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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LISTA DOS DESEJOS / Eoin Colfer
A LISTA DOS DESEJOS / Eoin Colfer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

MEG E BELCH estavam no meio de um serviço. Meg e Belch. Até poderiam ser uma dupla de comediantes. Mas não eram. Não havia nada de cômico em invadir o apartamento de um aposentado.
Raptor babava nas botas de Meg.
- A gente precisa mesmo desse vira-lata? - sussurrou ela, limpando as botas num canteiro de flores.
Belch virou-se para trás, dando as costas para a janela. Seus olhos, parecidos com os de um porquinho, faiscavam sob a cabeleira espetada, lambuzada de gel.
- Raptor não é um vira-lata. Ele tem pedigree. É de uma longa linhagem.
Meg revirou os olhos.
Belch voltou ao arrombamento da janela, enfiando a ponta da chave de fenda entre a esquadria e o parapeito.
Pela milésima vez, Meg Finn perguntou-se o que estava fazendo ali. Como havia chegado tão baixo, espreitando aqueles apartamentinhos na companhia de um verme como Belch Brennan? Vendo sua própria expressão de desgosto refletida nas vidraças, enxergou nela o rosto da mãe. Os mesmos olhos grandes e azuis, as mesmas tranças louras, os mesmos vincos entre as sobrancelhas. O que ela teria a dizer sobre aquela mais recente estripulia? Meg ficou vermelha e, assim, percebi qual era a resposta. Algo se partiu na esquadria da janela.
- Agora dá pra entrar - disse Belch. - Anda, vem. Raptor escalou a mureta e pulou para o interior escuro. Ele funcionava como uma espécie de batedor, cuja missão era identificar os perigos. Suas ordens eram claras. Morda tudo o que encontrar pela frente. O que gritar é perigo.
O pitbull não era lá muito jeitoso e trombava em cada um dos móveis do primeiro andar.
- Por que a gente não toca a campainha logo de uma vez? - resmungou Meg.
- Ah, pára de reclamar, garota - devolveu Belch. - O velho Lowrie é surdo como uma porta. A gente poderia soltar foguetes aqui dentro, e ele continuaria roncando.

 


 


Belch passou o corpanzil pela janela, revelando o barrigão mole e deixando Meg enojada com aquela cena ridícula. Dali a pouco, voltou ao parapeito e perguntou:
- Então, você vem ou não vem?
Meg hesitou um instante. Ali estava ela, na fronteira entre a simples audácia e a pura maldade. A decisão era inteiramente sua.
- Não vai amarelar agora, vai? - emendou Belch.
- Não tenho medo de nada, ouviu bem, Belch Brennan? Belch deu um sorrisinho de sarcasmo e disse:
- Então prove.
Meg sabia que estava sendo manipulada. Mas não podia resistir a um desafio. Firmando as mãos no parapeito, saltou facilmente para dentro.
- É assim que se faz, pateta - arriscou-se a dizer.
O comentário talvez lhe custasse caro mais tarde. No entanto, nem mesmo Belch perderia tempo com discussões no meio de um roubo. Felizmente ele tinha a memória de um peixe de aquário, um daqueles bem gordos, e decerto não se lembraria de nada depois.
O cômodo cheirava a mofo e remédios. Um cheiro que Meg já havia sentido antes, quando passara a noite num sofá, no corredor do hospital onde sua mãe estava internada. Um cheiro que a fazia se sentir ainda mais culpada. Como da podia fazer aquilo? Roubar um aposentado indefeso?
Ela podia, sim, porque precisava do dinheiro para fugir. Fugir de Franco de uma vez por todas. Pegar a barca para Fishguard e nunca mais voltar.
Pense na barca, disse ela a si mesma. Pense na fuga. Consiga esse dinheiro do jeito que for.
O quarto estava entulhado de coisas de velho. Vidros de comprimidos, latinhas de Vick. Nada de valor. Mas Belch surrupiava tudo o que via pela frente.
- Podem ser para o coração - sussurrou Meg, referindo-se aos comprimidos. - Talvez o homem tenha um ataque quando descobrir que foi roubado. Se ele morrer, você vai ser um assassino.
Belch deu de ombros.
- E daí? Menos um rabugento na face da Terra. Puxa, quanta aporrinhação. Não sei por que você fica aí, reclamando de tudo. Afinal, é só uma assistente.
Meg abriu a boca para dizer alguma coisa, mas acabou desistindo. Belch tinha razão. Ela não passava de uma ajudante, cúmplice de tudo o que pudesse acontecer dali em diante.
- Então pára de resmungar e vai ver o que tem dentro daquele armário ali. Esse pé-na-cova deve ter dinheiro escondido em algum lugar. Todos eles têm. Pra deixar de herança pra alguém.
Mais uma gota de sabedoria por parte de Belch Brennan. Hesitante, Meg levou a mão ao puxador do armário antigo. Vai, abre, disse a si mesma. E depois encare as conseqüências. Seus dedos tremiam de medo e vergonha. Fotografias velhas decoravam as prateleiras. Olhos amarelados acusavam-na do outro lado das vidraças turvas. Meg Finn talvez fosse uma pessoa audaciosa, mas não era má.
Belch empurrou-a para o lado com uma cotovelada.
- Covarde - bufou ele.
Foi então que a luz se acendeu. O velho Lowrie McCall estava parado nas escadas, empunhando uma espingarda velha. Por certo não era tão surdo quanto Belch havia suposto.
- O que vocês dois estão fazendo aqui? - indagou com a voz rouca, ainda meio sonolento. A resposta era um tanto óbvia. Dois invasores. No meio da noite. Remexendo nas coisas dele. O que mais poderiam estar fazendo? Lowrie engatilhou a espingarda. - E então? Fiz uma pergunta!
Belch arrotou discretamente antes de responder:
- Estamos roubando você, seu velho rabugento! Achou que fosse o quê?
Lowrie desceu as escadas.
- Achei isso mesmo, pançudo - respondeu ele, franzindo a testa. - Agora tire as patas do meu armário antes que eu abra meia dúzia de buracos nessa sua cabeça oca.
Meg ficou surpresa. Aquilo mais parecia um programa de televisão. Um daqueles policiais americanos em que todas as meninas usam rabo-de-cavalo. Se o roteiro fosse esse, Belch faria alguma tolice, e o velho seria obrigado a apagar os dois ali mesmo.
Mas não foi o que aconteceu. Reconhecendo o inimigo, Raptor mirou na direção das canelas peladas que via sob a bainha de uma camisola de dormir. Abriu a bocarra até estalar os tendões e cravou os dentes na panturrilha do velho. Urrando de dor, Lowrie começou a dar coronhadas na cabeça do pitbull. Mas era como se estivesse dando coronhadas num bloco de cimento. Quando abocanhava uma coisa, Raptor só largava sob o comando de Belch - ou quando a vítima estivesse morta.
Meg ficou apavorada.
- Diz pra ele soltar, Belch! Anda, diz!
- Não estamos com pressa. Esse velho precisa de uma lição, por ter apontado uma arma pra mim.
- Manda ele soltar! Manda ele soltar!
Gritando de pânico, Meg aproveitou a oportunidade para tirar a espingarda de Lowrie McCall.
Belch ficou pasmo. Aquela garota imbecil estava chorando! Soluçando como um bebezinho! E agora apontava a espingarda para Raptor.
- Ficou maluca, Meg?
Na verdade, era até engraçado. Seria possível que ela não soubesse nada a respeito de armas?
- Tira esse cachorro daqui! Eu estou avisando!
- Isso aí é uma espingarda, idiota. - Belch falou como se estivesse diante de uma criancinha. - Se atirar dessa distância, vai acertar o velhote também.
Meg pensou um instante.
- Não tem importância. Pelo menos ele vai morrer depressa. Vou contar até três, Brennan. Já que você não sabe o que é quatro nem cinco!
Belch ficou na dúvida. Não estava acostumado a pensar assim, tão rápido.
- Um...
Meg faria mesmo aquilo? Provavelmente não. Era fraca demais.
- Dois...
Pensando bem, depois do que ela fizera ao padrasto, o tal de Franco... Além disso, era uma menina. Quem entendia as mulheres?
- Tr...
- Está bem, está bem! - Melhor não arriscar. Haveria tempo suficiente para uma boa vingança mais tarde. - Raptor! Junto!
O cachorro rosnou, relutante em abrir mão daquele prêmio que não parava de se contorcer.
- EU DISSE JUNTO!
Por fim o pitbull cedeu e, cuspindo os restolhos da panturrilha do velho, voltou para o lado do dono.
Meg ajoelhou-se ao lado de Lowrie McCall, que tremia sobre o carpete, com sangue jorrando da ferida aberta. Um brilho mais claro misturava-se ao vermelho das carnes. Para seu horror, Meg percebeu que era um pedaço de osso.
- O que foi que a gente fez? - disse ela, ainda chorando. - O que foi que a gente fez?
Belch permanecia impassível.
- Qual é o problema? Um pé-na-cova bate as botas alguns dias mais cedo. E daí?
Meg enxugou as lágrimas dos olhos.
- Precisamos chamar uma ambulância. Depressa!
- Não vai dar - disse Belch, balançando a cabeça. - Agora não tem mais volta.
A vista de McCall já começava a se embaralhar.
- Por favor... - sussurrou ele.
Meg apontou a espingarda na direção de Belch.
- Anda! Vai chamar uma ambulância!
- Não adianta, Meg.
- Eu assumo a culpa de tudo. Agora vai!
- Isso - disse Belch com ironia. - Diga aos tiras que você mordeu a perna do velho. É claro que eles vão acreditar.
Ele tinha razão. Todos os policiais da cidade conheciam Belch Brennan e seu vira-lata. Não havia saída. Pela primeira vez na vida Meg Finn não conseguiria usar a lábia para se ver livre de uma enrascada.
E então as coisas pioraram. Aproveitando o estado de Meg, Belch tomou a espingarda das mãos dela. Depois abriu um sorriso de dentes amarelos e disse:
- Você apontou uma arma pra mim, foi isso?
Meg sentiu as lágrimas borbulharem novamente sob as pálpebras.
- Ele está sangrando muito, Belch. Talvez esteja morrendo! Belch deu de ombros.
- E daí? - Ele levantou os olhos na direção de Meg. - Agora é com você que eu tenho de lidar.
- Belch! Chame uma...
- Minha reputação está em jogo. Se um dos rapazes ficar sabendo que uma garota apontou uma arma pra mim e sobreviveu...
Meg conhecia Belch. Ele agora faria um longo discurso, como deveriam fazer os homens durões. E no final estaria tão empolgado que ninguém poderia prever seu passo seguinte.
Meg resolveu não esperar para descobrir. Sem dizer uma palavra, partiu em disparada e se jogou pela janela ainda aberta. Belch acenou para o afoito pitbull.
- Pega, Raptor! Traz a garota de volta.
Raptor lambeu os beiços e lá se foi. Agora era uma questão de tempo. Ninguém escapava dele. Belch ajoelhou-se ao lado do velhinho pálido.
- Não sai daí, Lowrie. Volto já. O aposentado não disse nada.
Meg havia concebido um plano quando decidira fugir. Correria até a primeira casa com luzes acesas e esmurraria a porta. A essa altura tinha consciência de que seria preferível enfrentar a polícia a deixar Lowrie morrer. No entanto, cometeu um único erro. Um erro fatal. No meio daquela confusão toda, seguiu para a direita ao invés da esquerda. À esquerda encontrava-se uma espécie de pátio, cercado por praticamente todos os apartamentos alugados. Aquilo teria sido a salvação. Mas à direita ficava a área de manutenção. Uma antena central e um tanque de gás. Um beco sem saída.
Raptor não tardou a chegar, invisível na escuridão, a não ser pelas presas reluzentes e pelos jatos de vapor que escapavam das narinas. Parou de repente e fincou as patas, bloqueando a saída do beco.
- Xô! - disse Meg, na esperança de que adiantasse alguma coisa. - Volta pra casa, amigão!
Se fosse possível, o cachorro teria sorrido com deboche. Jamais deixaria aquela garota passar.
A sombra de Belch esparramou-se no chão estreito do beco.
- Você é uma ladra de meia-tigela, Meg. Que idéia foi essa? Fugir para um beco sem saída?
As bocas do cano duplo da espingarda brilhavam na penumbra como dois olhinhos negros.
- Belch. Pelo amor de Deus. Chame uma ambulância... Lowrie ainda pode sobreviver!
- Lowrie, sim. Mas você...
Meg sentia nas costas o metal frio do tanque de gás, o friso da solda. Não tinha para onde ir. Os canos da espingarda se viraram contra ela.
- Deixa disso, Belch. Não tem graça nenhuma.
- Não estou rindo, Meg Finn. Verdade. Não estava mesmo.
- Você não vai ter coragem de atirar em mim. Então me dê umas pancadas e acabe logo com isso.
Belch deu de ombros.
- Na verdade, não me resta outra escolha. Você não teria problemas. É menor de idade. Mas eu tenho dezesseis anos. Sou legalmente responsável pelos meus atos. Isso significa que eu iria pra cadeia. Acho que você abriria o bico.
Um dia antes Meg teria dito: "Você acha, Belch? Está brincando!" Mas agora não. Aquele Belch era outra pessoa. O Belch das trevas.
- Não vou dizer nada, pode ficar tranqüilo. Sou sua cúmplice!
- Verdade. Mesmo assim...
Belch não completou seu pensamento. Meg sabia que cabia a ela dar alguma prova de lealdade. Precisava dizer o que ele queria ouvir.
- Quem se importa afinal... - resmungou, atropelando as palavras como se tivesse cacos de vidro na garganta. - Quem se importa se um velhote bater as botas? Eu é que não me importo.
Belch avaliou o rosto da comparsa à procura de algum sinal de falsidade. E aparentemente encontrou.
- Sinto muito - disse. - Não acredito em você.
Então se deu o grande erro. Um erro que fazia todos os outros daquela noite parecerem meros descuidos. O último que Belch cometeria na vida.
Meg estava certa. Belch não tinha intenção de matá-la, apenas de amedrontá-la um pouco. Era uma espécie de delinqüente e conhecia muito bem o funcionamento de uma espingarda. Sabia que, se atirasse àquela distância, acertaria o tanque de gás e acabaria mandando a ambos para o inferno. No entanto, um simples disparo de advertência... isso talvez funcionasse. Belch levantou a espingarda quase verticalmente e colocou o dedo no gatilho.
Meg logo percebeu o que ele pretendia fazer. Achou que ele tinha ficado maluco.
- Não, Belch! Não!
Tarde demais. O gatilho já estava a meio caminho. Não haveria tempo de fazê-lo mudar de idéia. Até porque mudar de idéia não era o forte de Belch, que sorria só de ver o terror estampado nos olhos dela.
A explosão foi tremenda, preenchendo todos os cantos do beco, retumbando em torno de Meg e Belch, perfurando os tímpanos de ambos. Mas eles já não sentiam mais nada. Estavam mortos, os dois.
Bastou uma única bala. Uma bolinha minúscula com um friso nas curvas. Esse friso serviu como uma espécie de nadadeira, fazendo com que o projétil desviasse de sua rota original e descesse chiando, superaquecendo-se numa fração de segundo. Um tanque novo teria evitado a tragédia, mas aquele ali deveria ter sido trocado uns dez anos antes. O metal enferrujado, sem oferecer a menor resistência, permitiu que a pequenina esfera aquecida entrasse em contato com o gás altamente inflamável. BUUUMMM!

¶¶¶

Um naco de metal escurecido bateu forte em Meg Finn, imediatamente separando sua alma do corpo.
Os primeiros momentos na condição de espírito são bastante perturbadores. A mente ainda funciona como antes e tenta explicar através da física os fenômenos do mundo espiritual. Como é possível estar voando por um túnel enorme e ao mesmo tempo ver o corpo estirado no chão em meio aos escombros de um tanque de gás? Não faz sentido. Conclusão: é um sonho.
Então é isso, disse Meg Finn a si mesma, estou sonhando. Um sonho bom, para variar. Nenhum padrasto com machado na mão, nenhum guarda brutamontes jogando-a na carroceria de um furgão da polícia. Meg decidiu relaxar e se divertir.
O túnel era tão grande que parecia não ter fim. A ilusão era ainda maior em razão dos anéis de luz azul que pulsavam ao longo do caminho como os músculos do coração de uma criatura fantástica. Pontinhos iluminados pairavam no ar ligeiramente liqüefeito. Meg deu-se conta de que esses pontinhos eram, na verdade, pessoas.
Pessoas flutuando num túnel? Ela já não havia ouvido isso antes? Uma história de túnel e luzes?
Então disse a si mesma: estou morta. Achou que ficaria terrivelmente abalada com a descoberta. Que nada. Nenhum chilique. Nenhuma lágrima. Era como se o túnel tivesse anestesiado sua mente. Não que sua vida houvesse sido um parque de diversões. Talvez estivesse melhor morta. Talvez voltasse a encontrar a mãe. Mas Mam certamente estaria no Céu, enquanto, Meg, dificilmente iria para lá.
Talvez pudesse passar a perna em São Pedro com aquela lengalenga da sociologia: a culpa não é minha, é da sociedade, blablablá... Sempre funcionava no juizado de menores. Ninguém resistia às lágrimas quando ela contava a história do acidente de Mam. Mas no Céu era bem possível que as coisas fossem mais complicadas.
Alguém chamava seu nome. Provavelmente um anjo com a missão de convencê-la a aterrissar no campo de pouso celestial. Um anjo meio canino, diga-se de passagem. Anjos deveriam surgir tocando harpas, com vozes... angelicais. Mas aquele ali, fosse lá o que fosse, dava a impressão de estar mastigando uma pasta de piche.
Meg virou-se lentamente. Não era a única pessoa flutuando naquela corrente específica. Alguém, ou algo, estava girando em torno dela. Ora parecia um cachorro, ora um menino. Feições caninas brotavam debaixo de uma camada de pele humana, algo parecido com um efeito gráfico de um computador. Horrível. Grotesco. Mas ao mesmo tempo familiar.
- Belch? - disse Meg, hesitante. - É você?
Ela estranhou a própria voz, que ameaçava falhar a qualquer momento. A coisa que antes havia sido Belch não fazia mais que uivar como o Scooby-Doo. Mesmo assim, Meg tinha certeza: aquele ali era seu ex-parceiro. Ao que parecia, a explosão havia produzido um efeito e tanto no garoto e no pitbull. Belch e Raptor agora formavam uma coisa só, como se tivessem sido misturados num liqüidificador. Na verdade, a nova mistura até que caía bem em Belch. Como se já estivesse dentro dele desde o início.
- Belch? Se liga, cara!
O menino-cachorro olhava horrorizado para as próprias mãos, que se metamorfoseavam em patas de pitbull. Lágrimas e baba rolavam pelo rosto dele, pingando em gotas grandes do queixo peludo.
Essa não, pensou Meg. Além de me meter com ele na Terra, agora vou ter de aturá-lo por toda a eternidade.
- Meg! Me ajuda!
Belch olhava para ela com uma cara de cachorro sem dono. Patético.
- Corta essa, Belch! Você tentou me matar! - Tentou, não, matou. A ela e a si próprio também. - Assassino!
O antigo Belch teria revidado. Mas aquela coisa em que ele se transformara não fez nada além de ganir de um jeito lamentável.
- A culpa é toda sua - continuou Meg. - Falei pra você não atirar! Eu falei!
De repente eles dobraram uma curva. Mais adiante, o túnel se dividia em dois. Como era de se esperar. Uma rota para cima, outra para baixo. O bem e o mal. O céu e o inferno. Meg engoliu a seco. A hora havia chegado. Hora de pagar por todos os males que ela havia infligido ao povo de Newford.
A corrente carregava-os a uma velocidade impressionante. Nenhum atrito. Nenhum vento fustigando as roupas ou enfunando as bochechas deles. Apenas uma baforada quente que vinha da boca inferior do túnel. Chegando mais perto, Meg viu algumas figuras tisnadas, com forcados na mão, arrancando das paredes as almas que se recusavam a descer para o inferno.
Aquilo não era real. Não podia estar acontecendo. Garotas de quatorze anos não morriam; passavam por uma fase difícil e depois seguiam em frente.
Meg agora podia ver mais detalhes. Os olhos vermelhos e demoníacos das criaturas do túnel. O brilho prateado dos tridentes. A satisfação profissional estampada no sorriso delas.
Belch gania sem parar, agitando os braços no ar pesado, como se aquilo pudesse salvá-lo. Meg preparou-se para o pior.
O portão do inferno estava cada vez mais próximo. Parecia grande como o sol, e quase tão quente quanto. Meg fechou as mãos em punho. Não desceria sem dar trabalho.
Mas então sua rota mudou. Só um pouquinho, para estibordo, o bastante para afastá-la da passagem inferior. Ela exalou um longo suspiro de alívio. Purgatório, limbo, reencarnação... tanto fazia. Qualquer coisa seria melhor que o inferno - ou o que estivesse no fim daquela passagem vermelha.
A criatura Belch-Raptor não contou com a mesma sorte. Num átimo, foi arrastada pela corrente fumegante e desapareceu nas profundezas do inferno.
Meg não tinha tempo para se preocupar com o destino do comparsa. Notou que a força que a impelira até ali havia desaparecido, abandonando-a ao sabor do próprio impulso. A parede do túnel já estava bem próxima. Era azul e dava a impressão de ser macia. Se não fosse macia...
Não era. Meg esborrachou-se numa superfície dura, a uma velocidade terrestre de quatrocentos quilômetros por hora. Não que a velocidade fizesse alguma diferença no plano espiritual, onde os princípios da cinética não valiam um tostão furado. Mesmo assim, a pancada foi das boas. Doeu.

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 2

MORTINHA DA SILVA

O DIABO não estava nada contente.
- Duas almas - disse ele, tamborilando as unhas lixadas sobre o tampo da mesa. - Eu estava esperando duas almas hoje.
Belzebu ficou aflito.
- Mas chegaram duas, Mestre. Quer dizer, mais ou menos. Eles... ele... enfim, a coisa foi colocada no poço dezenove.
- Duas almas humanas, imbecil! - rosnou Satã. Raios minúsculos espocavam entre os chifres dele. - Não um garoto e seu cachorro! Por falar nisso, como foi que um cachorro entrou aqui?
- Eles estavam... misturados - disse o ajudante do Diabo, consultando uma prancheta. - Um acidente dos inf... dos céus! O garoto é um verdadeiro discípulo. Fez uma extraordinária passagem pela Terra. Bateu em gente menor que ele, maltratou os animais, roubou, matou... Uma folha corrida tão longa quanto o rabo do Mestre. E o cachorro também, um fiel escudeiro de Satã! As vendas de injeções de tétano subiram cinqüenta por cento no primeiro trimestre!
O Senhor das Trevas não se mostrava nem um pouco impressionado.
- Um molenga, isso sim!
- Quem, o cachorro?
- Não, palerma! O garoto! Sem imaginação... um brutamontes.
Belzebu deu de ombros,
- O mal é o mal, Mestre.
Com um dedo esquelético, Satã fez que não.
- É aí que você se engana, meu amigo. Por isso você não passa de um lacaio, enquanto eu sou o incontestável Senhor do Submundo. Você não tem visão, Zeba, não tem traquejo.
Belzebu cerrou as presas dentro da boca. Detestava ser chamado de Zeba. Ninguém, além de Satã, ousava chamá-lo daquela forma tão condescendente... bem, talvez uma única pessoa: um santo chamado Pedro.
- Esses pecadores não têm longevidade - continuou Satã. - Morrem cedo demais pra fazer o estrago necessário. Cometem um único pecado mais cabeludo e logo vão embora. Não se dão ao trabalho de planejar, entende? Não pensam num jeito de se safar.
Belzebu balançava a cabeça em sinal de respeito, como se não ouvisse aquela ladainha pelo menos umas vinte vezes a cada milênio.
- Um pecador criativo, por sua vez, é capaz de espalhar a palavra das Trevas durante décadas, antes que alguém bote as mãos nele. Isso quando alguém consegue botar as mãos nele.
- Verdade, Mestre. Verdade. Satã estreitou os olhos, desconfiado.
- Você não está tentando me agradar, está?
- Claro que não, Mestre - respondeu o ajudante-mor, tremendo nas bases. - Claro que não.
- Ainda bem. Porque se eu desconfiar, por um segundo que seja, que você não está prestando total atenção no que eu digo, tiro você daquele apartamento com vista pra Planície do Fogo e o jogo direto no Poço do Esterco!
Belzebu roçou os dentes do forcado nos lábios subitamente secos. Não chegava a se incomodar com o esterco nas horas de trabalho, mas precisava de um descanso de vez em quando.
- Falando sinceramente, Mestre. O recém-chegado é excepcional. Especialmente... nesse novo estado em que se encontra. Um tanto grosseiro, é verdade, mas com certeza vai dar um excelente churrasqueira.
- Churrasqueira? E o que a gente vai fazer com mais um churrasqueira? O que eu preciso é de um bom endemoniado, de alguém com senso de humor. - O Diabo alisou o cavanhaque negro como piche. - A tal garota... Aquela que eu tinha planejado receber pessoalmente. Onde está?
Belzebu virou uma página na prancheta.
- Na verdade...
- Não vá dizer que...
- Ela atravessou o túnel e...
- Você deixou que ela se extraviasse! Acabrunhado, Belzebu fez que sim com a cabeça.
- A única alma que peço pra você acompanhar, e você me apronta essa! Acho que está ficando velho pro trabalho, Zeba.
- De maneira alguma - retrucou o Número Dois, consciente do que acontecia aos demônios fora de forma. - As câmeras de vigilância não estão funcionando. Por isso, tivemos de contar com a ajuda dos ácaros do túnel. O Mestre sabe que não se pode confiar nas informações daqueles trastes, especialmente dos que têm se alimentado com o resíduo das almas.
Satã suspirou.
- É só isso que você tem pra me dar, Zeba? Justificativas? Pra que serve toda essa tecnologia, o nosso sistema de vigilância do limbo, a ecto-rede, se a gente tem de confiar nas informações daquele bando de traças desmioladas?
- Myishi garantiu que logo, logo o sistema estará no ar novamente.
Satã franziu as sobrancelhas e disparou:
- Sabe quanto me custou a alma daquele nerd? Uma fortuna! E ele sequer é capaz de consertar uma meia dúzia de monitores!
- Mestre, daqui a p...
- Agora! Quero que você encontre aquela alma extraviada já! Talvez esteja agarrada numa das estalactites do túnel! Se for uma alma sem dono, que o dono seja eu, ora bolas!
- Mas, Mestre... - protestou Belzebu. - Um ônibus cheio de advogados vai cair no Grand Canyon logo mais à tarde. O movimento vai ser grande!
Satã cravou os cascos no chão e ficou de pé. Seu paletó de risca de giz, feito sob medida, desmanchou-se numa chama azulada, revelando um emaranhado de tendões vermelhos.
Nada como um gesto teatral, pensou Belzebu com seus botões.
- Não preciso de advogados coisa nenhuma! Quem vai me processar afinal? Ninguém! Preciso da garota, isso sim! Você não leu o arquivo dela? Não sabe o que ela fez com o próprio padrasto? Brilhante. Totalmente original. - O Diabo mudou de tom de repente, adocicando a voz. Quando falava assim, era extremamente persuasivo. E perigoso. - Encontre essa menina pra mim, Zeba. Traga-a até aqui. Se precisar, convoque uma tropa de resgate, não me importo. Encontre essa garota, senão... - Belzebu já esperava pela ameaça. - Senão vou ter de entrevistar candidatos a um posto recentemente desocupado. O seu!
Satã trotou até um canto e começou a desfiar a carcaça suspensa de uma vaca morta. A reunião estava encerrada.

¶¶¶

Belzebu embarafustou-se corredor afora, usando o tridente para vaporizar almas perdidas aqui e acolá. Já não se alegrava tanto com o vagido que elas produziam antes de sumirem no ar. Detestava quando o Mestre tinha uma daquelas suas crises de obsessão. Precisava encontrar aquela alma em particular; nenhuma outra serviria. Deus ajude..., pensou ele, corrigindo-se logo em seguida: Lúcifer ajude o demônio que não cumprir as ordens do Mestre! Belzebu apressou o passo. Naquelas bandas, sequer deveria pensar na tal palavra que começava com D. De alguma forma o Mestre sempre acabava descobrindo.
Mas, afinal, o que havia de tão especial com aquela alma? Uma garota irlandesa. A bem da verdade, houvera um tempo em que a captura de um nativo da "Terra dos Santos e dos Eruditos" era considerada um acontecimento importante, mas era coisa de um passado remoto. Agora havia tantos irlandeses no inferno quanto nos Estados Unidos.
Belzebu entrou numa alcova escura e das dobras da túnica de seda tirou um celular preto. Uma belezura de aparelho. Lustroso, imponente. Myishi havia descolado dois deles na surdina. Segredo de Estado. Nem mesmo o chefe sabia da existência dos tais telefones. Uma safadeza, claro. Mas Belzebu, afinal, era um demônio.
O teclado do celular não tinha números, apenas botões com funções variadas. Tratava-se de uma linha privada, que dava acesso a uma única pessoa. Belzebu hesitou um instante, mas depois apertou um dos botões com o dedo verruguento. Não tinha escolha. Corria o risco de perder o apartamento. E achar um bom apartamento naquelas redondezas era um verdadeiro inferno.
São Pedro não estava nem um pouco satisfeito. Ora, se era mesmo um santo importante, um manda-chuva, por que tinha de ficar plantado naquele portão o tempo todo, enquanto os outros se fartavam com os frutos celestiais? Por que Mateus não revezava com ele de vez em quando? Ou João? Ou Judas? Se alguém lhe devia um favor, esse alguém era Judas. Aliás, muita gente achava por lá que o coletor de impostos sequer devia estar no Céu. E se não fosse pelo Pedroca aqui, que à época dera uma forcinha, ele ainda estaria vagando pelo purgatório com o resto da ralé.
Pedro abriu o pesadíssimo livro de débitos e créditos. O que ele não daria por um bom computador! Um servidor poderoso com diversas estações de trabalho. Mas raramente chegavam nerds nos portões perolados do paraíso. A maioria saía pela outra boca do túnel, especialmente depois que Lúcifer começou com aquela promoção de "seja dono da sua própria alma depois de um século". Assim, ele era obrigado a fazer a contabilidade manualmente.
O sistema de pontuação era muito complicado, concebido milhares de anos antes. Além disso, claro, novas transgressões eram acrescentadas todos os anos. Boy bands e mímicos de rua eram duas categorias recentes com altíssima incidência.
Apesar de complicado, o sistema não dava margem a dúvidas. Mesmo que uma pessoa contasse com pontos suficientes para escapar do inferno, não significava que ela já tivesse lugar garantido no céu. Ainda lhe restava a possibilidade do purgatório, do limbo ou da reencarnação. Na hipótese de um resultado muito apertado, ela contaria com o benefício de uma entrevista particular com o apóstolo-chefe. Dizia-se à boca miúda que Pedro era rápido demais no gatilho da detonação. Milhares de almas nos planos inferiores rezavam para que ele pendurasse logo as chuteiras.
A boca do túnel pulsava acima da cabeça do santo, num céu azul-celeste. Uma paisagem lindíssima, mas Pedro nem se dava mais ao trabalho de olhar.
Uma alma emergiu do túnel e aproximou-se lentamente do nível onde ficava o escritório de Pedro. O santo passou o dedo pela lista de nomes. Luigi Fabrizzi. Oitenta e dois anos. Morte natural.
- Scusi - disse o italiano.
- Atrás da linha, por favor - resmungou Pedro, automaticamente, batucando a caneta no tampo da mesa.
O Sr. Fabrizzi olhou para baixo e viu um alçapão de bronze no meio do piso de mármore.
- Sua situação não é das piores - comentou Pedro, num italiano perfeito. A facilidade com as línguas estrangeiras era mais um dos presentinhos do Chefe. - Uma vida correta no início, mas, nos últimos dez anos, você se mostrou um tanto rabugento.
O italiano deu de ombros.
- Sou velho. Tenho direito de ser rabugento. Pedro recostou-se na cadeira. Adorava os italianos.
- É mesmo? E em que parte da Bíblia você leu isso?
- Em parte nenhuma. É só o que eu acho.
Pedro rilhou os dentes. Quem, a não ser um italiano, provocaria uma discussão nos portões do paraíso?
O santo fez seus cálculos rapidamente. Impressionante como os pecadilhos mais banais acabavam rendendo uma bela pontuação.
- Sei não, Luigi. Essa história toda de Máfia nos anos cinqüenta. Acho que você passou dos limites.
Fabrizzi ficou pálido.
- Quer dizer então que eu...
- É. Infelizmente. - Com o máximo de discrição, Pedro levou a mão ao compartimento sob o tampo da mesa, onde ficava o botão do limbo.
O italiano juntou as mãos e pôs-se a rezar quando... o telefone tocou.
Pedro revirou os olhos. Belzebu outra vez! Seria possível que aquele demônio não conseguisse fazer nada sozinho? - Alô - respondeu o santo.
- Sou eu, Belzebu - disse o outro, sussurrando.
- Não diga.
- Pois é, compadre... É que surgiu um probleminha por aqui.
- Achei que você gostasse dos probleminhas.
- Não desse tipo. Corro o risco de perder o emprego.
- Ah - disse Pedro. - Isso é um problema.
Embora pertencessem a diferentes extremidades do espectro, teologicamente falando, o arcanjo e o demônio haviam desenvolvido certa proximidade ao longo dos séculos. Nada de muito significativo. Não trocavam segredos profissionais ou coisa parecida, mas ambos tinham consciência das semelhanças entre suas atividades. Além disso, davam-se conta das vantagens, tanto para um quanto para outro, de evitar que os espíritos terrenos destruíssem o planeta. Afinal, de que serviria um espírito, se não houvesse corpos? Assim sendo, Pedro e Belzebu estavam sempre se falando. Até então, essas conversinhas esporádicas haviam conseguido evitar diversos assassinatos presidenciais e uma guerra mundial. Caso Belzebu viesse a ser substituído, o novo Número Dois talvez não demonstrasse a mesma flexibilidade.
- Ah... Scusi, Santa Pietro... - disse Luigi, repentinamente solícito.
Irritado, Pedro acenou com a mão para que ele entrasse.
- Anda, vai. E basta dessa história de gângster, ouviu bem?
- Si. Si. Basta dessa história de gângster.
Luigi saltitou paraíso adentro, com miraculosa tepidez.
- Então, Zeba, o que foi que houve? - disse Pedro ao telefone, com um sorriso no canto dos lábios. Sabia que a menção do apelido deixaria seu interlocutor furioso. Mas, como ele precisava de um favor, teria de engolir o sapo.
- O Mestre está procurando por uma alma.
- E o tal ônibus cheio de advogados?
- Não serve. É uma alma específica. Caso ela tenha aparecido por aí, talvez a gente possa fazer uma troquinha.
- Nem pensar. Uma alma inocente no Hades. Impossível.
- Não se trata de uma alma inocente. Ela deveria ter chegado aqui hoje. Não sei como conseguiu escapar.
- Hmm... - Pedro passou os dedos pelas barbas brancas. - Preciso de mais dados.
- Meg Finn. Quatorze anos. Irlandesa. Explosão de gás. Pedro virou as páginas do livro até a letra E
- Finn... Finn... Aqui está. Meg Finn. Uma lista considerável de pequenos delitos. Nada de muito significativo na coluna do bem. Exceto essa grande entrada no final. Espere um pouco. Vou fazer uma continha.
Pedro passava o dedo pelas duas colunas, a do bem e a do mal, enquanto computava mentalmente o resultado. Parecia preocupado.
- Hmm... Isso não pode estar certo.
- O que foi?
- Só um segundo, Zeba. Vou mandar isto por e-mail para o seu celular.
Myishi havia equipado os aparelhos com scanner, fax e correio eletrônico. Pedro passou o telefone sobre a página em questão e apertou o botão de enviar. Segundos depois, ouviu seu interlocutor bufar.
- Não pode ser! - exclamou Belzebu.
- Você chegou ao mesmo resultado que eu? - perguntou Pedro.
- Acho que sim. Um empate perfeito. Ela se safou no último minuto. Que eu me lembre, o único caso como esse foi o daquele...
- Daquele roqueiro cabeludo, não foi?
- Exatamente. E veja a trabalheira que ele deu quando voltou!
Pedro ficou calado um instante.
- Esse é um caso delicado, Zeba. Muitas guerras já começaram por motivo semelhante.
- Eu sei. De repente, uma alma qualquer adquire uma importância descomunal.
- É, Belzebu... Dessa vez vamos ter de ficar de fora. Um maluco sanguinário no plano mortal já é o bastante.
- Claro, claro... - concordou Belzebu placidamente. - Não há nada que possamos fazer agora. Vamos deixar que a garota sele seu próprio destino. Não vale a pena mandar um Caçador de Almas nessas circunstâncias.
- Hmm... - murmurou Pedro, com a pulga atrás da orelha. Belzebu nunca era tão dócil assim. - Então, estamos entendidos?
- Perfeitamente - respondeu o demônio, antes de desligar. Pedro guardou o celular no bolso. Sabia que muita água ainda estava por rolar sob aquela ponte. Não se deixara enganar pela conversa mole de Belzebu, que seguramente pretendia mandar alguém à Terra com a missão de encontrar a tal alma perdida. Um Caçador de Almas. Seria possível que aquele demônio sem juízo colocaria o plano mortal em risco só por causa da irlandesa? Quem era essa Meg Finn afinal? E por que motivo, de uma hora para outra, ela se transformara na alma mais importante do cosmo?
Belzebu espiou para fora. O caminho estava livre. Então Meg Finn teria de voltar. Mas não seria por muito tempo - apenas o bastante para que ela acrescentasse mais uns pontinhos na coluna do mal. Ele cuidaria pessoalmente disso. Devolveria a Lúcifer sua almazinha querida e continuaria no emprego, pelo menos até a crise seguinte.
Belzebu havia mentido para Pedro. Paciência. Era um demônio, não era? O que aquele barbudo metido a bonzinho podia esperar?

