à mesa de jantar, sussurrava agitadamente com sua irmã mais nova, ambas me olhando com mais suspeita do que o normal.

Lorde Lovat observou minha pequena demonstração fascinado.

— Sim, entendo — ele disse. Os olhos rasgados de gato estreitaram-se ainda mais, olhando especulativamente para os meus dedos. — E o que se pode fazer a respeito, então, já que sabe tanto sobre o assunto?

Pensei, franzindo a testa enquanto rebuscava a memória. Eu na verdade nunca vira — muito menos tratara — um caso de prostatite, e não era uma condição que afligisse jovens soldados. Ainda assim, eu lera textos médicos onde era descrita; lembrei-me do tratamento, porque causara muita hilari-dade entre as estudantes de enfermagem, que haviam se debruçado com um horror fascinado sobre as ilustrações gráficas no texto.

— Bem — eu disse -, eliminando-se a cirurgia, há apenas duas coisas que pode fazer. Pode inserir uma varinha de metal pelo pênis e subir até a bexiga, para forçar a abertura da uretra — enfiei meu dedo indicador pelo círculo contraído — ou pode massagear a própria próstata, para reduzir o inchaço. Pelo reto — acrescentei prestativamente.

Ouvi um leve ruído sufocado perto de mim e ergui os olhos para Jamie. Seus olhos ainda estavam fixos no prato, mas a onda rubra subia de seu colarinho e as pontas das orelhas ardiam, vermelhas. Ele estremeceu ligeiramente. Olhei ao redor da mesa e encontrei uma falange de olhares fascinados sobre mim. Lady Francês, Aline e as outras mulheres me fitavam com expressões variadas, que iam da curiosidade à repugnância, enquanto todos os homens exibiam variações de horror revoltado.

A exceção à reação geral era o próprio lorde Lovat, que esfregava o queixo pensativo, os olhos semicerrados.

— Mmuhm — ele disse. — Uma escolha infernal. Uma vara pelo pau ou um dedo por trás, hein?

— Mais provável dois ou três — eu disse. — Repetidamente. — Dei-lhe um sorriso pequeno, conveniente.

— Ah. — Um sorrisinho semelhante decorava a boca de lorde Lovat e ele devagar ergueu o olhar, fixando os olhos azuis e fundos nos meus com uma expressão de zombaria tingida de provocação.

— Isso parece... engraçado — observou serenamente. Os olhos rasgados desceram pelas minhas mãos, avaliando.

— Você tem mãos lindas, minha querida — ele disse. — Bem-cuidadas e com dedos elegantes, delgados e longos, não?

Jamie colocou as duas mãos fragorosamente sobre a mesa e levantou-se. Inclinou-se sobre a mesa, aproximando o rosto a uns trinta centímetros do avô.

— Se o senhor está precisando de tais atenções, vovô, eu mesmo farei isso. — Espalmou as mãos sobre a mesa, grandes e sólidas, cada longo dedo com o diâmetro aproximado de um cano de pistola. — Não seria nada agradável para mim enfiar os dedos pelo seu cu velho e cabeludo — ele informou o avô —, mas imagino que seja meu dever filial salvá-lo de explodir num chuveiro de urina, não é?

Francês emitiu um débil guincho.

Lorde Lovat olhou para seu neto com considerável desaprovação, depois se ergueu lentamente de sua cadeira.

— Não precisa se preocupar — disse secamente. — Uma das criadas fará isso. — Abanou a mão para o grupo, dando sinal para que continuássemos a refeição e deixou o salão, parando para olhar especulativamente para uma jovem criada que entrava com uma bandeja de faisão fatiado. Os olhos arregalados, ela desviou-se para o lado para passar por ele.

Um silêncio mortal recaiu sobre a mesa de jantar depois da saída de Lovat. O Jovem Simon olhou para mim e abriu a boca. Depois, olhou para Jamie e fechou-a outra vez. Limpou a garganta.

— Passe-me o sal, por favor — ele disse.

— “... e em conseqüência da lamentável enfermidade que me impede de atender pessoalmente a Vossa Alteza, envio pelas mãos de meu filho e herdeiro uma prova da lealdade”, não, substitua por “apreço”, “uma prova do apreço que há muito nutro por Vossa Majestade e Vossa Alteza”. -Lorde Lovat parou, franzindo a testa para o teto.

— O que devemos mandar, Gideon? — perguntou ao secretário. — Que pareça suntuoso, mas não tanto que eu não possa dizer que se trata apenas de um presente insignificante de nenhuma importância.

Gideon suspirou e limpou o rosto com um lenço. Um homem de meia-idade, robusto, com cabelos rareados e bochechas vermelhas e gorduchas, ele obviamente achava opressivo o calor da lareira do quarto.

— O anel que o senhor ganhou do conde de Mar? — ele sugeriu, sem esperança. Uma gota de suor caiu de seu queixo duplo na carta que ele anotava e ele disfarçou e a enxugou com a manga.

— Não é suficientemente caro -julgou lorde Lovat — e carrega muitas associações políticas. — Os dedos salpicados de pintas tamborilavam pensa-tivamente sobre o cobertor enquanto ele pensava.

O Velho Simon havia se esmerado, pensei. Usava seu melhor camisão de dormir e estava recostado na cama com uma impressionante panóplia de remédios dispostos sobre a mesa, providenciados por seu médico pessoal, dr. Menzies, um homem baixinho com os olhos apertados, que ficava me examinando com considerável ar de dúvida. Suponho que o velho lorde simplesmente não confiava nos poderes de imaginação do Jovem Simon e montara aquela elaborada cena teatral para que seu herdeiro pudesse relatar com credibilidade o estado de decrepitude de lorde Lovat quando se apresentasse a Carlos Stuart.

— Ah — exclamou o Velho Lovat com satisfação. — Enviaremos o faqueiro de piquenique de ouro e prata. É bastante rico, mas frívolo demais para ser interpretado como apoio político. Além do mais — acrescentou de modo prático -, a colher está defeituosa. Muito bem, então — disse ao secretário —, vamos continuar com: “Como é do conhecimento de Vossa Alteza...”

Troquei um olhar significativo com Jamie, que disfarçou um sorriso em resposta.

— Acho que você deu a ele o que ele precisava, Sassenach — ele me dissera enquanto nos despíamos após nosso fatídico jantar na semana anterior.

— E o que foi? — perguntei. — Uma desculpa para molestar as criadas?

— Duvido que ele se preocupe muito com desculpas desse tipo —Jamie disse secamente. — Não, você lhe deu uma maneira de caminhar dos dois lados, como sempre. Se ele tem uma doença aparentemente importante e que o mantém na cama, então não pode ser culpado por não comparecer em pessoa com os homens que prometeu. Ao mesmo tempo, se ele envia seu herdeiro para a guerra, os Stuart darão a Lovat o crédito de ter cumprido a palavra e, se tudo der errado, a Velha Raposa alegará aos ingleses que ele não pretendia dar nenhuma ajuda aos Stuart, mas que o Jovem Simon seguiu em frente por conta própria.

— Soletre “prostatite” para Gideon, por favor, dona. — Lorde Lovat chamou-me, interrompendo meus pensamentos. — E trate de escrever isso corretamente, idiota — ele disse ao secretário -, não quero que Sua Alteza interprete errado.

— P-r-o-s-t-a-t-i-t-e — soletrei devagar, em favor de Gideon. — E como está hoje de manhã, por falar nisso? — perguntei, aproximando-me e parando junto à cama do Velho Simon.

— Muito melhor, obrigado — disse o velho lorde, rindo para mim com grande exibição de dentes falsos. — Quer me ver mijar?

— Agora não, obrigada — eu disse educadamente.

Foi num dia límpido e gélido de meados de dezembro que deixamos Beauly para nos unirmos a Carlos Stuart e ao exército das Highlands. Contra todos os conselhos, Carlos continuara a pressionar e entrara na Inglaterra, desafiando o tempo e o bom senso, bem como seus generais. Mas finalmente, em Derby, os generais prevaleceram, os chefes das Highlands recusaram-se a prosseguir e o exército das Highlands estava voltando na direção norte. Uma carta urgente de Carlos a Jamie insistia para que viajássemos para o sul “sem demora”, para nos encontrarmos com Sua Alteza quando ele retornasse a Edimburgo. O Jovem Simon, com toda a aparência de um chefe de clã em seu tartã carmesim, cavalgava à frente de uma coluna de homens. Os homens que possuíam montaria o acompanhavam, enquanto o número maior a pé seguia-o atrás.

Estando montados, cavalgamos com Simon à frente da coluna, até alcançarmos Cornar. Ali, nos separaríamos, Simon e as tropas Fraser dirigindo-se a Edimburgo, Jamie escoltando-me ostensivamente a Lally-broch, antes de voltar ele mesmo a Edimburgo. Ele não tinha, é claro, nenhuma intenção de retornar, mas isso não era da conta de Simon.

No meio da manhã emergi de um pequeno grupo de árvores ao lado do caminho e encontrei Jamie aguardando-me impacientemente. Cerveja quente fora servida aos homens de partida, a fim de animá-los para a jornada. E embora eu mesma tivesse descoberto que cerveja quente era um desjejum surpreendentemente bom, também descobri que tinha um efeito marcante sobre os rins.

Jamie resmungou.

— Mulheres... Como vocês podem levar tanto tempo para fazer uma coisa simples como mijar? Você faz tanta confusão a respeito disso quanto meu avô.

— Bem, da próxima vez você pode vir junto e observar — sugeri asperamente. — Talvez possa me dar algumas sugestões úteis.

Ele simplesmente resmungou outra vez e virou-se de costas para observar a coluna de homens que passava, mas sorria ainda assim. O dia claro e luminoso levantava o ânimo de todos, mas Jamie estava particularmente de bom humor naquela manhã. Não era de admirar; estávamos indo para casa. Eu sabia que ele não se enganava achando que tudo corria bem; esta guerra teria seu preço. Mas se fracassáramos em impedir Carlos, ainda poderia ser que salvássemos aquele pequeno canto da Escócia mais próximo de nós — Lallybroch. Isso talvez ainda estivesse dentro de nosso poder.

Olhei para a coluna de homens do clã que vinha atrás.

— Duzentos homens causam uma impressão considerável.

— Cento e setenta — Jamie corrigiu-me distraidamente, pegando as rédeas de seu cavalo.

— Tem certeza? — perguntei, curiosa. — Lorde Lovat disse que estava enviando duzentos homens. Eu o ouvi ditando a carta e afirmando isso.

— Bem, não enviou. — Com uma guinada do corpo, Jamie montou na sela, em seguida ficou de pé sobre os estribos, apontando para baixo da encosta à frente, para o ponto distante onde o estandarte dos Fraser com a cabeça de veado em seu brasão tremulava à frente da coluna.

— Contei-os enquanto a esperava — ele explicou. — Trinta homens montados lá na frente com Simon, depois cinqüenta com espadas largas e escudos, que são os homens da Guarda local, e atrás os colonos, com todo tipo de arma, de foices a martelos, em seus cintos, e esses são noventa.

— Suponho que seu pai esteja apostando que o príncipe Carlos não irá contá-los pessoalmente — observei cinicamente. — Tentando receber o mérito de ter mandado mais homens do que de fato mandou.

— Sim, mas os nomes entrarão nas listas do exército quando chegarem a Edimburgo — Jamie disse, franzindo o cenho. — É o que vou ver.

Segui-o mais serenamente. Meu cavalo devia ter cerca de vinte anos e não era capaz de nada além de um trote moderado. O cavalo de Jamie era um pouco mais vivo, embora ainda assim não pudesse ser comparado a Donas. O enorme garanhão fora deixado em Edimburgo, pois o príncipe Carlos queria cavalgá-lo em ocasiões públicas. Jamie atendera seu pedido, já que abrigava suspeitas de que o Velho Simon pudesse muito bem ser capaz de se apropriar do belo animal, caso Donas ficasse ao alcance de suas garras vorazes.

A julgar pela cena que se desenrolava diante de mim, a avaliação de Jamie da personalidade de seu avô não estava errada. Jamie primeiro cavalgara ao lado do secretário do Jovem Simon e o que parecia do meu privilegiado ponto de observação uma discussão acalorada terminou quando Jamie inclinou-se de sua sela, agarrou as rédeas do cavalo do indignado secretário e arrastou-o para fora das linhas, para a beira do caminho enlameado.

Os dois homens desmontaram e ficaram parados frente a frente, obviamente exaltados. O Jovem Simon, vendo a altercação, aproximou-se em seu cavalo, fazendo sinal para que o resto da coluna prosseguisse. Seguiu-se uma discussão acalorada; estávamos perto o suficiente para ver o rosto de Simon, vermelho de contrariedade, o riso preocupado no semblante do secretário e uma série de gestos mais ou menos violentos da parte de Jamie.

Observei essa pantomima fascinada, conforme o secretário, dando de ombros num gesto de resignação, desamarrou seu alforje, remexeu no fundo e surgiu com várias folhas de pergaminho. Jamie arrancou-as de sua mão e folheou-as depressa, o dedo indicador seguindo as linhas escritas. Pegou uma das folhas, deixando as demais caírem ao chão, e sacudiu-a na cara de Simon Fraser. A Jovem Raposa pareceu desconcertada. Pegou a folha, examinou-a, depois ergueu os olhos, perplexo. Jamie pegou a folha de volta e, com um repentino esforço, rasgou o forte pergaminho ao meio, depois novamente, e em seguida enfiou os pedaços na bolsa de seu kilt.

Eu havia parado meu pônei, que se aproveitou do recesso para fuçar entre os ralos resquícios de vida vegetal que ainda podiam ser encontrados. A nuca do Jovem Simon estava de um vermelho vivo quando ele se virou para voltar ao seu cavalo e eu resolvi me manter a distância.

Jamie, novamente montado, veio trotando de volta ao longo da beira do caminho para se juntar a mim, os cabelos ruivos voando como um estandarte ao vento, os olhos brilhando de raiva acima dos lábios cerrados com força.

— O velhaco nojento — ele disse sem nenhuma cerimônia.

— O que ele fez? — perguntei.

— Relacionou os nomes de meus homens em suas próprias listas — Jamie disse. — Como se fizessem parte do seu regimento Fraser. Verme miserável! — Seus olhos deslizaram pela trilha acima. — Pena que já tenhamos chegado até aqui; estamos longe demais para voltar e confrontar o impostor desgraçado.

Resisti à tentação de incentivar Jamie a continuar xingando o avô e, em vez disso, perguntei:

— Por que ele faria isso? Só para fazer parecer que estava dando uma contribuição maior aos Stuart?

Jamie assentiu, a onda de fúria diminuindo ligeiramente de suas faces.

— Sim, isso mesmo. Dar uma impressão ainda melhor, sem custo algum. Mas não apenas isso. O velho canalha ordinário quer tomar as minhas terras de volta, é o que quer desde que foi obrigado a abrir mão delas quando meus pais se casaram. Agora, ele acha que se tudo der certo e ele for nomeado duque de Inverness, poderá alegar que Lallybroch sempre foi dele e eu apenas um arrendatário, a prova sendo que ele levantou homens da propriedade para atender ao apelo dos Stuart aos clãs.

— Ele realmente pode escapar impune de algo assim? — perguntei, em dúvida.

Jamie inspirou fundo e soltou o ar, a nuvem de vapor de seu hálito erguendo-se como fumaça das narinas de um dragão. Ele sorriu com raiva e bateu de leve na bolsa à sua cintura.

— Agora, não, não pode — ele disse.

Era uma viagem de dois dias de Beauly a Lallybroch, com tempo bom, cavalos vigorosos e terreno seco, não parando para nada além das necessidades de comida, sono e higiene pessoal. Nas condições em que viajávamos, um dos cavalos ficou manco a nove quilômetros de Beauly, a chuva, a neve e o vento revezavam-se, e o solo pantanoso congelou-se parcialmente em placas de gelo escorregadio. Assim, entre um problema e outro, levamos quase uma semana até começar a descer a última encosta que levava à casa da fazenda de Lallybroch — enregelados, cansados, famintos e imundos.

Estávamos sozinhos, apenas nós dois. Murtagh fora enviado a Edimburgo com o Jovem Simon e os soldados de Beaufort, para avaliar a situação do exército das Highlands.

A casa erguia-se orgulhosa entre as construções anexas, branca como os campos cobertos de neve que a cercavam. Lembrei-me vividamente das emoções que sentira quando vi aquele lugar pela primeira vez. Na verdade, eu a vira pela primeira vez sob a luminosidade de um belo dia de outono, não através de rajadas de neve e gelo, mas mesmo naquela ocasião parecera um refúgio acolhedor. A impressão de solidez e serenidade da casa era intensificada agora pela cálida luz de lampião que se derramava pelas janelas do térreo, um amarelo suave no cinza cada vez mais escuro do começo da noite.

A sensação de boas-vindas aumentou ainda mais quando segui Jamie através da porta da frente, deparando-me com o cheiro de dar água na boca de carne assada e pão fresco.

— Jantar — Jamie disse, fechando os olhos de felicidade enquanto inalava os deliciosos aromas. — Meu Deus, eu poderia comer um cavalo. — Gelo derretido pingava da bainha de seu manto, fazendo pequenas poças no assoalho de madeira.

— Eu achei que íamos ter que comer um deles — observei, desatando os cadarços do meu manto e sacudindo os flocos de neve já meio derretidos dos meus cabelos. — Aquela pobre criatura que você trocou em Kirkinmill mal conseguia mancar.

O barulho de nossas vozes atravessou o vestíbulo e uma porta abriu-se acima, seguida do ruído de pés miúdos correndo e de um grito de alegria quando o pequeno Jamie avistou seu xará embaixo.

A algazarra do encontro dos dois chamou a atenção do resto do pessoal da casa e, antes que nos déssemos conta, estávamos rodeados de abraços e cumprimentos, conforme Jenny e o bebê, a pequena Maggie, Ian, a sra. Crook e várias criadas acorreram ao vestíbulo.

— Que bom vê-lo, querido! -Jenny disse pela terceira vez, na ponta dos pés para beijar Jamie. — Pelas notícias que tivemos do exército, temíamos que muitos meses se passariam antes de retornarem para casa.

— Sim — Ian disse —, você trouxe algum dos homens de volta com você ou trata-se apenas de uma visita?

— Se eu trouxe de volta? — Interrompido no ato de cumprimentar sua sobrinha mais velha, Jamie olhou espantado para seu cunhado, momentaneamente esquecendo-se da menina em seus braços. Trazido à realidade de sua presença por um puxão em seus cabelos, beijou-a distraidamente e entregou-a a mim.

— O que quer dizer, Ian? — perguntou. — Todos os homens deveriam ter retornado há um mês. Alguns deles não voltaram para casa?

Abracei Maggie com força, uma terrível sensação de mau agouro abatendo-se sobre mim enquanto eu observava o sorriso desaparecer do rosto de Ian.

— Nenhum deles voltou, Jamie — disse devagar, o rosto comprido e bem-humorado repentinamente espelhando a expressão sombria que viu no rosto de Jamie. — Não vimos nenhum deles, desde que partiram com você.

Ouviu-se um grito no pátio de entrada, onde Rabbie MacNab pegara os cavalos para guardar. Jamie girou nos calcanhares, dirigiu-se para a porta, escancarou-a, inclinando-se para a tempestade do lado de fora.

Por cima de seu ombro, pude ver um cavaleiro aproximando-se através das rajadas de neve. A visibilidade não era suficiente para ver seu rosto, mas aquela figura pequena, musculosa, agarrada como um macaco à sela, era inconfundível.

“Veloz como um raio”, Jamie dissera, e obviamente tinha razão; fazer a viagem de Beauly a Edimburgo e depois a Lallybroch em uma semana era uma verdadeira façanha de resistência. O cavaleiro que se aproximava era Murtagh e não era preciso o dom de profecia de Maisri para nos dizer que as notícias que ele trazia não eram boas.

 

Branco de raiva, Jamie escancarou a porta da sala de estar matinal de Holyrood com um estrondo. Ewan Cameron pôs-se de pé num salto,! virando o tinteiro que estivera usando. Simon Fraser, senhor de Lovat estava sentado do outro lado da mesa, mas meramente ergueu as espessas sobrancelhas negras à entrada de seu meio-sobrinho.

— Droga! — Ewan disse, remexendo na manga à procura de um lenço para enxugar a poça de tinta que se espalhava. — Qual é o seu problema, Fraser? Ah, bom-dia, sra. Fraser — ele acrescentou, vendo-me atrás de Jamie.

— Onde está Sua Alteza? — Jamie perguntou sem preâmbulos.

— Castelo Stirling — Cameron respondeu, sem conseguir encontrar o lenço que procurava. — Tem um lenço aí, Fraser?

— Se tivesse, eu o sufocaria com ele — Jamie disse. Ele relaxara ligeiramente, depois de descobrir que Carlos Stuart não estava na casa, mas os cantos de seus lábios ainda estavam apertados. — Por que deixou meus homens presos em Tolbooth? Acabo de vê-los, mantidos em um lugar em que eu não deixaria porcos viverem! Certamente você poderia ter feito alguma coisa!

Cameron ficou vermelho, mas seus olhos castanho-claros enfrentaram os de Jamie com firmeza.

— Eu tentei — ele disse. — Disse a Sua Alteza que eu tinha certeza que era um erro. Claro, os trinta homens a dezesseis quilômetros do exército quando foram encontrados, só podia ser um engano! Além disso, ainda que tivessem realmente pretendido desertar, ele não tinha tantos homens que pudesse se dar ao luxo de prescindir deles. Foi apenas isso que o impediu de ordenar que todos eles fossem enforcados na mesma hora, sabe — ele disse, começando a se enfurecer, conforme o choque da entrada de Jamie se esvaía. — Deus do céu, homem, é traição desertar em tempo de guerra.

— É mesmo? —Jamie disse ceticamente. Balançou a cabeça rápido para o Jovem Simon e empurrou uma cadeira em minha direção antes de ele mesmo se sentar. — E você enviou ordens para enforcar os vinte de seus homens que foram para casa, Ewan? Ou será que agora já são quarenta?

Cameron ficou ainda mais vermelho e abaixou os olhos, concentrando-se em enxugar a tinta com o lenço que Simon Fraser lhe dera.

— Não foram apanhados — murmurou finalmente. Ergueu os olhos para Jamie, o rosto fino ansioso. — Vá ver Sua Alteza em Stirling — aconselhou. — Ele ficou furioso com a deserção, mas afinal foram as ordens dele que o enviaram a Beauly e deixaram seus homens sem chefe, não é? E ele sempre teve muita consideração por você, Jamie, e o chama de amigo. Pode ser que perdoe seus homens, suplique por suas vidas.

Pegando o lenço encharcado de tinta, olhou-o de forma duvidosa e, em seguida, murmurando um pedido de licença, saiu para jogá-lo fora, obviamente ansioso para se afastar de Jamie.

Jamie permaneceu esparramado em sua cadeira, respirando através dos dentes cerrados com um leve assobio, os olhos fixos na bandeirola bordada na parede ostentando o brasão dos Stuart. Os dois dedos rígidos de sua mão direita tamborilavam devagar sobre a mesa. Ele estava nesse mesmo estado desde que Murtagh chegara a Lallybroch com a notícia de que os trinta homens sob o comando de Jamie tinham sido detidos no ato de deserção e encarcerados na famosa prisão de Tolbooth de Edimburgo, sentenciados à morte.

Eu mesma não acreditava que Carlos pretendesse executar os homens. Como Ewan Cameron ressaltara, o exército das Highlands precisava de todo homem em boa forma física de que pudesse dispor. A invasão da Inglaterra que Carlos defendera tivera um preço alto e o influxo de suporte que ele previra das zonas rurais inglesas não se materializara. Não apenas isso; executar os homens de Jamie em sua ausência seria um ato de idiotice política e traição pessoal grande demais até para Carlos Stuart arrostar.

Não, eu imaginava que Cameron tinha razão e que os homens seriam finalmente perdoados. Jamie indubitavelmente também chegara a essa conclusão. Entretanto, isso não serviu de grande consolo para ele, defrontado com a correspondente conclusão de que, em vez de retirar seus homens em segurança dos riscos de uma campanha em deterioração, suas ordens os levaram a uma das piores prisões de toda a Escócia, marcados como covardes e sentenciados a uma morte vergonhosa por enforcamento.

Isso, associado à perspectiva iminente de deixar os homens em sua prisão imunda e escura, para ir a Stirling e enfrentar a humilhação de implorar a Carlos, era mais do que suficiente para explicar a expressão no rosto de Jamie — a de um homem que acabara de engolir vidro moído.

O Jovem Simon também permaneceu em silêncio, franzindo as sobrancelhas, a testa larga enrugando-se de preocupação.

— Irei com você até Sua Alteza — ele disse repentinamente.

— Irá? — Jamie olhou com surpresa para seu meio-tio, depois seus olhos estreitaram-se para Simon. — Por quê?

Simon exibiu um sorriso contrafeito.

— Sangue é sangue, afinal de contas. Ou você acha que eu tentaria reclamar seus homens para mim como papai fez?

— Tentaria?

— Talvez — Simon disse com franqueza -, se eu achasse que houvesse uma chance de que isso seria vantajoso para mim. Mas penso que o mais provável é que só me trouxesse dor de cabeça. Não tenho nenhuma vontade de lutar com os MacKenzie... nem com você, sobrinho — ele acrescentou, o riso ampliando-se. — Por mais rica que Lallybroch possa ser, fica muito longe de Beauly e provavelmente seria uma luta encarniçada para se apoderar dela, seja pela força ou nos tribunais. Eu disse isso a meu pai, mas ele só ouve o que quer ouvir.

O Jovem Simon sacudiu a cabeça e ajeitou o cinto de sua espada em torno dos quadris.

— Deve haver uma escolha melhor com o exército; certamente haverá com um rei restaurado. E — concluiu —, se o exército lutar outra vez como lutou em Preston, vão precisar de todo homem que puderem arregimentar. Irei com você — repetiu com firmeza.

Jamie assentiu, um leve sorriso desenhando-se em seu rosto.

— Obrigado, então, Simon. Será uma boa ajuda. Simon balançou a cabeça.

— Sim, bem. Além disso, seria bom se você pedisse também a Dougal MacKenzie que intercedesse por você. Ele está em Edimburgo no momento.

— Dougal MacKenzie? — As sobrancelhas de Jamie ergueram-se de forma inquiridora. — Sim, suponho que não faria mal algum, mas...

— Não faria mal algum? Rapaz, você não sabe? O MacKenzie é o mais novo favorito do príncipe Carlos. — Simon reclinou-se para trás em sua cadeira, olhando zombeteiramente para seu sobrinho.

— Por que razão? — perguntei. — O que ele fez? — Dougal trouxera duzentos e cinqüenta soldados para lutar pela causa Stuart, mas vários chefes de clã haviam dado contribuições ainda maiores.

— Dez mil libras — Simon disse, saboreando as palavras enquanto as deixava rolar na língua. — Dez mil libras em boa prata foi o que Dougal MacKenzie trouxe para colocar aos pés de seu soberano. E bem na hora certa — ele disse de maneira prática, abandonando sua pose relaxada. -Cameron acabou de me dizer que Carlos já esgotou o que restava do dinheiro espanhol e bem pouco tem entrado dos partidários ingleses com que ele contava. Os dez mil de Dougal manterão o exército com armas e alimento por mais algumas semanas, ao menos, e com sorte até lá ele terá obtido mais dinheiro da França. — Percebendo finalmente que seu imprudente primo estava lhe propiciando uma excelente distração para os ingleses, Luís estava concordando, embora de forma relutante, em contribuir com algum dinheiro. Entretanto, já estava há muito tempo a caminho.

Olhei espantada para Jamie, seu rosto refletindo minha própria perplexidade. Onde Dougal MacKenzie teria arranjado dez mil libras? De repente, lembrei-me de onde ouvira essa quantia ser mencionada antes — no buraco dos ladrões em Cranesmuir, onde eu passara três dias e três noites infindáveis, à espera de julgamento sob a acusação de bruxaria.

— Geillis Duncan! — exclamei. Senti um calafrio à lembrança daquela conversa, ocorrida na escuridão absoluta de um fosso lamacento, minha companhia nada mais do que uma voz nas trevas. O fogo crepitava na lareira da sala de estar, mas eu puxei meu manto com mais força ao redor do corpo.

“Eu consegui desviar perto de dez mil libras”, Geillis dissera, vangloriando-se dos roubos realizados pela judiciosa falsificação da assinatura de seu falecido marido. Arthur Duncan, a quem ela havia assassinado com veneno, fora o procurador fiscal do distrito. “Dez mil libras pela causa jacobita. Quando houver a Revolução, saberei que dei minha contribuição.”

— Ela o roubou — eu disse, sentindo um tremor percorrer meus braços à lembrança de Geillis Duncan, condenada por bruxaria, morta numa fogueira sob os galhos de uma sorveira. Geillis Duncan, que conseguira escapar da morte apenas o tempo suficiente para dar à luz a criança que gerou de seu amante, Dougal MacKenzie. — Ela o roubou e o deu a Dougal; ou ele tomou-o dela, não sei dizer como aconteceu. — Agitada, levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro diante da lareira.

— O filho-da-mãe! — eu disse. — Era isso que ele estava fazendo em Paris há dois anos!

— O quê? — Jamie franzia a testa para mim, Simon fitava-me boquiaberto.

— Visitando Carlos Stuart. Ele foi verificar se Carlos estava realmente planejando uma rebelião. Talvez ele tenha prometido o dinheiro na ocasião, talvez tenha sido isso que encorajou Carlos a arriscar-se a vir para a Escócia: a promessa do dinheiro de Geillis Duncan. Mas Dougal não podia dar o dinheiro abertamente a Carlos enquanto Colum fosse vivo — Colum teria feito perguntas; era um homem honesto demais para usar dinheiro roubado, independentemente de quem tivesse cometido a fraude.

— Sei. — Jamie balançou a cabeça, os olhos velados, pensativo. — Mas agora Colum está morto — ele disse serenamente. — E Dougal MacKenzie é o favorito do príncipe.

— O que é ótimo para você, como venho dizendo — Simon interpôs, impaciente com a conversa sobre pessoas que ele não conhecia e assuntos que só entendia em parte. — Vá procurá-lo; é provável que esteja no WorlcTs End a esta hora do dia.

— Acha que ele intercederá junto ao príncipe em seu favor? — eu perguntei a Jamie, preocupada. Dougal fora o pai adotivo de Jamie durante um certo período, mas o relacionamento sem dúvida tivera altos e baixos. Dougal poderia não estar disposto a arriscar sua recente popularidade com o príncipe tomando a defesa de um bando de covardes e desertores.

A Jovem Raposa podia não ter os anos de experiência de seu pai, mas possuía uma boa dose de sua perspicácia. As grossas sobrancelhas pretas ergueram-se.

— MacKenzie ainda quer Lallybroch, não? E se ele achar que papai e eu podemos estar de olho nas terras, estará mais ansioso em ajudá-lo a recuperar seus homens, certo? Vai lhe custar muito mais lutar conosco por elas do que lidar com você, quando a guerra tiver terminado. — Balançou a cabeça, mordendo alegremente o lábio superior enquanto contemplava as ramificações da situação.

— Vou sacudir uma cópia da lista de meu pai no nariz de Dougal antes de você falar com ele. Você entra e lhe diz que prefere me mandar para o inferno a me deixar reclamar seus homens e então iremos todos juntos a Stirling. — Abriu um largo sorriso para Jamie, com ar de cumplicidade.

— Eu sempre achei que a Escócia era a terra da conspiração — observei.

— O quê? — Os dois homens ergueram os olhos, espantados.

— Deixem pra lá — eu disse, sacudindo a cabeça. — O sangue não mente.

Permaneci em Edimburgo enquanto Jamie e seus tios rivais viajavam a Stirling para resolver a questão com o príncipe. Naquelas circunstâncias, eu não podia permanecer em Holyrood, mas encontrei alojamento em uma das vielas acima de Canongate. Era um aposento acanhado, frio e pequeno, mas eu não ficava muito tempo ali.

Os prisioneiros de Tolbooth não podiam sair, mas nada impedia a entrada de visitantes. Fergus e eu visitávamos a prisão diariamente e um pouco de suborno permitia-me passar alimentos e remédios aos homens de Lallybroch. Teoricamente, eu não tinha permissão de conversar em particular com os prisioneiros, mas também nisso o sistema podia ser um pouco escorregadio, quando adequadamente lubrificado. Consegui falar a sós com Ross, o ferreiro, em duas ou três ocasiões.

— Foi culpa minha, madame — ele disse imediatamente, na primeira vez que o vi. — Eu devia ter tido o bom senso de fazer os homens debandarem em pequenos grupos de três ou quatro, não todos juntos como fizemos.

Mas eu receava perder alguns; a maioria deles nunca havia estado a mais de oito quilômetros de casa antes.

— Não tem que se culpar — assegurei-lhe. — Pelo que ouvi dizer, foi por pura má sorte que vocês foram apanhados. Não se preocupe; Jamie foi ver o príncipe em Stirling; logo ele vai tirá-los daqui.

Ele balançou a cabeça, arrumando uma mecha de cabelo para trás com ar cansado. Estava imundo e desgrenhado, e reduzido a uma fração do artesão robusto e musculoso que fora alguns meses atrás. Ainda assim, sorriu para mim e agradeceu-me pela comida.

—Vem bem a calhar — ele disse francamente. — Tudo que comemos aqui é um caldo ralo. Acha que pode... — Hesitou. — Acha que pode conseguir alguns cobertores, madame? Eu não pediria, mas é que quatro dos homens têm febre e...

— Vou dar um jeito — eu disse.

Deixei a prisão, perguntando-me exatamente como eu daria um jeito. Embora o exército principal tivesse marchado para o sul para invadir a Inglaterra, Edimburgo ainda era uma cidade ocupada. Com soldados, lordes e parasitas constantemente entrando e saindo, artigos de qualquer espécie eram caros e escassos. Cobertores e roupas de lã podiam ser encontrados, mas custariam muito e só restavam precisamente dez shülings em minha bolsa.

Havia um banqueiro em Edimburgo, um sr. Waterford, que no passado administrara alguns negócios e investimentos de Lallybroch, mas Jamie retirara todos os fundos do banco há alguns meses, temendo que bens guardados em bancos pudessem ser confiscados pela Coroa. O dinheiro foi convertido em ouro, parte foi enviada para Jared na França por segurança, o resto foi escondido na fazenda. Tudo igualmente inacessível para mim no momento.

Parei na rua para pensar, os transeuntes empurrando-me nas pedras do calçamento ao passarem. Embora não tivesse dinheiro, eu ainda tinha algumas coisas de valor. O cristal que Raymond me dera em Paris — embora o cristal em si não tivesse nenhum valor especial, seu engate e cordão de ouro tinham. Minhas alianças de casamento — não, não queria me desfazer delas, ainda que temporariamente. Mas as pérolas... enfiei a mão no bolso, verificando se o colar de pérolas que Jamie me dera no dia de nosso casamento ainda estava costurado em segurança na bainha de minha saia.

Estava; as contas pequenas, irregulares, das pérolas de água doce eram duras e lisas sob meus dedos. Embora não fossem tão caras quanto pérolas orientais, ainda assim formavam um fino colar, com pequenas peças de ouro lavrado entre as pérolas. Pertencera à mãe de Jamie, Ellen. Achei que ela teria gostado de vê-lo usado para dar algum conforto aos homens dele.

— Cinco libras — eu disse com firmeza. — Vale dez e eu poderia obter seis por ele, se quisesse me dar ao trabalho de subir toda a colina e ir à outra loja. — Eu não fazia a menor idéia se o que eu estava dizendo era verdade ou não, mas estendia a mão como se fosse pegar o colar do balcão de qualquer forma, fingindo estar prestes a ir embora da loja de penhores. O dono da casa de penhores, sr. Samuels, colocou a mão rapidamente sobre o colar, sua ânsia me dizendo que eu deveria ter pedido seis libras desde o começo.

— Três libras e dez, então — ele disse. — Isso é empobrecer minha própria família, mas para uma senhora tão fina...

O pequeno sino acima da porta da loja soou atrás de mim quando a porta abriu-se. Ouviu-se o som de passos hesitantes nas tábuas gastas do assoalho da loja de penhores.

— Com licença — começou uma voz feminina quase infantil e eu girei nos calcanhares, o colar de pérolas esquecido, para ver a sombra das três bolas, o símbolo das casas de penhores, recair sobre o rosto de Mary Hawkins. Ela crescera no último ano e também ganhara mais corpo. Havia uma nova maturidade e dignidade em seus modos, mas ainda era muito nova. Piscou uma vez e em seguida jogou-se sobre mim com um gritinho de alegria, sua gola de pele fazendo cócegas no meu nariz enquanto me abraçava com força.

— O que está fazendo aqui? — perguntei, desvencilhando-me finalmente.

— A irmã de meu pai mora aqui — ela respondeu. — Estou na casa dela. Ou você quer saber por que estou aqui? — Abanou a mão, indicando as instalações encardidas e escuras do empório do sr. Samuels.

— Bem, isso também — eu disse. — Mas isso pode esperar um pouco. — Virei-me para o penhorista. — Quatro libras e seis ou vou subir a colina -eu lhe disse. — Decida-se, estou com pressa.

Resmungando consigo mesmo, o sr. Samuels enfiou a mão sob o balcão para pegar o dinheiro, enquanto eu me virava outra vez para Mary.

— Tenho que comprar alguns cobertores. Pode vir comigo?

Ela olhou para fora, para onde um homenzinho de uniforme postava-se junto à porta, obviamente esperando por ela.

— Sim, se você vier comigo depois. Ah, Claire, estou tão feliz de vê-la.

— Ele me enviou uma mensagem — Mary confidenciou, conforme descíamos a rua. — Alex. Uma amiga me trouxe sua carta. — Seu rosto se iluminou ao pronunciar o nome dele, mas também havia um pequeno sulco entre suas sobrancelhas.

— Quando descobri que ele estava em Edimburgo, f-fiz papai me mandar em visita à tia Mildred. Ele não se importou — ela acrescentou amargamente.

— Ele ficava doente só de me olhar, depois do que aconteceu em Paris. Ficou feliz em me ver longe de sua casa.

— Então você viu Alex? — perguntei. Imaginei como o jovem padre teria passado desde que o vira pela última vez. Também imaginei como ele encontrara a coragem para escrever a Mary.

— Sim. Ele não me pediu para vir — ela acrescentou rápido. — V-vim por conta própria. — Seu queixo ergueu-se desafiadoramente, mas estremeceu ligeiramente ao falar. — Ele... não teria escrito para mim, mas achou que estava m-morrendo e queria que eu soubesse... soubesse...

Passei o braço em torno de seus ombros e entrei rápido em um dos pátios fechados, fugindo do fluxo agitado do trânsito na rua.

— Está tudo bem — eu disse, dando uns tapinhas de consolo em suas costas, mas sentindo-me impotente, sabendo que não havia nada que eu pudesse fazer para que tudo ficasse bem. — Você veio e o viu, isso é o que importa.

Ela balançou a cabeça, incapaz de falar, e assoou o nariz.

— Sim — disse com voz rouca, finalmente. — Nós tivemos... dois meses. Repito para mim mesma que isso é mais do que a maioria das pessoas já teve, dois meses de felicidade... mas nós perdemos tanto tempo que poderíamos ter t-tido e... não basta. Claire, não basta!

— Não — eu disse serenamente. — Nem uma vida inteira basta para esse tipo de amor. — Com uma repentina pontada de dor, imaginei onde Jamie estaria e como estaria passando.

Mary, agora mais controlada, agarrou-se à manga do meu vestido.

— Claire, você pode vir comigo para vê-lo? Sei que não há muita coisa que você possa fazer... — Sua voz fraquejou e ela firmou-a com visível esforço. — Mas talvez você pudesse... ajudar. — Ela percebeu meu olhar para o lacaio, que permanecia de pé impassivelmente na entrada do beco, indiferente à movimentação do trânsito. — Eu o pago — ela disse simplesmente. — Minha tia pensa que eu saio para c-caminhar toda tarde. Você virá?

— Sim, claro. — Espreitei entre os prédios altos, avaliando o nível do sol sobre as colinas fora da cidade. Ficaria escuro dentro de uma hora; eu queria que os cobertores fossem entregues na prisão antes que a noite tornasse as paredes de pedra de Tolbooth ainda mais frias. Tomando uma súbita decisão, virei-me para Fergus, que aguardava pacientemente ao meu lado, observando Mary com interesse. Levado de volta a Edimburgo com o resto dos homens de Lallybroch, escapara da prisão em função de sua cidadania francesa e sobrevivera corajosamente voltando à sua ocupação de costume.

Eu o encontrara rondando fielmente a prisão de Tolbooth, onde levava uma ou outra porção de comida para seus companheiros presos.

— Pegue esse dinheiro — eu disse, entregando-lhe minha bolsa — e encontre Murtagh. Diga-lhe para comprar tantos cobertores quanto o dinheiro der e fazer com que sejam entregues ao carcereiro de Tolbooth. Ele já foi subornado, mas guarde alguns shillings, por via das dúvidas.

— Mas madame — ele protestou —, eu prometi a milorde que não a deixaria sozinha...

— Milorde não está aqui — eu disse com firmeza -, e eu estou. Vá Fergus.

Ele olhou de mim para Mary, evidentemente decidiu que ela era uma ameaça menor para mim do que meu temperamento para ele e partiu, dando de ombros e resmungando em francês sobre a teimosia das mulheres.

O quartinho no alto do prédio havia mudado consideravelmente desde a minha última visita. Estava limpo, para começar, com todas as superfícies horizontais enceradas e brilhantes. Havia comida no armário, um acolchoado na cama e inúmeros pequenos confortos propiciados ao paciente. Mary confidenciara-me no caminho que ela andara discretamente penhorando as jóias da mãe para garantir que Alex Randall tivesse todo o conforto que o dinheiro pudesse comprar.

Havia limites para o que o dinheiro podia conseguir, mas o rosto de Alex brilhava como a chama de uma vela quando Mary atravessou a porta, temporariamente obscurecendo a devastação da doença.

— Trouxe Claire comigo, querido. — Mary largou o manto sobre uma cadeira e ajoelhou-se ao lado dele, tomando a mão magra, de veias azuladas, nas suas.

— Sra. Fraser. — Sua voz era fraca e ofegante, embora ele sorrisse para mim. — É bom rever um rosto amigo.

— Sim, é. — Sorri para ele, notando quase inconscientemente a pulsação rápida visível em sua garganta e a transparência de sua pele. Os olhos cor de avelã eram meigos e cordiais, retendo a maior parte da vida que restava em seu corpo frágil.

Não tendo remédios, não havia nada que eu pudesse fazer por ele, mas examinei-o com todo o cuidado e depois esperei até vê-lo instalado de modo confortável sob as cobertas, os lábios ligeiramente azuis pelo pequeno esforço do exame.

Ocultei a ansiedade que senti diante do seu estado e prometi ir visitá-lo no dia seguinte com algum remédio que o ajudasse a dormir melhor. Ele mal notou minhas promessas; toda a sua atenção era voltada para Mary, sentada ansiosamente a seu lado, segurando sua mão. Eu a vi olhar para a

Eu a vi olhar para a janela, onde a luz esvaía-se rapidamente, e percebi sua preocupação; ela precisava voltar para a casa de sua tia antes de anoitecer.

— Vou sair agora — eu disse a Alex, afastando-me o mais educadamente possível, para deixar-lhes alguns preciosos momentos a sós.

Ele olhou de mim para Mary, depois sorriu de novo para mim de gratidão.

— Deus a abençoe, sra. Fraser — ele disse.

— Vejo-o amanhã — eu disse, e saí, esperando poder realmente voltar.

Fiquei muito ocupada nos dias seguintes. As armas dos homens de Lallybroch haviam sido evidentemente confiscadas, quando foram detidos, e fiz o melhor possível para recuperar o que pude, perturbando e ameaçando, subornando e convencendo onde necessário. Penhorei dois broches que Jared me dera como presente de despedida e comprei comida suficiente para garantir que os homens comessem tão bem quanto o exército em geral — apesar de ser uma alimentação pobre.

Consegui convencer os guardas a me deixarem entrar nas celas da prisão e passei mais tempo tratando as doenças dos prisioneiros — desde escor-buto e a mais generalizada desnutrição comum no inverno, até feridas causadas por fricção, frieiras, artrite e diversas doenças respiratórias.

Fui visitar os chefes de clã e lordes ainda em Edimburgo — não muitos — que poderiam ajudar Jamie, caso a visita a Stirling fracassasse. Não acreditava nisso, mas pareceu-me de bom alvitre tomar medidas de precaução.

Entre todas as atividades dos meus dias, eu arranjava tempo para visitar Alex Randall diariamente. Esforçava-me para ir de manhã, a fim de não usar seu tempo com Mary. Alex dormia pouco e esse pouco, mal; em conseqüência, estava sempre cansado e abatido de manhã, sem vontade de falar, mas sempre sorrindo em sinal de boas-vindas quando eu chegava. Eu lhe dava uma mistura leve de hortelã e lavanda, com algumas gotas de xarope de papoula misturadas; isso em geral lhe concedia algumas horas de sono, de modo que estivesse alerta quando Mary chegasse à tarde.

Além de mim e de Mary, eu não vira nenhuma outra visita no topo do prédio. Assim, fiquei surpresa quando, ao subir as escadas para seu quarto certa manhã, ouvi vozes por trás da porta fechada.

Bati uma vez, rapidamente, como havíamos combinado, e entrei. Jonathan Randall estava sentado junto à cama de seu irmão, trajando seu uniforme de capitão, vermelho e castanho-claro. Levantou-se quando entrei e fez uma reverência adequada, a expressão fria.

— Madame — ele disse.

— Capitão — eu disse. Ficamos, então, parados e indecisos, no meio do quarto, entreolhando-nos fixamente, nenhum dos dois querendo dar o primeiro passo.

— Johnny — disse Alex da cama, com sua voz rouca. Havia um tom de persuasão, bem como de comando, e seu irmão encolheu os ombros com irritação ao ouvi-lo.

— Meu irmão me convocou para lhe dar algumas notícias — ele disse, os lábios cerrados. Não usava peruca nesta manhã e com seus cabelos escuros amarrados na nuca, sua semelhança com o irmão era surpreendente. Fraco e pálido como Alex estava, ele parecia o fantasma de Jonathan.

— Você e o sr. Fraser sempre foram bondosos com minha Mary — Alex disse, virando-se de lado para olhar para mim. — E para mim também. Eu... soube da barganha do meu irmão com você — um rubor quase imperceptível subiu ao seu rosto -, mas sei também o que você e seu marido fizeram por Mary... em Paris. — Umedeceu os lábios, rachados e ressecados do calor permanente no quarto. — Acho que deveria ouvir as notícias que Johnny trouxe do castelo ontem.

Jack Randall olhou-me com antipatia, mas era um homem de palavra.

— Hawley sucedeu a Cope, como eu havia lhe dito anteriormente — ele disse. — Hawley não tem o dom da liderança, a não ser uma certa confiança cega nos homens sob seu comando. Se isso vai colocá-lo em melhor situação do que o fez o canhão de Cope... — Deu de ombros com impaciência.

— Seja como for, o general Hawley recebeu ordens de marchar para o norte para retomar o castelo Stirling.

— É mesmo? — eu disse. — Sabe que tropas ele tem? Randall balançou a cabeça, com um rápido gesto afirmativo.

— Ele possui oito mil soldados no momento, mil e trezentos da cavalaria. Ele também está na expectativa diária da chegada de seis mil soldados mercenários de Hesse. — Franziu as sobrancelhas, pensando. — Ouvi dizer que o chefe do clã Campbell está enviando mil homens para se unirem às forças de Hawley também, mas não sei dizer se essa informação é confiável; não parece haver nenhuma maneira de prever o que os escoceses vão fazer.

— Sei. — Isso era grave; o exército das Highlands neste momento tinha entre seis e sete mil homens. Contra Hawley, sem os reforços esperados, eles poderiam conseguir. Esperar até que os hessianos e os Campbell chegassem era obviamente loucura, para não falar do fato de que as habilidades guerreiras dos soldados das Highlands eram muito mais adequadas ao ataque do que à defesa. Era melhor que essas notícias chegassem a lorde George Murray imediatamente.

A voz de Jack Randall chamou-me de volta de minhas ruminações.

— Tenha um bom dia, madame — ele disse, formal como sempre, e não havia nenhum traço de humanidade nas feições belas e duras quando ele se inclinou numa mesura para mim e saiu.

— Obrigada — eu disse a Alex Randall, esperando que Jonathan descesse a longa escadaria em caracol antes de eu mesma ir embora. — Fico-lhe muito agradecida por isso.

Ele balançou a cabeça. As sombras sob seus olhos estavam pronunciadas; outra noite ruim.

— Não há de quê. — ele disse simplesmente. — Suponho que deixará um pouco de remédio para mim? Imagino que não vou vê-la tão cedo.

Parei, impressionada por sua suposição de que eu mesma iria a Stirling. Isso é o que cada fibra do meu corpo exigia que eu fizesse, mas havia a questão dos homens na prisão Tolbooth a ser considerada.

— Não sei — eu disse. — Mas, sim, deixarei os remédios.

Caminhei devagar de volta ao meu alojamento, a mente ainda acelerada. Obviamente, eu tinha que mandar um recado a Jamie imediatamente. Murtagh teria que ir, eu imaginava. Jamie acreditaria em mim, é claro, se eu lhe escrevesse um bilhete. Mas ele conseguiria convencer lorde George, o duque de Perth ou os outros comandantes do exército?