CAPÍTULO 3

FINAIS INFELIZES

MEG NÃO QUERIA abrir os olhos. Desde que permanecesse ali, escondida do outro lado das próprias pálpebras, poderia inventar uma história qualquer para explicar os acontecimentos recentes. Resolvido: ela ficaria ali para sempre e sequer daria uma espiadela no lado de fora.
As dores que ela sentia no corpo inteiro não eram resultado da trombada contra as paredes do túnel azul-celeste, mas da explosão do tanque de gás. Isso também explicava o fato de ela estar deitada. Com certeza estava num hospital, gravemente ferida. Porém, viva. Quanto às alucinações, seguramente eram efeito dos analgésicos, Ela teria rido, não fosse pelas dores lancinantes que sentia nas costelas. Tudo era muito óbvio. A nova história fazia muito mais sentido que a outra. Meninos-cachorros? Túneis gigantes? Onde já se viu?
Meg estava tão propensa a acreditar em sua nova teoria que arriscou abrir os olhos um pouquinho. Tudo azul. Muito azul. Nos hospitais há muito azul. Uma cor relaxante.
Foi então que um par de olhos injetados, sem nenhum corpo, piscou na paisagem azul, mandando para o espaço qualquer esperança de um final feliz.
Uma arcada de dentes encardidos surgiu sob o par de olhos.
- Nunca vi nada parecido - disse a boca fantasmagórica. Numa situação daquelas, ficar deitada de olhos fechados revelava-se, quando muito, uma tática duvidosa. Meg ficou de pé e recuou até bater as costas na parede do túnel. Isso mesmo, o túnel outra vez. Se ainda havia alguma esperança para a teoria do hospital, desapareceu naquele instante.
- Rastro espectral - continuou a boca. - Azul, vermelho, roxo. Uau, uau, uííí!
Rosto, braços e pernas surgiram aos poucos em torno dos dentes pretos. Uma criatura diminuta, com traços humanóides, postava-se ao seu lado, na saliência da rocha, sobre o abismo do túnel. Tinha a pele azul, da mesmíssima cor do túnel. Perfeita camuflagem.
- O que é você? - perguntou Meg, hesitante.
- O que ser eu, quer saber a menina. Eu, ser residente. Você, intrusa. Nenhum cumprimento? Nenhuma felicitação? Apenas ignorância e maus modos?
Meg considerou as opções. A criaturinha era miúda o bastante para que ela pudesse acertá-la com uma pedra e fugir pela rocha. Mas fugir para onde? Para fazer o quê?
Coçando o queixo pontudo, a coisa disse:
- Deve desculpar Flit, senhorita. Visitante nunca pousa. Só flutua. Zum, zum, zum!
- Que lugar é este? - disse Meg.
Flit abriu os braços num gesto de espanto.
- Que lugar é este? Túnel, menina! O túnel! Vida... túnel... vida após a morte.
Meg suspirou. Exatamente o que ela havia temido. Ela estava mesmo morta.
- E você, quem é?
- Homem, um dia - respondeu Flit, desolado. - Homem mau. Agora, ácaro. Desentupidor de túnel. Castigo de Flit. Menina olha. - A criatura retirou uma cesta de vime de um nicho na parede. - Resíduo de alma. Entope túnel.
Meg examinou o conteúdo da cesta. Um monte de pedrinhas reluzentes. Azuis, claro. Talvez fosse obra de sua imaginação, mas ela podia jurar que as pedras estavam cantando.
Flit fez carinho nelas.
- Duzentas cestas. Depois, paraíso.
Uma espécie de serviço comunitário celestial. Faz sentido, pensou Meg.
- Então é isso? - perguntou ela. - Eu também sou... um ácaro?
Flit quase desabou de tanto rir.
- Menina? Ácaro? Não, não, não. Negatori. Menina uma em um milhão de bilhões. Rastro espectral roxo.
- Eu não...
Flit bateu o punho na testa de Meg como se batesse numa porta fechada.
- Abre ouvidos, menina! Rastro azul, paraíso. Vermelho, poço. Roxo, meio a meio.
Meg olhou para a vastidão do túnel. Os recém-falecidos zuniam ao largo da saliência onde ela se refugiava. Alguns passavam tão perto que ela podia perceber a expressão de espanto nos olhos deles.
- Que rastro espectral? Não vejo nenhum...
Flit passou a mão azul diante dos olhos de Meg, e só então ela viu. As almas deixavam um rastro brilhante atrás de si. Para algumas, o rastro era vermelho; para outras, azul. As de rastro vermelho eram arrancadas do fluxo e jogadas no poço. Meg olhou para as próprias mãos. Faíscas cor de violeta espocavam ao redor dos dedos.
- Menina vê? Roxo, menina, roxo! Malvada e boa. Seis pra lá, meia dúzia pra cá. Cinqüenta-cinqüenta.
Meg começava a se situar.
- E agora, o que vai acontecer comigo?
- Paraíso, não. Poço, também não. De volta.
- De volta?
A coisa que um dia fora um ser humano fez que sim com a cabeça.
- De volta. Consertar o que fez de errado.
- Errado?
- Menina papagaio estúpido - disse Flit, irritado. - Aprende falar certo! Coisas erradas que menina fez na vida corporal. Vai, vai, vai, voa de volta. Conserta. Aí, então, rastro espectral lindo de novo, azul.
O coraçãozinho espiritual de Meg bateu mais forte.
- Eu posso voltar? Viver de novo?
Flit caiu na gargalhada, batendo palmas de zombaria.
- Viver? Não. Fantasma. Buuuh! Ajudar coitado ferido. Usar resíduo de alma.
Era difícil para Meg compreender o que a criaturinha dizia. Flit perdera contato com a humanidade havia muito, e seu vocabulário agora se resumia ao básico necessário. Ao que parecia, ela tinha duas opções: permanecer onde estava ou voltar para emendar as coisas com o velho Lowrie. Grandes opções. Ficar na companhia de uma criatura rabugenta ou... voltar para ajudar um velho rabugento. Além do mais, o que alguém poderia fazer para apagar um pecado?
- Depressa, menina! - aconselhou Flit. - Tempo passando, tique-tique-taque. Lado bom sumindo!
Olhando para a própria aura, Meg percebeu que o roxo começava a se manchar de fiozinhos vermelhos. Ficou aflita. Se perdesse a energia espiritual, decerto teria o mesmo destino de Belch. Já sentia uma força querendo arrastá-la para baixo, uma força parecida com a do pólo Norte sobre uma lima de ferro. Pedacinhos de aura começavam a despencar no abismo como flocos de poeira.
- E como é que eu volto? A criaturinha deu de ombros.
- Flit não sabe direito. Nunca aconteceu antes. Flit só sabe o que ouviu dizer.
- E o que foi que ouviu dizer?
Flit apontou para a parede marmorizada.
- Atravessar.
- Já tentei isso - disse Meg, passando a mão no rosto. - Não deu certo.
- Parede, não. Buraco.
- Tem certeza?
- Não - admitiu o ácaro. - Crank falou.
Crank? Quem era esse tal de Crank? Com certeza mais uma criaturinha azul de vocabulário limitado. Meg tentou colocar as idéias em ordem. Buraco... buraco... buraco... - ela não conseguia pensar em outra coisa. Ficou espantada com aquele súbito poder de concentração. Quando viva, era dispersa demais, deixava-se distrair por qualquer bobagem. Talvez fosse isto: a vida já não estava mais lá para lhe roubar a atenção.
Meg tocou a parede. Achou que ela agora parecia menos sólida, mais fluida, como uma onda preguiçosa. Quando roçava os dedos nela, eles submergiam no azul, produzindo faíscas prateadas.
- Viu? - disse Flit, vangloriando-se.
Meg recolheu a mão rapidamente e flexionou os dedos para ver se estava tudo em ordem. Não percebeu nenhuma diferença. Nada mal para uma garota morta.
- Anda, menina! - insistiu Flit. - Depressa! Poço muito forte aqui.
Meg assentiu com a cabeça. Quanto mais distante ficasse daquele poço, mais duradouro seria seu rastro espectral. E ela precisaria de todas as forças que pudesse acumular a fim de acertar os ponteiros com o velho Lowrie.
- Está bem. Eu vou. Espero que você esteja certo. Tomara que esse buraco não seja um atalho para o inferno!
- Não, não, não! Não é! Flit ter certeza. Direto volta pra casa.
Meg não via mais sentido em permanecer ali. O melhor que tinha a fazer era atravessar aquela parede e dar o assunto por encerrado. Nunca tivera medo de nada enquanto viva e, agora que estava morta, não tinha motivos para agir diferente. Respirou fundo e...
- Menina, espera!
- O que foi? - perguntou Meg, assustada.
- Aqui. - Flit tirou duas pedrinhas da cesta e colocou na mão dela. Duas pedrinhas azuladas, com veios prateados. - Resíduo de alma - explicou ele. - Baterias extras.
- Valeu - disse Meg, guardando as pedrinhas no bolsinho da bota.
Era tudo de que precisava: um par de pedras. Achou melhor não jogá-las fora na frente do baixinho para não magoá-lo.
- Agora vai, menina! Chispa daqui! Como Papa-Léguas!
- Bip-bip - disse Meg, nervosa.
Ela tocou a parede novamente. Viu espocar as mesmas faíscas de antes. Passou a mão, o cotovelo... e sumiu.
Myishi examinava o cérebro de Belch.
- E então? - perguntou Belzebu, impaciente.
- Por favor, não me apresse - resmungou o diminuto oriental, sem se dar ao trabalho de levantar os olhos da geléia cinzenta à sua frente.
- Anda logo com isso, Myishi. Não tenho tempo a perder. Vale a pena salvar esse aí, ou não?
Myishi ergueu o tronco e sacudiu as mãos para se livrar dos restos de gosma.
- No estado em que se encontra, não. Perda total. A fusão com o cérebro do cachorro fez um estrago e tanto.
Belzebu ficou furioso. Soltava faíscas pelas garras.
- Diabos. Precisava de mais informações sobre a garota. O gênio da informática deu um sorrisinho de superioridade.
- Não esquenta, Belzebu-san. Posso fazer um uplink. Para o Amarra-Cachorro, os computadores eram um mistério tão grande quanto a transubstanciação.
- Uplink?
Myishi sorriu com malícia.
- Na terra, meus métodos eram mais ou menos limitados pela ética profissional. Mas aqui...
Ele sequer precisou terminar a frase. No Hades, os direitos humanos não tinham a menor relevância. Myishi tirou de sua caixinha de surpresas um objeto de aspecto terrível: algo parecido com um pequeno monitor, montado numa estaca de metal. Sem titubear, o programador fincou o tal objeto nas entranhas do cérebro de Belch.
Belzebu ficou aterrorizado. Myishi era um sujeito realmente sinistro. Perto dele, o Dr. Frankenstein parecia um mero escoteiro.
- O espigão cerebral. Adoro esta belezura. Os próprios impulsos elétricos do cérebro servem como fonte de energia. Sem falsa modéstia, uma obra-prima da minha parte.
- De fato - disse Belzebu, a ponto de desmaiar. Myishi tirou um controle remoto do bolso de seu terno elegantíssimo, emporcalhando o tecido com pedaços de massa cerebral.
- Bem, agora vamos saber o que essa criatura viu.
A telinha na ponta do espigão piscou algumas vezes e, segundos depois, os dois demônios viram a si próprios olhando de volta para si mesmos, da maneira que Belch os via. Uma situação confusa. O tipo de coisa que geralmente termina em dor de cabeça.
- Isso não serve pra nada, seu idiota.
Myishi mordeu os próprios lábios para evitar uma resposta malcriada. Percebendo isso, Belzebu pensou: Fique de olho nesse baixote. Está ficando saidinho demais.
- Vou voltar o filme.
A imagem na tela tremeu e começou a retroceder em alta velocidade. Belch fez o caminho de volta pelo túnel e nasceu novamente. Só na cabeça dele, é claro.
- Pode parar aí - disse Belzebu. - Agora aperte o play. Na tela via-se a imagem de Belch sorrindo para o agonizante aposentado.
- Gosto desse garoto - comentou Myishi. - Leva jeito pra coisa.
- Um preguiçoso, isso sim - retrucou Belzebu, com sua habitual hipocrisia. - Muito bem, pare aí!
Myishi apertou um dos botões do controle remoto, e a imagem congelou na tela. Meg debruçava-se sobre o velhote ferido, tentando protegê-lo.
- Aha! - exclamou Belzebu. - Ela tentou salvar o velho. Foi por isso que conseguiu escapar. Quais são as chances de uma coisa dessas acontecer? Uma em um milhão!
Myishi consultou uma calculadora do tamanho de um cartão de crédito.
- Uma em oitenta e sete milhões - disse ele, saboreando a oportunidade de corrigir o ajudante do Demo.
Belzebu contou até dez. Era preciso uma paciência de santo para aturar aquele metido. E de santo ele não tinha nada. Apontando o tridente na direção do programador, disse:
- Assim esse mingau de cachorro não serve pra nada. E você também não, se não encontrar um jeito de consertá-lo.
Myishi sorriu, sem se deixar intimidar.
- Deixa comigo, Belzebu-san. Vou instalar um holograma de ajuda virtual e fazer um upgrade na condição dele: de catatônico, ele vai passar a... endiabrado. Com perdão do trocadilho.
- Quero algo melhor que endiabrado. Infernal.
- Aí vai ser difícil. Principalmente com esse crânio. A verdadeira maldade requer uma caixa óssea muito maior. Esse espécime em particular nunca vai passar de um bandidinho de meia-pataca.
- Então que seja endiabrado. Paciência.
Com suas unhas delicadamente cuidadas, Myishi apertou mais alguns botões no controle remoto.
- Com isso, e com a genética canina, ele deve se transformar numa perfeita máquina do mal. Assim que for reanimado, não vai parar enquanto não cumprir sua missão. Caso contrário, perderá sua energia vital.
Myishi apertou o send, e o corpo de Belch começou a tremer, recebendo os bytes transmitidos pelo espigão cerebral.
- Mas, afinal, por que tanta pressa? O que você planejou para o garoto?
- Esse é o meu novo Caçador de Almas - respondeu Belzebu, com os olhinhos brilhando. - Ele vai voltar pra recuperar nossa alma perdida.
Myishi passou os dedos pelo cavanhaque, igualzinho ao do Diabo, porém numa versão miniatura.
- Nesse caso é melhor eu dar uma turbinada nele. Alguns mililitros de resíduo liqüefeito direto no córtex. O menino-cão vai ficar novinho em folha, como um recém-nascido.
- O menino-cão? - perguntou Belzebu. - Você não vai tirar o cachorro dele?
- Impossível, Belzebu-san. O mainframe está danificado demais.
- Mainframe?
Belzebu desconfiava que Myishi usava aqueles termos técnicos apenas para confundi-lo. E estava coberto de razão.
- Mainframe. Cérebro. Imagine que você tivesse de separar o sal da água com uma colher.
Myishi mal tentava disfarçar seu sentimento de superioridade.
- E quando é que ele vai ficar pronto?
- Daqui a um ou dois dias - respondeu o programador com displicência.
Belzebu já estava farto daquela petulância toda. Evidentemente não podia vaporizar o oriental, mas castigá-lo de leve, sim. Deixou uma bela carga se acumular no tridente e descarregou-a no traseiro dele. Myishi deu um salto tão grande que, se estivesse numa Olimpíada, certamente subiria ao pódio.
- Pois você vai entregá-lo em duas horas - arrematou Belzebu. - Caso contrário, vai virar churrasco na ponta do meu tridente!
Myishi assentiu com a cabeça, as bochechas estufadas pelos gritos sufocados.
Belzebu sorriu, novamente bem-humorado.
- Ótimo. Estamos conversados. - Ele se virou para sair, fazendo rodopiar as dobras do cafetã. - Ah, Myishi...
- Sim, Belzebu-san?
- Não se esqueça de tampar o cérebro do garoto, certo?

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 4

VISITANTES INOPORTUNOS

AS DORES NA PERNA de Lowrie McCall eram sinal de que ia chover. Já fazia dois anos que o maldito cachorro havia arrancado um pedaço dela, e as dores ainda insistiam em voltar. Os médicos haviam dito que ele mancaria para o resto da vida. Lowrie sempre ria quando se lembrava disso. Resto da vida? Só podia ser uma brincadeira.
Ele acendeu um charuto gordo e fedorento. Tinha voltado a fumar. Por que não? Já não havia ninguém por perto para reclamar, e àquela altura a nicotina não poderia fazer mal algum.
Lowrie nem sempre fora assim. Pessimista, amargo, como se uma nuvem negra estivesse estacionada sobre sua cabeça. Mas agora... bem, agora as coisas eram diferentes. Para ele, tudo começara naquela noite, dois anos antes, quando se vira estirado no chão, jorrando sangue no carpete. Naquele instante, teve consciência de que a morte estava próxima. Talvez não exatamente ali, mas por perto. A vida já não lhe interessava mais. Que sentido havia naquilo tudo? Céu? História para boi dormir. Não havia justiça nenhuma na Terra, e muito menos debaixo dela. Então para que se dar ao trabalho? De que adiantava seguir a trilha do bem? Lowrie ainda não tinha uma resposta clara para essa pergunta. E, enquanto procurava por ela, não via muito sentido nas coisas.
Já não agüentava mais ficar ali, olhando pela janela. Decidiu ver um pouco de televisão. Programação vespertina, o passatempo predileto daqueles cujo tempo já havia passado. Depois de cinco minutos de uma enfadonha aula de pintura para iniciantes, deu-se conta de que ainda não estava tão desesperado e desligou o aparelho. O jardim. Isso, ele iria para o jardim, arrancar um pouco de mato.
Porém, sua perna não havia se enganado, e a chuva logo começou a fustigar o minúsculo pedacinho de terra que o pessoal do condomínio chamava de "área verde". Lowrie suspirou. Seria possível que as coisas nunca mais voltariam a melhorar? Para onde tinha ido aquele homem alegre e jovial que havia sido no passado? Para onde tinha fugido a própria vida?
Lowrie havia passado tanto tempo matutando sobre essas questões que acabara por fixar na cabeça alguns momentos específicos de seu passado. Momentos em que tivera de fazer uma escolha e optara pelo caminho errado. Uma infindável sucessão de erros. Coisas que ele devia ou podia ter feito e não fez. Não que pensar nelas adiantasse de alguma coisa. Agora já não havia tempo para corrigi-las. Levando a mão ao lado esquerdo do peito, sentiu as batidas do coração. É... o tempo estava mesmo chegando ao fim.
Pois bem. O que fazer para ressuscitar aquele dia praticamente morto? Tomar alguns remédios. Arrastar as pernas até o jornaleiro. Ou... ah, que maravilha... jogar bingo com a velharada no centro comunitário.

¶¶¶

Ejetada da vida eterna, Meg Finn esborrachou-se na poltrona de Lowrie McCall. Como não pensava mais nos termos do BURACO, sentiu como qualquer mortal a dureza do impacto. Com o choque, a poltrona de rodinhas saiu rodopiando sala afora.
Lowrie não caíra por causa do susto, mas sim porque a poltrona desgovernada lhe arrancara a bengala da mão. Um desastre. Antes de se esborrachar no carpete, ele tentara se apoiar na estante de livros, fazendo com que o móvel pesado balançasse além do ângulo de equilíbrio e caísse em cima dele.
Seguiram-se alguns instantes de total confusão. Meg olhava como um zumbi para as partículas de poeira que levantavam em espiral da almofada velha. Poeira de verdade. Do mundo real. Ela estava de volta. Talvez não tivesse ido a lugar algum. A poltrona era bem real; ela tinha certeza. Uma possível explicação: Belch havia disparado a espingarda, fazendo com que ela voasse pelos ares e caísse na poltrona. Humm. Difícil de acreditar. No entanto, não mais difícil de acreditar do que toda aquela história de túnel azul, rastro espectral, ácaro falante...
Por fim, Lowrie recobrou os sentidos.
- Você? - exclamou ele, soterrado por uma pilha de revistas. - Meg Finn?
- Hein? - disse Meg, distraída.
- Mas você está morta! Eu vi o corpo! Mais uma teoria descartada.
- Meu corpo?
- Isso mesmo. Ou o que sobrou dele.
Meg sentiu um calafrio na espinha. Devia estar num estado lastimável quando foram buscá-la naquele tanque de gás.
- Meu rosto, como estava?
- Sem a maior parte dos dentes, posso garantir.
Só então Lowrie percebeu duas coisas: primeiro, que estava conversando com uma menina morta; e segundo que ele não conseguia respirar!
- E como está meu rosto agora? - perguntou Meg, apreensiva.
- Ugh! - exclamou o velho, que estava ficando azul.
- Tão mal assim, é?
Completamente sem ar, Lowrie apontou nervosamente para a pesada estante em cima dele.
Finalmente, a ficha caiu. Deixando o conforto da poltrona real, Meg correu na direção do armário e jogou o peso do corpo contra as pesadas prateleiras de pinho. Mal acreditou quando viu o móvel subir pelos ares e rodopiar até se espatifar contra o gesso da parede. Teve a impressão de que tinha arremessado uma simples moeda. Os livros agora se esparramavam pelo chão como traças de múltiplas asas.
- Uau! - exclamou ela, olhando para as próprias mãos. Elas estavam exatamente como antes, e não inchadas como as do Popeye. Contudo, de algum modo, ela havia ficado dez vezes mais forte que o marinheiro.
Lowrie respirou fundo para se recuperar.
- Ufa! - disse ele, tossindo.
- De nada - retrucou Meg, flexionando os dedos.
- Não estou... aham... agradecendo a ninguém. Sua delinqüente!
- Mas eu só estava...
Ainda no chão, Lowrie balançou o punho no ar.
- Você estava o quê? Tentando invadir meu apartamento de novo e arrancar mais um pedaço da minha perna?
- Mas não foi culpa mi...
- E me deixar inválido pelo resto dessa minha vida miserável?
- Também não precisa exagerar.
- Exagerar?
- Pelo menos você não morreu! - retrucou Meg, sem titubear. - Fui eu quem explodiu em mil pedacinhos com aquele seu tanque de gás!
Lowrie refletiu um instante. A garota tinha razão. Isso se não estivesse sonhando com tudo aquilo. Uma alucinação produzida pela falta de ar. Muito comum quando uma estante de livros cai em cima de uma pessoa.
- E você, o que é, afinal? Um anjo?
- Não exatamente - respondeu Meg. - Sou um nada. Presa entre o céu e o inferno. Uma intermediária. Foi por isso que precisei voltar. Pra ajudar minha vítima, segundo disse aquele carinha azul.
Àquela altura Lowrie já não entendia mais nada. De que diabos aquela garota estava falando? Presa entre o céu e o inferno? Carinha azul? Fazia muito tempo que ele não entendia mais a juventude. Brincos no umbigo, hip-hop, uma confusão. E agora uma menina-fantasma! Mas algo do que ela havia dito lhe chamara a atenção.
- Quer dizer então que o céu existe mesmo? Meg deu de ombros e respondeu:
- Parece que sim. Depende do seu rastro espectral. Vermelho ou azul. Ou, no meu caso, roxo.
Mais uma charada. Ou os desvarios de uma maluca, quem podia saber? Era bem possível que tudo aquilo não passasse de um truque de sua própria imaginação. Para que ele visse com mais otimismo... bem, as coisas de um modo geral.
- Então você tem de me ajudar?
- É - disse Meg, meio desconfiada. Lowrie apoiou-se num dos cotovelos.
- Então chegou tarde! Não pode mais me ajudar. Ninguém pode.
- Você levou uma mordida na perna, só isso. Não é nenhuma tragédia.
O velho tateou o chão à procura da bengala.
- Não é disso que estou falando, pateta! A mordida aconteceu dois anos atrás!
Se ainda corresse algum sangue no corpo de Meg, a surpresa teria feito com que ele sumisse de seu rosto. Dois anos! Ela tinha se ausentado por dois anos? A essa altura, já teria sido esquecida por todos, sem nenhuma marca de sua passagem pela Terra. Nem mesmo lembranças agradáveis na memória daqueles que a tinham conhecido.
- Um fantasma delinqüente! - disse Lowrie, interrompendo os pensamentos sombrios de Meg. - Era só o que me faltava... Pelo menos uma vez na vida, ou melhor, na vida após a morte, faça alguma coisa de útil e me ajude a levantar!
Lowrie estendeu a mão manchada e torta, com nós enormes, feito castanhas-da-índia. Meg olhou para aqueles dedos feios. Precisava ajudar o velho. Era sua missão.
- Anda logo, menina! Afinal a culpa é sua, se eu não consigo me levantar sozinho!
Meg aproximou-se para ajudar Lowrie a ficar de pé. Seus dedos tocaram os dele. Ou melhor, não tocaram. As duas mãos se mesclaram uma na outra, produzindo uma sucessão de faíscas translúcidas. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, Meg foi sugada pela energia vital de Lowrie. Até o cotovelo, até a cintura...
- Me solta! - gritou ela.
Lowrie arregalava os olhos sem entender nada.
- Não sei o que... Não sou eu que...
Por fim, os dois seres se transformaram num só e agora ocupavam o mesmo espaço físico. Meg estava dentro de Lowrie McCall, e ele a envolvia como uma carcaça.
Tudo muito estranho, assustador, e meio nojento também. Meg expandiu-se até ocupar todo o espaço disponível. Suas mãos agora eram manchadas e secas, o pescoço tremia sob a cabeça, os olhos eram amarelados e vidrados.
- Me deixa sair! - gritou ela com a voz do velho, levantando-se num salto e sentindo os pés chatos de Lowrie plantados no chão. No entanto, não havia nada que ela pudesse fazer. O novo corpo a encerrava como uma prisão. Meg agora podia ver as manchas senis das mãos, as mangas largas do suéter desbotado, os fiapos de sobrancelha que invadiam seu campo de visão. - Socorro! - berrou, a ponto de sufocar Lowrie com sua aflição. - Alguém me ajuda!
Então, feito uma louca, Meg começou a correr pelo apartamento, trombando nas paredes, na esperança de se livrar daquele corpo decrépito. Em vão. Meg Finn e Lowrie McCall estavam tão entrelaçados quanto os fios de uma corda.
'Lowrie, por sua vez, acompanhava-a, sem nenhum controle sobre o próprio corpo, mas consciente de tudo o que se passava. Via as paredes passarem ao seu redor como se jamais tivesse sofrido uma lesão na perna. Sentia o coração bater forte no peito - bater forte, mas não disparar! Havia rejuvenescido algumas décadas e agora dispunha da energia e do entusiasmo de um adolescente. Tinha vontade de rir, mas não conseguia; já não era mais o dono de sua boca. Sentia-se como o único espectador de uma sala de cinema, vendo a própria vida passar na tela.
Ao contrário de Lowrie, que pulava de alegria com o rejuvenescimento, Meg não estava nem um pouco contente com sua nova situação, presa ali, sob a pele murcha de um velho. Disparou porta afora e seguiu por um caminho de muros rachados e grafitados. A chuva fria fustigava sua cabeça, que já não tinha lá muitos cabelos. O suéter, de tão encharcado, descia à altura dos joelhos. O misto de Lowrie e Meg corria ensandecidamente, derrapando nas esquinas, ouvindo os chinelos baterem contra a sola do pé. Então, de repente, os dois resolveram parar. Diante deles não havia nada de extraordinário, a não ser um tanque de gás. Novinho em folha. Reluzente. Nenhuma bolha de tinta ou mancha de ferrugem.
Meg desabou no chão molhado, levando Lowrie consigo. Vida e morte repetiam-se numa espécie de piada cósmica.
- Não quero ficar velha - choramingou ela, lágrimas pingando da ponta do narigão. - Não quero morrer.
Lowrie não disse nada. Não tinha muito a acrescentar. Sentia-se mais ou menos da mesma forma.
Nem eu, pensou.
De algum modo, Meg pôde ouvi-lo, como se ouvisse uma voz nas profundezas da mente. Um duendezinho em sua cabeça. E não era só isso. Agora, uma vida inteira de sentimentos vagos mesclavam-se aos seus próprios sentimentos: casamentos e enterros, a dor na perna, uma terrível solidão. Meg não queria nada daquilo. Nada. Tinha apenas quatorze anos, ora bolas. Queria ter quatorze anos para o resto da vida.
Preciso sair deste corpo, pensou ela. Flutuar para fora do mesmo jeito que entrei. E foi isso que ela fez. Desprendeu-se como um curativo molhado e pousou no asfalto, ao lado de um repentinamente exausto Lowrie McCall. Os pulmões do velho estavam a ponto de explodir; as pernas tremiam feito vara verde.
- Por um instante... - disse ele, arquejando. - Por um instante, eu...
- Você o quê? - perguntou Meg, apenas por perguntar. Não estava nem um pouco interessada nos problemas do velho. Seus próprios problemas já eram suficientes.
Lowrie passou a palma da mão sobre a testa molhada de chuva.
- Por um instante eu estava vivo outra vez.
E por algum motivo isso fez com que o velho abrisse um berreiro como um bebê chorão. Meg achava que sabia por quê. Havia algo de errado com Lowrie McCall. Algo além da artrite e das pernas tortas. Um sentimento estranho havia permeado a pele de Meg - ou o que quer ela tivesse agora no lugar da pele - enquanto ela estivera dentro do velho. Um sentimento que de alguma forma a lembrava do túnel.
Provavelmente um mau sinal.
- Anda - disse ela. - Vamos voltar. Vai acabar batendo as botas se continuar aqui.
A água da chuva misturava-se às lágrimas que pingavam do queixo de Lowrie.
- Essa é boa - disse ele, com um sorriso irônico no canto dos lábios. - Bater as botas. Muito engraçado. Vem, me ajuda a levantar.
Meg chegou a lhe oferecer a mão, mas conteve-se a tempo.
- Ah, não, espertinho - disse ela. - Não vou cair nessa armadilha outra vez.

¶¶¶

Lowrie resolveu deitar-se, convencido de que era vítima de uma alucinação prolongada. Meg, por sua vez, tentava familiarizar-se com sua nova condição.
Bem, agora havia aquela história de consubstanciação, isto é, a mistura de dois corpos num só. E também a capacidade de arremessar objetos pesados. Aparentemente, dependia apenas dela fazer contato com alguma coisa ou não. Uma espécie de poder da mente. Coisa de kung fu: basta querer, e assim será.
Depois de alguma experimentação, ela descobriu que tudo carregava um pouquinho de vida. Até a tal poltrona surrada tinha algumas lembranças flutuando em seu corpo de madeira e espuma. Várias delas tinham a ver com traseiros e com as funções corporais desses mesmos traseiros. Meg decidiu imediatamente jamais se misturar com nenhuma peça de mobília.
A peripécia no corpo de Lowrie havia deixado seqüelas em Meg. Além de perceber que sua aura estava mais desbotada, ela agora sentia no corpo um ímpeto indeterminado, como se precisasse ir em frente, fazer alguma coisa. O tempo era curto.
Meg descobriu também que os espíritos não dormiam. Quanta perda de tempo! Lá estava ela, correndo contra seu relógio espiritual, enquanto o velho roncava como um porco no andar de cima. Típico dos adultos, que não se importavam com o tempo de ninguém, a não ser o seu próprio.
Ela tentou ver um pouco de TV. Não deu certo. Seus olhinhos sobrenaturais captavam todos os elétrons da tela. Era quase impossível se concentrar nas imagens.
Só lhe restava então uma coisa a fazer: comer. Não que estivesse com fome. Era apenas um pretexto para matar o tempo. Meg surrupiou uma musse de chocolate da geladeira de Lowrie e começou a comê-la com os dedos. Horrível, claro, mas ao mesmo tempo deliciosa.
Enquanto se concentrava na musse, Meg não teve nenhum problema. No entanto, tão logo parou de pensar nela, viu o doce pastoso flutuar através das paredes de seu estômago, atravessar a aura e, uma vez submerso no campo da gravidade, esborrachar-se no piso xadrez da cozinha.
Meg ficou atônita. Ao que parecia, jamais sentiria fome outra vez. Tampouco teria a oportunidade de se sentir completamente saciada. Suspirando e bufando, voltou à sala e jogou-se num sofá puído, fazendo um esforço consciente para não pensar em BURACO. No entanto, involuntariamente captou lembranças do sofá, coisinhas perdidas debaixo das almofadas. Entre elas, um anel de brilhante. Um anel que pertencera a Nora. Uma mulher chamada Nora.

¶¶¶

Lowrie descia as escadas lentamente, apertando as pálpebras para enxergar melhor.
- Quem está aí? - perguntou ele, hesitante. Tinha ouvido um barulho no andar de baixo.
Meg empertigou-se no sofá.
- Quem é Nora?
Lowrie parou no mesmo instante, um pé entre um degrau e outro.
- Nora? Quem foi que lhe contou sobre Nora?
- O sofá - respondeu Meg, sem rodeios.
Lowrie achou que pudesse ser gozação, mas, examinando o rosto de Meg, viu que ela falava a sério. Afinal, por que seria de outra forma? Ao que parecia, tudo era possível. Mancando pesadamente, ele se arrastou escada abaixo, caminhou até a poltrona e, com uma careta de dor, sentou-se na poltrona. Por pouco Meg pôde ouvir os ossos dele rangendo.
- Nora era minha mulher. Vivemos juntos por vinte e sete anos.
Meg suspirou. Sempre ficava sentimental quando ouvia histórias de família com final feliz.
- Sorte sua. Ficar casado tanto tempo assim.
- Sorte? - retrucou o velho. - Porque você não era casada com ela. A mulher bebia feito uma esponja e fumava três maços de cigarro por dia. Por que acha que moro nesta espelunca aqui? A bruaca gastou todo o nosso dinheiro. Até os móveis nós tivemos de vender.
- Suponho que tenha sido a bebida que acabou com ela - disse Meg, tentando ser madura e compassiva.
Lowrie fez que sim com a cabeça.
- De certa forma. Uma noite ela chegou em casa, completamente bêbada, e por engano bebeu uma garrafa de detergente. - Era a vez de Meg achar que se tratava de gozação. Não era. - E eu já estava quase colocando minha vida em ordem quando vocês apareceram, você e aquele brutamontes.
Lembrando-se do túnel, Meg disse:
- Ah, nós estamos pagando pelo nosso crime, pode acreditar.
- Aquele seu colega. Ele está... como eu vou dizer... lá embaixo?
- Está.
- E o seu castigo, qual é? - perguntou Lowrie.
- Estou aqui ouvindo você, não estou?
- Ha, ha, ha... Você é mesmo uma piada! Ainda bem que está lidando com a morte assim, com bom humor.
Meg suspirou.
- Ainda estou viva. Mas de outro jeito. De qualquer forma, minha vida não era lá um mar de rosas.
Lowrie balançou a cabeça em sinal de concordância. A vida dele também não era nenhuma maravilha.
- Posso lhe perguntar uma coisa? - continuou Meg.
- Acho que sim - respondeu Lowrie, sem muita convicção.
- Qual é o problema com você? O velho levou um susto.
- Que espécie de pergunta é essa?
- Bem, é que... Ontem à noite, quando a gente estava... misturado... eu senti uma coisa esquisita..
- Uma coisa esquisita? - repetiu Lowrie, com ironia. - Não dá pra ser um pouquinho mais específica?
- Sei lá, uma coisa ruim, uma tristeza. Não sou médica pra dar um diagnóstico.
- Ah, você não é médica? - disse Lowrie, com a mesma ironia de antes. - Que pena, achei que fosse...
- Deixa pra lá - disse Meg. - Eu devia ter ficado de bico fechado.
Lowrie alisou a cicatriz na perna.
- É o meu coração - disse ele por fim. - Essa porcaria está quase parando.
- Você está...
- Estou - antecipou-se o velho, pesaroso. - Só me restam alguns meses. Seis, no máximo. Meg olhou para ele com pena.
- Não se preocupe. Aura azul. Direto pro céu.
- Não é a vida após a morte que me preocupa. É esta vida aqui mesmo.
- Não é um pouco tarde demais pra se preocupar com isso?
- Você não entende. Ah, os jovens... Por que você não fecha a matraca e ouve pelo menos uma vez na vida? Ou na morte? Ou... seja lá o que for.
Meg engoliu a seco e conteve uma resposta malcriada. Até meros pensamentos maldosos faziam com que uns fiozinhos vermelhos brotassem na aura dela.
- Está bem, então. Sou toda ouvidos.
Lowrie tirou um bloquinho do bolso da camisola de dormir.
- Minha vida tem sido um desastre. Desde o início. Nenhuma lembrança boa. Desde o meu casamento com aquela bruxa, a Nora, até o dia em que aquela fera me arrancou um pedaço da perna.
- Alguma coisa boa deve ter acontecido. Lowrie fez que não com a cabeça.
- Joguei estes meus sessenta e oito anos de vida no lixo. Sempre que precisei tomar uma decisão, acabei seguindo pelo caminho errado.
Meg fez uma careta como se quisesse dizer: "Quanto exagero!"
- Pára com isso, menina! - disse o velho, irritado. - Estou fazendo das tripas coração pra contar o quanto a minha vida tem sido difícil, e você fica aí, fazendo caras e bocas!
- E o que quer que eu faça? Não posso fazer o tempo voltar, se é isso que você quer.
- Ah... - disse Lowrie, desapontado.
- Só vou ficar aqui durante uns dias, ajudando você com as coisas da casa. Quando minha aura ficar azul de novo... puf! Dou no pé.
- Fecha o bico e abre os ouvidos, menina! Tenho certeza de que o Todo-Poderoso não mandou você de volta só pra lavar a louça!
Meg não gostou nem um pouquinho de ouvir aquilo. Ah, os velhos... Sempre acham que sabem de tudo. Lowrie, por exemplo, nem tinha morrido ainda e ficava falando de Deus como se fosse amigo íntimo dele!
- Se você voltou, é porque precisa fazer alguma coisa especial.
Meg sentiu um friozinho no estômago espiritual.
- O que, por exemplo?
- Me ajudar a organizar a vida. Era difícil não rir. E Meg riu.
- Que vida? Você só tem mais seis meses! - Não era a primeira vez que ela fazia isso: dizer uma estupidez qualquer e ficar se remoendo de arrependimento durante meses. - Desculpe, não tive a intenção de...
- É, você tem razão. Que vida? É isso mesmo que estou tentando explicar. - Lowrie olhava para o nada, como se estivesse perdido em suas lembranças. - Ah, se eu não tivesse... - Ele balançou a cabeça com vigor, fazendo um esforço para voltar ao presente. - Bobagem. Já não tenho tempo pra lamentações. O que preciso agora é agir. - Ele abriu o bloquinho. - Até fiz uma lista.
Ah! Uma luz no fim do túnel!
- Que espécie de lista?
- Dividi minha vida numa série de burradas. Coisas que deixei de fazer quanto tive a oportunidade de fazê-las. Não foi fácil, pode acreditar. Muitas burradas pra escolher. Mas acabei escolhendo quatro.
Lowrie arrancou uma página do bloquinho e entregou-a ao espírito relutante. "PÁGINA", pensou Meg, recebendo o papelzinho. Vendo o garrancho do velho, achou que não conseguiria ler nada. Mas nem precisou. As palavras começaram a soar por si mesmas na mente dela. Até os rabiscos mais confusos explodiam de emoção. A dor que custara ao velho para compilar aquela lista emanava do papel numa espiral de lembranças tristes.
Havia pelo menos uns vinte itens na lista, a maioria riscada com um traço. Para Meg isso não fazia diferença. As imagens evocadas por cada item brotavam espontaneamente através da tinta. Lowrie não havia exagerado. Sua vida tinha sido mesmo um desastre. Casar com uma alcoólatra, morar com a sogra, deixar de fazer o seguro de incêndio da primeira casa. Chegar de férias à Iugoslávia exatamente no dia em que a guerra começou. Uma tragédia atrás da outra. Mas nada disso tinha conserto; eram águas passadas que já não moviam moinho. Quatro dos itens, porém, estavam circulados e numerados. Meg leu-os com atenção, mal acreditando no que revelavam as imagens espectrais.
Por fim, com uma interrogação no olhar, ela levantou os olhos do papel e disse:
- Não estou entendendo.
- Ainda há tempo pra essas aí - disse Lowrie, animado. - Ainda posso fazer essas coisas aí.
- Está brincando... - retrucou Meg.
- Não, senhorita, não estou brincando. Saiba você que o arrependimento é um excelente motivador.
- Não sei de nada. Tenho só quatorze anos. Lowrie coçou o calcanhar marcado por cicatrizes.
- Com sua ajuda, posso fazer tudo isso. Antes seria impossível. Mas ontem, quando você me... bem, quando você entrou no meu corpo, me senti jovem outra vez. Pronto pro que der e vier!
- Mas essas coisas aqui? Quer dizer... pra quê? Uma maluquice, isso sim!
- Pra você, talvez. Pra todo mundo. Mas essas foram as minhas grandes burradas. E agora tenho a oportunidade de corrigi-las, mesmo que ninguém se importe com isso, a não ser eu.
Meg já não sabia mais o que dizer.
- Mas o que isso vai mudar, sair pelo país assim, como um maluco?
- Nada - reconheceu Lowrie. - A não ser a minha auto-estima. E isso, minha cara, é cada vez mais importante à medida que a gente vai ficando velho.
Meg franziu a testa, contrariada. Detestava aquela balela de "quando tiver a minha idade, você vai entender". Especialmente agora que o tempo havia parado para ela. Balançando o papelzinho no ar, disse:
- Então é isso? Vamos percorrer a Irlanda de ponta a ponta só pra realizar essas suas tarefas idiotas? Não há uma alternativa?
- Não, não há - respondeu Lowrie. - É isso aí que está escrito. Essa lista é o único caminho para o céu. - Ele fez uma pausa, depois emendou: - Pra você e pra mim.

¶¶¶

Belch estava de volta. Quer dizer, mais ou menos. Mais ou menos Belch e mais ou menos de volta. Se ele estava confuso? Não. Myishi havia feito o download de um extenso "módulo de ajuda" na memória dele. Agora, bastava que Belch pensasse numa pergunta para que um ciberdemônio consultasse o programa à procura de respostas. Era o mesmo que ter um gênio instalado dentro da cabeça. Como devia ser: os homens de verdade fazendo o trabalho de verdade, e os nerds brincando com os seus brinquedinhos.
O Capeta em pessoa havia descido ao saguão de embarque para ver a partida de Belch. Pela primeira vez desde o concerto do Mettallica, Belch ficou impressionado.
Apresentando-se sob forma de Besta do Mal, Satã não gastou seu latim convencendo o recém-chegado sobre a importância da missão. Simplesmente levantou Belch pela garganta, apertou-o contra a parede e disse:
- Volte. Encontre a garota. Faça ela pecar. Depressa.
Os olhos do Capeta estavam arregalados e vermelhos. Almas rodopiavam e gritavam nos feixes de um arco-íris. Um efeito de inegável beleza.
Exibido, pensou Belzebu com seus botões.
- Fazer ela pecar? - repetiu Belch, respeitoso. Belzebu ficou de cabelos em pé. O Mestre não respondia perguntas.
Satã apertou ainda mais o pescoço do garoto, fazendo com que o cachorro dentro dele gemesse involuntariamente. Faíscas espocavam em torno do corpo fibroso da Besta, chamuscando os pêlos de Belch.
- É, pecar! - rugiu Satã. - Faça a garota pecar!
- Entendi, entendi! - disse Belch, quase sufocando. - Fazer Meg pecar.
- Urrggh... - bufou o Diabo, duvidando da competência do seu agente. Em seguida, deixou Belch despencar no chão de mármore. - Caso contrário... - Em vez de terminar a frase, Satã vaporizou um churrasqueiro que passava por perto, demonstrando com indiscutível clareza o que tinha em mente.
Belch engoliu a seco. O recado estava dado.
- Sim, Mestre - disse ele. - Deixa comigo.
- Urrggh... - bufou o Senhor das Trevas novamente.
Era impressionante como ele ficava assustador quando proferia aquela única sílaba. Em seguida, sumiu numa nuvem de fumaça, deixando para trás uma catinga de enxofre. Belzebu aproximou-se do elevador e apertou o P de Porão. Belch juntou-se a ele, caminhando daquele seu jeito estranho de menino-cachorro.
- Tecnicamente falando - explicou Belzebu -, você não precisa fazer a menina pecar, como tão bem expôs o nosso Mestre. Basta impedir que ela faça o bem. A essa altura nossa presa já foi despachada para a Terra com orientações para ajudar o velho. Sua missão é impedir que ela obtenha sucesso. Se conseguir, a aura dela vai ficar vermelha e... bem, o resto você já sabe. O Mestre recupera sua almazinha querida, eu mantenho meu emprego e você fica livre da churrasqueira. Pode acreditar, meu rapaz, a vida no espeto não é mole não.
Belzebu era dado a piadinhas. De humor negro, claro. Afinal era um demônio. Ele riu baixinho do próprio comentário, supostamente engraçado. Belch sentiu-se obrigado a rir também quando viu os raios faiscarem no tridente do Número Dois.
- Só tem uma coisa que não estou entendendo direito - arriscou ele.
- Só uma? - devolveu Belzebu, continuando com as ironias.
- Seu chefe...
- O Mestre?
- É, ele. Bem... Ele já me pegou. Por que está atrás da Meg também?
Belzebu tinha uma resposta na ponta da língua. Mas sequer podia pensar em dizê-la por ali, tão perto da câmara central. Basta saber que continha as palavras "teimoso" e "mula".
- O Mestre acredita que Meg Finn é diferente, que tem um potencial maior que o das outras almas. Pelo que sei, ela fez alguma coisa ao padrasto.
Belch engoliu a seco.
- Ah, aquilo. Muito sinistro.
O elevador chegou, e as portas se abriram. Achando estar diante de uma armadilha, imaginando que no chão houvesse um alçapão ou coisa parecida, Belch entrou pisando em ovos. Não, você não vai voltar à terra, ha ha ha. Mas não havia armadilha alguma, apenas um carpete peludo, cor-de-rosa.
- De quanto tempo eu disponho? - perguntou Belch. - Pra cumprir minha missão?
Belzebu deu de ombros.
- Depende. Se não exagerar nas possessões, se não chamar o inferno a toda hora, terá combustível pra mais ou menos uma semana.
Belch resmungou, achando o tempo curto demais.
- No caso de problemas - continuou Belzebu -, consulte o módulo de ajuda virtual. Myishi me garantiu que todas as possibilidades estão previstas.
- Está bem, chefe - disse Belch, educado, imaginando que voaria como um foguete tão logo aquele elevador o cuspisse rumo ao planeta Terra. Sayonara, inferno! Adeus, demônio vestido de mulherzinha!
- Isso é um cafetã - retrucou Belzebu, sem se alterar.
- Au!- latiu Belch.
Aparentemente, sua parte quadrúpede falava mais alto nos momentos de estresse.
- Isso mesmo - continuou o Número Dois. - Posso ler pensamentos. Apenas das almas mais fracas, é verdade; mas você, meu caro, pertence a essa categoria mais do que ninguém.
Nem pense em fugir, ouviu bem? Assim que sua energia vital acabar, você será puxado de volta ao inferno como um ioiô!
- Certo.
Belzebu ajustou o tridente para uma carga de nível quatro. Bem potente.
- E você sabe que não vou deixar essa história de mulherzinha passar em branco, não sabe?
Belch fez que sim com sua cabeça peluda.
- Au, au!
- Foi o que eu pensei - retrucou o demônio, segundos antes de espetar o tridente eletrizado no couro aflito de Belch.

¶¶¶

Então Belch estava de volta. Cuspido da boca de um elevador que mais parecia um forno. De volta onde tudo começara, ou melhor, onde tudo terminara: o tanque de gás próximo ao apartamento de Lowrie.
O tanque estava novinho em folha. Reluzente, todo pintado de laranja, sem nenhum resquício da tragédia que ocorrera ali, a não ser pelos buracos nos muros vizinhos, causados pelos estilhaços da explosão.
Belch contava com uma grande vantagem sobre sua adversária: sabia exatamente o que estava acontecendo. O implante instalado por Myishi dava-lhe uma infinidade de informações de natureza espiritual, com todos os detalhes possíveis. Por exemplo, ele sabia que pudera voltar à Terra simplesmente porque havia morrido muito cedo, vítima de uma saraivada de pedacinhos de metal. Isso deixara-o com décadas de essência vital, ou resíduo de alma, inutilizada. Infelizmente, essência vital sem vida era o mesmo que um cérebro fora do crânio: frágil e altamente perecível. Duraria, quando muito, um dia para cada década não vivida. Mesmo com a injeção revigorante que haviam lhe dado, Belch tinha, no máximo, uma semana para executar sua missão.
Ele também sabia o que Meg precisava fazer para colocar um pouquinho de azul na aura dela. E teria o maior prazer em impedir que obtivesse sucesso. Jamais perdoaria aquela traidora miserável, a única culpada pela morte dele. Portanto, faria tudo que estivesse a seu alcance para impedir que Meg Finn passasse a eternidade sentadinha numa nuvem, tranqüilona, bebericando um copão de milkshake de chocolate. Nada disso. No que dependesse dele, ela acabaria seus dias na churrasqueira, girando espetos gordurosos e sentindo no lombo as ocasionais chicotadas que ele próprio se encarregaria de dar. Ao imaginar a cena, Belch deu uma risadinha de prazer, salivando pelos cantos da boca.
Seu plano era simples: ele apareceria de surpresa no apartamento do velho, daria um bom susto nele, e o rabugento bateria as botas. Depois disso Meg não teria mais a quem ajudar. Perfeito.
- Não vai funcionar - disse uma voz eletrônica.
Belch levantou os olhos. O módulo de ajuda virtual pairava na altura dos ombros dele, com um sorrisinho complacente - perfeitamente natural - em seus lábios de quinhentos pixels por centímetro.
- Você deve ser o Myishi. Já ouvir falar de você. O ícone piscou os olhinhos virtuais e disse:
- Sim... e não.
Ótimo, pensou Belch. Um programa esquizofrênico. (Evidentemente, a criatura em que se tornara Belch Brennan não conhecia a palavra "esquizofrênico", mas a idéia era essa.)
- Em termos de poder cerebral, eu sou Myishi. A inteligência dele foi programada na minha memória. Espiritualmente, o Excelso Saber ainda reside no Hades.
Belch coçou o pedacinho de couro cabeludo onde o implante havia sido instalado.
- Pois é lá que aquele maluco devia morar mesmo. O iconezinho animado reagiu imediatamente:
- Não desrespeite o meu inventor. Caso contrário, serei forçado a ativar a ecto-rede e fazer uma transmissão em tempo real. Isso, por sua vez, certamente provocará um espasmo de dor no seu mainframe.
- Ecto-rede? Mainframe? Que diabos é você?
A criaturinha, impecavelmente vestida, fez uma mesura e disse:
- Sou o seu programa de Ecto-Link e Personal Help. Mas pode me chamar pelo apelido: Elph.
- Você não está gastando minha bateria, está? - perguntou Belch, desconfiado.
- Não. Já estou incluído no pacote.
- Ótimo. Então me diz, o que há de errado com o meu plano?
Sorrisinho complacente de novo.
- É o plano de um perfeito idiota. Matar o velho de susto não vai prejudicar Meg em nada. Se ela não tentar, sequer vai ter a oportunidade de falhar. Somente quando a aura dela estiver vermelha é que você poderá dar sua missão por cumprida.
- Humm... - resmungou Belch, displicentemente coçando a orelha.
- O que você tem a fazer é atrapalhar os planos deles, de Meg e de Lowrie. Tudo que o velho pedir à garota, cuide para que não dê certo.
É. Fazia sentido. Como diria o Dr. Spock.
- Está bem, então. Que tal a gente dar uma passada no apartamento do velho e jogar uma mosca nessa sopa?
- Infelizmente não estou equipado com insetos - retrucou Elph.
- Não quis dizer uma mosca de verdade, debilóide! Estou falando de uma mosca de mentirinha! Como quando a gente diz "ele é forte como um cavalo", mas o cara não é um cavalo de verdade.
- Ah, sim - disse o fantasminha virtual, flutuando ao longo do caminho. - Agora entendi. Belch-san estava falando metaforicamente. Esse arquivo não foi incluído na minha memória. O venerável Myishi achou que não seria relevante para nossa missão.
- O venerável Myishi pode pegar esse arquivo e...
Antes que pudesse terminar sua frase malcriada e altamente escatológica, Belch sentiu uma pontada violenta no cérebro. Não se tratava, é claro, de um cérebro real - este agora estava debaixo da terra, servindo de comida às minhocas. Acontece que a dor espiritual pode ser tão lancinante quanto a física.
Depois de alguns instantes, já recuperado do choque, Belch deparou-se com Elph flutuando à sua frente, olhando-o com frieza.
- Desrespeitar o Excelso Saber - disse a criaturinha - ativa imediatamente o link punitivo. Não recomendo.
- Au!- rosnou Belch. - Entendido.
- Não precisa traduzir. Sou fluente em quatorze idiomas caninos, inclusive no paupérrimo dialeto dos pitbull.
- Então vamos acabar logo com isso - resmungou Belch. - O apartamento do velho fica logo ali, do outro lado da esquina.
- Hai, Belch-san.
Eles entraram no pátio externo. Empolgado com seus novos poderes de poltergeist, Belch revirava tudo que via pela frente: latas de lixo, bancos e até pequenos carros. Elph, por sua vez, balançava a cabecinha piscante em sinal de reprovação. Sisudo demais para um holograma.

 

CAPÍTULO 5

A TRANSFORMAÇÃO

ELES FORAM de trem para Dublin. Ao que parecia, Nora havia bebido o carro também. Na condição de aposentado, Lowrie tinha passe apenas para os vagões de segunda classe e, portanto, via-se obrigado a conversar com um espírito invisível na frente de um monte de estranhos.
- O que estamos indo fazer em Dublin? - perguntou Meg.
- Hein? - disse Lowrie, despertando de um sonho qualquer.
- Esse primeiro item na sua lista de desejos... "Bicota na Sissy". O que isso quer dizer?
Lowrie virou-se para Meg e, com sua típica rabugice, respondeu:
- Isso mesmo que está escrito aí. Há uma mulher chamada Sissy. Preciso dar um beijo nela.
- Sim, mas por quê?
- Não é da sua conta. Faça apenas o que veio fazer aqui. Meg não gostou nem um pouco da resposta. Levitando a uns dez centímetros do assento, retrucou:
- Só estou tentando ajudar, ora bolas. Um pouquinho de educação não faz mal a ninguém.
- Educação? Quem é você pra falar de educação? Uma delinqüente que invade a casa de um velho e arranca um pedaço da perna dele. Ou, pior, faz o que fez com o próprio padrasto.
Só de pensar em Franco, Meg soltava fogo pelas ventas.
- Quem foi que contou sobre isso a você? - perguntou ela.
- Ele mesmo.
- Você conhece o Franco? Lowrie ajeitou-se no assento.
- Ele apareceu lá em casa pra pedir desculpas depois do... acidente.
Meg sentiu suas moléculas vibrarem. Mesmo depois de morta, ainda perdia a cabeça quando ouvia falar daquele homem.
- Coitado... - prosseguiu Lowrie. - Depois de tudo que ouvi, até fiquei com vergonha de reclamar da vida...
Meg mal acreditava no que escutava.
- Você ficou com pena daquele maldito?
- Depois do que você fez?
- Mas ele fez por merecer! - disparou Meg. - Aliás, ele merecia muito mais!
- Sei lá... Acho que ninguém merecia aquilo. O que você fez foi...
- Justiça! - interrompeu Meg. - O que eu fiz foi justiça! Aquele canalha vendeu as jóias da minha mãe. Inclusive uma pulseira que ela adorava, com pingentes da sorte. Todo ano a gente acrescentava um pingente novo. Além disso, ele assistia a nossa televisão, esborrachado no nosso sofá. Ele era tão espaçoso que, depois de um tempo, o sofá ficou sendo dele. Tinha até a marca do traseiro nojento dele numa das almofadas.
Avaliando a expressão de Meg, Lowrie perguntou:
- E ele batia em você?
Seguiu-se um momento de silêncio. Meg pousou novamente no assento de plástico rasgado.
- Não adianta mudar de assunto - disse ela, de repente. - Quem é essa tal de Sissy afinal? E como você sabe que ela não vai dar um tapa na sua cara quando tentar dar um beijo nela?
Lowrie recostou-se na janela e tirou um charuto do tamanho de uma salsicha do bolso interno do paletó.
- Sissy Bronan - disse ele, suspirando. Em seguida acendeu um isqueiro muito antigo, a óleo. A chama enorme exalava um cheiro forte, assim como o próprio charuto. Meg viu, maravilhada, a fumaça atravessar seu abdome. - Sissy Bronan é a mulher com quem eu devia ter me casado, em vez daquela bruxa da Nora. Sissy era uma mulher de verdade. Quebraram a fôrma depois que fizeram ela...
- Fôrma? Como uma fôrma de bolo?
- Não.
- De gesso?
- Ah, fecha a matraca, menina! - resmungou Lowrie, irritado por ter sido interrompido. - É só uma expressão. O que estou dizendo é que ela era única. Não havia outra igual.
- Ah...
- A gente saiu uma vez...
- Saiu de onde?
Lowrie já podia prever a dor de cabeça que estava por vir.
- É só uma expressão! Nós tivemos um encontro! Saímos pra passear!
- Ah...
- Primeiro, fomos ao cinema.
- E que filme vocês foram ver?
- Sei lá - bufou Lowrie. - Eu não me... - Ele parou e, com uma expressão de doçura no olhar, corrigiu-se: - Eu me lembro, sim. Era A máscara do Zorro.
- Bela porcaria. Aposto que esse filme passa até hoje.
- Eu me lembro muito bem. Quando saí pra comprar batatas fritas, fiquei imitando o Zorro, brandindo uma espada imaginária no saguão do cinema...
Meg riu.
- Você? Pagando esse mico só porque estava feliz? Não acredito.
- Eu também mal posso acreditar. Talvez seja esse cérebro cansado de guerra que esteja inventando coisas. De qualquer forma, foi uma noite e tanto. Perfeita. Noites assim não acontecem toda hora. No máximo umas seis vezes na vida de uma pessoa. Ah, Sissy... Com aqueles cachinhos ruivos presos atrás das orelhas. A última moda naqueles tempos.
- Sei - disse Meg, morrendo de tédio. - Cachinhos atrás das orelhas e banheiros do lado de fora de casa.
Mas Lowrie estava de tal modo perdido em seus pensamentos que nem se deu ao trabalho de retrucar. As lembranças brotavam dele como espirais de fumaça, desenhando formas exuberantes pelo ar.
- Uma noite perfeita...
- Mas?
- Mas eu pus tudo a perder. Como sempre.
- O que foi que você aprontou? Afinal, tudo o que tinha a fazer era levar a moça em casa e dar um beijinho de boa-noite nela.
- Não teve beijinho nenhum.
- Vacilão.
Lowrie balançou a cabeça grisalha em sinal de profundo arrependimento.
- É, eu sei. Penso nisso todos os dias. Mas a culpa foi das minhas mãos.
- Como assim?
- Elas suavam muito. Estavam ensopadas. Como duas plantinhas de aquário. Fiquei com vergonha de colocá-las na cintura dela. Uma bobagem, eu sei. Uma grande bobagem. - Lowrie não ouviu nenhum comentário por parte de sua acompanhante fantasma. - Achei que, se Sissy percebesse que minhas mãos estavam suadas daquele jeito, eu nunca mais teria chance com ela. Pensei: "Amanhã, quando estiver mais fresco e minhas mãos estiverem secas..." Então dei as costas e fui embora.
- E você nunca mais viu a tal de Sissy? O velho deu uma sonora gargalhada.
- Ah, vi sim! Todos os dias durante os quatro anos seguintes. No início, via a mágoa nos olhos dela; depois, a frieza. Eu estava lá quando ela se casou com o meu melhor amigo. E ainda tive de sorrir, parado naquele altar, entregando as alianças como se fosse o padrinho mais feliz do mundo.
- Se tudo isso aconteceu na sua juventude, essa Sissy deve ser uma velhinha hoje em dia. Quando foi a última vez que você a viu?
Lowrie coçou o queixo mal barbeado.
- Pessoalmente? Agora você me pegou. Tem uns bons quarenta anos.
Meg levitou novamente, de tão pasma.
- Quarenta anos? Pode ser até que ela já tenha morrido, ou que esteja vivendo num asilo, sei lá!
- Nada disso. Sissy está viva. Disso eu tenho certeza.
- Tem certeza como? Já estive dentro do seu cérebro, esqueceu? Sei que ele não anda lá muito bem.
Lowrie foi direto ao ponto.
- Porque o nome de casada da Sissy é Cicely Ward. Imagino que até uma delinqüente como você deve saber quem é Cicely Ward!
Meg desabou, boquiaberta, no assento de espuma do trem.
- Aquela Cicely Ward?
- É. Aquela Cicely Ward. Ela não foi famosa a vida inteira, fique você sabendo. Antes, era só a minha Sissy.
Por mais estranho que parecesse, Meg achou tudo aquilo perfeitamente plausível.
- Você está me dizendo que teve a chance de se casar com a vovó mais querida da TV e que pisou na bola?
Lowrie socou a própria cabeça - uma cabeça dura, diga-se de passagem - e admitiu:
- Isso mesmo.
- Vacilão, isso é o que você é! E eu, que achava que minha vida era uma desgraça...
- Pelo menos eu tenho uma vida.
- Não por muito tempo.
Lowrie voltou subitamente ao presente, e suas lembranças retornaram para o mesmo lugar de onde tinham saído: o fundo do baú.
- Tem razão. Não por muito tempo. Portanto, se você fizer o que tem de fazer, acho que a gente nem precisa conversar.
- Mas...
- Mas, nada. Você só está aqui porque precisa estar. Caso contrário, estaria no céu, invadindo o castelo de alguém.
Lowrie baixou a boina sobre os olhos e tentou tirar um cochilo. Dormir de novo? Meg mal pôde acreditar. Depois daquela roncaria toda na noite anterior... Como alguém com apenas seis meses de vida podia desperdiçar o tempo daquela maneira, dormindo? Olhando para o céu, com ar de poucos amigos, ela pensou: "Poxa, valeu. Valeu mesmo. Minha última chance de salvação, e vocês me mandam a única pessoa que me odeia mais que o meu padrasto!"

¶¶¶

Quando o trem entrou na estação de Heuston, Lowrie ainda estava mergulhado no sono, respirando sonoramente pela bocarra aberta. Meg já não agüentava mais olhar para aquelas obturações. Era como se um dentista medieval tivesse preenchido as cáries com tocos de carvão. Além disso, como ele se vestia mal! Entre tantas outras coisas, era bem possível que Nora também tivesse bebido o bom gosto do velho. Se Lowrie andasse pelas ruas de Dublin vestido daquele jeito, as pessoas começariam a jogar esmolas para ele.
Entrar nos estúdios da RTE na companhia daquele Mendigo Adormecido seria uma missão impossível. Alguma providência teria de ser tomada. A equipe de Cicely Ward jamais deixaria aquele ET maltrapilho chegar perto dela só porque ele havia desperdiçado uma chance de beijá-la ainda no tempo do cinema preto-e-branco. E com certeza Cicely Ward teria uma equipe; gente famosa sempre anda cercada de armários parrudos e mal-encarados para evitar os fãs.
Meg podia até imaginar a cena, Lowrie aproximando-se de um dos armários e gaguejando: "É... desculpa... Será que eu posso entrar? É que eu fiz uma lista de desejos, e esse espírito aqui, flutuando em cima da minha cabeça..." Socos, pontapés, sarjeta.
Não. Sem a intervenção dela, nenhum dos itens daquela lista jamais seria riscado.
Hora de entrar em ação. Meg preparou-se mentalmente e, sem pressa, invadiu o corpo adormecido de Lowrie. Não é tão mal assim, depois que a gente pega a manha da coisa, disse a si mesma.
O cérebro do velho estava calmo. Imagens de cores vividas flutuavam de um lado a outro como nuvens fantásticas. "Continue sonhando, meu amigo. Não precisa acordar. Além do mais, você não ia gostar nem um pouquinho do que vai acontecer". Meg esticou as pernas enferrujadas e desceu à plataforma.
Atrás dela, duas freiras se benziam enquanto pediam ardorosamente ao Senhor que não terminassem seus dias como aquele pobre mendigo atrapalhado das idéias.

¶¶¶

Belch sorria como um lobo, feliz da vida por saber que podia invadir a privacidade de alguém sempre que lhe desse na telha. Bastara pensar na palavra "BURACO" para que ele atravessasse sem problemas a porta da frente do apartamento de Lowrie McCall. Perfeito,
- Eles não estão aqui - informou Elph.
Belch lambeu os lábios com sua língua comprida e fina de cachorro.
- Imagino que não dê pra desligar você. Elph piscou para acessar um arquivo.
- Não posso ser desligado pelo hospedeiro. Qualquer tentativa nesse sentido resultará numa descarga craniana de grandes proporções e recolhimento imediato à base.
- Ou seja, vou direto pro inferno, não é?
- Correto.
- Paciência. Então vê se fecha o bico enquanto dou uma olhada nesse lugar.
Elph sorriu como sorriria uma criança segundos antes de esmagar um inseto com os pés.
- Vou fechar o bico, como você disse, mas apenas porque isto é de fato o melhor a fazer.
Depois de alguns minutos vasculhando as velharias de Lowrie, Belch resolveu que estava cansado demais. Jogou-se no sofá puído e plantou os sapatos espectrais no vidro da mesinha de centro.
- Esse lugar é uma espelunca - observou. - Nem sei direito por que vim aqui.
Elph piscou novamente, examinando o arquivo pessoal de Belch Brennan.
- Sem dúvida nenhuma porque você é um protozoário. Segundo meu arquivo, você sempre foi propenso a atos de consumada estupidez.
Belch pulou do sofá, fazendo com que ele se espatifasse contra a parede.
- Tive um professor que nem você. Sempre fazendo gracinha e me chamando de burro. Sabe o que eu fiz? Dei uma lição nele. Cortei os quatro pneus do carro dele e arranhei o capô.
- Eu sei - disse Elph. - Tenho o vídeo. Sei também que você escreveu o próprio nome na lataria do carro do senhor Kehoe. Uma idéia brilhante.
- Posso dar um jeito em você também, paspalho! - rosnou Belch, avançando contra o conselheiro virtual.
- Duvido muito - devolveu Elph, vendo o menino-cachorro atravessar os impulsos elétricos que compunham o holograma. - Sou uma projeção intangível. Para "dar um jeito" em mim, você teria de arrancar a própria cabeça e enterrá-la num cemitério. Improvável, no mínimo.
Belch desprendeu-se da parede e lançou um olhar de fúria para seu suposto conselheiro.
- Muito bem, senhor Elph - disse ele. - Bandeira branca. Por enquanto.
- Sugiro que procuremos por pistas que nos levem ao paradeiro do nosso alvo.
- Pistas?
- Basta perguntar aos móveis.
- Está zoando comigo, não está? Elph suspirou e disse:
- Não, imbecil, não estou "zoando" com ninguém. Estou falando de memórias residuais. Os espíritos são muito receptivos a esse tipo de substância.
- Então pergunta você. Não vou pagar esse mico de ficar conversando com um apartamento velho.
- Não sou um espírito. Sou uma...
- Eu sei, eu sei... Uma projeção intangível, seja lá o que isso for. Está bem, então. Mas, se você ficar rindo da minha cara, vou tirar esse implante com as minhas próprias mãos. Já estou morto, não estou? Não vou ficar mais morto do que isso.
Belch virou-se para o sofá puído.
- E aí, sofá... - Ele mal acreditava no que estava dizendo. - Por acaso você sabe pra onde foram a garota e aquele velho rabugento?
Ele aguardou um pouco, meio que esperando que as almofadas velhas se transformassem numa boca para respondê-lo. Em vez disso, Meg surgiu diante dele. Não exatamente Meg, mas algo que lembrava uma pintura de formas em mutação.
- Ótimo - disse Elph. - Uma memória residual de nível quatro. Bem recente.
- Cala a boca, Spock. Estou tentando entender o que ela está fazendo.
- Algum retorno audível?
- O quê?
- Pode ouvir o que ela está dizendo?
Belch ouvia, com as orelhas tremendo de tanta concentração. As palavras fluíam da boca de Meg como pássaros multicoloridos. As cores eram escuras. Ela não parecia feliz.
- "Então é isso? Vamos percorrer a Irlanda de ponta a ponta só pra realizar essas suas tarefas idiotas? Não há uma alternativa?"
- Como?
- Foi isso que ela disse.
Suspenso no ar, Elph refletiu por um instante.
- Quer dizer então que o velho estabeleceu tarefas - disse em seguida. - Certamente eles já partiram para cumpri-las.
- Será que já se foram há muito tempo?
- Difícil dizer. O tempo funciona de outra forma no plano espiritual. A julgar pela dissipação de memória, faz umas seis horas que eles partiram.
Belch tentou dar um sorrisinho de sarcasmo, mas só o que conseguiu produzir foi algo semelhante ao ganido de um poodle.
- Seis horas? A essa altura eles podem até estar fora do país! Pronto, acabou. Não tem mais como a gente encontrar aqueles dois. Melhor ficar aqui, assistindo à televisão, esperando que eles voltem. Se é que eles vão voltar.
Elph mordeu seus lábios holográficos. Ao que tudo indicava, o protozoário tinha razão. O velho os havia ludibriado ao sair de casa. Droga. Myishi ficaria furioso caso seu protótipo o deixasse na mão. O holograma corria o risco de ser rebaixado a forno de microondas e passar o resto da eternidade requentando as gororobas de Belzebu.
Belch zapeava à procura de um desenho animado qualquer. Noticiário, noticiário, propaganda. Nada que prestasse. Ele estava prestes a desligar o aparelho quando um rosto conhecido surgiu na tela. Não podia ser... Mas era.
O cachorro dentro dele rosnou de felicidade. Isso é que é sorte, o resto é bobagem. Alguém lá embaixo deve estar torcendo por mim.

¶¶¶

Meg descia a rua O'Connell, sentindo o frescor da brisa no couro cabeludo. Quem diria que ser careca tinha vantagens?
Ela sabia exatamente onde estava. Sua mãe costumava fazer as compras de Natal ali, todos os anos, antes do acidente. Meg ia junto e nem precisava ir à escola. Roupas, brinquedos, tudo que ela quisesse, além de uma passada na sorveteria no fim do dia. Bons tempos que não voltariam mais.
Aqui e ali ela via sua imagem refletida na vitrina de uma loja qualquer e, assustada, lembrava-se da missão que tinha a cumprir: fazer com que aquele molambo se parecesse novamente com uma pessoa seminormal de modo que tivesse alguma chance de roubar um beijo da vovó mais adorada da Irlanda.
Sua primeira idéia havia sido entrar numa loja onde pudesse afanar alguma coisa, mas, infelizmente, não seria possível afanar um corte de cabelo. Além do mais, sua aura já tinha vermelho demais para que continuasse a desrespeitar os mandamentos divinos daquela maneira. Meg vasculhou os bolsos de seu hospedeiro para ver o que encontrava neles. Não foi uma experiência muito agradável. Parecia que ela estava revirando um depósito de lixo. Lenços amarfanhados, pastilhas velhas e meladas, um pente lambuzado de goma, várias cartelas de bingo. Nada que se pudesse encontrar nos bolsos de um artista de cinema. Por fim, Meg achou o que estava procurando. Escondidinho nas dobras de uma carteira fedorenta havia um cartão Visa, novinho em folha. Perfeito.
O que mais precisava de reparos, de modo geral, era a cabeça. Depois de tantos anos de desleixo, Lowrie certamente já havia se acostumado a ela, mas, aos olhos de estranhos, o que se via ali era uma verdadeira desgraça. Fios grisalhos brotavam de todos os cantos, menos do couro cabeludo. Os olhos eram remelentos e injetados. A barba malfeita mais parecia uma lixa. Algo precisava ser feito.
A solução estava logo adiante: o salão de beleza Nova Mulher. Meg já estivera ali certa vez, com a mãe, que achava que ambas mereciam um pouquinho de paparico. Elas haviam se dado todos os luxos - mãos, pés, máscaras de beleza - e depois voltado de ônibus para casa, lindas e maravilhosas.
Meg empurrou as portas de vidro e entrou no salão. Foi como se um forasteiro tivesse acabado de entrar no saloon de um filme de faroeste. Silêncio absoluto. Dava para se ouvir um grampo cair no chão - o que de fato se ouviu, pois uma cabeleireira novata deixara cair da boca meia dúzia deles.
Uma loura jovem, inteiramente vestida de preto, aproximou-se de Meg com cautela, mantendo as mãos diante dos peitos por medo de que eles trombassem no inesperado visitante.
- Olá. Meu nome é Natalie. Posso ajudá-lo em alguma coisa?
Isso foi o que sua boca disse. Os olhos haviam dito outra coisa: "Caia fora daqui antes que eu chame a polícia". Meg limpou a garganta e perguntou:
- Vocês atendem homens aqui?
- Bem... - respondeu Natalie, hesitante. - Às vezes.
- Ótimo. Pode me atender então?
- Você?
- É, eu.
- Acontece que... bem, os nossos serviços não são lá muito baratos. Quem sabe o barbeiro da esquina...
Sem titubear, Meg sacou o cartão de crédito e disse:
- Bote tudo nisto aqui, Natalie.
Natalie aproximou-se, mas não muito, para examinar o cartão. Depois abriu um sorriso de alívio, quase simpático, em seus lábios carnudos.
- Parece que está tudo em ordem. E então, o que o senhor deseja fazer?
- Ora, está na cara, não está? - brincou Meg. - Serviço completo, por favor.
Natalie estalou os dedos, e, como num passe de mágica, duas assistentes, também vestidas de preto, surgiram ao seu lado.
- Serviço completo para o cavalheiro aqui. Aliás, com o perdão da ousadia, já não era sem tempo.
Meg foi conduzida até uma cadeira moderníssima, de aço cromado, ao lado da qual se viam diversas engenhocas embelezadoras. Algumas ela conhecia: secador, aparelho de eletrólise a laser, luzes para fazer reflexos. Outras pareciam ter saído diretamente de uma nave espacial.
- Vai fazer muito barulho? - perguntou ela, preocupada.
- Que nada - respondeu a assistente número um, falando como um passarinho. - Nossos aparelhos são de última geração. Tudo para o conforto dos nossos clientes!
- Ah, bom. Porque eu não quero... que me acordem.

¶¶¶

Perto da hora do almoço, Lowrie McCall já estava de cabelos cortados e tingidos; rosto barbeado, hidratado e esfoliado; unhas cortadas e pintadas. E tudo isso sem despertar de seu sono profundo. Sempre que ameaçava fazê-lo, Meg dizia-lhe para voltar a dormir. Com muita delicadeza, é claro, e não com a brutalidade que geralmente dispensava aos adultos. Lowrie voltou à consciência somente quando chegou o momento de assinar o papelzinho do cartão de crédito - e, mesmo assim, apenas parcialmente. O pobre velhinho achou que estivesse sonhando, um sonho delicioso, em que tinha ganhado na loteria.
A transformação foi extraordinária. Até Natalie ficou impressionada.
- Não fossem as roupas, a gente até acharia que o senhor é da cidade!
Era o maior elogio que uma dublinense era capaz de fazer a um caipira do interior.
Passo seguinte: roupas novas. Hora de apresentar aquela múmia ao século XXI.
Arrastando-se com as pernas do velho, Meg seguiu para o shopping da rua Grafton, o favorito de sua mãe. Subiu ao segundo andar, escolheu a loja mais barulhenta de todas e entrou. A pulsação da música techno imediatamente começou a reverberar em sua cabeça - ou melhor, na cabeça de Lowrie McCall, que mais uma vez ameaçou despertar.
- Quietinho... - sussurrou ela. - Não vá acordar agora.
Um vendedor de cabeça raspada e piercing no nariz aproximou-se para informar ao recém-chegado que a loja de dentaduras ficava mais adiante.
- Entrou no lugar errado, vovô. Isto aqui é uma loja de roupas. Pra gente com menos de cem anos.
Meg tomou a ofensa pessoalmente. Afinal, era ela quem ocupava o corpo insultado naquele momento.
- Você me chamou de vovô?
O sujeito de nariz furado ficou aflito de repente.
- Bem, é que... o senhor... já está mais pra lá do que pra cá, né?
Meg abriu a boca para responder à altura, mas acabou desistindo. O marrento tinha razão. Aquela loja talvez fosse adequada para ela, mas não para Lowrie. Ninguém colocaria o presidente do país, ou qualquer outro figurão, em trajes de roqueiro. O pessoal da terceira idade tinha um jeito próprio de se vestir, um jeito meio triste, embora fossem felizes.
Meg olhou para o sujeito de nariz furado com uma cara de superioridade e disse:
- Eu estava pensando em comprar um presente para a minha tatara-tataraneta, mas agora resolvi gastar meu rico dinheirinho em outro lugar.
Ela saiu apressadamente, orgulhosa das palavras compridas que conseguira juntar e da lição que dera no carinha. Perto de onde estava, havia uma loja chamada Townsend & Filhos. Pilhas de roupas caretas na vitrina. Gravatas e tudo mais. Um dos manequins tinha até uma cartola. Não restava dúvida: aquele era o lugar certo para o Sr. Matusalém.
Meg entrou na loja um pouco acanhada, lembrando-se das tantas vezes que fora escorraçada de estabelecimentos semelhantes durante sua breve passagem pela Terra. Uma meia dúzia de sujeitos de nariz empinado andava de um lado para outro com fitas métricas penduradas no pescoço. Nenhum parecia jovem o suficiente para ser filho do tal Sr. Townsend.
Um deles se aproximou. Tinha um bigodão comprido e murcho, parecido com o daquele cara do desenho do Pernalonga. Trazia no bolso da camisa alguns bastões de giz.
- Senhor? - disse ele, com total indiferença, como se fosse cansativo demais dizer "Boa tarde, senhor, posso ajudá-lo em alguma coisa?".
Meg pensou por um instante. Precisava escolher bem as palavras e demonstrar segurança, como se já tivesse passado ali um milhão de vezes.
- Sim... é que... Bem, cortei meu cabelo no salão da Natalie e agora queria comprar umas coisas bacanas pra vestir. Um terno, sei lá. Mas nada de cartolas, pelo amor de Deus, senão ele vai me matar. Quer dizer, ele me mataria, se não fosse tarde demais.
Meg deu um risinho nervoso.
- Um terno, senhor? Alguma grife em especial?
- Não. Traz alguma coisa bem cara. E debite tudo do meu Visa.
De repente, os vendedores eram só sorrisos. Sacando as fitas métricas como se fossem chicotes de Indiana Jones, aproximaram-se para tirar as medidas do generoso comprador.
- O senhor gostaria de um terno sob medida ou alguma peça da nossa coleção prêt-à-porter?
- Coleção o quê? Sei lá. Traz alguma coisa já pronta.
- Muito bem. Por favor, não se mexa agora. Prefere um costume ou um terno?
- Também não sei. Só não quero saber de colete.
- Claro.
- Traz também um par daqueles sapatos marrons ali. Com os trequinhos pendurados.
- Borlas.
- Isso mesmo.
- De que tamanho?
Humm... Maldição. Hora para um pouquinho de criatividade.
- Tamanho? Xiii... Não consigo me lembrar. É que minha memória já não anda lá muito boa. Memória de coroa, sabe como é.
- Desde que o senhor ainda se lembre de como assinar seu nome...
- O quê?
- Nada, nada... Só uma piadinha sem graça.
Meg teve a impressão de que estava sendo vestida por um redemoinho de vendedores. Townsend e seus muitos filhos rodopiavam ao redor dela, gritando números e expressões esquisitas.
Mede daqui, cutuca dali, e, depois de alguns intermináveis minutos, os alfaiates terminaram sua agitada missão.
- Et voilà! - exclamou o mais velho dos Townsend, admirando sua obra de arte.
Meg arriscou uma olhadela. Nada mal. Os molambos de Lowrie haviam sido substituídos por um paletó azul-marinho e um par de calças cinza. As bainhas das calças pousavam delicadamente sobre um par de sapatos marrom-escuros, de amarrar e com borlas. A camisa azul-clara, perfeitamente passada, complementava-se com uma gravata vermelho-escura.
- E então, senhor?
Os membros da família Townsend rodeavam o cliente à espera de um cumprimento, feito urubus sobrevoando um acidente no deserto.
- Humm... Ficou... É...
- Sim?
O que diria James Bond numa situação dessas?
- Extraordinário, cavalheiros. Belo trabalho.
O comentário pareceu resolver a questão. Os Townsend cochicharam alguma coisa entre si e, dali a pouco, o pai voltou com uma bandeja de prata. Más notícias. Péssimas notícias. Oitocentos e quarenta libras! Se tivesse a mínima idéia do que estava se passando, o pobre Lowrie bateria as botas ali mesmo.
Meg entregou o cartão Visa, na esperança de que morrer com dívidas a pagar não avermelhasse a aura de ninguém. Caso contrário, Lowrie estaria em maus lençóis.
Um dos filhos de Townsend se aproximou, deslizando no chão como se estivesse sobre patins. Trazia consigo uma sacola com as roupas velhas de Lowrie, parecendo um enfermeiro carregando um pacote de fraldas geriátricas.
- O senhor gostaria de ficar com... isto aqui?
Meg pensou por um instante. Já havia guardado a carteira, a passagem do trem, o carnê de aposentadoria, as chaves e alguns míseros trocados.
- Não. Pode jogar no lixo.
- Naturalmente, senhor.
Agora não havia mais volta. Se não ficasse com aquelas roupas de bacana, teria de tentar entrar nos estúdios da RTE só com as cuecas de Lowrie - uma visão dos infernos que ninguém merecia.