Eu não poderia lhe dizer onde eu conseguira essas informações; os comandantes estariam dispostos a acreditar na palavra escrita e sem provas de uma mulher? Mesmo a palavra de uma mulher popularmente tida como detentora de poderes sobrenaturais? Pensei em Maisri subitamente, e estremeci. É uma maldição, ela dissera. Sim, mas que escolha havia? Não tenho nenhum poder além do poder de não dizer o que eu sei. Eu tinha esse poder também, mas não ousava me arriscar a usá-lo.

Para minha surpresa, a porta do meu pequeno quarto estava aberta e ouvia-se uma barulhada vinda lá de dentro. Eu andara armazenando as armas recuperadas sob minha cama e empilhando espadas e lâminas de diversos tipos junto à lareira quando o espaço sob a cama ficou cheio, até que literalmente não havia mais lugar livre no assoalho, exceto pelo pequeno quadrado de tábuas onde Fergus colocava seus cobertores.

Fiquei parada na escada, espantada com a cena visível pela porta aberta acima. Murtagh, de pé na cama, supervisionava a entrega de armas aos homens que apinhavam o quarto — os homens de Lallybroch.

— Madame! — virei-me diante do grito e vi Fergus junto ao meu cotovelo, radiante, um sorriso largo e falhado no rosto amarelado.

— Madame! Não é maravilhoso?! Milorde recebeu o perdão de seus homens. Um mensageiro veio de Stirling hoje de manhã, com a ordem de soltá-los, e devemos nos juntar a milorde imediatamente em Stirling!

Abracei-o, eu mesma rindo.

— Que maravilha, Fergus!

Alguns dos homens haviam percebido a minha presença e começavam a se virar para mim, sorrindo e puxando a manga um do outro. Um ar de regozijo e excitação enchia o pequeno aposento. Murtagh, empoleirado no estrado da cama como o Gnomo Rei sobre um cogumelo chapéu-de-sapo, me viu e, em seguida, sorriu para mim — uma expressão que o deixava absolutamente irreconhecível, de tal forma transformava seu rosto.

— O sr. Murtagh levará os homens a Stirling? — Fergus perguntou. Ele ganhara uma espada curta, como sua parte na distribuição de armas, e praticava sacando-a e embainhando-a outra vez enquanto falava.

Meus olhos depararam-se com os de Murtagh e sacudi a cabeça. Afinal, pensei, se Jenny Cameron podia liderar os homens de seu irmão a Glenfinnan, eu podia levar as tropas de meu marido a Stirling. Queria ver lorde George e Sua Alteza tentarem ignorar minhas informações, entregues pessoalmente.

— Não — eu disse. — Eu o farei.

 

Eu podia sentir os homens por perto, ao meu redor na escuridão. Havia um tocador de gaita de foles caminhando ao meu lado; podia ouvir o rangido do saco de couro sob seu braço e ver o contorno dos bordões, projetando-se para trás no odre. Eles moviam-se conforme o gaiteiro andava, de modo que ele parecia estar carregando um animal pequeno que lutava debilmente.

Eu o conhecia, um homem chamado Labhriunn Maclan. Os gaiteiros dos clãs revezavam-se para tocar a alvorada em Stirling, andando de um lado para o outro no acampamento com o passo calculado de um gaiteiro, de modo que os lamentos longos e monótonos dos bordões ricocheteassem das tendas frágeis, chamando todos que estivessem em seus interiores para a batalha do novo dia.

Novamente ao fim da tarde, um único gaiteiro sairia, atravessando o pátio devagar, e o acampamento pararia para ouvir, as vozes silenciando-se e o clarão do pôr-do-sol dissipando-se das lonas das tendas. As notas altas e lamuriosas do pibroch — peça musical escocesa para gaita de foles — chamavam as sombras da charneca, e quando o gaiteiro terminava a noite já caíra.

Manhã ou noite, Labhriunn Maclan tocava com os olhos fechados, marchando devagar e com firmeza de um lado ao outro do pátio, o cotovelo apertado contra o odre e os dedos ágeis sobre os buracos dos tubos. Apesar do frio, às vezes me sentava para observar ao anoitecer, deixando o som trespassar meu coração com suas estacas. Maclan andava de um lado para o outro, ignorando tudo ao seu redor, fazendo meias-voltas na ponta do calcanhar, deixando todo o seu ser transbordar pelos tubos da gaita de foles.

Existem as pequenas gaitas de foles irlandesas, usadas em interiores para tocar música e as gaitas de foles Great Northern usadas ao ar livre para o toque de alvorada, para chamar os clãs à ordem e para incitar os homens à luta. Eram as gaitas de foles Northern que Maclan tocava, andando de um lado para o outro com os olhos cerrados.

Certa noite, ao me levantar do lugar onde estava sentada quando Maclan terminou, esperei até vê-lo pressionar o último resquício de ar de seu odre com um gemido agonizante e coloquei-me a seu lado quando ele atravessou o portão de Stirling com um sinal da cabeça para o guarda.

— Boa-noite, madame — ele disse. Sua voz era suave e seus olhos, agora abertos, mais suaves ainda sob o feitiço continuado de sua música.

— Boa-noite, Maclan — eu disse. — Estava me perguntando, Maclan por que você toca com os olhos bem fechados?

Ele sorriu e coçou a cabeça, mas respondeu prontamente.

— Acho que é porque meu avô me ensinou, madame, e ele era cego. Sempre o vejo quando toco, andando pela praia com a barba voando ao vento e os olhos cegos fechados contra o aguilhão da areia, ouvindo o som da gaita descer até ele depois de ricochetear das rochas do penhasco e sabendo daí em que ponto de sua caminhada ele estava.

— Então, você o vê e você toca, também, para os penhascos e o mar? De onde você vem, Maclan? — perguntei. Sua fala era baixa e sibilante, de uma forma ainda mais acentuada do que a da maioria dos escoceses das Highlands.

— Venho das Shetlands, madame — ele respondeu, fazendo a última palavra soar quase como “Zetlands”. — Muito longe daqui. — Sorriu novamente e fez uma reverência para mim quando chegamos à ala dos hóspedes, onde eu iria ficar. — Mas estou pensando que a senhora veio ainda de mais longe, madame.

— É verdade — eu disse. — Boa-noite, Maclan. -,

Mais tarde nessa mesma semana, perguntei-me se sua habilidade em tocar sem ver iria ajudá-lo aqui no escuro. Um grande grupo de homens locomovendo-se faz bastante barulho, por mais silenciosamente que se desloquem, mas achei que quaisquer ecos que criassem seriam abafados pelo uivo do vento cada vez mais forte. Era uma noite escura de lua nova, mas o céu estava claro de nuvens e caía uma gélida mistura de chuva e neve, ferroando minhas faces.

Os homens do exército das Highlands avançavam em pequenos grupos de dez ou vinte, movendo-se por um terreno irregular de protuberâncias e áreas planas, como se a terra empurrasse para cima pequenas elevações aqui e ali ou como se os bosques de larício e carvalho estivessem caminhando pelas trevas. Minhas informações não chegaram sem suporte; os espiões de Ewan Cameron também relataram as manobras de Hawley e o exército escocês estava agora a caminho de um encontro com ele, em algum lugar ao sul do Castelo Stirling.

Jamie desistira de insistir para que eu voltasse. Eu prometi ficar fora do caminho, mas se havia uma batalha a ser travada, então os médicos do exército também tinham que estar a postos. Eu sabia quando sua atenção voltava-se para seus homens, e as perspectivas à frente, pela inclinação de sua cabeça. Montado em Donas, sua figura elevava-se o suficiente para ser vista como uma sombra, mesmo no escuro, e quando ele levantou um dos braços, duas sombras menores destacaram-se da massa em movimento e aproximaram-se de seu estribo. Houve um momento de conversa sussurrada; em seguida, ele empertigou-se em sua sela e virou-se para mim.

— Os batedores dizem que fomos vistos; guardas ingleses voaram à Casa Callendar, para avisar o general Hawley. Não devemos esperar mais; estou levando meus homens e dando a volta pelas tropas de Dougal para o lado mais distante do monte Falkirk. Desceremos por trás enquanto os MacKenzie entram pelo oeste. Há uma pequena igreja no topo do monte à sua esquerda, talvez a uns quatrocentos metros. Esse é o seu lugar, Sassenach. Vá para lá agora e fique lá. — Tateou em busca do meu braço no escuro, encontrou-o e apertou-o.

— Irei ao seu encontro assim que puder ou enviarei Murtagh se eu não puder ir. Se as coisas derem errado, entre na igreja e alegue que aquele é um santuário. É o melhor que consigo pensar.

— Não se preocupe comigo — eu disse. Meus lábios estavam gelados e esperava que minha voz não soasse tão trêmula quanto eu me sentia. Reprimi o “tome cuidado” que teriam sido minhas palavras seguintes e contentei-me em tocá-lo rapidamente, a superfície gélida de sua face dura como metal sob minha mão e o roçar de uma mecha de cabelos fria e macia como a pele de um cervo.

Desviei meu cavalo para a esquerda, escolhendo meu caminho devagar conforme os homens que chegavam fluíam ao meu redor. O meu cavalo castrado estava inquieto com a movimentação; sacudia a cabeça de um lado para o outro, resfolegando e agitando-se nervosamente sob mim. Puxei-o bruscamente, como Jamie me ensinara, e mantive as rédeas curtas quando o terreno elevou-se de repente sob os cascos do cavalo. Olhei para trás uma vez, mas Jamie desaparecera dentro da noite e eu precisava de toda a minha atenção para encontrar a igreja no escuro.

Era uma construção minúscula, de pedra, com telhado de palha, incrustada numa pequena depressão da colina, como um animal encolhido de medo. As fogueiras das sentinelas inglesas eram visíveis daqui, cintilando através da chuva com neve, e eu podia ouvir gritos ao longe — escoceses ou ingleses, impossível dizer.

Então, as gaitas de foles começaram a soar, um grito agudo e estranho na tormenta. Ouviram-se guinchos dissonantes, sobrenaturais, erguendo-se de vários pontos na colina. Tendo visto essa cena antes de perto, podia imaginar os gaiteiros soprando e enchendo seus odres, o peito inflando com arfadas rápidas e lábios azulados pressionados com força na boca dos tubos, dedos rígidos de frio tateando para guiar os sopros de forma coerente.

Eu quase podia sentir a resistência teimosa do saco de couro, mantido quente e flexível sob um xale, mas relutante em se deixar inflar completamente, em seguida adquirindo vida subitamente, parte do corpo do gaiteiro, como um terceiro pulmão, respirando por ele quando o sopro roubava seu ar, como se os gritos dos homens próximos a ele o enchessem.

A gritaria estava mais alta agora e alcançava-me em ondas à medida que o vento mudava de direção, carregando rajadas de chuva e neve em redemoinho. Não havia nenhuma entrada para servir de abrigo ou quaisquer árvores na encosta da colina para quebrar o vento. Meu cavalo virou-se e abaixou a cabeça, enfrentando o vento, e sua crina açoitava meu rosto com força, áspera de gelo.

A igreja oferecia um santuário contra os elementos, bem como contra os ingleses. Empurrei a porta e, puxando a brida, reboquei o cavalo para dentro atrás de mim.

Estava no interior da igreja, com a única janela de pele de animal oleada não mais do que uma mancha turva na escuridão acima do altar. Parecia acolhedora, em contraste com o tempo do lado de fora, mas o cheiro rançoso de suor tornava-a sufocante. Não havia bancos que pudessem fazer o cavalo tropeçar; nada, exceto um pequeno santuário embutido em uma das paredes, e o próprio altar. Oprimido pelo forte cheiro de gente, o cavalo parou imóvel, resfolegando e bufando, porém sem muita agitação. Vigiando-o atentamente, voltei para a porta e enfiei a cabeça para fora.

Ninguém saberia dizer o que se passava no monte Falkirk. Os lampejos de armas de fogo espocavam aleatoriamente na escuridão. Eu podia ouvir, fracos e intermitentes, o tinir de metais e a pancada surda de uma ou outra explosão. De vez em quando, ouvia-se o grito de um homem ferido, alto e agudo como um guincho da gaita de foles, diferente dos brados gaélicos dos guerreiros. Então, o vento mudava de direção e eu não ouvia nada ou imaginava ouvir vozes que nada mais eram do que o vento uivante.

Eu não vira a luta em Prestonpans; subconscientemente acostumada aos movimentos ponderados de enormes exércitos refreados por tanques e morteiros, eu não percebera exatamente a rapidez com que as coisas podiam acontecer em uma batalha diminuta e fixa, de luta corpo a corpo e armas leves e pequenas.

O primeiro aviso que tive foi um grito bem próximo a mim.

— Tulach Ard!

Ensurdecida pelo vento, eu não os ouvira subir a colina.

— Tulach Ard!

Era o grito de batalha do clã MacKenzie; alguns soldados de Dougal, forçados a recuar na direção do meu santuário. Abaixei a cabeça e entrei novamente, mas mantive a porta aberta, de modo que eu pudesse olhar para fora.

Eles estavam subindo a colina, um pequeno grupo de homens em fuga. Homens das Highlands, tanto pelo som quanto pela visão deles, xales de xadrez, barbas e cabelos voando ao redor, de modo que pareciam nuvens escuras contra a encosta gramada, movimentando-se com rapidez ladeira acima, à frente do vento.

Saltei para dentro da igreja quando o primeiro deles irrompeu pela porta. Escuro como estava, eu não podia ver seu rosto, mas reconheci sua voz quando ele colidiu em cheio com meu cavalo.

— Santo Deus!

— Willie! — gritei. — Willie Coulter!

— Santa Mãe de Deus! Quem está aí?

Não tive tempo de responder antes de a porta bater com força contra a parede e mais duas formas escuras lançarem-se dentro da minúscula igreja. Enraivecido por essa intrusão barulhenta, meu cavalo recuou e relin-chou, erguendo as patas no ar. Isso provocou gritos de alarme dos intrusos, que obviamente achavam que o prédio estava desocupado e estavam desconcertados com a constatação de que isso não era verdade.

A entrada de vários outros homens apenas aumentou a confusão e eu desisti de tentar dominar o cavalo. Forçada para os fundos da igreja, me espremi no pequeno espaço entre o altar e a parede e esperei que as coisas se resolvessem por si.

Quando tudo parecia dar sinais de se acalmar, uma das vozes confusas na escuridão ergueu-se acima das outras.

— SILÊNCIO! — gritou, num tom que não tolerava nenhum protesto. Todos, exceto o cavalo, obedeceram e quando a confusão desvaneceu-se até o cavalo aquietou-se, retirando-se para um canto e resfolegando ruidosamente, em meio a guinchos queixosos de insatisfação.

— Somos os MacKenzie de Leoch — disse a voz imperiosa. — Quem mais está aqui?

— Geordie, Dougal e meu irmão comigo — disse uma voz próxima, em tom de profundo alívio. — Trouxemos Rupert conosco também; ele está ferido. Meu Deus, achei que era o próprio diabo que estava aqui!

— Gordon McLeod de Ardsmuir — disse outra voz que não reconheci.

— E Ewan Cameron de Kinnoch — disse outra. — De quem é este cavalo?

— Meu — eu disse, saindo cautelosamente de trás do altar. O som de minha voz causou nova confusão, mas Dougal mais uma vez extinguiu-a

— SILÊNCIO, bando de tolos! É você, Claire Fraser?

— Bem, não é a rainha — eu disse com irritação. — Willie Coulter está aqui também, ou estava há um minuto. Ninguém tem uma caixa de sílex?

— Nada de luz! — disse Dougal. — Há poucas chances de que os ingleses examinem este lugar se nos seguirem, mas seria tolice chamar sua atenção.

— Está bem — eu disse, mordendo o lábio. — Rupert, consegue falar? Diga alguma coisa para eu saber onde você está. — Eu não sabia o que poderia fazer por ele no escuro; do jeito que estava, não conseguia sequer pegar minha caixa de remédios. De qualquer maneira, eu não podia deixá-lo sangrar até a morte no chão.

Ouviu-se uma tosse terrível do lado oposto da igreja em relação a mim e uma voz rouquenha disse, tossindo outra vez:

— Aqui, senhora.

Fui tateando na direção da voz, praguejando em voz baixa. Eu podia saber simplesmente pelo som borbulhante daquela tosse que seu estado era grave; o tipo de gravidade para a qual minha caixa de remédios pouco adiantaria. Agachei-me e caminhei abaixada os últimos passos, abanando os braços em movimentos amplos para sentir o que poderia estar no meu caminho.

Uma das minhas mãos tocou um corpo quente e outra mão, grande, agarrou-me. Tinha que ser Rupert; podia ouvi-lo respirar, um som estertoroso, com um débil gorgolejar por trás.

— Estou aqui — eu disse, tentando reconfortá-lo com uns tapinhas num lugar que eu esperava que fosse tranqüilizador. Acredito que tenha sido, porque ele deu uma espécie de risadinha ofegante e arqueou os quadris, pressionando minha mão com força contra ele.

— Faça isso outra vez, dona, e eu esquecerei tudo a respeito da bala de mosquete — ele disse.

Retirei a mão bruscamente.

— Talvez mais tarde — eu disse secamente. Levei a mão para cima, deslizando pelo seu corpo à procura de sua cabeça. A barba áspera e espessa disse-me que eu alcançara meu alvo e coloquei a mão com cuidado sob os pêlos densos para sentir sua pulsação na garganta. Rápida e superficial, mas ainda bastante regular. Sua testa estava escorregadia de suor, embora sua pele fosse pegajosa ao toque. A ponta de seu nariz estava fria quando a rocei, enregelada pelo ar lá de fora.

— Pena que não sou um cachorro — ele disse, um fio de risada emergindo entre as arfadas em busca de ar. — Nariz frio... seria um bom sinal.

— Seria melhor se parasse de falar — eu disse. — Onde a bala o atingiu? Não, não me diga, pegue minha mão e coloque-a sobre o ferimento... e se colocá-la em qualquer outro lugar, Rupert MacKenzie, pode morrer aqui como um cão e boa passagem para você.

Pude sentir o peito largo vibrar sob a minha mão com uma risada reprimida. Conduziu minha mão devagar embaixo do seu xale e eu afastei o tecido do caminho com a outra mão.

— Está bem, já senti — murmurei. Pude sentir o pequeno rasgo em sua camisa, úmido de sangue ao redor das bordas. Coloquei ambas as mãos na abertura e rasguei a camisa de alto a baixo. Rocei os dedos de leve pelo lado de seu corpo, sentindo os poros arrepiados sob eles, depois o pequeno buraco da entrada do ferimento. Parecia um orifício excepcionalmente pequeno, comparado ao volume de Rupert, que era um homem forte e musculoso.

— Ela saiu por algum lugar? — murmurei. O interior da igreja estava silencioso, exceto pelo cavalo, que se remexia nervosamente em seu próprio canto. Com a porta fechada, os sons da batalha lá fora ainda eram audíveis, mas difusos; era impossível dizer a que proximidade estavam.

— Não — ele disse, tossindo outra vez. Pude sentir que ele levava a mão à boca e segui-a com uma dobra de seu xale. Meus olhos já estavam tanto quanto possível acostumados à escuridão, mas ele ainda não passava de uma figura escura, curvada à minha frente. Para algumas coisas, entretanto, o toque era suficiente. Havia pouco sangramento no local do ferimento, mas o tecido que levei à sua boca encharcou minha mão com um calor repentino e úmido.

A bala atingira-o em um dos pulmões, pelo menos, provavelmente ambos, e seu peito enchia-se de sangue. Ele poderia durar algumas horas nestas condições, talvez um dia se um dos pulmões continuasse em funcionamento. Se o pericárdio tivesse sido perfurado, ele morreria mais rápido. Entretanto, somente a cirurgia de um tipo que eu não tinha como fazer poderia salvá-lo.

Senti uma presença cálida às minhas costas e ouvi uma respiração normal quando alguém veio tateando até chegar perto de mim. Estendi o braço para trás e senti a minha mão ser agarrada com força. Dougal MacKenzie.

Continuou avançando até posicionar-se a meu lado e colocou a mão no corpo inerte de Rupert.

— Como está, companheiro? — perguntou a meia-voz. — Consegue caminhar? — Minha outra mão ainda estando sobre Rupert, pude sentir sua cabeça sacudir em resposta à pergunta de Dougal. Os homens atrás de nós na igreja começaram a falar em sussurros entre si mesmos.

A mão de Dougal pressionou meu ombro.

— Do que precisa para ajudá-lo? Sua caixa? Está no cavalo? — Ele já havia se levantado antes que eu pudesse lhe dizer que não havia nada na caixa que pudesse ajudar Rupert.

Um estalo sonoro e repentino do altar calou todos os sussurros e houve uma movimentação geral por toda parte, conforme os homens pegavam as armas que haviam deixado no assoalho. Outro estalo, um barulho de algo se rasgando, e a cobertura de pele oleada que cobria a janela deu lugar a uma rajada de ar limpo e frio, além de alguns flocos de neve em redemoinho.

— Sassenach! Claire! Está aí? — A voz baixa que vinha da janela me fez ficar de pé, momentaneamente esquecida de Rupert.

— Jamie! — Ouviu-se uma exalação coletiva de alívio ao meu redor e o barulho estridente de espadas e escudos sendo largados. A nova claridade que vinha de fora foi obstruída por um instante pelo volume da cabeça e dos ombros de Jamie. Ele desceu sem esforço do altar, a figura recortada contra a janela aberta.

— Quem está aí? — ele perguntou, olhando em torno. — Dougal, é você?

— Sim, sou eu, rapaz. Sua mulher e alguns homens. Viu os malditos ingleses em algum lugar aí fora?

Jamie emitiu uma pequena risada.

— Por que acha que eu entrei pela janela? Há pelo menos uns vinte deles no sopé da colina.

Dougal emitiu um ronco de insatisfação do fundo da garganta.

— Os miseráveis que nos separaram do grosso das tropas. Vou ficar preso aqui.

— É verdade. Ho, mo cridh! Ciamar a tha thu? — Reconhecendo uma voz familiar no meio da loucura, meu cavalo empinara o focinho com um sonoro relincho de boas-vindas.

— Silêncio, seu tolo! — Dougal disse bruscamente para o cavalo. — Quer que os ingleses ouçam?

— Não creio que os ingleses enforcassem ele — Jamie observou serenamente. — Quanto a eles saberem que vocês estão aqui, não vão precisar de ouvidos, se tiverem olhos; a encosta lá fora está lamacenta e as pegadas de vocês são bem visíveis.

— Mmuhm. — Dougal lançou um olhar em direção à janela, mas Jamie já sacudia a cabeça.

— Não adianta, Dougal. A parte principal das tropas está ao sul e lorde George Murray foi ao seu encontro, mas há os poucos ingleses do grupo que enfrentamos que ainda estão deste lado. Um bando deles me perseguiu pela colina acima; esquivei-me para o lado e vim me arrastando de barriga pela grama até a igreja, mas acho que ainda estão vasculhando a encosta. — Estendeu a mão em minha direção e eu a tomei. Estava fria e úmida do contato com a grama, mas fiquei feliz só de poder tocá-lo, de tê-lo ali a meu lado.

— Veio rastejando, hein? E como planejava sair outra vez? — Dougal perguntou.

Pude sentir Jamie dar de ombros. Inclinou a cabeça na direção do meu cavalo.

— Pensei em irromper daqui e passar por eles em disparada; não sabem do cavalo. Isso causaria perturbação suficiente talvez para Claire conseguir escapar.

Dougal fez um muxoxo.

— Ah, e eles o arrancariam do cavalo como uma maçã madura.

— Pouco importa — Jamie disse secamente. — Não vejo como todos vocês poderiam se esgueirar daqui em silêncio sem que ninguém notasse, por mais barulho e confusão que eu provocasse.

Como em confirmação às suas palavras, Rupert deu um gemido alto junto à parede. Dougal e eu caímos de joelhos ao lado dele imediatamente, seguidos por Jamie, mais devagar.

Ele não estava morto, mas tampouco estava indo bem. Suas mãos estavam frias e sua respiração era acompanhada de um chiado.

— Dougal — ele murmurou.

— Estou aqui, Rupert. Fique quieto, companheiro, logo estará bem. -O chefe do clã MacKenzie rapidamente tirou seu próprio xale, dobrou-o como um travesseiro, que enfiou sob a cabeça e os ombros de Rupert. Um pouco erguido, sua respiração parecia mais fácil, mas um toque sob sua barba revelou-me manchas úmidas em sua camisa. Ele ainda possuía algumas forças; estendeu a mão e agarrou o braço de Dougal.

— Se... vão nos encontrar de qualquer modo... me dê uma luz — ele disse, arfando. — Eu veria seu rosto mais uma vez, Dougal.

Estando muito perto de Dougal, pude sentir o choque percorrê-lo diante dessas palavras e suas implicações. Sua cabeça virou-se abruptamente em minha direção, mas obviamente ele não podia ver meu rosto. Murmurou uma ordem por cima do ombro e após alguns sussurros e movimentações, alguém cortou um punhado da palha do telhado, torceu-o formando uma tocha e acendeu-o com uma fagulha de sílex. Queimou rápido, mas forneceu luz suficiente para que eu examinasse Rupert enquanto os homens tentavam cortar uma longa lasca de madeira das vigas do teto, para servir como uma tocha mais durável.

Ele estava branco como a barriga de um peixe, os cabelos grudados de suor e uma pequena mancha de sangue ainda era visível no grosso lábio inferior. Havia pontos escuros na lustrosa barba negra, mas ele sorriu debilmente para mim quando me curvei sobre ele para verificar sua pulsação outra vez. Mais superficial, mas muito rápida, com batimentos irregulares. Afastei os cabelos de sua testa e ele tocou minha mão em agradecimento.

Senti a mão de Dougal no meu cotovelo e sentei-me sobre os calcanhares, virando-me para fitá-lo. Eu o fitara assim uma vez, sobre o corpo de um homem mortalmente ferido por um javali. Ele me perguntara na ocasião: “Ele pode viver?”, e vi a lembrança desse dia cruzar seu rosto. A mesma pergunta estampava-se em seus olhos novamente, mas desta vez em olhos vidrados de medo pela minha resposta. Rupert era seu melhor amigo, o parente que cavalgara e lutara a seu lado direito, como Ian fizera por Jamie.

Desta vez eu não respondi; Rupert o fez por mim.

— Dougal — ele disse, sorrindo quando seu amigo inclinou-se ansiosamente sobre ele. Ele cerrou os olhos por um instante e respirou o mais profundo que pôde, reunindo forças para o momento.

— Dougal — repetiu, abrindo os olhos. — Não lamente por mim, companheiro.

O rosto de Dougal contorceu-se à luz da tocha. Pude ver a negação da morte aflorar aos seus lábios, mas ele a conteve e afastou.

— Sou seu chefe, amigo — ele disse, com um sorriso trêmulo. — Não pode me dar ordens; vou lamentar sua perda, sim. — Agarrou a mão de Rupert, inerte sobre o peito, e ficou segurando-a com força.

Ouviu-se uma risadinha fraca e chiada de Rupert e outro acesso de tosse.

— Bem, chore por mim se assim você quer, Dougal — ele disse, ao terminar. — E fico contente por isso. Mas não pode sentir pesar por mim enquanto eu estiver vivo, não é? Quero morrer em suas mãos, mo caraidh, não na mão de estranhos.

Dougal deu um solavanco, e Jamie e eu trocamos olhares horrorizados pelas suas costas.

— Rupert... — Dougal começou, com voz desamparada, mas Rupert interrompeu-o, agarrando sua mão e sacudindo-a delicadamente.

— Você é meu chefe, companheiro, é seu dever — ele sussurrou. -Vamos. Faça-o agora. Estou sofrendo, Dougal, e gostaria de acabar com isso. — Seus olhos moveram-se nervosamente, pousando em mim.

— Pode segurar minha mão enquanto eu parto, dona? — ele perguntou. — Eu gostaria muito.

Não parecia haver mais nada a fazer. Movendo-me devagar, sentindo como se tudo aquilo fizesse parte de um sonho, tomei a mão grande, de pêlos negros, entre as minhas, pressionando-a como se eu pudesse transmitir meu próprio calor à carne cada vez mais fria.

Com um grunhido, Rupert ergueu-se ligeiramente sobre um dos lados e ergueu os olhos para Jamie, sentado junto à sua cabeça.

— Ela devia ter se casado comigo, rapaz, quando teve escolha — disse com a respiração ruidosa. — Você é um palerma, mas faça o melhor que puder. — Um dos olhos se fechou numa piscadela significativa. — Dê-lhe uma boa por mim, rapaz.

Os olhos negros giraram de volta para mim e um sorriso final se propagou pelo seu rosto.

— Adeus, bela rapariga — ele disse a meia-voz.

A adaga de Dougal pegou-o sob o esterno, direta e com firmeza. O volumoso corpo sacudiu-se com um espasmo, virando-se de lado com uma golfada de ar e sangue, mas o breve som de agonia veio de Dougal.

O chefe do clã MacKenzie permaneceu paralisado por um instante, os olhos fechados, as mãos cerradas em torno do cabo da adaga. Em seguida, Jamie levantou-se, segurou-o pelos ombros e afastou-o dali, murmurando alguma coisa em gaélico. Jamie olhou para mim, eu assenti e estendi os braços. Ele conduziu Dougal delicadamente até mim e eu o tomei em meus braços, enquanto nós dois nos prostrávamos no chão, abraçando-o enquanto ele chorava.

O próprio rosto de Jamie estava banhado em lágrimas e eu podia ouvir os breves soluços e suspiros dos outros homens. Pensei que era melhor que chorassem por Rupert do que por si mesmos. Se os ingleses realmente viessem em nosso encalço ali, todos nós seríamos enforcados por traição. Era mais fácil chorar por Rupert, que se fora em segurança, o caminho abreviado pela mão de um amigo.

Eles não vieram em nenhum momento na longa noite de inverno. Aconchegamo-nos uns contra os outros juntos a uma única parede, sob mantos e xales, à espera. Cochilei em espasmos, reclinada no ombro de Jamie, com Dougal curvado e silencioso do outro lado. Creio que nenhum dos dois dormiu, mas se mantiveram em vigília a noite inteira sobre o corpo de Rupert, imóvel sob seu próprio xale drapeado, do outro lado da igreja, do outro lado do abismo que separa os mortos dos vivos.

Falamos pouco, mas eu sabia o que estavam pensando. Perguntavam-se, como eu, se as tropas inglesas teriam ido embora, reunindo-se com o grosso do exército na Casa Callendar mais abaixo, ou se ainda vigiavam do lado de fora, esperando a aurora antes de atacarem, com medo de que alguém na minúscula igreja escapasse, tirando proveito da escuridão.

A questão foi resolvida com a chegada dos primeiros raios de luz.

— Ei, aí na igreja! Saiam e entreguem-se! — A ordem veio do sopé da colina, com um forte sotaque inglês.

Houve uma agitação entre os homens no interior da igreja e o cavalo que dormitava no canto, ergueu a cabeça bruscamente, bufando de surpresa com a movimentação próxima. Jamie e Dougal trocaram um olhar como se tivessem planejado aquilo juntos, levantaram-se e ficaram parados, ombro a ombro, diante da porta fechada. Um sinal da cabeça de Jamie me mandou para os fundos da igreja, de volta ao meu refúgio atrás do altar.

Outro grito vindo do lado de fora foi recebido com silêncio. Jamie sacou a pistola do cinto e verificou a carga, descontraidamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. Apoiou-se em um dos joelhos e preparou a arma, apontando-a para a porta, ao nível da cabeça de um homem.

Geordie e Willie tomavam conta da janela nos fundos, as espadas e pistolas a postos. Mas o mais provável é que o ataque viesse da frente; a colina atrás da igreja subia de forma muito íngreme, quase não deixando espaço entre a encosta e a parede da igreja para um homem passar.

Ouvi o ruído de passos no terreno enlameado, aproximando-se da porta, e o leve retinir de armas brancas carregadas à cintura. Os passos pararam a alguma distância e ouviu-se uma voz outra vez, mais perto e mais forte.

— Em nome de Sua Majestade o rei Jorge, saiam e entreguem-se! Sabemos que estão aí!

Jamie disparou. O barulho da detonação dentro da igreja foi ensurdecedor. Devia ter sido muito impressionante do lado de fora também; eu podia ouvir os sons apressados de uma rápida retirada, acompanhada de imprecações abafadas. O projétil fez um pequeno buraco na porta; Dougal aproximou-se de lado e espreitou pelo buraco.

— Droga — disse num murmúrio. — Há um bando deles.

Jamie lançou um olhar para mim, depois cerrou os lábios e concentrou-se no recarregamento da pistola. Obviamente, os escoceses não tinham nenhuma intenção de se renderem. Igualmente óbvio, os ingleses não tinham nenhuma vontade de invadir a igreja, considerando-se que as entradas podiam ser facilmente defendidas. Será que pretendiam nos deixar morrer de fome? Certamente, o exército das Highlands estaria enviando homens para buscar os feridos na batalha da noite anterior. Se chegassem antes que os ingleses tivessem oportunidade de trazer um canhão para atacar a igreja, poderíamos ser salvos.

Infelizmente, havia alguém pensando do lado de fora. Ouviu-se o barulho de passos outra vez e, em seguida, uma voz inglesa pausada, carregada de autoridade.

— Vocês têm um minuto para sair e se render — ele disse —, ou atearemos fogo à palha.

Olhei para cima totalmente apavorada. As paredes da igreja eram de pedra, mas a palha do telhado arderia em poucos minutos, mesmo estando encharcada de chuva e neve, e quando o fogo tivesse se alastrado, lançaria uma chuva de labaredas e brasas fumegantes que nos engolfariam. Lembrei-me da terrível velocidade com que a tocha de palha torcida queimara na noite anterior; os remanescentes carbonizados jaziam no chão, junto ao corpo coberto de Rupert, um terrível lembrete na luz cinzenta do amanhecer.

— Não! — gritei. — Miseráveis! Malditos! Esta é uma igreja! Nunca ouviram falar em santuário!

— Quem é? — veio a voz incisiva do lado de fora. — É uma mulher inglesa que está aí?

— Sim! — gritou Dougal, saltando para junto da porta. Abriu-a de par em par e gritou para os soldados ingleses na encosta mais abaixo. — Sim! Mantemos uma senhora inglesa prisioneira! Ateiem fogo ao telhado e ela morre conosco!

Ouviu-se uma explosão de vozes no sopé da colina e uma movimentação repentina entre os homens na igreja. Jamie virou-se para Dougal com uma expressão ameaçadora.

— O que...!

— É nossa única chance! — Dougal sibilou em resposta. — Deixe que eles a levem, em troca de nossa liberdade. Não irão lhe fazer mal se souberem que é nossa prisioneira e nós a resgataremos quando estivermos livres!

Saí do meu esconderijo e aproximei-me de Jamie, agarrando a manga de sua camisa.

— Faça isso! — eu disse com urgência. — Dougal tem razão, é nossa única chance!

Ele olhou para mim com ar de desamparo, raiva e medo misturados em seu rosto. E sob tudo isso, um traço de humor diante da ironia subjacente da situação.

— Sou uma sassenach, afinal de contas — eu disse, percebendo a ironia. Ele tocou meu rosto de leve com um sorriso melancólico.

— Sim, mo duinne. Mas você é minha sassenach. — Vírou-se para Dougal, aprumando os ombros. Respirou fundo e fez um sinal com a cabeça.

— Está bem. Diga que nós a seqüestramos — pensou rápido, passando a mão pelos cabelos — na estrada de Falkirk, ontem no final da tarde.

Dougal assentiu e, sem mais delongas, deslizou para fora pela porta da igreja, um lenço branco erguido bem acima da cabeça em sinal de trégua. Jamie virou-se para mim, a testa franzida, olhando para a porta da igreja, onde os sons de vozes eram audíveis, embora não pudéssemos distinguir o que diziam.

— Não sei o que você vai lhes dizer, Claire; talvez seja melhor fingir-se em tal estado de choque que não consegue falar. Talvez seja melhor do que inventar uma história; porque se descobrirem quem você é... — Parou de repente e esfregou a mão com força no rosto.

Se descobrissem quem eu era, seria Londres e a Torre de Londres -seguida certamente por uma rápida execução. Mas embora os cartazes tivessem feito muito alarde sobre “a Bruxa dos Stuart”, ninguém, até onde eu soubesse, havia descoberto ou publicado o fato de que a bruxa era inglesa.

— Não se preocupe — eu disse, percebendo a tolice dessa observação, mas incapaz de pensar em algo melhor. Coloquei a mão sobre a manga de sua camisa, sentindo seu pulso acelerado. — Você vai me resgatar antes que tenham qualquer chance de descobrir alguma coisa. Acha que me levarão para a Casa Callendar?

Ele balançou a cabeça, recuperando o autocontrole.

— Sim, creio que sim. Se puder, tente ficar sozinha perto de uma janela, logo depois do anoitecer. É quando irei buscá-la.

Não houve tempo para nada mais. Dougal esgueirou-se de novo para dentro, fechando a porta cuidadosamente atrás de si.

— Está feito — ele disse, olhando de mim para Jamie. — Nós lhes damos a mulher e poderemos partir sem sermos molestados. Nenhuma perseguição. Ficamos com o cavalo. Precisaremos dele, para Rupert, sabe — disse-me, como se pedisse desculpas.

— Tudo bem — eu lhe disse. Olhei para a porta, com seu pequeno furo negro onde a bala a atravessara, o mesmo tamanho do buraco no corpo de Rupert. Minha boca estava seca e eu engoli com força. Eu era um ovo de cuco, prestes a ser colocado no ninho errado. Nós três hesitamos diante da porta, todos relutantes em dar o passo final.

— E-é melhor eu ir — eu disse, tentando controlar minha voz e minhas pernas trêmulas. — Vão se perguntar o que está nos detendo.

Jamie fechou os olhos por um instante, assentiu, depois deu um passo em minha direção.

— Acho melhor você desmaiar, Sassenach — ele disse. — Talvez assim seja mais fácil. — Inclinou-se, pegou-me nos braços e carregou-me pela porta que Dougal mantinha aberta.

Seu coração batia com força sob meu ouvido e eu podia sentir o tremor de seus braços enquanto me carregava. Depois do ar abafado da igreja, com seus cheiros de suor, sangue, pólvora e excremento de cavalo, o ar frio e limpo do começo da manhã tirou meu fôlego e eu aconcheguei-me junto a ele, tremendo. Suas mãos apertaram-se com mais força sob meus joelhos e ombros, rígidos como uma promessa; jamais me deixaria ir.

— Meu Deus — ele disse uma vez, num sussurro, e então os alcançamos. Perguntas incisivas, respostas murmuradas, o afrouxamento relutante de suas mãos quando me colocou no chão. Em seguida, o ruído de seus pés, afastando-se pela grama molhada. Eu estava sozinha, nas mãos de estranhos.

 

Encolhi-me mais perto do fogo, estendendo as mãos para aquecê-las. Estavam sujas de segurar as rédeas o dia inteiro e perguntei-me se valia a pena percorrer a distância até o córrego para lavá-las. Manter padrões modernos de higiene na ausência de todas as formas de encanamento às vezes parecia muito mais trabalho do que valia a pena. Não era de admirar que as pessoas adoecessem e morressem com freqüência, pensei de mau humor. Morriam de pura sujeira e ignorância mais do que de quaisquer outros males.

A idéia de morrer na sujeira foi suficiente para me fazer levantar, apesar do cansaço. O minúsculo córrego que cortava o acampamento era pantanoso nas margens e meus sapatos afundaram-se na vegetação alagadiça. Tendo trocado mãos sujas por pés molhados, arrastei-me de volta até a fogueira e encontrei o cabo Rowbotham esperando por mim com uma tigela do que ele disse ser um ensopado.

— Com os cumprimentos do capitão, madame — ele disse, na verdade ajeitando o topete enquanto me entregava a tigela —, e ele me pediu para dizer-lhe que estaremos em Tavistock amanhã. Há uma estalagem lá. -Hesitou, o rosto redondo, rude, de meia-idade, preocupado. Em seguida, acrescentou: — As desculpas do capitão pela falta de acomodações adequadas, madame, mas erguemos uma tenda para a senhora passar a noite. Não é grande coisa, mas talvez assim não se molhe na chuva.

— Agradeça ao capitão por mim, cabo — eu disse, o mais amavelmente que consegui. — E obrigada a você também — acrescentei, com mais entusiasmo. Eu tinha plena consciência de que o capitão Mainwaring me considerava um peso incômodo e que de modo algum teria se preocupado com um abrigo para eu passar a noite. A tenda, um pedaço de lona cuidadosamente dobrado por cima de um galho de árvore e preso dos dois lados, era sem dúvida uma idéia exclusiva do cabo Rowbotham.

O cabo foi embora, e eu fiquei sentada sozinha, comendo devagar batatas queimadas e carne fibrosa. Eu encontrara uma touceira de mostarda perto do córrego, as folhas murchando e marrons nas bordas, e trouxera um punhado no bolso, junto com alguns frutos do zimbro que eu colhera durante uma parada no meio do dia. As folhas de mostarda eram velhas e muito amargas, mas consegui fazê-las descer pela minha garganta comendo pedaços entre porções de batata. Terminei a refeição com os zimbros, mordendo cada um ligeiramente para evitar ficar engasgada e em seguida engolindo a fruta dura, achatada, com semente e tudo. A oleosa explosão de sabor enviava vapores para cima do fundo da minha garganta e fazia meus olhos lacrimejarem, mas realmente limpava minha língua do gosto de gordura e queimado e, com as folhas de mostarda, talvez fossem suficientes para evitar o escorbuto.

Eu tinha um bom estoque das folhas comestíveis, novas e enroladas, de samambaias, frutos de roseira brava, maçãs secas e sementes de endro na maior das duas caixas de remédios, cuidadosamente coletadas como defesa contra a desnutrição durante os longos meses de inverno. Esperava que Jamie as estivesse comendo.

Coloquei a cabeça sobre os joelhos; achei que ninguém estivesse olhando para mim, mas não queria que vissem meu rosto quando eu estivesse pensando em Jamie.

Permaneci no meu falso desmaio no monte Falkirk o maior tempo possível, mas fui acordada pouco depois por um soldado dos dragões tentando forçar um pouco de conhaque de um pequeno frasco pela minha garganta. Sem saberem o que fazer comigo, meus “salvadores” levaram-me para a Casa Callendar e entregaram-me à equipe do general Hawley.

Até então, tudo correra conforme o plano. No entanto, no desenrolar da última hora as coisas haviam degringolado seriamente. Por ficar sentada em uma ante-sala, ouvindo tudo o que era dito à minha volta, logo fiquei sabendo que aquilo que eu achava ter sido uma grande batalha durante a noite, na verdade não passara de uma pequena escaramuça entre os MacKenzie e um destacamento das tropas inglesas a caminho de se unir ao corpo principal do exército. Este exército estava agora se reunindo para enfrentar o esperado ataque dos escoceses no monte Falkirk; a batalha à qual eu achava ter sobrevivido não havia, de fato, acontecido ainda!

O próprio general Hawley supervisionava o processo e como ninguém parecia ter nenhuma idéia do que fazer comigo, fui consignada à custódia de um jovem soldado raso, junto com uma carta descrevendo as circunstâncias do meu resgate, e despachada para o quartel-general temporário de um certo coronel Campbell, em Kerse. O jovem soldado, um sujeito troncudo chamado Dobbs, era zeloso de uma forma enervante na ânsia de desempenhar suas funções e, apesar de várias tentativas ao longo do caminho, eu não conseguira me livrar dele.

Chegamos a Kerse e descobrimos que o coronel Campbell não estava lá, mas fora convocado a Livingston.

— Olhe — eu sugeri ao meu acompanhante -, obviamente o coronel Campbell não vai ter tempo nem vontade de conversar comigo e de qualquer forma não tenho nada a lhe dizer. Por que eu não encontro uma hospedaria aqui na cidade, até poder fazer alguns arranjos para continuar minha viagem para Edimburgo? — Por falta de uma idéia melhor, eu dera ao inglês basicamente a mesma história que dera a Colum MacKenzie, há dois anos; que eu era uma viúva de Oxford, viajando para visitar um parente na Escócia, quando fui emboscada e seqüestrada por bandidos das Highlands.

O soldado Dobbs sacudiu a cabeça, ruborizando teimosamente. Ele não devia ter mais de vinte anos e não era muito inteligente, mas quando metia uma idéia na cabeça, não a largava.

— Não posso deixá-la fazer isso, sra. Beauchamp — ele disse, pois eu usara o meu próprio nome de solteira como nome falso. — O capitão Bledsoe vai comer meu fígado se eu não levá-la a salvo ao coronel.

Assim, fomos para Livingston, montados em dois dos mais lamentáveis pangarés que eu já vira. Finalmente, fui liberada das atenções do meu acompanhante, mas sem que isso implicasse nenhuma melhoria nas minhas circunstâncias. Ao invés disso, vi-me confinada em um quarto superior de uma casa em Livingston, contando a história mais uma vez, a um certo coronel Gordon MacLeish Campbell, um escocês das Lowlands no comando de um dos regimentos do eleitor.

— Sim, compreendo — ele disse, com a espécie de tom que sugeria que ele não compreendia absolutamente nada. Era um homem pequeno, de feições de raposa, meio calvo, com cabelos ruivos penteados para trás. Ele estreitou ainda mais os olhos, voltados para baixo, para a carta amassada em cima do mata-borrão em sua escrivaninha.

— Esta carta diz — falou, colocando no nariz pequenos óculos de lentes pela metade, a fim de olhar com mais atenção a folha de papel — que um dos seus captores, madame, era um membro do clã Fraser, grande, de cabelos ruivos. Essa informação é correta?

— Sim — eu disse, perguntando-me aonde ele pretendia chegar.

Ele inclinou a cabeça, de modo que seus óculos deslizaram pelo nariz, para melhor fixar em mim um olhar penetrante por cima das lentes.

— Os homens que a resgataram perto de Falkirk disseram ter a impressão de que um de seus captores não era outro senão o famoso chefe das Highlands conhecido como “Jamie, o Ruivo”. Bem, soube também, sra-Beauchamp, que a senhora estava... perturbada, devo dizer? — repuxou os lábios, mas não era um sorriso -, durante o período de seu cativeiro e talvez sem condições mentais de fazer observações detalhadas, mas notou em algum momento se os outros homens presentes referiam-se a esse homem pelo nome?

— Sim. Chamavam-no de Jamie. — Não achei que haveria nenhum mal em dizer-lhe isso; os cartazes que eu vira deixavam bem claro que Jamie era um partidário da causa Stuart. A localização de Jamie na batalha de Falkirk era provavelmente de interesse para os ingleses, mas dificilmente poderia incriminá-lo ainda mais.

“Eles não podem me enforcar mais de uma vez”, ele dissera. Uma já seria mais do que suficiente. Olhei para a janela. A noite já caíra há mais de meia hora e lampiões brilhavam na rua lá embaixo, carregados por soldados que passavam de um lado para o outro. Jamie devia estar na Casa Callendar, procurando a janela onde eu deveria estar aguardando-o.

Tive a absoluta certeza, repentinamente, que ele me seguira, soube de alguma forma para onde eu estava sendo levada, e estaria esperando na rua lá embaixo que eu me apresentasse.

Levantei-me abruptamente e dirigi-me à janela. A rua embaixo estava vazia, a não ser por um vendedor de arenque em conserva, sentado em um banco com um lampião aos pés, à espera de algum freguês. Não era Jamie, obviamente. Ele não tinha como me encontrar. Ninguém no acampamento Stuart sabia onde eu estava; e eu estava completamente sozinha. Pressionei as mãos com força contra a vidraça num súbito ataque de pânico, sem me preocupar se poderia quebrá-la.

— Sra. Beauchamp! Está se sentindo bem? — A voz do coronel atrás de mim soou aguda, assustada.

Cerrei os lábios com força para impedir que tremessem e respirei fundo várias vezes, enevoando o vidro, de modo que a rua abaixo desapareceu na névoa. Externamente calma, voltei-me para encarar o coronel.

— Estou bem — eu disse. — Se já acabou de fazer perguntas, gostaria de ir agora.

— É mesmo? Humm. — Examinou-me com ar de dúvida, depois sacudiu a cabeça decididamente.

— Vai passar a noite aqui — declarou. — Pela manhã, eu a enviarei para o sul. Senti um espasmo de choque contrair minhas entranhas.

— Sul?! Para quê? — deixei escapar abruptamente.

Suas sobrancelhas de pêlo de raposa ergueram-se de perplexidade e ele ficou boquiaberto. Em seguida, estremeceu ligeiramente e fechou a boca com força, entreabrindo-a apenas numa fenda para enunciar suas próximas palavras.

— Tenho ordens de enviar qualquer informação pertencente ao criminoso das Highlands conhecido como Jamie Fraser, o Ruivo — ele disse. — Ou qualquer pessoa associada a ele.

— Eu não estou associada a ele! — eu disse. A menos que queira contar casamento, é claro.

O coronel Campbell permaneceu indiferente. Voltou-se para a sua escrivaninha e remexeu numa pilha de despachos.

— Sim, aqui está. O capitão Mainwaring será o oficial que a escoltará. Virá aqui buscá-la pela manhã. — Tocou uma pequena sineta de prata no formato de um gnomo e a porta abriu-se, revelando o rosto inquiridor de seu ordenança particular. — Garvie, acompanhe a senhora aos seus aposentos. Tranque a porta. — Virou-se para mim e fez uma ligeira mesura. — Creio que não nos veremos outra vez, sra. Beauchamp. Desejo-lhe um bom descanso e vá com Deus. — E isso foi tudo.