¶¶¶

Hora de acordar o velho. Meg saiu do corpo dele e esperou pelos fogos de artifício. Lowrie McCall piscou os olhos verdes, ainda sonolentos, e abriu um leve sorriso.
- Olá - disse ele, a ninguém em particular.
Os Townsend observavam de longe, estranhando o comportamento de Lowrie, que levantou um dedo e disse:
- Acho que já vi você em algum lugar...
Meg olhou ao seu redor. Com que diabos o gagá estava falando?
- Jamais me esqueço de um rosto.
Que rosto? Era bem possível que, depois de ter sido possuído pelo espírito de Meg, o velho tivesse perdido o juízo de vez. Seguindo o olhar dele, Meg viu que o sem-noção falava com o próprio reflexo num dos espelhos da loja. Não se conteve e caiu na gargalhada.
- Está rindo do quê? - perguntou Lowrie, com as costumeiras rugas de irritação marcando a testa.
Achando que o velho se dirigira a eles, os Townsend - que vinham rindo discretamente das maluquices do inusitado cliente - calaram-se na mesma hora.
Meg engoliu a risada e disse:
- De nada. Você está conversando com um espelho, só isso.
- Não seja ridícula! Aquele ali não sou eu!
- Olhe direito, Lowrie, aquele ali é você mesmo.
Lowrie avaliou melhor a figura elegante diante de si. Parecia que havia uma moldura em torno do sujeito. Muito esquisito. A não ser, é claro, que se tratasse de um reflexo.
- Santo Deus! - exclamou ele, finalmente caindo na real. - Sou eu mesmo... Ou melhor, o homem que eu poderia ter sido...
- Puxa, Lowrie - disse Meg. - Tudo pra você é motivo de reclamação. Devia estar pulando de felicidade.
Lowrie tocou o vidro do espelho, apenas para se certificar.
- Mas eu estou feliz. Isso é... inacreditável. Muito obrigado, menina.
- De nada. Só fiz isso pra aumentar suas chances de dar uma bicota em Cicely Ward.
- Por um instante cheguei a achar que você tivesse feito isso por mim.
- E foi. Você é mesmo um limão azedo, né? Puxa, será que não ri nunca? Não faz nada sem pensar nas conseqüências?
Lowrie ajeitou a gravata de seda.
- Eu era assim, como você está dizendo. Séculos atrás. Mas depois... bem, depois tudo mudou. - De repente, o velho se deu conta de uma coisa. - Espere aí, como foi que você pagou por essas roupas todas?
De algum modo, mesmo sem uma gota de sangue correndo nas veias, Meg ficou vermelha de vergonha:
- Não paguei.
- Não me diga que você usou meu corpo pra assaltar a loja?
- Claro que não!
- Então fez o quê?
Flutuando, Meg passou à frente do velho e seguiu apressadamente rumo à porta.
- Não interessa. A gente precisa ir pra RTE, lembra? Fica na região de Donnybrook.
- Volte aqui! - berrou Lowrie, correndo com o próprio fôlego pela primeira vez em muitos anos. - Você vai me contar essa história direitinho!
- Está bem, então. Mas você não vai gostar.
- Não importa. Quero a verdade.
Meg disse a verdade. E Lowrie não gostou.

CAPÍTULO 6

BICOTA NA SISSY

ELES FORAM de ônibus, um daqueles de dois andares, até os estúdios da RTE. Mesmo o rabugento Lowrie achava mais divertido fazer a viagem no segundo andar. Era um dia ensolarado de primavera, e as ruas fluíam lá embaixo como um rio de vida. Naturalmente, sendo quem era, Lowrie não agüentava a felicidade por muito tempo.
- E então, pastel de vento, onde estão as minhas roupas velhas?
- Mandei jogar no lixo.
- O quê? Já fazia uns vinte anos que eu tinha aquele paletó!
- Eu sei, ele me disse.
Numa cidade grande como Dublin, ninguém se assustava com um velho resmungando sozinho dentro de um ônibus.
- Você não tinha esse direito! - reclamou Lowrie.
- Quer mesmo dar um beijo nessa Sissy, ou não?
- Claro que quero!
- Por acaso acha que ela vai beijar a boca de um esquisitão carregando uma sacola com um monte de trapos fedorentos? Claro que não! E tem mais: sorte sua que aquela gente não vendia cuecas, senão aquele seu cuecão de dois mil anos tinha ido pro brejo também.
Lowrie ficou lívido.
- Como foi que você...
- Isso mesmo. Vi sua cueca furada. Uma visão da qual vou me lembrar pelo resto da... - Meg parou de repente, dando-se conta de que já não tinha vida para se lembrar do que quer que fosse.
- Eu sei, Meg - disse Lowrie, pela primeira vez chamando-a pelo nome. - Todo mundo acha que vai viver pra sempre. Aí, de uma hora pra outra, puf! O tempo acaba, e a gente não fez nada do que achou que ia fazer. Mas eu, não. Recebi uma chance de me redimir. E uma parceira pra me ajudar.
Meg fungou, embora não se visse nenhuma lágrima escorrendo por suas bochechas.
- Parceira?
- É, você.
- Eu voltei só porque me mandaram voltar, lembra? Foi você mesmo quem disse,
- Eu sei. Mas talvez você queira mesmo me ajudar.
- Não, Lowrie. Melhor não contar comigo. Nunca consegui ajudar ninguém, nem a mim mesma.
- Agora quem está parecendo um limão azedo é você.
- Ah, fecha a matraca, vovô.
- Ei, espera aí. Por acaso não lhe ensinaram a respeitar os mais velhos?
- Você é velho demais pra ser só um "mais velho", Lowrie. Você é um "incrivelmente velho".
- Muito engraçada. Ah, se eu tivesse uns cem anos a menos!
E assim, gradualmente, surgiram os primeiros sinais de uma possível amizade entre o corpo e o espírito. Embora Meg não tivesse notado, alguns fios azulados haviam se juntado à aura dela.

¶¶¶

O portão da RTE era guardado por um segurança, um dublinense grandalhão, de cabelos raspados com máquina dois e tolerância zero diante de intrusos.
- Cai fora! - disse o guarda, que, segundo o crachá, chamava-se Desmond.
- Ei, espera aí - protestou Lowrie. - Tenho hora marcada com Cicely Ward.
O guarda levantou os olhos da prancheta.
- É, você e todos os velhinhos babões deste país. Lowrie achou melhor mudar de tática e bancar o indignado.
- Olha, meu jovem, acontece que eu e Miss Ward somos velhos amigos e...
- Claro, e eu sou o Papai Noel.
Até mesmo Lowrie era capaz de perceber quando alguém zoava com a cara dele.
- Por acaso não lhe ensinaram a respeitar os mais velhos?
- Se eu ganhasse uma moeda por cada vez que alguém me diz isso...
Me inclua fora dessa, gorila, pensou Meg.
- Vocês, velhinhos, são os piores. Dão nó em pingo d'água só pra chegar perto de uma celebridade. Vá embora, meu amigo, antes que eu chame a carrocinha dos aposentados!
Lowrie ajeitou a gravata.
- Por acaso eu pareço com alguém que precisa dar nó em pingo d'água pra entrar em algum lugar?
O guarda passou a mão no cabelo.
- Nunca julgue o livro pela capa. Olha só pra mim. Quem diria que sou formado em poesia medieval pela Universidade de Trinity?
Meg achou que era hora de intervir.
- Use o poder da mente, Lowrie.
- Como?
Ainda por cima é surdo, pensou Desmond.
- Eu disse que a gente não deve julgar o livro pela capa.
- Não estou falando com você!
- Então está falando com quem?
- Diz pra ele, Lowrie. - Dizer o quê?
- Dizer o que pra quem?
As coisas estavam ficando bastante confusas. Pairando ao lado do ouvido do velho, Meg disse:
- Apenas escute, Lowrie. Não diga nada. Enquanto estava na sua cabeça, eu liberei certos poderes.
- Que maluquice é essa agora?
- Se tem alguém maluco aqui - disse Desmond - esse alguém não sou eu!
- Use o poder da sua mente, Lowrie. Faça esse pateta aí abrir o portão.
Lowrie deu de ombros. Aquela história de controle da mente não era menos absurda que qualquer das outras coisas que lhe haviam acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Estreitando os olhos, ele olhou fixamente para o guarda.
- Você vai abrir esse portão.
- Duvido muito.
- Concentre-se, Lowrie. Direcione seus pensamentos a ele.
Com os dentes cerrados, Lowrie reunia todas as suas forças num raio imaginário:
- Você vai abrir o portão porque eu quero Desmond arregalou os olhos como um zumbi.
- Sim, Mestre.
- Funciona! - exclamou Lowrie. - Eu tenho super-poderes!
- O que o senhor disse, Mestre? - perguntou o guarda. - Quer que eu dê um chute nessa sua bunda murcha? Se quiser, é só pedir!
- Eu não pensei nada disso!
- Não, fui eu que pensei. Agora dá o fora daqui antes que eu chame a ambulância do hospício pra levar você e essa sua macumba de quinta categoria!
Lowrie olhou por sobre o ombro e viu a silhueta etérea de Meg rolando de tanto rir.
- Ha, ha, ha. Muito engraçado.
- Desculpa - disse Meg. - Não deu pra segurar.
- Eu devia ter sabido.
- Claro que devia - emendou Desmond. - Já ouvi todas as desculpas esfarrapadas que alguém é capaz de inventar.
Lowrie baixou os olhos. Fazia mais de um ano que não falava com ninguém e agora conversava com duas pessoas ao mesmo tempo.
- Quer dizer então que nunca vou entrar nesses estúdios...
- Ah, mas não vai mesmo.
Meg voou para perto do guarda cabeça-dura.
- Na minha opinião, o cérebro é como um piano. É só bater na tecla certa.
Ela arregaçou a manga e enfiou o braço, até a altura do cotovelo, no ouvido do guarda.
- Ecaaa... - resmungou Lowrie. - Isso é nojento demais! Meg mordia os próprios lábios enquanto remexia na cabeça de Desmond. Depois de um tempo, disse:
- Pronto. Prepare-se para a obediência total!
Lowrie ouviu uma espécie de clique, como se Meg tivesse apertado um botão.
- Agora vai - disse ele.
Desmond de fato parecia diferente. Seus joelhos começaram a bater um no outro, e as mãos tremiam como se fossem manipuladas por um titereiro.
- Humm... - pensou Lowrie. - Sabe com quem ele está parecendo?
- Sei. Com aquele roqueiro topetudo.
E de repente Desmond começou a fazer uma animada imitação de Elvis Presley, cantando Blue Suede shoes e rebolando igualzinho ao rei do rock, com biquinho e tudo.
- Opa - disse Meg. - Botão errado. - Ela continuou a remexer no cérebro do guarda, como um urso tateando à procura de uma colméia. - Acho que agora vai.
Que nada. Desmond começou a relinchar como um cavalo.
- Pára com isso, Meg! - disse Lowrie. - Por que você não entra logo na cabeça dele, como fez comigo?
- De jeito nenhum. Foi bastante ter de conviver com as suas lembranças. Não preciso de um monte de poemas medievais atazanando as minhas idéias. Além do mais, acho que agora consegui.
Houve um clique e, de repente, Desmond parecia dócil como um gatinho, com os braços peludos balançando ao lado do tronco.
Lowrie limpou a garganta.
- Desmond, meu caro, poderia fazer o obséquio de abrir esse portão?
Então o guarda sorriu e disse:
- Claro, bicho. E sabe por quê?
- Não, Desmond. Por quê?
Uma pequena lágrima brotou no canto de um dos olhos do guarda.
- Porque eu amo você, bicho. Amo você, as plantinhas, amo todos os ônibus de dois andares, amo até aqueles meus ex-colegas da universidade, com seus paletós fedorentos e comentários inteligentes. Eu amo o universo, amigão! - Soluçando baixinho, Desmond alisou carinhosamente um botão e depois o pressionou para abrir o portão dos estúdios da RTE.
- Ah, Desmond, mais uma coisa: será que você podia me dar um crachá de visitante?
- Claro, bicho. Olha, por que você não passa lá no meu apê mais tarde, pra gente captar umas vibrações, sei lá...
- O convite é tentador - disse Lowrie, sem fazer a menor idéia do que o outro acabara de dizer. Virando-se para Meg, perguntou: - O que foi que você fez com esse pobre coitado?
- Sei lá. Vi uma caixinha cor-de-rosa no fundo da cabeça dele e abri. Parecia uma caixinha feliz.
- Acho que eu preferia o guarda cabeça-dura.
Lowrie atravessou o portão e seguiu em frente, cada vez mais confiante. Com o crachá de visitante preso à lapela, poderia entrar em todos os cantos daqueles estúdios, inclusive - ele esperava - no cenário de Chá com a Cicely.

¶¶¶

Um estúdio de gravação é bem diferente do que a gente imagina. Entre outras coisas, é muito menor. Além disso, na televisão a gente não vê onde os cenários acabam. Era como se um gigante tivesse arrancado com a boca um pedaço de uma casa suburbana e, depois de perceber que a decoração era horrorosa, tivesse cuspido tudo de volta no bairro de Donnybrook. Lowrie ficou um pouco decepcionado, e essa decepção lhe escapava do corpo em fluxos cor-de-violeta.
Meg não perdeu a oportunidade de zoar com a cara dele.
- Ah, coitadinho... O nenê achava que era tudo de verdade, não achava?
Lowrie achou melhor não dizer nada. Àquela altura não podia correr o risco de passar recibo de doido e ser chutado para fora. Não agora que estava tão perto.
- O Pernalonga também não é de verdade, filhinho - continuou Meg, rindo à beça - É tudo de mentirinha...
Lowrie virou-se para ela e desferiu um olhar de advertência. E, no mundo de Meg, um olhar de advertência era algo bem palpável. Um jato peçonhento, de um laranja muito forte, zarpou dos olhos do velho, seguiu em espirais na direção de Meg e se espalhou no rosto dela.
- Ei, pára com isso! - disse ela,
- Então pára com as piadinhas - respondeu ele, entre dentes, enquanto forçava um sorriso simpático.
A platéia dividia-se em gente de cabelos brancos, cabelos azuis e cabelo nenhum. A cor da aura denunciava os verdadeiros pensamentos de cada um. Histórias tristes e sofridas misturavam-se no alto do estúdio como um quadro de imagens cambiantes. O amor era a emoção predominante. Amor e família. Quase todas as almas ali presentes guardavam na lembrança a imagem de um ente querido que já se fora.
Um dos funcionários da televisão tinha a tarefa de esquentar a platéia com piadinhas sem graça. De repente, obedecendo à instrução que recebera por meio de um fone de ouvido, ele parou de falar e começou a aplaudir e a gritar como um lunático. A platéia fez a mesma coisa. Porém, só aplausos, nada de gritos. Aquilo ali não era um concerto do Boyzone.
- Lá vamos nós - sussurrou Meg.
Lowrie secou as mãos com seu novo lenço de seda. Estavam molhadas como esponjas.

¶¶¶

Belch abriu um largo sorriso, revelando sob a bocarra canina um número inacreditável de dentes.
- Não acredito... - disse. Elph pousou no ombro dele.
- A descrença é uma reação muito comum nos débeis mentais. A descrença e a superstição. Todos os fenômenos podem ser reduzidos a termos matemáticos. Até o céu e o inferno podem ser expressos em equações espaciais.
- Você é mesmo um nerd, né não, Pixel?
- Meu nome é Elph.
- É tudo a mesma coisa.
Elph piscou e acessou o dicionário.
- Vejamos... Nerd: pessoa sem graça, convencional e socialmente inadequada.
- Fecha o bico, cara, e olha a televisão.
O elétrico Elph flutuou até o aparelho e sentenciou:
- Tecnologia ultrapassada. Nem sequer é digital. Sujeita a interferências ambientais.
Belch achou que fosse explodir de raiva.
- Esqueça isso, mané! Apenas olhe pra tela! Elph acionou o zoom e mais uma vez diagnosticou:
- Uma série de pontos coloridos, transmitidos numa ordem específica para criar a ilusão de...
- Calado! - berrou Belch, levantando-se subitamente do sofá. - Calado! Calado! Calado! Arf, arf, aaaaaarffff!
Elph deu um pequeno choque nele, em parte porque era necessário, em parte porque era divertido.
- Então, estamos mais calminhos agora?
- Auuuu.
- Vou tomar isso como um sim. Pois bem, o que exatamente você está tentando me dizer nessa sua linguagem pré-histórica?
Belch passou a mão na orelha peluda, que ainda fumegava por causa do choque.
- Olha lá, é ele. Na televisão.
As lentes do ajudante virtual, que faziam as vezes de olhos, novamente ajustaram o foco.
- Tem razão. A probabilidade de correspondência é de oitenta e nove por cento.
- Mas ele está diferente. Não é o mesmo espantalho de antes.
Elph pousou a mão muito bem cuidada sobre a tela. Ondas de estática, faiscantes e vermelhas, sobrepuseram-se à imagem.
- O que está fazendo? - protestou Belch. - Isso podia ser uma... como é mesmo que se diz? Aquela coisa do Sherlock Holmes... uma pista!
Elph piscou; um feixe de luz trêmula desceu pelo braço dele e entrou na televisão.
- Localizei o sinal - disse ele imediatamente. -Trata-se de uma transmissão ao vivo. Estou mandando as coordenadas ao mainframe do Mestre.
Belch começou a salivar por antecipação. Estava com sede de sangue. Aquele lance de cachorro até que não era mal.
- De quanto tempo a gente precisa pra chegar até lá? - perguntou ele deixando transparecer na voz a sua metade canina.
- Olhe ao seu redor, imbecil - retrucou Elph. - Você já está lá!

¶¶¶

Deslizando como um cisne, Cicely Ward entrou no estúdio de gravação. Duzentos pares de joelhos rangeram quando a platéia se levantou para aplaudir.
- Então, Lowrie, qual é o plano?
Lowrie McCall piscou os olhos para secar uma gota de suor que escorrera da testa.
- Plano? Ora, eu já disse. Beijar a Sissy.
- Só isso? Beijar a Sissy?
- Bem, eu...
- Caramba, Lowrie. Que belo plano esse seu, hein? Manchas escuras de suor começaram a brotar na camisa do velho.
- Não estou acostumado a esse tipo de coisa. Achei que você fosse me ajudar.
- Cruz credo, eu não vou beijar ninguém! Nem a minha avó eu gostava de beijar.
- Claro que não! Se alguém vai beijar a Sissy, esse alguém sou eu!
- Certo.
- Exato.
- Ótimo.
- Então. Quando eu der o sinal, você entra em ação. Carrega meus ossos velhos até aquele palco e deixa o resto comigo.
Meg fez que sim com a cabeça.
- Isso eu posso fazer. Agora pára de falar sozinho. As pessoas já estão sentando de novo.
Com um gesto delicado, Cicely silenciou a platéia. Era uma mulher linda, alta, de cabelos cor-de-aço e olhos castanhos, muito redondos. Não era à toa que Lowrie tinha aquela atração toda por ela.
- Boa noite, meus amigos. - Ela deu uma piscadela de cumplicidade na direção dos espectadores. - Preciso fingir que está de noite por causa da reprise do programa no sábado.
Um charme típico de Cicely Ward. Os editores deixariam aquela fala ir ao ar em ambas as apresentações. A platéia riu com gosto, percebendo que não se tratava de uma gafe da apresentadora.
- No programa de hoje - continuou Cicely -, vamos conversar com nossos convidados sobre um assunto comum a todos nós: os amores do passado.
Lowrie só faltou vomitar. Agora suava ainda mais do que antes.
- Amores do passado? - repetiu Meg, com um risinho de sarcasmo. - Caraca!
- Essa não... - resmungou Lowrie. - Isso é demais. Não vou agüentar.
Preocupada com o que acabara de ouvir, a senhorinha sentada ao lado dele perguntou:
- Tudo bem com o senhor?
Lowrie tinha a sensação de que estava prestes a explodir.
- Estou bem, obrigado. Só preciso de um pouco de ar. Ele se levantou do assento, com pernas trêmulas e com uma súbita sensação de ridículo. Roupas novas? Beijar a Sissy? O que tinha dado nele?
- Onde pensa que vai? - perguntou Meg.
- Pra casa. Pra minha casa, de onde eu nunca devia ter saído.
Meg pairou diante do rosto dele.
- Não, agora não! A gente tá quase conseguindo!
- Ei, sai da minha frente!
Tudo isso acontecia no meio de uma fileira de assentos. As pessoas começavam a ficar inquietas.
- Senta aí! - ordenou Meg.
- Não posso.
- O que pretende fazer? Voltar pra casa e morrer?
O sangue corria depressa nos ouvidos de Lowrie, embaralhando os pensamentos dele.
- Isso mesmo! Voltar pra casa e morrer!
Uma declaração daquelas dificilmente passaria despercebida. Todos no estúdio calaram-se na mesma hora. Até o câmera parou de mascar o chiclete que tinha na boca.
Cicely Ward protegeu os olhos da luz dos refletores.
- O senhor está bem? - perguntou.
Lowrie estava com a garganta seca e com as mãos ensopadas. Mais uma vez.
- Anda, Lowrie! - disse Meg.
- Não.
- O senhor não está bem?
Com toda discrição, seguranças grandalhões foram cercando o setor B.
- Presta atenção, parceiro. Não vá tomar mais uma decisão errada na sua vida!
- Não posso.
Cicely Ward se esforçou para ver melhor.
- Por acaso não o conheço de algum lugar? Lowrie respirou fundo e fitou-a diretamente nos olhos.
- Olá, Sissy.
- Sissy? Ninguém me chama de Sissy desde que... Meu Deus... Lowrie?
A apresentadora cambaleou para trás, quase tropeçando num pequeno degrau. Os seguranças agora apertavam o passo, trocando sinais entre si.
- Anda, Lowrie, vai lá!
Mas Lowrie não conseguia desviar o olhar daquela que fora sua grande paixão da juventude. Os olhos de Cicely eram os mesmos. Exatamente os mesmos.
- Muito bem, parceira. Me leve até lá.
- Puxa, até que enfim! - disse Meg, deslizando para dentro do corpo do velho. Lowrie imediatamente deixou que ela assumisse o controle, enquanto ele próprio assistia à tudo como se estivesse no banco de trás de um táxi.
Mas as sensações continuavam lá, inclusive a sensação de juventude que se espalhava por sua carcaça velha.
- Ei, Sissy! - gritou Meg. - Não saia daí! Lowrie tem... Quer dizer, eu tenho uma coisa pra dar a você!
Dentro de sua própria cabeça, Lowrie resmungou: "Essa garota tem assistido a muito filme americano".
Deixando de lado a discrição de antes, os seguranças avançaram na direção dele, como um rebanho de rinocerontes furiosos. O chefe do grupo espumava pela boca.
- Fanático na seção B! Depressa!
- Opa. Hora de dar no pé.
Meg pulou o encosto da poltrona da frente, bem a tempo de fugir das garras do guarda mais próximo. Outros dois trombaram de cabeça ao saltar, um de cada lado, na direção do velho que já não estava mais lá. Meg deu um risinho de satisfação. Lembrou-se de quando fora perseguida por um time inteiro de jogadores de rúgbi, depois de ter dito que o uniforme deles era de mulherzinha. Eles também não haviam conseguido pegá-la.
Impecavelmente vestida no seu terno novo, procurando não atropelar a cabeça das pessoas, Meg desceu o auditório pisando nos braços das poltronas.
Cicely assistia a tudo, boquiaberta.
- Lowrie... Eu... Minha nossa! Meg saltou no corredor.
- Só um segundinho, gata. Já, já, estou aí! Lowrie fez uma careta de reprovação. Gata? Recuperados do susto, os operadores de câmera miravam suas lentes na ação, como se elas fossem canhões. Aquele velhinho extraordinário renderia cenas memoráveis. Um dos seguranças, o mais afoito de todos, jogou-se à frente de Lowrie e armou um soco. No entanto, não queria triturar o rosto do velho, e esse segundo de hesitação foi o que bastou para que Meg pegasse do chão uma cesta de costura e se protegesse com ela. A julgar pelos gritos de dor, o sujeito acertou em cheio uma almofadinha de alfinetes escondida debaixo dos panos.
- Olé!- gritou Meg, batendo os calcanhares no ar.
- Olé!- repetiu a entusiasmada platéia.
Um corrimão descia pela lateral do corredor até o palco. Redondo e lisinho.
- Pelo amor de Deus, não! - implorou Lowrie.
- Acho que não vai ter outro jeito - retrucou Meg, sentando-se de lado sobre o tubo de metal.
Em seguida, ela deixou o corpo deslizar corrimão abaixo, aproveitando a oportunidade para arrancar uma rosa do chapéu de uma das senhorinhas presentes. Restava apenas mais um hipopótamo pelo caminho, mas o sonoplasta cuidou de derrubá-lo enquanto tentava colocar o microfone junto ao rosto de Lowrie.
- Olé!- gritou Meg.
- Olé! - ecoou a platéia.
Cicely estava pasma. Parecia um daqueles velhos filmes de pirata. Era disso que a turma da terceira idade gostava - e era isso que Meg decidira dar a eles.
Entregando a rosa a Cicely, ela disse:
- Pra você, meu amor.
- Lowrie? É você mesmo? O que está fazendo?
- O que eu devia ter feito quarenta anos atrás.
Meg tomou a apresentadora nos braços. A platéia ficou enlouquecida. Lenços brotavam do nada como ervas daninhas depois da chuva.
Foi perfeito. Romântico, ousado, emocionante. Depois, é claro, abriram-se as portas do inferno.

¶¶¶

Belch olhou para baixo. Ele flutuava a uns sessenta metros do chão. Detestava alturas.
- Au! - latiu ele. - Au, au, auuuuuu!
- Wuf, wuf, grrrrr.... - retrucou Elph, falando pitbullês sem nenhum sotaque. Tradução: "Fica frio, imbecil, você já está morto!"
Belch lambeu o fio de baba que escorria pelo queixo.
- Não amola, cara - disse ele. - Ainda estou me acostumando a essa parada de estar morto, de andar pra lá e pra cá como se eu fosse vento.
O holograma tentou explicar.
- Veja bem, não somos matéria sólida. Por outro lado, se quisermos ser absolutamente fiéis à verdade e considerarmos como matéria o nível subatômico, nós... - Percebendo a expressão de "eu não tenho a menor idéia do que você está falando" estampada na testa do garoto, Elph achou melhor encurtar a história: - Trocando em miúdos, podemos ir a qualquer lugar, desde que saibamos exatamente onde fica.
- Ah - disse Belch, ainda sem entender direito a explicação. - Pois eu quero ir até onde está aquele velho enjoado e apertar o gogó dele com meus dedos.
Zunindo como uma abelha, os olhos telescópicos de Elph fecharam o zoom e leram os impulsos que transitavam dentro dos cabos da televisão.
- Creio que posso isolar o sinal exato.
- Então anda logo, seu grilo falante de araque!
- Já disse que meu nome é Elph!
- Tá bom, tá bom. Grilo falante de araque.
Os dedos de Elph se alongaram, conectando-se ao cabo encapado de borracha. Ondas energéticas emanavam em torno do ponto de contato.
- Segura firme.
Belch mal teve tempo de soltar um ganido antes de ser despachado através dos fios entrelaçados do conduíte. O hardware fluía em torno e através deles. Belch podia ver as partículas de energia comunicando-se, íons positivos e negativos sendo irresistivelmente atraídos uns pelos outros. Nenhum deles parecia ter objeções.
Em pouco tempo, saindo pelas lentes da câmera, eles se depararam com o mais absoluto caos. Centenas de velhinhos vaiavam e batiam os pés no chão. Espalhados pelo estúdio, aparentemente atônitos, os seguranças apalpavam seus respectivos ferimentos.
Belch rosnou internamente.
- Gosto desse lugar.
- Folgo em saber - retrucou Elph. - Quando terminar de apreciar a decoração, talvez você note que nosso alvo está a menos de três metros de distância.
Belch virou o focinho com a rapidez de um chicote, reconhecendo imediatamente o cheiro de Meg Finn. Ela estava ali, dentro do corpo do velho. Belch sentia sua porção canina assumir o controle, a sede de sangue voltando à garganta. Garras curvas brotaram das pontas de seus dedos.
- Vou rasgar a aura dela em pedacinhos!
O monstrengo flexionou suas poderosas pernas traseiras e lançou-se no ar. Em seguida, com a força de um bate-estacas, caiu sobre Meg, expulsando-a do corpo de Lowrie. Os dois espíritos rolaram sobre o palco. Ambas as auras faiscavam.
- Agora você vem comigo, sua vira-casaca nojenta.
- Pra onde? - retrucou Meg. - Pra casinha de cachorro?
A resposta malcriada foi, na verdade, um mero reflexo. O que sobrava de Meg Finn tremia feito vara verde dentro de suas botas ectoplásmicas. Belch parecia diferente. Não só por causa de sua condição de semicachorro. Mais do que isso. Ele parecia mais malvado, mais esperto. Como se tivesse parte com o Diabo.
- Ruff, wuff, huh, huh - grunhiu ele. Elph teria traduzido aquilo como: "Essa foi a última piadinha que você fez na vida, garota, pois vou arrancar sua língua fora!"
Por incrível que pareça, mesmo sem saber uma única palavra dos dialetos caninos, Meg pôde imaginar o que o outro dissera. Talvez por causa do punho cheio de garras que rodopiava sobre o rosto dela.
Os circuitos de Elph fumegavam de impaciência.
- Não, protozoário! Deixe a garota em paz. Ela já fez o que tinha de fazer! É o velho que você tem de pegar!
Em vão. Belch estava ensandecido pelo desejo de vingança. A situação tomava rumos perigosamente imprevistos.
Lowrie não tinha a menor consciência da confusão em andamento no plano espiritual. Até onde podia perceber, tudo corria às mil maravilhas. Meg conseguira finalmente colocá-lo sobre aquele palco. Talvez de um modo um tanto espalhafatoso, mas de qualquer forma estava lá. E agora cabia a si próprio riscar o primeiro item da sua lista de desejos, isto é, dar uma bicota na Sissy.
Cicely Ward estava boquiaberta. Como estaria qualquer mulher ao ver um ex-namoradinho surgir do nada, depois de quarenta anos, e fazer picadinho de um monte de seguranças parrudos. Apesar disso, ela não fazia o menor esforço para se desvencilhar dos braços de Lowrie. Braços que começavam a doer por causa do esforço.
- E então, Lowrie - disse Cicely, com resquícios da adolescência na voz. - Por que veio até aqui?
Só então Lowrie se deu conta de que talvez estivesse no ar.
- Um amor do passado - disse ele, simplesmente, e beijou-a nos lábios.
A platéia ficou enlouquecida, especialmente quando Cicely Ward pousou a mão no ombro do distinto cavalheiro e retribuiu o beijo. Fantástico, inacreditável.
Um etéreo raio de luz branca explodiu no ponto de contato entre os dois pares de lábios, banhando os poros de todos os homens, mulheres e espíritos no estúdio. Naturalmente, ninguém se deu conta. Mas, por um breve instante, todos tiveram a sensação de que o mundo era um lugar melhor.
Elph, no entanto, via tudo. E sabia exatamente o que significava o tal raio. Problema à vista. Um problemão.
Belch pressentia a mesma coisa. O arrepio nos pêlos do pescoço só podia ser um sinal.
- Que diabos foi isso? - perguntou ele, virando-se para trás.
Elph mal teve tempo de responder, antes que ambos fossem chupados de volta para o mundo das trevas.
- O bem - disse ele. - Pura e simplesmente o bem. Meg pôde sentir o azul crescendo em sua aura.

¶¶¶

Cicely acompanhou Lowrie até o portão, para protegê-lo da rispidez dos seguranças.
- Mal posso acreditar nos meus olhos - disse ela, ajeitando uma mecha de cabelos atrás da orelha. - Lowrie McCall, bem aqui, na minha frente.
- Com algumas décadas de atraso - suspirou Lowrie. Tomando as mãos dele nas suas, a apresentadora disse:
- Pode ser. Mas nunca é tarde demais. Meg achou que fosse vomitar.
- Ah, corta essa, McCall! Chega dessa conversa fiada! Dá mais um beijo nela e pronto! A gente ainda tem um monte de coisas pra fazer!
- Calada! Não vê que estou ocupado? Cicely ficou confusa.
- Desculpe, o que você disse?
- Nada... Eu estava... Eu estava falando com os meus fantasmas. É o que acontece quando a gente vive tanto tempo sozinho.
- Então fique. Pelo menos um pouquinho mais. Temos tanto a conversar...
Por um instante Lowrie ficou indeciso. A proposta era tentadora.
- Bem, é que... Infelizmente não vai dar. Ainda tenho umas coisas a fazer. Coisas importantes.
Cicely enxugou uma gotinha de lágrima dos olhos.
- Compreendo. Você vai voltar?
Lowrie hesitou. Se dissesse sim, tudo ficaria mais fácil.
- Não, Sissy. Acho que não.
- Bem, foi ótimo ver você de novo. Ainda que por poucos minutos. Caso mude de idéia...
Ela colocou um cartão de visitas na mão dele. Lowrie abraçou-a com emoção, sentindo mais uma vez o perfume do qual se lembrava tão bem.
- Adeus, Sissy.
Cicely molhava o rosto de Lowrie com suas lágrimas, que agora corriam soltas.
- Adeus, meu velho amigo. E obrigada pelo ibope. Lowrie atravessou o portão por onde havia entrado. Desmond, o porteiro, confeccionava uma coroa de margaridas sentado à grama.
De repente, Lowrie parou. Ainda tinha uma pergunta a fazer.
- Ei, Sissy! - gritou.
Cicely virou o rosto, protegendo os olhos do sol.
- Aquela noite... - disse Lowrie, encabulado. - Depois do cinema, quando eu não beijei você... Por acaso você se pergunta...
Cicely abriu um sorriso coberto de lágrimas.
- Todo santo dia, Lowrie McCall. Todo santo dia.

 


CAPÍTULO 7

TUDO PELO FUTEBOL

ELES TOMARAM o último ônibus com direção ao norte da cidade. Felizmente não havia ninguém no andar de cima.
- Você não viu nada? - perguntou Meg, mal podendo acreditar.
Lowrie coçou o queixo.
- Nada.
- Belch estava lá, só que ele era metade cachorro. E além dele havia uma criaturinha que flutuava, com olhos que pareciam lentes de zoom... Depois teve uma grande explosão de luz branca, que carregou os dois dali, mas que não me machucou nem um pouco.
- Não. Não vi nada disso.
- Estava ocupado demais com a sua namoradinha, não é? - disse Meg, contrariada.
Lowrie recostou-se no assento e sorriu.
- Pode dizer o que quiser, fantasma. Hoje nada vai estragar o meu humor.
- Uma vergonha. Dois velhinhos se agarrando por aí, aos beijos e abraços. Por acaso vocês não têm desconfiômetro?
- E você por acaso não estaria com ciúme?
- Ciúme? De você? Só porque beijou uma vovó? Lowrie endireitou o tronco.
- Não, claro que não. Mas... sei lá... porque estou vivo? Porque estou feliz?
Olhando pela janela do ônibus, Meg via as ruas da cidade passarem uma após a outra.
- Não se faz uma pergunta dessas a uma menina de quatorze anos. Não fico pensando nessas coisas. Só penso em música e comida.
- Sei - disse Lowrie, sem acreditar.
- Sabe droga nenhuma - devolveu Meg. - Acho que preferia quando você era um pé-na-cova rabugento.
Lowrie não estava disposto a continuar com a troca de provocações.
- Meg, posso perguntar uma coisa?
- Você vai perguntar de qualquer jeito.
- O que foi que ele fez a você?
- Ele quem?
- Você sabe quem. O Franco. O que foi que ele fez, pra que você fizesse o que fez?
- O que é isso, que frase estranha é essa?
- Estou falando sério.
- Não é da sua conta. E eu também estou falando sério. Lowrie assentiu com a cabeça.
- Muito bem, então. Achei que estivéssemos nos tornando amigos.
Meg balançou o dedo no ar.
- Sei muito bem o que você está fazendo. É aquela parada de culpa. Minha mãe fazia a mesma coisa. Só que não vai funcionar. Não quero falar sobre isso.
- Está bem, parceira. Quem sabe outra hora? "Duvido muito", dizia o rosto de Meg. Porém, em vez de discutir, ela procurou mudar de assunto:
- E o número dois? - perguntou.
- O quê? Você quer fazer...
- Estou falando do número dois na sua lista.
- Ah, bom. Por acaso já ouviu falar do Croke Park?
- Aquele estádio velho? Onde as pessoas jogam lacrosse e futebol?
- Esse mesmo. O maior e mais famoso estádio do país. Um lugar cheio de história e...
- OK, já entendi. E daí? O que é que a gente vai fazer lá?
- Quero chutar uma bola no gol de Croke Park. Meg não ficou nem um pouco surpresa.
- Só isso? - perguntou ela, com sarcasmo. - Tem certeza de que não quer tentar um pouquinho de salto com vara também?
- Tenho certeza, sim, obrigado.
- Aposto que existe alguma história por trás disso.
- Sim.
- Aposto que é longa e chata como a outra.
- É, acho que sim - admitiu Lowrie, com uma careta de impaciência.
- Então manda bala - suspirou Meg. - Mas vê se não exagera.
- Já que você insiste. - Lowrie tirou o indefectível charuto de um bolso e colocou-o no canto da boca. Mas não acendeu. Transporte público...
- Bem, antes da guerra...
- Que guerra?
- A Grande Guerra.
- A primeira ou a segunda?
- Segunda, engraçadinha. Mas isso não tem importância.
- Um ou dois franceses talvez pensem diferente.
- Não tem importância pra minha história, é isso que estou querendo dizer.
- Ih, lá vem o ranzinza...
- E por que será, hein? Bem, como eu estava dizendo, antes da guerra meu pai resolveu me mandar para um internato.
- E isso tem alguma coisa a ver com a guerra?
- Não. Não exatamente.
- Eu sabia! Achei que ia ouvir uma história legal sobre a guerra, mas era bom demais pra ser verdade.
- Foi apenas uma referência. Ah, deixa pra lá.
- Foi mal, Lowrie. Continua.
- Não.
- Ah, pára de fazer beicinho e conta logo essa história.
- Será que vamos ter de passar por isso toda santa vez?
- É, vamos. Não vou pagar o mico de alguém me ver sendo simpática com uma múmia como você.
- Compreendo. Pois bem, hei de resistir. Mas só porque sei que você está morrendo de vontade de escutar minha história. Também sei que essa sua mania de me interromper é coisa de aborrescente. Uma hora passa.
Lowrie começou a contar sua história. Enquanto ele falava, imagens emergiam de seus poros e rodopiavam ao redor da cabeça, como num sonho mágico.
- Eu era um garoto franzino, sem irmão ou irmã. Então papai achou que, indo para um internato, eu ficaria mais forte, mais corajoso. Essa era a mentalidade naquela época, muito antes do doutor Spock.
- Mas o que Jornada nas estrelas tem a ver com isso?
- Não é desse doutor Spock que estou falando, menina! Será que você nunca leu um livro na vida?
- Li, sim! - retrucou Meg, com visível exagero.
Ela achou que não valia a pena confessar que jamais conseguira terminar um livro sem figuras.
- Pois bem, quando tinha onze anos, fui embora para Westgate College, um internato só pra meninos. Um lugar adorável, cheio de valentões sádicos e padres com chicote na mão.
Meg sabia do que ele estava falando. Sua própria história de vida não era lá muito diferente.
- Era mingau no café da manhã - continuou Lowrie - e surra no jantar. Tínhamos apenas quatro matérias: latim, irlandês, aritmética e futebol. Nenhuma delas era o meu forte. Além disso, eu não era rico, nem tinha nascido em Dublin. Estava longe de ser um garoto popular.
- Essa história não é do Charles Dickens, é? - disse Meg, tentando mostrar algum conhecimento literário.
Na verdade, ela tinha assistido a Oliver umas vinte vezes, porque era o filme predileto de sua mãe.
- No entanto, depois de seis meses de inferno, tive uma oportunidade de me encaixar na turma.
- Deixa eu adivinhar. Você fez tudo errado, não fez? Lowrie deu um longo trago no charuto apagado. A expressão no rosto dele era a resposta de que Meg precisava.
- E então, o que foi que aconteceu? - perguntou ela, momentaneamente deixando de lado a ironia.
- O time infantil de Westgate tinha sido eliminado do interescolar nas semifinais. Nunca chegou a jogar em Croke Park, o maior sonho de todos os garotos naquela época. Aí, certa noite, eu e mais alguns colegas fugimos do dormitório e fomos até o estádio, que ficava do outro lado da cidade. Os meninos do time queriam pular o muro e jogar uma pelada, só pra dizer que tinham pisado naquele gramado. Qualquer um podia ir junto, até mesmo os caipiras do interior como eu.
- Então, qual foi a burrada dessa vez?
- Eu subi no muro sem problemas, mas não consegui pular para o outro lado.
- Você amarelou. Lowrie estava arrasado.
- É, foi isso. A única vez que eles me deram uma chance... A única vez que fui convidado pra fazer alguma coisa com eles. Sei lá, às vezes nem eu gosto de mim mesmo.
- Depois disso, todo mundo parou de falar com você, não foi?
- Se fosse só isso, teria sido ótimo.
- Então foi pior?
- Muito pior.
- Anda, conta aí. Lowrie respirou fundo.
- Fui pego tentando descer do muro.
- Caraca.
- O guarda-noturno chamou os padres, e eles apareceram de caminhonete, cercando os alunos como se fossem uma boiada.
- Aposto que os seus colegas não ficaram nem um pouco satisfeitos...
- Não, não ficaram. Expulsão coletiva. Todos foram expulsos.
- Menos você.
- Menos eu. E, pra piorar as coisas, fui apontado como exemplo, por ter tomado a decisão mais sensata. Imagine só, ser chamado de sensato na frente de quatrocentos garotos reunidos num pátio!
- Fico arrepiada só de pensar.
- Ninguém falou comigo pelo resto do ano.
- E agora você quer voltar.
- Preciso voltar. Aquele foi um momento da minha vida em que eu poderia ter me tornado outra pessoa. Suponho que você tenha tido um momento semelhante. Sabe aquele segundo exato em que tudo dá errado?
Meg fez que sim com a cabeça.
- Entendi. Você precisa voltar. Lowrie exalou um longo suspiro.
- Obrigado.
- Mas você não pode simplesmente voltar durante o dia, numa excursão?
- Não. O mais importante de tudo é entrar escondido.
- Era isso que eu temia. Essa história de invadir um estádio vai detonar a minha aura.
- Que nada. Com os seus poderes, a gente vai tirar isso de letra. É só um muro e um guarda-noturno.
- Pra sua informação - disse Meg, voltando à ironia -, os sistemas de segurança mudaram muito desde a Primeira Guerra.
- Segunda.
- Tanto faz. É só entrar, dar uma voltinha e sair, né? Nada de muito complicado.
Lowrie passou o charuto para o outro canto da boca.
- Nada de complicado. Entrar e sair, juro por Deus. - E, revirando os olhos, emendou: - Mas, afinal, por que eles mudaram os sistemas de segurança? Quem é que vai querer roubar grama?