Não sei qual exatamente era a velocidade de Deus, mas provavelmente devia ser mais rápida do que o lento cavalgar do destacamento do capitão Mainwaring. O capitão estava encarregado de uma caravana de carroças de suprimentos, destinadas a Lanark. Após a entrega dessas carroças e de seus condutores, deveria prosseguir para o sul com o resto de seu destacamento, entregando despachos de pouca importância ao longo do caminho. Aparentemente, eu estava enquadrada na categoria de despachos sem urgência, pois estávamos há mais de uma semana na estrada e não havia sinal de estarmos chegando a nenhum lugar ao qual eu era destinada.

“Sul.” Significaria Londres?, perguntei-me, pela milésima vez. O capitão Mainwaring não me dissera qual a minha destinação final, mas eu não conseguia pensar em nenhum outro destino.

Erguendo a cabeça, dei de cara com um dos soldados dos dragões olhando fixamente para mim. Devolvi o olhar diretamente, até que ele enrubesceu e abaixou os olhos para a tigela em suas mãos. Eu estava acostumada a olhares desse tipo, embora a maioria não fosse tão ousada.

Começara desde que eu fora “resgatada”, com um certo constrangimento reservado por parte do jovem idiota que me levara a Livingston. Não precisei de muito tempo para perceber que o que causava a atitude de distante reserva por parte dos oficiais ingleses não era desconfiança, mas uma mistura de desprezo e horror, mesclada a traços de pena e uma noção de responsabilidade oficial que impedia que seus verdadeiros sentimentos fossem abertamente demonstrados.

Eu não só fora resgatada de um bando de escoceses vorazes e predadores. Eu fora entregue de um cativeiro durante o qual eu passara uma noite inteira em um único aposento com vários homens, que eram, de acordo com determinado conhecimento de todos os ingleses de bem, “pouco mais do que bestas selvagens, culpados de pilhagem, roubo e incontáveis outros crimes hediondos”. Inimaginável, portanto, que uma jovem inglesa tivesse passado a noite na companhia de tais animais e emergido incólume.

Refleti com raiva que o fato de Jamie ter me carregado para fora aparentemente desmaiada podia ter facilitado as coisas no início, mas sem dúvida contribuíra para a impressão geral de que ele — e os demais escoceses do bando — haviam me violentado. E graças à carta detalhada escrita pelo capitão do meu grupo original de salvadores, todos a quem eu fora repassada — e todos com quem eles conversaram, eu imagino — sabiam a respeito. Instruída em Paris, eu conhecia muito bem os mecanismos dos mexericos.

O cabo Rowbotham certamente ouvira histórias, mas continuara a tratar-me amavelmente, sem nenhum indício da especulação mal disfarçada que eu de vez em quando surpreendia nos rostos dos outros soldados. Se eu fosse inclinada a oferecer preces antes de dormir, teria incluído seu nome.

Levantei-me, bati a poeira do meu manto e entrei em minha tenda. Vendo-me sair, o cabo Rowbotham também se levantou e, dando a volta à fogueira discretamente, sentou-se junto a seus companheiros outra vez, as costas voltadas direto para a entrada da minha tenda. Depois que os soldados se retirassem para suas camas, sei que ele procuraria um local a uma distância respeitável do meu lugar de descanso, mas ainda assim ao alcance de minha voz. Ele fizera isso nas últimas três noites, quer dormíssemos numa estalagem ou no campo.

Há três noites, eu tentara mais uma fuga. O capitão Mainwaring sabia muito bem que eu estava viajando com ele por imposição e, embora eu representasse um fardo para ele, era um soldado consciencioso demais para se livrar da responsabilidade. Dois guardas haviam sido destacados para me vigiar atentamente, cavalgando comigo, um de cada lado, durante o dia.

A noite, a guarda era relaxada, o capitão evidentemente achando improvável que eu fugisse a pé pela região pantanosa e deserta nos rigores do inverno. O capitão tinha razão. Eu não tinha a menor intenção de cometer suicídio.

Na noite em questão, entretanto, havíamos atravessado um vilarejo há umas duas horas antes de pararmos para passar a noite. Mesmo a pé, eu tinha certeza de que poderia voltar pelo mesmo caminho e chegar à vila antes do amanhecer. A vila possuía uma pequena destilaria, de onde carroças carregadas de barris partiam para várias cidades nas regiões adjacentes. Eu vira o pátio da destilaria, com pilhas de barris, e achei que eu tinha ali uma boa chance de me esconder e partir com a primeira carroça.

Assim depois que o acampamento ficou silencioso e os soldados estavam amontoados, roncando em volta da fogueira, eu saíra sorrateiramente de baixo do meu cobertor, cuidadosamente estendido à beira de um bosque de salgueiros, e abri caminho através de suas enormes copas com as folhagens arrastando pelo chão, sem nenhum ruído mais alto do que o murmúrio do vento.

Ao sair do bosque, pensei que fosse o barulho do vento atrás de mim também, até que a mão de alguém agarrou meu ombro.

— Não grite. Não vai querer que o capitão saiba que saiu sem permissão. — Não gritei, apenas porque, com o susto, todo o ar se exaurira dos meus pulmões. O soldado, um homem consideravelmente alto chamado carinhosamente de “Jessie” por seus companheiros, por causa do cuidado que tomava em pentear seus cachos louros, sorriu para mim e eu devolvi o sorriso de modo incerto.

Seus olhos recaíram sobre meus seios. Suspirou, ergueu os olhos para os meus e deu um passo em minha direção. Dei três passos para trás, rapidamente.

— Na verdade, não importa, não é, docinho? — ele disse, ainda sorrindo sem pressa. — Não depois do que já aconteceu. Que diferença faz mais um, não é mesmo? E, além do mais, sou um inglês — tentou me persuadir. — E não um escocês imundo.

— Deixe a pobre mulher em paz, Jess — disse o cabo Rowbotham, emergindo silenciosamente da proteção dos salgueiros às suas costas. — Ela já teve muitos problemas, a pobre senhora. — Falou com voz bastante calma, mas Jessie fitou-o com raiva. Depois, pensando melhor em relação ao que quer que fosse que tinha em mente, virou-se sem mais nenhuma palavra e desapareceu sob as folhas dos salgueiros.

O cabo esperou, calado, até eu pegar meu manto caído no chão, depois me seguiu de volta ao acampamento. Ele foi pegar seu próprio cobertor, fez sinal para que eu fosse me deitar e posicionou-se a alguns passos de distância, sentando-se com seu cobertor em volta dos ombros, como um índio. Sempre que eu acordava durante a noite, eu o via ainda sentado lá, olhando fixa e distraidamente para o fogo.

Tavistock realmente possuía uma estalagem. Mas eu não tive muito tempo para desfrutar de suas comodidades. Chegamos ao vilarejo ao meio-dia e o capitão Mainwaring saiu na mesma hora para entregar sua atual safra de despachos. Entretanto, retornou depois de uma hora e me disse para pegar meu manto.

— Por quê? — perguntei, confusa. — Para onde vamos?

Olhou para mim com indiferença e disse:

— Para a Mansão Bellhurst.

— Certo — eu disse. Parecia um pouco mais imponente do que meu ambiente atual, que incluía vários soldados jogando dados no chão, um vira-lata pulguento dormindo junto ao fogo e um forte cheiro de lúpulo de cerveja.

A mansão, indiferente à beleza natural do lugar, teimosamente virava-se de costas para as campinas abertas e encolhia-se para dentro da terra, de frente para o íngreme penhasco.

Seu acesso era reto, curto e sem adornos, ao contrário dos acessos graciosos e sinuosos das mansões francesas. Mas a entrada da mansão era guar-necida com dois úteis pilares de pedra, cada qual ostentando o símbolo heráldico do proprietário. Fitei-o quando meu cavalo passou perto, tentando localizar de quem era aquele brasão. Um gato — talvez um leopardo? — agachado com a cabeça levantada e um lírio na pata. O brasão era-me familiar, eu tinha certeza. Mas de quem seria?

Ouviu-se um movimento no capim alto junto ao portão e eu vislumbrei dois pálidos olhos azuis quando uma trouxa de trapos corcunda fugiu rapidamente para as sombras, longe da agitação dos cascos dos cavalos. Algo a respeito do mendigo em farrapos também me pareceu familiar. Talvez eu estivesse simplesmente enlouquecendo; agarrando-me a qualquer coisa que não me lembrasse de soldados ingleses. O meu acompanhante ficou aguardando no pátio de entrada, sem se dar ao trabalho de desmontar, enquanto eu subia os degraus da entrada com o capitão Mainwaring e esperava enquanto ele batia à porta, imaginando o que haveria do outro lado.

— Sra. Beauchamp? — O mordomo, se isso é o que ele era, tinha um ar de quem esperava o pior. Sem dúvida, ele tinha razão.

— Sim — eu disse. — De quem é esta casa?

Mas enquanto eu perguntava ergui os olhos e espreitei a semi-obscuridade do vestíbulo interior. Um rosto fitava-me, os olhos de corça arregalados e espantados.

Mary Hawkins.

Quando a jovem abriu a boca, eu também abri a minha. E gritei o mais alto que pude. O mordomo, pego de surpresa, recuou um passo, tropeçou num canapé e caiu de lado como um pino de boliche. Pude ouvir os ruídos de surpresa dos soldados lá fora, subindo os degraus da entrada.

Arrematei minhas saias e gritei esganiçadamente, saindo correndo em direção à sala de visitas, berrando como uma banshee.

— Um rato! Um rato!

Contagiada pela minha aparente histeria, Mary gritou também e agarrou-me pela cintura quando colidi com ela como uma bala de canhão Empurrei-a para trás, para os recessos da sala de visitas comigo, e agarrei-a pelos ombros.

— Não diga a ninguém quem eu sou — sussurrei em seu ouvido. — Ninguém! Minha vida depende disso! — Achei que estava sendo melodramática, mas me ocorreu, enquanto eu falava, que eu podia muito bem estar dizendo a mais pura verdade. Ser casada com Jamie Fraser, o Ruivo era provavelmente um problema arriscado.

Mary teve tempo apenas para balançar a cabeça de uma forma atordoada, quando a porta no outro extremo do aposento abriu-se e um homem entrou.

— Que barulheira terrível é essa, Mary? — perguntou. Apesar de ser um homem gordo, com um ar satisfeito, ele também tinha um queixo firme e lábios apertados num ar de contentamento, próprios de alguém que está satisfeito porque em geral consegue o que quer.

— N-nada, papai — Mary disse, gaguejando de nervosismo. — Apenas um r-r-rato.

O baronete cerrou os olhos com força e respirou fundo, buscando paciência. Tendo encontrado um simulacro desse estado, abriu-os e olhou fixamente para sua filha.

— Repita isso, menina — ele ordenou. — Mas direito. Não vou aceitar que fique murmurando ou balbuciando incoerentemente. Respire fundo, controle-se. Agora. Outra vez.

Mary obedeceu, inspirando até que os cadarços de seu corpete esticaram-se em cima de seu peito estufado. Seus dedos enrolaram-se no brocado de seda de sua saia, em busca de apoio.

— Era um r-rato, papai. A sra. Fr... hã, esta senhora assustou-se com um rato.

Descartando essa tentativa como meramente satisfatória, o baronete aproximou-se, examinando-me com interesse.

— Oh? E quem é você, madame?

O capitão Mainwaring, chegando atrasado à cena após a busca pelo mítico rato, surgiu junto ao meu cotovelo e apresentou-me, entregando a carta de apresentação do coronel MacLeish.

— Hum. Então, parece que Sua Excelência deverá ser seu hospedeiro, madame, ao menos por enquanto. — Entregou a carta ao mordomo que aguardava discretamente e pegou o chapéu que este último havia tirado do cabide próximo.

— Lamento que nosso conhecimento deva ser tão breve, sra. Beau-champ. Eu já estava de saída. — Olhou por cima do ombro, para um pequeno lance de escadas que partia do vestíbulo. O mordomo, com a dignidade restaurada, já subia as escadas, a carta encardida descansando em uma salva conduzida à sua frente. — Vejo que Walmisley foi comunicar sua chegada a Sua Excelência. Devo ir ou perderei a carruagem do correio. Adieu, sra. Beauchamp.

Voltou-se para Mary, parada, hesitante, junto aos lambris de madeira.

— Adeus, minha filha. Tente... bem. — Os cantos de sua boca viraram-se para cima no que pretendia ser um sorriso paternal. — Adeus, Mary.

— Adeus, papai — ela murmurou, os olhos no chão. Olhei de um para o outro. O que diabos Mary Hawkins, de todas as pessoas possíveis, estava fazendo ali? Obviamente, ela estava hospedada na casa; imaginei que o proprietário devia ser um conhecido da família.

— Sra. Beauchamp? — Um criado de libré, gordo e baixo, fazia uma mesura junto ao meu cotovelo. — Sua Excelência vai recebê-la agora, madame.

As mãos de Mary agarraram a minha manga quando me virei para seguir o criado.

— M-m-m-mas... — ela começou a dizer. Em meu estado de tensão, achei que conseguiria reunir paciência suficiente para esperar até que ela conseguisse dizer o que pretendia. Sorri vagamente e bati de leve em sua mão para tranqüilizá-la.

— Sim, sim — eu disse. — Não se preocupe, tudo vai ficar bem.

— M-mas é meu...

O criado inclinou-se e empurrou a porta no final do corredor. A luz interior recaía sobre a riqueza de brocados e madeira polida. A cadeira que eu podia ver em um dos lados possuía um brasão de família bordado no encosto; uma versão mais clara da desgastada insígnia de pedra que eu vira lá fora.

Um leopardo agachado, segurando na pata um ramo de lírios — ou seriam flores de açafrão? Sinais de alarme soaram em minha mente quando o ocupante da cadeira se levantou, sua sombra recaindo sobre o polido umbral da porta quando ele se virou. Mary conseguiu finalmente pronunciar sua angustiada palavra final, simultaneamente ao anúncio do criado.

— Meu p-p-padrinho — ela disse.

— Sua Excelência, o duque de Sandringham — anunciou o criado.

— Sra.... Beauchamp? — disse o duque, boquiaberto de surpresa.

— Bem — eu disse debilmente. — Algo assim.

A porta da sala de visitas fechou-se atrás de mim, deixando-me sozinha com Sua Excelência. A última visão que tive de Mary foi ela de pé no corredor, os olhos parecendo dois pires, a boca abrindo-se e fechando-se silenciosamente como um peixinho dourado.

Havia grandes jarros chineses flanqueando as janelas e mesas marchetadas sob eles. Uma Vênus de bronze posava provocantemente sobre o consolo da lareira, acompanhada por um par de tigelas de porcelana de bordas douradas e candelabros de prata, iluminados com velas de cera. Um tapete felpudo que eu reconheci como um Kermanshah de excelente qualidade cobria quase todo o assoalho e em um dos cantos destacava-se uma espineta; o pouco espaço que sobrava era ocupado por móveis incrustados e uma ou outra estátua.

— Belo lugar você tem aqui — observei amavelmente para o duque, que estava parado diante da lareira, as mãos entrelaçadas sob a aba do casaco, observando-me com uma expressão de cauteloso divertimento no rosto largo e avermelhado.

— Obrigado — ele disse, na voz alta de tenor que saía tão estranhamente daquele peito em forma de tambor. — A sua presença o adorna, minha cara. — A diversão venceu a suspeita e ele sorriu, um riso fanfarrão e encantador.

— Por que Beauchamp? — ele perguntou. — Esse não é, por acaso, seu verdadeiro nome, é?

— Meu nome de solteira — respondi, estimulada a dizer a verdade. Suas grossas sobrancelhas louras levantaram-se abruptamente.

— Você é francesa?

— Não, inglesa. Mas eu não podia usar Fraser, não é?

— Compreendo. — As sobrancelhas ainda erguidas, ele indicou com um sinal da cabeça um pequeno canapé de dois lugares forrado de brocado, convidando-me a sentar. Era ricamente esculpido e magnificamente proporcionado, uma peça de museu, como tudo o mais no aposento. Puxei minhas saias ensopadas para o lado o mais graciosa possível, ignorando as profusas manchas de lama e pêlo de cavalo, e delicadamente sentei-me sobre o cetim amarelo-claro.

O duque começou a andar de um lado para o outro diante do fogo, observando-me, ainda com um leve sorriso nos lábios. Lutei contra a crescente sensação de calor e conforto que se espalhou pelas minhas pernas doloridas, ameaçando me arrastar para o abismo de fadiga que se abria aos meus pés. Não era absolutamente hora de baixar a guarda.

— Qual delas você é? — perguntou o duque de repente. — Uma refém inglesa, uma jacobita fervorosa ou uma agente francesa?

Esfreguei dois dedos sobre a dor entre meus olhos. A resposta correta era “nenhuma das respostas acima”, mas achei que isso não me levaria muito longe.

— A hospitalidade desta casa parece deixar um pouco a desejar, em relação às pessoas que recebe — eu disse, tão arrogante quanto possível naquelas circunstâncias, o que não era muito. Ainda assim, o exemplo de Louise como grande dama não fora totalmente em vão.

O duque riu, uma espécie de risada alta e trinada, como um morcego que tivesse acabado de ouvir uma boa piada.

— Mil perdões, madame. Tem toda a razão; devia ter pensado em lhe oferecer um lanche antes de ousar interrogá-la. Uma grande falta de consideração de minha parte.

Murmurou alguma coisa para o criado que apareceu em resposta ao toque da sineta, depois esperou calmamente diante da lareira até que a bandeja chegasse. Permaneci sentada em silêncio, olhando em torno do aposento, ocasionalmente lançando um rápido olhar ao meu anfitrião. Nenhum de nós dois estava interessado em conversas amenas sobre assuntos gerais. Apesar de sua cordialidade exterior, aquela era uma trégua armada e nós dois sabíamos disso.

O que eu queria saber era por quê. Já acostumada a que as pessoas se perguntassem quem diabos eu era, eu imaginava onde o duque se encaixava. Ou onde ele achava que eu me encaixava. Ele já se encontrara comigo duas vezes antes, como sra. Fraser, mulher do senhor de Lallybroch. Agora eu surgia na soleira de sua porta, posando como uma refém inglesa chamada Beauchamp recentemente resgatada de uma gangue de jacobitas escoceses. Era suficiente para qualquer um desejar saber. Mas essa atitude em relação a mim ia muito além da simples curiosidade.

O chá chegou, completo com pãezinhos e bolo. O duque pegou sua própria xícara, indicou a minha com um sinal da sobrancelha e tomamos chá, ambos ainda em silêncio. Em algum lugar do outro lado da casa, eu podia ouvir umas batidas surdas, como as de alguém martelando. O leve tilintar da xícara do duque contra o pires foi o sinal para a retomada das hostilidades.

— Muito bem — ele disse, com tanta firmeza quanto possível para um homem que soava como o Mickey Mouse. — Deixe-me começar, sra. Fraser... posso chamá-la assim? Obrigado. Deixe-me começar dizendo que eu já sei muito a seu respeito. Pretendo saber mais. Fará bem em me responder de maneira completa e sem hesitações. Devo dizer, sra. Fraser, que é uma pessoa surpreendentemente difícil de matar — inclinou-se um pouco em minha direção, o sorriso ainda nos lábios -, mas tenho certeza de que isso poderá ser realizado, desde que se tenha suficiente determinação.

Encarei-o, sem me mexer; não por algum sangue-frio inato, mas por simples estupefação. Adotei outro dos maneirismos de Louise, ergui as duas sobrancelhas inquisitivamente, tomei um pequeno gole do chá, depois sequei meus lábios delicadamente com o guardanapo bordado com um monograma.

— Receio que me ache estúpida, excelência — eu disse educadamente -, mas não faço a menor idéia do que está dizendo.

— Não mesmo, minha cara?

Os olhos azuis, pequenos e alegres, não piscaram. Estendeu a mão para a sineta de prata sobre a bandeja e tocou-a uma única vez.

O homem devia estar esperando no aposento ao lado pela convocação, pois a porta abriu-se quase imediatamente. Um sujeito magro e alto, com as vestimentas escuras e a camisa de linho de boa qualidade de um criado de alto escalão, aproximou-se do duque e fez uma profunda reverência.

— Excelência? — Ele falava inglês, mas o sotaque francês era inconfundível. O rosto era francês, também; nariz longo e branco, com lábios finos e cerrados e um par de orelhas que se destacavam de sua cabeça como uma pequena asa de cada lado, as pontas fragorosamente vermelhas. O rosto delgado ficou ainda mais pálido quando ele ergueu os olhos e me viu. Instintivamente, deu um passo para trás.

Sandringham observou-o com uma carranca de irritação, depois voltou sua atenção para mim.

— Não o reconhece? — perguntou.

Eu estava começando a sacudir a cabeça, quando a mão direita do sujeito contorceu-se de repente contra o tecido de suas calças. O mais discretamente possível, ele fazia o sinal de chifres, os dedos médio e anular dobrados, o indicador e o dedo mínimo apontados para mim. Compreendi, então, e no instante seguinte tive a confirmação do que já sabia — um pequeno sinal, uma pinta falsa usada para embelezamento, acima da forquilha do polegar.

Não tive a menor dúvida; era o homem da camisa de manchas escuras que atacara a mim e a Mary em Paris. E obviamente a mando do duque.

— Seu miserável filho-da-mãe! — exclamei. Levantei-me num salto, virando a mesinha de chá, e agarrei o objeto mais próximo, um jarro de tabaco de alabastro esculpido. Arremessei-o na cabeça do sujeito, que se virou e fugiu precipitadamente, o pesado jarro errando o alvo por apenas alguns centímetros e indo espatifar-se contra o batente da porta.

A porta bateu quando comecei a correr atrás do sujeito e eu parei bruscamente, arfando. Olhei furiosa para Sandringham, as mãos nos quadris.

— Quem é ele? — perguntei.

— Meu camareiro — disse o duque calmamente. — Seu nome é Albert Danton. Um bom sujeito ao lidar com echarpes e meias, mas um pouco excitável, como são tantos franceses. Incrivelmente supersticioso, também. — Franziu o cenho e olhou com ar de desaprovação para a porta fechada.

— Malditos papistas, com todos esses santos e cheiros e coisas semelhantes. Acreditam em qualquer coisa.

Minha respiração abrandou-se, embora meu coração ainda martelasse contra as barbatanas do meu espartilho. Tive dificuldade em respirar fundo.

— Seu imundo, nojento, desgraçado... pervertido.

O duque pareceu entediado com a minha reação e balançou a cabeça negligentemente.

— Sim, sim, minha cara. Tudo isso, tenho certeza, e mais ainda. Um pouco azarado também, ao menos naquela ocasião.

— Azarado? É assim que chama a isso? — Tropegamente, voltei para o canapé e sentei-me. Minhas mãos tremiam de nervoso e eu as entrelacei no colo, escondendo-as sob as pregas da minha saia.

— Por diversos motivos, minha cara senhora. Veja bem. — Espalmou as duas mãos em sinal de súplica. — Enviei Danton para dar cabo de você. Ele e seus companheiros resolveram se divertir um pouco primeiro; até aí, tudo bem, mas no processo eles a olharam com mais atenção, saltaram inexplicavelmente à conclusão de que você era algum tipo de bruxa, perderam completamente a cabeça e fugiram. Porém, não antes de deflorar minha afilhada, que estava presente por acaso, assim arruinando todas as chances de um excelente casamento que eu tive muito trabalho em arranjar para ela. Considere a ironia da situação!

Os choques vinham avassaladores e rápidos e eu nem conseguia saber a qual reagir primeiro. No entanto, havia uma declaração particularmente surpreendente naquele discurso.

— O que quer dizer com “dar cabo de mim”? — perguntei. — Está querendo dizer que você tentou mesmo mandar me matar? — O aposento pareceu oscilar um pouco e tomei um grande gole de chá como se fosse um tônico reconstituinte. Não foi muito eficaz.

— Bem, sim — Sandringham disse afavelmente. — Era isso que eu estava tentando dizer. Diga-me, minha cara, gostaria de tomar um pouco de xerez?

Fitei-o com os olhos semicerrados por um instante. Tendo acabado de afirmar que ele tentara mandar me matar, ele agora esperava que eu aceitasse um copo de xerez de suas mãos?

— Conhaque — eu disse. — Muito conhaque.

Ele deu uma risadinha naquele tom estridente outra vez e dirigiu-se ao bufete, observando por cima do ombro.

— O capitão Randall disse que você era uma mulher muito divertida. Um elogio e tanto vindo do capitão, sabe. Ele normalmente não tem muita paciência com as mulheres, embora elas fervilhem sobre ele como um enxame. Por sua aparência, imagino, não pode ser por seus modos.

— Então, Jack Randall realmente trabalha para você — eu disse, pegando o copo que ele me entregou. Eu o vira servir dois copos e tinha certeza de que ambos continham apenas conhaque. Tomei um grande e terrivelmente necessitado gole.

O duque acompanhou-me, piscando os olhos diante do efeito do líquido cáustico.

— Claro — ele disse. — Em geral, a melhor ferramenta é a mais perigosa. Por essa razão, não se hesita em usá-la; é preciso apenas tomar certas precauções.

— Perigoso, hein? Exatamente o quanto você sabe a respeito de Jonathan Randall? — perguntei, com curiosidade.

O duque riu baixinho.

— Ah, literalmente tudo, eu diria, minha cara. Talvez muito mais do que você, na realidade. Não adianta empregar um homem como esse sem ter à mão os meios de controlá-lo. E o dinheiro é uma boa brida, mas uma rédea fraca.

— Ao contrário da chantagem? — eu disse secamente.

Ele recostou-se confortavelmente na cadeira, as mãos cruzadas sobre a proeminente barriga, e olhou-me com um interesse superficial.

— Ah. Está pensando que a chantagem pode funcionar nos dois sentidos, suponho? — Sacudiu a cabeça, deslocando algumas partículas de grãos de rapé que flutuaram até pousar no colete de seda.

— Não, minha cara. Para começar, existe uma certa diferença em nossas posições. Embora boatos desse tipo possam afetar a maneira como sou recebido em alguns círculos da sociedade, isso não é uma questão que me preocupe muito. Enquanto que para o bom capitão... bem, o exército tem uma visão muito turva de tais predileções anormais. Na verdade, a penalidade em geral é a morte. Não, não há muita comparação, realmente. -Inclinou a cabeça para o lado, até onde as múltiplas papadas permitiam.

— Mas não é nem a promessa de riqueza nem a ameaça de exposição que prendem John Randall a mim — ele disse. Os olhinhos azuis, lacrimosos, brilharam nas órbitas. — Ele me serve porque eu posso lhe dar o que ele deseja.

Examinei a compleição corpulenta com um asco indisfarçável, fazendo Sua Excelência sacudir-se de rir.

— Não, isso não — ele disse. — Os gostos do capitão são um pouco mais refinados do que isso, ao contrário dos meus.

— O quê, então?

— Castigo — ele disse calmamente. — Mas você sabe disso, não? Ou ao menos seu marido sabe.

Senti-me suja simplesmente por estar perto dele e levantei-me para ir embora. Os cacos do jarro de tabaco de alabastro jaziam espalhados pelo assoalho e eu chutei um deles inadvertidamente, de modo que ele voou, bateu na parede, ricocheteou e girou, indo se alojar embaixo do canapé e me fazendo lembrar de Danton.

Eu não tinha certeza se queria discutir o assunto do meu assassinato abortado com ele, mas no momento a questão parecia preferível a outras alternativas.

— Por que quis me matar? — perguntei bruscamente, virando-me para encará-lo. Passei os olhos rápido pela coleção de objetos em uma mesinha redonda, à cata de uma boa arma de defesa, para o caso de ele ainda nutrir tais sentimentos.

Não parecia. Ao invés disso, ele inclinou-se com grande esforço e pegou o bule de chá — milagrosamente intacto -, colocando-o de novo em pé sobre a mesinha de chá agora restabelecida à sua posição original.

— Pareceu-me vantajoso na época — ele disse calmamente. — Eu soubera que você e seu marido estavam tentando frustrar um negócio particular no qual eu mesmo estava interessado. Pensei em eliminar seu marido, mas pareceu-me perigoso demais, considerando-se seu parentesco próximo com duas das maiores famílias da Escócia.

— Considerou eliminá-lo? — Uma luz acendeu-se em minha mente, uma das muitas que espocavam em meu crânio como fogos de artifício. -Foi você quem enviou dois marinheiros que atacaram Jamie em Paris?

O duque balançou a cabeça, confirmando.

— Pareceu-me o método mais simples, ainda que um pouco grosseiro. Por outro lado, Dougal MacKenzie apareceu em Paris e eu me perguntei se na verdade seu marido não estaria trabalhando a favor dos Stuart. Fiquei sem saber de que lado ele estava.

O que eu me perguntava era exatamente de que lado o duque estava. Esse estranho discurso fazia parecer que ele na verdade era um jacobita secreto — e se assim fosse, havia conseguido fazer um trabalho de mestre em guardar seus segredos.

— Depois — ele continuou, delicadamente colocando a tampa no bule outra vez -, havia sua crescente amizade com Luís de França. Mesmo que seu marido fracassasse com os banqueiros, Luís poderia fornecer a Carlos Stuart o que ele precisasse, desde que você mantivesse seu lindo nariz fora disso.

Franziu a testa para o pãozinho que segurava, removeu com um peteleco uns fiapos de sua superfície, em seguida decidiu que era melhor não comê-lo e atirou-o de volta na mesinha.

— Quando ficou claro o que estava realmente acontecendo, tentei atrair seu marido de volta à Escócia, com a oferta de um perdão. Provou-se muito cara, essa solução. E tudo para nada, outra vez! Mas então me lembrei da aparente devoção de seu marido por você... muito tocante — ele disse, com um sorriso benevolente que eu particularmente detestava. -Imaginei que sua morte trágica poderia muito bem distraí-lo do esforço no qual estava engajado sem provocar o tipo de interesse que seu próprio assassinato teria envolvido.

Lembrando-me de algo, virei-me para olhar para a espineta no canto da sala. Várias folhas de partituras adornavam o suporte, escritas numa caligrafia elegante e clara. Cinqüenta mil libras, na ocasião em que Sua Alteza colocar o pé na Escócia. Assinado S. “S”, é claro, de Sandringham. O duque riu, aparentemente encantado.

— Isso foi muito inteligente de sua parte, minha cara. Deve ter sido você; eu tinha ouvido falar da infeliz incapacidade de seu marido com música.

— Na verdade, não foi — retruquei, afastando-me do piano. A mesa ao meu lado não ostentava nada útil como abridores de cartas ou objetos rombudos, mas apressadamente apoderei-me de um vaso e enterrei o rosto no aglomerado de flores de estufa que ele continha. Fechei os olhos, sentindo o roçar das pétalas frias contra minhas faces repentinamente quentes. Não ousava levantar os olhos, por medo de que meu rosto revelador me entregasse.

Porque, atrás do ombro do duque, eu vira um objeto redondo, curtido como couro, no formato de uma abóbora, emoldurado pelas cortinas de veludo verde como um dos exóticos objetos de arte do duque. Abri os olhos, espreitando cautelosamente por entre as pétalas, e a boca larga, de dentes quebrados, abriu-se num riso como uma lanterna de abóbora do Dia das Bruxas.

Eu estava dividida entre o terror e o alívio. Eu estava certa, então, sobre o mendigo perto do portão. Era Hugh Munro, um velho companheiro de Jamie dos dias em que viveu como um fora-da-lei nas Highlands. Um ex-diretor de escola, ele fora capturado pelos turcos no mar, desfigurado por torturas e levado à mendicância e à perambulação -profissões que ele incrementava com uma bem-sucedida espionagem. Eu ouvira dizer que ele era um agente do exército das Highlands, mas eu não percebera que suas atividades o haviam trazido tão longe ao sul.

Há quanto tempo ele estaria ali, empoleirado como um pássaro na hera do lado de fora da janela do segundo andar? Não ousei tentar me comunicar com ele; tudo que pude fazer foi fixar os olhos em um ponto logo acima do ombro do duque, fitando o espaço com aparente indiferença.

O duque olhava-me com interesse.

— É mesmo? Não Gerstmann, sem dúvida. Eu não imaginaria que ele tivesse uma mente suficientemente tortuosa.

— E acha que eu tenho? Estou lisonjeada. — Mantive o nariz nas flores, falando distraidamente para o centro de uma peônia.

A figura do lado de fora soltou a trepadeira o suficiente para erguer uma das mãos. Privado de sua língua pelos seus captores sarracenos, as mãos de Hugh falavam por ele. Fitando-me com intensidade, ele apontou deliberadamente, primeiro para mim, depois para ele próprio, em seguida para um dos lados lá fora. A mão larga inclinou-se e os dois primeiros dedos transformaram-se num par de pernas em movimento, fugindo para leste. Um último piscar de olhos, o punho cerrado numa saudação e ele havia desaparecido.

Relaxei, tremendo ligeiramente em reação, e respirei fundo, recuperando o fôlego. Espirrei e devolvi as flores ao seu lugar.

— Então, você é um jacobita? — perguntei.

— Não necessariamente — o duque respondeu animado. — A pergunta é, minha cara: você é? — Completamente à vontade, tirou a peruca e coçou a cabeça loura e meio calva, antes de colocá-la de novo.

— Você tentou frustrar o esforço de restituir o rei Jaime ao poder quando estava em Paris. Tendo fracassado, você e seu marido parecem agora ser os mais leais partidários de Sua Alteza. Por quê? — Os pequenos olhos azuis não demonstravam mais do que um ligeiro interesse, mas não foi um ligeiro interesse que fez com que tentasse mandar me matar.

Desde que descobrira quem era meu anfitrião, eu tentava com todas as forças lembrar-me do que Frank e o reverendo Wakefield haviam dito sobre ele. Seria realmente um jacobita? Até onde eu conseguia me lembrar, o veredicto da história — nas pessoas de Frank e do reverendo — era incon-cludente. O meu também.

— Acho que não vou lhe contar — eu disse devagar.

Com uma sobrancelha loura arqueada bem alta, o duque pegou uma pequena caixa esmaltada do bolso e retirou uma pitada do conteúdo.

— Tem certeza de que essa é uma decisão sábia, minha cara? Danton ainda está ao alcance da voz, sabe.

— Danton não me tocaria nem com uma vara de três metros — eu disse asperamente. — Aliás, nem você. Não — acrescentei apressadamente, vendo sua boca se abrir — pela mesma razão. Mas se você quer tanto saber de que lado estou, não vai me matar antes de descobrir, não é?

O duque engasgou-se com sua pitada de rapé e tossiu estrondosamente, batendo no próprio peito de seu colete bordado. Levantei-me e fitei-o friamente de cima para baixo enquanto ele espirrava e lançava perdigotos.

— Está tentando me assustar para me fazer falar e contar-lhe o que sei mas não vai funcionar — eu disse, com muito mais confiança do que realmente sentia.

Sandringham enxugou delicadamente os olhos lacrimejantes com um lenço. Por fim, inspirou fundo e expirou por entre os lábios carnudos franzidos, enquanto olhava-me furioso.

— Muito bem, então — ele disse, com muita calma. — Imagino que meus criados a essa altura já terminaram de preparar os seus aposentos. Vou mandar vir uma criada para levá-la ao seu quarto.

Devo ter olhado para ele com um ar pasmo e estúpido, porque ele sorriu desdenhosamente enquanto levantava-se com esforço.

— De certa forma, sabe, não importa — ele disse. — O que quer que seja ou qualquer informação que possa ter, você possui um atributo de valor incalculável como hóspede da casa.

— E qual é? — perguntei. Ele parou, a mão na sineta, e sorriu.

— Você é a mulher de Jamie, o Ruivo — ele disse serenamente. — E ele gosta de você de verdade, minha cara, não é?

No que dizia respeito a prisões, eu já vira piores. O quarto media uns nove metros de lado e era mobiliado com uma suntuosidade ultrapassada somente pela sala de visitas no térreo. A cama de dossel assentava-se em uma pequena plataforma, com penas de avestruz brotando dos cantos do baldaquim e pesadas cortinas de tecido adamascado. Um par de cadeiras forradas com o mesmo brocado das cortinas plantava-se confortavelmente diante de uma enorme lareira.

A criada que me acompanhara colocou a bacia e o jarro de água que carregava sobre a mesa e apressou-se a acender o fogo da lareira, já preparado. O criado de libré colocou sua enorme bandeja coberta sobre a mesa junto à porta, depois ficou parado impassivelmente na entrada, frustrando quaisquer pensamentos que eu pudesse ter de tentar uma pequena corrida pelo corredor. Não que me adiantasse tentar, pensei com melancolia; ficaria irremediavelmente perdida na casa depois da primeira volta no corredor; o malditolugar era tão grande quanto o palácio de Buckingham.

— Tenho certeza de que Sua Excelência espera que fique confortável, madame — disse a criada, com uma mesura gentil antes de sair.

— Ah, aposto que sim — eu disse, de forma nada gentil.

A porta fechou-se atrás dela com um baque surdo e sólido, bastante desencorajador. E o som rangente da enorme chave girando pareceu raspar o último resquício de isolante que cobria meus nervos esfolados.

Tremendo no frio do vasto aposento, agarrei os cotovelos e aproximei-me do fogo, onde me deixei cair em uma das cadeiras. Meu impulso era o de aproveitar a privacidade para ter um pequeno ataque histérico. Por outro lado, receava que se eu desse qualquer vazão às minhas emoções contidas a rédeas curtas, jamais conseguiria refreá-las outra vez. Fechei os olhos com força e observei o tremular vermelho da luz do fogo na parte posterior das minhas pálpebras, esforçando-me para me acalmar.

Afinal, eu não corria nenhum perigo no momento, e Hugh Munro estava indo ao encontro de Jamie. Ainda que Jamie tivesse perdido minha pista no decurso da viagem de uma semana, Hugh o encontraria e o conduziria até aqui. Hugh conhecia cada camponês e cada funileiro, cada fazenda e cada mansão em quatro paróquias. Uma mensagem do homem mudo viajaria pela rede de notícias e boatos com a rapidez com que as nuvens levadas pelo vento passavam pelas montanhas. Quer dizer, se ele tivesse conseguido sair em segurança de seu elevado poleiro na hera e deixado as terras do duque sem ser capturado.

— Não seja ridícula — eu disse em voz alta -, o sujeito é um invasor profissional. É claro que conseguiu. — O eco de minhas palavras contra o teto de gesso ornamentado era de certa forma reconfortante.

— E se assim é — continuei com firmeza, ainda falando para ouvir a mim mesma -, então Jamie virá.

Certo, pensei repentinamente. E os homens de Sandringham estarão à sua espera quando ele chegar. Você é a mulher de Jamie, o Ruivo, o duque dissera. Meu único atributo de valor. Eu era a isca.

— Sou um ovo de salmão! — exclamei, sentando-me empertigada na cadeira. A absoluta indignidade da imagem provocou uma pequena, mas bem-vinda explosão de cólera que fez o medo recuar um pouco. Tentei atiçar as chamas da raiva levantando-me e andando a passos largos de um lado para o outro, pensando em novos nomes para xingar o duque na próxima vez em que nos encontrássemos. Em minhas composições, eu chegara até “pederasta traiçoeiro”, quando um grito abafado vindo do lado de fora distraiu minha atenção.

Afastando as pesadas cortinas de veludo da janela, vi que o duque cumprira sua palavra. Sólidas barras de madeira cruzavam-se no caixilho da janela, numa treliça tão fechada que eu mal conseguia enfiar o braço entre elas. Entretanto, eu podia ver.

Anoitecera e as sombras sob as árvores do parque eram negras como tinta. A gritaria vinha de lá, acompanhada por gritos de resposta provenientes dos estábulos, onde duas ou três figuras surgiram repentinamente, portando tochas acesas.

As figuras escuras e pequenas correram em direção ao bosque, as chamas de suas tochas de pinho ondeando para trás, sua luz laranja flamejan-do ao vento úmido e frio. Quando alcançaram a borda do bosque, um amontoado de vultos humanos quase indistinto tornou-se visível, caindo na grama em frente à casa. O terreno estava molhado e a força da luta deixava cortes negros e profundos no gramado castigado pelo inverno.

Fiquei na ponta dos pés, agarrando-me às barras e pressionando a cabeça contra a madeira, num esforço para ver melhor. A luz do dia esvaíra-se completamente e, à luz das tochas, eu não conseguia distinguir mais do que um ou outro braço ou perna arremessando-se do tumulto lá embaixo.

Não pode ser Jamie, disse a mim mesma, tentando engolir o bolo em minha garganta que era meu coração. Não assim tão cedo, não agora. E não sozinho, certamente ele não teria vindo sozinho? Porque eu já podia ver que a luta concentrava-se em um único homem, agora de joelhos, não mais do que uma figura escura arqueada sob os punhos e paus dos guardas de caça e dos cavalariços do duque.

Em seguida, a figura agachada estatelou-se no chão e a gritaria cessou, embora mais alguns golpes tenham sido desfechados por precaução antes do pequeno bando de criados do duque recuar. Algumas palavras de conversa foram trocadas, inaudíveis do meu ponto de observação, e dois homens abaixaram-se e seguraram a figura por baixo dos braços. Quando passaram embaixo de minha janela do terceiro andar a caminho dos fundos da casa, a luz das tochas iluminou um par de pés calçados de sandálias sendo arrastado pelo chão e os farrapos de um casaco encardido. Não era Jamíe.

Um dos rapazes do estábulo corria ao lado, triunfalmente carregando uma grossa bolsa de couro em uma correia. Eu estava muito acima para ouvir o tilintar dos minúsculos ornamentos de metal pendurados na correia, mas eles brilhavam na luz das tochas e todas as forças abandonaram meus braços numa precipitação de horror e desespero.

Eram moedas e botões, os pequenos objetos metálicos. E gaberlunzíes. Os minúsculos selos de chumbo que davam a um mendigo licença de pedir esmolas por uma determinada paróquia. Hugh Munro possuía quatro desses, uma concessão especial por seus sofrimentos nas mãos dos turcos. Não era Jamie, mas Hugh.

Eu tremia tanto que minhas pernas mal me obedeciam, mas corri para a porta e soquei-a com todas as minhas forças.

— Deixem-me sair! — gritei. — Tenho que ver o duque! Deixem-me sair!

Não houve nenhuma resposta aos meus incessantes gritos e socos na porta, e eu voltei correndo para a janela. A cena lá embaixo era eminentemente pacífica agora; um rapaz segurava uma tocha para um dos jardineiros, que estava ajoelhado na beirada do gramado cuidadosamente substituindo os tufos de grama que haviam sido arrancados durante a luta-

— Ei! — berrei. Cobertos como estavam por barras, eu não podia girar a manivela e abrir os postigos para fora. Atravessei o quarto correndo e peguei um dos pesados castiçais de prata, corri de volta e estilhacei uma das vidraças da janela, indiferente aos estilhaços que voaram em todas as direções.

— Socorro! Ei, vocês aí embaixo! Digam ao duque que preciso vê-lo! Agora! Socorro!

Achei que uma das figuras virou a cabeça na minha direção, mas nenhum dos dois fez qualquer movimento em direção à casa, continuando com seu trabalho como se tivesse sido apenas o grito de um pássaro perturbando a escuridão que os cercava.

Corri de volta para a porta, batendo e gritando, e de novo para a janela e de volta para a porta outra vez. Gritei, implorei e ameacei até que minha garganta ficou rouca e dolorida, e soquei a porta inflexível até meus punhos ficarem machucados e roxos, mas ninguém apareceu. Pelo que eu podia ouvir, era como se estivesse sozinha na casa. O silêncio no corredor era tão profundo como o da noite lá fora; como o de uma sepultura. Todo o controle que eu mantinha sobre meu medo desapareceu e eu caí finalmente de joelhos diante da porta, soluçando incontrolavelmente.

Acordei, com frio e os músculos enrijecidos, com uma dor de cabeça latejante, sentindo algo grande e sólido empurrando-me pelo chão. Despertei completamente com um sobressalto quando a beirada da pesada porta que se abria beliscou minha coxa contra o assoalho.

— Ai! — rolei sobre mim mesma desajeitadamente, depois me ergui de maneira atabalhoada sobre as mãos e os joelhos, os cabelos caídos sobre o rosto.

— Claire! Ah, fique quieta, p-por favor! Querida, você está machucada? — Com um farfalhar de tecido engomado, Mary ajoelhou-se ao meu lado. Atrás dela, a porta fechou-se e eu ouvi o clique da fechadura.

— Sim... quero dizer, não. Estou bem — eu disse, aturdida. — Mas Hugh... — Cerrei os lábios com força e sacudi a cabeça, tentando clareá-la. — O que você está fazendo aqui, Mary?

— Subornei a governanta para ela me deixar entrar — sussurrou. — Tem que falar tão alto assim?

— Não faz muita diferença — eu disse, num tom normal de voz. – Esta porta é tão grossa, só um jogo de futebol poderia ser ouvido através dela.

— Um o quê?

— Deixe pra lá. — Minha mente começava a clarear, embora meus olhos estivessem inchados e pegajosos e minha cabeça ainda latejasse como um tambor. Levantei-me com dificuldade e arrastei-me até a bacia, onde lavei o rosto com água fria.

— Subornou a governanta? — eu disse, enxugando o rosto com uma toalha. — Mas ainda estamos trancadas aqui dentro, não estamos? Eu ouvi a chave girar na fechadura.

Mary estava pálida na obscuridade do aposento. A vela derretera completamente enquanto eu dormia e não havia nenhuma luz, exceto o intenso clarão vermelho das brasas na lareira. Ela mordeu o lábio.

— Foi o m-melhor que pude fazer. A sra. Gibson estava com muito medo do duque para me dar a chave. Tudo que ela concordou em fazer foi me trancar aqui com você e me deixar sair de manhã. Achei que você precisasse de c-companhia — acrescentou timidamente.

— Ah — eu disse. — Bem... obrigada. Foi muita bondade sua. — Peguei uma nova vela na gaveta e dirigi-me à lareira para acendê-la. O castiçal estava coberto de cera da vela derretida; inclinei o castiçal e entornei uma pequena poça de cera derretida sobre a mesa e fixei uma nova vela sobre ela, indiferente aos danos causados à superfície marchetada do móvel do duque.

— Claire — Mary disse. — Você está... está em dificuldades?

Mordi o lábio para estancar uma resposta impensada. Afinal, era uma menina de apenas dezessete anos e sua ignorância de política era provavelmente ainda mais profunda do que fora sua falta de conhecimento sobre homens.

— Hã, sim — eu disse. — Em grandes dificuldades, receio. — Meu cérebro começava a trabalhar outra vez. Ainda que Mary não tivesse condições de ser uma grande ajuda para uma fuga, ela podia ao menos ser capaz de me fornecer informações sobre seu padrinho e sobre as rotinas da casa.

— Você ouviu a algazarra lá fora perto do bosque algumas horas atrás? -perguntei. Ela sacudiu a cabeça. Ela começava a tremer; num aposento tão grande, o calor do fogo morria muito antes de chegar à plataforma da cama.

— Não, mas ouvi uma das cozinheiras dizendo que os guardas haviam capturado um mendigo no parque. Está terrivelmente frio. Não podemos entrar debaixo das c-cobertas?

Ela já engatinhava por cima da colcha, enfiando a mão sob o travesseiro para pegar a beirada do lençol. Seu traseiro era redondo e bonito, infantil sob a camisola branca.

— Não era um mendigo — eu disse. — Ou melhor, era um mendigo, mas era também um amigo. Ele estava indo ao encontro de Jamie, para dizer-lhe que eu estava aqui. Sabe o que aconteceu depois que os guardas o levaram?

Mary virou-se bruscamente para mim, o rosto uma mancha pálida sob as sombras das cortinas da cama. Mesmo nessa luz fraca, pude ver que os olhos escuros arregalaram-se.

— Ah, Claire! Sinto muito!

— Bem, eu também — eu disse, com impaciência. — Mas sabe onde está o mendigo? — Se Hugh tivesse sido preso em algum lugar acessível, como os estábulos, havia uma pequena chance de que Mary pudesse facilitar sua fuga de algum modo pela manhã.

O tremor de seus lábios, fazendo sua gagueira normal parecer compreensível em comparação, devia ter me alertado. Mas as palavras, uma vez que ela as pronunciou, trespassaram o meu coração, afiadas e repentinas como uma adaga arremessada.

— E-eles o en-en-forcaram — ela disse. — No p-portão do p-parque.

Passou-se algum tempo até eu conseguir prestar atenção à minha volta. A onda de choque, dor, medo e esperanças destroçadas inundou-me, dominando-me completamente. Tive a vaga consciência da pequena mão de Mary batendo de leve em meu ombro e de sua voz oferecendo lenços e goles d'água, mas continuei encolhida numa bola, sem falar, tremendo e esperando o relaxamento do desespero avassalador que crispava meu estômago como um punho cerrado. Por fim, exauri o pânico, se não a mim mesma, e abri os olhos debilmente.

— Vou ficar bem — acabei dizendo, sentando-me na cama e assoando o nariz de forma nada elegante na manga. Peguei a toalha que me era oferecida e enxuguei os olhos com ela. Mary pairava ao meu redor, com ar preocupado, e eu tomei sua mão e apertei-a para tranqüilizá-la.

— De verdade — eu disse. — Estou bem agora. E estou muito feliz por você estar aqui. — Uma idéia ocorreu-me e eu larguei a toalha, olhando-a com curiosidade. — Por falar nisso, por que você está aqui? — perguntei. -Nesta casa, quero dizer.

Ela abaixou a cabeça, enrubescendo, e começou a torcer a ponta da coberta.

— O d-duque é meu padrinho, sabe.

— Sim, foi o que ouvi dizer — retruquei. — Mas duvido que ele simplesmente quisesse o prazer de sua companhia.

Ela sorriu um pouco diante da observação.

— N-não. Mas ele, o duque, quero dizer, ele acha que encontrou outro m-m-marido para mim. — O esforço para pronunciar “marido” deixou-a com o rosto vermelho. — Papai me trouxe aqui para conhecê-lo.

Compreendi pelo seu comportamento que aquela não era uma notícia que requeresse congratulações imediatas.

— Você conhece o sujeito?

Verificou-se que o conhecia apenas de nome. Um sr. Isaacson, um importador, de Londres. Ocupado demais para viajar até Edimburgo para conhecer sua prometida, ele concordara em vir a Bellhurst, onde o casamento seria realizado, todas as partes estando de acordo.

Peguei a escova de cabelos de cabo de prata da mesinha-de-cabeceira e distraidamente comecei a me pentear. Assim, tendo fracassado em assegurar uma aliança com a nobreza francesa, o duque pretendia vender sua afilhada a um judeu rico.

— Tenho um novo dote — Mary disse, tentando sorrir. — Quarenta e três anáguas bordadas, duas com fio de o-ouro. — Parou abruptamente, os lábios cerrados com força, fitando sem ver a mão esquerda vazia. Coloquei minha própria mão sobre a sua.

— Bem. — Tentei encorajá-la. — Talvez ele seja um bom homem.

— É isso que eu t-temo. — Evitando meu olhar inquiridor, ela abaixou os olhos, contorcendo as mãos no colo.

— Não contaram ao sr. Isaacson... sobre Paris. E também disseram que eu não devo contar. — Seu rosto anuviou-se de tristeza. — Trouxeram uma velha horrível para me dizer como eu deveria agir na m-m-minha noite de núpcias, par... para fingir que é a primeira vez, mas eu... ah, Claire, como posso fazer isso? — gemeu. — E Alex... eu não contei a ele; não pude! Fui tão covarde, n-nem sequer me despedi!

Atirou-se em meus braços e eu bati de leve em suas costas, perdendo um pouco da minha própria dor no esforço para reconfortá-la. Finalmente, ela acalmou-se, mas estava com soluços e aprumou-se para tomar um pouco de água.

— Você vai levar isso até o fim? — perguntei. Ela ergueu os olhos para mim, as pestanas úmidas e espetadas.

— Não tenho escolha — ela disse simplesmente.

— Mas... — comecei, e parei em seguida, impotente.

Mary tinha toda a razão. Jovem e mulher, sem nenhum recurso próprio e nenhum homem que pudesse resgatá-la, simplesmente não havia nada a fazer senão acatar os desejos de seu pai e de seu padrinho e casar-se com o desconhecido sr. Isaacson de Londres.

Acabrunhadas, nenhuma de nós duas tinha apetite para a comida na bandeja. Enfiamo-nos sob as cobertas para nos aquecermos e Mary, exausta de emoção, estava dormindo profundo em poucos minutos. Não menos exausta, vi-me incapaz de adormecer, sofrendo de pesar por Hugh, preocupada comJamie e curiosa a respeito do duque.

As cobertas estavam frias e meus pés pareciam blocos de gelo. Evitando os pensamentos mais perturbadores em minha mente, voltei-me para Sandringham. Qual era o lugar dele em todo esse caso?

Segundo todos os indícios, o sujeito era um jacobita. Ele se dispôs, segundo suas próprias palavras, a cometer assassinato — ou ao menos, encomendá-lo -, a fim de assegurar que Carlos conseguisse o suporte de que precisava para lançar sua campanha na Escócia. E a prova do código musical apenas confirmava que fora o duque quem finalmente induzira Carlos a viajar para a Escócia em agosto, com sua promessa de ajuda.

Sem dúvida, havia muitos homens que se esforçavam arduamente para ocultar suas simpatias jacobitas; considerando-se as penalidades por traição, não era de admirar. E o duque tinha muito mais a perder do que outras pessoas, caso apoiasse uma causa malograda.

Ainda assim, Sandringham não me parecia um partidário entusiasmado da monarquia Stuart. Considerando-se suas observações a respeito de Danton, obviamente ele não simpatizaria com um governante católico. E por que esperar tanto para dar apoio, quando Carlos precisava tão desesperadamente de dinheiro agora — na verdade, desde sua chegada à Escócia?

Eu só conseguia imaginar duas razões plausíveis para o comportamento do duque, nenhuma delas, particularmente honrosas para o cavalheiro, mas ambas bem dentro dos limites de seu caráter.

Ele podia de fato ser um jacobita, disposto a patrocinar um intragável rei católico em compensação pelos benefícios futuros que ele pudesse antever como principal patrocinador da monarquia Stuart. Eu podia entender isso; o termo “princípios” não constava do vocabulário do duque, ao passo que “interesses próprios” obviamente era uma expressão que ele conhecia bem. Ele poderia querer esperar até que Carlos chegasse a Inglaterra, a fim de que o dinheiro não fosse desperdiçado antes do ataque crucial, definitivo, do exército das Highlands a Londres. Qualquer um que conhecesse Carlos Stuart podia compreender o bom senso em não confiar-lhe dinheiro demais de uma só vez.

Ou ele pode ter desejado se assegurar de que os Stuart de fato possuíam algum suporte substancial à sua causa antes de se envolver financeiramente; afinal, contribuir para uma rebelião não é a mesma coisa que financiar um exército inteiro sozinho.

Por outro lado, eu podia ver uma razão muito mais sinistra para as condições da oferta do duque. Condicionar seu apoio ao exército jacobita à chegada ao solo inglês assegurava que Carlos iria continuar lutando contra a crescente oposição de seus próprios líderes, arrastando seu exército relutante, desordenado, cada vez mais para o sul, longe das montanhas onde poderiam encontrar refúgio.

Se o duque podia esperar benefícios dos Stuart pela ajuda em restaurá-los, o que poderia esperar dos Hanover, em troca de atrair Carlos Stuart até colocá-lo ao alcance deles — e trair Carlos e seus seguidores entregando-os nas mãos do exército inglês?

A história não conseguiu dizer quais eram as verdadeiras inclinações do duque. Isso me pareceu estranho; sem dúvida, ele teria que revelar suas verdadeiras intenções mais cedo ou mais tarde. Claro, ponderei, a Velha Raposa, lorde Lovat, conseguira enganar os dois lados na última revolução jacobita, insinuando-se ao mesmo tempo junto aos Hanover e continuando nas boas graças dos Stuart. O próprio Jamie fizera isso durante um período. Talvez não fosse tão difícil assim para alguém esconder sua lealdade, no lamaçal movediço da política real.

O frio subia pelos meus pés e eu agitava as pernas sem parar, a pele parecendo dormente conforme eu esfregava as panturrilhas uma na outra. As pernas obviamente geravam muito menos fricção do que galhos secos; nenhum calor perceptível resultava dessa atividade.

Deitada insone, irrequieta, úmida e pegajosa, repentinamente tomei consciência de um barulhinho estalado e rítmico a meu lado. Virei a cabeça, ouvindo, depois me ergui sobre o cotovelo e espreitei, incrédula, a minha companheira. Ela estava curvada de lado, a pele delicada corada do sono, de modo que parecia uma flor completamente desabrochada na estufa, o polegar enfiado nos recessos róseos e macios de sua boca. Seu lábio inferior movia-se enquanto eu a observava, em delicados movimentos de sucção.

Eu não sabia se ria ou chorava. Por fim, não fiz nem uma coisa nem outra; apenas puxei o polegar delicadamente de sua boca e coloquei a mão lânguida curvada sobre seu peito. Apaguei a vela com um sopro e aconcheguei-me junto a Mary.

Quer tenha sido a inocência daquele pequeno gesto, com a distante lembrança de confiança e segurança que evocava, o simples conforto de um corpo quente próximo ou apenas a exaustão da dor e do medo, meus pés descongelaram, finalmente relaxei e adormeci.

Enrolada num quente casulo de acolchoados, dormi profundamente e sem sonhos. Foi um choque maior ainda, então, quando fui abruptamente arrancada da escuridão tranqüila e silenciosa do esquecimento. Ainda estava escuro — na realidade, escuro como breu, já que o fogo havia se apagado -, mas o ambiente não estava nem tranqüilo nem silencioso. Algo pesado aterrissara de repente sobre a cama, batendo em meu braço, e parecia estar tentando assassinar Mary.

A cama se elevou e o colchão inclinou-se bruscamente sob mim, a estrutura da cama estremecendo com a força da luta que ocorria a meu lado. Grunhidos agonizantes e ameaças sussurradas vinham bem de perto e um braço arremessado — de Mary, eu acho — atingiu-me o olho.

Rolei apressadamente para fora da cama, tropeçando no degrau da plataforma e estatelando-me no chão. Os sons da luta acima de mim intensificaram-se, com um horrível guincho agudo que entendi como sendo o melhor esforço de Mary de gritar enquanto era estrangulada.

Houve uma repentina exclamação de surpresa, numa profunda voz masculina, em seguida mais uma convulsão de cobertas e a gritaria parou bruscamente. Movendo-me rápido, encontrei uma caixa de sílex sobre a mesa e acendi a vela. Sua chama bruxuleante fortaleceu-se e ergueu-se, revelando o que eu suspeitara pelo som daquele vigoroso palavrão em gaélico — Mary, invisível a não ser por um par de mãos debatendo-se desesperadamente, o rosto sufocado sob um travesseiro e o corpo achatado pela forma prostrada de meu enorme e agitado marido. Apesar da vantagem de seu tamanho, o invasor parecia estar tendo um grande trabalho para dominar Mary.

Absorto em subjugar Mary, ele não erguera os olhos para a vela que eu acabara de acender, mas continuou tentando capturar suas mãos, enquanto ao mesmo tempo segurava o travesseiro sobre seu rosto. Reprimindo a necessidade de rir histericamente diante do espetáculo, em vez disso eu coloquei a vela sobre a mesa, inclinei-me sobre a cama e bati de leve em seu ombro.

— Jamie? — eu disse.

— Santo Deus! — Ele saltou como um salmão, pulando da cama e aterrissando agachado no chão, a adaga já parcialmente desembainhada. Viu-me, então, e relaxou, aliviado, fechando os olhos por um instante.

— Meu Deus, Sassenach! Nunca mais faça isso, ouviu? Fique quieta -disse sucintamente para Mary, que escapara do travesseiro e agora estava sentada completamente ereta na cama, os olhos esbugalhados e tossindo. -Não pretendia machucá-la; pensei que fosse minha mulher. — Contornou a cama a passos largos e decididos e beijou-me com força, como se quisesse se certificar que agora tinha encontrado a mulher certa. Encontrara, e eu retribuí o beijo com considerável fervor, deliciando-me na aspereza da barba por fazer e no seu cheiro quente e penetrante; lã e linho úmidos, com uma forte insinuação de suor masculino.

— Vista-se — ele disse, soltando-me. — A maldita casa está fervilhando de criados. É como um formigueiro lá embaixo.

— Como entrou aqui? — perguntei, olhando à volta à procura do meu vestido.

— Pela porta, é claro — ele disse impacientemente. — Tome. — Pegou meu vestido das costas de uma cadeira e atirou-o para mim. De fato, a porta maciça estava escancarada, um grande molhe de chaves pendurado na fechadura.

— Mas como... — comecei a perguntar.

— Mais tarde — ele disse bruscamente. Avistou Mary, fora da cama e lutando para entrar em seu robe. — É melhor voltar para a cama, menina -ele avisou. — O chão está frio.

— Vou com vocês. — As palavras foram abafadas pelas dobras de tecido, mas sua determinação era evidente quando sua cabeça despontou pela gola do robe e emergiu, descabelada e desafiadora.

— De jeito nenhum — Jamie disse. Fitou-a furioso e notei as marcas recentes, vermelhas, de unhas em seu rosto. Vendo o tremor em seus lábios, entretanto, ele dominou seu temperamento com esforço e falou de forma tranqüilizadora. — Não se preocupe, menina. Você não terá nenhum problema com isso. Trancarei a porta atrás de nós e de manhã você poderá contar a todo mundo o que aconteceu. Ninguém vai culpá-la.

Ignorando as palavras de Jamie, Mary enfiou os pés apressadamente nos chinelos e correu para a porta.

— Ei! Aonde você pensa que vai? — Surpreso, Jamie girou nos calcanhares e foi atrás dela, mas não suficientemente rápido para impedi-la de alcançar a porta. Parou no corredor logo depois da porta, parecendo uma corça.

— Eu vou com vocês! — disse ferozmente. — Se não me levar, sairei correndo pelo corredor, gritando a plenos pulmões. E então?

Jamie fitou-a, os cabelos refletindo um brilho de cobre à luz da vela e o sangue subindo às suas faces, obviamente dividido entre a necessidade de silêncio e a vontade de matá-la com as próprias mãos e para o inferno com o barulho. Mary encarou-o de volta, uma das mãos segurando as saias, pronta para correr. Agora vestida e calçada, cutuquei-o nas costelas, quebrando sua concentração.

— Leve-a — eu disse sucintamente. — Vamos.

Lançou-me um olhar muito semelhante ao que lançara a Mary, mas não hesitou mais do que um instante. Com um curto aceno da cabeça, pegou meu braço e nós três saímos para a escuridão fria do corredor.

A casa estava ao mesmo tempo mortalmente parada e cheia de barulhos; tábuas rangiam alto sob nossos pés e nossas roupas farfalhavam como folhas numa ventania. As paredes pareciam respirar com o assentamento de madeiras e pequenos sons, quase inaudíveis, além do corredor, sugeriam as escavações secretas de animais subterrâneos. E acima de todos os sons estava o silêncio profundo e assustador de uma casa grande e escura, mergulhada em um sono que não devia ser interrompido.

A mão de Mary agarrava-se com força ao meu braço, conforme deslizávamos pelo corredor atrás de Jamie. Ele movia-se como uma sombra, colado à parede, mas rápido, apesar de seu silêncio.

Ao passarmos por uma porta, ouvi o ruído de passos leves do outro lado. Jamie também os ouviu e achatou-se contra a parede, fazendo sinal para que Mary e eu seguíssemos à sua frente. Senti a argamassa da parede fria contra as palmas de minhas mãos, quando tentei comprimir-me contra ela.

A porta abriu-se cautelosamente e uma cabeça numa touca branca alta e inflada projetou-se para fora, espreitando pelo corredor na direção oposta à nossa.

— Olá? — disse a voz num sussurro. — É você, Albert? — Um fio de suor gelado desceu pela minha espinha. Uma criada, aparentemente esperando a visita do camareiro do duque, que parecia estar mantendo a reputação dos franceses.

Não achei que ela fosse considerar um escocês das Highlands armado um substituto adequado a seu amante ausente. Podia sentir Jamie tenso a meu lado, tentando superar seus escrúpulos contra golpear uma mulher. Mais um instante e ela iria virar-se, avistá-lo e trazer a casa abaixo com seus gritos.

Dei um passo para fora da parede.

— Hã, não — eu disse em tom de desculpas -, receio que seja apenas eu. A criada começou a agitar-se de forma convulsiva e eu dei um passo rápido passando por ela, de modo que ela ficasse de frente para mim, com Jamie ainda atrás dela.

— Desculpe-me por tê-la assustado — eu disse, sorrindo alegremente. — Não conseguia dormir, sabe. Pensei em tentar um pouco de leite quente. Diga-me, estou na direção certa para a cozinha?

— Hein? — A criada, uma senhorita gorda de vinte e poucos anos, abriu a boca de maneira muito inconveniente, expondo a prova de uma perturbadora falta de preocupação com a higiene dos dentes. Felizmente, não era a mesma criada que me acompanhara ao quarto; ela não devia saber que eu era uma prisioneira e não uma hóspede.

— Sou hóspede na casa — eu disse, tentando ser mais convincente. Continuando com o princípio de que a melhor defesa é um bom ataque, fitei-a com um olhar acusador.

— Albert, hein? Sua Excelência sabe que você tem o hábito de distrair homens em seu quarto à noite? — perguntei. Isso pareceu tocar um ponto sensível, porque a mulher empalideceu e caiu de joelhos, agarrando-se à à minha saia. A perspectiva de ser descoberta era tão assustadora que ela não parou para perguntar exatamente por que uma hóspede deveria estar vagando pelos corredores de madrugada, usando não vestidos e sapatos, mas um manto de viagem também.

— Ah, senhora! Por favor, não diga nada a Sua Excelência, está bem? Posso ver que tem um rosto bondoso, madame, certamente não vai querer que eu seja despedida, não é? Tenha pena de mim, milady, tenho seis irmãos e irmãs ainda em casa e eu...

— Vamos, vamos — eu disse, tentando acalmá-la, batendo de leve em seu ombro. — Não se preocupe com isso. Não vou contar ao duque. Volte para sua cama e... — Falando no tom de voz que se usa com crianças e doentes mentais, fui conduzindo-a, ainda falando sem parar, protestando sua inocência, de volta ao seu pequeno quarto.

Fechei a porta e reclinei-me sobre ela em busca de apoio. O rosto de Jamie assomou das sombras diante de mim, rindo. Ele não disse nada, mas bateu de leve na minha cabeça felicitando-me, antes de tomar meu braço e me puxar pelo corredor outra vez.

Mary nos aguardava sob a janela do patamar, seu robe branco resplandecente ao luar que brilhou momentaneamente através das nuvens ligeiras que passavam lá fora. Ao que parecia, uma tempestade estava se formando e eu me perguntei se isso iria ajudar ou atrapalhar nossa fuga.

Mary agarrou o xale de Jamie quando ele pisou no patamar.

— Shh! — ela sussurrou. — Alguém está vindo!

De fato, vinha alguém; pude ouvir ruídos abafados de passos vindos de baixo e a claridade fraca de uma vela acesa no vão da escada. Mary e eu olhamos desesperadas à nossa volta, mas não havia absolutamente nenhum lugar onde pudéssemos nos esconder. Essa era uma escada de fundos, destinada ao uso dos criados, e os patamares eram simples quadrados de piso, inteiramente desprovidos de móveis ou convenientes tapeçarias penduradas nas paredes.

Jamie suspirou de resignação. Então, fazendo sinal para que eu e Mary voltássemos para o corredor de onde viéramos, ele sacou sua adaga e esperou, parado no canto escuro do patamar.

Os dedos de Mary agarravam-se e entrelaçavam-se aos meus, apertando com força numa agonia de apreensão. Jamie tinha uma pistola pendurada do cinto, mas obviamente não podia usá-la dentro da casa — e um criado iria perceber isso, tornando-a inútil como ameaça. Teria que ser a adaga e meu estômago tremeu de pena do azarado criado que estava prestes a ficar frente a frente com noventa e seis quilos de um musculoso escocês e a ameaça de sua lâmina.

Eu estava fazendo um inventário da minha indumentária e pensando que eu podia dispensar uma das minhas anáguas para ser usada para amarrar, quando a cabeça abaixada do portador da vela tornou-se visível. Os cabelos escuros eram divididos ao meio e emplastrados com uma pomada de cheiro adocicado e enjoativo que imediatamente trouxe de volta a lembrança de uma rua escura de Paris e a curva de lábios finos e cruéis sob uma máscara.

A arfada que soltei ao reconhecê-lo fez Danton erguer os olhos abruptamente, um degrau abaixo do patamar. No instante seguinte, ele foi agarrado pelo pescoço e atirado contra a parede do patamar com uma força que lançou o castiçal pelos ares.

Mary também o vira.

— É ele! — ela exclamou, esquecendo-se, com o choque, tanto de sussurrar quanto de gaguejar. — O homem de Paris!

Jamie manteve o camareiro, que se debatia debilmente, esmagado contra a parede, preso por um braço musculoso pressionado contra seu peito. O rosto do francês, surgindo e desaparecendo com a luz que se esvaía ou inundava o patamar, de acordo com as nuvens céleres, estava pálido como o de um fantasma. Ficou ainda mais pálido no instante seguinte, quando Jamie encostou a ponta da lâmina na sua garganta.

Entrei no patamar, sem saber ao certo o que Jamie pretendia fazer ou o que eu desejava que ele fizesse. Danton emitiu um gemido estrangulado ao me ver e fez uma tentativa infrutífera de fazer o sinal-da-cruz.

— La Dame Blanche! — murmurou, os olhos arregalados de pavor. Jamie moveu-se com uma violência repentina, agarrando os cabelos do sujeito e dando um puxão tão forte em sua cabeça para trás que ela se chocou contra os lambris.

— Se eu tivesse tempo, mo garhe, você iria morrer devagar — ele sussurrou e sua voz, apesar de serena, não deixava dúvidas sobre sua intenção. -Agradeça a Deus por eu estar com pressa.

Puxou a cabeça de Danton bruscamente ainda mais para trás, de modo que pude ver o subir e descer do seu pomo-de-adão, conforme ele engolia em seco convulsivamente, os olhos aterrorizados fixos em mim.

— Você a chama de Dame Blanche — Jamie disse, entre dentes. — Eu a chamo de minha mulher! Então, que o rosto dela seja sua última visão!

A faca rasgou a garganta do sujeito com tal violência que fez Jamie grunhir com o esforço e uma cortina escura de sangue jorrar sobre sua camisa. O cheiro fétido de morte súbita encheu o patamar, com um som chiado e gorgolejante do montículo desmoronado no chão, que pareceu se prolongar por um longo tempo.

Os sons às minhas costas finalmente me fizeram recobrar os sentidos: Mary, vomitando convulsivamente no corredor. Meu primeiro pensamento coerente foi o de que os criados iriam ter uma sujeira infernal para limpar de manhã. Meu segundo pensamento foi por Jamie, visto num lampejo fugaz de luar. Seu rosto estava salpicado e seus cabelos emplastrado de sangue em alguns lugares. E ele respirava pesadamente. Parecia que ele também estava prestes a vomitar.

Voltei-me para Mary e vi, no final do corredor, uma fenda de luz por trás de uma porta que se abria. Alguém estava vindo investigar o barulho. Agarrei a bainha de seu robe, passei-o grosso modo pela sua boca e segurei-a pelo braço, arrastando-a em direção ao patamar.

— Vamos! — eu disse. — Vamos sair daqui!

Despertando de sua atordoada contemplação do corpo de Danton, Jamie sacudiu-se repentinamente e, recuperando os sentidos, virou-se para a escada.

Ele parecia saber para onde estávamos indo, conduzindo-nos pelos corredores escuros sem hesitação. Mary acompanhava-me aos tropeções, arquejante, sua respiração alta como uma máquina a vapor no meu ouvido.

Quando chegamos à porta da copa, Jamie parou e deu um assobio baixo. Isso foi imediatamente correspondido e a porta abriu-se para uma escuridão habitada por formas indistintas. Uma dessas destacou-se das trevas e apressou-se à frente. Algumas palavras murmuradas foram trocadas e o homem — quem quer que fosse — estendeu a mão para Mary e puxou-a para as sombras. Uma corrente de ar frio disse-me que havia uma porta aberta em algum lugar à frente.

A mão de Jamie em meu ombro guiava-me pelo meio dos obstáculos da copa escura e um aposento menor que parecia ser uma espécie de quartinho de despejo; raspei o queixo contra alguma coisa, mas contive uma exclamação de dor.

Finalmente do lado de fora, na noite fria, o vento apoderou-se do meu manto e o fez rodopiar num exuberante balão. Depois do difícil e tenso percurso pela casa escura, senti que podia criar asas e voar para os céus.

Os homens ao meu redor pareciam compartilhar a sensação de alívio. Houve uma pequena erupção de comentários sussurrados e risos abafados, logo silenciados por Jamie. Um de cada vez, os homens atravessaram depressa o espaço aberto em frente à casa, não mais do que sombras sob a lua volúvel. Ao meu lado, Jamie observava-os desaparecer nos bosques do parque.

— Onde está Murtagh? — ele murmurou, como se falasse consigo mesmo, franzindo a testa depois que o último homem passou. — Acho q foi procurar Hugh — ele disse, em resposta à sua própria pergunta. -onde ele pode estar, Sassenach?

Engoli em seco, sentindo o vento frio sob meu manto, a lembrança eliminando a repentina alegria da liberdade.

— Sim — respondi e dei-lhe a má notícia, da forma mais breve possível. A expressão do seu rosto anuviou-se sob a máscara de sangue e quando terminei seu rosto estava rígido como pedra.

— Pretende ficar aí parado a noite toda — perguntou uma voz atrás de nós — ou devemos soar um alarme para que eles saibam onde procurar primeiro?

A expressão de Jamie desanuviou-se um pouco quando Murtagh surgiu das sombras ao nosso lado, silencioso como um fantasma. Carregava um pacote envolvido em panos debaixo do braço; um pedaço de carne da cozinha, pensei, vendo a mancha de sangue escura no pano. Essa impressão advinha do enorme presunto que ele trazia enfiado debaixo do outro braço e as cordas de salsichas penduradas em volta do pescoço.

Jamie franziu o nariz com um leve sorriso.

— Você está fedendo a açougueiro, meu camarada. Não consegue ir a lugar nenhum sem pensar no seu estômago?

Murtagh inclinou a cabeça para o lado, analisando a aparência respin-gada de sangue de Jamie.

— Melhor se parecer com um açougueiro do que com sua mercadoria, rapaz — ele retrucou. — Vamos?

A travessia do parque foi escura e assustadora. As árvores eram altas e muito espaçadas, mas havia mudas crescendo entre elas que transformavam-se bruscamente nas figuras ameaçadoras de guardas de caça à luz incerta. Ao menos, as nuvens se adensavam e a lua cheia fazia poucas aparições, e agradecíamos por isso. Quando alcançamos o outro lado do parque, começou a chover.

Três homens haviam sido deixados com os cavalos. Mary já estava montada à frente de um dos homens de Jamie. Obviamente embaraçada com a necessidade de ter de cavalgar montada com uma perna de cada lado, ela não parava de enfiar as pontas de seu robe embaixo das coxas, na vã tentativa de esconder o fato de que ela possuía pernas.

Mais experiente, mas ainda assim amaldiçoando as dobras pesadas de minhas saias, segurei-as para cima e coloquei um pé na mão estendida de Jamie, impulsionando o corpo com agilidade e montando o cavalo com um baque na sela. O cavalo resfolegou com o impacto e inclinou as orelhas para trás.

— Sinto muito, companheiro — eu disse, sem compaixão. — Se você acha que isso foi ruim, espere até ele montar.

Olhando à minha volta, à procura do “ele” em questão, encontrei-o sob uma das árvores, a mão no ombro de um rapaz desconhecido, de aproximadamente catorze anos.

— Quem é aquele? — perguntei, inclinando-me para frente para atrair atenção de Geordie Paul Fraser, que estava ocupado amarrando sua sela meu lado.

— Hein? Ah, ele. — Lançou um rápido olhar para o garoto, depois de volta ao obstinado cinturão de sua sela, franzindo o cenho. — Seu nome é Ewan Gibson. O enteado mais velho de Hugh Munro. Ele estava com o pai, ao que parece, quando os guardas do duque os atacaram. O garoto conseguiu fugir e nós o encontramos à beira da charneca. Ele nos trouxe aqui. — Com um derradeiro e desnecessário puxão, fitou o cinturão com raiva, como se o desafiasse a dizer alguma coisa, depois ergueu os olhos para mim.

— Sabe onde está o pai do garoto? — perguntou abruptamente. Balancei a cabeça afirmativamente e a resposta deve ter sido evidente em meu rosto, porque ele se virou para olhar para o rapaz. Jamie abraçava o menino, apertando-o forte contra o peito e batendo de leve em suas costas. Conforme observávamos, ele afastou o rapaz, as mãos em seus ombros, e disse alguma coisa, fitando-o intensamente. Não pude ouvir o que ele dizia, mas após alguns instantes o rapaz aprumou-se e balançou a cabeça em sinal afirmativo. Jamie também balançou a cabeça e, com um aperto final em seus ombros, virou o rapaz na direção de um dos cavalos, onde George McClure já estendia a mão para baixo, para o jovem. Jamie caminhou a passos largos até nós, a cabeça baixa, com a ponta do seu xale esvoaçando livremente atrás dele, apesar do vento frio e da chuva fustigante. Geordie cuspiu no chão.

— Pobre garoto — disse, sem especificar de quem ele falava, e montou em seu próprio cavalo.

Perto do canto sudeste do parque, paramos, os cavalos batendo as patas no chão e remexendo-se, enquanto dois dos homens desapareciam de volta no meio das árvores. Não devem ter se passado mais do que vinte minutos até eles voltarem, mas pareceu o dobro.

Os dois homens cavalgavam em um só cavalo agora e o outro animal carregava uma forma longa, atravessada na sela e amarrada, envolvida num tartã dos Fraser. Os cavalos pareceram não gostar; o meu ergueu a cabeça com um safanão, as narinas dilatadas, quando o cavalo que conduzia o corpo de Hugh aproximou-se. Mas Jamie deu um puxão na rédea e disse algo rispidamente em gaélico e o animal desistiu.

Senti Jamie erguer-se nos estribos atrás de mim, olhando para trás como se contasse os remanescentes do seu bando. Em seguida, passou o braço pela minha cintura e partimos, na direção norte.

Viajamos a noite toda, com apenas algumas paradas para descanso. Durante uma dessas paradas, escondendo-se sob uma castanheira, Jamie abraçou-me, depois parou repentinamente.

— O que foi? — perguntei, sorrindo. — Com medo de beijar sua mulher na frente de seus homens?

— Não — ele disse, provando-o. Em seguida, deu um passo para trás, sorrindo. — Não, por um instante tive medo de que fosse gritar e arranhar meu rosto. — Passou a mão de leve nas marcas de unhas que Mary deixara em sua face.

— Coitadinho — eu disse, rindo. — Não foram as boas-vindas que você esperava, hein?

— Bem, a essa altura, na verdade, foram — ele disse, rindo. Ele tirara duas salsichas de uma das cordas de Murtagh e estendeu uma para mim. Não me lembrava da última vez que eu havia comido, mas devia ter sido há muito tempo, porque nem mesmo meu medo de botulismo impediu que a carne gordurosa e bem temperada parecesse deliciosa.

— O que quer dizer com isso? Achou que eu não iria reconhecê-lo depois de apenas uma semana?

Ele sacudiu a cabeça, ainda sorrindo, e engoliu um pedaço de salsicha.

— Não. É que, assim que entrei na casa, eu sabia onde você estava, mais ou menos, por causa das barras em suas janelas. — Arqueou uma das sobrancelhas. — A julgar por elas, você deve ter causado uma forte impressão em Sua Excelência.

— Causei, sim — eu disse sucintamente, não querendo pensar no duque. — Continue.

— Bem — ele disse, dando mais uma mordida na salsicha e transferindo-a habilmente para a bochecha enquanto falava —, eu sabia qual era o quarto, mas precisava da chave, certo?

— Ah, sim — eu disse. — Você ia me contar sobre isso. Ele mastigou rápido e engoliu.

— Peguei-a com a governanta, mas não sem dificuldade. — Esfregou a barriga de leve, alguns centímetros abaixo do cinto. — Ao que parece, eu diria que a mulher já foi acordada em sua cama outras vezes antes... e não gostou da experiência.

— Ah, sim — eu disse, divertindo-me com a imagem mental que seu relato provocou. — Bem, eu diria que você veio como uma fruta rara e revigorante para ela.

— Duvido muito, Sassenach. Ela berrou como uma banshee e deu uma joelhada nas minhas bolas, depois quase conseguiu golpear minha cabeça com um castiçal, enquanto eu gemia, dobrado ao meio.

— O que você fez?

— Dei-lhe um soco, eu não estava me sentindo muito cavalheiresco naquele momento, e amarrei-a com as tiras de sua touca de dormir. Em seguida, enfiei uma toalha em sua boca para pôr um fim aos xingamentos que ela me dirigia e dei uma busca no quarto até encontrar as chaves.

— Bom trabalho — eu disse, ocorrendo-me uma dúvida —, mas como você sabia onde a governanta dormia?

— Eu não sabia — ele disse calmamente. — A lavadeira me disse, depois de eu lhe dizer quem eu era e ameaçar estripá-la e assá-la num espeto se ela não me dissesse o que eu queria saber. — Lançou um sorriso enviesado para mim. — Como eu lhe disse, Sassenach, às vezes é uma vantagem ser considerado um bárbaro. Imagino que a essa altura todos eles já tenham ouvido falar emjamie Fraser, o Ruivo.

— Bem, se não ouviram, vão ouvir — eu disse. Olhei-o de cima a baixo, da melhor maneira que pude na luz turva. — E então, a lavadeira não o espancou também?

— Ela puxou meu cabelo — ele disse, pensativamente. — Arrancou um punhado pela raiz. Vou lhe dizer, Sassenach; se eu algum dia tiver necessidade de mudar de emprego, acho que não vou começar a atacar mulheres... é uma maneira desgraçada de ganhar a vida.

A mistura de neve e chuva começou a cair pesadamente com a proximidade do amanhecer, mas nós continuamos cavalgando por mais algum tempo até que Ewan Gibson fez seu pônei parar, ergueu-se desajeitadamente nos estribos para olhar em volta, depois fez sinal para que subíssemos a encosta que se erguia à esquerda.

Escuro como estava, era impossível subir a encosta a cavalo. Tivemos que apear e conduzi-los passo a passo por poças e lama, seguindo a trilha quase invisível que ziguezagueava pelas urzes e pedras. A luz do dia começava a clarear o céu quando paramos no topo da colina para recuperar o fôlego. O horizonte estava encoberto por grossas nuvens, mas um cinza turvo, proveniente de nenhuma fonte visível, começava a substituir o cinza mais escuro da noite. Agora, eu ao menos podia ver os arroios parcialmente congelados em que eu afundava os pés até a canela e evitar torcer o tornozelo nas piores saliências das rochas e arbustos que encontrávamos na descida da colina.

Encravada no sopé, via-se uma pequena área plana, com seis casas, embora “casa” fosse uma palavra suntuosa demais para as rústicas construções agachadas sob os larícios. Os telhados de palha quase tocavam o chão, deixando apenas um pedaço de parede de pedra à mostra.

Paramos em frente a uma dessas cabanas. Ewan olhou para Jamie, hesitando como se esperasse instruções, depois, diante do sinal que Jamie fez com a cabeça, agachou-se e desapareceu sob o teto baixo da choupana. Aproximei-me de Jamie, colocando a mão sobre seu braço.

— Esta é a casa de Hugh Munro — ele me disse, a voz muito baixa. — Eu o trouxe de volta para sua mulher. O garoto entrou para contar-lhe.

Desviei os olhos da entrada escura e baixa do casebre para o fardo flácido, envolto em tecido xadrez, que dois dos homens desamarravam do cavalo. Senti um pequeno tremor percorrer o braço de Jamie. Ele fechou os olhos por um instante e vi seus lábios moverem-se; em seguida, ele deu um passo à frente e estendeu os braços para o fardo. Inspirei fundo, afastei os cabelos do meu rosto e segui-o, agachando-me sob a verga da porta.

Não foi tão ruim quanto eu temia, embora bastante desolador. A mulher, a viúva de Hugh, permaneceu em silêncio, aceitando o suave discurso de condolências de Jamie, em gaélico, com a cabeça baixa, as lágrimas escorrendo pelo rosto como chuva. Estendeu a mão, hesitante, na direção do xale que recobria o corpo, como se pretendesse abaixá-lo, mas não teve coragem. Permaneceu ali parada, uma das mãos pousada, sem jeito, na curva da mortalha, enquanto a outra apertava uma criança junto à sua coxa.

Havia várias crianças amontoadas junto ao fogo — os enteados de Hugh — e um bebê enfaixado num berço tosco mais perto da lareira. Senti um pequeno consolo, olhando para a criança; ao menos, restara um pedaço de Hugh. Depois, o consolo foi sobrepujado por uma fria sensação de medo quando olhei para as outras crianças, os rostinhos sujos mesclando-se às sombras. Hugh fora o principal esteio desta família. Ewan era corajoso e determinado, mas tinha apenas catorze anos e a criança mais velha depois dele era uma menina de aproximadamente doze anos. Como eles iriam sobreviver?

O rosto da mulher era desgastado e enrugado, quase sem dentes. Percebi com um choque que ela devia ser apenas alguns anos mais velha do que eu. Fez um sinal com a cabeça indicando a única cama e Jamie depositou o corpo cuidadosamente sobre ela. Falou outra vez em gaélico para a mulher; ela sacudiu a cabeça desamparadamente, ainda fitando a longa forma sobre a cama.

Jamie ajoelhou-se ao lado da cama, inclinou a cabeça e colocou uma das mãos sobre o corpo. Suas palavras eram baixas, mas pronunciadas com clareza, e até mesmo eu, com meu parco gaélico, podia segui-las.

-Juro a você, meu amigo, e que Deus seja testemunha. Em nome de seu amor por mim, nunca os seus passarão necessidade, enquanto eu puder ampará-los. — Permaneceu imóvel por um longo instante e não se ouvia nenhum ruído no casebre, senão o estalar da turfa na lareira e o tamborilar abafado da chuva no telhado. A umidade havia escurecido os cabelos de Jamie; gotículas de chuva brilhavam como jóias nas pregas de seu xale. Em seguida, sua mão apertou o corpo do amigo uma vez numa despedida final, e ele se levantou.

Jamie cumprimentou a sra. Munro com uma inclinação do corpo e depois virou-se para tomar meu braço. Entretanto, antes que pudéssemos sair, o couro de boi que encobria a entrada da casa foi afastado para o lado e eu recuei um passo para dar passagem a Mary Hawkins, seguida de Murtagh.

Mary parecia tanto desalinhada quanto desnorteada, um xale úmido em volta dos ombros e os enlameados chinelos projetando-se por baixo da bainha encharcada de seu robe. Avistando-me, apertou-se contra mim, como se estivesse grata pela minha presença.

— Eu não queria entrar — sussurrou para mim, lançando um olhar tímido na direção da viúva de Hugh Munro -, mas o sr. Murtagh insistiu.

As sobrancelhas de Jamie ergueram-se numa indagação, quando Murtagh cumprimentou a sra. Munro respeitosamente com um aceno da cabeça e disse-lhe algumas palavras em gaélico. O pequeno escocês tinha a aparência de sempre, circunspecta e competente, mas achei que havia um indício extra de dignidade em seu comportamento. Carregava um de seus alforjes à sua frente, bojudo e pesado com alguma coisa. Talvez um presente de despedida para a sra. Munro, pensei.

Murtagh colocou o alforje no chão, aos meus pés, depois se aprumou e olhou de mim para Mary, para a viúva de Hugh Munro e finalmente para Jamie, que parecia tão intrigado quanto eu. Tendo dessa forma se assegurado da atenção de sua platéia, Murtagh inclinou-se numa mesura formal para mim, uma mecha de cabelos escuros e molhados caindo livremente sobre sua testa.

— Trago-lhe sua vingança, senhora — ele disse, de uma forma tão serena como eu nunca o ouvira falar. Endireitou-se e inclinou a cabeça para Mary e para a sra. Munro. — E justiça pelo mal que lhes causou.

Mary espirrou e limpou o nariz apressadamente com uma dobra de seu xale. Olhava fixamente para Murtagh, os olhos arregalados e atônitos. Abaixei o olhar para o alforje bojudo, sentindo um calafrio profundo e repentino, que nada tinha a ver com o tempo lá fora. Mas foi a viúva de Hugh Munro quem caiu de joelhos e, com mãos firmes, abriu a sacola e retirou de dentro a cabeça do duque de Sandringham.

 

Foi uma viagem torturante para o norte, rumo à Escócia. Tínhamos que nos esquivar e esconder, sempre com medo de sermos reconhecidos como um bando das Highlands, sem podermos comprar ou pedir comida, tendo que roubá-la de cabanas momentaneamente vazias ou arrancar as poucas raízes comestíveis que eu conseguisse identificar nos campos.

Devagar, avançamos para o norte. Não tínhamos a menor idéia de onde o exército escocês estaria agora, exceto que viera para o norte. Sem saber onde estava o exército, resolvemos nos dirigir a Edimburgo; lá, pelo menos, haveria notícias da campanha. Estivéramos desligados de tudo por várias semanas; eu soubera que a tentativa dos ingleses de recuperar o Castelo Stirling havia fracassado, Jamie sabia que a batalha de Falkirk fora um sucesso, terminando com a vitória dos escoceses. Mas o que acontecera depois?

Quando finalmente entramos no caminho de pedras cinza da Royal Mile, Jamie dirigiu-se imediatamente para o quartel-general do exército, deixando-me com Mary para irmos ao quarto de Alex Randall. Subimos a rua apressadamente, mal falando, ambas receosas demais do que poderíamos encontrar.

Ele estava lá, e eu vi os joelhos de Mary cederem quando entrou no quarto e deixou-se cair junto à cama. Subitamente acordado de um sono leve, ele abriu os olhos e piscou uma vez, depois o rosto de Alex Randall iluminou-se como se ele tivesse recebido uma visita celestial.

— Ah, meu Deus! — murmurava sem parar, as palavras entrecortadas, em meio aos cabelos da jovem. — Ah, meu Deus! Eu pensei... ah, Senhor, eu rezei... queria vê-la mais uma vez. Apenas uma. Ah, Senhor!

Simplesmente desviar meus olhos não me pareceu suficiente; saí para o patamar e sentei-me nas escadas por meia hora, descansando minha exausta cabeça sobre os joelhos.

Quando me pareceu decente retornar, voltei ao pequeno quarto, que se tornara sujo e triste outra vez nas semanas de ausência de Mary. Examinei-o, minhas mãos suaves sobre a carne devastada. Eu estava surpresa por ele estar durando tanto; não iria demorar muito mais.

Ele viu a verdade em meu rosto e balançou a cabeça, sem surpresa.

— Eu esperava — ele disse em voz baixa, recostando-se, exausto sob os travesseiros. — Eu esperava... que ela viesse mais uma vez. Eu não tinha nenhuma razão... mas eu rezei. E minhas preces foram ouvidas. Posso morrer em paz agora.

— Alex! — O grito de angústia de Mary irrompeu como se as palavras dele a tivessem atingido como um soco, mas ele sorriu e apertou sua mão

— Sabemos disso há muito tempo, meu amor — ele sussurrou-lhe -Não se desespere. Estarei sempre com você, observando-a, amando-a. Não chore, minha querida. — Ela limpou obedientemente as faces rosadas, mas nada pôde fazer para estancar as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Apesar de seu óbvio desespero, ela nunca parecera tão viçosa.

— Sra. Fraser — Alex disse, obviamente reunindo suas forças para pedir mais um favor. — Preciso pedir-lhe... amanhã... poderá vir outra vez e trazer seu marido com a senhora? É importante.

Hesitei por um instante. O que quer que Jamie descobrisse, ele iria querer partir de Edimburgo imediatamente, para unir-se ao exército e ao resto de seus homens. Entretanto, com certeza mais um dia não faria diferença para o desfecho da guerra — e eu não podia negar o apelo nos dois pares de olhos que me fitavam com tanta esperança.

— Nós viremos — eu disse.

— Sou um idiota — Jamie resmungou, subindo as ruas íngremes, de calçamento de pedras, para o beco onde ficava o quarto de Alex Randall. -Devíamos ter partido ontem, imediatamente, assim que conseguimos reaver suas pérolas do penhor! Não sabe como Inverness é distante? E nós com pouco mais do que pangarés para nos levar lá.

— Eu sei — eu disse com impaciência. — Mas eu prometi. E se você o tivesse visto... bem, você o verá em instantes e então compreenderá.

— Muhm. — Mas ele segurou a porta da rua para mim e seguiu-me pela escada em caracol do prédio decrépito sem maiores reclamações.

Mary estava recostada, quase deitada na cama. Ainda trajando suas esfarrapadas roupas de viagem, segurava Alex, apertando-o com força contra seu peito. Ela deve ter permanecido com ele assim a noite toda.

Ao me ver, ele delicadamente se liberou de seu abraço, batendo de leve em suas mãos conforme as colocava de lado. Ergueu-se apoiado no cotovelo, o rosto mais pálido do que os lençóis de linho onde estava deitado.

— Sra. Fraser — ele disse. Sorriu debilmente, apesar da película de suor doentio e da palidez acinzentada que sinalizava um ataque sério.

— Foi muita bondade de vocês terem vindo — ele disse, arfando um pouco. Olhou além de mim. — Seu marido... ele está com você?

Como em resposta, Jamie entrou no quarto, atrás de mim. Mary, arrancada de sua infelicidade pelo barulho de nossa chegada, olhou de mim para Jamie, depois se levantou, colocando a mão timidamente no braço de Jamie.

— Eu... nós... p-precisamos de você, lorde Tuarach. — Achei ter sido a gagueira, mais do que o uso de seu título, que o comoveu. Embora ele ainda estivesse carrancudo, uma parte de sua tensão esvaiu-se. Inclinou a cabeça cortesmente para ela.

— Eu pedi à sua esposa que o trouxesse, senhor. Estou morrendo, como pode ver. — Alex Randall endireitou-se com esforço e sentou-se na beira da cama. Suas pernas descarnadas brilhavam brancas como ossos sob a bainha puída do camisão de dormir. Os dedos dos pés, longos, delgados e exangues, estavam azulados pela má circulação.

Eu já vira a morte muitas vezes antes, em todas as suas formas, mas isso era sempre o pior — e o melhor; um homem que ia ao encontro da morte com conhecimento e coragem, enquanto as artes vãs do curandeiro desmoronavam. Vãs ou não, remexi o conteúdo da minha caixa em busca da digitalina que eu preparara para ele. Eu tinha várias infusões, de concentrações variadas, um espectro de líquidos marrons em frascos de vidro. Escolhi o frasco mais escuro sem hesitação; eu podia ouvir sua respiração borbulhar por causa da água em seus pulmões.

Não era a digitalina, mas sua força de vontade que o sustentava agora, iluminando-o com um brilho como se uma vela queimasse por trás da pele semelhante à cera de seu rosto. Eu também já vira isso algumas vezes antes; o homem — ou mulher — cuja vontade era forte o suficiente para sobrepujar durante algum tempo os imperativos do corpo.

Pensei que talvez fosse assim que alguns fantasmas se formavam; onde uma vontade e um propósito sobreviviam, indiferentes à carne frágil que caía à beira da estrada, incapaz de sustentar a vida por mais tempo. Eu não queria ser assombrada por Alex Randall; essa, entre outras, foi a razão que me fez trazer Jamie comigo hoje.

O próprio Jamie parecia estar chegando às mesmas conclusões.

— Sim — ele disse brandamente. — Compreendo. Deseja algo de mim? Alex balançou a cabeça, fechando os olhos por um momento. Ergueu o frasco que lhe dei e bebeu, estremecendo um pouco com o gosto amargo. Abriu os olhos e sorriu para Jamie.

— A indulgência de sua presença apenas. Prometo que não vou detê-lo por muito tempo. Estamos esperando por mais uma pessoa.

Enquanto esperávamos, fiz o que pude por Alex Randall, o que, nas atuais circunstâncias, não era muito. A infusão de dedaleira outra vez e um pouco de cânfora para facilitar a sua respiração. Ele pareceu um pouco melhor depois da administração dos remédios, mas colocando o estetoscó-pio improvisado contra seu peito fundo, eu podia ouvir as batidas esforçadas de seu coração, interrompidas por estremecimentos e palpitações tão freqüentes que eu achava que iria parar a qualquer momento.

Mary segurava sua mão o tempo todo e ele mantinha os olhos fixos nela, como se memorizasse cada traço de seu rosto. Parecia quase uma intrusão estar no mesmo quarto que eles.

A porta abriu-se e Jack Randall ficou parado na soleira. Olhou para mim e para Mary por um instante sem compreender, depois seu olhar recaiu sobre Jamie e ele ficou paralisado. Jamie encarou-o sem desviar os olhos, depois se virou, balançando a cabeça em direção à cama.

Vendo aquele rosto emaciado, Jack Randall atravessou o quarto correndo e caiu de joelhos ao lado da cama.

— Alex! — exclamou. — Meu Deus, Alex...

— Está tudo bem — seu irmão disse. Segurou o rosto de Jack entre suas mãos frágeis e sorriu para ele, tentando tranqüilizá-lo. — Está tudo bem, Johnny — ele disse.

Coloquei a mão sob o cotovelo de Mary, delicadamente instando-a a sair da cama. O que quer que Jack Randall fosse, ele merecia algumas derradeiras palavras com seu irmão. Atônita de desespero, ela não resistiu, mas acompanhou-me para o outro lado do aposento, onde eu a fiz sentar-se em um banco. Despejei um pouco de água do jarro e molhei meu lenço. Tentei dar-lhe o lenço, para ela limpar os olhos, mas ela simplesmente continuou sentada, agarrando-o, inerte. Suspirando, peguei-o e limpei seu rosto, alisando seus cabelos o quanto pude.

Ouviu-se um som entrecortado, sufocado, de trás, que me fez olhar na direção da cama. Jack, ainda de joelhos, enterrara o rosto no colo do irmão, enquanto Alex acariciava sua cabeça, segurando uma de suas mãos.

-John — ele disse. — Você vai saber que não lhe peço isso sem motivo. Mas pelo amor que você tem por mim... — Um acesso de tosse o interrompeu, o esforço ruborizando seu rosto com uma cor febril.

Senti o corpo de Jamie retesar-se ainda mais, se isso fosse possível. Jonathan Randall também se enrijeceu, como se sentisse a força do olhar de Jamie sobre ele, mas não ergueu os olhos.

— Alex — ele disse serenamente. Colocou a mão no ombro do irmão mais novo, como se quisesse acalmar a tosse. — Não se atormente, Alex. Sabe que não precisa pedir; farei qualquer coisa que você quiser. É a respeito da... da garota? — Olhou na direção de Mary, mas não pôde realmente encará-la.

Alex balançou a cabeça, ainda tossindo.

— Tudo bem—John disse. Colocou ambas as mãos nos ombros de Alex, tentando levá-lo a se deitar no travesseiro outra vez. — Não deixarei que nada lhe falte. Descanse sua mente.