¶¶¶

Belch e Elph esperavam na antecâmara número nove. O pessoal da alfândega não tinha a menor idéia de quem eles eram e não queria deixá-los passar sem a autorização dos poderes inferiores. Belzebu, que estava no baile de gala em homenagem ao Maior Ditador do Mundo, foi chamado às pressas e não parecia nem um pouco satisfeito.
Dois subalternos aguardavam por ele no depósito de almas. Eles tinham o rosto engelhado, negro como o dos condutores de locomotivas a vapor. A exemplo dos colegas, tinham sido extremamente perigosos na vida terrena e agora eram mantidos em segurança naquele trabalho, arrancando à força as almas relutantes que se prendiam à parede do túnel. Eram chamados de limpa-trilhos.
- O que foi? - berrou Belzebu, já na alfândega.
- Pode me revistar - respondeu o líder dos limpa-trilhos, talvez um tantinho menos respeitoso do que devia
Sem hesitar, Belzebu vaporizou-o com o tridente.
- O que foi que houve? - perguntou ao segundo limpa-trilhos.
- Duas novas chegadas, eminência. Antecâmera nove.
- É antecâmara, imbecil. Mas o que é que eu tenho a ver com isso?
- É que eles fedem muito, majestade. Um nojo. Não sei por causa de quê.
- Não sei por que! - corrigiu Belzebu.
- O senhor está sentindo o cheiro daqui?
- Não, palerma! Ah, deixa pra lá... Eles foram sedados?
- Não foi preciso, meritíssimo. Os elementos estão mais pra lá do que pra cá. Não enxergam nem ouvem nada.
Belzebu precisou se conter para não corrigir mais aquela barbaridade gramatical. Séculos antes, ele havia trabalhado como professor particular de Átila, o Huno.
- E daí? Mais um caso de neurose pós-túnel, só isso. Jogue os dois no liqüidificador. Use os resíduos como energia pra minha jacuzzi.
O demônio alfandegário ficou meio sem jeito, balançando de um lado para outro nas patas de três artelhos.
- Algum problema? - perguntou Belzebu.
Na verdade, era mais uma ameaça do que uma pergunta. Um truque que os professores conhecem muito bem.
- Bem, é que... - gaguejou o pobre limpa-trilhos, sabendo que suas próximas palavras poderiam ser as últimas.
- Bem o quê? - perguntou Belzebu, já perdendo a paciência.
Ele queria voltar ao baile antes que Mussolini fizesse seu famoso número de mágica.
- Ê que esses dois são meio esquisitos.
- Esquisitos como?
- O menino-cachorro, ele só fica lá, bufando. E o miúdo, esse nem parece gente. A cabeça dele fica rodando, uma hora tá no foco, outra hora não tá. Mais parece uma televisão.
Tão logo conseguiu decifrar aquela xaropada confusa do limpa-trilhos, Belzebu dirigiu-se apressadamente para a porta da antecâmara número nove e olhou através da janelinha.
Sentado num banco, Belch babava sem dizer nada, enquanto Elph flutuava acima dele, repetindo incansavelmente a mesma coisa como se estivesse preso num loop.
- Cem por cento do bem, cem por cento do bem, cem por cento do bem - era só o que dizia o holograma.
Belzebu passou a língua sobre as presas. Seu plano estava indo por água abaixo. Se Pedro ficasse sabendo daquilo, as conseqüências não seriam nada boas. O Número Dois do inferno tateou os bolsos à procura do celular. Tão logo o encontrou, discou para São Pedro, que atendeu ao terceiro sinal.
- Ola, amigo. Que pasa?
- O que foi, Zeba? Sou um homem ocupado. Belzebu procurou freneticamente alguém para vaporizar, mas o limpa-trilhos, esperto, já havia dado no pé.
- Poxa, Pietro, um amigo não pode ligar nem pra dar um alô?
- Um amigo pode. Você, no entanto, não é amigo de ninguém, a não ser de si mesmo.
Belzebu contorceu o rosto numa careta de ódio, mas continuou a falar num tom jovial.
- Isso é coisa que se diga, Pedrão? Depois de tudo que fiz por você?
- Vá direto ao assunto, Zeba. Por que vocês aí embaixo só falam assim, fazendo rodeios? Isso é coisa... isso é coisa de Hollywood! Ou melhor, coisa de gente insegura!
Seu dia vai chegar, porteiro, pensou Belzebu. Seu dia ainda vai chegar. - Olha só, Pedroca, o negócio é o seguinte. Sabe aquela garota irlandesa?
- O que é que tem?
- Por acaso ela apareceu por aí?
- Por quê? Não me diga que seu capanga, o Caçador de Almas, voltou de mãos vazias?
- Caçador de Almas? Do que você está falando? Poxa, Pedro, assim você me magoa.
- Hummph - bufou Pedro, desconfiado.
- E então, você viu a garota ou não viu?
Seguiu-se um longo silêncio. Pedro se debatia com a própria consciência. Santos não podiam mentir, nem mesmo para demônios.
- Não, não vi - disse ele por fim. - Nenhum sinal dela ainda.
Belzebu sorriu aliviado.
- Bem, tenho certeza de que cedo ou tarde ela vai selar o próprio destino. Sem a ajuda de nenhum de nós.
- Claro que vai - retrucou Pedro, desligando o telefone. Belzebu chegou a dançar, tamanha era a sua felicidade. Ele ainda estava no jogo. Sem mais delongas, procurou o interfone mais próximo.
- Central? - perguntou ele, baixinho.
- Central falando - respondeu a voz de uma atriz vencedora do Oscar.
O inferno estava cheio de atores e atrizes vencedores do Oscar. Eles vendiam a própria alma com a mesma facilidade dos programadores de computador.
- Aqui é o Número Dois.
Belzebu detestava aquele codinome. Por que diabos o Mestre insistia naquilo? Talvez fizesse de propósito, para que as pessoas rissem de seu pobre ajudante.
- Pode falar, Número Dois.
Belzebu teve a impressão de ter ouvido risinhos do outro lado da linha.
- Diga a Myishi pra descer até as antecâmaras.
- Sim, senhor. Imediatamente.
- Ah, e diga a ele pra trazer a caixa de ferramentas.

¶¶¶

O sistema de segurança havia mudado consideravelmente. Uma cerca de arame entrelaçado cercava todo o perímetro do estádio, menos a torre de vigilância e os portões de seis metros de altura. Câmeras de segurança zumbiam e rodopiavam do alto de postes de concreto.
- Não falei? - disse Meg, com a petulância típica dos adolescentes.
Lowrie achou que aquele seria um bom momento para acender o charuto.
- Falou, e daí? Pelo menos uma vez na vida você deu uma dentro. E agora, o que é que vamos fazer?
- A mesma coisa que a gente fez com aquele Desmond. Aplicar o truque na cabeça dos guardas e... abra-te, Sésamo! A gente tá dentro.
Lowrie deu um longo trago no charuto. A brasa iluminou seu rosto como a chama de uma lamparina.
- Não, esse seu plano não serve.
Meg franziu a testa, fazendo surgir duas rugas de contrariedade na sua testa sardenta de fantasma.
- Como assim, não serve? Só porque é simples demais. Ou você quer dar um beijo nos guardas também?
- Eu preciso invadir o estádio - explicou Lowrie. - Tem de ser arriscado. Essa é a idéia.
- Nem imagino o que vai acontecer comigo depois disso. Afinal, foi pra limpar a minha aura que me mandaram de volta pra Terra.
- Logo, logo, você vai saber. Agora vamos.
Antes que Meg pudesse reclamar de alguma coisa, Lowrie seguiu em frente, o charuto abrindo caminho na escuridão como um pirilampo embriagado. Ladeando a cerca, eles chegaram a uma área mais escura, que se alargava até uma rua de casas com varandas.
- É aqui - disse Lowrie, ofegante, exausto da caminhada.
- Vai, fuma mais um charuto, fuma!
O velho jogou o toco de charuto no chão e apagou-o com a sola do sapato novo.
- Tem razão. Pra que apressar a m... o processo?
- Então foi por aqui que você tentou entrar, cinqüenta anos atrás.
- Mais de cinqüenta.
Olhando de baixo, a cerca parecia enorme. O Monte Everest das cercas. Intransponível. E, mesmo que uma pessoa conseguisse fazer a escalada, havia uma câmara de circuito fechado esperando lá no alto para imortalizar as fuças dela.
Lowrie teve um acesso de tosse, que começou aos poucos e foi se agravando até sacudir seu corpo inteiro. Ele ouvia as batidas do coração retumbarem na cabeça. Só então lembrou-se do quanto estava doente. Meg desceu até que os dois ficassem olho a olho.
- Ei, parceiro, tem certeza do que vai fazer?
A tosse foi cedendo até dar lugar a um chiado no peito.
- Tenho - respondeu Lowrie. - Enquanto ainda posso.
- Está bem, então. Mas pelo menos deixe que eu retire aquela câmera. Afinal, não existia câmera de segurança antes da guerra, né?
Lowrie cuspiu um pouco de catarro na grama.
- É, não existia.
Meg flutuou até o topo da cerca. A câmera de metal zumbiu na direção dela como se fosse um robô curioso.
Câmera, pensou firmemente enquanto virava a lente para a direita. Vá filmar outra parte da rua, só um instantinho.
Visto do alto, Lowrie tinha um aspecto ainda mais lamentável. Nem mesmo o terno novo conseguia disfarçar os ombros caídos e as mãos trêmulas. Os seis meses que lhe restavam de vida poderiam se transformar em semanas, ou dias, caso ele continuasse naquele ritmo.
- Lowrie - disse Meg, docemente, ainda no alto da cerca -, você devia estar num hospital.
- Não! - retrucou o velho com firmeza, a testa coberta por uma camada de suor frio. - O que posso fazer numa cama de hospital? Nada! E então, vai me ajudar ou não?
- Não sei se devo.
- Preocupada com sua aurazinha, é isso?
- Não. Por incrível que pareça, estou preocupada com você. Os dois ficaram calados por um tempo, ambos fazendo beicinho. Ao que parecia, a capacidade de fazer beicinho era uma característica que as pessoas conservavam mesmo depois de mortas. Meg, no entanto, levava uma vantagem sobre Lowrie: não sentia o vento frio que entrava pelas pernas das calças dele.
- E então? - disse Lowrie por fim, irritado por ter sido ele o primeiro a falar. - Não vai fazer nada?
- Vou - suspirou Meg. - Dá licença, que eu vou entrar. Entrar no corpo do velho era cada vez mais fácil para Meg
- como se ela já soubesse em que parte do cérebro se instalar. Não precisava mais se envolver com as lembranças embaraçosas do passado, nem com as necessidades fisiológicas das quais queria distância. Mas, de certo modo, era mais difícil também. Meg sentia sua energia baixar, uma espécie de cansaço, porém restrito à cabeça. (Os espíritos que porventura estiverem lendo este livro vão entender direitinho.)
Ela flexionou os dedos dos pés e das mãos de Lowrie, duros como dobradiças enferrujadas.
- Isso não vai ser fácil.
Agora que estava presa num corpo de carne e osso, Meg tinha a impressão de que a cerca era ainda mais alta do que antes. Os espaços vazios na trama de arame, no formato de losangos, eram minúsculos. Os sapatões de Lowrie jamais se encaixariam neles. Assim sendo, ela ficou descalça, amarrou o cadarço de um sapato no do outro e pendurou o par ao pescoço. Imediatamente sentiu a lama do chão atravessar as meias e molhar seus pés.
- A lama está fria! - gritou ela, rindo. - Agora, sim, eu me lembro do frio!
- Anda logo com isso, garota! - berrou Lowrie, dentro da própria cabeça. - Antes que eu pegue uma pneumonia!
- Já vou, Zangado! Prepare-se pra ficar de cabelos em pé! - Ela passou a mão sobre a careca de Lowrie. - Opa, cabelos não, cabelo.
Brincadeiras à parte, a missão não seria nada fácil. Mesmo que estivesse usando o próprio corpo de adolescente, Meg achava que não conseguiria transpor aquela cerca. Ainda assim, prendeu os dedos nos fios de arame e pôs-se a escalar.
No meio do caminho, começou a sentir dores, pontadas que começavam nos joelhos e castigavam as pernas como golpes de um chicote invisível. Para piorar, o vento agora soprava mais forte, balançando a cerca e ameaçando derrubar a dublê de alpinista.
- Pelo menos não está chov...
- Não diga isso! - avisou Lowrie.
Meg obedeceu. Não era de acreditar em sorte, boa ou má, mas, diante do que estava vivendo, já não duvidava de mais nada. Por fim, depois de uma eternidade, chegou ao topo. Respirava com dificuldade e pingava suor.
- Você sua como um porco, Lowrie! - resmungou. - Essa camisa pode ir pro lixo!
Além disso, o coração do velho palpitava a mil por hora. A presença do espírito jovem não bastava mais para acalmá-lo. Meg estava convencida de que, se Lowrie tivesse tentado fazer a escalada por conta própria, ele agora seria um cadáver esparramado na lama.
O mais sensato, portanto, seria descansar um pouquinho antes de prosseguir. O vento fustigava-os de todos os lados. Era de se imaginar que as arquibancadas enormes oferecessem algum abrigo, mas não. A ventania atravessava as frestas, ganhando força feito água de bica.
Meg passou para o outro lado da cerca e começou a descer. As pernas de Lowrie já não prestavam para quase nada, e as mãos sustentavam sozinhas todo o peso do corpo. As articulações rangiam e ameaçavam não agüentar. Depois de um esforço interminável, Meg esborrachou-se numa poça d'água, ensopando o traseiro das calças de Lowrie. Estava cansada demais para se importar.
- Não sei como vamos sair daqui - disse ela. - Só sei que não vamos subir essa cerca de novo. Outra escalada dessas vai acabar com nós dois.
Meg saiu da cabeça de Lowrie, devolvendo o controle do corpo ao proprietário de direito. Lowrie imediatamente passou a sentir no peito as marteladas do coração.
- Isso é loucura - disse ele, ofegante. - Uma estupidez.
Pela primeira vez, Meg sentiu-se aliviada por ser um espírito. Pelo menos já tinha passado por toda aquela história de morte.
- Foi exatamente isso que eu disse.
Lowrie permaneceu recostado na cerca por um bom tempo e, gradualmente, voltou a respirar como antes.
- Pronto. Já estou melhor. Podemos ir.
- Tem certeza?
O velho ficou de pé.
- Agora não faz mais sentido voltar, concorda? Já passamos pelo pior.
- Passamos? Você não fez nada, só ficou olhando! Fui eu quem teve de subir e descer essa cerca com sua carcaça velha nas costas.
- Foi pra isso que mandaram você de volta, não foi?
- É, acho que sim.
- Ótimo. Então, que tal a gente parar de discutir e ir em frente, antes que eu tenha um ataque cardíaco de verdade?

CAPÍTULO 8

O GOL DE EMPATE

MESMO ÀQUELA hora da noite, o estádio de Croke Park encontrava-se muito bem iluminado. Lâmpadas alaranjadas zumbiam no alto, produzindo sombras sinistras nas arquibancadas monumentais. O lugar estava imundo; garrafas e latinhas acumulavam-se nos cantos, varridas pelo vento. Evidentemente, o pessoal da limpeza ainda não havia feito seu trabalho depois do último jogo.
Lowrie arrastou-se até o centro do campo. Sob o efeito das luzes, o gramado parecia quase branco, o que lhe conferia um aspecto fantasmagórico. O velho ria de orelha a orelha. Lá estava ele, finalmente, depois de tantos anos. Rodopiando com os braços abertos, recebia emocionado os aplausos imaginários dos colegas ausentes. E agora, paspalhos? Quem é que não tem coragem de fazer uma loucura? Quem é o fazendeiro covardão, afinal?
- Sou eu! - berrou ele a plenos pulmões. - Lowrie McCall invadindo o estádio na calada da noite!
Meg ria com ele. Via a felicidade emanar dos poros do velho como um espetáculo de fogos de artifício.
- Vim aqui pra fazer um gol em Croke Park!
- É mesmo? - perguntou alguém.
Os parceiros se viraram para ver quem era. Um guarda olhava para eles com cara de poucos amigos. Tinha um rádio pendurado ao cinto, como um revólver.
- O que eu gostaria mesmo de saber - continuou ele, irônico - é como vocês dois pretendem fazer um gol sem uma bola?
Lowrie engoliu a seco. Meg piscou os olhos. Duas perguntas difíceis de responder: uma, a que o guarda acabara de fazer; outra, como ele podia ter dito "vocês dois"?

¶¶¶

Como se estivesse num duelo de faroeste, o guarda ajeitou os dedos sobre o coldre onde mantinha o walkie-talkie.
- Me dê uma boa razão pra que eu não... Lowrie interrompeu-o.
- Por acaso não o conheço?
Meg também estava desconfiada. Percebia algo de familiar naquele guarda.
- Improvável - respondeu ele. - E não adianta mudar de assunto. Me dê uma boa...
- Por acaso você não tem um irmão...
- O Desmond?
- ...que trabalha na mesma área que você?
- Desmond é consultor de segurança, como eu. Responsável por proteger todos os figurões lá na RTE.
- Formado em poesia medieval?
- Pra mim, poesia medieval é um monte de palavrão que rima. Você conhece o Desmond?
- Mais ou menos - respondeu Lowrie. - Ele abriu o portão pra mim hoje.
- Como esse mundo é pequeno... - disse o guarda, estendendo a mão. - Meu nome é Murt. Amigo de Dessie é meu amigo.
Lowrie apertou a mão dele com certa hesitação; desconfiava que aquilo não passasse de um truque para algemá-lo. Terminadas as apresentações, Murt voltou ao assunto em pauta.
- Como eu estava dizendo, me dê uma boa... - Dessa vez foi o próprio guarda que se interrompeu. Pela expressão em seu rosto, tinha feito uma grande descoberta. - Ei, espera aí. Você não é o... Lowrie McCall? É ele, sim, não é?
- Ele quem?
- O cara da televisão! Que beijou a Cicely Ward! Seu garanhão...
- Sinto muito. Você deve ter se enganado.
- Ah, deixa disso, claro que você é ele. Eu reconheceria esse rosto de maracujá de gaveta em qualquer lugar. Afinal, você apareceu em todos os noticiários de hoje, gritando "olé" e pulando de um lado pro outro como se fosse o Zorro!
Lowrie não pôde evitar um risinho de vaidade.
- É, sou eu mesmo.
- E então, o que deu em você? Por acaso é um maluco que fugiu do hospício e anda por aí beijando celebridades? - Murt arregalou os olhos de repente. - Opa, não está atrás de mais uma vítima agora, está?
- Não é nada disso!
- Espero que não. Uma coisa é pagar esses micos sozinho; outra coisa é levar a garota junto.
- Que garota? - disse Lowrie, fazendo-se de inocente.
- Deixa de gracinhas, homem.
- Ele pode me ver - sussurrou Meg, aliviada por ter resolvido andar em vez de flutuar. Era aquela velha história: há males que vêm pra bem.
- Claro que posso! Mas é estranho... Não vi você no monitor lá na guarita.
- O gramado também é vigiado por câmeras?
- Claro que é! Quem seria burro o bastante pra vigiar a cerca e não vigiar o gramado? Mas você não estava lá, no monitor.
- Bem, é que eu sou um...
- É que ela sempre fica pra trás - interrompeu Lowrie.
- E olha que não deve ser muito difícil acompanhar uma tartaruga velha que nem eu!
Murt deu um passinho para trás.
- Estou achando que vocês dois fugiram do hospício. Vou ter de avisar o chefe.
- Não, Murt! - disse Lowrie, tentando manter a calma.
- Deixa eu lhe dizer o que vim fazer aqui. A verdade. Toda a verdade, inclusive sobre a Cicely Ward. Os jornais pagariam uma fortuna por uma história dessas.
Murt lambia as pontas do bigode enquanto pensava no assunto.
- Fala sério? - disse ele, por fim. - Um daqueles furos de reportagem?
- Exatamente.
- Então vamos fazer o seguinte. Primeiro, a história; depois resolvo o que vou fazer com vocês.
- Isso não é justo! - protestou Meg. - Você está com a faca e com o queijo na mão!
- Quem disse que a vida é justa, garota? - disse Murt, com um risinho de sarcasmo no canto dos lábios.
- Sei muito bem que não é.
- Pois bem. Negócio fechado - disse Lowrie apressadamente, antes que Meg pisasse nos calos de um possível aliado.
- Ótimo. Então pode ir abrindo o bico. Quero a verdade, nada mais que a verdade. Na minha profissão, a gente aprende a identificar uma mentira a cem quilômetros de distância.
Assim, como prometido, Lowrie contou ao vigia noturno exatamente o que estava acontecendo. A verdade. Quer dizer, uma interpretação livre da verdade. Vá lá, um monte de mentiras cabeludas e deslavadas. Mentiras, acreditava Lowrie, que livrariam os dois de serem levados na traseira de uma ambulância para o hospício mais próximo.
- Tudo começou... hmmm... na sexta-feira passada. É mesmo? pensou Meg. Isso vai ser interessante.
- É que... hmmm... o avô de Meg estava no seu leito de morte e...
- Tadinho do vovô - suspirou Meg.
- Bem, lá estávamos nós, esperando que o homem partisse desta para a melhor... - Quando precisamos contar uma boa mentira, o melhor é incluir o máximo possível de verdade. Lowrie deu uma olhadela para o guarda, tentando perceber se seu detector de mentiras cabeludas e deslavadas captava alguma coisa. Felizmente, Murt parecia interessadíssimo na história.
- O velhinho - continuou Lowrie - era um sujeito muito boa-praça, mas um tanto inútil. Tinha visto a própria vida passar pela janela, sem fazer nada. Achava que não era um bom exemplo para a netinha. Então, estrebuchado ali, naquela cama, me fez prometer uma coisa.
- Prometer o quê? - perguntou Meg, mal podendo conter a própria curiosidade. - Ah, foi mesmo. É que o nosso Lowrie aqui tinha sido...
Lowrie ficou aflito. As mentiras de Meg certamente seriam muito mais cabeludas do que as dele.
- ...soldado no regimento dele durante a guerra. Murt arqueou as sobrancelhas e disse:
- Ah, então é por isso que esse velhote conseguiu pular aquela cerca! - As sobrancelhas voltaram ao seu lugar natural.
- E a tal promessa, o que foi?
Lowrie coçou o queixo perfeitamente barbeado.
- Ah, sim, a promessa. Bem, na qualidade de melhor amigo dele...
- E comandante de regimento - acrescentou Meg. Àquela altura, ela já estava achando tudo muito engraçado.
- Sim - disse Lowrie entre dentes -, na qualidade de melhor amigo e comandante de regimento do avô de Meg, tive de prometer que faria todas as coisas que ele tinha se arrependido de não fazer.
- E uma dessas coisas era beijar a Cicely Ward - concluiu Murt.
- Isso mesmo.
- E agora você pretende fazer um gol em Croke Park.
- Se possível.
Mais uma vez, Murt lambeu as pontas do bigode. Essa era difícil. Por um lado, aqueles dois haviam infringido a lei ao invadir o estádio, e a obrigação dele era, sem dúvida, avisar a polícia. Mas pelo outro...
- Então por que não trouxe a bola? Lowrie deu um risinho constrangido.
- Porque... eu esqueci.
- Que espécie de comandante é você? - disse Murt, em tom de brincadeira. - Caramba, espero não me arrepender do que vou fazer. Vocês dois, esperem aqui. - O guarda deu meia-volta e correu na direção dos vestiários, fazendo sacolejar o radinho e a lanterna pendurados ao cinto.
Meg aproveitou a oportunidade para soltar a gargalhada que vinha segurando desde o início.
- Nem acredito que ele caiu nessa balela!
- E você quase estragou tudo. Comandante de regimento, hein?
- Só quis melhorar um pouco a sua história.
- Muito obrigado.
- De nada.
O gramado se estendia diante deles. Carregado pelo vento, um saquinho de batatas fritas rodopiava rente ao chão, feito um solitário patinador no gelo.
- Esse lugar é meio fantasmagórico - sussurrou Meg -, não acha?
- Sei lá. Quem entende de fantasma aqui é você.
- E como será que ele conseguiu me ver? O que será que ele tem de especial?
Lowrie deu de ombros.
- Também não sei. Talvez você o tenha prejudicado também. Quando estava viva.
- Nunca vi esse sujeito, nem mais gordo nem mais magro.
- Você não costumava passar trotes, ou algo assim?
- Pra Dublin, não. Ninguém aceitava as minhas chamadas a cobrar.
- Então vamos deixar isso pra depois. Agora entre aqui e faça a sua parte antes que ele volte.
- Achei que você quisesse fazer isso sozinho.
- Eu adoraria fazer sozinho, mas virei um deficiente depois que dois ladrões invadiram a minha casa e o cachorrinho de estimação deles arrancou um pedaço da minha perna!
- Ah, tava demorando. Já tinha dez minutos que você não falava nessa história.
Murt correu de volta, sacudindo a pança ao longo do caminho.
- Aqui está - disse ele, ofegante, entregando a Lowrie uma bola de futebol. A pessoa que ele achava ser Lowrie recebeu a bola e rodopiou-a na ponta do dedo como se fosse um craque do basquete. Em seus dias de carne e osso, Meg adorava jogar nas quadras da cidade. E não era das piores.
- Conselho de amigo, Murt - disse ela. - Você precisa entrar em forma. Com esse pneu sobressalente na barriga, vai pro túnel muito mais cedo do que imagina.
Apontando o polegar para o túnel dos vestiários, Murt disse:
- Acabei de vir de lá. Mas cadê a garota?
Lowrie, na condição de espectador em sua própria cabeça, ficou atônito com a pergunta. Meg, porém, tinha anos de experiência em inventar mentiras de bate-pronto.
- Ela recebeu uma chamada no celular - explicou, imitando o jeito sisudo de Lowrie. - Está gravando um disco e foi chamada às pressas pra dar uns retoques de última hora.
- Ah, sei - disse Murt, desconfiado. - Quer dizer então que ela escalou aquela cerca outra vez.
- É. Uma atleta e tanto, aquela menina. Não é à toa que foi convocada pra seleção irlandesa de atletismo.
- Entendi.
Ao que parecia, o detector de invenções de Murt não era lá dos melhores.
- É verdade. Meg ganhou duas medalhas nos jogos olímpicos do ano passado.
- Ano passado? - disse Murt, tentando fazer mentalmente uma divisão por quatro.
- Uma naquela prova demorada, e outra naquela dos saltos.
- Na maratona e na corrida de obstáculos, você quer dizer.
- Isso mesmo. Uma garota extraordinária. Estou até pensando em adotá-la.
- Achei que fosse o avô dela que tivesse morrido...
- É, foi... Mas ele... ele virou o pai dela quando os pais de verdade morreram num... num safári na África. Atacados de repente por um bando de babuínos. Um horror.
Assistindo a tudo na sua salinha de cinema particular, a consciência de Lowrie não sabia se ria ou se chorava.
Murt massageou as têmporas; sentia que uma terrível dor de cabeça estava por vir.
- Pois bem, então. Chega dessa menina-prodígio. Você vai chutar essa bola ou não vai?
- Claro que vou. Foi pra isso que eu vim, não foi? Caminhando pelo gramado sagrado de Croke Park, Meg percebia as lembranças residuais que emanavam das arquibancadas, torcidas berrando o nome de times que nem existiam mais. Ao redor dela, os vultos de jogadores do passado driblavam uns aos outros, puxando camisas ou dando cotoveladas quando o juiz não estava olhando. A animação era contagiante. Meg chegava a acreditar que estava numa daquelas finais: imaginava que sua missão era cobrar, no decisivo segundo de jogo, o pênalti que daria a vitória a seu time. Sentia o coração de Lowrie retumbar de alegria dentro do peito. Finalmente ele realizaria seu sonho de cinqüenta anos.
Meg pôs a bola no gramado e deu oito passos para trás. Nas arquibancadas, a multidão de fantasmas emudeceu. Os outros jogadores se dissiparam no ar, vaporizados pela intensidade do momento. Lowrie rezou baixinho. Achava que Meg tinha boas chances de marcar aquele gol. Fora um ótimo jogador na juventude e talvez pudesse usar suas lembranças para ajudá-la de alguma forma. Firmando o pensamento, tentou transmiti-las à parceira. Todos os gols que havia marcado na vida. Todas as partidas que havia jogado naqueles campos cobertos de lama. Estava tudo lá, arquivado num empoeirado fluxo de elétrons nos fundilhos da cabeça.
- Opa! - exclamou Meg, recebendo a mensagem.
Imediatamente mudou de postura: girou o tronco e colocou todo o peso do corpo sobre a perna de trás, Nenhum obstáculo à vista; apenas um ventinho leve, mas que soprava na direção do gol. Pela primeira vez, Meg e Lowrie estavam verdadeiramente cooperando. Espírito e corpo trabalhando em conjunto. Meg lambeu o dedo do velho e colocou-o contra o vento. Segundos depois, deu-se conta do gosto de fumo que se instalara em sua língua, ou melhor, na língua que momentaneamente era sua.
- Ecaaa!!! - disse ela, cuspindo no chão. Naturalmente, como se tratava dos pulmões de um fumante inveterado, o que saiu foi muito mais do que cuspe. - Que nojo! Poxa, Lowrie, olha só pra isso!
- Pois tome isso como lição! - berrou o velho, de seu esconderijo.
- Caramba, eu não sabia que cigarro fazia tanto mal pra gente!
Aquela conversa, embora absolutamente natural para a dupla Meg-Lowrie, havia deixado o pobre Murt aturdido.
- Você não bate muito bem das bolas, não é mesmo? É daqueles malucos que ficam falando sozinhos na rua, não é? Só pode ser isso. E eu aqui, ajudando esse babão. Quem devia ir pro hospício era eu.
O guarda levou a mão ao rádio.
- Não, Murt, espera! - berrou Meg, desesperada. - É que... É que eu fiquei assim depois da guerra, sabe? De repente as lembranças aparecem na minha cabeça, e parece que estou lá outra vez, só isso.
Para comover o guarda, Meg tapou o rosto com a mão e começou a chorar lágrimas de crocodilo. Espiava entre os dedos para ver o efeito produzido.
- Está bem, está bem... - disse Murt. - Mas vou te dizer uma coisa: depois de tanta amolação, é melhor que o Sunday World me pague uma fortuna por essa história toda! Agora anda, acaba logo com isso.
Meg respirou fundo. Correu na direção da bola e chutou com vigor, usando a lateral do pé, como Lowrie havia feito no passado. Mas a bola simplesmente quicou umas duas vezes e rolou não mais que alguns metros.
Murt quase deslocou as mandíbulas de tanto rir.
- Pára, pára, pára! - disse ele às gargalhadas. - Assim vou acabar mijando nas calças!
- Essa bola de couro é muito dura - resmungou Meg, esfregando os joanetes do velho. - Eu só tinha chutado daquelas de plástico, que os postos de gasolina dão de brinde.
Murt bateu palmas de puro deleite.
- Você não foi soldado coisa nenhuma, meu chapa! Deve ter sido bailarina, isso sim!
- Muito engraçadinho, Murt.
- Tem um time de garotas que treina aqui todos os dias. Se quiser, posso arranjar uma vaga pra você!
Lowrie bufou por dentro.
- Ele tem razão. Você chuta como uma...
- Como uma o quê?
- Você sabe. Como uma...
- Como uma garota, é isso?
- Bem...
- Acontece que eu sou uma garota - berrou Meg. - Você esperava o quê?
Naturalmente, sendo o boa-praça que era, o pobre guarda se recompôs e disse:
- Não, você não é uma garota. Eu só estava brincando. Vai, tenta outra vez.
No entanto, Meg não ia simplesmente tentar outra vez. Sentia-se no direito de uns bons dez minutos de reclamação e desaforos.
- Velho enjoado... Você e essa sua lista ridícula de desejos, essa lengalenga de "ah, por favor, me ajuda a consertar a minha vida". Estou fazendo o melhor que posso, ouviu bem? Quase morri por sua causa, ou melhor... deixa pra lá. E o que recebo em troca? Insultos, só isso. Minha vontade é voltar para aquele túnel agora mesmo!
- Ah, não volta não - disse Murt, jogando panos quentes. - Tenta mais uma vez.
- E por que eu deveria tentar? - disse Meg, esquecendo-se da encenação que vinha fazendo. - Por que deveria fazer mais esse favor pra esse rabugento ingrato?
Murt empertigou o tronco e disse:
- Porque esse rabugento ingrato era o seu melhor amigo. Faça isso por ele, e pela garota também. Acho que ela precisa de uma boa figura paterna.
Por incrível que pareça, embora não tivesse a menor idéia do que estava se passando, Murt acertara na mosca.
Sem dizer uma palavra, Meg buscou a bola e recolocou-a na marca do pênalti.
De algum lugar na escuridão em que se encontrava, Lowrie sussurrou:
- Obrigado.
- Ainda é cedo pra agradecer - retrucou Meg, dando oito passos de gigante para trás. - Essa bola parece que é de pedra.
Murt aproximou-se correndo.
- Espera um pouco - berrou ele. - Deixa eu dar uma dica.
- Ah, ótimo - disse Meg. Mas o que ela queria mesmo dizer era: "Dá o fora, mala!"
- Sempre que eu precisava dar um chute de longe - continuou Murt, sem perceber as ondas de hostilidade que atravessavam a testa dele -, eu imaginava que a bola era a cabeça de alguém. De uma pessoa de que eu não gostava muito.
Meg ficou pasma. O conselho do guarda até que não era mau. Transformar a bola numa cabeça. E ela sabia muito bem que cabeça seria essa.
Ela se preparou para chutar. A bola já não era mais uma inocente esfera de couro; era a cabeça de Franco, que lhe dizia: "Sou eu quem manda nessa casa agora, garota. Seus dias de princesinha mimada acabaram. Você vai fazer o que eu disser, e quando eu disser".
- É mesmo? - disse Meg a si mesma, correndo para chutar. "Pra início de conversa, pode esquecer da sua vida de antes.
Não sou seu empregado. Não vou ficar andando atrás de você, recolhendo sua roupa suja. Tudo vai mudar a partir de hoje, sua peste. Tudo vai mudar. E sua mamãezinha não vai estar aqui pra te salvar. Porque sua mãe já..."
- Cala a boca! - berrou Meg, segundos antes de chutar a bola.
Jamais havia chutado alguma coisa com tamanha força na vida, nem depois dela. A cabeça de Franco decolou como um avião a jato, atravessou as traves do gol e sacudiu a rede atrás delas. Em seguida, transformou-se novamente numa bola e deslizou até o chão. Murt ficou pasmo.
- Retiro tudo que disse - comentou ele. - Seu lugar não é no time feminino coisa nenhuma. Que chute foi esse, meu chapa? Nunca vi nada parecido desde que... Bem, nunca vi nada parecido e ponto final. A bola quase furou a rede! Achei que fosse fazer um buraco na rede!
Dentro da própria cabeça, Lowrie pulava de alegria.
- Eu sabia que você ia conseguir, eu sabia! Foi muito bom! Muito bom, não, sensacional! Me senti um garoto outra vez!
Um sorriso se abriu lentamente no rosto de Meg, ou no rosto que ela estava usando naquele momento. Lembrando-se da expressão de surpresa nos olhos de Franco, ela disse:
- É, foi sensacional.

¶¶¶

Escoltado por Murt, Lowrie passou pela roleta de saída.
- Você não vai ter problemas por causa disso, vai?
- Não - respondeu o guarda. - Deixei você dar um chute antes de expulsá-lo, só isso. De qualquer modo, sou o dono da empresa de segurança.
- Ótimo - disse Meg. - Poxa, Murt, valeu. Isso era muito importante pro Lowrie. Quer dizer, pra mim. Muito importante mesmo.
- Não precisa agradecer. É sempre um prazer ajudar um ex-combatente.
E antes que Meg pudesse fazer qualquer coisa, Murt apertou a mão de Lowrie e começou a sacudi-la com toda força. Uma parte do espírito de Meg foi chupada para dentro do corpo do guarda, e ela precisou se encolher apressadamente para voltar ao corpo do velho.
Murt recolheu a mão e olhou para os próprios dedos com espanto.
- Engraçado... - disse ele. - Foi como se...
- Foi como o quê?
- Nada, nada. Tive a impressão de que... Ah, deixa pra lá.
- Então até logo, Murt. Dê um abraço no Desmond por mim.
- Dou, sim, pode deixar. Mas... você se importa se eu fizer uma pergunta?
- Claro que não. Diga.
- Aquela garota, a cantora campeã olímpica?
- Sim, o que tem ela?
- Tem certeza de que não é parente dela?
- Tenho, por quê? Murt franziu a testa.
- É que... às vezes, quando olho pra você, tenho a impressão de que estou vendo o rosto dela. - Ele deu um risinho nervoso. - Acho que estou ficando maluco.
Meg e Lowrie riram juntos, talvez alguns decibéis mais alto do que deviam.
- É, Murt, deve estar mesmo.
E então eles voltaram à rua. Tão logo Murt trancou a roleta e desapareceu na escuridão do estádio, Meg se desvencilhou da estrutura celular de Lowrie.
- Aaauuu! - berrou o velho. - Meu pé! Você deve ter chutado meio torto!
- É - disse Meg, emburrada.
- Ei, por que essa tromba agora? Já riscamos dois itens da lista. Estamos na metade do caminho.
Meg sentou-se num muro, apenas por hábito, e não porque estivesse cansada.
- É o Murt. Sei por que ele podia me ver.
- É mesmo? E por quê?
- Ainda agora, quando a gente apertou as mãos, pude dar uma olhadinha dentro dele. Sem querer. Não sou de bisbilhotar a vida alheia.
- Ah, não?
- É a energia dele. A energia de vida.
- O que tem a energia de vida dele?
- Já acabou. Sumiu. Zerou.
- Murt está morrendo?
- Quando a gente tinha carro e a gasolina já estava quase no fim, mamãe dizia que o carro estava andando só no cheiro da gasolina. Acho que é o caso do Murt. Ele é mais espírito do que carne. Por isso podia me ver. Murt é da minha turma. Ou quase.
- Não há nada que você possa fazer?
- Não - respondeu Meg. - Esse tipo de coisa está além dos meus poderes. Mas pelo menos a aura dele é azulzinha, bem brilhante. Vai chegar no céu antes mesmo de saber que empacotou.