Jamie olhou para mim, os olhos arregalados. Sacudi a cabeça devagar, sentindo meus pêlos arrepiarem-se da minha nuca à base de minha espinha. Tudo fazia sentido agora; o viço no rosto de Mary, apesar de seu sofrimento, e a sua aparente concordância em se casar com o rico judeu de Londres.

— Não se trata de dinheiro — eu disse. — Ela está grávida. Ele quer... — parei, limpando a garganta. — Acho que ele quer que você se case com ela.

Alex balançou a cabeça, confirmando, os olhos ainda cerrados. Respirou profundamente por um instante, depois os abriu, brilhantes poças cor de avelã, fixas no rosto perplexo que o olhava sem compreender.

— Sim — ele disse. -John... Johnny, preciso que você cuide dela por mim. Quero... que meu filho tenha o nome Randall. Você pode... lhes dar certa posição no mundo, muito mais do que eu pude. — Estendeu a mão, tateando, e Mary segurou-a, prendendo-a contra o peito, como se quisesse lhe preservar a vida. Ele sorriu-lhe ternamente e estendeu a mão para tocar os cachos escuros, brilhantes, que caíam ao redor de seu rosto, ocultando-o.

— Mary. Desejo-lhe... bem, você sabe o que lhe desejo, minha querida; tantas coisas. E tantas coisas que lamento. Mas não posso lamentar o amor que nos une. Tendo conhecido essa alegria, poderia morrer feliz, a não ser pelo meu medo de que você possa ficar exposta à vergonha e à desgraça.

— Não me importo! — Mary irrompeu ferozmente. — Não me importa que fiquem sabendo!

— Mas eu me preocupo com você — Alex disse, meigamente. Estendeu a mão para seu irmão, que a segurou após um instante de hesitação. Ele, então, uniu-as, colocando a mão de Mary na de Randall. A de Mary permaneceu inerte e a de Jack Randall rígida, como um peixe morto em uma prancha de madeira, mas Alex envolveu-as com suas mãos e pressionou-as com força, obrigando-as a se unirem.

— Eu os dou um ao outro, meus queridos — ele disse calmamente. Olhou de um rosto para o outro, cada qual refletindo o horror da sugestão, submersos na dor avassaladora da perda iminente.

— Mas... — Pela primeira vez em nosso conhecimento, eu vi Jonathan Randall completamente sem palavras.

— Ótimo. — Foi quase um sussurro. Alex abriu os olhos e deixou escapar a respiração que estava prendendo, sorrindo para seu irmão. — Não resta muito tempo. Eu mesmo devo casá-los. Agora. Foi por isso que pedi à sra. Fraser que trouxesse seu marido... se concordar em ser testemunha com sua esposa, senhor? — Ergueu os olhos para Jamie, que, após um instante de perplexa imobilidade, assentiu, balançando a cabeça como um autômato.

Creio que jamais vi três pessoas com uma expressão tão completamente aniquilada.

Alex estava tão fraco que seu irmão, o rosto quase pétreo, teve que ajudá-lo, prendendo o colarinho alto e branco de padre em volta do seu pescoço pálido. O próprio Jonathan parecia um pouco melhor. Emaciado da doença, as rugas em seu rosto eram tão profundas que ele parecia anos mais velho do que sua idade real e seus olhos espreitavam de órbitas fundas como cavernas de osso. Vestido de modo impecável como sempre, ele parecia um manequim malfeito de um alfaiate, as feições negligentemente talhadas de um bloco de madeira.

Quanto a Mary, permanecia sentada na cama, chorando inconsolavel-mente nas dobras de seu manto, os cabelos desalinhados e arrepiados de estática. Fiz o que pude por ela, ajeitando seu vestido e penteando seus cabelos. Ela ficou sentada, soluçando tristemente, os olhos fixos em Alex.

Apoiando a mão na cômoda, Alex tateou na gaveta, retirando finalmente seu enorme livro de preces. Era pesado demais para ele segurar aberto diante dele, como deveria fazer. Não conseguia ficar de pé, mas sentou-se o mais empertigado possível na cama, mantendo o livro aberto sobre os joelhos. Fechou os olhos, respirando pesadamente, e uma gota de suor pingou de seu rosto, manchando a página.

— Meus entes queridos — Alex começou, e eu desejei, pelo seu próprio bem, como pelo de todos os demais, que ele estivesse usando a forma abreviada da cerimônia.

Mary parara de chorar, mas seu nariz estava vermelho e brilhante no rosto claro e a coriza escorria sobre seu lábio superior. Jonathan notou isso e, sem nenhuma expressão no rosto, puxou um grande lenço de linho da manga e ofereceu-o a ela silenciosamente.

Ela pegou-o com um leve aceno da cabeça, sem olhar para ele, e limpou o rosto indiferentemente.

— Sim — ela disse quando chegou o momento, como se não mais se importasse com qualquer coisa que dissesse.

Jack Randall fez seus votos com voz firme, mas distante da cena. Tive a estranha sensação de estar presenciando um casamento contratado entre duas pessoas que nem se davam conta da presença uma da outra; toda a atenção de ambos concentrava-se no homem sentado diante deles, os olhos fixos nas páginas de seu livro.

Estava feito. Congratulações aos noivos não parecia ser o próximo passo apropriado e seguiu-se um silêncio constrangedor. Jamie olhou para mim com ar de interrogação e eu encolhi os ombros. Eu desmaiara logo depois de me casar com ele e Mary parecia prestes a seguir meu exemplo.

Terminada a cerimônia, Alex permaneceu absolutamente imóvel por um instante. Sorriu levemente e olhou deliberadamente à sua volta, os olhos repousando por alguns instantes em cada rosto, um de cada vez. Jonathan, Jamie, Mary e eu. Vi o brilho naqueles suaves olhos cor de avelã quando seu olhar encontrou-se com o meu. O toco de vela diminuía cada vez mais, mas o fim do pavio ardia, por um instante forte e luminoso.

Seu olhar demorou-se no rosto de Mary, em seguida ele cerrou as pálpebras rapidamente, como se não suportasse olhar para ela, e eu pude ouvir o ronco de sua respiração lenta e laboriosa. O brilho de sua pele se embotava e se esvaía, a vela derretendo-se.

Sem abrir os olhos, ele estendeu a mão, tateando cegamente. Jonathan segurou-a, pegou-o por trás dos ombros e deitou-o devagar sobre os travesseiros. As mãos longas, lisas como as de um garoto, contorceram-se agi-tadamente, mais brancas do que a camisa onde se apoiavam.

— Mary.

Os lábios azulados moveram-se num sussurro e ela envolveu as mãos nervosas nas dele, segurando-as contra o peito.

— Estou aqui, Alex. Ah, Alex, estou aqui! — Inclinou-se para mais perto dele, murmurando em seu ouvido. O movimento forçou Jonathan a recuar um pouco, de modo que ele se afastou da cama. Ficou parado, os olhos fixos no chão, o rosto sem nenhuma expressão.

As pálpebras pesadas, convexas, ergueram-se mais uma vez, apenas parcialmente agora, buscando um rosto e encontrando-o.

-Johnny. Tão... bom para mim. Sempre, Johnny.

Mary inclinou-se sobre ele, a sombra de seus cabelos soltos escondendo seu rosto. Jonathan Randall permaneceu imóvel como uma pedra de um círculo megalítico, observando seu irmão e sua esposa. Não havia nenhum som no quarto, exceto o sussurro do fogo e os soluços abafados de Mary Randall.

Senti um toque em meu ombro e ergui os olhos para Jamie. Ele indicou Mary com um sinal da cabeça.

— Fique com ela — disse a meia-voz. — Não vai demorar muito mais, não é?

— Não.

Ele balançou a cabeça. Em seguida, respirou fundo, soltou a respiração devagar e atravessou o aposento, aproximando-se de Jonathan Randall.

Segurou a figura paralisada pelo braço e virou-o gentilmente na direção da porta.

— Vamos — disse serenamente. — Eu o levarei em segurança até o seu alojamento.

A porta empenada rangeu quando ele saiu, acompanhando Jack Randall ao lugar onde ele iria passar sua noite de núpcias, sozinho.

Fechei a porta de nosso quarto na hospedaria e apoiei-me contra ela, exausta. Acabara de escurecer lá fora e os gritos dos vigias noturnos ecoavam pela rua.

Jamie estava junto à janela, aguardando a minha chegada. Veio até mim imediatamente, apertando-me com força contra seu peito, antes mesmo de eu tirar meu manto. Deixei-me aconchegar junto a ele, grata pelo calor e solidez de seu corpo. Ele passou um dos braços sob meus joelhos e carregou-me até o banco da janela.

— Tome uma bebida, Sassenach — insistiu. — Você está abatida e não é de admirar. — Pegou o frasco de bebida de cima da mesa e preparou uma mistura que parecia ser conhaque e água, sem a água.

Passei a mão, exausta, pelos cabelos. Fomos ao quarto em Ladywalk Wynd logo depois do desjejum; agora já passava das seis da tarde. Parecia que eu estivera dias ausente.

— O pobre coitado não demorou muito. Foi como se ele só estivesse esperando para vê-la em segurança. Mandei um recado à casa de sua tia; a tia e dois primos vieram buscá-la. Eles cuidarão... dele. — Tomei um pequeno gole de conhaque com grande satisfação. Queimou minha garganta e os vapores elevaram-se para dentro de minha cabeça como neblina nas charnecas, mas eu não me importei.

— Bem — eu disse, tentando sorrir -, ao menos sabemos que Frank esta a salvo, afinal de contas.

Jamie olhou-me furioso, as sobrancelhas ruivas quase se tocando.

— Dane-se Frank! — ele disse, ferozmente. — Danem-se todos os Randall! Dane-se Jack Randall e dane-se Mary Hawkins Randall e dane-se Alex Randall... hã, que Deus o tenha, quero dizer — corrigiu-se apressadamente, benzendo-se.

— Pensei que você não guardasse rancor — comecei a dizer. Fitou-me com raiva.

— Eu menti.

— E dane-se você também, Claire Randall Fraser, já que estou nisso! — exclamou. — Pode ter certeza que eu guardo rancor! Tenho ciúmes de cada lembrança sua que não me inclua e de cada lágrima que você verteu por outra pessoa e de cada segundo que passou na cama de outro homem! Danem-se todos! — Ele derrubou o copo de conhaque de minha mão -acidentalmente, creio —, puxou-me para ele e beijou-me com força.

Afastou-se o suficiente para sacudir-me outra vez.

— Você é minha, diabos, Claire Fraser! Minha e eu não vou compartilhá-la, nem com outro homem nem com uma lembrança, nem com coisa nenhuma, enquanto nós vivermos. Não mencione o nome desse homem para mim outra vez. Você me ouviu? — Beijou-me impetuosamente para enfatizar suas palavras. — Você me ouviu? — perguntou, desligando-se bruscamente de mim.

— Sim — eu disse, com alguma dificuldade. — Se você... parasse... de me sacudir, eu poderia... responder.

Um pouco timidamente, ele soltou as mãos dos meus ombros.

— Desculpe-me, Sassenach. É que... Deus, por que você... bem, sim, vejo porque... mas você tinha que... — Interrompi aquela fala entrecortada e incoerente colocando a mão em sua nuca e puxando sua cabeça para mim.

— Sim — eu disse com firmeza, soltando-o. — Eu precisava. Mas agora acabou. — Desamarrei meu manto e deixei-o cair dos meus ombros ao chão. Ele inclinou-se para pegá-lo, mas eu o interrompi.

— Jamie — eu disse. — Estou cansada. Pode me levar para a cama?

Ele inspirou fundo e expirou devagar, fitando-me intensamente, os olhos fundos de cansaço e tensão.

— Sim — disse brandamente, por fim. — Sim.

Ele ficou em silêncio e foi rude no começo, os resquícios de sua raiva embrutecendo seu amor.

— Aai! — exclamei a certa altura.

— Santo Deus, desculpe-me, mo duinne. Eu não...

— Tudo bem. — Interrompi suas desculpas com minha boca e abracei-o com força, sentindo a cólera esvair-se à medida que a ternura crescia entre nós. Ele não se esquivou do beijo, mas permaneceu imóvel, delicadamente explorando meus lábios, a ponta de sua língua acariciando, mal me tocando.

Toquei sua língua com a minha e segurei seu rosto entre minhas mãos. Ele não se barbeara desde manhã e os minúsculos pêlos ruivos raspavam agradavelmente as pontas dos meus dedos.

Ele abaixou o corpo e rolou um pouco para o lado, para não me esmagar sob seu peso. E continuamos, tocando em toda a extensão de nossos corpos, intimamente ligados, falando em idiomas silenciosos.

Vivos e unidos num único ser. Somos um só e, enquanto nos amarmos, a morte jamais nos alcançará. “A sepultura é um lugar belo e reservado / Mas acho que ninguém ali se abraça.” Alex Randall jazia, frio, em sua cama e Mary Randall sozinha em outra. Mas nós estávamos ali juntos e nada nem ninguém importava além deste fato.

Ele agarrou meus quadris, as mãos grandes e quentes em minha pele, e puxou-me para ele. O estremecimento que me percorreu, também percorreu seu corpo, como se compartilhássemos a mesma carne.

Acordei durante a noite, ainda em seus braços, e percebi que ele estava acordado.

— Volte a dormir, mo duinne. — Sua voz era branda, baixa e reconfor-tante, mas com um travo que me fez estender a mão para sentir as lágrimas em seu rosto.

— O que foi, meu amor? — sussurrei. — Jamie, eu o amo muito.

— Eu sei — ele disse serenamente. — Eu realmente sei, querida. Deixe que eu lhe diga em seu sono o quanto eu a amo. Porque as palavras que lhe digo quando está acordada são sempre as mesmas, não são suficientes. Enquanto você dormir em meus braços, posso dizer-lhe coisas que soariam tolas e loucas, e seus sonhos entenderão a verdade delas. Volte a dormir, mo duinne.

Virei a cabeça, o suficiente para que meus lábios roçassem a base de sua garganta, onde seus batimentos cardíacos pulsavam devagar sob a pequena cicatriz triangular. Depois, repousei a cabeça sobre seu peito e entreguei meus sonhos em suas mãos.

 

Havia homens e vestígios de sua passagem por toda parte à medida que avançávamos para o norte, seguindo a retirada do exército das Highlands. Passamos por pequenos grupos de homens a pé, caminhando tenazmente, as cabeças abaixadas contra o vento e a chuva. Outros jaziam nas trincheiras e sob as cercas vivas, exaustos demais para prosseguir. Equipamentos e armas haviam sido abandonados ao longo do caminho; aqui uma carroça derrubada, os sacos de farinha rasgados e estragados na umidade, ali um par de pequenas colubrinas sob uma árvore, os canos gêmeos brilhando sinistramente nas sombras.

O tempo estivera inclemente o dia inteiro, atrasando-nos. Era 13 de abril e eu cavalgava e caminhava com uma sensação constante, atormentadora, de horror em meu coração. Lorde George e os chefes de clã, o príncipe e seus principais conselheiros — todos estavam na Casa Culloden, ou assim haviam nos informado por um dos MacDonald que encontramos ao longo do caminho. Ele pouco sabia além disso e nós não o detivemos; o homem afastou-se tropegamente na neblina, andando como um zumbi. As rações estavam escassas quando fui capturada pelos ingleses um mês atrás; a situação havia claramente ido de mal a pior. Os homens que vimos se moviam devagar, muitos cambaleando de exaustão e inanição. Mas prosseguiam obstinadamente na direção norte, todos seguindo as ordens de seu príncipe. Caminhavam para o lugar que os escoceses chamavam de Drumossie Moor. Para Culloden.

Em determinado ponto, a estrada ficou ruim demais para os pôneis trôpegos. Tivemos que contornar o trecho inviável, conduzindo-os pela borda externa de um pequeno bosque, através das urzes úmidas da primavera, até onde a estrada tornava-se transitável outra vez, a uns oitocentos metros de distância.

— Será mais rápido atravessar o bosque — Jamie disse-me, tomando as rédeas da minha mão dormente. Fez um sinal com a cabeça indicando o pequeno bosque de pinheiros e carvalhos, onde o cheiro fresco e adocicado de folhas molhadas elevava-se do solo encharcado. — Vá por ali, Sassenach. Encontraremos com você do outro lado.

Eu estava cansada demais para discutir. Colocar um pé na frente do outro era um óbvio esforço e o esforço seria indubitavelmente menor na camada macia de folhas e agulhas de pinheiros caídas no bosque do que através das urzes pantanosas e traiçoeiras.

Estava silencioso no bosque, as lamúrias do vento abrandadas pelos galhos dos pinheiros acima. A pouca chuva que atravessava os ramos tamborilava de leve sobre as camadas de folhas de carvalho caídas, curtidas como couro, estalando e sussurrando, mesmo quando molhadas.

Ele jazia a apenas alguns metros da borda mais remota do bosque, ao lado de uma enorme rocha cinza. O líquen verde-claro da rocha era da mesma cor do seu tartã e os marrons do xadrez de suas roupas misturavam-se às folhas mortas que o vento soprara sobre seu corpo. Ele parecia tanto fazer parte do bosque que eu poderia ter tropeçado nele, se não tivesse sido interrompida pela mancha de um azul brilhante.

Macio como um veludo, o estranho fungo espalhou seu manto sobre os membros nus, brancos e frios. Seguia a curva dos ossos e dos tendões, lançando pequenas chamas trêmulas, como o mato e as árvores de uma floresta, invadindo terrenos desertos.

Era um azul vívido e elétrico, puro e estranho. Eu nunca o vira, mas já ouvira falar, de um velho soldado de quem eu cuidara e que lutara nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

— Chamávamos de fogo-fátuo — ele me dissera. — Azul, azul fosfores-cente. Você não o vê em lugar nenhum, a não ser no campo de batalha... em homens mortos. — Ele havia erguido o olhar para mim, os olhos cansados estarrecidos sob a bandagem branca.

— Sempre me perguntei onde ele vive, entre uma guerra e outra.

No ar, talvez, seus esporos invisíveis à espera de uma oportunidade a qual se agarrar, pensei. A cor era brilhante, incongruente, luminosa como o anil com que os ancestrais deste homem se pintavam antes de ir para a guerra.

Uma brisa atravessou o bosque, perturbando os cabelos do guerreiro morto. Agitaram-se e levantaram-se, sedosos e parecendo cheios de vida. Ouvi um ruído de folhas esmagadas atrás de mim e comecei a sair convul-sivamente do transe em que mergulhara, olhando o cadáver.

Jamie estava a meu lado, fitando-me. Não disse nada; apenas segurou-me pelo cotovelo e conduziu-me para fora do bosque, deixando o morto para trás, envolto nos tons sapróbios da guerra e do sacrifício.

;: Chegamos à Casa Culloden no meio da manhã de 15 de abril, tendo arrastado a nós mesmos e aos pôneis implacavelmente com supremo esforço para alcançá-la. Nós a abordamos pelo lado sul, primeiro atravessando um aglomerado de construções externas. Houve uma agitação — quase um frenesi — entre os homens na estrada, mas o pátio do estábulo estava curiosamente deserto.

Jamie desmontou e entregou as rédeas a Murtagh.

— Espere aqui um momento — ele disse. — Parece haver algo de errado aqui.

Murtagh olhou para a porta dos estábulos, parcialmente aberta, e balançou a cabeça. Fergus, montado atrás do escocês, teria seguido Jamie, mas Murtagh impediu-o com uma palavra ríspida.

Com os músculos enrijecidos da viagem, deslizei do meu próprio cavalo e segui Jamie, escorregando na lama do pátio. Realmente havia alguma coisa estranha a respeito do estábulo. Somente quando o segui cruzando a porta é que percebi o que era — estava silencioso demais.

Tudo ali dentro estava quieto demais; o prédio estava frio e escuro, sem o calor e a agitação habituais de um estábulo. Ainda assim, o lugar não estava completamente isento de vida; uma figura escura moveu-se na obscuridade, grande demais para ser um rato ou uma raposa.

— Quem está aí? — Jamie perguntou, dando um passo à frente para me colocar automaticamente atrás dele. — Alec? É você?

A figura no feno ergueu a cabeça devagar e seu xale caiu. O chefe da estrebaria do Castelo Leoch tinha apenas um olho; o outro, perdido em um acidente há muitos anos, era coberto com uma venda preta. Em geral, bastava-lhe um olho; de um azul vivo e brilhante, era suficiente para angariar a obediência de todos igualmente — dos rapazes do estábulo, dos cavalos, dos cavalariços e dos cavaleiros.

Agora, o olho de Alec McMahon MacKenzie estava embaciado como uma ardósia empoeirada. O corpo volumoso, um dia vigoroso, estava curvado sobre si mesmo e as faces encovadas com a apatia da inanição.

Sabendo que Alec sofria de artrite no tempo úmido, Jamie agachou-se ao seu lado para que ele não tivesse que se erguer.

— O que aconteceu por aqui? — perguntou. — Acabamos de chegar; o que aconteceu?

O velho Alec pareceu levar um longo tempo para absorver a pergunta, assimilá-la e colocar sua resposta em palavras; talvez fosse apenas a quietude do estábulo vazio e escuro que fizeram suas palavras soarem ocas quando ele finalmente falou.

— Tudo deu errado — ele disse. — Marcharam sobre Nairn há duas noites e voltaram correndo ontem. Sua Alteza disse que eles iam fincar posição em Culloden; lorde George está lá agora, com as poucas tropas que conseguiu reunir.

Não pude reprimir um pequeno gemido ao ouvir o nome Culloden. Então, era ali. Apesar de tudo, iria acontecer, e nós estávamos ali.

Um tremor percorreu o corpo de Jamie também; vi os pêlos ruivos se arrepiarem em seus braços, mas sua voz não traiu nada da ansiedade que ele devia estar sentindo.

— As tropas... elas estão sem provisões para lutar. Lorde George não vê que elas têm que ter descanso e alimentos?

O som rangente que o velho Alec emitiu podia ter sido o espectro de uma risada.

— O que Sua Excelência sabe faz pouca diferença, rapaz. Sua Alteza assumiu o comando do exército. E Sua Alteza diz que devemos enfrentar os ingleses em Drumossie. Quanto a alimentos... — As sobrancelhas do idoso homem eram grossas e arrepiadas, tendo ficado inteiramente brancas no último ano, com pêlos ásperos projetando-se para fora. Uma das sobrancelhas ergueu-se agora, pesadamente, como se mesmo essa pequena mudança de expressão fosse exaustiva. Uma das mãos tortuosas e nodosas da artrite remexeu-se em seu colo, indicando as baias vazias.

— Comeram os cavalos no mês passado — ele disse simplesmente. -Quase não houve mais nada para comer depois disso.

Jamie levantou-se bruscamente e apoiou-se contra a parede, a cabeça abaixada, em choque. Eu não podia ver seu rosto, mas seu corpo estava rígido como as tábuas do estábulo.

— Sim — ele disse finalmente. — Sim. Meus homens... eles tiveram sua parte da carne? Donas... ele era... um cavalo de grande porte. — Falou serenamente, mas eu vi pela repentina agudeza do olhar de um só olho de Alec que ele também ouviu, assim como eu, o esforço que impedia a voz de Jamie de alquebrar-se.

O velho ergueu-se lentamente do feno, o corpo aleijado movendo-se com dolorosa deliberação. Colocou uma das mãos tortuosas no ombro de Jamie; os dedos deformados pela artrite não conseguiam se fechar, mas a mão continuou pousada ali, um peso morto, mas reconfortante.

— Não mataram Donas — ele disse serenamente. — Pouparam-no, para o príncipe Tcharlach montar, era seu retorno triunfal a Edimburgo. O'Sulli-van disse que não seria... apropriado... que Sua Alteza marchasse a pé.

Jamie cobriu o rosto com as mãos e ficou tremendo contra as tábuas do estábulo vazio.

— Sou um tolo — disse finalmente, arquejante, tentando recuperar o fôlego. — Ah, meu Deus, eu sou um tolo. — Deixou cair as mãos, mostrando o rosto, as lágrimas escorrendo pela sujeira da viagem. Passou as costas da mão pela face, mas as lágrimas continuavam a brotar de seus olhos, como se fosse um processo inteiramente fora do seu controle.

— A causa está perdida, meus homens estão sendo levados a um massacre, há homens mortos apodrecendo no bosque... e eu estou chorando por um cavalo! Ah, meu Deus — ele sussurrou, sacudindo a cabeça. — Sou um idiota.

O peito do velho Alec ergueu-se com um suspiro e sua mão deslizou pesadamente pelo braço de Jamie.

— Ainda bem que você consegue chorar, rapaz — ele disse. — Eu mesmo já passei disso.

O velho dobrou uma perna desajeitadamente no joelho e abaixou-se outra vez. Jamie ficou parado por um instante, olhando para baixo, fitando o Velho Alec. As lágrimas ainda rolavam incontidas pelo seu rosto, mas era como a chuva lavando uma superfície de granito polido. Em seguida, ele tomou meu cotovelo e afastou-se sem uma palavra.

Olhei para trás, para Alec, quando chegamos à porta do estábulo. Ele permanecia sentado absolutamente imóvel, uma forma escura, corcunda, envolta em seu xale, o único olho azul tão cego quanto o outro.

Os homens espalhavam-se pela casa, exaustos, procurando o esquecimento da fome torturante e do conhecimento do desastre certo e iminente. Não havia nenhuma mulher ali; aqueles chefes cujas mulheres do clã os haviam acompanhado já as enviaram de volta em segurança — a ruína iminente lançava uma longa sombra.

Jamie deixou-me com uma palavra apenas murmurada ao chegarmos à porta que levava aos aposentos temporários do príncipe. Minha presença de nada adiantaria. Caminhei silenciosamente pela casa, sussurrante com a respiração pesada de homens dormindo, o ar carregado do embotamento do desespero.

Na parte mais alta da casa, encontrei um pequeno quarto de despejo. Abarrotado de ferro-velho e móveis descartados, não era ocupado por ninguém. Deslizei para dentro deste depósito de velharias, sentindo-me um pequeno roedor, buscando refúgio de um mundo em que forças misteriosas e poderosas estavam soltas para fazer grassar a destruição.

Havia uma única e minúscula janela, cheia da manhã cinza e nebulosa. Esfreguei a sujeira de uma das vidraças com a ponta do meu manto, mas não havia nada a ser visto, além da neblina onipresente. Encostei a testa contra o vidro frio. Em algum lugar lá fora estava o Campo de Culloden, mas eu não via nada além da silhueta turva de meu próprio reflexo.

As notícias da morte misteriosa e macabra do duque de Sandringham haviam chegado ao príncipe Carlos, eu soube; ouvíramos isso da boca de quase toda pessoa com quem falamos durante o trajeto para o norte e tornou-se seguro para nós nos apresentarmos outra vez. O que exatamente nós havíamos feito?, perguntava-me. Havíamos arruinado de maneira definitiva a causa jacobita na aventura daquela única noite ou havíamos inadvertidamente salvo Carlos Stuart de uma armadilha inglesa? Corri o dedo com um rangido agudo pelo vidro enevoado, marcando mais um fato que eu jamais iria descobrir.

Pareceu que um longo tempo transcorrera até eu ouvir um passo nas tábuas sem tapete da escada do lado de fora de meu refúgio. Dirigi-me à porta e encontrei Jamie chegando ao patamar. Um olhar para seu rosto foi suficiente.

— Alec tinha razão — ele disse, sem preliminares. Os ossos de sua face destacavam-se sob a pele, mais proeminentes pela fome e mais aguçados pela raiva. -As tropas locomovem-se para Culloden... do jeito que podem. Não comem nem dormem há dois dias, não há munição para o canhão... mas eles continuam em frente. — A raiva eclodiu repentinamente e seu punho cerrado abateu-se violentamente sobre uma mesa frágil. Uma cascata de pequenas vasilhas de latão de uma pilha de entulho doméstico acordou os ecos do sótão com uma barulhada infernal.

Com um gesto impaciente, arrancou a adaga do cinto e fincou-a violentamente na mesa, onde ela ficou espetada, tremendo com a força do golpe.

— Os camponeses dizem que se você vir sangue em sua adaga, isso significa morte. — Respirou fundo com um som sibilante, o punho cerrado sobre a mesa. — Bem, eu vi! E todos eles também viram. Eles sabem... Kilmarnock, Lochiel e todo o resto. E de nada adianta saber disso!

Abaixou a cabeça, as mãos agarradas à mesa, olhando fixamente para a adaga. Ele parecia grande demais para o aposento acanhado, uma presença furiosa, ardendo em brasa, que podia irromper em chamas a qualquer momento. Ao invés disso, lançou os braços para o alto e jogou-se sobre um velho banco de madeira, onde ficou sentado com a cabeça enterrada nas mãos.

— Jamie — eu disse, engolindo em seco. Mal conseguia pronunciar as palavras seguintes, mas tinham que ser ditas. Eu já conhecia as notícias que ele traria e havia pensado no que ainda poderia ser feito. — Jamie. Resta apenas uma coisa... uma última possibilidade.

Sua cabeça estava abaixada, a testa pousada nos nós dos dedos. Ele sacudiu a cabeça, sem olhar para mim.

— Não há nenhum jeito — ele disse. — Ele está decidido. Murray tentou dissuadi-lo, Lochiel também. Balmerino. Eu. Mas os homens estão de pé lá na planície neste mesmo instante. Cumberland partiu para Drumossie. Não há jeito.

As artes da cura são poderosas e qualquer médico versado no uso de substâncias que curam também conhece o poder daquelas que causam dano. Eu dera a Colum o cianureto que ele não teve tempo de usar e tomara de volta o frasco mortífero da mesa junto à cama onde seu corpo repousava. Estavam em minha caixa agora, os cristais grosseiramente destilados de um pálido branco-acastanhado, enganadoramente inofensivo na aparência.

Minha boca estava tão seca que não consegui falar imediatamente. Havia um resto de vinho em meu frasco; bebi-o, o gosto acre como bile em minha língua.

— Há um único modo — eu disse. — Apenas um.

A cabeça de Jamie continuou afundada entre as mãos. Fora uma longa viagem e o choque das notícias de Alec havia acrescentado depressão ao seu cansaço. Havíamos nos desviado para encontrarmos seus homens, ou a maior parte deles, um bando maltrapilho, desgraçado, indistinguíveis dos esqueléticos Fraser de Lovat que os rodeavam. A entrevista com Carlos foi muito além da última gota.

— Sim? — ele disse.

Hesitei, mas eu tinha que falar. A possibilidade tinha que ser mencionada; quer ele — ou eu — pudéssemos executá-la ou não.

— É Carlos Stuart — eu disse, finalmente. — É ele... tudo. A batalha, a guerra... tudo depende dele, não vê?

— Sim? —Jamie olhava para mim agora, os olhos vermelhos curiosos.

— Se ele estivesse morto... — murmurei finalmente.

Os olhos de Jamie cerraram-se e os últimos vestígios de sangue drenaram de seu rosto.

— Se ele morresse... agora. Hoje. Ou esta noite. Jamie, sem Carlos, não há nada pelo qual lutar. Ninguém para ordenar que os homens marchem para Culloden. Não haveria batalha.

Os longos músculos de sua garganta ondularam brevemente quando ele engoliu em seco. Ele abriu os olhos e fitou-me, horrorizado.

— Santo Deus — murmurou. — Santo Deus, você não pode estar falando sério.

Minha mão fechou-se sobre o cristal esfumaçado, em seu engaste de ouro, pendurado em meu pescoço.

Haviam me chamado para atender o príncipe, antes de Falkirk. O'Sullivan, Tullibardine e os outros. Sua Alteza estava doente — uma indisposição, disseram. Eu examinara Carlos, fiz com que desnudasse o peito e os braços, examinei sua boca e o branco de seus olhos.

Era escorbuto e diversas outras doenças de desnutrição. Disse isso a eles.

— Bobagem! — disse Sheridan, ultrajado. — Sua Alteza não pode sofrer de comichão, como um camponês comum!

— Ele tem comido como um deles — retorqui. — Ou talvez pior do que um deles. — Os camponeses eram obrigados a comer cebolas e repolho não tendo mais nada. Desdenhando a comida barata, Sua Alteza e seus conselheiros comiam carne... e quase nada além disso. Olhando ao redor do círculo de rostos assustados, indignados, vi poucos que não apresentavam sintomas da falta de alimentos frescos. Dentes moles ou faltando, gengivas inchadas, sangrando, os folículos cheios de pus, coçando, que tão abundantemente decoravam a pele branca de Sua Alteza.

Eu detestava abrir mão de qualquer porção dos meus preciosos frutos de roseira brava e frutas silvestres secas, mas me ofereci, com relutância, para fazer um chá com eles para o príncipe. A oferta fora rejeitada, com um mínimo de cortesia, e eu compreendi que Archie Cameron fora convocado, com sua tigela de sanguessugas e sua lanceta, para ver se uma liberação do sangue real aliviaria a coceira real.

— Eu poderia fazê-lo — eu disse. Meu coração batia com tanta força no meu peito que eu mal conseguia respirar. — Eu poderia lhe preparar uma poção. Acho que conseguiria persuadi-lo a bebê-la.

— E se ele morresse depois de tomar seu remédio? Santo Deus, Claire! Eles a matariam ali mesmo.

Enfiei minhas mãos sob os braços cruzados, tentando aquecê-las.

— I-isso importa? — perguntei, procurando desesperadamente estabilizar minha voz. A verdade é que importava, sim. Neste momento, minha própria vida pesava bem mais na balança do que as centenas que eu pudesse salvar. Cerrei os punhos, tremendo de pavor, um camundongo nas mandíbulas da armadilha.

Jamie surgiu ao meu lado no mesmo instante. Minhas pernas não me obedeciam; ele praticamente me carregou para o banco quebrado e se sentou comigo, os braços envolvendo-me com força.

— Você tem a coragem de um leão, mo duinne — ele murmurou no meu ouvido. — De um urso, de um lobo! Mas você sabe que eu não vou deixar você fazer isso.

Os tremores abrandaram-se, embora eu ainda sentisse frio e náuseas com a gravidade daquilo que eu estava propondo.

— Deve haver algum outro modo — eu disse. — Há pouca comida, mas o pouco que há vai para o príncipe. Acho que não seria difícil acrescentar alguma coisa ao seu prato sem ser notada; tudo está completamente desorganizado. — Isso era verdade; por toda a casa, os oficiais dormiam sobre mesas e no assoalho, ainda calçados com suas botas, cansados demais para descansar as armas. A casa estava um caos, com constantes idas e vindas. Seria simples distrair um criado tempo suficiente para acrescentar um pó mortal à refeição da noite.

O terror imediato havia aplacado um pouco, mas o horror da minha proposta demorava-se, como veneno, esfriando meu próprio sangue. O braço de Jamie apertou-se por um instante em torno dos meus ombros, depois se afastou, conforme ele contemplava a situação.

A morte de Carlos Stuart não poria fim à questão da revolta; as coisas haviam ido longe demais para isso. Lorde George Murray, Balmerino, Kilmarnock, Lochiel, Clanranald — todos nós éramos traidores, vidas e propriedade penhoradas à Coroa. O exército das Highlands estava em frangalhos; sem a figura de Carlos à frente para unir as tropas, ele se dissiparia como fumaça. Os ingleses, aterrorizados e humilhados em Preston e Falkirk, não hesitariam em perseguir os fugitivos, buscando recuperar sua honra perdida e lavar o insulto com sangue.

Era pouco provável que Henrique de York, o piedoso irmão mais novo de Carlos, já obrigado pelos votos eclesiásticos, tomasse o lugar de seu irmão para continuar a guerra pela restauração da monarquia Stuart. Não havia nada à frente, a não ser catástrofe e devastação, e nenhuma maneira de evitá-las. Tudo que poderia ser salvo agora eram as vidas dos homens que iriam morrer na charneca amanhã.

Foi Carlos quem escolheu lutar em Culloden, Carlos cuja autocracia míope e teimosa desafiara os conselhos de seus próprios generais e levara adiante a invasão da Inglaterra. E se a oferta de Sandringham seria para o bem ou para o mal, a resposta morrera com ele. Não havia nenhum suporte proveniente do sul; os ingleses jacobitas que existissem não acorreram como se esperava ao estandarte de seu rei. Forçado a recuar, Carlos escolhera aquele último e obstinado posto de resistência, para colocar homens famintos, exaustos e mal equipados numa frente de batalha na charneca alagada pela chuva, e enfrentar a ira do fogo dos canhões de Cumberland. Uma vida, contra duas mil. Uma vida — mas uma vida real, e tirada não em combate, mas a sangue-frio.

O pequeno aposento onde estávamos sentados tinha uma lareira, mas o fogo não fora aceso — não havia combustível. Jamie permaneceu sentado, fitando-a, como se buscasse uma resposta em chamas invisíveis. Assassinato. Não apenas assassinato, mas regicídio. Não apenas assassinato, mas a morte de quem um dia foi amigo.

E no entanto — os homens dos clãs das Highlands já tremiam na charneca descampada, remexendo-se em suas fileiras cerradas enquanto o plano de batalha era ajustado, reorganizado, reordenado, conforme outros homens chegavam para se unir às tropas. Entre eles, estavam os MacKenzie de Leoch, os Fraser de Beauly, quatrocentos homens do mesmo sangue de Jamie. E os trinta homens de Lallybroch, seus próprios homens.

Seu rosto estava pálido, imóvel, enquanto ele pensava, mas as mãos entrelaçadas sobre o joelho crispavam-se com força, evidenciando a luta que ele travava. Os dedos aleijados e os sãos contorciam-se, enlaçados. Sentei-me ao lado dele, mal ousando respirar, aguardando sua decisão.

Finalmente, exalou o ar dos pulmões com um suspiro quase inaudível e voltou-se para mim, um olhar de indescritível tristeza no rosto.

— Não posso — sussurrou. Sua mão tocou meu rosto de leve, envolvendo minha face. — Quisera Deus que eu pudesse, Sassenach. Não posso fazer isso.

A onda de alívio que me inundou deixou-me sem fala, mas ele viu o que eu sentia e segurou minhas mãos entre as suas.

— Ah, Deus, Jamie, ainda bem, fico feliz com isso! — sussurrei.

Ele abaixou a cabeça sobre minhas mãos. Virei o rosto para colocar minha face contra seus cabelos, e congelei.

Na soleira da porta, observando-me com um olhar de absoluta repugnância, estava Dougal MacKenzie.

Ele envelhecera nos últimos meses; a morte de Rupert, as noites insones de discussões estéreis, as tensões da difícil campanha e agora a amargura da derrota iminente. Havia cabelos grisalhos na barba castanho-avermelhada, um tom acinzentado na pele e profundos sulcos no rosto que não estavam lá em novembro. Com um choque, compreendi que ele estava se parecendo com seu irmão, Colum. Ele quis ser o líder, Dougal MacKenzie. Agora ele herdara a chefia do clã e estava pagando o preço.

— Imunda... traiçoeira... vagabunda... bruxa.

Jamie deu um salto como se tivesse levado um tiro, o rosto branco como a neve do lado de fora. Pus-me de pé num pulo, virando o banco com um barulho que ecoou pelo quarto.

Dougal MacKenzie avançou lentamente em minha direção, afastando as pregas do seu manto, de modo que o punho de sua espada ficasse livre para a sua mão. Eu não ouvira a porta abrir-se atrás de mim; deve ter ficado aberta. Há quanto tempo ele estivera do outro lado, ouvindo?

— Você — ele disse baixinho. — Eu devia ter sabido; desde a primeira vez que a vi, eu devia ter sabido. — Seus olhos estavam fixos em mim, algo entre o horror e a fúria nas profundezas verdes e enevoadas.

O ar agitou-se repentinamente ao meu lado; Jamie estava ali, a mão em meu braço, puxando-me para trás dele.

— Dougal — ele disse. — Não é o que você pensa. É...

— Não? — Dougal interrompeu-o. Seu olhar abandonou-me por um instante e eu encolhi-me atrás de Jamie, grata pela trégua.

— Não é o que eu penso? — ele disse, ainda falando brandamente. -Ouço a mulher instando-o a cometer um terrível assassinato, o assassinato de nosso príncipe! Não só um vil assassinato, mas traição também! E você me diz que eu não ouvi o que ouvi? — Sacudiu a cabeça, os cachos marrom-dourados embaraçados, lânguidos e oleosos, caídos sobre os ombros. Como todos nós, ele estava passando fome; os ossos saltavam do seu rosto, mas os olhos ardiam das órbitas escuras.

— Eu não o culpo, rapaz — ele disse. Sua voz soou cansada e eu me lembrei que ele era um homem de mais de cinqüenta anos. — Não é culpa sua, Jamie. Ela o enfeitiçou, qualquer um pode ver isso. — Sua boca contorceu-se quando olhou de novo para mim.

— Sim, eu sei muito bem como tem sido para você. Ela me lançou o mesmo feitiço, um dia. — Seus olhos varreram-me de cima a baixo, em brasa. — Uma vadia, assassina e mentirosa, pegaria um homem pelo pau e o levaria à sua desgraça, com as garras cravadas em suas bolas. Esse é o feitiço que lançam em você, rapaz, ela e a outra bruxa. Levam você para as suas camas e roubam a sua alma enquanto você dorme com a cabeça em seus seios. Elas tomam sua alma e devoram sua masculinidade, Jamie.

Colocou a língua para fora e umedeceu os lábios. Ainda me fitava intensamente e sua mão apertou-se no punho da espada.

— Afaste-se, rapaz. Vou livrá-lo da vagabunda sassenach.

Jamie deu um passo adiante e colocou-se à minha frente, momentaneamente bloqueando a minha visão de Dougal.

— Você está cansado, Dougal — ele disse, falando baixo e devagar, procurando acalmá-lo. — Cansado e ouvindo coisas. Desça agora. Eu vou...

Não teve chance de terminar. Dougal não o ouvia; os olhos verdes e fundos estavam fixos em meu rosto, e o chefe dos MacKenzie sacara a adaga da bainha em sua cintura.

— Vou cortar sua garganta — ele me disse num sussurro. — Eu devia ter feito isso desde a primeira vez que a vi. Teria poupado muito sofrimento a todos nós.

Eu não tinha certeza se ele não estava certo, mas isso não significava que eu tivesse a intenção de deixar que ele remediasse a questão. Dei três passos rápidos para trás e esbarrei na mesa.

— Para trás, Dougal! — Jamie atirou-se à minha frente, o braço erguido como um escudo, quando Dougal avançou para mim.

O chefe dos MacKenzie sacudiu a cabeça, como um touro, os olhos vermelhos fixos em mim.

— Ela é minha — ele disse com voz rouca. — Bruxa. Traidora. Saia do caminho, rapaz. Não quero feri-lo, mas, juro por Deus, se proteger essa mulher, eu o matarei também, filho adotivo ou não.

Ele empurrou Jamie, agarrando meu braço. Apesar de exausto, faminto, e mais velho como estava, ele ainda era um homem colossal e seus dedos penetraram fundo em minha carne.

Dei um grito de dor e chutei-o freneticamente quando ele me puxou para si com um safanão. Ele agarrou-me pelos cabelos e forçou minha cabeça para trás violentamente. Eu sentia seu hálito quente e acre em meu rosto. Gritei e o ataquei, enfiando as unhas em seu rosto num esforço para me libertar.

O ar explodiu dos seus pulmões quando o punho de Jamie golpeou-o nas costelas e a mão que agarrava meus cabelos soltou-se quando o outro punho de Jamie desceu num soco sobre a ponta de seu ombro, deixando-o dormente. Inesperadamente livre, caí para trás, contra a mesa, gemendo de choque e de dor.

Dougal girou nos calcanhares para encarar Jamie, agachando-se na posição de luta, brandindo a adaga, a lâmina apontando para cima.

— Que assim seja, então — ele disse, respirando pesadamente. Oscilou um pouco de um lado para o outro, deslocando o peso do corpo, procurando uma posição vantajosa. — O sangue não mente. Fraser desgraçado. A traição corre em suas veias. Venha, cria de raposa. Vou matá-lo rápido, em consideração a sua mãe.

Havia pouco espaço para manobra no pequeno sótão. Não dava para sacar uma espada; com sua adaga fincada no tampo da mesa, Jamie estava efetivamente desarmado. Ele adotou a mesma postura de Dougal, os olhos vigilantes, fixos na ponta da ameaçadora adaga.

— Abaixe a arma, Dougal — ele disse. — Se tem consideração por minha mãe, então me escute, por ela!

O MacKenzie não respondeu, mas atacou repentinamente, um golpe de baixo para cima, destinado a estripar o adversário.

Jamie esquivou-se para o lado e esquivou-se de novo do amplo giro do braço armado que veio do outro lado. Jamie possuía a agilidade da juventude a seu favor — mas Dougal tinha a arma.

Dougal investiu para frente e a adaga deslizou pela lateral do corpo de Jamie, rasgando sua camisa e cortando uma linha escura em sua carne. Com um silvo de dor, ele deu um salto para trás, tentando agarrar o pulso de Dougal, segurando-o quando a lâmina desceu num golpe fulminante.

O brilho fosco da lâmina fulgurou uma única vez e desapareceu entre os corpos em luta. Continuaram o embate, unidos como amantes, o ar impregnado do cheiro de suor masculino e fúria. A lâmina ergueu-se outra vez, duas mãos agarradas ao cabo redondo. Uma mudança de posição, um puxão, um repentino grunhido de esforço, um de dor. Dougal recuou, aturdido, o rosto congestionado e escorrendo suor, o cabo da adaga se projetando da base de sua garganta.

Jamie desequilibrou-se, arfando, e apoiou-se na mesa. Seus olhos estavam escuros de choque e seus cabelos encharcados de suor, as beiradas do rasgo de sua camisa tintas de sangue do corte.

Ouviu-se um som terrível de Dougal, um som de choque e respiração interrompida. Jamie segurou-o quando ele cambaleou e caiu, o peso de Dougal derrubando-o de joelhos. A cabeça de Dougal apoiou-se no ombro de Jamie, os braços de Jamie enlaçando o corpo de seu pai adotivo.

Caí de joelhos ao lado dos dois, tentando ajudar, estendendo os braços para segurar Dougal. Era tarde demais. O enorme corpo ficou flácido, depois estremeceu com um espasmo, deslizando do abraço de Jamie. Dougal ficou encolhido no chão, os músculos sacudindo-se em convulsões involuntárias, lutando como um peixe fora d'água.

Sua cabeça ficou apoiada na coxa de Jamie. Um espasmo para cima deixou seu rosto à mostra. Estava contorcido, roxo, os olhos apenas duas fendas. Sua boca movia-se continuadamente, dizendo alguma coisa, falando com grande esforço — mas sem som, a não ser pelo ruído áspero e bor-bulhante de sua garganta arruinada.

O rosto de Jamie estava lívido; aparentemente ele conseguia compreender o que Dougal dizia. Jamie lutava com todas as forças, tentando segurar o corpo que se debatia violentamente. Houve um último espasmo, seguido de um terrível som chocalhante, e Dougal MacKenzie ficou imóvel, as mãos de Jamie agarradas a seus ombros, como se quisesse impedi-lo de sacudir-se outra vez.

— Que Deus nos acuda! — O murmúrio rouco veio da porta. Era Willie Coulter MacKenzie, um dos homens de Dougal. Olhava com horror e estupefação para o corpo de seu chefe. Uma pequena poça de urina formava-se sob o corpo, escorrendo por baixo do xale esparramado. O homem benzeu-se, sem desviar os olhos arregalados.

— Willie. — Jamie levantou-se, passando a mão trêmula pelo rosto. -Willie. — O homem parecia mudo de choque. Olhou para Jamie completamente aturdido, a boca aberta.

— Eu preciso de uma hora, Willie. — Jamie havia colocado a mão no ombro de Willie Coulter, conduzindo-o para dentro do aposento. — Uma hora para colocar minha mulher em segurança. Então, eu voltarei para responder por isso. Dou-lhe minha palavra, pela minha honra. Mas tenho que ter uma hora. Uma hora. Você me dá uma hora, Willie, antes de falar?

Willie umedeceu os lábios secos, olhando do corpo de seu chefe para o sobrinho do líder dos MacKenzie, obviamente apavorado. Por fim, assentiu, claramente sem saber o que fazer, preferindo atender seu pedido porque nenhuma alternativa razoável se apresentava.

— Ótimo. — Jamie engoliu com força e limpou o rosto em seu xale. Bateu de leve no ombro de Willie. — Fique aqui, rapaz. Reze pela alma dele — indicou a forma imóvel no chão com um movimento da cabeça, sem olhar em sua direção — e pela minha. — Inclinou-se para trás de Willie para arrancar sua adaga da mesa, depois me empurrou à sua frente, pela porta e pelas escadas abaixo.

No meio do lance de escadas, ele parou, apoiando-se contra a parede com os olhos fechados. Respirou fundo várias vezes, de maneira entrecor-tada, como se estivesse prestes a desmaiar, e eu coloquei a mão em seu peito, assustada. Seu coração batia como um tambor e ele tremia, mas após alguns instantes, ele aprumou-se, balançou a cabeça para mim e segurou meu braço.

— Preciso de Murtagh — ele disse.

Encontramos o escocês logo ao sair, a cabeça coberta com o xale para se proteger da chuva misturada a neve, sentado em um lugar seco sob as calhas da casa. Fergus estava enrascado a seu lado, cochilando, cansado da longa viagem.

Murtagh olhou o rosto de Jamie e levantou-se, sinistro e austero, pronto para o que fosse necessário.

— Matei Dougal MacKenzie —Jamie disse direto, sem rodeios.

O rosto de Murtagh ficou lívido por um instante, depois sua expressão normal, desconfiada e ameaçadora, se refez.

— Sim — ele disse. — O que é preciso fazer, então?

Jamie remexeu na bolsa de seu kilt e retirou um papel dobrado. Suas mãos tremiam enquanto ele tentava desdobrá-la e eu a tirei de suas mãos, estendendo-a sob o abrigo das calhas.

“Transferência de propriedade”, lia-se no alto da folha. Era um documento curto, escrito em algumas poucas linhas pretas, transferindo a posse da propriedade conhecida por Broch Tuarach a James Jacob Fraser Murray, a ser mantida em custódia e administrada pelos pais do referido James Murray, Janet Fraser Murray e Ian Gordon Murray, até a maioridade do referido James Murray. A assinatura de Jamie estava embaixo e havia dois espaços em branco sob ela, cada qual com a palavra “Testemunha” escrita ao lado. Estava datado de primeiro de julho de 1745 — um mês antes de Carlos Stuart deslanchar sua rebelião nas praias da Escócia e fazer de Jamie Fraser um traidor da Coroa.

— Preciso que você assine isso, você e Claire —Jamie disse, pegando o documento das minhas mãos e entregando-o a Murtagh. — Mas isso significa cometer perjúrio; não tenho nenhum direito de lhe pedir isso.

Os pequenos olhos negros de Murtagh varreram o documento rapidamente.

— Não — ele disse secamente. — Não tem direito nem necessidade tampouco.

— Cutucou Fergus com o pé e o garoto sentou-se completamente ereto, piscando.

— Vá lá dentro e traga tinta e uma pena para o seu chefe, garoto -Murtagh disse. — E seja rápido, ande!

Fergus sacudiu a cabeça uma vez para clareá-la, lançou um olhar para Jamie em busca de um sinal de confirmação — e partiu.

A água da chuva pingava da calha e descia pela minha nuca. Estremeci e puxei o arisaid de lã mais apertado em volta dos meus ombros. Perguntei-me quando Jamie redigira o documento. A data falsa fazia parecer que a propriedade fora transferida antes de Jamie tornar-se um traidor, com seus bens e terras sujeitos a confisco — se não fosse questionado, a propriedade passaria em segurança para o pequeno Jamie. Ao menos a família de Jenny ficaria a salvo, ainda de posse das terras e da casa da fazenda.

Jamie antevira a possível necessidade daquela transferência; entretanto, ele não executara o documento antes de deixarmos Lallybroch; de algum modo, ele esperara que pudéssemos retornar e reclamar seu próprio título outra vez. Agora isso era impossível, mas a propriedade ainda podia ser salva do confisco. Não havia ninguém para dizer quando o documento realmente fora assinado — a não ser as testemunhas, eu e Murtagh.

Fergus retornou, arquejante, com um pequeno tinteiro de vidro e uma pena em mau estado. Assinamos, apoiados contra a parede da casa, tomando o cuidado de sacudir a pena antes para impedir que a tinta respingasse. Murtagh assinou primeiro; vi que seu primeiro sobrenome era FitzGibbons.

— Quer que eu leve isso a sua irmã? — Murtagh perguntou enquanto eu sacudia o papel cuidadosamente para secá-lo.

Jamie sacudiu a cabeça. A chuva fazia nódoas molhadas, do tamanho de uma moeda, em seu xale e brilhavam em suas pestanas como lágrimas.

— Não. Fergus a levará.

— Eu? — Os olhos do garoto arregalaram-se de surpresa.

— Você mesmo, rapaz. — Jamie pegou o documento de minhas mãos, dobrou-o, depois se ajoelhou e enfiou-o dentro da camisa de Fergus.

— Isso tem que chegar às mãos de minha irmã, madame Murray, sem falta. Vale mais do que a minha vida, rapaz... ou a sua.

Praticamente sem ar com a enormidade da responsabilidade que lhe era confiada, Fergus aprumou-se, as mãos apertadas sobre o peito.

— Não o desapontarei, milorde!

Um débil sorriso atravessou os lábios de Jamie e ele pousou a mão por um breve instante nos cabelos lisos de Fergus.

— Eu sei disso, rapaz, e sou-lhe grato — ele disse. Tirou o anel da sua mão esquerda; o cabochão de rubi que pertencera a seu pai. — Tome — ele disse, entregando-o a Fergus. — Vá ao estábulo e mostre isso ao velho que encontrará lá. Diga-lhe que eu disse que você deve levar Donas. Monte o cavalo e parta para Lallybroch. Não pare para nada, exceto para o que for necessário, para dormir, e quando dormir, esconda-se bem.

Fergus estava sem fala de ansiedade e empolgação, mas Murtagh franziu a testa para ele, com ar de dúvida.

— Acha que o menino pode controlar aquele seu animal perverso? -disse.

— Sim, pode — Jamie disse com firmeza. Emocionado, Fergus gaguejou, depois se prostrou de joelhos e beijou a mão de Jamie fervorosamente. Pondo-se de pé num salto, saiu correndo em direção ao estábulo, sua figura mirrada desaparecendo na neblina.

Jamie umedeceu os lábios secos, então, virou-se, decidido, para Murtagh.

— E você — mo caraidh — preciso que reúna os homens.

As sobrancelhas delineadas de Murtagh se ergueram, mas ele simplesmente assentiu com um movimento de cabeça.

— Sim — disse ele -, e quando terei de fazer isso?

Jamie olhou para mim, depois se voltou para seu padrinho.

— Já devem estar na charneca agora, eu acho, com o Jovem Simon. Reúna-os em um único lugar. Vou deixar minha mulher a salvo e depois... — Hesitou, em seguida deu de ombros. — Eu o encontrarei. Espere por mim.

Murtagh assentiu mais uma vez e virou-se para ir embora. Então, parou e voltou-se para encarar Jamie. A boca fina torceu-se ligeiramente e ele disse:

— Eu só lhe pediria uma coisa, rapaz... que sejam os ingleses. Não o seu próprio povo.

Jamie hesitou um pouco, mas após um instante, assentiu. Depois, sem falar, estendeu os braços para o escocês mais velho. Abraçaram-se rapidamente, com força, e Murtagh, também, foi embora, com um giro do tartã esfarrapado.

Eu era a última providência a ser tomada na agenda.

— Vamos, Sassenach — ele disse, segurando-me pelo braço. — Precisamos ir. Ninguém nos deteve; havia tanto movimento de ida e vinda pelas estradas que mal fomos notados enquanto estávamos perto da charneca. Mais longe, quando deixamos a estrada principal, não havia ninguém para nos ver.

Jamie estava mergulhado no mais completo silêncio, concentrando-se unicamente na tarefa à mão. Eu também não lhe disse nada, ocupada demais com meu próprio estado de choque e pavor para querer conversar.

“Vou deixar minha mulher a salvo.” Eu não sabia o que ele queria dizer com isso, mas tornou-se óbvio depois de duas horas, quando ele virou a cabeça de seu cavalo mais para o sul e a colina íngreme e verde chamada Craigh na Dun surgiu no horizonte.

— Não! — eu disse ao vê-la e perceber para onde estávamos nos dirigindo. — Jamie, não! Eu não vou!

Ele não me respondeu, apenas esporeou o cavalo e galopou à frente, não me deixando outra opção senão segui-lo.

Meus sentimentos agitavam-se num turbilhão; além da desgraça da batalha prestes a ser travada e do horror da morte de Dougal, agora havia a expectativa das pedras. Aquele círculo maldito, através do qual eu viera parar ali. Obviamente, Jamie pretendia enviar-me de volta, de volta a meu próprio tempo — se isso fosse possível.

Ele podia pretender o que quisesse, pensei, trincando os maxilares de determinação enquanto o seguia pela estreita trilha através das urzes. Não havia nada neste mundo que pudesse me fazer deixá-lo agora.

Ficamos parados na encosta da colina, no pequeno pátio de entrada da cabana em ruínas que ficava abaixo do cume da colina. Há anos ninguém morava ali; os habitantes do local diziam que o pequeno monte era assombrado — a colina das fadas.

Jamie em parte me empurrara, em parte me arrastara colina acima, sem dar ouvidos a meus protestos. Mas ao chegarmos à cabana, ele parou e deixou-se cair no chão, o peito arfando enquanto se esforçava para respirar.

— Está tudo bem — ele disse finalmente. — Temos um pouco de tempo agora. Ninguém nos encontrará aqui.

Sentou-se no chão, enrolado em seu xale para aquecer-se. Parara de chover agora, mas o vento soprava frio das montanhas próximas, onde a neve ainda encobria os picos e obstruía as passagens. Deixou a cabeça pender para frente, sobre os joelhos, exausto da fuga.

Sentei-me a seu lado, encolhida dentro do meu manto, e senti sua respiração gradualmente se normalizar enquanto o pânico diminuía. Permanecemos sentados em silêncio por um longo tempo, com medo de nos movermos no que parecia ser um posto precário acima do caos abaixo. Caos que eu sentia que ajudara a criar.

— Jamie — eu disse, finalmente. Estendi a mão para tocá-lo, mas retirei-a e deixei-a pender. — Jamie... eu sinto muito.

Ele continuou a fitar o vazio cada vez mais escuro da charneca embaixo. Por um instante, achei que ele não tivesse me ouvido. Ele fechou os olhos. Em seguida, sacudiu a cabeça muito levemente.

— Não — disse num sussurro. — Não é preciso.

— É preciso, sim. — A tristeza quase me sufocava, mas eu sentia que devia falar; dizer-lhe que eu sabia o que lhe causara.

— Eu devia ter voltado. Jamie... se eu tivesse ido embora, naquela ocasião, quando você me trouxe aqui de Cranesmuir... talvez então...

— Sim, talvez — ele interrompeu. Virou-se abruptamente para mim e pude sentir seus olhos penetrando-me. Havia nostalgia ali e uma tristeza que se igualava à minha, mas nenhuma raiva, nenhuma reprovação.

Ele sacudiu a cabeça outra vez.

— Não — disse novamente. — Sei o que quer dizer, mo duinne. Mas não é assim. Se tivesse ido naquela vez, talvez as coisas ainda acontecessem do mesmo jeito. Talvez sim, talvez não. Talvez tivessem acontecido antes ou de modo diferente. Talvez... apenas talvez... não tivessem absolutamente acontecido. Mas outras pessoas além de nós dois contribuíram para os acontecimentos e não quero que você assuma a culpa.

Sua mão tocou meus cabelos, afastando-os dos meus olhos. Uma lágrima rolou pelo meu rosto e ele pegou-a em seu dedo.

— Não é isso — eu disse. Lancei a mão à frente, para a escuridão, englobando os exércitos, Carlos, os homens famintos no bosque e o massacre que viria. — Não é isso. É o que eu fiz a você.

Ele sorriu, com grande ternura, e deslizou a palma da mão pelo meu rosto, quente em minha pele enregelada pelo ar frio da primavera.

— É mesmo? E o que eu fiz a você, Sassenach? Tirei você de seu lugar, levei-a à pobreza e a uma vida fora-da-lei, levei-a através de campos de batalha e arrisquei sua vida. Você me culpa por isso?

— Sabe que não. Ele sorriu.

— Sim, bem; nem eu a culpo, Sassenach. — O sorriso desapareceu de seu rosto quando ele ergueu os olhos para o topo da colina acima de nós. As pedras eram invisíveis de onde estávamos, mas eu podia sentir sua ameaça, bem próxima.

— Eu não vou, Jamie — repeti teimosamente. — Vou ficar com você.

— Não. — Ele sacudiu a cabeça. Falou delicadamente, mas sua voz era firme, não admitindo nenhuma espécie de recusa. — Eu tenho que voltar, Claire.

— Jamie, você não pode! — Agarrei seu braço ansiosamente. — Jamie, eles já devem ter encontrado Dougal a essa altura! Willie Coulter já deve ter contado a alguém.

— Sim, deve. — Colocou a mão em meu braço e bateu nele de leve, tentando me confortar. Ele tomara sua decisão na viagem para a colina; eu podia ver isso em seu rosto anuviado, uma mistura de resignação e determinação.

Havia dor ali, e tristeza também, mas haviam sido afastadas; ele não tinha tempo para lamentação agora.

— Podíamos tentar fugir para a França — eu disse. — Jamie, temos que fazer isso! — Mas mesmo enquanto eu falava, sabia que não conseguiria dissuadi-lo do curso que ele traçara.

— Não — ele disse outra vez, serenamente. Virou-se e ergueu a mão, indicando o vale cada vez mais escuro abaixo, as colinas quase invisíveis ao longe. — O país está em guerra, Sassenach. Os portos estão fechados. O'Brien tem tentado nos últimos três meses trazer um navio para resgatar o príncipe, para levá-lo em segurança de volta à França. Dougal me contou... antes. — Um tremor percorreu seu rosto e um repentino espasmo de dor e pesar uniu suas sobrancelhas. Entretanto, ele afastou esses sentimentos e continuou, explicando com voz firme.

— Somente os ingleses estão perseguindo Carlos Stuart. Serão os ingleses e os chefes de clã que me perseguirão. Sou duplamente traidor, um rebelde e um assassino. Claire... — ele parou, esfregando a mão na nuca, depois disse suavemente. — Claire, eu sou um homem morto.

As lágrimas congelavam em meu rosto, deixando traços de gelo que queimavam minha pele.

— Não — eu disse outra vez, em vão.

— Não sou precisamente uma pessoa que possa passar despercebida, sabe disso — ele disse, tentando fazer um gracejo, enquanto corria a mão pelas mechas ruivas de seus cabelos. —Jamie, o Ruivo, não iria longe, eu acho. Mas você... — Tocou minha boca, traçando a linha dos meus lábios. — Eu posso salvá-la, Claire, e o farei. Isso é o mais importante de tudo. Mas depois devo voltar... pelos meus homens.

— Os homens de Lallybroch? Mas como?

Jamie franziu o cenho, distraidamente tocando o punho de sua espada enquanto pensava.

— Acho que consigo tirá-los de lá. Estará a maior confusão na charneca, com homens e cavalos indo e vindo de um lado para o outro, ordens sendo gritadas e contrariadas; as batalhas são algo muito confuso. E mesmo que já saibam a essa altura o que eu... o que eu fiz — ele continuou, com um tremor momentâneo na voz -, ninguém me deteria então, com os ingleses à vista e a batalha prestes a começar. Sim, eu posso fazer isso — ele disse. Sua voz se firmara e seus punhos cerraram-se ao lado do corpo com determinação.

— Eles me seguirão sem questionar... que Deus os ajude, foi isso que os trouxe até aqui! Murtagh deverá tê-los reunido para mim; eu os conduzirei para fora do campo de batalha. Se alguém tentar me impedir, devo dizer que reclamo o direito de liderar meus próprios homens na luta; nem mesmo o Jovem Simon me negará isso.

Respirou fundo, a testa franzida ao visualizar a cena no campo de batalha quando amanhecesse.

— Eu os levarei embora em segurança. O campo é bastante amplo e há muitos homens para que ninguém perceba que não estamos apenas mudando de posição. Eu os tirarei da charneca e os colocarei na estrada rumo a Lallybroch.

Calou-se, como se seus planos só tivessem chegado até esse ponto.

— E depois? — perguntei, sem querer saber a resposta, mas incapaz de silenciar.

— Depois voltarei a Culloden — ele disse, soltando a respiração ruidosamente. Deu-me um sorriso trêmulo. — Não tenho medo de morrer, Sassenach. — Sua boca contorceu-se ironicamente. — Bem... não muito, de qualquer forma. Mas de algumas maneiras de encontrar a morte... — Um estremecimento breve, involuntário, percorreu-o, mas ele tentou continuar a sorrir.

— Duvido que eu seja considerado digno dos serviços de um verdadeiro profissional, mas imagino que neste caso, tanto monsieur Forez quanto eu mesmo iríamos achar... estranho. Quero dizer, ter o coração arrancado por alguém com quem tomei vinho...

Com um som incoerente de desespero, lancei os braços ao seu redor, abraçando-o com todas as minhas forças.

— Está tudo bem — ele sussurrou em meus cabelos. — Está tudo bem, Sassenach. Uma bala de mosquete. Talvez uma lâmina de espada. Vai ser rápido.

Eu sabia que era uma mentira; eu já vira o suficiente de ferimentos de batalha e de mortes de guerreiros. Toda a verdade é que era melhor do que esperar pelo laço da forca. O terror que me acompanhara desde a propriedade de Sandringham erguia-se agora ao nível mais elevado, sufocando-me, devastando-me. Meus ouvidos latejavam com as próprias batidas do meu coração e um nó fechava minha garganta de tal forma que eu não conseguia respirar.

Então, de repente, o medo desapareceu. Eu não podia deixá-lo, e não o faria.

— Jamie — eu disse, nas dobras de seu xale. — Eu vou voltar com você. Ele recuou com um sobressalto, olhando-me fixamente.

— De jeito nenhum! — exclamou.

— Vou, sim. — Sentia-me muito calma, sem nenhum vestígio de dúvida. — Posso fazer um kilt de meu arisaid; há muitos rapazes bem novos no exército para que eu possa passar por um deles. Você mesmo disse que haverá uma grande confusão. Ninguém notará.

— Não! — ele exclamou. — Não, Claire! — Seu maxilar estava cerrado e ele me fitava intensamente com uma mistura de raiva e horror.

— Se você não tem medo, eu também não tenho — eu disse, cerrando meu próprio maxilar. — Tudo... terminará rápido. Você mesmo disse. -Meu queixo começava a tremer, apesar de minha determinação. — Jamie... eu não vou... eu não posso... eu decididamente não vou viver sem você e ponto final!

Ele abriu a boca, sem fala, em seguida fechou-a, sacudindo a cabeça. A luz acima das montanhas esvaía-se, pintando as nuvens com uma fosca claridade vermelha. Finalmente, ele estendeu os braços, puxou-me para bem junto de seu peito e abraçou-me com força.

— Acha que eu não sei? — perguntou num sussurro. — Sou eu quem vai ficar com a parte mais fácil agora. Porque se sente por mim o que eu sinto por você, então estou lhe pedindo para arrancar seu coração e viver sem ele. — Suas mãos alisaram meus cabelos, a aspereza dos nós de seus dedos agarrando-se aos fios esvoaçantes.

— Mas você tem que fazer isso, mo duinne. Minha leoa corajosa. Você tem que fazer.

— Por quê? — perguntei, afastando-me para fitá-lo. — Quando você me resgatou do julgamento de bruxas em Cranesmuir você disse que teria morrido comigo, que iria para a fogueira comigo, se chegasse a esse ponto.

Ele segurou minhas mãos, fitando-me com um olhar azul e firme.

— Sim, eu o faria — ele disse. — Mas eu não estava carregando seu filho. O vento me congelara; era o frio que me fazia tremer, eu disse a mim mesma. Era o frio que me deixava sem ar.

— Você percebeu — eu disse, finalmente. — É cedo demais para termos certeza.

Ele suspirou ruidosamente e um minúsculo lampejo de humor iluminou seus olhos.

— Ah, Sassenach, e eu não sou um fazendeiro?! Sassenach, você nunca atrasou nem um dia em suas menstruações, durante todo o tempo em que me levou para a sua cama. Você não menstrua há quarenta e cinco dias.

— Seu filho-da-mãe! — eu disse, indignada. — Você contou! No meio de uma maldita guerra, você contou!

— E você não!

— Não! — Eu não havia mesmo contado; tive medo demais de reconhecer a possibilidade de que aquilo pelo qual eu mais ansiara e rezara durante tanto tempo viesse a acontecer agora, tão terrivelmente tarde.

— Além do mais — continuei, ainda tentando negar a possibilidade —, isso não significa nada. A inanição pode causar isso; em geral acontece.

Ele ergueu uma das sobrancelhas e colocou a mão delicadamente sob meu seio.

— Sim, você está muito magra; mas apesar de descarnada, seus seios estão cheios... e os mamilos adquiriram a cor de uvas de champanhe. Você se esquece que eu já vi isso acontecer antes. Eu não tenho a menor dúvida... nem você.

Tentei conter a ânsia de vômito — tão facilmente tributável ao medo e à inanição -, mas senti o pequeno peso, repentinamente queimando em meu útero. Mordi o lábio com força, mas a náusea dominou-me.

Jamie soltou minhas mãos e postou-se diante de mim, as mãos ao lado do corpo, a figura nitidamente em silhueta contra o céu turvo.

— Claire — ele disse serenamente. — Eu vou morrer amanhã. Esta criança... é tudo que restará de mim. Eu lhe peço, Claire, eu lhe imploro, proteja-a.

Permaneci imóvel, a visão embaciada, e naquele instante ouvi meu coração se partir. Foi um pequeno som, nítido, como o estalido da quebra do caule de uma flor.

Finalmente, abaixei a cabeça, o vento lamentando-se em meus ouvidos.

— Sim — murmurei. — Sim. Eu irei.

Já era quase noite. Ele ficou atrás de mim e me enlaçou. Recostei-me contra seu corpo enquanto ele olhava por cima do meu ombro, fitando o vale distante. As luzes de fogueiras das sentinelas haviam começado a surgir, pequenos pontos brilhantes ao longe. Permanecemos em silêncio por um longo tempo, enquanto a noite se aprofundava. Tudo estava quieto e silencioso na colina; eu não ouvia nada além da respiração de Jamie, um som precioso.

— Eu a encontrarei — murmurou em meu ouvido. — Eu prometo. Ainda que tenha que suportar duzentos anos de purgatório, duzentos anos sem você, esse será meu castigo, que eu mereci pelos meus crimes. Porque eu menti, matei e roubei; traí e quebrei a confiança. Mas há uma única coisa que deverá pesar a meu favor. Quando eu ficar diante de Deus, eu terei uma única coisa a dizer, para contrabalançar o resto.

Sua voz diminuiu, até quase se transformar num sussurro, e seus braços apertaram-me com mais força.

— Meu Deus, o Senhor me deu uma mulher especial e, Deus!, eu a amei demais.

Ele foi vagaroso e cuidadoso; eu também. Cada toque, cada momento precisava ser desfrutado, guardado na lembrança — apreciado como um talismã contra um futuro sem ele.

Toquei cada cavidade macia, os lugares ocultos de seu corpo. Senti a graciosidade e a força de cada curva de seus ossos, o deslumbramento de seus músculos firmemente entrelaçados, delgados e flexíveis pela largura de seus ombros, lisos e sólidos pela extensão de suas costas, rígidos como carvalho envelhecido nas colunas de suas coxas.

Provei o suor salgado na cavidade de sua garganta, senti o cheiro almis-carado e quente dos pêlos entre suas pernas, a doçura da boca larga e macia, com um leve sabor de maçã seca, e o gosto acre dos frutos do zimbro.

— Você é tão linda, meu amor — ele sussurrou para mim, tocando a maciez escorregadia entre minhas pernas, a pele fina e macia de dentro de minhas coxas.

Sua cabeça era somente uma mancha escura e indistinta contra a mancha branca dos meus seios. Os buracos no telhado admitiam apenas uma leve claridade do céu carregado; o ronco distante de uma trovoada de primavera murmurava constantemente nas colinas além de nossas frágeis paredes. Ele estava rígido, tão rijo de desejo que o toque de minha mão o fez gemer de uma necessidade próxima à dor.

Quando ele já não podia mais esperar, possuiu-me, uma faca em sua bainha, e nos movemos juntos, com força, pressionando, desejando, ansiando por aquele momento de união derradeira, e temendo alcançá-lo, por saber que depois dele só restaria a separação eterna.

Ele me levou repetidas vezes aos píncaros do prazer, contendo-se, parando, arfando e estremecendo. Até que finalmente eu toquei seu rosto, enfiei os dedos em seus cabelos, apertei-o com força e arqueei minhas costas e quadris sob ele, forçando, incitando.

— Agora — eu lhe disse num sussurro. — Agora. Venha comigo, venha para mim, agora. Agora!

Ele rendeu-se a mim e eu a ele, o desespero tomando conta da paixão, de modo que o eco de nossos gritos parecia extinguir-se lentamente, ressoando na escuridão da fria cabana de pedras.

Permanecemos abraçados, imóveis, seu corpo um peso abençoado, um escudo e um consolo. Um corpo tão sólido, tão cheio de vida e calor; como era possível que ele deixasse de existir dentro de poucas horas?

— Ouça — ele disse finalmente, baixinho. — Está ouvindo?

No começo, não ouvi nada a não ser o zumbido do vento e o pingar da chuva, gotejando pelos buracos do teto. Depois, ouvi, o baque firme, lento, de seu coração, pulsando contra mim, e o meu contra ele, os dois no mesmo compasso, no ritmo da vida. O sangue corria pelo seu corpo, e através de nosso frágil elo, por mim e de volta para ele.

Permanecemos deitados assim, aquecidos sobre a coberta improvisada com xale e manto, numa cama de nossas roupas, entrelaçados. Finalmente, ele se afastou e virando-me de costas para ele, segurou meu ventre, sua respiração cálida na minha nuca.

— Durma um pouco agora, mo duinne — murmurou. — Eu quero dormir mais uma vez assim... segurando você, segurando o bebê.

Achei que não conseguiria dormir, mas a força da exaustão era grande demais e deslizei quase instantaneamente para as profundezas da incons-ciência. Acordei quase ao alvorecer, os braços de Jamie ainda à minha volta, e fiquei observando o desabrochar imperceptível da noite se transformando em dia, inutilmente desejando que o abençoado refúgio da noite não se esvaísse.

Virei-me de lado e ergui o corpo para observá-lo, para ver a luz tocar os contornos arrojados de seu rosto, inocente no sono, para ver o sol nascente incendiar seus cabelos — pela última vez.

Uma onda de angústia irrompeu dentro de mim, tão aguda que eu devo ter emitido algum som, porque ele abriu os olhos. Sorriu ao me ver e seus olhos buscaram meu rosto. Compreendi que ele estava memorizando minhas feições, como eu gravava as suas.

—Jamie — eu disse. Minha voz estava rouca de sono e lágrimas reprimidas. — Jamie. Quero que você deixe uma marca em mim.

— O quê? — ele disse, espantado.

A pequena sgian dhu que ele carregava na meia estava à mão, o cabo de chifre de veado esculpido contra a pilha de roupas. Peguei-a e a entreguei a ele.

— Corte-me — eu disse com premência. — Bastante fundo para deixar uma cicatriz. Quero levar a marca do seu toque no meu corpo, ter alguma coisa sua que ficará para sempre comigo. Não tem importância se doer; nada pode doer mais do que deixá-lo. Ao menos, quando eu tocá-la, onde quer que eu esteja, poderei sentir seu toque em mim.

Sua mão cobriu a minha sobre o punho da faca. Após um instante, ele apertou-a e assentiu. Hesitou por um instante, a lâmina afiada na mão, e eu ofereci-lhe a mão direita. Estava quente sob nossas cobertas, mas sua respiração vinha em delicados fios encaracolados de vapor, visíveis no ar frio da cabana.

Ele virou a palma de minha mão para cima, examinando-a cuidadosamente, depois a levou aos lábios. Um terno beijo no centro da palma e, em seguida, ele prendeu a base do meu polegar numa mordida forte. Ao soltá-lo, ele habilmente cortou a carne dormente. Não senti mais do que uma leve sensação de ardência, mas o sangue brotou imediatamente. Ele levou minha mão rápido à boca outra vez, mantendo-a ali até o fluxo de sangue diminuir. Amarrou o corte, agora queimando, cuidadosamente com um lenço, mas não antes de eu ver que o corte tinha a forma de um pequeno e ligeiramente torto “J”.

Ergui os olhos e vi que ele oferecia a pequena faca para mim. Peguei-a e, com certa hesitação, peguei também a mão que ele me estendia.

Ele fechou os olhos rápido e cerrou os lábios, mas deixou escapar um pequeno grunhido de dor quando pressionei a ponta da faca na parte mais carnosa da base de seu polegar. O Monte de Vênus, dissera-me uma adivinha que lia as linhas da mão; indicador de paixão e amor.

Somente quando terminei o pequeno corte semicircular é que percebi que ele me dera a mão esquerda.

— Eu deveria ter pegado a outra mão — eu disse. — O punho de sua espada pressionará o corte.

Ele sorriu debilmente.

— Eu não poderia pedir mais do que sentir seu toque em mim em minha última luta, onde quer que ela ocorra.

Desenrolando o lenço manchado de sangue, pressionei o corte em minha mão firmemente sobre o dele, nossos dedos entrelaçados com força. O sangue era morno e escorregadio, ainda não pegajoso em nossas mãos.

— Sangue do meu sangue... — murmurei.

— ...E carne da minha carne — ele respondeu baixinho. Nenhum de nós dois conseguiu terminar o voto, “até o fim de nossas vidas”, mas as palavras não pronunciadas pairaram dolorosamente entre nós. Por fim, ele deu um sorriso enviesado.

— Além. Muito além disso — ele disse com firmeza, puxando-me para ele mais uma vez.

— Frank — ele disse finalmente, com um suspiro. — Bem, deixo por sua conta o que você dirá a ele sobre mim. Provavelmente ele não vai querer ouvir. Mas se quiser, se você achar que pode conversar com ele sobre mim, como conversou comigo sobre ele, então diga a ele... que eu agradeço. Diga-lhe que confio nele, porque preciso. E diga-lhe... — suas mãos apertaram repentinamente meus braços e ele falou com uma mistura de humor e absoluta sinceridade. — Diga-lhe que eu o odeio até o último fio dos seus cabelos, até a medula de seus ossos!

Estávamos vestidos e a luz da aurora transformara-se em pleno dia. Não havia nada para comermos, nada para minorar nossa fome. Nada mais a fazer... e nada mais a dizer.

Logo ele teria que partir, para chegar à charneca de Drumossie atempo. Era nossa despedida final e não conseguíamos encontrar uma maneira de dizer adeus.

Finalmente, com um sorriso enviesado, inclinou-se e me beijou terna-mente nos lábios.

— Diziam... — começou, e parou para limpar a garganta. — Diziam, antigamente, quando um homem partia para uma grande façanha, que ele encontraria uma “mulher sábia” e lhe pediria para abençoá-lo. Ele deveria ficar parado, olhando para frente, na direção para onde iria, e ela iria por trás dele, para dizer as palavras mágicas sobre ele. Ao terminar, ele seguiria direto em frente, sem olhar para trás, porque isso traria azar à sua jornada.

Tocou levemente meu rosto e virou-se, de frente para a porta aberta. O sol da manhã filtrava-se para dentro da cabana, iluminando seus cabelos com fogo. Ele aprumou os ombros largos sob o xale e respirou fundo.

— Abençoe-me, então, mulher sábia — ele disse baixinho -, e vá.

Coloquei a mão em seu ombro, em busca de palavras. Jenny me ensinara algumas das antigas preces célticas de proteção; tentei evocar as palavras mentalmente.

— Jesus, Filho de Maria — comecei, com voz rouca —, suplico-Vos em Vosso nome; e em nome do abençoado apóstolo João, e em nome de todos os santos do domínio vermelho, para protegê-lo na batalha que virá...

Parei, interrompida por um som vindo do sopé da colina. O som de vozes, e de passos.

Jamie ficou paralisado por um instante, o ombro rígido sob minha mão, depois girou nos calcanhares, empurrando-me para os fundos da cabana, onde a parede havia desmoronado.

— Por ali! — ele disse. — São ingleses! Claire, vá!

Corri para a abertura na parede, o coração na boca, enquanto ele voltava para a porta, a mão na espada. Parei, por um instante, para vê-lo pela última vez. Ele virou a cabeça, avistou-me, e repentinamente estava a meu lado, empurrando-me com força contra a parede numa agonia de desespero. Agarrou-me com toda a força. Eu podia sentir sua ereção pressionando meu ventre e o punho de sua adaga machucando minha costela.

Ele falou com voz rouca em meus cabelos.

— Mais uma vez. Eu preciso! Mas rápido!

Prendeu-me contra a parede, eu arregacei minhas saias enquanto ele erguia seu kilt. Não se tratava de fazer amor; ele possuiu-me rápida e impetuosamente e tudo terminou em segundos. As vozes estavam mais próximas; a apenas uns cem metros.

Ele beijou-me mais uma vez, com força suficiente para deixar o gosto de sangue em minha boca.

— Dê-lhe o nome de Brian — ele disse -, por meu pai. — Com um empurrão, conduziu-me para a abertura na parede. Enquanto corria para ela, virei-me e o vi de pé na soleira da porta, a espada parcialmente sacada, a adaga pronta na mão direita.

Os ingleses, sem saber que a cabana estava ocupada, não pensaram em enviar um batedor pelos fundos. A encosta atrás da cabana estava deserta quando corri por ela e entrei no bosque de carvalhos abaixo do topo da colina.

Abri caminho entre os galhos e arbustos, tropeçando em pedras, cega pelas lágrimas. Atrás de mim, podia ouvir gritos e o embate de metais que vinha da cabana. Minhas coxas estavam úmidas e escorregadias do sêmen de Jamie. O topo da colina parecia nunca se aproximar; certamente eu iria passar o resto da vida lutando para abrir caminho pelas árvores asfixiantes!

Ouviu-se um estalo no mato atrás de mim. Alguém me vira correr da cabana. Limpei as lágrimas e me arrastei pela subida, tateando e rastejando à medida que o terreno ficava mais íngreme. Estava na clareira agora, a plataforma de granito de que eu me lembrava. O pequeno pé de corniso que crescia do rochedo estava lá, bem como as pequenas rochas tombadas.

Parei na borda do círculo de pedras, olhando para baixo, tentando desesperadamente ver o que estava acontecendo. Quantos soldados haviam chegado à cabana? Jamie conseguiria livrar-se deles e alcançar seu cavalo manco lá embaixo? Sem ele, jamais chegaria a Culloden a tempo.

Imediatamente, os galhos abaixo de mim abriram-se com um lampejo vermelho. Um soldado inglês. Virei-me, corri, arquejante, pela grama do círculo e atirei-me pela fenda na rocha.

 

Ele estava certo, é claro. Desgraçado, ele quase sempre estava certo. — Claire parecia contrariada enquanto falava. Um sorriso triste atravessou seu rosto, depois ela olhou para Brianna, sentada no tapete em frente à lareira, envolvendo os joelhos, o rosto completamente insondável. Somente um leve movimento de seus cabelos, erguendo-se e esvoaçando ligeiramente no calor crescente do fogo, demonstrava qualquer movimento.

— Foi uma gravidez de risco, novamente, e um parto perigoso. Se eu tivesse arriscado ter a criança lá, provavelmente nós duas teríamos morrido. — Ela falava diretamente para sua filha, como se estivessem sozinhas na sala. Roger, acordando lentamente do fascínio do passado, sentiu-se um intruso.

— A verdade, portanto, toda ela. Eu não suportava deixá-lo — Claire disse calmamente. — Nem mesmo por você... eu a odiei um pouco, antes de você nascer, porque foi por sua causa que ele me fez partir. Eu não me importava de morrer... não com ele. Mas ter que continuar vivendo, sem ele... ele tinha razão, eu fiquei com a pior parte do trato. Mas eu o cumpri, porque o amava. E sobrevivemos, você e eu, porque ele a amava.

Brianna não se mexeu; não tirou os olhos do rosto de sua mãe. Somente seus lábios se moveram, rigidamente, como se não estivessem acostumados a falar.

— Por quanto tempo... você me odiou?

Os olhos dourados encontraram-se com os azuis, inocentes e implacáveis como os olhos de um falcão.

— Até você nascer. Quando a segurei nos braços, amamentei-a e a vi olhar para mim com os olhos de seu pai.

Brianna emitiu um som fraco, estrangulado, mas sua mãe continuou, a voz abrandando-se um pouco enquanto olhava para a jovem aos seus pés.

— E então comecei a conhecê-la, alguém à parte de mim mesma ou de Jamie. E eu a amei por você mesma e não apenas pelo homem que a gerou.

Houve um movimento agitado no tapete e Brianna pôs-se de pé num salto. Seus cabelos eriçaram-se como a juba de um leão e os olhos azuis flamejaram como as chamas na lareira.

— Meu pai era Frank Randall! — ela disse. — Era ele! Eu sei! — Com os punhos cerrados, fitou a mãe furiosamente. Sua voz tremia de raiva.

— Não sei por que você está fazendo isso. Talvez você realmente me odiasse, talvez ainda odeie! — Lágrimas começavam a rolar pelo seu rosto, incontidas, e ela as limpou irritadamente com as costas da mão.

— Papai... papai me amava. Ele não teria me amado se eu não fosse dele! Por que está tentando me fazer acreditar que ele não era meu pai? Você tinha ciúmes de mim? É isso? Incomodava-a tanto assim que ele me amasse? Ele não amava você, disso eu sei! — Os olhos azuis estreitaram-se como os de um gato, chamejando no rosto mortalmente lívido.

Roger sentiu um grande desejo de esconder-se sorrateiramente atrás da porta antes que ela notasse sua presença e voltasse sua ira incandescente contra ele. Mas além de seu próprio desconforto, ele tinha consciência de uma sensação de crescente assombro. A jovem que estava de pé em frente à lareira, esbravejando em defesa de sua paternidade, ardia com a força selvagem que levara os guerreiros das Highlands a caírem sobre seus inimigos como banshees estridentes. Com seu nariz longo e reto, prolongado ainda mais pelas sombras, os olhos rasgados como os de um gato enfurecido, ela era a imagem de seu pai — e evidentemente seu pai não era o acadêmico moreno e tranqüilo, cuja foto adornava a contracapa do livro sobre a mesa.

Claire abriu a boca uma vez, mas fechou-a em seguida, observando a filha com absorto fascínio. Aquela poderosa tensão do corpo, o arco das maçãs do rosto largas e planas; Roger percebeu que ela já vira tudo aquilo muitas vezes antes — mas não em Brianna.

Com uma imprevisibilidade que fez ambos se encolherem, Brianna girou nos calcanhares, agarrou os recortes de jornal amarelecidos de cima da mesa e atirou-os ao fogo. Agarrou o atiçador e empurrou-o ferozmente no monte de brasas, sem se importar com a chuva de fagulhas que voava da lareira e chiava em volta das botas em seus pés.

Virando-se da massa de papéis em chamas e rapidamente se enegrecendo, bateu um dos pés na lareira.

— Desgraçada! — gritou para sua mãe. — Você me odiava? Bem, eu odeio você! — Levou para trás o braço que segurava o atiçador e os músculos de Roger retesaram-se instintivamente, pronto a se atirar sobre ela. Mas Brianna se virou, o braço ainda para trás como uma lançadora de dardo, e arremessou o atiçador por toda a extensão da janela, onde as vidraças escuras da noite refletiram a imagem de uma mulher enfurecida por um último instante antes de se estilhaçarem e se transformarem num buraco negro.

O silêncio no gabinete era devastador. Roger, que se pusera de pé num salto para ir atrás de Brianna, acabou parado no meio do aposento, embaraçosamente paralisado. Abaixou os olhos para as próprias mãos, como se não soubesse ao certo o que fazer com elas, depois olhou para Claire. Ela continuava sentada perfeitamente imóvel no santuário da poltrona bergère, como um animal paralisado pela sombra fugaz de uma ave de rapina.

Após longos momentos, Roger atravessou o aposento e apoiou-se na escrivaninha.

— Não sei o que dizer — murmurou.

A boca de Claire torceu-se ligeiramente.

— Nem eu.

Permaneceram em silêncio por vários minutos. A velha casa estalava, acomodando-se ao redor deles, e um ruído distante de panelas desceu o corredor, proveniente da cozinha onde Fiona preparava o jantar. A sensação de choque e constrangimento de Roger gradualmente cedeu lugar a outro sentimento, que ele não sabia definir bem. Suas mãos estavam geladas e ele esfregou-as nas pernas, sentindo a aspereza quente do veludo cotelê nas palmas das mãos.

— Eu... — começou a falar, depois parou e sacudiu a cabeça.

Claire respirou fundo e ele percebeu que esse era o primeiro movimento que ele a vira fazer desde que Brianna saíra. Seu olhar era límpido e direto.

— Você acredita em mim? — ela perguntou.

Roger olhou pensativamente para ela.

— Juro que não sei — disse por fim.

Isso provocou um sorriso trêmulo.

— Foi o que Jamie disse quando lhe perguntei pela primeira vez de onde ele achava que eu viera.

— Não posso dizer que o culpo. — Roger hesitou e, então, tomando uma decisão, desceu da escrivaninha e atravessou o aposento até Claire. — Permite-me? — Ajoelhou-se e tomou sua mão, virando-a para a luz. Você pode distinguir o marfim verdadeiro do sintético, lembrou-se de repente, porque o verdadeiro tem um toque quente em sua mão. A palma da mão de Claire era suavemente rosada, mas a fina cicatriz do “J” na base de seu polegar era branca como osso.

— Isso não prova nada — ela disse, observando seu rosto. — Poderia ter sido um acidente; eu mesma poderia tê-la feito.

— Mas não fez, não é? — Ele recolocou a mão de Claire muito delicadamente em seu colo outra vez, como se fosse um frágil artefato.

— Não. Mas não posso prová-lo. As pérolas — sua mão dirigiu-se ao colar reluzente em seu pescoço — são autênticas; isso pode ser verificado. Mas posso provar onde as obtive? Não.

— E o retrato de Ellen MacKenzie... — ele começou.

— O mesmo. Uma coincidência. Algo em que basear meu delírio. Minhas mentiras. — Havia um leve tom amargo em sua voz, embora falasse muito calmamente. Via-se um pouco de cor em cada face agora e ela abandonava aquela rigidez absoluta. Era como ver uma estátua adquirir vida, ele pensou.

Roger levantou-se. Andou devagar de um lado para o outro, passando a mão pelos cabelos.

— Mas é importante para você, não é? Muito importante.

— Sim. — Ela levantou-se e se dirigiu à escrivaninha, onde estava a pasta de sua pesquisa. Colocou a mão na capa de papel manilha com reverência, como se fosse uma sepultura; e para ela era, Roger pensou.

— Eu tinha que saber. — Havia um pequeno tremor em sua voz, mas ela viu seu queixo firmar-se instantaneamente, reprimindo-o. — Eu tinha que saber se ele conseguira... se ele salvara seus homens... ou se ele se sacrificara por nada. E eu tinha que contar a Brianna. Ainda que ela não acreditasse... ainda que nunca acredite. Jamie era seu pai. Eu tinha que contar a ela.

— Sim, eu compreendo. E não podia fazer isso enquanto o dr. Randall... seu mari... quer dizer, Frank — corrigiu-se, enrubescendo — fosse vivo.

Ela sorriu debilmente.

— Tudo bem; você pode chamar Frank de meu marido. Ele foi, afinal, por muitos anos. E Bri tem razão, de certa forma. Ele era seu pai, assim como Jamie. — Abaixou os olhos para as próprias mãos e abriu os dedos de ambas, de modo que a luz refletisse nas duas alianças que usava, prata e ouro. Um pensamento ocorreu a Roger.

— Sua aliança — ele disse, aproximando-se de Claire outra vez. — A de prata. Ela tem a marca do fabricante? Alguns artistas escoceses do século XVIII que trabalhavam com prata costumavam usá-las. Pode não ser uma prova definitiva, mas já é alguma coisa.

Claire pareceu espantada. Sua mão esquerda cobriu a direita protetoramente, os dedos esfregando a larga aliança de prata com seu desenho de entrelace escocês e flores de cardo.

— Não sei — ela disse. Um leve rubor tomou conta de suas faces. — Nunca a olhei por dentro. Eu nunca a tirei do dedo. — Ela girou a aliança lentamente por cima do nó do dedo; seus dedos eram delgados, mas pelo longo tempo de uso, a aliança deixara uma marca funda em sua carne.

Ela estreitou os olhos, observando a parte de dentro da aliança, depois se levantou e levou-a à mesa, onde parou ao lado de Roger, inclinando o aro de prata para que refletisse a luz do abajur da mesa.

— Há palavras gravadas aqui — disse, admirada. — Eu nunca percebi que ele havia... Ah, meu Deus. — Sua voz alquebrou-se e a aliança escorregou de seus dedos, tilintando na mesa com um pequeno retinido metálico. Roger logo a pegou, mas Claire se virara, os punhos cerrados apertados com força contra o estômago. Ele sabia que ela não queria que ele visse seu rosto; o controle que ela conservara através das longas horas do dia e da cena com Brianna abandonou-a agora.

Ele ficou parado por um instante, sentindo-se insuportavelmente deslocado e constrangido. Com a terrível sensação de estar violando uma privacidade mais profunda do que ele jamais conhecera, mas sem saber o que mais fazer, ergueu o minúsculo aro de metal para a luz e leu as palavras gravadas no lado interno.

— Da mi basia mille... — Mas foi a voz de Claire que enunciou as palavras, não a dele. Sua voz estava trêmula e ele podia sentir que ela estava chorando, mas aos poucos recuperava o controle. Ela não podia extravasar por muito tempo; a força do que ela mantinha sob controle podia facilmente destruí-la.

— E de Catulo. Um trecho de um poema de amor. Hugh.... Hugh Munro, ele me deu o poema como presente de casamento, enrolado em volta de um pedaço de âmbar com uma libélula em seu interior. — Ainda com os punhos cerrados, deixara as mãos penderem ao lado do corpo. -Eu não sei o poema de cor, mas este trecho... este eu sei. — Sua voz ficava mais firme à medida que ela falava, mas continuou de costas para Roger. O pequeno aro de prata brilhava na palma de sua mão, ainda quente do calor do dedo que acabara de deixar.

— ...Da mi basia mille... — Ainda de costas, ela continuou, traduzindo:

— Permita, então, que beijos apaixonados permaneçam

Em nossos lábios, comece a contagem

Até mil e cem

E mais cem e mais mil.

Quando terminou, permaneceu imóvel por um instante, depois devagar virou-se para ele outra vez. Seu rosto estava afogueado e molhado, e seus cílios grudados de lágrimas, mas ela estava aparentemente calma.

— E mais cem e mais mil — ela disse, com uma débil tentativa de sorriso. — Mas nenhuma marca do fabricante. Então, isso também não é uma prova.

— É, sim. — Roger sentia como se houvesse alguma coisa entalada em sua garganta e apressadamente tentou clareá-la. — É prova absoluta. Para mim.

Algo se acendeu no fundo dos seus olhos e o sorriso tornou-se real. Então, as lágrimas afloraram e transbordaram, conforme ela perdia seu autocontrole de uma vez por todas.

— Desculpe-me — ela disse finalmente. Estava sentada no sofá, os cotovelos nos joelhos, o rosto parcialmente enterrado em um dos enormes lenços brancos do reverendo Wakefield. Roger sentou-se ao seu lado, bem próximo, quase a tocando. Ela parecia muito pequena e vulnerável. Ele teve vontade de afagar seus cachos castanho-acinzentados, mas sentia-se muito tímido para isso.

— Nunca pensei... nunca me ocorreu — ela disse, assoando o nariz outra vez. — Eu não sabia o quanto significaria, ter alguém que acreditasse em mim.

— Ainda que não seja Brianna?

Ela sorriu ligeiramente diante dessas palavras, afastando os cabelos para trás com uma das mãos enquanto se aprumava.

— Foi um choque — disse, defendendo a filha. — Naturalmente, ela não poderia... ela gostava tanto de seu pai... de Frank, quero dizer — corrigiu-se apressadamente. — Eu sabia que provavelmente ela não conseguiria digerir tudo isso no começo. Mas... com certeza depois que tiver tido tempo para pensar, para fazer perguntas... — Sua voz esvaiu-se e os ombros de seu conjunto de linho branco sucumbiram sob o peso das palavras.

Como para distrair-se, ela olhou para a mesa, onde a pilha de livros de capa brilhante ainda permanecia, intocada.

— É estranho, não é? Viver vinte anos com um estudioso dos jacobitas e ter tanto medo do que eu podia vir a saber que nunca tive coragem de abrir um desses livros? — Sacudiu a cabeça, ainda fitando os livros. — Não sei o que aconteceu com muitos deles... eu não podia suportar descobrir. Todos os homens que eu conhecia; eu não conseguia esquecê-los. Mas eu podia sepultá-los, mantê-los longe da lembrança. Por algum tempo.

E esse tempo agora terminara e um outro começava. Roger pegou o livro no alto da pilha, pesando-o nas mãos, como se fosse uma responsabilidade. Talvez ao menos isso tirasse sua cabeça de Brianna.

— Quer que eu lhe conte? — perguntou serenamente.

Ela hesitou por um longo instante, mas depois balançou a cabeça rapidamente, com medo de vir a se arrepender se parasse para pensar mais.

Roger umedeceu os lábios ressecados e começou a falar. Não precisava consultar o livro; esses eram fatos conhecidos de qualquer estudioso do período. Ainda assim, segurou o livro de Frank Randall contra o peito, sólido como um escudo.

— Francis Townsend — ele começou. — O homem que manteve o domínio de Carlisle para Carlos. Foi capturado. Condenado por traição, enforcado e estripado.

Parou, mas o rosto lívido já estava exangue, não era possível ficar ainda mais branco. Ela sentou-se do outro lado da mesa, em frente a ele, imóvel como uma estátua de sal.

— MacDonald de Keppoch atacou a pé no campo de Culloden, com seu irmão Donald. Ambos foram abatidos pela artilharia inglesa. Lorde Kilmarnock caiu no campo de batalha, mas lorde Ancrum, identificando os feridos, reconheceu-o e salvou sua vida dos homens de Cumberland. Não foi nenhum grande favor; ele foi decapitado no mês de agosto na Torre de Londres, junto com Balmerino. — Hesitou. — O filho pequeno de Kilmarnock perdeu-se no campo de batalha; seu corpo nunca foi recuperado.

— Sempre gostei de Balmerino — ela murmurou. — E a velha raposa? Lorde Lovat? — Sua voz era pouco mais do que um sussurro. — A sombra de um machado...

— Sim. — Os dedos de Roger afagaram a capa lisa e brilhante do livro inconscientemente, como se ele lesse as palavras em seu interior por Braille. — Foi julgado por traição e condenado à decapitação. Morreu dignamente. Todos os relatos afirmam que ele enfrentou sua morte com grande dignidade.