¶¶¶

Do alto da torre de vigilância, Murt podia ver os dois. Ficara de boca aberta ao ver a menina se separar do corpo do velho. Ele sabia. Sabia que havia algo de estranho com aquela dupla. Rapidamente, vasculhou as gavetas à procura de uma fita de vídeo para gravar a cena. Tarde demais. Os dois esquisitões já tinham sumido na escuridão das ruas.
A coisa era mais cabeluda do que ele havia pensado. Muito mais. Mesmo assim, Murt achava que compreendia tudo. A tal garota era um espírito com uma missão a cumprir. Mas como ele podia saber? Ora, tratava-se apenas de uma suposição, não adiantava nada esquentar os miolos. Ele perguntaria a Desmond como tirar o melhor proveito daquela história. Desmond sempre tivera uma boa cabeça para os negócios.
No entanto, só de pensar que teria de ouvir a falação do irmão, Murt sentiu o estômago embrulhar. Depois de alguns intermináveis minutos, Desmond acabaria assumindo a liderança do projeto e relegando o próprio Murt à condição de ajudante. Porém, mesmo sendo o irmão mais novo, ele sabia muito bem como virar uma situação em beneficio próprio.
Para agüentar a ladainha de Desmond era preciso tomar algum tipo de fortificante. Uma boa xícara de chá talvez bastasse. De um pulo, Murt levantou-se da cadeira giratória e foi até a quitinete da torre de vigilância. A chaleira elétrica pingava sobre o escorredor de pratos. O fio já estava gasto, e a tomada apresentava manchas escuras, como se tivesse sido chamuscada. Preciso dar um jeito nisto, pensou Murt, ou então fazer a coisa certa e comprar uma chaleira nova.
Murt concluiu, porém, que podia ficar para o dia seguinte. Tratava-se, afinal, de uma emergência: os nervos de Murt precisavam ser acalmados. Além disso, a boa e velha chaleira com certeza agüentaria mais uma última missão. Ele secou com os dedos algumas gotinhas de água do plugue.

¶¶¶

Myishi apontou para o monitor do espigão cerebral.
- O problema está aqui - disse ele. - Bem aqui.
- Até que enfim! - rosnou Belzebu.
A noite havia sido um desastre total. Apenas para ele, é claro. Todos os outros demônios de alto escalão ainda estavam no banquete, devorando pratos preparados com diversos animais ameaçados de extinção.
- Tudo corria às mil maravilhas, sem a ajuda do seu Caçador de Almas, diga-se de passagem, até que o velho beijou a velha e... BANG!
- BANG? Do que você está falando, seu tecnoplasta?
Myishi teve de engolir a seco a resposta que gostaria de dar: se havia algum tecnoplasta por ali, certamente não era ele. Mas, de modo geral, observações dessa natureza resultavam numa descarga elétrica de nível quatro num lugar muito, muito sensível.
- Está vendo aquela luz branca ali, Belzebu-san?
O Número Dois do inferno aproximou-se do monitor espetado na massa cerebral de Belch. A imagem tremia ligeiramente.
- Claro que estou.
- Ótimo. Isso é energia cem por cento positiva. Uma raridade. Nem um único pecado mortal para atrapalhar. Basta que duas moléculas de bondade se esbarrem uma na outra e... BANG! Fusão molecular. Fatal para a nossa raça. Essa energia triturou seu garoto como se fosse um tubarão cravando os dentes numa pobre tartaruguinha.
Belzebu tremeu de aflição.
- Fritou o cérebro dele, outra vez - continuou Myishi. - Sugou toda a energia e mandou o garoto de volta pra cá com a rapidez de uma hiena ao arrancar pedaços de carne de um...
- Já entendi, já entendi, criaturinha abjeta!
Myishi sorriu por dentro. Naquela parte do cosmo, não era lá muito comum encontrar alguém com aquele tipo de suscetibilidade.
- Alguma informação útil nessa fita?
- Não, Belzebu-san. Depois do beijo, só estática.
- E o seu robô? Esse elfo aí?
- Não é elfo. É Elph.
- Elfo, Elph, dá no mesmo. Por acaso ele gravou alguma coisa útil?
Elph ainda flutuava no ar, repetindo incessantemente as mesmas palavras. Pelo menos Myishi havia baixado o volume dele.
- Receio que o sistema tenha sofrido uma pane depois da sobrecarga, mas talvez eu possa dar um novo boot a partir do servidor e... - Myishi parou no meio, lembrando-se do que lhe acontecera da última vez que soterrara Belzebu sob uma montanha de palavras técnicas. E fez bem, pois uma carga faiscante começava a brotar nas pontas do tridente do chefe. - Em outras palavras, Belzebu-san, o holograma quebrou, mas posso consertá-lo.
- Ótimo. Por que não disse logo? E não há nada que você possa fazer com relação a esse fedor? É insuportável.
Myishi hesitou.
- Humm... Creio que não. Mas vai passar. É o cheiro da felicidade. Eau de joi. Nenhuma nota de maldade. Parece com o cheiro de flores e de...
- De torta assando no forno.
- E de sabonete.
- E da brisa que vem do mar. Os demônios tremeram de nojo.
- Eca! - exclamaram juntos.
Um momento histórico. A primeira e talvez a última vez que Belzebu e Myishi concordaram em alguma coisa. Concordar não era o forte de Belzebu.
- Pois bem - foi logo dizendo -, conserte essa porcaria de uma vez por todas. E não me venha com suas desculpas esfarrapadas de mecânico fajuto. Nenhuma peça precisa ser importada de Taiwan. Portanto, você tem dez minutos antes que eu comece a fazer fumaça nesse seu paletozinho metido a besta. Ouviu bem, ou quer que eu repita?
Myishi fez uma longa mesura e disse:
- Perfeitamente, Belzebu-san.
O programador retirou o paletó, revelando um torso completamente coberto de tatuagens bastante elaboradas. Dragões serpeavam sobre o peito e tsunamis explodiam nos ombros. Segurando a respiração para não sentir o bodum da felicidade, Myishi debruçou-se novamente sobre a pantanosa massa cinzenta de Belch.
Como todos os intelectuais, ele não podia resistir ao impulso de explicar o procedimento.
- A onda de energia positiva sobrecarregou a reserva vital do Caçador de Almas. Matou-o novamente, por assim dizer. Além disso, apagou a memória dele. A cabeça do garoto está como um balde vazio. Felizmente o holograma havia arquivado uma cópia dos padrões de memória. Mas, infelizmente, o holograma se alimenta da mesma fonte de força que o hospedeiro. Portanto, quando um deles apaga, o outro apaga também.
Myishi conectou o espigão a uma linha de força externa. Faíscas azuladas começaram a zumbir através do cabo, pulando para dentro do crânio do estupefato Belch e provocando pequenos espasmos no corpo dele. Rodopiando feito um pião,
Elph agora falava a uma taxa de quatrocentas palavras por segundo. Tão logo recebeu o autodiagnóstico enviado por seus microprocessadores, o holograma deu início a uma revisão criteriosa de todos os drives e programas. Três-ponto-quatro segundos depois, chegou à conclusão de que o sistema já estava oitenta e oito por cento funcional. Seus olhinhos telescópicos finalmente entraram em foco.
- Ah, Excelso Saber - disse ele, executando uma rebuscada reverência.
- Muito obrigado - retrucou Belzebu, envaidecido, achando que o holograma havia se dirigido a ele. Myishi não se deu ao trabalho de corrigi-lo. - O palerma ainda está operacional?
- Au! - latiu Belch.
- Infelizmente, parece que sim. Belzebu ficou furioso.
- Até os seus hologramas são metidos a besta! Pois bem, Myishi, me dê um bom motivo pra não fritar o seu brinquedinho agora mesmo!
- Permita-me responder - disse Elph, aproximando-se suavemente de Belzebu. - Ao contrário do seu Caçador de Almas, minha programação analítica, devidamente patenteada pela Myishi Soluções Internas Para Problemas Infernais LTDA, permitiu que eu tivesse acesso às lembranças do senhor Brennan, de modo que agora sou capaz de prever onde nossa alma errante aparecerá durante sua breve estada no plano mortal.
Belzebu desferiu um olhar de fúria na direção de Myishi.
- Esse pateta se parece com você, fala como você e é tão insuportável quanto você.
Myishi fez várias mesuras, ciente de que sua criação digital estava a alguns nano-segundos de se transformar num monte de cinzas.
- O que Elph acabou de dizer, Belzebu-san, é que ele agora sabe para onde Meg Finn irá.
- Tem certeza? - disse Belzebu, deixando a desconfiança transparecer com toda força em seus olhos cor de violeta.
Depois de completar alguns cálculos complicados, Elph disse:
- Segundo me informei no cérebro do senhor Brennan, a garota é obsessivo-compulsiva. Se acreditar que tem algum assunto mal resolvido na Terra, vai manipular o velho até conseguir fazer o que tem de fazer.
As faíscas no tridente de Belzebu começaram a ceder, sinal de que finalmente ele havia se deixado convencer. Mas jamais admitiria isso, claro.
- E aposto que ela tem algum assunto mal resolvido, não tem?
Elph projetou na parede da cela a imagem de um homem sombrio.
- É o padrasto dela. Franco Kelly. Meg Finn guarda um ressentimento muito forte em relação a ele. Apesar do que já fez, acha que ainda tem algumas contas a acertar.
Relutante, Belzebu assentiu com a cabeça e disse:
- Pois bem, então. Vou lhe dar mais uma chance, mas só porque não tenho outra escolha. Esse cachorro gordo é a única alma não-registrada de que disponho. Se pudesse, mandaria outra no lugar dele, qualquer uma serviria.
Myishi suspirou aliviado. Seu protótipo sobreviveria por mais um dia.
- Em razão do encontro com a bondade - explicou ele -, a capacidade cerebral do hospedeiro ficou ainda menor do que antes. Vou ver o que posso fazer para dar uma turbinada nele, mas com tantos estragos...
- De quanto tempo ele dispõe?
- De umas doze horas. Dezoito, no máximo. Depois disso, vou ter de providenciar outra fonte de energia vital.
Belzebu pressionou o programador contra a parede.
- Esta também é a sua última chance, Myishi. Sabe disso, não sabe?
O oriental fez que sim com a cabeça. Impressionante como a presunção de uma pessoa desce pelo ralo nos momentos de aperto.
- Se toda essa sua tecnologia não bastar pra trazer de volta uma única almazinha - continuou Belzebu -, acho que teremos de trocar você por um modelo mais novo. Fazer um upgrade, como você mesmo diria.
Belzebu deu um risinho de satisfação. Adorava virar a mesa. Com um toque de humor negro, claro. Coisa de demônio. Myishi, por sua vez, pensou em dizer algum impropério na sua língua nativa, mas acabou desistindo. Belzebu era capaz de ler as mentes mais fracas; talvez falasse japonês também.
- Fique tranqüilo, Belzebu-san. Fique tranqüilo.
- Ótimo - retrucou o Número Dois, mostrando a língua bipartida entre as presas.
O programador deu um suspiro de desânimo. Teria de voltar a trabalhar no cérebro repugnante daquela criatura híbrida. Era como se alguém pedisse a Michelangelo para fazer um desenho com uma caneta esferográfica.

 

 

 

 

CAPÍTULO 9

A PARTE TRISTE

MEG OLHAVA para os próprios dedos, ou melhor, para a aura que tremeluzia ao redor deles. Vermelho, azul, vermelho, azul. Ou, aos olhos de Meg, roxo. No entanto, a intensidade diminuía à medida que a força vital dela se dissipava. Pensar em BURACO ou CADEIRA era cada vez mais difícil, e flutuar também já não era tão fácil quanto antes. Meg se lembrou do que havia dito Flit, o ácaro do túnel: "Tempo passando, tique-tique-taque".
- Sabe qual é o problema? - perguntou ela a Lowrie, que se esforçava ao máximo para tirar uma soneca - uma tarefa quase impossível com um espírito sempre alerta rondando pelo quarto.
- Este hotel custa quarenta libras por noite, sabia? - retrucou ele, impaciente, apoiando-se num dos cotovelos.
- Então por que desperdiçar o seu dinheiro dormindo? Fique acordado e converse comigo.
Lowrie suspirou. Talvez devesse se dar por satisfeito: ela o havia deixado em paz por seis horas inteiras.
- Está bem, está bem. Estou acordado. O que foi?
- O problema? Você quer saber qual é o problema? Lowrie revirou os olhos.
- É, o problema! E você vai ter de ser mais específica. Afinal, problema é o que não falta pra nós dois. Eu, com os meus dias contados; você, com a sua condição de fantasma...
- Não, não - interrompeu Meg. - Estou falando do problema da sua lista.
- O que tem a minha lista?
- Acontece que minha missão é ajudar você, pra que a minha aura fique azul.
- Certo. Até aí tudo bem.
- Mas essas coisas que a gente tem feito até agora, bem, nenhuma delas é exatamente legal. Então...
- Entendi - disse Lowrie. - As ações propriamente ditas estão anulando as suas boas intenções.
- Na mosca. Além disso, meu prazo está acabando. E com você roncando durante a metade do tempo...
- Nós, as múmias, precisamos dormir, sabia?
- Eu sei. Mas eu poderia entrar na sua cabeça enquanto você está dormindo.
- Acontece que, com isso, você gastaria ainda mais energia. De um jeito ou de outro, você sai perdendo. - Lowrie buscou o paletó que secava sobre o aquecedor do quarto e tirou do bolso o papel amarfanhado em que tinha feito sua lista. - É... Acho que você não vai gostar nem um pouquinho do terceiro item.
- Desembucha. Qual é a roubada da vez?
Lowrie respirou fundo.
- É... é... - gaguejou ele, tateando os bolsos à procura dos óculos.
- Deixa de suspense, Lowrie! Foi você mesmo que escreveu essa porcaria de lista. Não vá me dizer que já se esqueceu!
Lowrie estalou os dedos e disse:
- Ah, lembrei! O item número três da lista de Lowrie McCall é...
- O quê, o quê?
- Bola furada!
- Deixa eu adivinhar. Você furou a bola de futebol de um amigo qualquer e agora, depois desses anos todos, quer dar uma bola nova pra ele. Depois vocês vão se abraçar e chorar e...
- Errado - interrompeu Lowrie, sem nenhum traço de humor na voz. - É um sujeito chamado Brendan Bola. Um valentão de nariz empinado. Quero dar um belo soco na cara dele.
- Você quer que eu vá pro inferno, é isso?
Meg ficou furiosa. Tinha gastado todo o seu latim explicando aquela teoria sobre as más ações que cancelavam as boas intenções, e agora o sem-noção queria que ela agredisse uma pessoa. Não uma pessoa qualquer, mas um velhinho aposentado como ele próprio. Um pobre coitado que não podia vê-la nem ouvi-la. Isso seria a danação, não restava dúvida. Um único soco e a aura dela ficaria mais vermelha que uma lagosta jogada na panela de água quente.
- Não se preocupe - disse Lowrie. - O último item é totalmente legal. E correto também.
Aquilo não ajudou muito a acalmar Meg.
- O último item? Depois do terceiro, o mais provável é que eu não esteja mais aqui pra ajudar com item algum! Um segundo depois que seu punho acertar o queixo do tal sujeito, já vou estar rodopiando naquele túnel vermelho, com um garfo espetado nas costas!
- Olha, Meg, raciocina comigo: se você voltou pra me ajudar, então é isso que você tem de fazer, seja lá o que for.
Meg pensou naquilo por alguns instantes e disse:
- Pra você é fácil dizer, né? Não é a sua alma imortal que está em jogo!
- Ora, Meg... - disse Lowrie, suspirando.
Meg observou-o atentamente. Honestidade e decência emanavam do rosto dele como um bando de borboletas brancas. Foi quando se decidiu, deixando-se levar por uma intuição - uma intuição que por ora ela guardaria para si, mas que, mais tarde, caso se comprovasse, resultaria numa interminável sessão de "eu lhe disse, eu lhe disse".
- Está bem. Vou ajudar.
Lowrie ficou imediatamente desconfiado.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Humm... - resmungou o velho, ainda mais desconfiado do que antes.
Mas ele sabia que, em se tratando daquele projeto de fantasminha camarada, o melhor a fazer era se dar por satisfeito com as vitórias conquistadas, ainda que elas não durassem por muito tempo.

¶¶¶

Eles fecharam a conta do hotel e pegaram um ônibus para a estação Heuston. Na verdade, arrastaram-se para dentro do ônibus, uma vez que o pé de Lowrie ainda não havia parado de latejar, e Meg, preocupada em conservar o pouco de energia que ainda lhe restava, havia preferido andar, em vez de flutuar com a mesma lepidez de antes.
O ônibus estava lotado; no entanto, por mais que fizesse cara de coitadinho da terceira idade, Lowrie estava elegante demais em seu terno novo para que alguém lhe oferecesse o assento. E, para complicar as coisas, logo foi reconhecido. Uma vovozinha sorridente, com uma enorme cabeleira roxa, afastou-se de um grupo de amigas igualmente sorridentes e abriu caminho pelo corredor.
- É você, não é?
Uma pergunta um tanto esquisita. Lowrie não tinha outra escolha senão confessar:
- Sim, sou eu.
A mulher virou o rosto e, com um vozeirão de dar inveja a um sargento do exército, berrou para as amigas:
- É ele, sim, eu não disse?
- É isso aí, Florence! - gritou uma das amigas de volta. - Manda brasa!
A vovozinha de cabelos roxos virou-se novamente para Lowrie - a essa altura assustadíssimo - e disse:
- E então, você vai me beijar ou não vai? Lowrie engoliu a seco.
- Não era esse o meu plano, senhorita.
- Ora, ora, quanta finura! Senhorita... Até parece o James Bond. Só que mais feio.
- Muito obrigado - respondeu Lowrie, sem saber ao certo se recebera um elogio ou não.
- E então? Não é isso que você faz? Não é você que anda por aí roubando beijos das mulheres... maduras?
Florence fechou os olhos e fez um beicinho com os lábios pintados de rosa.
- Anda, beija! - incentivou Meg, segurando a gargalhada. Lowrie olhou para ela com uma expressão de desespero.
- Socorro! - disse ele, apenas com os lábios. Mas o socorro veio de outra pessoa.
- Estação Heuston! - anunciou o motorista do ônibus, abrindo as portas automáticas.
Lowrie aproveitou a oportunidade e escapuliu pela porta de trás.
- Minha parada, senhorita! - berrou ele, já na segurança da rua. - Até mais ver! Adieu!
Florence só faltou derreter com a despedida em francês. A essa altura ela beijava a janela do ônibus, borrando o vidro de batom cor-de-rosa. Lowrie, por sua vez, escondia uma careta de alívio sob um falso sorriso e acenava para o ônibus, que acabara de seguir viagem.
- Que história é essa afinal? - perguntou Meg.
- Sei lá. Nunca vi essa maluca na vida.
- Não é dela que estou falando. Que história é essa de "senhorita" e "adieu"?
- Como assim? - retrucou Lowrie, ignorando o olhar curioso dos pedestres.
- Bem - continuou Meg -, o Lowrie McCall que eu conheço nem sabe o que é romantismo. É um velho ranzinza que não faz outra coisa senão reclamar da vida!
Lowrie fez o que pôde para conter o sorriso. Em vão. Seus lábios pareciam ter vontade própria.
- Por acaso está sorrindo? Não acredito! Acho que vou desmaiar de tanto susto!
- Ah, fecha a matraca! Desculpe... não estou falando com o senhor - explicou Lowrie a um pedestre.
Apesar das palavras duras, ele continuava a sorrir. Meg tinha razão. Lowrie estava se transformando numa nova pessoa. Na pessoa que poderia ter sido.
Não havia nenhum vagão vazio no trem com direção ao sul. Talvez por causa de uma corrida que se realizaria na cidade de Wexford. Assim, os dois parceiros se viram momentaneamente obrigados a suspender as comunicações. Isto é, Lowrie se viu obrigado a ficar de bico calado.
Para Meg, seria impossível. Ficar ali, sem dizer nada. Ela era uma adolescente, ora bolas! Fruto da geração MTV. Precisava de diversão.
- Pensa nele - sussurrou ela.
- Nele quem? - perguntou Lowrie.
- No tal sujeito. O valentão de nariz empinado. Vai, pensa nele.
Lowrie tapou os ouvidos para se proteger.
- Deixa disso, Lowrie. Não vou entrar na sua cabeça. Já consigo ler a maioria dos seus pensamentos. Quer dizer, mais ou menos. É como se eu tivesse uma televisão velha na minha frente, com a imagem muito ruim. Mas se você firmar o pensamento...
Lowrie fechou os olhos e se concentrou. Uma imagem tênue e trêmula surgiu acima da cabeça dele. A imagem de Cicely Ward.
- Não é nela que eu pedi pra você pensar, seu Romeu de meia-tigela! Você não pensa em outra coisa, não é mesmo?
Lowrie se desculpou com um sorriso e tentou novamente.
Outra imagem apareceu. Uma imagem sombria, repleta de más recordações. Os objetos ao fundo mesclavam-se uns aos outros. Mas as pessoas não. Essas eram sólidas e muito nítidas. Figuras do passado, afiadas como lâminas.
Era um jeito estranho de se contar uma história: por meio do olhar, e não da voz do contador. Como se fosse um filme sobre a vida do próprio câmera. Meg, no entanto, logo se acostumou. Estava hipnotizada, interessadíssima naquele episódio tão importante na formação do jovem Lowrie McCall. Se estivesse olhando para o rosto do parceiro, e não para a imagem transmitida, teria visto as rugas de estresse que atravessavam a testa dele. Uma história difícil de contar. Mas que agora vazava do cérebro de Lowrie como se tivesse acontecido no dia anterior.

¶¶¶

Lá pelos quinze anos eu já sabia me proteger melhor. Caipiras como eu não sobreviveriam em Westgate sem desenvolver uma espécie de carapaça. Ou isso, ou ser mandado de volta para a casa dos pais num carrinho de mão, babando. Como acontecera a Sod Kelly e Mikser French. Dois fazendeiros parrudos, reduzidos a duas amebas choronas, depois de anos de intimidação. Não que alguém tivesse encostado a mão neles. Há outros tipos, mais sutis, de intimidação.
Sempre me disseram que os valentões são gente ignorante. Grandes sacos de estrume com rabanetes no lugar da cabeça. Acabei descobrindo que isso não é necessariamente verdade. A versão urbana do valentão é alguém que considera a si mesmo muito inteligente e sofisticado, que se vale do sarcasmo e da humilhação pública para manter os caipiras do interior em seu devido lugar.
Brendan Bola era um exemplo perfeito dessa espécie. Qualquer pessoa com um sobrenome desses teria um apelido - como Bola Murcha, ou algo parecido. Mas Brendan, não. Era popular demais para ter um apelido. Popular e perigoso.
Por algum motivo, Brendan havia adquirido um interesse especial por mim. Talvez não tivesse conseguido digerir minha sobrevivência na escola depois do incidente em Groke Park. Ele tinha perdido diversos amigos por causa da expulsão em massa. E olha que nem gostava de futebol; Brendan Bola odiava suar. Achava muito mais divertido ficar nas laterais do campo, gritando comentários maldosos para os jogadores.
Durante anos tive de engolir esse sapo. Simplesmente baixava a cabeça e seguia adiante. Palavras, eu dizia a mim mesmo, são só palavras. Nada que eu não pudesse suportar. No entanto, por volta dos meus quinze anos, comecei a crescer, a espichar feito vara de bambu. De uma hora para outra eu estava diante do nariz de Brendan Bola, e não alguns centímetros abaixo dele.
As coisas começaram a mudar para o meu lado. O ressentimento dos meus colegas já não era mais o mesmo depois que comecei a marcar gol atrás de gol no intercolegial de futebol. E quando Bola passava por mim e dizia suas idiotices, eu deixava que elas entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro.
Eu poderia muito bem ter parado por aí. Mas não. Fiquei convencido demais. Uma das coisas que o destino nunca deixa barato.
Estava a caminho do vestiário, brincando com a bola nos pés, quando você-já-sabe-quem apareceu no corredor. Brendan e sua gangue. Algumas vitórias recentes haviam dado um incentivo adicional à minha autoconfiança. Assim, não baixei os olhos nem me esgueirei contra a parede como costumava fazer. Abri meu melhor sorriso e, rodopiando a bola na ponta do indicador, fitei cada um deles diretamente nos olhos.
Brendan não gostou nem um pouco disso. Era como se eu fosse um perdigueiro que tivesse rosnado para o próprio dono. De início, ele ficou meio desconcertado, sem saber ao certo como agir. Mas, com os cachorrinhos de estimação babando nas canelas dele, não teve outra escolha senão fazer o comentário de sempre.
- E aí, caipira. Dois já foram embora. Só falta você.
Nesse instante percebi que Brendan não era tão seguro quanto parecia ser. Já tinha visto aquela expressão hesitante nos campos de futebol - no olhar dos goleiros que não sabiam direito se deviam sair da pequena área ou permanecer sob as traves.
Foi então que resolvi fingir que ia jogar a bola nele - o tipo de coisa que a gente faz um milhão de vezes quando está entre amigos. Mas Bola não era exatamente meu amigo. Fingi jogar a bola, e ele recuou assustado.
"E daí?", você poderia dizer. "Todo mundo se assusta!" Verdade. Mas não o Bola, que jamais se assustava com nada. Ser pego assim, de surpresa, e ainda por cima por um caipira, talvez fosse a pior coisa que já tivesse acontecido em toda a sua vidinha curta e mimada.
Foram necessários dois dias para que o fogo nas bochechas dele se transformasse em gelo. Só depois ele começou a planejar sua vingança.
Eu, pateta que era, tinha achado que havia enfrentado o valentão da escola e que jamais seria perturbado outra vez. Burrice, burrice, burrice.
O terreno do colégio de Westgate estendia-se para além do campo de futebol, atravessava um prado amplo e acabava à margem do rio Liffey. Todo verão um fazendeiro aparecia com um tratorzinho e, por uma pequena quantia, recebia permissão para cortar o feno.
Naturalmente, os alunos não tinham autorização para se aventurar junto ao rio depois do anoitecer. A exceção era a semana seguinte aos exames de junho. Nesse curto período, vigorava uma espécie de lei informal segundo a qual os alunos do último ano podiam se reunir por ali para fumar um cigarrinho à luz do luar. Somente os alunos do último ano. Tecnicamente ilegal. Mas os diretores faziam vista grossa.
Eu jamais deveria ter ido até lá. Meus únicos aliados, os companheiros de equipe, haviam permanecido em Roscommon depois de um amistoso. Eu deveria ter ficado no dormitório, acalentando o ombro machucado que me deixara fora do jogo e contando as horas até o momento de voltar para casa.
Mas pensei que somente os internos estariam lá no rio. Brendan e sua turma certamente já estariam em casa, pendurados na barra da saia de suas respectivas mamães. Portanto, apertei as bandagens em torno do ombro, passei um pente na cabeleira e lá fui eu.
Estava vestido de camiseta, com um suéter de tricô amarrado à cintura. O nó era do tamanho de uma bola de futebol. Até hoje me lembro daquele suéter. Era o alvo predileto dos garotos da cidade. Segundo eles, minha mãe havia matado um cordeirinho inocente e arrancado a lã dele pelos cascos.
Os meninos estavam à beira do rio, soprando fumaça sob a luz azulada da noite ou arremessando pedras na água, o mais longe que podiam. Catei algumas pedrinhas e juntei-me ao grupo. Para os jovens de hoje, aos quais não faltam opções de diversão, tudo isso pode parecer bobo. Mas para nós, sentar à beira do rio, sem absolutamente nada para fazer, ouvindo o rock'n'roll que o vento trazia da cidade, era o máximo.
Dali a pouco chegou o Bola. E, como sempre, estava acompanhado. Os lambe-botas pairavam ao redor dele como planetas em torno do sol. Aquela gente não devia estar ali. Os não-internos eram proibidos de entrar no colégio fora do período de aulas, da mesma forma que os internos eram proibidos de sair. Mas Brendan tinha uma pendenga a resolver e, na companhia de seus cachorrinhos, tinha cruzado o rio por uma barragem mais adiante.
Baixei o rosto entre as mãos, na esperança de que eu não tivesse nada a ver com aquilo. Talvez houvesse outro motivo para eles voltarem ao colégio. O que eu havia feito, afinal? Nada. Apenas fingido jogar uma bola.
Senti quando eles pararam na minha frente. Os risinhos foram se dissipando aos poucos, como se tivesse chegado a hora do espetáculo. Com certeza, um grande espetáculo. Brendan Bola não costumava se expor apenas para dar um susto num desafeto.
Como era de se esperar, foi Brendan quem falou primeiro.
- Boas noites, senhor McCall. E como vão as coisas na comunidade agrícola?
Os garotos não costumavam dizer coisas como "comunidade agrícola"; era estranho. Brendan, sim. Ele falava como aqueles sujeitos que liam as notícias no cinema, antes de o filme começar.
Não respondi. Aquela não era uma pergunta de verdade. Eu sabia que, não importava o que eu dissesse, daria a ele algum motivo para invocar comigo.
Brendan chutou meu pé.
- E então? Como vai a vida naquela sua caverninha sórdida?
Eu nem sabia o que significava "sórdida". Mas até hoje lembro que foi essa a palavra que ele usou.
- Sua mãe tem depenado muitos cordeirinhos?
A risada foi geral. Depenar cordeirinhos, ha, ha, ha. Agora, sim, eu tinha de falar alguma coisa. Mãe é coisa sagrada. Então resolvi ficar de pé, o que me daria uma chance melhor de fugir - ou de atacar.
- Não sou fazendeiro, Brendan. Não moro numa caverna. E minha mãe não depena cordeiro nenhum.
- É mesmo?
- É.
Eles haviam formado um semicírculo à minha frente, olhos brilhando na penumbra. Percebi que haviam bebido. Já tinha visto aquele tipo de olhar antes, em Newford, minha cidade natal. Lá, como em toda cidadezinha do interior, havia um bêbado que vivia andando pelas ruas. Sempre que enchia a cara, o sujeito resolvia acertar as contas do passado. E pelo visto era isso que Brendan pretendia fazer também.
- Acontece, McCall, que não interessa onde você mora, nem o que a sua mãe faz. Um caipira é um caipira, e ponto final.
Meu dever era dar uma resposta qualquer, muito embora ninguém tivesse perguntado nada. Trocar insultos é como jogar uma partida de tênis, e Brendan havia mandado a bola para o meu lado da quadra. O problema era que... bem, eu não queria jogar. Então resolvi experimentar a tática de encarar o adversário com um olhar fulminante, uma tática que funcionava muito bem no futebol. Acontece que, no campo, as coisas são mais ou menos equilibradas. Mas ali, na beira do rio, eram dez contra um. Encarar o Bola daquela maneira só o irritava ainda mais.
- O que houve, fazendeiro? O gato comeu sua língua? Ou será que foi a vaca?
Fiquei absolutamente mudo. O que quer que eu dissesse, Bola encontraria um jeito de distorcer as palavras e me deixar com cara de tacho.
- O problema, McCall, é que você tem ficado muito abusado ultimamente. Petulante. Insubordinado.
"Petulante", "insubordinado", que espécie de adolescente tinha coragem de dizer essas coisas?
Um grupo de garotas havia se reunido do outro lado do rio. Debruçadas na cerca, elas riam e acenavam. Brendan acenou de volta, como um pavão. Outra ala do fã-clube dele. Presentes ali para testemunhar a humilhação do bolsista.
- Portanto - continuou Brendan, falando um pouquinho mais alto para ser ouvido de longe -, de agora em diante, gostaria que você me chamasse de "senhor".
Mal acreditando no que acabara de ouvir, bufei violentamente pelas narinas. Estava tão preocupado em manter a boca fechada que acabei me descuidando do nariz.
Brendan ficou vermelho de raiva.
- Algum problema, fazendeiro?
Fiquei parado como uma estátua. Sequer pisquei os olhos.
- Eu perguntei se tem algum problema!
Não disse nem que sim, nem que não. Simplesmente sacudi os ombros, num gesto vago.
Mas para Brendan era como se eu tivesse dito "não".
- Ótimo. Então diz. Quero ouvir. Aquilo já estava indo longe demais.
- Diga apenas: "Não tem problema nenhum, senhor". Foi aí que, burramente, resolvi abrir o bico.
- Poxa, Brendan, não precisa me chamar de "senhor". Os grilos cantavam no mato, mas sou capaz de jurar que até eles se calaram naquele momento. Porém, o silêncio não durou muito. A desvantagem de você ser o valentão da turma é que mesmo os seus amigos torcem secretamente pela sua derrocada. As garotas junto à cerca davam gargalhadas, batiam palmas e assoviavam.
- É isso aí, garoto! - berravam. - Dê uma lição nele!
Deduzi que o tal garoto era eu.
Brendan aparentemente deduziu a mesma coisa, pois, num piscar de olhos, deixou de lado toda aquela pose de playboy e transformou-se num simples moleque de rua. Sem mesmo se dar conta do que estava fazendo, fechou a mão e acertou minha boca com um soco. Doeu um pouco, mas não foi nada demais. Eu já tinha tomado socos muito piores na vida.
Em seguida, ele olhou surpreso para a própria mão, como se tivesse sido traído por ela. Tinha perdido a pose, e ainda por cima na frente dos amigos.
Aproveitar-se de uma confusão é a estratégia predileta de um jogador de futebol. Foi isso que resolvi fazer. Plantei as mãos no peito do falastrão e empurrei-o o mais forte que pude. Brendan caiu com o traseiro no chão e escorregou na direção do rio. Vexame total.
Em questão de segundos, a turma dele partiu para cima de mim com a rapidez de um bando de perdigueiros atrás de uma raposa. Não eram lá muito fortes; nunca tinham trabalhado na vida. Mas eram vários e rapidamente me imobilizaram na margem lamacenta do rio.
As meninas ainda riam do outro lado da cerca, como se estivessem assistindo a uma peça de teatro ou a um filme.
Brendan subiu a encosta do rio, limpando a lama do paletó. Não parecia feliz.
- Peça pra eu mandar eles soltarem você - disse, engolindo a própria raiva diante da platéia.
- O quê?
- Você quer se levantar? Timidamente, fiz que sim com a cabeça.
- Então vai ter que pedir. Que história era aquela agora?
- Está bem, então. Me deixa levantar.
- Não, não, não, não - disse Brendan. - Vai ter de pedir direito.
- Por favor me deixa levantar.
- Não foi assim que ensinei, fazendeiro. Vai ter de me chamar de "senhor".
Então era isso. Ele ainda não havia desistido daquela história de "senhor".
- Vai se catar, Brendan!
Quase dava para ver a confusão que se instalara na cabeça dele. Brendan vinha mandando e desmandando naquela escola pelos últimos 16 anos. E lá estava eu, um caipira do interior, encarando ele - metaforicamente, claro. E ainda por cima na frente das meninas. Ele pisou com o sapato enlameado no meu peito e disse:
- Anda, McCall, diz!
- É mais fácil uma vaca cuspir, Brendan!
Aquela foi boa. Minha mãe sempre dizia isso quando papai pedia a ela para trazer o carvão para dentro de casa.
- Estou avisando, McCall. Você vai levar a surra da sua vida. Eu tive de rir. Todo mundo que estudava naquele colégio estava acostumado às surras dos padres. Mais uma, menos uma, não faria a menor diferença.
Brendan aparentemente leu meus pensamentos. Sabia que eu não estava nem um pouco preocupado com umas pancadas a mais. Precisava, portanto, encontrar numa nova estratégia. Ajoelhou-se no chão e falou no meu ouvido:
- Escuta bem, fazendeiro. Se você não me chamar de "senhor" agora mesmo, a gente vai arrancar as suas calças e jogar você dentro do rio!
Quase ri de novo, mas então me lembrei das garotas. Debruçadas na cerca, doidas por uma diversão. Só de pensar nelas fiquei vermelho de vergonha.
Eles tinham vencido. E Brendan sentia isso.
- Só depende de você - disse ele. - Pessoalmente, prefiro que você recuse.
Para nós, do interior, a coisa é bem diferente. Pelo menos era naquele tempo. A gente não tinha muita intimidade com as garotas. Nem a fala mansa dos dublinenses. Para mim, chamar uma garota para dançar já era um suplício. Cair de cueca no rio na frente delas, então, nem se fala.
- Me solta! - rosnei.
Fiz o que pude para parecer ameaçador, mas o meu desespero estava mais que evidente.
- Faltou só uma palavrinha, fazendeiro.
O que seria pior, a palavrinha ou o rio? Eu tinha de escolher, então escolhi. Hoje acho que fiz a escolha errada. Hoje e ao longo dos últimos cinqüenta anos.
- Me solta... senhor.
As gargalhadas ainda ecoam na minha cabeça.

¶¶¶

A imagem sobre a cabeça de Lowrie se dissolveu numa nuvem de luz colorida.
- Você nunca pensou em enterrar essa lembrança e seguir em frente com a sua vida? - perguntou Meg. - Virar a página e pronto?
Lowrie crispava os lábios como uma criancinha emburrada. Vinha alimentando aquela mágoa por cinqüenta e três anos e não seria agora que ia mudar.
- Tudo isso aconteceu há séculos, caramba. Antes da invenção de um monte de coisas modernas.
Lowrie não disse nada. Não podia, estava cercado de passageiros. Mas também não precisava. Lia-se na testa dele o que tinha na cabeça.
- Está bem, está bem - suspirou Meg. - Vou fechar o bico e cumprir com a minha obrigação. Mas, antes, gostaria de deixar uma reclamação oficialmente registrada, caso alguém lá em cima esteja ouvindo. Não costumo dar trela a velhos rancorosos; estou apenas cumprindo ordens.
Meg percebia que a estratégia estava funcionando. Lowrie sentia-se cada vez mais constrangido com seu terceiro desejo. O problema era que não estava disposto a dar o braço a torcer. Pelo menos por ora. Sem problema. Ela ainda tinha muitas horas para encher a paciência dele.

 

 

 

 


CAPÍTULO 10

BOLA FURADA

ELES FORAM de trem até a cidadezinha portuária de Rosslare. Durante os dozes meses do ano, o lugar fervilhava de americanos em busca de suas raízes, de turistas holandeses à procura de colinas para escalar, de místicos da Nova Era à caça de duendes e elfos. Em meio a essa fauna, um homem falando sozinho era o máximo da normalidade.
- A gente podia ter vindo pra cá antes, né? - reclamou Meg. - Rosslare está a um pulo de Newford. Lembra de Newford? A cidade onde você mora?
- Eu sei, eu sei - retrucou Lowrie. - É que eu tive de estabelecer prioridades pra minha lista. Caso eu...
- Caso você o quê?
- Caso eu... bem, caso eu não tivesse tempo suficiente.
- Ah.
Eles andaram em silêncio por um tempo. Depois Meg ficou curiosa e perguntou:
- Como você sabe onde esse cara mora? Por acaso andou espionando ele estes anos todos?
Lowrie fez que não com a cabeça.
- Nada disso. É que o rosto do sujeito apareceu no jornal alguns anos atrás. Depois de uma carreira eminente na cidade, Brendan se aposentou e veio morar aqui. Comprou um chalé famoso, que pertencia à avó de James Joyce.
- Eminente? O que significa isso?
- Não interessa. Você pergunta demais.
- Ih... Cadê aquele outro Lowrie? Aquele que dizia "senhorita" e coisinhas em francês?
- Desculpa - disse o velho. - Só de pensar naquele camarada, meu sangue começa a ferver.
- Sei como é - disse Meg, vendo o rosto de Franco diante de si.
Bem, eles tinham uma missão a cumprir. Caminharam até os confins da cidade, passando por uma sucessão quase interminável de pousadas e albergues. O sol da tarde esforçava-se para abrir caminho entre as nuvens cinzentas. Como aquele hotelzinho do filme Psicose, o chalé de Brendan Bola empoleirava-se no topo de uma colina.
- Puxa, esse lugar é de dar medo... - comentou Meg.
- Medo? - brincou Lowrie. - Que espécie de fantasma é você?
- Daqueles que não gostam de andar por aí, dando soco na cara de quem não conhecem. - Meg achou que era hora de cutucar a onça mais um pouquinho. - Por falar nisso, você acha melhor só quebrar o nariz dele com um direto ou acrescentar uns chutes no estômago depois que ele cair?
- Tanto faz.
- Ou quem sabe uma chave de braço até ele começar a chorar?
Lowrie já estava ficando meio vermelho.
- Sei lá! Você é que sabe. Afinal, a delinqüente aqui é você, não eu!
Meg abafou um risinho de satisfação. Pelo visto, seu plano estava dando certo.
Uma escada íngreme, de mosaico de pedras, conduzia até o chalé. Lowrie subia os degraus pausadamente. Começava a suar no alto da careca.
- Quer desistir? - perguntou Meg, inocente. Lowrie limpou com as mãos o suor que se acumulara nas rugas em torno dos olhos.
- Não, não quero.
- Tem certeza?
- Tenho!
Lowrie respirou fundo e procurou se acalmar. Seria uma vergonha danada se tivesse um infarto ali mesmo, na escada de Brendan Bola.
- Olha, Meg - disse ele -, a idéia é a seguinte: eu entro, digo meu nome, menciono aquela história da beira do rio e mando o canalha me chamar de "senhor". Quando ele se recusar, e é claro que vai se recusar, você entra no meu corpo e faz picadinho do nariz empinado do metido.
- Entendido, capitão. Só espero não matar o metido.
- Matar? - disse Lowrie, assustado.
- A gente nunca sabe. Não sei como anda minha força hoje em dia.
- Não vim aqui pra matar ninguém.
- Até que não era má idéia, viu? Depois de tudo que ele fez com você...
- Não vá fazer nenhuma besteira, menina. Um soco na cara, e pronto. Não é pra matar, aleijar, nem provocar um derrame em ninguém.
- Vou tentar. Mas não posso prometer nada.
Lowrie continuou a subir, porém um tantinho mais hesitante do que antes. Um turbilhão de emoções diferentes nublava seu espírito. De um lado, medo e dúvida; de outro, ódio e ressentimento. Uma mistura explosiva.
A porta era de alumínio, destoantes das pedras antigas do chalé, corroídas pela maresia.
- Essa porta é a cara de Brendan - resmungou Lowrie. - Com certeza a porta original não era boa o bastante pra ele.
- Você vai passar o dia inteiro admirando a arquitetura, ou a gente vai liquidar esse assunto logo de uma vez?
Lowrie flexionou os dedos, hesitando em apertar a campainha.
- E então? - incitou Meg.
- Está bem, está bem. É que isso não é fácil pra mim. Meg sabia muito bem o que ele estava sentindo. Encarar os próprios demônios não é moleza. Especialmente quando um desses demônios é um misto de cachorro e gente, vindo das profundezas do inferno.
Lowrie levantou o dedo trêmulo na direção da campainha.
- Coragem, seu velho tonto - disse ele a si mesmo. - Ele é só um homem. Só um homem.
E então a porta se abriu. Lowrie recuou assustado, quase se esborrachando no chão de pedra.
- Muito elegante - comentou Meg.
- Pois não? - disse Brendan Bola, parado no vão da porta. - Quem é você?
Lowrie procurou recobrar a coragem, engolindo a seco quase meio século de rancor. Diz a ele, vai! Diz a ele!
Mas Lowrie não teve tempo de dizer nada. Tão logo colocou os óculos, foi o próprio Brendan quem disse:
- Santo Deus! Não pode ser... Lowrie McCall! Lowrie fez que sim com a cabeça, receando gaguejar ou perder a voz.
- Não acredito. Lowrie McCall. Puxa, vamos entrando... Brendan deu meia-volta e seguiu por um corredor, gesticulando para que Lowrie o seguisse.
- Nossa, que sujeito casca-grossa - ironizou Meg. - Convidar a pessoa pra entrar assim na casa dele... Que falta de educação, hein?
Cuspindo marimbondos na direção de Meg, Lowrie seguiu Brendan casa adentro até chegar numa sala de visitas. Muita madeira encerada e muito vidro.
- Veja só que coincidência! - disse Brendan, apontando para o aparelho de televisão. - Eu estava justamente vendo você nesse vídeo. - A imagem de Lowrie encontrava-se congelada na tela. - Vamos sentando, por favor. Quer beber alguma coisa?
Lowrie derramou-se numa antiga poltrona de couro. Teria feito aquilo mesmo que Brendan não o tivesse convidado a sentar, pois já não se agüentava mais nas próprias pernas.
- Eu gostaria de um... copo d'água, se não for incômodo.
- Incômodo nenhum, amigão!
Lowrie mal acreditou no que ouviu. Amigão?
- Volto num segundo - disse Brendan.
E lá foi ele para a cozinha, com a lepidez de um coelho ligeiramente reumático.
- Eu gostaria de um copo d'água, se não for incômodo - repetiu Meg, em tom zombeteiro. - Que espécie de vingança é essa, afinal?
- Ele me pegou de surpresa, só isso - explicou Lowrie, exausto.
- Você estava esperando um garoto de dezesseis anos, é isso?
- Claro que não. Eu estava esperando...
Lowrie não soube o que dizer. Sua companheira do além tinha razão. Ele de fato tinha esperado um garoto de dezesseis anos. Não de corpo e rosto, claro, mas de atitude. Nem por um segundo passara pela cabeça dele a possibilidade de ser reconhecido - e muito menos de ser convidado a entrar.
Brendan voltou à sala. Equilibrava uma bandeja com um pratinho de bolo sobre uma jarra com água.
- Senhor Bola... - Lowrie começou a dizer.
- Não, não. Nenhuma palavra até você descansar um pouquinho. Seu rosto está vermelho como uma beterraba, e nessa idade a gente precisa tomar certos cuidados. - Brendan bateu no peito e emendou: - Estou falando por experiência própria.
Lowrie assentiu com a cabeça e recebeu o copo de cristal com água gelada. Bebeu todo o conteúdo antes de dizer:
- Problemas de coração?
- É. Três pontes de safena no ano passado. Quase fui dessa pra melhor. Um baita susto.
- É, eu sei.
- Você também?
- Infelizmente, sim. Preciso de um doador, mas sou o último da fila.
Brendan parecia sinceramente abalado.
- Puxa, mas isso é terrível. Quem sabe, se eu mexer uns pauzinhos...
Lowrie fez que não com a cabeça.
- Não precisa. De qualquer forma, muito obrigado, senh...
- Por favor, me chame de Brendan.
- Muito obrigado, Brendan. Além de mim, há três pessoas de sangue AB negativo esperando para fazer a cirurgia na Irlanda. Todos eles são jovens.
- Entendo.
Ambos ficaram calados por um instante. Problemas cardíacos nunca rendem uma boa conversa.
- Estou muito feliz com a sua visita, Lowrie - disse Brendan por fim. - Faz tempo que tenho pensado em procurá-lo.
- É mesmo?
- É. - Brendan respirou fundo. - Tenho pensado em muitas coisas desde a operação. Coisas do passado.
Lowrie ficou pasmo. Aquilo era demais. Ele e Brendan encontravam-se em situações muito semelhantes. Seria possível que ambos tivessem mudado tanto assim?
- Coisas que fiz e não devia ter feito - continuou o anfitrião, olhando fixamente para os próprios pés - e coisas que não fiz e devia ter feito. - Brendan passou um dedo fino sobre o aro dos óculos. - Sabe, Lowrie, tudo isso tem me perturbado muito. Preciso fazer alguma coisa pra corrigir os meus erros.
- Brendan, você não precisa...
- Não, Lowrie, por favor me escute. Na cama daquele hospital, prometi uma coisa a mim mesmo: se saísse vivo de lá, procuraria todas as pessoas com quem precisava acertar os ponteiros. E você é uma delas.
Só há uma palavra para descrever isto, pensou Lowrie. Sincronia.
- Houve um episódio muitos anos atrás - continuou Brendan. - Você provavelmente nem se lembra.
- Eu não apostaria nisso - sussurrou Meg.
Lowrie estava tão entretido que sequer ouviu o que ela disse.
- Na juventude, eu era uma peste. A gente se diverte muito, claro, mas também tem os seus momentos ruins. Só que a nossa tendência é apagar esses momentos ruins da lembrança.
Lowrie moveu a cabeça em sinal de concordância, embora não tivesse apagado nada da própria lembrança.
- Eu me lembro de uma noite de verão, no nosso último ano de colégio. Nessa noite eu... eu... coloquei você numa situação muito humilhante. Na frente de diversas pessoas. Obriguei você a me chamar de "senhor". Você nem calcula quantas noites fiquei sem dormir, só pensando nessa minha estupidez. Será que um dia você vai ser capaz de me perdoar?
- Quer que eu acerte ele agora, quer? - perguntou Meg.
- Não! - berrou Lowrie.
- Eu entendo - disse Brendan, pesaroso. - Não precisa explicar.
- Não, Brendan, o que eu quis dizer é que... bem, você não precisa se desculpar. Essa história aconteceu séculos atrás. Quase nem me lembro.
- Mentiroso, cara-de-pau! - disse Meg, rindo.
- Fico feliz em ouvir isso, Lowrie. Mas nós dois sabemos o quanto foi terrível aquela noite.
Lowrie refletiu um pouco, suspirou e disse:
- É, Brendan, você tem razão. Eu me lembro, sim. Foi uma noite terrível mesmo. Às vezes acho que esse episódio afetou minha vida inteira.
- Eu sabia - disse Brendan, baixando a cabeça entre as mãos trêmulas. - Você tem todo o direito de vir aqui me procurar. Pra se vingar, ou seja lá o que for. Eu entendo perfeitamente.
Lowrie tocou-o no ombro com carinho.
- Não vim aqui pra me vingar. Aquele incidente, na verdade, não teve importância nenhuma. Se me afetou de alguma forma, foi porque deixei que isso acontecesse. Vim aqui apenas pra... cumprimentar um velho amigo. Só isso.
Brendan espiou através dos dedos.
- Verdade?
- Verdade. Nós éramos praticamente crianças. E as crianças sempre fazem coisas assim, cruéis. Considere-se perdoado, Brendan. E agora que tal bebermos alguma coisa?
Brendan ficou de pé e abraçou-o afetuosamente. Se já não estivesse sentado, Lowrie teria caído de tanto susto.
- Muito obrigado, meu velho. Muito obrigado.
Em seguida, com um sorriso sincero nos lábios, Brendan saiu na direção da cozinha.
- Eu sabia - vangloriou-se Meg.
- Sabia o quê?
- Que você não ia bater nele.
- Você sabia?
- Sim, sabia. Você é um cara do bem. Bonzinho demais. Ninguém com uma aura tão azul como a sua sai por aí socando as pessoas.
- Bem, você viu tudo, não viu? Ele estava arrependido. De verdade. Eu não podia bater nele. Não seria correto.
Brendan voltou à sala com uma garrafa de conhaque e duas taças.
- A gente não devia beber - disse ele. - Não com essas nossas engrenagens velhas...
- Eu sei. Mas é só de vez em quando. Poxa, não é todo dia que a gente tem uma reunião de ex-colegas, não é verdade?
Brendan sentou-se e, por um instante, ficou sério outra vez.
- Sabe, Lowrie... Quando eu estava no hospital, ninguém foi lá me ver. Seis semanas de internação. E nenhuma visita. Você nem imagina o quanto me senti sozinho.
Lembrando-se do seu apartamentinho e dos anos que passara sentado diante de um aparelho de TV, Lowrie deu um bom gole no conhaque e disse:
- Imagino, sim, Brendan. Imagino, sim.

 

CAPÍTULO 11

UM DESEJO SOBRANDO

FRANCO KELLY havia resolvido o problema do controle remoto. Não que o controle da televisão estivesse quebrado, nada disso. O problema, na verdade, era abrir mão dos trocados dos cigarros para comprar pilhas novas.
De qualquer modo, Franco havia resolvido o problema, que também poderia ser descrito da seguinte maneira: o que fazer quando o controle remoto não funciona e você precisa trocar os canais?
Levantar da poltrona seria uma opção, porém um pouco extrema demais. Já era amolação suficiente ter de se levantar para buscar comida ou fazer pipi durante os intervalos comerciais.
Outra opção seria convencer um garoto da vizinhança a ficar parado ao lado da TV. Mas os garotos de hoje não são nada confiáveis, e os pais deles têm o péssimo hábito de chamá-los de volta justamente na hora dos noticiários, quando Franco mais precisa trocar os canais.
Assim, Franco chegou à conclusão de que, infelizmente, ele próprio teria de fazer algo a respeito. Entre outras coisas, teria de superar sua profunda aversão ao raciocínio e bolar um plano. Algo que deixasse seus críticos de queixo caído. Preguiçoso, eu? Essa gente vai ver.
Sua primeira idéia foi usar os dedos dos pés. Mas eles eram meio inchados e difíceis de controlar. E às vezes se agarravam aos botões por causa do suor. De volta à estaca zero.
A segunda idéia foi de uma simplicidade genial: arrastar a poltrona para perto do aparelho. Quase perfeito, porém os problemas não tardaram a surgir. Mesmo com a tela a alguns palmos de distância, Franco tinha de se inclinar para manipular os botões, que agora estavam com um leve cheirinho de queijo podre. Ele tentou colocar o aparelho ao lado da poltrona, mas o desconforto de virar o pescoço resultou em terríveis dores musculares. Puxa, que desafio! Seria possível que ele tivesse de abrir mão de seu único prazer na vida?
Por fim, com uma engenhosidade duramente conquistada ao longo de trinta anos de vagabundagem, Franco chegou à solução que procurava. Arrastou-se até o quarto, arrancou uma das portas do armário e colocou-a diante da poltrona, com o lado do espelho ligeiramente virado para o aparelho à sua esquerda. Coisa de gênio.
Agora, não só os alto-falantes apontavam para o ouvido que não era surdo, mas a natureza convexa do espelho significava que, para todos os efeitos e propósitos, ele agora era o feliz proprietário de uma televisão de cinqüenta polegadas. O paraíso. Ah, se ele também tivesse um penico...
A vida seria perfeita, não fossem aquelas duas, as Finn, mãe e filha. As cretinas tinham morrido. E ainda por cima no mesmo ano. Que ousadia! Como um homem poderia cuidar de si mesmo sem duas mulheres ao redor para pegar no pesado?
Não era exatamente a morte delas que o entristecia. Franco não pensava nas finadas como pessoas próximas e queridas; só como duas serviçais. A bem da verdade, a menina era um tanto imprestável; nos últimos tempos só fazia afrontá-lo. Mas a mãe, ah, essa sim. Cozinheira de mão-cheia. E muito trabalhadora também. Passava doze horas na locadora de vídeo e ainda encontrava forças para preparar o jantar. Não aquela gororoba de microondas, nada disso. Franco não comia congelados. Mas a criatura teve o desplante de atropelar um táxi, e justamente quando ele, Franco, começava a sentir dores na coluna. Certas pessoas não têm a menor consideração.

¶¶¶

Elph não estava nem um pouco impressionado.
- Achei que você estivesse no degrau mais baixo da escala evolutiva - comentou. - Agora vejo que estava enganado.
- Auuu - disse Belch, ainda meio atordoado depois da trombada com o bem total. Aparentemente, sua genética homo sapiens havia absorvido a maior parte da explosão, e agora ele era mais cachorro do que gente.
- Isto aqui é um pardieiro - resmungou Elph, enojado. - O tipo de lugar em que se poderia encontrar alguém... bem, alguém como você.
- Chega! - berrou Belch, reprimindo o impulso de triturar o holograma pixel por pixel. - Diz logo o que eu tenho de fazer, e pronto!
Elph acomodou-se acima da poltrona de Franco.
- Esta - disse ele, apontando um dedo 3D na direção da cabeça ensebada de Franco Kelly - é sua última chance. Um perfil psicológico da alma-alvo evidencia tendências obsessivas a...
Belch passou a língua sobre um dente canino recém-nascido. Um fiapo de baba ectoplásmica pendia do focinho dele.
Notando as transformações recentes, Elph achou por bem ir direto ao ponto.
- É bem provável que Meg Finn apareça por aqui. Belch achou que aquilo fazia sentido. Meg odiava Franco com todas as suas forças e, tão logo tivesse uma chance, voltaria ali para acertar suas contas com ele.
- E então? O que a gente faz agora?
Elph crispou os lábios eletrônicos em sinal de desgosto.
- Nós esperamos, meu caro. E tentamos ignorar o fedor deste lugar.

¶¶¶
- Uh, uh, ah, ah... - disse Lowrie, cantarolando. - Hk! - Você está bêbado! - comentou Meg, rindo da situação.
Era bom rir um pouco. Desde a explosão do tanque ela não tivera muitos motivos para rir.
- Bêbado, não - retrucou Lowrie, fazendo um sinal negativo com o dedo trêmulo. - Alegre. É muito diferente.
Eles estavam no trem novamente, seguindo para o norte, na direção de Dublin. Os outros passageiros haviam cedido a Lowrie um leito só para ele. O velhinho estava visivelmente alterado. Falava sozinho, e o bafo de álcool se fazia sentir à distância.
Evidentemente ele não havia usado os poderes sobrenaturais da sua fiel escudeira para se vingar de Brendan Bola. Pelo contrário: ignorara Meg por completo e esvaziara meia garrafa de conhaque na companhia do ex-colega. Na despedida, os dois velhinhos trocaram juras de eterna amizade e prometeram se encontrar novamente o mais breve possível. Se estivesse sóbrio, Lowrie jamais teria feito uma promessa dessas. Sabia que não poderia cumprir.
- Isso significa que temos um desejo sobrando - disse Meg.
- Hmm? - resmungou Lowrie.
Ele poderia ter dito "Como assim?" ou "Por quê?", mas daria muito trabalho.
- Ora, eu não soquei ninguém, portanto nós temos um desejo sobrando.
- Verrrdade... - disse ele, enrolando a língua. - Deeeesejo sobrando...
Agora Meg já não ria mais. Tinha uma idéia.
- Posso ficar com ele?
- Hein?
- Ficar com o seu desejo. Tem uma pessoa que anda precisando muito de uma boa bifa.
- Eu sei... - disse Lowrie, apertando os olhos e apontando com o indicador, num gesto acusatório. - Sei muito bem... o que a senhorita pretende fazer.
- Ah, sabe?
- Sei. Você quer socar o seu padastro... opa, padrasto.
- É. Isso mesmo. E, então, o que você diz?
- Vá em frente. Soque o sujeito. Não sou em quem vai impedir.
- Não posso - disse Meg, franzindo a testa. - Já tentei. Só posso ir aonde você vai.
Lowrie pensou no assunto. Ou melhor, tentou pensar, orientando-se vagamente na neblina que cobria sua capacidade de raciocinar. Por fim chegou a uma conclusão.
- Está bem - disse ele. - Mas com uma condição.
- Que condição? - perguntou Meg, embora já soubesse o que era.
- Quero saber o que ele fez. - Lowrie parecia sóbrio outra vez. - Quero saber o que ele fez pra que você fizesse aquilo com ele.
Meg suspirou. Ela nunca falava naquele assunto. Com ninguém.
- Não posso - disse ela, por fim. - Simplesmente não posso.
- Você não pode me mostrar? - sugeriu Lowrie, apontando para a própria cabeça.
- Humm... Talvez. Mas com esse seu coração fraco...
- Vou correr o risco.
- Tudo bem, então. Mas depois, se você tiver um treco e morrer, não vá me amolar lá em cima por causa disso, ouviu bem?
Lowrie sorriu timidamente.
- Pode deixar. Não vou.
Meg dobrou a manga da jaqueta e passou a mão através do ouvido de Lowrie.
- Isso faz cosquinha! - disse o velho, rindo e sacudindo os ossos.
- Fica quieto! Senão você vai ter uma lesão cerebral, ou algo assim.
Lowrie obedeceu imediatamente.
- Pronto - disse Meg. - Lá vamos nós.
Lowrie ficou completamente pálido ao se ver perseguido por um grupo de jogadores de rúgbi, enfurecidos, com uniformes de mulherzinha.
- Opa! Arquivo errado.
Meg fechou os olhos e se concentrou. Pense naquele dia, disse a si mesma. Deixe tudo voltar à sua memória... Muito bem. Estou com doze anos e um dia. Fiquei fora de casa o máximo que pude, mas estou com frio e com fome. E não tenho para onde ir...

¶¶¶

Eu me lembro de ter passado horas na salinha dos fundos da locadora, assistindo a um filme na televisão grande. Mas Trish pediu que eu fosse embora antes que começassem a chegar os fregueses da noite. Pediu com delicadeza, pois conhecia o Franco. Sabia o que esperava por mim em casa.
- Desculpa, Meggy - disse ela. - Mas você sabe como é. O patrão pode chegar a qualquer minuto.
Eu estava sentada no parapeito da janela. Meu bumbum já estava doendo. Desci ao chão e disse:
- Tudo bem, Trish. Obrigada pelo Jornada nas Estrelas. Eu ainda não tinha visto esse.
- Volta mais tarde. Vou ficar aqui até a meia-noite.
- Pode ser. Depende do você-sabe-quem.
- Sei muito bem o que eu faria com aquele boçal - disse Trish, balançando a cabeça.
- Provavelmente o mesmo que eu.
Abotoei a jaqueta até o pescoço e saí da locadora. O vento soprava forte na rua, que estava movimentada. Pessoas entravam e saíam dos carros. Mães compravam doces e balas para seus filhos. Como minha mãe costumava fazer. Engraçado, agora quase tudo me fazia lembrar da mamãe. Muitas vezes eu estava simplesmente andando na rua, nem triste, nem alegre, e de repente a imagem dela pipocava na minha cabeça. Qualquer coisa podia provocar isso, alguém usando uma roupa parecida com as dela ou um leve cheirinho de jasmim, o perfume favorito da mamãe.
Fechei a cara o quanto pude, de modo que ninguém viesse me perturbar. Nessa parte da cidade, era preciso fazer isso para evitar que os meninos mais atrevidos cercassem a gente no caminho de volta para casa. Uma vez, um desses veio para o meu lado, e eu sujei o moletom dele todinho de tinta. Ele foi embora, correndo e xingando como uma criancinha. Essa gente se preocupa demais com a própria aparência; e não dá para ser cool com um moletom todo manchado de azul. Sempre ando com uma caneta tinteiro no bolso, para usar em caso de emergência.
Preferi fazer o caminho mais longo, embora o vento quase me furasse o corpo. Podia ter cortado um bom pedaço se tivesse atravessado o parque, passando pelos balanços. Mas não foi isso que fiz. Primeiro, porque ali era onde todos os casaizinhos de adolescentes gostavam de ficar, e os garotos não perderiam a oportunidade de zoar comigo só para impressionar as namoradinhas. E segundo porque, quanto mais cedo eu chegasse em casa, mais cedo teria de olhar para a fuça ensebada do Franco.
A casa estava um pandemônio. E só tinham se passado quatro meses. Era de se imaginar que uma casa levasse mais que isso para se desintegrar totalmente. Mas as paredes já estavam cobertas de mofo e fungos, o mato do jardim já atingia a altura das janelas, e o portão da entrada estava capenga, pendurado numa só dobradiça. Naturalmente, quando mamãe era viva, nada disso acontecia. Nós duas arregaçávamos as mangas e fazíamos tudo que era preciso. Isso nos tempos em que o número 47 da nossa rua havia sido um lar. Agora era apenas uma casa.
Mamãe nunca teve muita sorte com os homens. Primeiro, papai, que fugiu para Londres ao primeiro sinal de responsabilidade no horizonte. E depois, Franco, provavelmente o sujeito mais inútil e mais nojento a grudar o traseiro no sofá com o próprio suor. Sempre que pensava naquele homem, eu sentia um calafrio que começava na base da coluna e depois subia até a nuca. Incontrolável.
Eu havia arrumado um jeito de abrir a porta da frente sem usar a chave. Bastava achar o lugar certo, pressionar o ombro contra a madeira e levantar a maçaneta de leve. O batente estava tão empenado que a tranca simplesmente pulava do encaixe. Além disso, cada vez que esquecia a chave, Franco dava uma verdadeira surra na porta, o que não contribuía em nada para o estado da coitada. No entanto, essa era a porta perfeita para quem queria entrar em casa sem ser notado. Afastei-a com cuidado e entrei.
Como sempre, a televisão berrava na sala de estar, onde eu nunca mais punha os pés, a despeito do que estivesse passando. Aquele cômodo agora pertencia a Franco, e por mim não havia o menor problema. Não poder mais ver televisão era um pequeno preço a pagar diante da satisfação de não ter de botar os olhos naquele ogro.
Para a escada também havia um plano. Todos os degraus rangiam. Por isso, eu enfiava os pés nos espaços entre os balaústres e subia feito caranguejo. Nada confortável, mas bem silencioso.
Pé ante pé, atravessei o corredor e cheguei ao meu quarto. Agora eu já estava a salvo. Franco poderia rosnar e rugir, mas jamais arrastaria o traseiro gordo escada acima atrás de mim. Trabalho demais.
Tenho vergonha de admitir isso, mas até o meu quarto estava uma bagunça. Se visse aquilo, mamãe teria um ataque. Jamais permitiria. Só que mamãe não estava lá. Estava morta. Atropelada na faixa de pedestres por um taxista que dormira ao volante depois de dois turnos inteiros de trabalho.
Minha mochila da escola ainda estava largada no canto onde eu a havia jogado naquela tarde. Dentro dela havia uma montanha de exercícios por fazer. Mas eu nem cogitava fazê-los. Não adiantava tapar o sol com a peneira. Àquela altura eu já estava tão atrasada que...
Decidi sair de novo. Uma noitada na cidade. Tomaria o ônibus do supermercado e assistiria à última sessão de cinema.
Meu dinheiro ficava bem escondido, com todos os meus tesouros. Eu achava que o único lugar do qual Franco jamais chegaria perto era a minha estante de livros. Portanto, todos os meus trecos ficavam escondidos num volume falso do Senhor dos anéis.
Busquei o livro e esparramei o conteúdo sobre a cama. Que, aliás, ainda não havia sido feita. Por dois meses. Se mamãe estivesse viva, seria eu quem estaria morta.
Entre outras coisas, havia a pulseira de cadarço de sapato que Gerry Farrel havia me dado de presente na quarta série. O diploma que eu tinha recebido depois de vencer um concurso de redação com o trabalho "A baleia, essa nossa grande amiga". A estrela-do-mar petrificada que eu tinha encontrado na praia.
E o anel de noivado da mamãe, aquele que um dia seria meu e agora de fato era - muitos anos antes do previsto.
O anel. Não estava ali. Cadê o anel? Talvez estivesse agarrado a uma dobra qualquer da caixinha de papelão. Olhei de novo e nada. Meu dinheiro também tinha sumido, os dois e cinqüenta. Me senti enjoada. Franco!
Desci a escada a mil por hora, ricocheteei na parede do andar de baixo e segui para a sala. Franco, como sempre, encontrava-se submerso numa nuvem de fumaça.
- Cadê? - berrei, tomada de pânico. Franco nunca tirava os olhos da TV.
- Cadê o quê? - perguntou ele, irritado por eu ter invadido seu território.
- O anel! - respondi, apontando para o dedo onde ele deveria estar. - O anel da mamãe!
Como se precisasse de tempo para pensar, Franco deu um trago no cigarro, que já se resumia ao filtro.
- Ah, o anel de brilhante. É dele que você está falando?
- Claro que é! - respondi, quase aos berros. Franco apagou o toco num cinzeiro que já transbordava.
- Você provavelmente já sabe que sua mãe queria que esse anel ficasse comigo.
Sequer consegui abrir a boca para dizer qualquer coisa.
- Então... eu vendi ele.
Palavras muito simples. Mas por algum motivo elas não entraram na minha cabeça.
- Você vendeu o anel?
- Vendi, sim, imbecil. Você estava achando o quê? Que ia esconder a porcaria do anel pro resto da vida naquela caixinha?
- Mas... mas... mas...
- Mas, mas - repetiu Franco, às gargalhadas. - Que foi? Arranhou o disco? Olha, vendi o anel e pronto. Não tem choro nem vela. Agora sai da frente que você está tapando minha televisão nova.
Ao que parecia, meu cérebro tinha se paralisado. Eu me lembro de que tentava agarrar a informação que voava ao meu redor, mas ela sempre me escapava entre os dedos. Uma coisa, no entanto, eu havia registrado. Televisão nova.
Lá estava ela, plantada no meio da sala, a imagem reluzindo através de uma espessa cortina de fumaça. Um aparelho preto feito piche, de aspecto ameaçador.
- Uma belezura, não acha? - disse Franco, com uma ponta de orgulho. - Dolby Surround e closed caption. Topo de linha. Um espetáculo.
A sensação era a de que um trator tinha passado por cima da minha cabeça, como nos desenhos animados. O anel da mamãe em troca daquilo?
- Esse anel era tudo que eu tinha - disse, entre dentes, tentando conter as lágrimas. - A única recordação da mamãe.
- Blá, blá, blá, blá, blá... - disse Franco, acenando com a mão para que eu saísse dali.
- E você vendeu ele. Pra comprar isso aí. - Ah, até que enfim a ficha caiu!
A televisão estava ali, tela plana, caixas de som e todo o resto. Essa foi a única vez, que eu me lembre, que tive ódio de um objeto. Então parti para cima dela. Ou pelo menos tentei. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, Franco me agarrou pela nuca e me prensou contra a parede. Até hoje não sei onde ele foi buscar tanta agilidade.
- Isso não é permitido aqui, mocinha - disse ele, os olhos semicerrados, ameaçadores.
- Você não tinha o direito - resmunguei, virando o rosto para não sentir o bafo.
Franco riu.
- Não tinha o direito? Vou explicar uma coisinha, garota. Você está sob minha custódia. Portanto, quem não tem direito nenhum nesta casa é você. Você não passa de uma delinqüente juvenil, uma criadora de caso. Um zero à esquerda. Um peso morto. As pessoas ficam com pena de mim. Coitado dele, elas dizem. Ter de cuidar sozinho daquela pivete, botar um freio nela... Ele é um santo! Um mártir!
Fechei os olhos e a boca o mais forte que pude, na tentativa de bloquear aquilo tudo.
- Sua mãe está morta, mocinha. Morta! Então pare de fingir que as coisas ainda são como eram, porque não são! Aquela história de princesinha feliz não existe mais. Acabou! Nesta casa existem regras, e você vai obedecer cada uma delas. Vai fazer a sua parte e vai me tratar com o devido respeito, ouviu bem? Senão vou ter de dar um jeito em você, do mesmo jeito que fiz com a sua mãe! Ela e aqueles perfuminhos de jasmim dela...
Ele tinha "dado um jeito" na minha mãe? Tinha batido nela?
- Seu porco! - berrei. - Quem vai dar um jeito em você sou eu! Em você e nessa sua televisão!
Franco gelou. Eu havia ameaçado a TV.
- Tem gente que custa a aprender, né? - respondeu ele.
Depois Franco estapeou o meu rosto. Com força. Escorreguei pela parede e me esborrachei no chão. Fiquei me sentindo como aqueles bois que são marcados com ferro em brasa.
- Nunca ameace a minha televisão outra vez - berrou, abaixando-se para me estapear novamente. - Nunca, nunca, nunca!
Cada "nunca" foi acompanhado de mais um tapa. Quis levantar e reagir. Dar um soco na boca do estômago dilatado dele e ficar vendo o canalha sufocar no chão. Mas não encontrei forças. Aquilo era demais para mim. Tinha a sensação de que havia sido atingida por uma onda no mar. Uma onda enorme.
Fui salva pelo fim do intervalo comercial. Tão logo ouviu a musiquinha do programa, Franco me largou e voltou correndo para a frente da TV, as coxas mal cabendo entre os braços da poltrona. Quanto a mim, permaneci esborrachada ali, como uma aranha atingida com um jornal enrolado, receando me levantar e ser ouvida.
- Ah, e mais uma coisa - disse ele, tateando o bolso da camisa à procura de fósforos. - Já dei entrada nos papéis de adoção. Isso significa que vou ficar aqui pra sempre, e você vai ganhar um papai novo. Maravilhoso, não acha?
Não respondi. Afinal, aquilo não era uma pergunta de verdade. Na minha cabeça, a dor e o ódio lutavam entre si para ver quem conquistava minha atenção. O ódio venceu. Ninguém fica sabendo que o padrasto bateu na sua mãe e deixa a coisa por isso mesmo. Franco teria de pagar pelo que fez. Eu não sabia como, ainda, mas uma idéia começava a se formar no meu cérebro. Ele era louco por televisão, não era? Então era ali que eu devia bater - onde doía mais. E bater com força.

 

CAPÍTULO 12

DUPLA VINGANÇA

FRANCO NÃO tinha lá muitos interesses, e, morando na mesma casa que ele, eu conhecia todos. Ele podia contá-los nos dedos gorduchos de uma única mão. A televisão, claro, era o maior amor de sua vida. O tubo catódico cantava para ele por um mínimo de oito horas, todos os dias, apagando o mundo real com uma boa dose de escapismo. A comida também ocupava uma posição importante. Comida rápida, óbvio; caso contrário, o tempo reservado à televisão seria prejudicado. Batatinhas fritas, chocolate e pizza entregues em domicílio eram os pratos principais. Beber também era bom. Uma mente semi-inebriada trafega mais facilmente pelo solo pantanoso dos canais a cabo.
Mas esse era o Franco doméstico. O Franco que o público nunca via. Do outro lado da porta empenada da casa que herdara, ele se fazia passar por um pilar da comunidade local. Um pilar meio bambo, vá lá, mas um pilar mesmo assim. Franco via a si próprio como uma espécie de herói trágico, aquele que perde o amor da sua vida, mas agüenta as pontas para criar a filha delinqüente da falecida.
Para alimentar essa ficção, Franco vestia terno e gravata todas as noites de segunda-feira e caminhava até o bar Lua Crescente para presidir as reuniões semanais de sua venerada Associação dos Amantes dos Pombos de Newford. Depois do banheiro e da geladeira, a AAPN talvez fosse a única coisa que o motivava a se separar daquela poltrona. Não que ele criasse pombos - isso demandaria esforço demais. Mas, segundo ele, não era preciso criar pombos para apreciá-los. Além disso, o clube lhe dera uma fita cassete só sobre pombos, à qual ele havia assistido do início ao fim. Mais que suficiente.
Então comecei a bolar um plano. A televisão e a AAPN. Como eu poderia combinar as duas coisas num único plano maquiavélico de vingança? A resposta veio em fragmentos, como pedacinhos de um complicado quebra-cabeça. Havia preparativos a fazer. A primeira coisa de que eu precisaria era de uma câmera de vídeo.

¶¶¶

Pedi a câmera emprestada a Belch e armei o tripé do outro lado da janela dos fundos. Isso me deixou um pouco preocupada. Pedir algo emprestado a Belch. Só Deus saberia onde ele tinha adquirido aquela câmera - sem contar que certamente pediria alguma coisa em troca. Provavelmente uma mãozinha num de seus trabalhos menos ortodoxos. Mas dei de ombros e procurei não pensar naquilo. Qualquer que fosse o preço, eu estava disposta a pagar.
Comecei a filmar meu padrasto sempre que havia uma oportunidade. Filmei-o vagabundeando no sofá, coçando a barriga e engolindo punhados de amendoim com ajuda da cerveja. Discutindo com a TV. Babando enquanto dormia. Passando o fim de semana inteiro só de cuecas e camiseta (apenas alguns trechos, claro, quando a atenção dele estava voltada para a televisão; dois dias inteiros seriam tortura demais para qualquer espectador). Enfim, humilhando-se de todas as maneiras possíveis. Mas isso não bastava. Não depois do que ele havia feito.
Passo dois: provocações. Programei a câmera para começar a gravar naquela tarde de sexta-feira e corri até a sala de estar.
- Ei, barrigudo - disse. - Preciso de dez pilas. Me empresta aí.
Franco, semiconsciente, remexeu-se na poltrona. Um fiapo de baba escorria pelo queixo dele.
- Hein?
- Dez pilas. Din-din. Capilé. Sabe o que isso que dizer, não sabe, barrigudo?
Franco fez uma careta de irritação. Seria possível que aquela peste não aprenderia nunca?
- Olha o respeito, mocinha. Não vá me fazer levantar dessa cadeira...
- Você? - disse, rindo. - Levantar dessa cadeira? Só pode ser uma piada.
Franco tentou dar um risinho de sarcasmo, mas acabou bufando. Estava a ponto de perder a cabeça.
- Eu estou avisando, mocinha!
- Você, me avisando? Melhor avisar uma tartaruga, pois é a única coisa que você consegue alcançar.
Franco jogou a pança para frente, e o impulso bastou para colocá-lo de pé. Sequer tentei fugir. Por que eu faria isso? Minha idéia era justamente o contrário. Meu padrasto me deu um cascudo no ombro. Um cascudo dos bons, com o nó do dedo médio virado para baixo. Dei um grito de dor. Não estava fingindo.
- Eu jogava futebol, sabia? - rosnou Franco, ainda bolado com a história da tartaruga. - Foi nessa época que mudaram meu nome de Frank pra Franco. A multidão gritava "Francooo" cada vez que eu marcava um gol. E foram muitos gols, fique você sabendo.
Sequei os olhos com a manga rasgada do meu casaco da escola. Continua falando, baleia. Meu plano estava quase terminado. Só faltava uma coisinha para filmar.

¶¶¶

Franco tinha o hábito de beber até perder os sentidos durante o fim de semana. Achava que merecia, depois de beber até perder os sentidos durante toda a semana. À meia-noite do domingo, nem mesmo uma Terceira Guerra Mundial sob a poltrona da sala era capaz de acordá-lo.
Esperei no andar de cima até que os roncos dele começaram a ecoar pela casa inteira. Então, feito caranguejo, desci a escada colocando os pés entre os balaústres. Na verdade, não precisava me preocupar com o barulho, pois Franco já estava totalmente apagado. Usava a cueca oficial do fim de semana e roncava a pleno vapor, nível sete na escala Richter. Tive de tirar um cigarro que ele esquecera aceso entre os dedos, para evitar que meus planos fossem por água abaixo, caso ele acordasse ao se queimar.
A televisão ainda estava ligada. Um filme de pancadaria qualquer. O favorito de Franco, mas nada suficiente para mantê-lo acordado.
Essa era a parte difícil. Se eu desligasse a televisão, Franco certamente acordaria. Acho que ele nunca conseguia dormir sem a barulheira constante da melhor amiga. Mas eu tinha um plano.
A televisão velha ainda estava lá, jogada num canto, semi-enterrada sob uma montanha de caixas de pizza e maços de cigarro vazios. Arrastei o aparelho pelo carpete e liguei o plugue na outra ponta do benjamim. Agora, tudo que eu precisava fazer era passar o cabo da antena de um aparelho para o outro. Houve um momento de chiado, logo substituído pelo som monofônico do aparelho velho. Franco nem se mexeu.
Rapidamente desliguei a televisão nova e empurrei o rock de rodinhas até o quintal. A câmera de vídeo já estava armada. Agora só faltava um martelo bem grande.