Uma cena atravessou a mente de Roger; uma anedota de Hogarth. Recitou de memória, o mais fielmente possível.

— Carregado através dos gritos e vaias de uma turba inglesa no trajeto a caminho da Torre, o velho chefe do clã Fraser parecia descontraído, indiferente aos objetos arremessados que passavam zunindo por sua cabeça e quase de bom humor. Em resposta ao grito de uma mulher idosa: “Vai ter a sua cabeça decepada, velho canalha escocês!”, ele inclinou-se para fora da janela de sua carruagem e gritou jovialmente em resposta: “Assim espero, megera inglesa velha e feia!”

Ela sorria, mas o som que emitia era um misto de riso e soluço.

— Tenho certeza que sim, o patife filho-da-mãe!

— Quando foi levado ao cadafalso — Roger continuou cautelosamente —, pediu para inspecionar a lâmina e instruiu o executor para que fizesse um bom serviço. Ele disse ao sujeito: “Faça direito, porque vou ficar realmente furioso se não fizer!”

As lágrimas escorriam sob suas pálpebras fechadas, cintilando como pedras preciosas à luz da lareira. Ele fez menção de aproximar-se dela, mas ela pressentiu seu movimento e sacudiu a cabeça, os olhos ainda fechados.

— Estou bem. Continue.

— Não há muito mais. Alguns deles sobreviveram, você sabe. Lochiel fugiu para a França. — Ele teve o cuidado de não mencionar o irmão do chefe do clã, Archibald Cameron. O doutor foi enforcado, estripado e decapitado em Tyburn, o coração arrancado e atirado às chamas. Ela não pareceu notar a omissão.

Roger terminou a lista rápido, observando-a. Suas lágrimas haviam estancado, mas ela permanecia sentada, com a cabeça baixa, os cabelos cacheados e cheios ocultando a expressão do seu rosto.

Ele ficou parado por um instante quando terminou de falar, em seguida levantou-se e segurou-a com firmeza pelo braço.

— Venha — ele disse. — Você precisa de um pouco de ar. Parou de chover; vamos lá para fora.

O ar do lado de fora era fresco e frio, quase embriagante depois do ambiente abafado do gabinete do reverendo. A chuva forte parara ao pôr-do-sol e agora, no começo da noite, apenas o barulho dos pingos de água que gotejavam das árvores e arbustos lembrava o aguaceiro anterior.

Senti um grande alívio em sair da casa. Eu temera tudo isso por tanto tempo e agora estava feito. Ainda que Bri nunca... mas não, ela iria entender. Ainda que levasse muito tempo, ela certamente aceitaria a verdade. Tinha que aceitar; a verdade a fitava todos os dias de manhã no espelho; corria no próprio sangue em suas veias. Por enquanto, eu lhe contara tudo e sentia a leveza de uma alma absolvida, saindo do confessionário, ainda sem o peso do pensamento da penitência.

É como dar à luz, pensei. Um curto período de grande dificuldade e dor dilacerante, aliado à certeza de noites sem dormir e dias estressantes no futuro. Mas por enquanto, por um instante abençoado e tranqüilo, não havia nada além de uma serena euforia que enchia a alma e não deixava espaço para apreensão. Até mesmo a dor recente pelos homens que eu conhecera estava amortizada ali fora, abrandada pelas estrelas que brilhavam através de brechas nas nuvens esgarçadas.

A noite do começo da primavera estava úmida e os pneus dos carros que passavam na rodovia principal ali perto zuniam no asfalto molhado. Roger conduziu-me em silêncio pela descida atrás da casa, em seguida por uma subida, passando por uma pequena clareira coberta de musgo, e por outra descida, onde havia um caminho que levava ao rio. Uma ponte preta de ferro da ferrovia atravessava o rio neste ponto; havia uma escada de ferro no caminho, presa a uma das vigas mestras. Alguém de posse de uma lata de spray de tinta branca escrevera ESCÓCIA LIVRE na extensão do vão da ponte com uma ousadia fortuita.

Apesar da tristeza da lembrança, eu me sentia em paz, ou quase. Eu já fizera a parte mais difícil. Agora, Bri já sabia quem ela era. Esperava ardentemente que, com o tempo, ela viesse a acreditar — não apenas para o seu próprio bem, eu sabia, mas também para o meu. Mais do que eu jamais teria admitido, nem para mim mesma, eu queria ter alguém com quem me lembrar de Jamie; alguém com quem eu pudesse conversar sobre ele. Senti um cansaço devastador, de tal natureza que atingia o corpo e a mente. Mas empertiguei minhas costas mais uma vez, forçando meu corpo além dos seus limites, como já fizera tantas vezes antes. Em breve, prometi às minhas juntas doloridas, minha mente sensível, meu coração recém-partido. Em breve, eu poderia descansar. Poderia sentar-me sozinha na pequena e aconchegante sala de estar da pensão, sozinha com meus fantasmas. Poderia chorá-los em paz, deixando o cansaço esvair-se com as lágrimas e, finalmente, buscar o esquecimento temporário do sono, onde talvez pudesse encontrá-los vivos uma vez mais.

Mas ainda não. Ainda havia mais uma coisa a ser feita antes de eu dormir.

Caminharam em silêncio por algum tempo, sem nenhum ruído além do tráfego distante e da agitação mais próxima das pequenas ondas do rio em suas margens. Roger sentia-se relutante em iniciar qualquer conversa, com receio de fazê-la se lembrar de coisas que desejava esquecer. Mas as comportas tinham sido abertas e não havia mais como impedir.

Ela começou a fazer-lhe pequenas perguntas, hesitantes e entrecortadas. Ele respondia a elas da melhor forma possível e, por sua vez também hesitante, fez-lhe algumas perguntas próprias. A liberdade de falar repentina, após tantos anos de segredo guardado, parecia agir como uma droga sobre ela, e Roger, ouvindo fascinado, estimulava-a, apesar de si mesma. Quando chegaram à ponte da ferrovia, ela já havia recuperado o vigor e a força de caráter que identificara nela quando a vira pela primeira vez.

— Ele era um idiota, um bêbado, um homem tolo e fraco — ela declarou apaixonadamente. — Todos eles eram uns tolos: Lochiel, Glengarry e o resto. Bebiam demais e enchiam-se dos sonhos tolos de Carlos. Falar é fácil, e Dougal tinha razão: é fácil ser corajoso, sentado com um copo de cerveja numa sala aconchegante. Estavam todos estupidificados de bebida e, depois, eram orgulhosos demais de sua maldita honra para recuar. Açoitavam e ameaçavam seus homens, subornavam-nos e seduziam-nos, levaram todos eles à desgraça e à ruína... em nome da honra e da glória.

Ela expirou fazendo ruído pelo nariz e ficou em silêncio por um instante. Em seguida, surpreendentemente, riu.

— Mas sabe o que é realmente engraçado? Aquele pobre, tolo beberrão e seus auxiliares estúpidos e gananciosos; e os homens honrados e tolos que não admitiam recuar... tinham uma única virtude: eles acreditavam. E o engraçado é que isso é tudo que permaneceu deles. Toda a tolice, a incompetência, a covardia e a vaidade, tudo isso desapareceu. Tudo que resta agora de Carlos Stuart e seus homens é a glória que eles buscavam e nunca encontraram.

— Talvez Raymond tivesse razão — ela acrescentou num tom mais suave. — É apenas a essência de um fato que conta. Quando o tempo arranca todo o resto, sobra apenas a rigidez do osso.

— Imagino que você deva sentir uma certa amargura em relação aos historiadores — Roger arriscou. — Todos os autores que entenderam tudo errado, que o retrataram como um herói. Quer dizer, não se pode ir a nenhum lugar nas Highlands sem vermos o príncipe Carlos em latas de balas e canecas de suvenir para turistas.

Claire sacudiu a cabeça, o olhar distante. A neblina da noite estava cada vez mais densa, os arbustos começando a gotejar outra vez das pontas das folhas.

— Não os historiadores. Não, eles não. Seu maior crime é que eles acham que sabem o que aconteceu, como os fatos se sucederam, quando tudo que têm é o que o passado escolheu deixar para trás. A maioria deles acha o que foram condicionados para acreditar e é raro encontrar um historiador que veja o que realmente aconteceu por trás da cortina de fumaça de artefatos e documentos.

Ouviram um ronco fraco a distância. O trem de passageiros noturno, proveniente de Londres, Roger sabia. Podia-se ouvir seu apito da casa da paróquia em noites límpidas.

— Não, a culpa é dos artistas — Claire continuou. — Os escritores, os cantores, os contadores de histórias. São eles que tomam o passado e o recriam a seu gosto. São eles que podem pegar um tolo e o devolver como um herói, pegar um beberrão e torná-lo um rei.

— São todos mentirosos, então? — Roger perguntou. Claire deu de ombros. Apesar do ar frio, ela tirara o casaco de seu costume; a umidade moldara a camisa de algodão, revelando a elegância da sua clavícula e das suas omoplatas.

— Mentirosos? — ela perguntou. — Ou feiticeiros? Será que vêem os ossos na poeira da terra, vêem a essência de algo que existiu e o revestem com uma nova carne, de modo que a besta surja de novo como um monstro fabuloso?

— Então, eles estão errados em fazê-lo? — Roger perguntou. A ponte da via férrea estremeceu quando o trem se aproximou. As letras trêmulas e brancas sacudiram-se com a vibração: ESCÓCIA LIVRE.

Claire ergueu os olhos para as letras, o rosto iluminado pela fugidia claridade das estrelas...

— Você ainda não consegue compreender, não é? — ela disse. Estava irritada, mas a voz aveludada não se ergueu acima do tom normal.

— Você não sabe por que — ela disse. — Você não sabe, e eu não sei e nós nunca saberemos. Não percebe? Você não sabe porque não pode dizer qual é a finalidade, não há nenhuma finalidade. Você não pode dizer: “Este acontecimento em particular foi “predestinado” a acontecer e, portanto, todas as outras coisas aconteceram.” O que Carlos fez ao povo da Escócia... era isso que tinha que acontecer? Ou isso era “predestinado” a acontecer como aconteceu e a real finalidade de Carlos era ser o que ele é agora: um símbolo, um ícone? Sem ele, a Escócia teria suportado duzentos anos de união com a Inglaterra e ainda assim, ainda assim — ela sacudiu a mão indicando as letras espalhadas acima — ter conservado sua própria identidade?

— Não sei! — Roger disse, tendo que gritar conforme o holofote oscilante iluminava as árvores e os trilhos, e o trem rugia na ponte acima deles.

Passou-se um minuto inteiro de um barulho retumbante e ensurdecedor que os manteve imóveis onde estavam. Finalmente, passou e o ruído estrondoso definhou, transformando-se num lamento solitário conforme a luz vermelha do último vagão era varrida para fora de suas vistas.

— Bem, esse é o mal, não é? — ela disse, desviando o rosto. — A gente nunca sabe, mas temos que agir de qualquer modo, não é?

Ela espalmou as mãos de repente, flexionando os dedos fortes de modo que suas alianças brilharam na luz.

— Você aprende isso quando se torna um médico. Não na faculdade, pelo menos, não é lá que se aprende, de qualquer forma, mas quando coloca as mãos nas pessoas e presume que vai curá-las. Há tanta gente lá, fora do seu alcance. Tantas que você nunca conseguirá tocar, tantas cuja essência não consegue encontrar, tantas que escorregam entre seus dedos. Mas você não pode pensar nelas. A única coisa que pode fazer, a única, é tentar salvar aquela que está à sua frente. Agir como se aquele paciente fosse a única pessoa no mundo, porque agir de outra forma é perder este também. Em determinado momento, isso é tudo que se pode fazer. E você aprende a não se desesperar por todos aqueles que não pode ajudar, mas apenas a fazer o que pode.

Voltou-se novamente para ele, o rosto abatido de cansaço, os olhos brilhando com a chuva e a luz, cristais de água enfeitando os cachos de seus cabelos. Sua mão pousou no braço de Roger, inexorável como o vento que infla a vela de um barco e o obriga e seguir em frente.

— Vamos voltar para a casa, Roger — ela disse. — Tenho algo muito particular para lhe contar.

Claire permaneceu em silêncio no trajeto de volta para a residência paroquial, evitando as especulações de Roger. Ela recusou o braço que ele lhe ofereceu, caminhando sozinha, a cabeça abaixada, absorta em seus pensamentos. Não como se estivesse tomando uma decisão, Roger pensou; já fizera isso. Ela decidia o que dizer.

O próprio Roger refletia. O silêncio dava-lhe uma trégua do tumulto das revelações do dia — o suficiente para imaginar precisamente por que Claire decidira incluí-lo nos acontecimentos. Ela poderia facilmente ter contado a Brianna sozinha, se quisesse. Seria apenas o fato de ter temido a reação da filha e hesitado em enfrentá-la sozinha? Ou teria apostado que ele iria — como o fez — acreditar nela e, assim, procurou alistá-lo como um aliado na causa da verdade — a verdade sua e de Brianna?

Sua curiosidade quase atingira o ponto de ebulição quando finalmente chegaram à casa. No entanto, ainda havia trabalho a ser feito primeiro; juntos, descarregaram uma das estantes mais altas e empurraram-na para frente da janela estilhaçada, bloqueando a entrada do ar frio da noite.

Corada com o esforço, Claire sentou-se no sofá enquanto ele foi servir duas doses de uísque da pequena mesa de bebidas no canto do aposento. Quando a sra. Graham estava viva, sempre trazia bebidas numa bandeja, adequadamente forrada com paninhos de renda e adornada com guardanapos e biscoitos para acompanhar. Fiona, se lhe permitissem, teria de bom grado feito o mesmo, mas Roger preferia a simplicidade de servir seu próprio drinque sozinho.

Claire agradeceu, tomou um gole de seu copo, depois o deixou de lado e ergueu os olhos para ele, cansada, mas serena.

— Você deve estar se perguntando por que eu queria que você ouvisse toda a história — ela disse, com aquela habilidade assustadora de ler seus pensamentos.

— Por duas razões. Logo lhe contarei a segunda, mas quanto à primeira, achei que você tinha certo direito de ouvi-la.

— Eu? Que direito?

Os olhos dourados eram francos, perturbadores como o olhar fixo e direto de um leopardo.

— O mesmo que Brianna. O direito de saber quem você é.

Ela atravessou o aposento, até a parede no extremo oposto. Era forrada de cortiça do chão ao teto, coberta com camadas de fotografias, mapas, anotações, um ou outro cartão de visitas, antigas tabelas de horários da paróquia, duplicatas de chaves e outras quinquilharias presas na cortiça.

— Lembro-me desta parede. — Claire sorriu, tocando a foto da escola primária local. — Seu pai alguma vez tirou alguma coisa daqui?

Roger sacudiu a cabeça, intrigado.

— Não, acredito que não. Ele sempre dizia que jamais conseguiria encontrar nada guardado em gavetas; se era alguma Coisa importante, ele a queria bem à vista.

— Então, é provável que ainda esteja aqui. Ele o considerava importante. Erguendo a mão, ela começou a folhear levemente as camadas superpostas, separando delicadamente os papéis amarelados.

— Este aqui, eu creio — murmurou, após remexer acima e abaixo. Estendendo o braço mais alto e por baixo do entulho de anotações de sermões e notas do posto de gasolina, ela destacou uma única folha de papel e colocou-a sobre a escrivaninha.

— Ora, é minha árvore genealógica — Roger disse, surpreso. — Não vejo este velho documento há anos. Também nunca prestei nenhuma atenção a ele quando o examinei — acrescentou. — Se vai me dizer que sou adotado, já sei disso.

Claire balançou a cabeça, absorta no gráfico.

— Ah, sim. É por isso que seu pai, o sr. Wakefield, quero dizer, desenhou este mapa. Ele queria ter certeza de que você conheceria sua verdadeira família, embora ele tenha lhe dado seu próprio nome.

Roger suspirou, pensando no reverendo, e na pequena fotografia na moldura de prata sobre sua escrivaninha, com a sorridente semelhança de um jovem desconhecido, de cabelos escuros e uniforme da RAF na Segunda Guerra Mundial.

— Sim, sei disso também. O nome de minha família era MacKenzie. Vai me dizer que estou ligado a alguns dos MacKenzie que você... hã, conheceu? Não vejo nenhum daqueles nomes no mapa.

Claire agiu como se não o tivesse ouvido, correndo o dedo pelas linhas interligadas, desenhadas à mão, da genealogia.

— O sr. Wakefield era obcecado por precisão — ela murmurou, como se falasse consigo mesma. — Não iria tolerar nenhum erro. — Seu dedo parou em um ponto do documento.

— Aqui está — ela disse. — Foi aqui que aconteceu. Abaixo deste ponto — seu dedo varreu a página para baixo — tudo está correto. Esses eram seus pais e seus avós, e seus bisavós e assim por diante. Mas não acima. — O dedo moveu-se para cima.

Roger inclinou-se sobre o mapa, depois ergueu os olhos verde-musgo, pensativo.

— Este aqui? William Buccleigh MacKenzie, nascido em 1744, de William John MacKenzie e Sarah Innes. Morto em 1782.

Claire sacudiu a cabeça.

— Morreu em 1744, com dois meses de idade, vítima de varíola. — Ela levantou a cabeça e os olhos dourados encontraram-se com os dele com uma força que fez um calafrio percorrer sua espinha. — Você não foi a primeira adoção na família, sabe? — ela disse. Seu dedo bateu de leve na inscrição. — Ele precisou de uma ama-de-leite — ela continuou. — Sua própria mãe estava morta, então ele foi doado a uma família que perdera um bebê. Deram-lhe o nome da criança que haviam perdido, isso era comum, e suponho que ninguém queria chamar atenção para sua verdadeira origem registrando a nova criança nos livros da paróquia. Afinal, ele teria sido batizado ao nascer; não era necessário fazê-lo de novo. Colum disse-me onde o haviam colocado.

— Filho de Geillis Duncan — ele disse devagar. — Filho da bruxa.

— Isso mesmo. — Olhou-o de forma avaliadora, a cabeça inclinada para o lado. — Achei que devia ser, quando o vi. Os olhos, sabe. São os olhos dela.

Roger sentou-se, sentindo-se repentinamente enregelado, apesar da estante estar bloqueando a corrente de ar e o fogo da lareira ter sido reativado há pouco tempo.

— Tem certeza disso? — ele disse, mas obviamente ela tinha certeza. Presumindo-se que toda a história não fosse uma invenção, a construção elaborada de uma mente doentia. Ele ergueu os olhos para ela, tranqüilamente sentada com seu uísque, serena como se estivesse prestes a solicitar uns salgadinhos.

Mente doentia? A dra. Claire Beauchamp-Randall, médica-chefe da equipe de um hospital grande e importante? Insanidade avassaladora, delírios desenfreados? Era mais fácil acreditar que ele estivesse louco. Na realidade, estava começando justo a acreditar nessa possibilidade.

Ele expirou fundo e colocou as duas mãos espalmadas sobre o gráfico, ocultando a inscrição de William Buccleigh MacKenzie.

— Bem, é muito interessante e creio que estou feliz por ter me contado. Mas isso na verdade não muda nada, não é? Exceto que eu suponho que possa arrancar a parte de cima desta árvore genealógica e jogá-la fora. Afinal, não sabemos de onde Geillis Duncan surgiu, nem o homem que gerou o seu filho; você parece ter certeza de que não foi o pobre e velho Arthur.

— Ah, não, não foi Arthur Duncan. Foi Dougal MacKenzie quem gerou o filho de Geilie. Essa foi a razão real de ter sido morta. Não foi por bruxaria. Mas Colum MacKenzie não podia permitir que se soubesse que seu irmão tivera um caso extraconjugal com a mulher do fiscal. O que ela queria era se casar com Dougal; creio que talvez ela tenha ameaçado os MacKenzie com a verdade a respeito de Hamish.

— Hamish? Ah, o filho de Colum. Sim, lembro-me. — Roger esfregou a testa. Sua cabeça estava começando a girar.

— Não era filho de Colum — Claire corrigiu-o. — Era filho de Dougal. Colum não podia ter filhos, mas Dougal podia... e o fez. Hamish era o herdeiro do comando do clã MacKenzie; Colum teria matado qualquer um que ameaçasse Hamish... e o fez.

Ela respirou fundo.

— E isso — disse — nos leva à segunda razão pela qual eu lhe contei essa história.

Roger enfiou as duas mãos nos cabelos, os olhos fixos na mesa, onde as linhas do mapa genealógico pareciam contorcer-se como cobras, zombando dele, as línguas bifurcadas agitando-se entre os nomes.

— Geillis Duncan — ele disse com voz rouca. — Ela possuía uma cicatriz de vacina.

— Sim. Foi isso, finalmente, que me fez voltar à Escócia. Quando parti daqui com Frank, jurei que jamais voltaria. Eu sabia que nunca poderia esquecer, mas eu poderia enterrar o que sabia; podia me manter distante e nunca procurar saber o que aconteceu depois que parti. Parecia o mínimo que eu poderia fazer, por ambos, por Frank e Jamie. E pela criança que eu estava esperando. — Seus lábios cerraram-se com força por um instante.

— Mas Geilie salvou minha vida, no julgamento em Cranesmuir. Talvez ela estivesse condenada de qualquer forma; creio que ela acreditava nisso. Mas ela jogou fora qualquer chance que pudesse ter tido, a fim de me salvar. E deixou-me uma mensagem. Dougal a deu para mim, numa caverna nas Highlands, quando me levou a notícia de que Jamie estava na prisão. Havia duas partes na mensagem. Uma frase: “Acho que é possível, mas não sei ao certo”, e uma seqüência de quatro números: um, nove, seis, oito.

— Mil novecentos e sessenta e oito — Roger disse, com a sensação de que tudo aquilo era um sonho. Certamente, logo iria acordar. — Este ano. O que ela quis dizer com acreditar que era possível?

— Voltar. Através das pedras. Ela não tentara, mas achou que eu poderia. E tinha razão, é claro. — Claire virou-se e pegou seu uísque da mesa. Olhou fixamente para Roger por cima do aro de seus óculos, os olhos da mesma cor do conteúdo do copo. — Estamos em 1968; o ano em que ela voltou no tempo. Exceto que eu acho que ela ainda não voltou.

O copo escorregou da mão de Roger e ele quase não conseguiu agarrá-lo a tempo.

— O quê... aqui? Mas ela... por que não... você não pode saber... — Ele balbuciava de forma incoerente, os pensamentos embaralhados.

— Eu não sei — Claire ressaltou. — Mas eu creio que sim. Tenho quase certeza de que ela era escocesa e as possibilidades são grandes de que ela tenha saído das Highlands. Considerando-se que há uma grande quantidade de círculos de pedra, nós sabemos que Craigh na Dun é uma passagem, para os que podem usá-la. Além do mais — acrescentou, com ar de quem apresenta o argumento definitivo -, Fiona a viu.

— Fiona? — Isso, Roger sentiu, era simplesmente demais. O maior dos absurdos. Em qualquer outra coisa, ele conseguiria acreditar: viagens no tempo, traição de clãs, revelações históricas, mas trazer Fiona para dentro dessa história era mais do que sua razão podia agüentar. Olhou para Claire com ar de súplica. — Diga-me que você não quis dizer isso — implorou. -Não Fiona.

A boca de Claire contorceu-se em um dos cantos.

— Receio que sim — ela disse, não sem compaixão. — Eu lhe perguntei... sobre o grupo druida ao qual sua avó pertencia. Ela jurou segredo, é claro, mas eu já sabia muito sobre ele e... — Encolheu os ombros, como se pedisse desculpas. — Não foi muito difícil fazê-la falar. Ela me disse que havia outra mulher fazendo perguntas... uma mulher alta, loura, com impressionantes olhos verdes. Fiona disse que a mulher a fazia se lembrar de alguém — acrescentou delicadamente, evitando com todo o cuidado olhar para ele -, mas ela não sabia quem.

Roger apenas grunhiu e, curvando-se na cintura, deixou-se cair lentamente para frente até sua testa encostar-se na mesa. Fechou os olhos, sentindo a rigidez fria da madeira sob sua cabeça.

— Fiona sabe quem é ela? — ele perguntou, os olhos ainda fechados.

— Seu nome é Gillian Edgars — Claire respondeu. Ele ouviu-a levantar-se, atravessar o aposento e acrescentar nova dose de uísque ao seu copo. Ela voltou e parou junto à mesa. Podia sentir seu olhar em sua nuca.

— Deixo a você a decisão — Claire disse serenamente. — É seu direito decidir. Devo procurá-la?

Roger ergueu a cabeça da mesa e olhou para ela, incrédulo, piscando.

— Se você deve procurá-la? — ele disse. — Se isso... se tudo isso for verdade... então, temos que achá-la, não? Se ela vai voltar no tempo para ser queimada viva? É claro que precisa achá-la! — exclamou. — Como você poderia considerar qualquer outra possibilidade?

— E se eu realmente encontrá-la? — ela observou. Colocou a mão delgada sobre o gráfico sujo e ergueu os olhos para ele. — O que acontece com você? — perguntou brandamente.

Ele olhou ao redor, desamparado, para o gabinete abarrotado, iluminado, com a parede de miscelâneas, o velho bule de chá lascado sobre a antiga mesa de carvalho. Sólida como... Agarrou as coxas, fechando as mãos sobre o veludo cotelê áspero como se buscasse se assegurar de que ele era tão sólido quanto a cadeira onde estava sentado.

— Mas... eu sou real! — irrompeu. — Eu não posso simplesmente... evaporar!

Claire ergueu as sobrancelhas, considerando suas palavras.

— Não sei se você evaporaria. Não faço a menor idéia do que poderia acontecer. Talvez você nunca viesse a existir? E nesse caso, não precisasse estar tão agitado agora. Talvez a parte de você que o torna único, sua alma ou como quer que queira denominá-la... talvez esteja fadado a acontecer de qualquer modo e você ainda seria você mesmo, embora nascido de uma linhagem ligeiramente diferente. Afinal, quanto de sua aparência física pode ser atribuído a ancestrais de seis gerações atrás? Metade? Dez por cento? — Deu de ombros e contraiu os lábios, examinando-o cuidadosamente.

— Seus olhos descendem de Geilie, como eu lhe disse. Mas eu vejo Dougal em você, também. Nenhum traço em particular, embora tenha as maçãs do rosto dos MacKenzie; Bri as tem, também. Não, é algo mais sutil, algo na maneira como você caminha; uma graciosidade, uma imprevisibilidade... não... — Ela sacudiu a cabeça. — Não consigo descrever. Mas está aí. É algo que você precisa, ser quem você é? Poderia passar sem essa parcela de Dougal?

Ela levantou-se pesadamente, demonstrando sua idade pela primeira vez desde que a conhecera.

— Passei mais de vinte anos buscando respostas, Roger, e só posso lhe dizer uma coisa: não há respostas, apenas escolhas. Eu mesma fiz muitas e ninguém pode me dizer se foram certas ou erradas. Mestre Raymond, talvez, embora não creia que o fizesse; era um homem que acreditava em mistérios.

“Só consigo ver a opção certa até o ponto de saber que devia contar-lhe... e deixar a escolha para você.”

Ele pegou o copo e esvaziou-o.

O Ano de Nosso Senhor de 1968. O ano em que Geillis Duncan entrou no círculo de pedras sagrado. O ano em que ela foi ao encontro de seu destino sob as sorveiras nas colinas próximas a Leoch. Um filho ilegítimo... e a morte na fogueira.

Ele ergueu-se e caminhou de um lado para o outro, ao longo das fileiras de livros que recobriam as paredes do gabinete. Livros cheios de história, esse assunto mutável e escarnecedor.

Nenhuma resposta, apenas escolhas.

Inquieto, Roger correu a mão pelos livros na prateleira mais alta. Compreendiam a história do movimento jacobita, a história das rebeliões, de 1715 e de 1745. Claire conhecera muitos dos homens e mulheres descritos nesses livros. Lutara e sofrera com eles, para salvar um povo que lhe era estranho. No processo, perdera tudo que lhe era caro. E, no final, fracassara. Mas a escolha fora dela, e agora era dele.

Haveria uma chance de tudo isso não passar de um sonho, um delírio de alguma espécie? Olhou furtivamente para Claire. Ela estava recostada em sua poltrona, os olhos fechados, imóvel, a não ser pela pulsação de seus batimentos cardíacos, quase invisíveis na base de sua garganta. Não. Ele podia, por um instante, convencer-se de que tudo era um faz-de-conta, mas somente enquanto não olhasse para ela. Por mais que quisesse acreditar no contrário, não podia olhar para ela e duvidar sequer de uma palavra do que ela dissera.

Espalmou as mãos sobre a mesa, depois virou as palmas para cima, observando o labirinto de linhas que as cruzavam. Seria apenas seu próprio destino que jazia ali em suas mãos ou conteriam o destino de uma desconhecida também?

Nenhuma resposta. Fechou as mãos devagar, como se prendesse algo pequeno dentro dos punhos cerrados, e fez sua escolha.

— Vamos procurá-la — ele disse.

Não se ouviu nenhum ruído da figura silenciosa na poltrona bergère e nenhum movimento, a não ser o subir e descer de seu peito arredondado. Claire dormia.

 

A velha campainha soou em algum lugar nas profundezas do apartamento. Não era a melhor parte da cidade, mas também não era a pior. Em sua maioria, eram casas de classe operária, algumas, como esta, divididas em dois ou três apartamentos. Uma nota escrita à mão sob a campainha dizia MCHENRY — TOQUE DUAS VEZES. Roger cuidadosamente tocou a campainha de novo, depois limpou as mãos nas calças. Suas palmas estavam suadas, o que o aborrecia consideravelmente.

Havia um vaso comprido de narcisos amarelos junto ao degrau da porta, quase mortos por falta de água. As pontas das folhas em forma de lâminas estavam ressequidas e crispadas, e os brotos amarelos e enrolados inclinavam-se desoladamente junto aos seus sapatos.

Claire os viu também.

— Talvez não haja ninguém em casa — ela disse, parando para tocar o solo seco do vaso. — Essa planta não é aguada há mais de uma semana.

Roger sentiu uma leve onda de alívio com o pensamento; quer ele acreditasse que Geillis Duncan era Gillian Edgars ou não, não estava ansioso por esta visita. Já se virava para ir embora quando a porta abriu-se repentinamente atrás dele, como um rangido de madeira empenada que fez seu coração subir à boca.

— Sim? — O homem que atendeu estreitou os olhos para eles, olhos inchados num rosto vermelho e congestionado, escurecido pela barba por fazer.

— Hã... desculpe incomodá-lo, senhor — Roger disse, esforçando-se para se acalmar. Sentia um vazio na boca do estômago. — Procuramos a srta. Gillian Edgars. Esta é a residência dela?

O homem esfregou a mão curta e rude, recoberta de pêlos pretos, pela cabeça, fazendo os cabelos eriçarem-se como espinhos beligerantes.

— É senhora Edgars, rapaz. E o que você quer com minha mulher? — Os vapores etílicos do hálito do sujeito fizeram Roger desejar dar um passo para trás, mas permaneceu onde estava.

— Só queremos falar com ela — ele disse, da maneira mais conciliadora possível. — Ela está em casa, por favor?

— Ela está em casa, por favor? — disse o homem que devia ser o sr. Edgars, contraindo a boca numa imitação estridente e grosseira do sotaque de Oxford de Roger. — Não, ela não está em casa. Cai fora — avisou, batendo a porta com tal força que deixou a cortina de renda tremendo com a vibração.

— Entendo por que ela não está em casa — Claire observou, erguendo-se na ponta dos pés para espreitar pela janela. — Eu também não estaria, se fosse isso o que me esperava.

— Sem dúvida — disse Roger sucintamente. — Tem outras sugestões para encontrar esta mulher?

Claire afastou-se do peitoril da janela.

— Ele está instalado em frente à televisão — ela relatou. — Vamos deixá-lo, ao menos até depois que o pub abrir. Enquanto isso, podemos ir a este instituto. Fiona disse que Gillian Edgars fazia cursos lá.

O Instituto de Estudos do Folclore e de Antigüidades das Highlands ficava no andar superior de uma casa estreita logo depois da zona comercial. A recepcionista, uma mulher baixa e gorda, com um casaquinho marrom e um vestido estampado, pareceu encantada em conhecê-los; ela não deve receber muita gente aqui em cima, Roger refletiu.

— Ah, sra. Edgars — ela disse, depois de ouvi-los. Roger achou que um repentino tom de dúvida havia se insinuado na voz da sra. Andrews, mas ela continuou alegre e comunicativa. — Sim — disse —, ela é freqüentadora assídua do instituto, tudo pago por suas aulas. Ela vem aqui freqüentemente, a sra. Edgars. — Muito mais do que a sra. Andrews realmente desejaria, pelo tom de sua voz.

— Ela não estaria aqui agora, por acaso, estaria? — Claire perguntou.

A sra. Andrews sacudiu a cabeça, fazendo as dezenas de cachinhos dançarem em sua cabeça.

— Ah, não — respondeu. — Hoje é segunda-feira. Somente eu e o dr. McEwan estamos aqui às segundas-feiras. Ele é o diretor, sabe. — Olhou para Roger com ar de reprovação, como se ele na verdade já devesse saber disso. Em seguida, aparentemente tranqüilizada pela evidente respeitabilidade dos dois visitantes, relaxou um pouco.

— Se querem perguntar pela sra. Edgars, deveriam falar com o dr. McEwan. Vou dizer a ele que estão aqui, está bem?

Quando começou a tentar sair de trás de sua mesa, Claire a interrompeu, inclinando-se para a frente.

— Por acaso você teria uma fotografia da sra. Edgars? — perguntou direto. Diante do olhar de surpresa da sra. Andrews, Claire sorriu sedutoramente, explicando: — Não vamos querer desperdiçar o tempo do diretor, se não for a pessoa que estamos procurando, não é mesmo?

A boca da sra. Andrews abriu-se ligeiramente e ela piscou, confusa, mas balançou a cabeça após um instante e começou a remexer pela escrivaninha, abrindo gavetas e falando consigo mesma.

— Sei que estão aqui em algum lugar. Eu as vi ontem mesmo, portanto não podem ter ido... ah, pronto! — Sacudindo os cachos, brandiu uma pasta retangular de fotografias em branco e preto, selecionando-as rapidamente.

— Aqui está — ela disse. — Esta é ela, em uma das expedições de escavação, fora da cidade, mas não dá para ver seu rosto, não é? Deixe-me ver se há alguma outra...

Retomou sua busca, murmurando consigo mesma, enquanto Roger espreitava com curiosidade por cima do ombro de Claire para a fotografia que a sra. Andrews colocara sobre a escrivaninha. Mostrava um pequeno grupo de pessoas de pé junto a um Land Rover, com um monte de sacos de juta e pequenas ferramentas no chão junto a eles. Era uma foto instantânea e várias das pessoas do grupo não estavam de frente para a câmera. Claire estendeu o dedo sem hesitação, tocando a imagem de uma jovem alta, de cabelos louros, lisos e longos, até o meio das costas. Bateu de leve na fotografia e balançou a cabeça silenciosamente para Roger.

— Você não pode ter certeza — ele murmurou para ela quase inaudivel-mente.

— O que foi, meu bem? — disse a sra. Andrews, olhando distraidamente por cima dos óculos. — Ah, não estavam falando comigo. Tudo bem, então, achei outra um pouco melhor. Ainda não mostra seu rosto inteiro, parece que ela se virou de lado, mas é melhor do que a anterior. — Ela deixou a nova fotografia cair abruptamente sobre a outra com um estalido triunfante.

Essa mostrava um homem mais velho com óculos de leitura e a mesma jovem de cabelos louros, inclinada sobre uma mesa, segurando o que, para Roger, parecia ser uma coleção de partes enferrujadas de um motor, mas que sem dúvida eram artefatos valiosos. Os cabelos da jovem caíam ao lado de seu rosto, que estava virado para o homem mais velho, mas a linha de um nariz reto e curto, um queixo adoravelmente redondo e a curva de uma bela boca apareciam com clareza. O olho visível na foto estava voltado para baixo, escondido sob pestanas longas e espessas. Roger reprimiu o assovio de admiração que se ergueu de modo espontâneo aos seus lábios. Ancestral ou não, ela era uma verdadeira beldade, ele pensou irreverentemente.

Ele olhou para Claire. Ela balançou a cabeça, sem falar. Estava ainda mais pálida do que o habitual e ele podia ver sua pulsação rápida na garganta, mas ela agradeceu à sra. Andrews com sua costumeira serenidade.

— Sim, é ela. Creio que, então, nós realmente gostaríamos de conversar com o diretor, se ele estiver disponível.

A sra. Andrews lançou um olhar rápido para a porta de painéis brancos atrás da escrivaninha.

— Bem, vou perguntar a ele, querida. Mas eu poderia lhe dizer do que se trata?

Roger já começara a abrir a boca, em busca de uma desculpa, quando Claire inseriu-se habilmente na brecha.

— Na verdade, somos de Oxford — ela disse. — A sra. Edgars fez um pedido de bolsa de estudos ao Departamento de Antigüidades e deu o instituto como referência com o resto de suas credenciais. Portanto, se não se importar...

— Ah, compreendo — disse a sra. Andrews, impressionada. — Oxford. Imagine! Vou pedir ao dr. McEwan para atendê-los agora mesmo.

Quando ela desapareceu atrás da porta de painéis brancos, parando apenas para uma leve batida antes de entrar, Roger inclinou-se para sussurrar no ouvido de Claire.

— Não existe um Departamento de Antigüidades em Oxford — ele sibi-lou -, e você sabe disso.

— Você sabe disso — ela retrucou com ar sério — e eu também, como tão sabiamente destacou. Mas há muita gente no mundo que não sabe e nós acabamos de encontrar uma delas.

A porta de painéis brancos começou a se abrir.

.— Esperemos que eles não conheçam nada fora daqui — Roger disse, enxugando a testa — ou que você saiba mentir rápido.

Claire levantou-se, sorrindo para a figura da sra. Andrews que os chamava, enquanto falava pelo canto da boca.

— Eu? Eu, que li almas para o rei da França? — Alisou a saia e a fez rodopiar. — Vai ser moleza.

Roger inclinou-se ironicamente, gesticulando em direção à porta.

— Après vous, madame.

Quando ela deu um passo à sua frente, ele acrescentou, num sussurro:

— Après vous, le déluge.

Os ombros de Claire se empertigaram, mas ela seguiu em frente sem se voltar para trás.

Para uma certa surpresa de Roger, foi realmente fácil. Não sabia ao certo se fora a habilidade de Claire em representar ou a preocupação do próprio dr. McEwan, mas a boa-fé de ambos não foi questionada. Não pareceu ocorrer ao diretor de que fosse altamente improvável que grupos de inspetores de Oxford se aventurassem pelas áreas incultas de Inverness para fazer indagações sobre a formação de uma possível estudante de pós-graduação. Entretanto, por outro lado, Roger pensou, o dr. McEwan parecia ter algo na sua mente; talvez ele não estivesse pensando com tanta clareza como de costume.

— Beeeem... sim, a sra. Edgars sem dúvida é muito inteligente. Muito inteligente — disse o diretor, como se procurasse se convencer. Era um homem alto, magro, com o lábio superior longo como o de um camelo, que se balançava conforme ele procurava hesitantemente pela próxima palavra. — Vocês... ela... quer dizer... — Sua voz definhou, o lábio superior contorcendo-se, depois perguntou finalmente: — Vocês já se encontraram com a sra. Edgars?

— Não — Roger disse, examinando o dr. McEwan com certa austeridade. — É por isso que estamos fazendo perguntas sobre ela.

— Existe alguma coisa... — Claire parou delicadamente, instigando o diretor a falar — que ache que talvez o comitê devesse saber, dr. McEwan? — Ela inclinou-se para frente, arregalando os olhos. — O senhor sabe, investigações como esta são absolutamente confidenciais. Mas é muito importante que sejamos completamente informados; há uma posição de confiança envolvida. — Abaixou a voz sugestivamente. — O ministério, sabe.

Roger teria adorado estrangulá-la, mas o dr. McEwan balançava a cabeça sabiamente, o lábio balançando sem parar.

— Ah, sem dúvida, minha cara senhora. Sim, é claro. O ministério. Compreendo perfeitamente. Sim, sim. Bem, eu... hum, talvez... não quero de forma alguma lhes dar uma impressão errada. E é uma oportunidade maravilhosa, sem dúvida...

Agora Roger queria estrangular os dois. Claire deve ter notado suas mãos contorcendo-se no colo com um desejo irresistível, porque colocou um fim com firmeza nos resmungos do diretor.

— Estamos basicamente interessados em duas coisas — ela disse rápido, abrindo o caderno de notas que carregava e posicionando-o sobre o joelho como se fosse usá-lo para referência. Comprar garrafa de xerez para a sra. T., Roger leu pelo canto do olho. Presunto fatiado para piquenique.

— Queremos saber, primeiro, sua opinião sobre o grau de conhecimentos da sra. Edgars e, segundo, sua opinião sobre sua personalidade de um modo geral. O primeiro, é claro, nós mesmos avaliamos — ela fez uma pequena marca em V no caderno de notas, ao lado de uma anotação que dizia Trocar cheques de viagem —, mas o senhor possui uma noção muito maior e mais detalhada, sem dúvida. — A essa altura, o dr. McEwan balançava a cabeça sem parar, hipnotizado.

— Sim, bem... — Ele arfou um pouco, então, com um rápido olhar em direção à porta para certificar-se de que estava fechada, e inclinou-se con-fidencialmente por cima da mesa. — A qualidade de seu trabalho... bem, sobre isso acho que posso satisfazê-los completamente. Vou lhes mostrar algumas coisas nas quais ela vem trabalhando. A outra... — Roger achou que ele estava prestes a ter que aturar outra rodada de tremores labiais e inclinou-se para frente com ar ameaçador.

O dr. McEwan reclinou-se para trás bruscamente, parecendo surpreso.

— Não é nada de mais, na verdade — disse. — É apenas que... bem, ela é uma jovem muito emotiva. Talvez seu interesse pareça às vezes um pouco... obsessivo? — Sua voz ergueu-se num tom de pergunta. Seus olhos lançaram-se de Roger a Claire, como um rato preso numa armadilha.

— A direção desse intenso interesse estaria por acaso focalizada em monumentos monolíticos? Em círculos de pedras? — Claire sugeriu educadamente.

— Ah, então isso ficou claro em seu pedido de bolsa? — O diretor puxou um lenço grande e encardido do bolso e enxugou o rosto com ele. — Sim, isso mesmo. Claro, muita gente se deixa impressionar por eles — observou. — As histórias sobre eles, o mistério. Vejam essas almas ignorantes em Stonehenge no solstício de verão, envoltas em mantos e capuzes. Entoando cânticos... toda essa bobagem. Não que eu fosse comparar Gillian Edgars a...

Ele ainda continuou falando por um longo tempo, mas Roger parou de ouvir. Parecia abafado no escritório acanhado e seu colarinho estava apertado demais; podia ouvir seu coração batendo, pulsando incessantemente nos dois ouvidos de forma irritante.

Simplesmente não era possível!, pensou. Decididamente impossível. É verdade, a história de Claire Randall era convincente — terrivelmente convincente. Mas, por outro lado, veja o efeito que ela está causando neste pobre velho, que não saberia o que é erudição acadêmica ainda que lhe fosse servida numa bandeja com pepinos em conserva. Ela sem dúvida era capaz de convencer o mais cético dos mortais. Não que ele, Roger, fosse tão suscetível quanto o dr. McEwan, é claro, mas...

Transtornado pela dúvida e pingando de suor, Roger prestou pouca atenção quando o dr. McEwan pegou um molhe de chaves de sua gaveta e levantou-se para conduzi-los por uma segunda porta até um longo corredor salpicado de portas.

— Saletas de estudo — o diretor explicou. Ele abriu uma das portas, revelando um cubículo de aproximadamente um metro e vinte de lado, mal comportando uma mesa estreita, uma cadeira e uma pequena estante. Sobre a mesa, perfeitamente empilhadas, via-se uma série de pastas de arquivo em cores diferentes. Ao lado, Roger viu um grande caderno de notas com capa cinza e uma etiqueta cuidadosamente escrita à mão na frente — MISCELÂNEA. Por alguma razão, a visão da caligrafia fez um calafrio percorrer sua espinha.

Aquilo estava ficando cada vez mais pessoal a cada instante. Primeiro, fotografias, agora as anotações da mulher. Foi assaltado por um momento de pânico à idéia de realmente se encontrar com Geillis Duncan. Quer dizer, Gillian Edgars. Quem quer que ela fosse.

O diretor abria várias pastas, apontando e explicando a Claire, que convincentemente fazia crer que tivesse alguma noção do que ele estava falando. Roger espreitou por cima de seu ombro, balançando a cabeça e dizendo: “Hum-hum, muito interessante”, a intervalos, mas as linhas inclinadas e volteios do manuscrito eram-lhe incompreensíveis.

Ela escreveu isso, ele não parava de pensar. Ela é real. Carne e osso e lábios e longos cílios. E se ela voltar no tempo através da pedra, morrerá queimada — esturricada e enegrecida, com os cabelos acesos como uma tocha na obs-curidade da aurora. E se não voltar, então... eu não existo.

Sacudiu a cabeça violentamente.

— Discorda, sr. Wakefield? — O diretor do instituto olhava-o perplexo. Ele sacudiu a cabeça outra vez, desta vez de constrangimento.

— Não, não. Quero dizer... é apenas que... seria possível me dar um copo de água?

— Claro, claro! Acompanhe-me, há um bebedouro logo ao virar o corredor, eu lhe mostrarei. — O dr. McEwan empurrou-o para fora da saleta e ao longo do corredor, expressando sua preocupação loquaz, desarticulada, com o seu estado de saúde.

Uma vez fora do confinamento claustrofóbico da saleta e da proximidade dos livros e pastas de Gillian Edgars, Roger começou a se sentir ligeiramente melhor. Ainda assim, a idéia de voltar para aquele minúsculo compartimento, onde todas as palavras de Claire sobre seu passado pareciam ecoar das finas paredes... não. Tomou uma decisão. Claire podia terminar com o dr. McEwan sozinha. Ele passou depressa pela saleta, sem olhar para dentro, e atravessou a porta que levava de volta à sala de recepção.

A sra. Andrews olhou-o espantada quando ele entrou, os óculos brilhando de preocupação e curiosidade.

— Nossa, sr. Wakefield. Não está se sentindo bem? — Roger esfregou a mão no rosto; devia estar com uma péssima aparência. Sorriu debilmente

— Não, muito obrigado. Só estava meio abafado lá atrás. Achei melhor descer para tomar um pouco de ar fresco.

— Ah, sim. — A secretária balançou a cabeça compreensivamente. — Os radiadores. Eles emperram, sabe, e não desligam. É melhor eu verificar. -Levantou-se de sua escrivaninha, onde a fotografia de Gillian Edgars ainda podia ser vista. Olhou para a foto, depois ergueu o olhar para Roger.

— Não é estranho? — disse em tom de conversa. — Eu estava olhando esta fotografia e imaginando o que havia no rosto da sra. Edgars que me chamou a atenção de repente. E não conseguia atinar com o que era. Mas ela tem os seus traços, sr. Wakefield, especialmente em torno dos olhos. Não é uma coincidência? Sr. Wakefield? — A sra. Andrews olhou espantada na direção da escada, onde o barulho dos passos de Roger ecoavam dos degraus de madeira.

— Apertado para ir ao banheiro, eu acho — ela disse amavelmente. -Pobre rapaz.

O sol ainda estava acima do horizonte quando Claire reuniu-se a Roger novamente na rua, mas a tarde terminava; as pessoas voltavam para casa para o seu chá e havia uma sensação de relaxamento geral no ar — uma expectativa de paz e descanso após um longo dia de trabalho.

Roger, entretanto, não compartilhava tais sentimentos. Adiantou-se para abrir a porta do carro para Claire, consciente de tal mistura de emoções que ele não conseguia decidir o que dizer primeiro. Ela entrou, erguendo os olhos para ele compreensivamente.

— Um choque e tanto, hein? — foi tudo que ela disse.

O labirinto diabólico de novas ruas de mão única tornava a travessia do centro da cidade uma tarefa que demandava toda a sua atenção. Já estavam bem adiantados em seu trajeto até ele finalmente poder tirar os olhos da estrada o suficiente para perguntar:

— E agora?

Claire estava recostada no banco, os olhos fechados, os anéis dos cabelos desprendendo-se de sua travessa. Ela não abriu os olhos diante da pergunta, mas espreguiçou-se ligeiramente, ajeitando-se no banco.

— Por que não convida Brianna para ir jantar em algum lugar? — ela disse. Jantar? De certa forma, parecia-lhe errado parar para jantar em meio a um esforço de investigação de vida ou morte, mas por outro lado; Roger percebeu de repente que a sensação de vazio em seu estômago não se devia inteiramente às revelações da última hora.

— Certo, está bem — ele disse devagar. — Mas amanhã...

— Por que esperar até amanhã? — Claire interrompeu-o. Estava sentada ereta agora, penteando os cabelos. Eram cheios e rebeldes, e assim, caídos em cachos sobre seus ombros, faziam-na parecer por um momento muito jovem, Roger pensou. — Você pode ir falar com Greg Edgars depois do jantar, não é?

— Como sabe que o nome dele é Greg? — Roger perguntou, curioso.

— E se ele não quis falar comigo esta tarde, por que o faria à noite?

Claire olhou para Roger como se de repente duvidasse de sua inteligência.

— Sei o nome dele porque vi numa carta na caixa de correio — ela disse.

— Quanto a por que ele falaria com você esta noite, ele falará porque você vai levar-lhe uma garrafa de uísque quando for lá desta vez.

— E você acha que isso o fará nos convidar para entrar? Ela ergueu uma das sobrancelhas.

— Você viu a coleção de garrafas vazias na lata de lixo dele? Claro que convidará. Na mesma hora. — Recostou-se novamente, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco e olhando para fora, para a rua que passava.

— Você pode ver se Brianna vai querer ir com você — ela disse descon-traidamente.

— Ela disse que não quer ter nada a ver com isso — Roger observou. Claire olhou-o com impaciência. O sol desaparecia atrás dela e fazia seus olhos brilharem na cor âmbar, como os de um lobo.

— Nesse caso, sugiro que não lhe diga o que tem em mente — ela disse, num tom de voz que fez Roger se lembrar que ela era médica-chefe da equipe de um grande hospital.

Suas orelhas queimavam, mas teimosamente disse:

— Não será possível esconder isso, se você e eu...

— Eu, não — Claire interrompeu-o. — Você. Eu tenho outra coisa a fazer.

Isso já era demais, Roger pensou. Freou o carro sem sinalizar e deslizou até parar por completo no acostamento. Olhou-a furiosamente.

— Tem outra coisa para fazer, não é? — perguntou. — Gosto disso! Você está me incumbindo de tentar seduzir um beberrão que provavelmente vai me atacar assim que me vir e atrair sua filha comigo para observar! O que é? Acha que vou precisar dela para me levar para o hospital depois que Edgars tiver acabado de me dar uma pancada na cabeça com uma garrafa?

— Não — Claire disse, ignorando o tom de sua voz. — Acho que você e Greg Edgars juntos podem ter sucesso onde eu não tive, em convencer Bri que Gillian Edgars é a mulher que eu conheci como Geillis Duncan. Ela se recusa a me ouvir. É provável que não queira ouvi-lo também, se tentar contar a ela o que descobrimos no instituto hoje. Mas ela ouvirá Greg Edgars. — Seu tom de voz era calmo e inflexível, e Roger sentiu seu aborrecimento declinar ligeiramente. Deu partida no carro de novo e voltou ao fluxo do trânsito.

— Está bem, vou tentar — ele disse de má vontade, sem olhar para ela. -E exatamente onde você estará enquanto eu faço isso?

Houve um pequeno barulho arrastado a seu lado enquanto ela remexia no bolso outra vez. Então, retirou a mão do bolso e abriu-a. Os olhos dele avistaram o brilho prateado de um pequeno objeto na escuridão da palma de sua mão. Uma chave.

— Vou arrombar o instituto — ela disse calmamente. — Quero aquele caderno de notas.

Depois de Claire ter pedido licença para ir cuidar de sua “missão” -fazendo Roger estremecer ligeiramente -, ele e Brianna dirigiram-se ao pub, mas resolveram adiar um pouco o jantar, já que a noite estava inesperadamente límpida. Caminharam pelo estreito passeio junto ao rio Ness, e ele esqueceu seus temores e preocupações a respeito da noite no prazer da companhia de Brianna.

Conversaram com cautela no começo, evitando qualquer assunto controverso. Depois, a conversa voltou-se para o trabalho de Roger e gradualmente se tornou mais animado.

— E como você sabe tanto sobre isso? — Roger perguntou, parando bruscamente no meio de uma frase.

— Meu pai me ensinou — ela respondeu. Diante da palavra “pai”, ela ficou um pouco tensa e recuou, esperando que ele dissesse alguma coisa. -Meu verdadeiro pai — ela acrescentou explicitamente.

— Bem, ele com certeza sabia — Roger observou brandamente, deixando de lado a contestação. Haveria muito tempo para isso mais tarde, minha jovem, pensou cinicamente. Mas não serei eu a comprar essa briga.

Logo abaixo na rua, Roger pôde ver uma luz na janela da casa de Edgars. A presa estava na toca, portanto. Sentiu um inesperado fluxo de adrenalina à idéia do confronto iminente.

A adrenalina deu lugar a uma onda de sucos gástricos que sobreveio quando entraram na atmosfera agradável do pub. A conversa girou em torno de assuntos gerais e amistosos, com um acordo subentendido de evitar qualquer referência à cena na residência paroquial no dia anterior. Roger notara a frieza entre Claire e sua filha, antes de deixá-la no ponto de táxi, a caminho do pub. Sentadas lado a lado no banco de trás, pareciam dois gatos estranhos um ao outro, as orelhas abaixadas e as caudas balançando, mas ambos evitando o contato olho a olho, que levaria a garras e pêlos arrancados

Após o jantar, Brianna foi buscar os seus casacos enquanto ele pagava a conta.

— Para que é isso? — ela perguntou, notando a garrafa de uísque na mão de Roger. — Planejando uma festa de arromba mais tarde?

— Festa de arromba? — ele disse, rindo para ela. — Você está progredindo mesmo, hein? E o que mais você aprendeu em seus estudos lingüísticos?

Ela abaixou os olhos numa encenação exagerada de modéstia.

— Ah, bem. Há uma dança nos Estados Unidos chamada shag. Mas acredito que não deva pedir a você para dançá-la comigo aqui.

— Não, a menos que essa seja sua intenção — ele disse. Ambos riram, mas ele achou que o rubor de suas faces se intensificara e percebeu em si mesmo uma certa excitação à idéia de sexo que o nome da dança sugeria. Assim sendo, deixou o casaco pendurado sobre o braço, em vez de vesti-lo.

— Bem, depois desse negócio aí, tudo é possível — ela disse, indicando a garrafa de uísque com um sorriso levemente malicioso. — Mas o gosto é terrível.

— Tem que ser adquirido, menina — Roger informou-a, carregando no sotaque. — Somente os escoceses já nascem com o gosto pelo uísque. Vou lhe comprar uma garrafa para você praticar. Mas esta aqui é um presente, que eu prometi entregar. Quer vir comigo ou devo ir mais tarde? — ele perguntou. Não sabia se queria que ela o acompanhasse ou não, mas sentiu uma onda de felicidade quando ela assentiu e encolheu os ombros dentro de seu casaco.

— Claro, por que não?

— Ótimo. — Estendeu a mão e ajeitou a gola do casaco de Brianna, que estava dobrada. — Fica logo aqui, mais abaixo nesta mesma rua. Vamos andando, está bem?

A vizinhança parecia um pouco melhor à noite. Um pouco de sua aparência suja e desgastada era escondida pela escuridão e as luzes que brilhavam das janelas nos minúsculos jardins conferiam à rua um ar de aconchego que não se via durante o dia.

— Não vai levar mais do que um minuto — Roger disse a Brianna quando tocou a campainha. Não tinha certeza se queria estar certo ou não. Seu primeiro temor passou quando a porta foi aberta; alguém estava em casa, e ainda consciente.

Edgars havia obviamente passado a tarde na companhia de uma das garrafas alinhadas ao longo da borda do aparador velho e abaulado visível atrás dele. Por sorte, ele não pareceu ligar os visitantes noturnos à intrusão da tarde. Estreitou os olhos à apresentação de Roger, criada no caminho para a casa.

— Primo de Gilly? Não sabia que ela tinha um primo.

— Bem, tem, sim — Roger disse, aproveitando-se ousadamente dessa admissão. — Sou eu. — Lidaria com a própria Gillian quando a visse. Se a visse.

Edgars piscou uma ou duas vezes, depois esfregou um olho inflamado com o punho cerrado, como se quisesse vê-los melhor. Seus olhos se focalizaram com alguma dificuldade em Brianna, pairando timidamente atrás de Roger.

— Quem é esta? — ele perguntou.

— Hã... minha namorada — Roger improvisou. Brianna estreitou os olhos para ele, mas não disse nada. Obviamente ela começava a suspeitar de que algo não estava certo, mas passou à sua frente sem protestar quando Greg Edgars abriu mais a porta para que entrassem.

O apartamento era pequeno e abafado, entulhado de móveis de segunda mão. O ar fedia a cigarro velho e lixo não removido, e os remanescentes de comida pronta espalhavam-se negligentemente por toda a superfície horizontal da sala. Brianna lançou um olhar enviesado a Roger que dizia Belos parentes você tem, e ele encolheu ligeiramente os ombros. Não é culpa minha. A dona da casa obviamente não estava e já há algum tempo.

Ao menos, não no sentido físico. Virando-se para pegar a cadeira que Edgars lhe ofereceu, Roger deparou-se com uma grande foto de estúdio, com moldura de metal, bem no centro do minúsculo consolo da lareira. Ele mordeu a língua para reprimir uma exclamação de espanto.

A mulher parecia estar olhando da fotografia direto para ele, um leve sorriso mal levantando o canto de sua boca. Asas de cabelos louro-claros caíam, cheios e lustrosos, pelos seus ombros, emoldurando um rosto em forma perfeita de coração. Os olhos verde-escuros como musgo de inverno brilhavam sob pestanas escuras e espessas.

— Boa semelhança, não? — Greg Edgars olhou para a foto, a expressão uma mistura de nostalgia e hostilidade.

— Hã... sim. Exatamente como ela é. — Roger sentiu-se um pouco sem ar e virou-se para retirar uma embalagem amassada de peixe com fritas de sua cadeira. Brianna fitava o retrato com interesse. Olhou da foto para Roger e de novo para a foto, claramente fazendo comparações. Primos, hein?

— Gillian não está aqui, está? — Roger começou a abanar a mão recusando a garrafa que Edgars inclinara inquisitivamente em sua direção, depois mudou de idéia e balançou a cabeça, aceitando a oferta. Talvez uma bebida compartilhada angariasse a confiança de Edgars. Se Gillian não estava em casa, ele precisava saber onde ela estava.

Ocupado em remover a tampa com os dentes, Edgars sacudiu a cabeça, depois delicadamente retirou um pedaço de cera e papel do lábio inferior.

— Quase nunca, companheiro. Não há tanta bagunça aqui quando ela está em casa. — Um gesto largo abrangeu os cinzeiros abarrotados e os copos de papel caídos por toda parte. — Um pouco, talvez, mas não tanto assim. — Tirou três copos da cristaleira, espreitando desconfiadamente o fundo de cada um deles, para verificar se estavam empoeirados.

Serviu o uísque com o cuidado exagerado de um verdadeiro bêbado, levando os copos um de cada vez para suas visitas. Brianna aceitou o dela com igual cuidado, mas recusou uma cadeira, apoiando-se, ao invés disso, graciosamente contra o canto do armário de louças.

Edgars afundou-se finalmente em um sofá cheio de calombos, ignorando os entulhos, e ergueu o copo.

— Saúde, companheiro — disse rapidamente, tomando um grande e barulhento gole. — Qual é mesmo seu nome? — perguntou, emergindo abruptamente de seu mergulho. — Ah, Roger, certo. Gilly nunca mencionou... mas ela não o faria — acrescentou, de mau humor. — Nunca soube nada de sua família e ela não contava nada. Acho que tinha vergonha de todos eles... mas você não parece nenhum idiota — ele disse generosamente. — Sua rapariga é uma beldade, pelo menos. — Riu estrondosamente, aspergindo gotículas de uísque para todo lado.

— Sim — Roger disse. — Obrigado. — Tomou um pequeno gole de sua bebida. Brianna, ofendida, virou-se de costas para Edgars e fingiu examinar o conteúdo da cristaleira pelas portas de vidro bisotado.

Não fazia nenhum sentido ficar fazendo rodeios, Roger decidiu. A essa altura, Edgars não iria reconhecer nenhuma sutileza ainda que ela mordesse seu traseiro. Além disso, parecia haver o perigo considerável de que ele pudesse perder a consciência a qualquer momento, pelo andar da carruagem.

— Sabe onde Gillian está? — ele perguntou direto. Toda vez que pronunciava seu nome, ele soava estranho em sua boca. Desta vez, não pôde deixar de lançar um olhar para o retrato no consolo da lareira, onde a foto sorria serenamente para a desordem abaixo.

Edgars sacudiu a cabeça, balançando-a lentamente de um lado para o outro sobre o copo, como um boi sobre o cocho de comida. Era um sujeito atarracado e corpulento, mais ou menos da idade de Roger, talvez, mas parecendo bem mais velho por causa da barba crescida e dos cabelos negros desgrenhados.

— Não — disse. — Achei que talvez você pudesse saber. Deve estar no Nacs ou no Rosas, provavelmente, mas não tenho notícia. Não saberia dizer em qual dos dois, especificamente.

— Nacs? — O coração de Roger acelerou-se. — Quer dizer, os nacionalistas escoceses?

As pálpebras de Edgars começavam a cair, mas ele piscou e abriu-as outra vez.

— Ah, sim. Os malditos Nacs. Foi onde conheci Gilly, sabe? --:.

— Quando foi isso, sr. Edgars?

Roger ergueu os olhos, surpreso com a voz macia que vinha de cima. Não foi a fotografia que falou, mas Brianna, olhando intensamente para Greg Edgars. Roger não sabia se ela estava apenas puxando conversa ou se suspeitava de alguma coisa. Seu rosto não demonstrava nada além de educado interesse.

— Não sei... há uns dois, três anos. Foi divertido no começo, hum? Expulsar os malditos ingleses, unir-se ao Mercado Comum por conta própria... cerveja no pub e um amasso no banco de trás na volta dos comícios. Humm. — Edgars sacudiu a cabeça outra vez, os olhos sonhadores com a visão. Em seguida, o sorriso desapareceu de seu rosto e ele franziu a testa, olhando para seu copo. — Isso foi antes de ela ficar maluca.

— Maluca? — Roger lançou outra olhada rápida à foto. Determinada, sim. Parecia ser. Mas não doida varrida, certamente. Ou não seria possível saber, por uma foto?

— Sim. Sociedade da Rosa Branca. Do príncipe Carlos, meu caro. Se ele não vai voltar outra vez e toda essa besteira. Um monte de idiotas vestidos de kilts e perucas, com espadas e tudo o mais. Tudo bem, se você gosta disso, é claro — acrescentou, com uma tentativa vesga de objetividade. — Mas Gilly sempre levou tudo longe demais. Sempre falando no Bonnie Prince e em como seria maravilhoso se ele tivesse vencido a rebelião de 1745. Uns caras na cozinha até altas horas, bebendo cerveja e discutindo os motivos por que ele não vencera. Em gaélico, ainda por cima. — Revirou os olhos. — Um monte de besteira. — Esvaziou seu copo para enfatizar essa opinião.

Roger podia ver os olhos de Brianna penetrando no lado de seu pescoço como verrumas. Puxou a gola da camisa para afrouxá-la, embora não estivesse usando gravata e o botão do colarinho estivesse desabotoado.

— Por acaso sua mulher também se interessava por monumentos de pedras, sr. Edgars? — Brianna já não se importava muito com o interesse educado; sua voz era cortante o suficiente para fatiar queijo. O efeito perdeu-se quase por completo em Edgars.

— Pedras? — Pareceu confuso e enfiou o dedo em um dos ouvidos, girando-o laboriosamente, como se esperasse melhorar sua audição.

— Os círculos de pedras pré-históricos. Como o Clava Cairns — Roger acrescentou, citando um dos marcos locais mais famosos. Desgraça pouca é bobagem, ele pensou com um suspiro mental de resignação. Brianna nunca mais iria querer falar com ele de qualquer forma, de modo que era melhor descobrir logo tudo que pudesse.

— Ah, esses. — Edgars soltou uma risada curta. — Sim, e toda sorte de bobagens antigas de que você puder se lembrar. Essa foi a última gota, e a pior. Enfiada lá no instituto dia e noite, gastando todo o meu dinheiro em cursos... cursos! É de fazer rir, não? Contos de fadas é o que ensinam lá. Não se pode aprender nada de útil naquele lugar, moça, eu disse isso a ela. Então, ela foi embora — ele disse com voz arrastada. — Não a vejo há duas semanas. — Olhou fixamente dentro de seu copo como se estivesse surpreso de encontrá-lo vazio.

— Mais um? — ele ofereceu, levando a mão à garrafa, mas Brianna sacudiu a cabeça decididamente.

— Não, obrigada. Temos que ir. Não é, Roger?

Vendo o perigoso brilho em seus olhos, Roger não sabia se não seria melhor para ele ficar para dividir o resto da garrafa com Greg Edgars. De qualquer modo, era uma longa caminhada até em casa, se ele deixasse Brianna levar o carro. Levantou-se com um suspiro e apertou a mão de Edgars em despedida. Sua mão era quente e surpreendentemente firme, ainda que um pouco úmida.

Edgars acompanhou-os até a porta, segurando a garrafa pelo gargalo. Espreitou-os através da porta de tela, gritando repentinamente pelo caminho de entrada:

— Se encontrar a Gilly, diga-lhe para vir pra casa, sim?

Roger virou-se e acenou para a figura indistinta no retângulo iluminado da porta.

— Vou tentar — ele gritou de volta, as palavras grudando-se em sua garganta.

Chegaram à calçada e percorreram metade da distância até o pub antes de Brianna interpelá-lo.

— Que diabos você está tramando? — Sua voz soou com raiva, mas não histérica. — Você me disse que não tem família nas Highlands, então que história é essa de primos? Quem é aquela mulher na foto?

Ele olhou ao redor da rua escura em busca de inspiração, mas não havia ajuda possível. Respirou fundo e segurou-a pelo braço.

— Geillis Duncan — ele disse.

Ela parou completamente imóvel e o choque da parada repentina repercutiu pelo seu próprio braço. Com grande deliberação, ela tirou o cotovelo de sua mão. O delicado tecido da noite rasgara-se ao meio.

— Não... me... toque — ela disse, entre dentes. — Trata-se de algo que minha mãe inventou?

Apesar de sua determinação em ser compreensivo, Roger também sentiu a raiva crescer.

— Olhe, você só consegue pensar em si mesma nesta história? Sei que foi um choque para você. Santo Deus, como poderia não ser? E se não consegue nem pensar no assunto... bem, eu não pretendo forçá-la. Mas há sua mãe a considerar. E a mim também.

— Você? O que você tem a ver com isso? — Estava escuro demais para ver seu rosto, mas a surpresa em sua voz era evidente.

Ele não pretendia complicar ainda mais a situação contando-lhe a respeito do seu envolvimento, mas obviamente era tarde demais para guardar segredos. E era evidente que Claire percebera isso, quando sugeriu que saísse com Brianna naquela noite.

Em um lampejo revelador, ele compreendeu pela primeira vez exatamente o que Claire pretendera. Ela de fato tinha uma maneira de provar sua história a Brianna, sem deixar dúvidas. Ela contava com Gillian Edgars, que — talvez — ainda não tivesse partido ao encontro de seu destino como Geillis Duncan, amarrada a um poste em chamas sob as sorveiras de Leoch. O mais teimoso dos céticos se convenceria, acreditava, ao ver alguém desaparecendo no passado diante de seus olhos. Não era de admirar que Claire desejasse encontrar Gillian Edgars.

Em poucas palavras, ele contou a Brianna seu relacionamento com a suposta bruxa de Cranesmuir.

— E assim parece que é a minha vida ou a dela — ele terminou, estremecendo, terrivelmente consciente do quanto soava ridiculamente melodramático. — Claire... sua mãe... ela deixou para mim a decisão. Mas achei que precisava encontrá-la, no mínimo.

Brianna parara de andar para ouvi-lo. A luz turva de uma loja de esquina refletia o brilho de seus olhos enquanto ela o fitava.

— Então, você acredita? — ela perguntou. Não havia nenhuma incredulidade ou desprezo em sua voz; estava absolutamente séria.

Ele suspirou e tomou-a pelo braço outra vez. Ela não resistiu, mas começou a acompanhar seus passos.

— Sim — ele disse. — Tinha que acreditar. Você não viu o rosto de sua mãe, quando viu as palavras inscritas dentro do anel. Isso foi real... suficientemente real para partir meu coração.

— É melhor você me contar — ela disse, após um curto silêncio. — Que palavras?

Quando terminou de contar a história, haviam chegado ao estacionamento atrás do pub.

— Bem... — Brianna disse, hesitante. — Se... — parou outra vez, fitando-o nos olhos. Ela estava bastante perto para que ele sentisse o calor de seus seios, junto ao seu peito, mas ele não a abraçou. A igreja de Santa Kilda estava muito longe e nenhum dos dois queria se lembrar da sepultura sob os teixos, onde os nomes dos pais de Brianna estavam inscritos na pedra.

— Não sei, Roger — ela disse, sacudindo a cabeça. O letreiro de néon acima da porta dos fundos do pub conferia reflexos roxos a seus cabelos. -Eu não posso... não consigo pensar nisso ainda. Mas... — Faltaram-lhe as palavras, mas ela ergueu a mão e tocou seu rosto, levemente, como o roçar do vento da noite. — Pensarei em você — murmurou.

No fim das contas, cometer arrombamento com uma chave não é uma proposta muito difícil. A probabilidade de a sra. Andrews ou o dr. McEwan voltar e flagrar-me no ato era infinitamente pequena. Ainda que voltassem, tudo que eu precisaria fazer era dizer que eu retornara para procurar uma caderneta que havia perdido e encontrara a porta aberta. Eu estava sem prática, mas a fraude um dia fora como uma segunda natureza para mim. Mentir era como andar de bicicleta, pensei; não se esquece.

Assim, não era o ato de apoderar-me do caderno de notas de Gillian Edgars que fazia meu coração disparar e minha respiração soar alta aos meus próprios ouvidos. Era o caderno em si.

Como mestre Raymond dissera-me em Paris, o poder e o perigo da magia residem nas pessoas que acreditam nela. Pelo vislumbre que eu tivera do conteúdo anteriormente, as reais informações registradas naquele caderno de capa dura eram uma extraordinária mistura de fatos, especulação e. completa fantasia que só podia ser importante para o escritor. Mas eu senti uma repugnância quase física ao tocá-lo. Conhecendo quem o escrevera, sabia o que ele representava: um grimoire, o livro de segredos de um bruxo.

Ainda assim, se houvesse qualquer pista do paradeiro e das intenções de Geillis Duncan, estaria ali. Reprimindo um tremor ao tocar a capa escorregadia, enfiei o caderno sob meu casaco, mantendo-o preso com o cotovelo para a descida das escadas.

A salvo na rua, eu ainda mantinha o livro preso sob meu cotovelo, a capa tornando-se pegajosa de suor enquanto eu andava. Sentia como se estivesse transportando uma bomba, algo que devia ser manipulado com extremo cuidado, para evitar uma explosão.

Caminhei durante algum tempo, finalmente entrando no jardim de um pequeno restaurante italiano com um terraço perto do rio. A noite estava fria, mas um pequeno aquecedor elétrico tornava as mesas do terraço suficientemente aquecidas para serem usadas; escolhi uma e pedi um copo de Chianti. Tomei-o em pequenos goles, o caderno pousado na pequena toalha de papel à minha frente, na camuflagem da sombra de uma cestinha de pão de alho.

Era final de abril. A apenas alguns dias do Beltane, o festival da primavera. Foi quando eu mesma fiz minha viagem inesperada ao passado. Seria possível que houvesse alguma coisa a respeito da data — ou apenas a época geral do ano? Era meados de abril quando retornei — isso tornara possível a assustadora passagem. Ou talvez não; talvez a época do ano não tivesse nada a ver com isso. Pedi outro copo de vinho.

Poderia ser que somente algumas pessoas tivessem a capacidade de furar uma barreira, sólida para todas as demais — talvez alguma coisa na formação genética? Quem saberia? Jamie não conseguira penetrá-la, embora eu pudesse. E Geillis Duncan obviamente conseguira — ou conseguiria. Ou talvez não, dependendo. Pensei no jovem Roger Wakefield e senti-me ligeiramente enjoada. Achei melhor pedir um prato para acompanhar o vinho.

A visita ao instituto me convencera de quem quer que fosse Gillian/Geillis, ela ainda não havia feito sua própria passagem fatal. Qualquer um que tivesse estudado as lendas das Highlands saberia que o festival de Beltane estava se aproximando; certamente, qualquer um que estivesse planejando tal expedição procuraria realizá-la nessa ocasião. Mas eu não tinha a menor idéia de onde ela poderia estar, se não estivesse em casa; escondida? Realizando algum estranho ritual de preparação, aprendido com o grupo de novos druidas ao qual Fiona pertencia? O caderno de notas podia conter alguma pista, mas só Deus saberia.

Também só Deus saberia qual era a minha própria motivação em tudo isso; eu pensei que soubesse, mas não tinha mais certeza. Teria eu envolvido Roger na busca por Geillis porque me parecera a única maneira de convencer Brianna? Entretanto... ainda que a encontrássemos a tempo, meu próprio objetivo só seria alcançado se Gillian conseguisse voltar no tempo. E assim, morrer na fogueira.

Quando Geillis Duncan foi condenada como feiticeira, Jamie me dissera: “Não chore por ela, Sassenach; é uma mulher má.” E se ela era má ou louca, pouca diferença fizera na ocasião. Eu não deveria ter deixado esse assunto em paz, não deveria deixá-la ir ao encontro de seu próprio destino? Ainda assim, pensei, ela salvara minha vida um dia. Independentemente de quem ela fosse — ou viria a ser -, eu tinha o dever moral de tentar salvar sua vida? E assim, talvez, condenar Roger? Que direito eu tinha de interferir ainda mais?

Não é uma questão do que é certo, Sassenach, ouvi a voz de Jamie dizendo, com um tom de impaciência. É uma questão de dever. De honra.

— Não é? — eu disse em voz alta. — E o que é isso? — O garçom com meu prato de tortellini olhou-me espantado.

— Hein? — exclamou.

— Deixe pra lá — eu disse, distraída demais para me importar muito com o que ele pensasse de mim. — É melhor você trazer o resto da garrafa.

Terminei minha refeição cercada de fantasmas. Finalmente, fortalecida pela comida e pelo vinho, afastei meu prato vazio e abri o caderno cinza de Gillian Edgars.

 

Não há nenhum lugar mais escuro do que uma estrada das Highlands no meio de uma noite sem lua. Eu podia ver o clarão de faróis que passavam de vez em quando, colocando em silhueta a cabeça e os ombros de Roger com uma repentina explosão de luz. Eles estavam curvados para frente, como em atitude de defesa contra um perigo próximo. Bri também estava curvada, enroscada no canto do banco ao meu lado. Nós três estávamos pouco comunicativos, isolados uns dos outros, fechados em pequenas bolsas individuais de silêncio, dentro do silêncio maior do carro e de sua corrida veloz.

Meus punhos cerravam-se nos bolsos do meu casaco, distraidamente segurando moedas e pequenos fragmentos de objetos; um pedaço de lenço-de-papel, um toco de lápis, uma minúscula bola de borracha deixada no chão do meu consultório por uma pequena paciente. Meu polegar circundou e identificou a borda frisada de uma moeda americana de vinte e cinco cents, a face larga, em alto-relevo, de uma moeda inglesa de um penny e a ponta serrilhada de uma chave — a chave da saleta de estudos de Gillian Edgars, que eu não me dei ao trabalho de devolver ao instituto.

Eu tentara outra vez telefonar para Greg Edgars, logo depois de deixarmos a velha casa paroquial. O telefone tocara incessantemente, sem que ninguém atendesse.

Olhei fixamente para o vidro escuro da janela ao meu lado, não vendo nem meu próprio reflexo difuso nem as formas maciças de muros de pedras e árvores dispersas que passavam a toda a velocidade na noite. Em vez disso, via a fileira de livros, arrumados na única prateleira em uma linha tão perfeita quanto uma fileira de frascos de um boticário. Embaixo, o caderno de notas repleto com a escrita cursiva e elegante, dispondo de forma absolutamente organizada deduções e alucinações, misturando mito e ciência, citando sábios e lendas, tudo com base no poder dos sonhos. Para qualquer observador superficial, tanto poderia ser uma confusão de bobagens irrefletidas ou, na melhor das hipóteses, o esboço de um romance tolo. Apenas para mim parecia um plano cuidadoso e deliberado.

Numa paródia do método científico, a primeira seção intitulava-se “Observações”. Continha referências desconexas, desenhos bem organizados e tabelas cuidadosamente numeradas. “A posição do sol e da lua no

Festival de Beltane” era uma delas, com uma lista de mais de duzentos pares de figuras desenhados abaixo. Tabelas semelhantes existiam para o Hogmanay e o Midsummers Day — o solstício de verão -, e outra para o Samhainn, o festival de Ali Hallows. As festividades antigas do fogo e do sol... e o sol de Beltane se levantaria amanhã.

A seção central do caderno de notas intitulava-se “Especulações”. Essa, ao menos, era precisa, refleti ironicamente. Uma das páginas ostentava esta inscrição, em letras manuscritas inclinadas e perfeitamente desenhadas: “Os druidas queimavam vítimas de sacrifícios em gaiolas de vime no formato de um homem, mas indivíduos eram mortos por estrangulamento e tinham a garganta cortada de forma a drenar todo o sangue do corpo. Seria o fogo ou o sangue o elemento necessário?” A curiosidade fria da pergunta trouxe o rosto de Geillis Duncan com clareza diante de mim — não a estudante deslumbrada, de cabelos lisos e compridos, cujo retrato adornava o instituto, mas a mulher do fiscal, furtiva, dissimulada, dez anos mais velha, versada no uso de drogas e do corpo, que seduzia os homens para seus propósitos e matava friamente para atingir seus fins. E as últimas páginas do caderno, cuidadosamente intituladas “Conclusões”, que nos levara àquela sombria viagem, na véspera do festival de Beltane. Dobrei os dedos sobre a chave, desejando de todo o coração que Greg Edgars tivesse atendido o telefone.

Roger diminuiu a marcha, entrando no caminho de terra, cheio de depressões, que passava pelo sopé da colina denominada Craigh na Dun.

— Não vejo nada — ele disse. Ele não falava há tanto tempo que a declaração veio brusca e rouca, soando beligerante.

— Bem, claro que não — Brianna disse com impaciência. — Não se pode ver o círculo de pedras daqui.

Roger resmungou em resposta e diminuiu ainda mais a velocidade do carro. Obviamente, os nervos de Brianna estavam tensos, mas os dele também estavam. Somente Claire parecia calma, sem se deixar afetar pelo crescente ar de tensão no carro.

— Ela está aqui — Claire disse de repente. Roger pisou nos freios com tanta força que tanto Claire quanto sua filha foram lançadas para a frente, batendo no encosto do banco dianteiro.

— Cuidado, idiota! — Brianna repreendeu Roger furiosamente. Passou a mão pelos cabelos, afastando-os do rosto com um gesto rápido e nervoso. Engoliu em seco, com um movimento visível em sua garganta enquanto se inclinava para espreitar pela janela escura.

— Onde? — perguntou.

Claire fez um movimento com a cabeça, indicando à frente e à direita, mantendo as mãos enfiadas nos bolsos.

— Há um carro parado ali, logo atrás dos arbustos.

Roger umedeceu os lábios e estendeu a mão para a maçaneta da porta.

— É o carro de Edgars. Vou dar uma olhada. Fiquem aqui.

Brianna escancarou sua porta com um rangido estridente de metal das dobradiças não lubrificadas. Seu olhar silencioso de desdém fez Roger ficar vermelho na fraca claridade da luz do teto do carro.

Ela já estava de volta quase antes de Roger conseguir sair do carro.

— Não há ninguém lá — informou. Ergueu os olhos para o topo da colina. — Vocês acham...?

Claire terminou de abotoar seu casaco e entrou na escuridão sem responder à pergunta de sua filha.

— A trilha é por aqui — ela disse.

Seguiu na frente, impetuosamente, e Roger, observando a figura pálida vagar como um fantasma encosta acima à sua frente, foi forçosamente lembrado da viagem anterior pela encosta íngreme de outra colina, até o cemitério de Santa Kilda. Brianna também se lembrou; ela hesitou e ele ouviu-a murmurar algo com raiva a meia-voz, mas depois sua mão segurou seu cotovelo e apertou-o com força — se para encorajá-lo ou suplicar seu apoio ele não sabia. O gesto deu coragem a ele, de qualquer forma, e ele bateu de leve na mão da jovem e enfiou-a na curva de seu braço. Apesar de todas as suas dúvidas, e da inegável esquisitice de toda a expedição, sentiu uma grande empolgação quando se aproximaram do cume da colina.

Era uma noite límpida, sem lua e muito escura, sem nada além dos minúsculos pontinhos brilhantes dos flocos de mica à luz das estrelas servindo para distinguir as pedras verticais no antigo círculo monolítico da noite ao seu redor. O trio parou no topo suavemente arredondado da colina, aconchegando-se uns contra os outros como um grupo de ovelhas desgarradas. A respiração de Roger soava estranhamente alta para ele próprio.

— Isto — Brianna disse entre dentes — é uma tolice!

— Não, não é — Roger disse. Sentiu-se repentinamente sem ar, como se uma faixa constringisse seu peito, retirando todo o ar contido ali. — Há uma luz lá adiante.

A luz mal tremeluziu — não passou de uma centelha que prontamente desapareceu —, mas ela a viu. Ele ouviu sua repentina tomada de ar.

E agora?, Roger perguntou-se. Deveriam gritar? Ou o barulho de visitantes assustaria a caça, precipitando sua ação? E se assim fosse, que ação seria essa?

Viu Claire sacudir a cabeça subitamente, como se tentasse enxotar um inseto zumbindo em seu ouvido. Ela recuou um passo, afastando-se da pedra mais próxima e colidiu com ele.

Ele segurou-a pelo braço, murmurando: “Cuidado, cuidado”, como se falaria com um cavalo. O rosto de Claire não passava de uma mancha indistinta à luz das estrelas, mas ele pôde sentir o tremor que percorreu o seu corpo, como eletricidade através de um arame. Ficou paralisado, segurando-a pelo braço, sem saber o que fazer.

Foi o repentino cheiro de gasolina que o fez entrar em ação. Teve uma vaga percepção de Brianna, a cabeça levantada bruscamente quando o cheiro atingiu suas narinas, virando-se para o extremo norte do círculo. Então, ele já havia largado o braço de Claire, atravessara os arbustos à volta e as próprias pedras, correndo para o centro do círculo, onde uma figura negra agachada parecia uma mancha de tinta contra a grama mais clara.

A voz de Claire veio de trás dele, forte e imperiosa, estilhaçando o silêncio.

— Gillian! — ela gritou.

Ouviu-se um sopro forte e repentino e a noite iluminou-se com um brilho intenso. Ofuscado, Roger recuou um passo, tropeçando e caindo de joelhos.

Por um instante, não viu nada a não ser a luz em suas retinas e a chama esplendorosa que ocultava tudo que houvesse por trás dela. Ouviu um grito ao seu lado e sentiu a mão de Brianna em seu ombro. Ele piscou com força, os olhos lacrimejando, e a visão começou a retornar.

A figura esbelta erguia-se entre eles e o fogo, em silhueta como o desenho de uma ampulheta. Quando sua visão clareou, ele percebeu que ela vestia uma saia longa e ampla e um espartilho apertado — roupas de outra época. Ela virara-se com o grito de Claire e ele teve a breve impressão de olhos arregalados e cabelos louros esvoaçantes, agitados e arrepiados pelo vento quente do fogo.

Ele ainda teve tempo, enquanto se esforçava para se levantar, de se perguntar como ela arrastara uma tora daquele tamanho até ali. Em seguida, o cheiro de pele e cabelos queimados atingiu seu rosto como um soco e então ele se lembrou. Greg Edgars não estava em casa esta noite. Sem saber se sangue ou fogo era o elemento necessário, ela resolvera usar ambos.

Passou por Brianna, concentrado apenas na figura esbelta e alta diante dele e a imagem de um rosto que refletia o seu próprio. Ela o viu se lançando em sua direção, virou-se e correu como o vento para a pedra fendida no final do círculo. Carregava uma mochila de lona grossa, pendurada no ombro; ouviu-a soltar um gemido quando a mochila girou pesadamente e bateu na lateral do seu corpo.

Ela parou por um instante, a mão estendida para a rocha, e olhou para trás. Ele podia jurar que seus olhos pousaram nele, fitaram os seus sem se desviar, do outro lado da barreira de chamas. Ele abriu a boca num grito sem som. Então, ela girou nos calcanhares, leve como uma fagulha esvoa-çante, e desapareceu na fenda da rocha.

O fogo, o corpo, a própria noite desapareceram subitamente num som agudo atordoante. Roger viu-se de rosto no chão, agarrando-se à terra na busca frenética de uma sensação familiar à qual ancorar sua sanidade. A procura foi inútil; nenhum dos seus sentidos parecia funcionar — até mesmo o toque do solo não tinha consistência, era amorfo como se ele estivesse deitado em areia movediça, e não sobre granito.

Cego pela claridade, surdo pelo grito da pedra dilacerada, ele tateou, debatendo-se freneticamente, desconectado de suas próprias extremidades, consciente apenas de uma força imensa que o puxava e da necessidade de resistir a ela.

Não havia nenhuma sensação de passagem do tempo; ele tinha a impressão de estar se debatendo no vazio eternamente, quando por fim percebeu algo fora de si mesmo. Mãos que agarravam seus braços com uma força desesperada e a maciez esmagadora de seios sobre seu rosto.

A audição começou a retornar gradualmente e com ela o som de uma voz chamando-o. Na realidade, xingando-o, arfando entre uma expressão e outra!

— Seu idiota! Seu... imbecil! Acorde, Roger, seu... estúpido! — Sua voz estava abafada, mas o sentido de suas palavras atingia-o claramente. Com um esforço sobre-humano, estendeu os braços e agarrou-a pelos pulsos. Rolou no chão, sentindo-se pesado, e viu-se piscando estupidamente para o rosto banhado em lágrimas de Brianna Randall, os olhos escuros como cavernas na luz agonizante do fogo.

O cheiro de gasolina e carne tostada era devastador. Ele virou-se, nauseado, e vomitou convulsivamente na grama molhada. Estava ocupado demais até para se sentir agradecido por seu olfato ter retornado.

Limpou a boca na manga e tateou sem firmeza em busca do braço de Brianna. Ela estava encolhida no chão, tremendo.

— Ah, meu Deus — ela disse. — Ah, meu Deus. Achei que não iria conseguir segurá-lo. Você estava se arrastando direto para dentro da pedra. Ah, meu Deus.

Ela não resistiu quando ele a puxou para si, mas também não correspondeu ao seu abraço. Apenas continuou tremendo, as lágrimas escorrendo dos olhos vazios e arregalados, repetindo: “Ah, meu Deus”, de quando em quando, como um disco quebrado.

— Calma — ele disse, batendo de leve em suas costas. — Tudo vai ficar bem. Calma. — A sensação de tontura em sua cabeça estava arrefecendo, embora ele ainda sentisse como se tivesse sido dividido em inúmeros pedaços e espalhado violentamente entre os quatro pontos cardeais.

Ouviu-se um leve estalido do objeto enegrecido no chão, mas acima disso e das exclamações mecânicas de Brianna, a quietude da noite retornava. Ele colocou as mãos nos ouvidos, como se quisesse silenciar os ecos do ruído mortífero.

— Você também ouviu? — ele perguntou. Brianna continuou chorando, mas balançou a cabeça, aos solavancos, como uma marionete.

— Sua... — ele começou, ainda esforçando-se para reordenar seus pensamentos, depois se empertigou com um pulo, quando um deles assaltou-o com absoluta clareza.

— Sua mãe! — exclamou, agarrando Brianna com toda a força pelos dois braços. — Claire! Onde ela está?

Brianna ficou boquiaberta com o choque e levantou-se tropegamente, varrendo os olhos em desespero pelos confins do círculo vazio, onde as pedras da altura de um homem assomavam, parcialmente ocultas nas sombras do fogo moribundo.

— Mamãe! — ela gritou. — Mamãe, onde você está?

— Está tudo bem — Roger disse, tentando soar convincente e tranqüilizador. — Ela vai ficar bem agora.

Na verdade, ele não fazia a menor idéia se Claire Randall viria a ficar bem algum dia. Ela estava viva, ao menos, e isso era tudo que ele podia garantir.

Eles a encontraram, sem sentidos e inerte na grama perto da borda do círculo, branca como a lua que nascia, sem nada além da lenta e escura exsudação de sangue das palmas de suas mãos para atestar que seu coração ainda batia. Da descida infernal pela trilha até o carro, o peso morto de Claire pendurado em seu ombro, sacudindo-se desastradamente conforme pedras rolavam sob seus pés e galhos agarravam-se às suas roupas, ele preferia não se lembrar de nada.

A descida da colina assombrada o deixara exausto; foi Brianna, os ossos da face proeminentes de concentração, quem dirigira de volta até a residência paroquial, as mãos agarradas ao volante como braçadeiras. Derreado no banco a seu lado,,Roger teve a última visão, pelo espelho retrovisor, da claridade no topo da colina atrás deles, onde uma pequena e luminosa nuvem flutuava como a fumaça de um canhão, prova muda de uma batalha ali travada.

Agora, Brianna pairava pelo sofá onde sua mãe estava deitada, imóvel como uma estátua de sarcófago. Com um estremecimento, Roger evitara a lareira onde a lenha já estava amontoada e preferira ligar o pequeno aquecedor elétrico com que o reverendo costumava aquecer os pés nas noites de inverno. Suas barras brilhavam incandescentes e ele fazia um alto e agradável zumbido que encobria o silêncio no gabinete.

Roger sentou-se num banquinho ao lado do sofá, sentindo-se fraco e abatido. Reunindo os últimos resquícios de força de vontade, estendeu o braço para a mesinha do telefone, a mão pairando a alguns centímetros acima do aparelho.

— Deveríamos... — Teve que parar para clarear a garganta. — Deveríamos... chamar um médico? A polícia?

— Não. — A voz de Brianna soou decidida, mas distante, enquanto se inclinava sobre a figura imóvel no sofá. — Ela está acordando.

As pálpebras cerradas estremeceram, contraíram-se levemente à lembrança renovada de dor, em seguida relaxaram-se e abriram-se. Seus olhos estavam límpidos e suaves como mel. Vagaram de um lado para o outro, deslizaram por Brianna, empertigada e rígida a seu lado, e fixaram-se no rosto de Roger.

— Ela... voltou?

Seus dedos estavam contorcidos no tecido de sua saia e ele viu os traços leves e escuros de sangue que deixaram para trás. Suas próprias mãos crispavam-se instintivamente sobre os joelhos, as palmas latejando. Então, ela também resistira, agarrando-se à grama e aos cascalhos, a qualquer coisa que a impedisse de ser engolida pelo passado. Fechou os olhos contra a lembrança da força de atração daquela fenda, balançando a cabeça.

— Sim — respondeu. — Ela se foi.

Os olhos claros voltaram-se imediatamente para o rosto da filha, as sobrancelhas acima deles arqueadas num gesto de interrogação. Mas foi Brianna quem perguntou.

— Era verdade, então? — disse, hesitante. — Era tudo verdade? Roger sentiu o pequeno tremor que percorreu o corpo da jovem e, sem pensar duas vezes, estendeu o braço para segurar sua mão. Contraiu-se involuntariamente quando ela a apertou com força e lembrou-se de um dos textos do reverendo: “Abençoados os que não viram e acreditaram.” E aqueles que precisam ver para acreditar? O efeito da crença obtida através da visão tremia assustada a seu lado, aterrorizada por tudo o mais em que agora tinha que acreditar.

Mesmo enquanto a jovem retesava os músculos, preparando-se para enfrentar a verdade que já constatara, os contornos do corpo tenso de Claire no sofá relaxaram-se. Os lábios pálidos curvaram-se num arremedo de sorriso e uma expressão de profunda paz suavizou o rosto pálido e tenso, acendendo o brilho dos olhos dourados.

— É verdade — ela disse. Suas faces pálidas recuperaram um pouco de cor. — Sua mãe mentiria para você? — E fechou os olhos outra vez.

Roger estendeu o braço para desligar o aquecedor elétrico. A noite estava fria, mas ele não podia mais permanecer no gabinete, seu santuário temporário. Ainda se sentia debilitado, mas não podia mais adiar. A decisão tinha que ser tomada.

Já era quase dia quando a polícia e o médico terminaram seu trabalho na noite anterior, preenchendo seus formulários, tomando depoimentos, colhendo pistas vitais e fazendo o melhor para explicar a verdade. “Abençoados os que não viram”, pensou, com devoção, “e acreditaram.” Especialmente neste caso.

Finalmente, foram embora, com seus formulários e distintivos e carros com suas luzes piscando, para supervisionar a remoção do corpo de Greg Edgars do círculo de pedras, para emitir uma ordem de prisão contra sua mulher, que, tendo atraído o marido para a morte, fugira da cena do crime. Para colocar a questão de forma branda, Roger pensou, atordoado.

Cansado física e mentalmente, Roger deixara as Randall aos cuidados do médico e de Fiona e fora se deitar, sem se dar ao trabalho de se despir ou afastar as cobertas, apenas deixando-se cair num esquecimento abençoado. Acordado quase ao pôr-do-sol por uma fome corrosiva, descera as escadas tropegamente, encontrando suas hóspedes igualmente silenciosas, embora mais arrumadas, ajudando Fiona a preparar o jantar.

Fizeram uma refeição silenciosa. A atmosfera não era tensa; era como se a comunicação acontecesse de forma invisível entre as pessoas à mesa. Brianna sentara-se ao lado da mãe, tocando-a de vez em quando ao passar um prato, como se quisesse se assegurar de sua presença. Olhara para Roger de vez em quando, olhares breves e tímidos por baixo das pestanas, mas não falara com ele.

Claire falou pouco e não comeu quase nada, permanecendo sentada absolutamente quieta, silenciosa e serena como um lago ao sol, os pensamentos voltados para o interior. Após o jantar, pediu licença e foi sentar-se no banco fundo sob a janela no final do corredor, alegando cansaço. Brianna lançara um rápido olhar para a mãe, o rosto voltado para a janela, a figura recortada em silhueta contra a última claridade do sol poente, e em seguida fora ajudar Fiona com a louça na cozinha. Roger dirigira-se ao gabinete, a boa refeição de Fiona pesando agradavelmente em seu estômago, para pensar.

Duas horas mais tarde, ele ainda estava pensando, quase sem nenhum proveito. Havia livros empilhados desordenadamente sobre a escrivaninha e sobre a mesa, deixados abertos nos assentos das poltronas e no encosto do sofá. Grandes espaços vazios nas estantes abarrotadas testemunhavam o esforço de sua pesquisa aleatória.

Fora necessário um bom tempo, mas conseguira encontrá-lo — o curto trecho de que se lembrava da última pesquisa que fizera para Claire Randall. Os resultados da pesquisa haviam lhe trazido paz e consolo; este não traria — se ele contasse a ela. E se ele tivesse razão? Mas devia ter; explicava aquela sepultura fora de lugar, tão distante de Culloden.

Passou a mão pelo rosto e sentiu a aspereza da barba. Não era de admirar que tivesse esquecido de se barbear, com tudo que acontecera. Quando fechava os olhos, ainda podia sentir o cheiro de fumaça e sangue; ver o clarão das chamas na pedra escura e mechas de cabelos louros, esvoaçando fora do alcance de seus dedos. Estremeceu com a lembrança e sentiu uma onda repentina de ressentimento. Claire destruíra sua própria paz de espírito; não lhe devia o mesmo? E Brianna — se sabia a verdade agora, não deveria saber toda a verdade?

Claire continuava lá no final do corredor; as pernas dobradas, os pés sob o corpo no banco da janela, o olhar distante, fitando a escuridão vazia através da vidraça.

— Claire? — Sua voz soou áspera e rouca por falta de uso; limpou a garganta e tentou outra vez. — Claire? Eu... tenho algo a lhe dizer.

Ela virou-se e ergueu os olhos para ele, nada além de uma leve curiosidade visível em suas feições. Sua expressão era calma, a fisionomia de alguém que sofreu o terror, o desespero e o luto, e o fardo desesperador da sobrevivência — e resistiu. Olhando para ela, sentiu repentinamente que não conseguiria.

Mas ela contara a verdade; ele devia fazer o mesmo.

— Descobri uma coisa. — Ergueu o livro num gesto breve e inútil. — Sobre... Jamie. — Pronunciar aquele nome em voz alta pareceu preparar seu corpo, como se o enorme escocês em pessoa tivesse sido evocado pelo seu chamado, surgindo sólido e imóvel no corredor, entre a sua mulher e Roger. Roger respirou fundo, preparando-se.

— O que é?

— A última coisa que ele pretendeu fazer. Acho... acho que ele não conseguiu.

Seu rosto ficou lívido subitamente e olhou para o livro com os olhos

— Sim, descobri — Roger interrompeu-a. — Não, tenho certeza absoluta que ele foi bem-sucedido nisso. Ele conseguiu retirar seus homens. Ele os salvou de Culloden e os colocou na estrada rumo a Lallybroch.

— Mas então...

— Ele pretendia voltar... voltar ao campo de batalha... e acredito também que tenha conseguido. — Estava cada vez mais relutante, mas era preciso que fosse dito. Sem encontrar palavras próprias, abriu o livro e leu em voz alta:

— Após a batalha final em Culloden, dezoito oficiais jacobitas, todos feridos, refugiaram-se na velha casa e, durante dois dias, permaneceram ali, sofrendo, sem socorro para seus ferimentos; depois, foram levados para fora, para serem fuzilados. Um deles, um Fraser do regimento do senhor de Lovat, escapou ao massacre; os outros foram enterrados na margem do parque ao lado da casa.

— Um deles, um Fraser do regimento do senhor de Lovat, escapou... — Roger repetiu em voz baixa. Ergueu a cabeça da página e fitou os olhos dela, arregalados, sem nada ver, como os de um cervo hipnotizado pelos faróis de um carro que avança sobre ele.

— Ele pretendia morrer no campo de batalha de Culloden — Roger murmurou. — Mas não morreu.

 

 

                                                                                                    Diana Gabaldon

 

 

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