¶¶¶

Lembro que eu estava sentada no parapeito da janela, esperando que Franco acordasse. A vontade de rir rodopiava na minha garganta como um hamster de gaiola. Histeria, eu acho, e medo.
O despertar de Franco era um processo lento. Podia levar horas. Às vezes ele se levantava um pouquinho, para se coçar ou fazer uma rápida visita ao banheiro, e depois voltava a dormir profundamente por mais umas tantas horas. Eu havia desligado todos os aquecedores da casa para apressar a coisa.
Às nove horas, ele tremeu as pálpebras de leve. Com a mão gorducha, tateou a poltrona à procura dos cigarros. Encontrou o maço, apertou um cigarro no canto da boca e acendeu-o com o isqueiro. Tudo isso sem abrir os olhos.
Em seguida, raspou a língua com os dentes e fez uma careta de nojo. Os restos da cerveja e dos hambúrgueres da noite anterior. Precisava de uma bebida.
Por fim ele abriu as pálpebras com a base das mãos. Raiozinhos vermelhos cobriam o branco dos olhos. O estado de Franco era péssimo, e eu sabia o que estava por vir. Dali a pouco ele começaria a resmungar e a culpar o resto do mundo pela ressaca que ele mesmo havia provocado.
Mas antes disso, percebendo que havia algo de errado, ele parou para fazer uma pequena recapitulação da véspera. Ele estava na poltrona. Fumando um cigarrinho. Assistindo à...
Franco pulou da poltrona. Seu rosto parecia tremer de susto e pânico. Santo Deus! O que tinha acontecido? A televisão... tinha sumido!
Dei um close na cara feia dele, rezando para que as lágrimas começassem a rolar. E minhas preces seriam logo atendidas.
Franco caiu de joelhos diante da televisão velha. Havia uma fita no aparelho de vídeo e um bilhete que dizia: "Veja isto".
Com dedos trêmulos, Franco empurrou a fita para dentro do aparelho. Depois de alguns segundos de chuvisco, dois objetos entraram em foco. Um deles era eu; o outro, a televisão.
- Nãããooo...
A palavra escapou dos lábios de Franco como o último sopro de um balão recém-esvaziado.
Do outro lado da janela eu não podia ouvir minha própria voz, mas sabia exatamente o que estava dizendo.
"Querido padastro. Já que você pagou por essa TV com o meu anel, acho que legalmente ela me pertence. Portanto eu posso, legalmente, fazer o que bem entender com ela. Se quiser, posso me sentar aqui mesmo e assistir a um filme; ou, se quiser, posso usar isto aqui pra fazer um servicinho nela."
Minha imagem na televisão se abaixou e pegou no chão um martelo pesado, de cabo muito longo.
Franco enfiou oito dedos na boca. A mais pura imagem do terror.
- Não faça isso, sua peste! Não faça isso!
Embora eu estivesse com certa peninha dele, minha outra parte, no vídeo, não estava nem aí. Deixou o martelo cair na televisão com vontade, como se fosse uma marreteira profissional. E foi ficando cada vez mais entusiasmada, nem se lembrando que estava sendo filmada. A bem da verdade, estava até um pouco ridícula. Franco tremia todinho a cada pancada.
- Pára, pára, pelo amor de Deus! Eu dou o que você quiser!
Ele agora alisava a tela, aos prantos. Patético. O homem não havia derramado uma única lágrima no enterro da minha mãe. E lá estava ele, completamente arrasado por causa da morte de uma televisão.
Dali a pouco, Franco se esparramou no chão e tapou os ouvidos para não escutar mais nada. A essa altura a televisão se resumia a pouco mais que uma caixa de vidro e faíscas. E todos os momentos de glória haviam sido capturados pela minha câmera.

¶¶¶

Nem preciso dizer que, pelo resto do dia, fiz o que pude para não cruzar o caminho de Franco. Nem sei como ele conseguiu agüentar esperar até a hora da reunião. Talvez fosse isto que segurava as pontas dele, a perspectiva de uma noitada na companhia dos amigos.
Chegando à assembléia geral da AAPN, vi que Franco se apresentava dos pés à cabeça em sua versão pública, a não ser por uma certa falta de brilho no olhar. Os companheiros já estavam todos no salão do bar Lua Crescente, diante do telão onde seria exibido o vídeo da corrida.
Contei até três, empurrei as portas de vidro e irrompi no salão. O primeiro impulso de Franco foi voar no meu pescoço, mas ele não podia fazer nada. Pelo menos enquanto a papelada da adoção ainda estivesse em andamento. Outra televisão, ele até poderia comprar. Mas outra casa seria bem mais difícil.
- O que foi, Meg? - disse ele, quase rosnando. - Você já deveria estar na cama. Amanhã você tem aula.
- Trouxe a sua fita, tio Franco - disse, olhando diretamente nos olhos dele. - Você esqueceu em casa.
Franco piscou, confuso.
- Que fita?
- A fita da corrida de pombos. Pra vocês assistirem depois da reunião.
Franco conferiu sua pasta. A fita de fato não estava lá. Como podia ser? Talvez eu a tivesse tirado de lá e jogado no fundo da lata de lixo. Franco hesitou um pouco antes de pegar a fita que eu havia levado, como se receasse que ela fosse explodir.
- Muito obrigado, minha filha - resmungou ele. - Agora já pra casa.
Então, com um beicinho de cortar o coração, eu disse:
- Ah, deixa eu ficar, vai. Corrida de pombos é tão legal... Quem bajula sempre alcança.
- Poxa, Franco - disse um dos presentes. - Deixa a menina ficar.
- Só esta noite, presidente - disse outro. - Ninguém vai morrer por causa disso.
O que Franco podia fazer? Embora suspeitasse uma armadilha, não podia ser grosseiro na frente dos colegas.
- Está bem, Meg - disse, finalmente. - Mas precisamos ter uma conversinha sobre isso depois.
Uma frase perfeitamente inocente. Aos ouvidos de todos, menos aos meus, claro. Eu sabia muito bem o que Franco queria dizer com "uma conversinha".
Então eles colocaram a fita, e ela deslizou suavemente para dentro do aparelho. Eu mal conseguia respirar. Achava que aquele plano não podia dar certo, que a qualquer instante alguém apareceria por ali para dar um fim àquela situação. Mas não. Meu plano funcionou direitinho.
Os primeiros segundos foram de certa confusão. Nem mesmo Franco havia reconhecido a si próprio. Mas depois vieram as gargalhadas. Começaram no fundo do salão, bem longe da mesa do comitê. Mas depois foram se espalhando como a luz da manhã, apoderando-se do espaço, tocando todos os presentes.
Com exceção de duas pessoas. Franco não estava rindo. E eu também não.
A situação era bem engraçada, além de um tanto patética - aquele porco inchado se revelando como o vagabundo que de fato era. Muitos dos amantes de pombos ali presentes estavam adorando a oportunidade de tirar um sarro de seu presidente metido a besta.
De repente, assim que começaram as cenas de pugilato, as gargalhadas pararam. Ninguém achava graça em se agredir uma criança. Mas eu tinha deixado o melhor, e o mais engraçado, para o final: as cenas da destruição da TV. As pessoas quase rolavam de tanto rir.
Lembro de uma onda fria de satisfação invadindo o meu coração. Eu havia destruído Franco duas vezes: uma vez em vídeo e outra em pessoa. Uma para a mamãe e outra para mim mesma. Ele saiu da sala como um furacão, chorando de vergonha. Deixaria a presidência da AAPN no dia seguinte. Por carta.
Naturalmente, a adoção com a qual ele vinha sonhando não aconteceria mais. Franco agora poderia fazer o que quisesse, mas jamais seria meu pai.
Belch apareceu para fazer uma visitinha no dia seguinte. Tinha ido cobrar o favor prestado alguns dias antes. Queria que eu ficasse vigiando enquanto ele assaltava o apartamento de um velhinho aposentado. Invasão de domicílio. Pela primeira vez na minha vida. Achei que não seria nada muito perigoso.

¶¶¶

Lowrie já estava bem mais sóbrio,
- Aquele f...
Ele não podia completar a frase. Não na frente de uma menor de idade.
Meg riu com sarcasmo.
- Pode dizer, Lowrie. Eu consigo ler seus pensamentos, esqueceu?
Mas ele não podia. Tinha lá seus princípios.
- Aquele... porco - foi o que disse por fim,
- Porco é pouco.
- Mas você também não deixou por menos, hein?
- Ele não podia ter batido na minha mãe.
Lowrie concordou com um movimento de cabeça. Aquilo de fato não tinha perdão.
- E então? - perguntou Meg. - Posso ficar com ele?
- Hein?
- O seu desejo não-utilizado, posso ficar com ele? Lowrie coçou o queixo. A barba já começava a espetar novamente.
- Pode - disse afinal. - Pode, sim. E tem mais. Vou usar todas as forças que ainda me restam pra ajudar com o soco.
Meg abriu um sorriso, e não havia nada de angelical nele.

¶¶¶

Belch olhou para as mãos peludas.
- Estou sumindo! - ganiu.
Era um ganido de verdade. Belch realmente estava gemendo como o cachorro que de fato era, ainda que pela metade. Elph providenciou uma verificação do sistema.
- Seu ectocrânio foi perfurado durante a explosão.
- Arf?
- Tem um buraco na sua cabeça - suspirou o holograma. - Nossa energia vital está vazando por ele. Só nos restam alguns minutos, antes que nos puxem de volta ao quartel-general.
- E o que vai acontecer depois?
Elph consultou um arquivo de memória.
- Você trabalhará como churrasqueiro no vale do estrume. E eu serei... Bem, não sei o que vai acontecer comigo. Não há precedentes. Mas suponho que seja algo ruim.
- Não tem nada que a gente possa fazer? Deve ter um jeito de a gente roubar um pouco dessa coisa aí, dessa... energia vital.
O holograma consultou sua infernopédia antes de responder:
- Negativo. Não há nenhum método permitido.
- Nenhum método permitido? - repetiu Belch, tremendo o focinho molhado. - Isso significa que tem outros métodos que não são permitidos?
Elph ficou meio sem jeito, uma situação nada fácil para um holograma - envolve muita redistribuição de pixels.
- Há um jeito. Totalmente proibido. As possíveis ramificações são descomunais.
- Arf?
- Esse jeito pode causar muitos problemas aqui na Terra. Belch deu de ombros.
- E o que eles podem fazer? Desligar você e me colocar pra ficar virando espetos de churrasco?
- Estou vendo aonde você quer chegar.
Belch mal pôde acreditar. Finalmente ele havia dado uma dentro!
- E esse tal jeito proibido, o que é?
Flutuando, Elph atravessou a sala e se aproximou de Franco, que felizmente não se dava conta daquela invasão sobrenatural.
- Em linguagem de protozoário, precisamos de uma bateria nova. Segundo a varredura que acabei de realizar, esta criatura aqui possui vinte e seis anos de combustível ainda por queimar.
Belch lambeu os lábios.
- Vinte e seis anos?
- Naturalmente, para abastecer uma entidade híbrida como você e um holograma de porta paralela como eu, esses vinte e seis anos seriam equivalentes a... vinte e seis horas. O que é melhor do que nada. Tudo que você precisa fazer é entrar no corpo dele e sugar um pouco da energia vital. Fica logo acima dos globos oculares. É de uma cor laranja bem forte. Não tem como você não ver.
- Entendi. Então vamos lá. - Mas Belch fez questão de acrescentar: - Só uma coisinha. Quero que ele me veja.
- Por quê, criatura?
Belch levantou a peluda mistura de mão e pata de cachorro.
- Ora, do que adianta ter essa aparência se não posso assustar ninguém?
Elph assentiu com a cabeça. Ele entendia perfeitamente. Era um holograma do mal.

¶¶¶

Franco estava de péssimo humor. Havia uma fresta nas cortinas, e a luz refletia na tela da televisão, impedindo-o de enxergar.
Fechar as cortinas implicava ter de levantar da poltrona. Melhor seria esperar até o problema passar. De qualquer forma, naquela hora só havia noticiários.
De repente ele teve uma visão. Uma criatura estranha, parecida com lobisomem, havia se materializado diante dele. Mas Franco não ficou preocupado. Já fazia algum tempo que ele vinha esperando pelas alucinações. Tinha visto num programa científico que as pessoas que se privam da realidade geralmente acabam vendo fantasmas. Assim, considerava o lobisomem à sua frente apenas um canal a mais na sua televisão.
- Olá, cachorrinho - disse ele, esticando o braço para fazer um carinho no queixo da criatura.
O lobisomem rosnou e afastou a mão dele com um tapa. Por um instante eles se conectaram, e Franco viu tudo. Viu e compreendeu.
- Oh, não - suspirou ele, dando-se conta da inutilidade que fora sua vida.
- Oh, sim - retrucou Belch, com um risinho de satisfação. - Sou eu mesmo. E voltei aqui pra comer a sua alma.
Franco começou a gritar. E ainda gritava quando a criatura entrou no corpo dele e começou a se fartar de energia vital. Continuava gritando quando foi banido para um cantinho escuro do próprio cérebro, onde ninguém mais podia ouvi-lo.

¶¶¶

Os dedos de Meg também estavam desaparecendo.
- Meu tempo está acabando - disse ela, sacudindo a mãozinha espiritual. - E então, como estou?
- Um fantasma, perto do que era antes.
- Não tem graça nenhuma.
- Desculpa. É que estou um pouco nervoso. Afinal, vamos atacar alguém em plena luz do dia.
Meg fechou em punho a mão transparente. Só lhe restava rezar para que ainda tivesse forças para dar a tão merecida bifa no padrasto.
- Agora chega de conversa fiada - avisou ela. - Só quero socar o sujeito e dar o fora daqui.
- Por mim, tudo bem.
Eles estavam diante do portão de entrada. Ou melhor, do lugar onde antes havia um portão. Agora só restava uma solitária dobradiça pendurada à lateral; o portão propriamente dito encontrava-se em meio ao mato. As paredes também haviam se deteriorado. Os ramos de hera se espalhavam por toda parte, e a pintura havia muito precisava de um reforço.
Lowrie seguiu pelo caminho que conduzia à porta da casa. Ou o que parecia ser um caminho, já que o matagal cobria quase tudo.
- Muito bem. Aqui estamos.
Meg respirou fundo e se instalou na cabeça de Lowrie. Imediatamente percebeu o quanto isso lhe custaria em termos de energia. Dali em diante ela só teria forças para mais uma ou duas possessões. Depois, de volta ao túnel!
Ir até ali talvez tivesse sido uma estupidez. Desperdício de energia. A essa altura eles já poderiam estar cuidando do último desejo de Lowrie, em vez de arriscando suas almas imortais naquela missão maluca. Mas bastou lembrar-se do padrasto batendo na mãe para que Meg recobrasse imediatamente a determinação.
- Presta atenção, parceiro - disse ela à metade do cérebro que pertencia a Lowrie. - É só toc-toc, bifa e tchau! Mais fácil, impossível.
Meg levou o dedo, agora enferrujado de artrite, à campainha. A campainha não estava funcionando. Mais um conserto negligenciado por Franco. Ela bateu na porta gelada, e a artrite chiou. As sensações de Lowrie começavam a dominar as dela própria.
- Alguém está vindo - disse Lowrie, por um instante reassumindo o controle de sua boca.
Meg piscou os olhos do velho para evitar uma gotinha de suor que escorrera da testa. Estava tão nervosa que as glândulas sudoríparas de Lowrie agora trabalhavam em dobro. Fechou a mão e preparou o soco. Assim que a porta se abrisse... pou! Franco sequer teria tempo para saber o que estava acontecendo. O custo daquilo seria mais alguns séculos de purgatório, mas valeria a pena.
Uma figura sinistra arrastava-se na direção da porta, um vulto distorcido pelas bolhas da vidraça. Era Franco, só podia ser, mesmo com a distorção. Vem, baleia. Abra a boca e diga xis.
A porta se abriu. Um rosto apareceu. Meg girou o tronco e arremeteu.
No entanto, entre uma coisa e outra, o tempo aparentemente se desacelerou. O bastante para que o rosto dissesse.
- Olá, Meg. Eu estava esperando por você.
Meg achou estranho. Franco nunca a chamava pelo nome. Só de "mocinha". Além disso, como ele podia saber que era ela quem estava ali? E por que ele babava? Então o soco atingiu o alvo, e Franco despencou no chão como uma bolota de cocô de porco.
- Muito bom! - exclamou Lowrie, entusiasmado. - Agora podemos ir.
Mas Meg não podia sair dali. Suspeitava que havia algo de errado. Ela, entrou na casa 47 e bateu a porta.
Franco se contorcia no chão, ganindo e babando.
Ganindo? Babando? De repente tudo ficou claro. Meg olhou para a figura a seus pés, dessa vez usando os próprios olhos. E lá estava ele, flutuando no interior do padrasto dela, uma careta de ódio no rosto bestial.
- Belch! - exclamou ela.
Belch não disse nada; simplesmente rosnou e cuspiu. Ao que parecia, sua parte humana ia para o banco de reservas nos momentos de crise.
- O que você está fazendo aqui?
Ainda meio tonto, Belch apertou os olhos para enxergar melhor.
- Vim atrás de você. O Mestre quer a sua alma.
Uma criaturinha de jaleco branco espocou da cabeça de Franco e agora flutuava sobre o corpanzil esparramado no chão.
- Não é necessário fornecer informações ao nosso alvo. Fique de pé e apenas faça o que tem de fazer.
Meg olhava boquiaberta para o holograma.
- Que diabos é isso aí?
- Puxa, Meg, faz um favor pra nós dois e dá logo um tapão nessa mosca enjoada!
Elph conseguiu produzir uma expressão de mágoa.
- Depois de tudo que fiz... - reclamou. - Se não fosse por mim, você já estaria virando espetos há muito tempo! Agora termine logo essa transfusão e acabe com os dois.
Belch abriu a bocarra e começou a sugar. Estrias de uma cor laranja brilhante emergiam de trás dos olhos de Franco e desciam pela garganta do meio-cão. A cada gole ele ficava mais forte, mais presente.
- Xiiii... - exclamaram Meg e Lowrie juntos.
Franco sofria uma visível transformação. Seu corpo ia pagando o preço à medida que a energia vital era sugada por Belch. Sulcos profundos foram aparecendo ao longo da testa. Os olhos já haviam perdido o brilho e agora afundavam cada vez mais nas órbitas. A pele em torno do pescoço ficava ressequida e murcha. O rosto ainda era o dele, porém com vinte anos a mais.
- Isso não é nada bom - sussurrou Meg. - Preciso fazer alguma coisa.
Elph zumbiu através do Vestíbulo e parou a uns cinco centímetros do nariz de Lowrie. Deu um risinho, apenas para impressionar, já que hologramas não possuem senso de humor.
- A única coisa que você vai fazer, Meg Finn, é falhar na sua missão. Voltará conosco lá para baixo. Seu velho morrerá insatisfeito, e meu criador será promovido a uma posição superior à daquele bufão chamado Belzebu. Isso é o que vai acontecer.
Meg rosnou. Pela primeira vez na vida concordava com Belch em alguma coisa. Devia esmagar aquela peste entre os dedos como a um pernilongo. Então pegou um vaso sobre a mesinha do Vestíbulo e arremessou-o contra o holograma tremeluzente. O vaso, claro, passou direto por Elph e espatifou-se bem na cabeça de Franco. O resultado foi espetacular. O que se esperaria de um incidente como esse era um grito de dor, possivelmente um pequeno corte e talvez uma concussão. Nada mais do que isso. O que aconteceu, porém, foi um repentino e sobrenatural espetáculo de som e luz. A areia dentro do vaso se esparramara sobre a cabeça de Franco e, chiando e crepitando, grudava no rosto dele feito uma camada de cimento. Franco deu um berro, e Belch uivou o mais alto que pôde - uma combinação ensurdecedora. Copos explodiram na cozinha, janelas se estilhaçaram. Até mesmo o tesouro de Franco - o aparelho de televisão - acabou sucumbindo às ondas sônicas e implodindo num milhão de pedacinhos.
Franco se contorcia no chão do Vestíbulo. Tentava limpar o rosto com os dedos, mas era em vão. A areia agora formava uma camada viscosa em toda a parte superior de seu corpo.
Parado no alto, Elph assistia a tudo sem se deixar abalar.
- Humm... Interessante. Violenta reação alérgica, do tipo que produz dor. - Usando a palavra "alergia" como chave, o holograma fez uma busca em seus arquivos e encontrou apenas um resultado: "Alergia: um espírito maligno poderá exibir sinais de desconforto ao entrar em contato com uma substância sagrada."
Meg pegou do chão um pedaço do vaso. Percebeu que havia uma plaquinha de bronze perto da base. Agora ela se lembrava. O tal vaso era na verdade a urna em que ficavam as cinzas mortais de sua mãe.
- Mamãe... - sussurrou ela, deixando escapar um fiapo de lágrima entre os cílios.
Elph fez que sim com a cabeça.
- Cinzas sagradas. Suponho que a análise esteja correta. Meg deu um chute na perna de Franco.
- Você nem se deu ao trabalho de colocar a urna na caixa de vidro, não é?
- Mas agora está muito arrependido, não está? - emendou Elph.
Franco não estava em condições de responder nada. Só o que lhe restava a fazer era compartilhar a dor do alérgico Belch, Minutos de agonia se passaram até que ambos, ele e seu demoníaco hóspede, acabaram por perder a consciência.
Meg não se conteve e chutou o padrasto mais uma vez.
- Bem feito pra você. Vocês dois se merecem, isso sim. - Ela guardou o caco de urna no bolso de Lowrie. - Obrigada, mamãe. A senhora me salvou de novo.
Lowrie assumiu o controle de sua boca.
- Vamos embora, Meg. Antes que o nosso prazo se acabe. Esse monstro não vai ficar dormindo pra sempre.
Meg piscou os olhos para se livrar das lágrimas. Lowrie tinha razão. Ela percebia que sumia um pouquinho mais a cada segundo - e eles ainda tinham muito a fazer para realizar o último desejo.
- Muito bem, Meggy - ela disse a si mesma, imitando o tom de voz da mãe. - Sai dessa. Você tem a eternidade inteira pra ficar se lamentando. Acabe logo com essa lista. Falta só um! - E, apontando para Elph, emendou: - Quanto a você... Se cruzar meu caminho outra vez, vai ter de buscar essa lente aí no fundo das orelhas, ouviu bem?
- Eu? - disse Elph, inocentemente. - Como vou cruzar seu caminho outra vez se estou preso a estes dois aqui?
Mas tão logo Lowrie lhe deu as costas, Elph piscou e emitiu um laser azul na direção do corpo inerte de Franco. Uma intervenção indolor e rápida, mas a única coisa capaz de salvar o protozoário, e por conseguinte a si mesmo, da fúria do Diabo.
Depois que o alvo e o humano já haviam desaparecido do Vestíbulo, Elph voltou os últimos minutos do vídeo em sua cabeça. A garota havia feito um comentário. Algo que talvez fosse importante. Ele esquadrinhou o VT à procura do momento exato. "Acabe logo com essa lista", ela havia dito. Hmm. Que lista seria essa? Era bem possível que nela estivesse a oportunidade para a danação da garota.
Elph parou de repente. Não fazia sentido continuar fazendo suposições. Colocaria a si mesmo no modo de contenção de energia até que seu hospedeiro idiota acordasse outra vez. Piscou uma vez só e sumiu. E na casa de número 47 não se via mais nenhum sinal de vida, a não ser a luzinha vermelha de um botão de standby.

 


CAPÍTULO 13

LÁ DO ALTO

LOWRIE TINHA perdido o juízo e alugado um carro.
- Sei que é muito dinheiro - ponderou ele -, mas caixão não tem gaveta, e estou com a impressão de que nosso tempo está quase no fim.
Meg tinha a mesma impressão. Sentia-se tão sólida quanto o orvalho da manhã, e via sua força diminuir a cada quilômetro. O encontro com Belch a deixara abalada. Quem era o tal de Mestre? E por que ele queria a alma dela? Meg suspeitava que já sabia a resposta para ambas as perguntas. Além disso, podia sentir a proximidade do túnel, as pulsações dele, que agiam como uma espécie de lembrete.
Quanto ao carro alugado, não se tratava de uma carroça qualquer, mas de um Peugeot coupé. Último modelo. Fossem outras as circunstâncias, Meg estaria pulando de alegria, apertando todos os botões do painel. Mas não hoje. Hoje, motorista e passageira não tinham energia para nada que não fosse estritamente necessário.
- Esse seu último desejo... disse Meg, com uma leve trepidação na voz. - "Cuspir do alto dos penhascos de Moher". Que maluquice é essa agora?
- Exatamente isso - respondeu Lowrie, engatando a quinta. - Como na canção.
- Que canção? Lowrie revirou os olhos.
- Ah, a juventude. Não ensinaram nada a vocês na escola?
- Só a ler e a fazer contas. Nada muito útil, como canções que falam de cuspe.
Lowrie tamborilou um ritmo no volante do carro e depois de alguns compassos começou a cantar a plenos pulmões, com aquela voz estridente dos dublinenses.
Pra dizer que viveu como rei, Só quem buliu com a lei. Dormiu na sarjeta, Casou com o capeta, Só quem viveu como rei.
De rei foi a vida de quem Já beijou o amor de outro alguém. Nos penhascos de Moher subiu, Olhou lá do alto e cuspiu. Como rei viveu esse alguém...
- Posso continuar se você quiser. São quarenta e sete versos.
- Não, não precisa - disse Meg rapidamente. - Já entendi. Quer dizer que a gente está fazendo tudo isso por causa de uma velha canção...
- Meu pai costumava cantá-la pra mim. Todas as noites na hora de dormir. Era uma espécie de canção de ninar, só nossa. Mamãe não gostava muito. Especialmente daquela parte que diz "casou com o capeta".
- Por que será?
- Nada muito politicamente correto, eu sei - disse Lowrie, rindo. - Acontece que já fiz tudo isso na minha vida. Dormi na sarjeta, casei com o capeta etc. Só não deu pra...
- Pra cuspir do alto dos penhascos de Moher - completou Meg. - Mas pra que você precisa de mim pra fazer isso?
Lowrie esfregou o peito.
- A subida. Acho que não vou agüentar.
- Poxa, mais uma subida... - reclamou Meg. - Tomara que a vida no céu valha tanta subida. Ainda bem que seu pai não conhecia nenhuma canção sobre limpar banheiros, senão a gente teria de fazer isso também.

¶¶¶

O tempo estava se extinguindo. Sabendo disso, Elph decidiu dar uma forcinha a Belch para que ele recobrasse a consciência. A "forcinha" consistia num choque de pósitrons de nível três, bem no traseiro peludo dele.
Belch tremeu, e Franco tremeu também, uma vez que o demônio ainda ocupava o corpo dele. O menino-cachorro sentou-se lentamente.
- Arf? - perguntou ele, meio zonzo.
- Nosso alvo jogou cinzas sagradas contra o seu hospedeiro. Na qualidade de espírito do mal, você é altamente alérgico.
- Dói - resmungou Belch, aparentemente trocando as frases completas por palavras soltas. - Coça.
- E muito - disse Elph, sem o menor vestígio de compaixão. - Agora, saia daí. Temos muito trabalho a fazer e pouquíssimo tempo.
- Auuu! - concordou Belch. Então ele respirou fundo e tentou sair do corpo de Franco. Não conseguiu. Algo o prendia ali. Tentou novamente, contorceu o rosto numa careta de esforço, e nada. - Preso.
Elph mordeu os lábios eletrônicos, preocupado.
- Era isso que eu temia.
- Arf?
- A carga positiva das cinzas sagradas está repelindo por todos os lados a carga negativa da sua força demoníaca, criando assim uma espécie de concha ectoplásmica impermeável.
- Arf?
- Você está preso neste corpo. Uma lástima, já que sugou quase toda a energia dele.
Belch olhou para os novos dedos. Eram encardidos e enrugados. Franco havia envelhecido trinta anos. E mesmo aos trinta e cinco já não era nenhum príncipe.
- Preso? Nãããooo...
- Nãããooo... - repetiu Elph, com um toque de dramaticidade. - Raciocina, idiota. Nossa missão continua a mesma. Encontrar o velho. Parar a garota. Nada mudou. Depois você vai sair daí.
Belch pegou um restinho de comida podre sobre o pijama de Franco e levou-o à boca.
- Comida - disse ele, rosnando de prazer. - Delícia. Elph revirou os olhos - mais uma de suas afetações.
- Pelo amor de Satã! Temos coisas muito mais importantes a fazer do que matar sua fome! Nossa força diminui a cada segundo!
Belch concentrou-se um instante e, com muito esforço, procurou montar uma frase.
- Meg fugiu. Não sabemos onde. Tarde demais.
- É aí que você se engana. Sempre tomo minhas precauções, ao contrário de certos protozoários.
A cabeça de Belch começava a doer. Não sabia se era o buraco no crânio dele ou aquele holograma empombado que não parava de insultá-lo.
- Que... precauções?
Elph viu-se no direito de dar uma aula.
- Ora, além de outros incontáveis recursos, vim equipado com um scanner, tridimensional a laser. Ultimíssimo modelo. Ainda não foi lançado no Japão, aparentemente por causa de alguns efeitos colaterais no tecido epitelial. Portanto, antes que o velho fosse embora, escaneei o corpo dele. E agora posso fazer uma reconstituição tridimensional. Talvez possamos descobrir alguma coisa.
- Auuu - disse Belch.
O holograma piscou, e uma réplica eletrônica de Lowrie McCall surgiu do nada diante deles. Uma matriz de linhas verdes, nada mais.
- Não parece muito real - resmungou Belch.
- O programa está sendo rodado em um nível mínimo de memória - explicou Elph - e alimentado pelos escassíssimos impulsos elétricos do seu cérebro. Eu poderia aprimorar a réplica, mas você acabaria desmaiando. Agora ouça. Meg mencionou alguma coisa sobre uma lista...
Elph girou o modelo desenhado a laser.
- Basta ativar a ferramenta de raios X. Isso consumirá mais de cem megabytes. Talvez você sinta uma leve pontada.
Como sempre, Elph havia subestimado o quociente de dor. A "leve pontada" jogara Belch novamente no chão, e ele agora se contorcia todo, os olhos tremendo como dadinhos em um copo. Suspensas no ar, as roupas da réplica de Lowrie ficaram transparentes, imediatamente tornando visível o conteúdo de todos os bolsos.
- Bolso do peito - ordenou Elph. - Aumentar. E o bolso de Lowrie aumentou para o tamanho A4.
- Então, o que temos aqui?
Belch não respondeu. Estava ocupado em apagar o fogo nos cabelos de Franco.
- Referência axial: X1, Y3, Z4. Desdobrar e aumentar.
Tudo desapareceu, menos o bilhete, que se desdobrou e cresceu até atingir as dimensões da parede.
- Incrível. Analisando os resíduos de tinta no verso, o programa é capaz de reconstruir o texto com impressionante exatidão.
"Fascinante", teria dito Belch, se estivesse com disposição para zoar, e não na agonia em que se encontrava.
- Isto deve ser a tal lista. Uma lista de desejos, se não estou enganado. Muito comum entre os patéticos terminais. Fico surpreso por você não ter uma, levando-se em conta os rumos lastimáveis que deu à sua vida.
Belch tinha a sensação de que seu cérebro era uma laranja podre. Rodar espetos na churrasqueira do inferno não podia ser muito pior do que aquilo.
Elph passou o dedo sobre a lista. "Só falta um", Meg havia dito. E o último desejo era...
- Cuspir do alto dos penhascos de Moher? Mas por quê? Quem poderia querer uma coisa dessas? - Elph fechou o programa. - Por outro lado, esses irlandeses são mesmo uma gente estranha. É bem possível que cuspir do alto de um penhasco seja considerado uma excelente opção de lazer para eles. - Voltando-se para a massa trêmula sobre o chão, perguntou: - Esses tais penhascos, onde ficam?
Belch consultou os últimos neurônios que lhe restavam - a dupla que não havia fritado com a intervenção de Elph. Penhascos de Moher. Ele já tinha ouvido falar daquilo.
- Excursão da escola... - balbuciou.
- Deixa pra lá - suspirou Elph. - Vou pesquisar seus arquivos de memória. Imagens dizem muito mais do que palavras, especialmente as suas palavras, que não passam de meia dúzia.
O holograma ficou em silêncio por um instante, vasculhando mentalmente os arquivos de Belch, que, por sua vez, adorou o breve momento de paz.
- Pronto - disse Elph. - Localizei os penhascos. Ficam na costa oeste da ilha. Numa região conhecida como Condado de Clare.
- Isso mesmo - disse Belch. - Condado de Clare.
- É claro que é isso, imbecil. Foi sua própria memória que me informou! Uma memória não discorda de si mesma!
Belch arriscou uma rosnada de advertência. Assim que chegasse ao inferno, cuidaria para que aquele gremlin tivesse o destino que bem merecia.
- E agora, o que é que a gente faz? Simplesmente voa pro interior do país?
- Não, cretino. Você está preso num corpo humano. Estamos restritos ao transporte terrestre. Este humano aí, por acaso possui um carro?
Belch riu.
- Franco? Você só pode estar brincando. Ninguém precisa de carro pra ir da poltrona até o banheiro.
Elph piscou.
- Então precisamos adquirir um meio de transporte.
- Adquirir?
- Sim, adquirir.

¶¶¶

Rissole O'Mahoney passeava pelo quarteirão a bordo de um Honda Goldwing. Não ia a nenhum lugar específico; só queria exibir aos vizinhos sua poderosa moto, negra como piche. Podia se dar a tal extravagância apenas porque era um dos caras mais durões das redondezas. Ninguém por ali teria coragem de chamar atenção para o fato de possuir uma motocicleta de 7.000 euros estacionada na porta de casa. Por outro lado, quem seria doido o bastante para tocar um dedo que fosse na moto de Rissole? Com certeza, ninguém que desejasse viver o suficiente para, quem sabe um dia, andar numa máquina daquelas. Até os passarinhos tinham medo de lançar suas sujeiras sobre a moto dele.
De repente começou a chuviscar. O primeiro sinal de uma tempestade que estava por vir, segundo havia informado o cara da televisão. Rissole decidiu então voltar para casa e guardar a moto sob uma capa de lona. Todo cuidado era pouco. Especialmente com aquela história de chuva ácida e tudo mais.
Ele girou o acelerador um pouco mais do que devia e entrou numa curva fechada. Foi então que viu Franco Kelly parado no meio da rua. De pijama e de chinelos! Por causa da chuva, os cabelos estavam grudados à cabeça, e a camisa do pijama modelava-se ao barrigão.
Rissole colocou a moto em ponto morto e parou ao lado do vizinho.
- E aí, Franco... - começou a dizer, parando logo em seguida. Tinha certeza de que aquele era Franco, mas o homem parecia ter envelhecido pelo menos uns trinta anos da noite para o dia. - Você devia parar de beber e começar a malhar um pouco - aconselhou Rissole. - Está que nem a sombra do seu pai.
Rissole achou aquilo engraçadíssimo. Que nem a sombra do pai. Engraçado e ao mesmo tempo durão. Uma combinação e tanto.
Mas Franco não estava rindo.
- Desce da moto - disse, com água da chuva e baba pingando do queixo.
A baba deveria ter alertado Rissole de que havia algo estranho por ali. Mas ele estava ocupado demais bancando o durão.
- O que você disse, Franco?
A coisa que parecia seu vizinho de porta rosnou - literalmente rosnou - para ele.
- Meu nome não é Franco. E eu disse pra você descer da moto.
Rissole soltou um longo suspiro. Tinha dado uma chance ao vizinho. Tinha sido educado e tudo. Mas, agora, o que mais podia fazer além de dar uma boa lição no atrevido?
- Escuta aqui, Kelly... - começou a dizer, baixando o descanso da moto com a bota.
E isso foi tudo que conseguiu dizer. À exceção do "aaarrrrrgh" que se seguiu - o que não chega a ser uma palavra. Mas esse "aaarrrrrgh" tinha uma boa explicação: Franco dera uma mordida brutal no antebraço dele, cravando os dentes na pele e balançando a cabeça até arrancar um pedaço.
Rissole esborrachou-se no asfalto, dizendo coisas sem sentido. Já havia participado de uma centena de brigas, mas aquilo... Aquilo era bem diferente. Quase animal.
- Calma lá, Franco - gaguejou ele, apertando o braço machucado contra o peito. - O que deu em você?
Belch agachou-se próximo a Rissole. Farejava medo, e isso era bom.
- Nada - respondeu ele. - Preciso da sua moto, só isso.
Rissole chegou a abrir a boca para objetar, mas então percebeu o fiapo de sangue que escorria pelo canto dos lábios de Franco.
- Está bem, está bem. Pode levar.
Belch abriu um leve sorriso, satisfeito com o martírio que estava produzindo.
- Mais uma coisinha - emendou.
- Pode falar. Qualquer coisa.
Belch apontou para a jaqueta de couro de Rissole.
- Suas roupas. Pode ir tirando.

¶¶¶

Flit, o ácaro do túnel, pleiteava sua segunda chance no paraíso. Sentia-se bastante inseguro naquele momento, sentado diante do grande São Pedro, usando nada mais que um sorriso amarelo e uma tanguinha encardida.
- Pois bem - disse Pedro, abrindo o arquivo de Flit em seu monitor. - Quer dizer então que você mudou...
Flit sacudiu a cabeça com entusiasmo.
- Flit mudou. Mudou muito. Outro Flit. Pedro suspirou.
- Não estou sentindo isso, Flit. Você vai ter de me convencer.
Corriam à boca miúda rumores de que São Pedro vinha passando tempo demais sintonizado nos programas de TV da Terra, especialmente os de auditório, e começava a assumir ares de psicólogo amador.
- Flit trabalha duro. Tempo todo. Trabalha, trabalha, trabalha. Nunca pára pra chupar pedra. Como Crank e outros colegas.
- Entendo. Mas me diga uma coisa, Flit. Por acaso está arrependido dos seus crimes?
Flit fez o que pôde para extrair uma lagrimazinha turquesa do canto dos olhos.
- Ah, sim! Arrependido e meio. Chora tempo todo. Quando não trabalha, trabalha, trabalha. Ah, pobre gente... Como foi que Flit fez coisa dessas? Tirar dinheiro delas? Flit burro, muito burro.
Flit deu dois tapinhas no próprio pulso para enfatizar ainda mais o quanto estava arrependido. Dois tapinhas de leve,
- Humm... - murmurou Pedro, desconfiado. - Suponho que você tenha feito seu dever de casa. Mas antes de lhe dar acesso à felicidade eterna, preciso fazer uma pergunta. - Ele se inclinou para frente, quase tocando o nariz do ácaro. - Lembre-se: se mentir, estará imediatamente desqualificado.
O ácaro do túnel engoliu a seco.
- Flit lembra. Mentira não vale. Pedro recostou-se novamente.
- Ótimo. Minha pergunta é a seguinte: se você chegasse aos portões do paraíso e eles estivessem abertos, sem nenhuma vigilância, você entraria, ou não?
Flit apertava os dedinhos magricelas, de tão nervoso que estava. Não podia mentir. Pedro descobriria na mesmíssima hora.
- Sim - confessou ele, angustiado. - Flit entraria. Sem titubear. Pé ante pé. Verdade, verdade, verdade. Errado, mas verdade.
Pedro não tinha qualquer expressão no rosto. Como se estivesse numa mesa de pôquer.
- Hmm... - começou a falar, levando a mão ao botão do limbo. - Sei não. Você disse a verdade, mas a verdade era ruim. Se ao menos tivesse feito algo pra ajudar alguém, algo que não fosse em beneficio próprio...
Flit ficou mais confuso do que de costume. Como ele poderia ter ajudado alguém desde sua última entrevista? Tinha ficado o tempo todo no túnel. E ninguém se demorava ali o bastante para ser ajudado. A não ser...
- Santo porteiro - disse ele às pressas. - Não aperta botão, puxa alavanca. Flit ajudou. Flit ajudou menina.
Algo no tom de voz do ácaro fez com que Pedro afastasse o dedo do botão e lhe desse ouvidos.
- Menina? Que menina?

¶¶¶

O coupé seguia a toda velocidade rumo ao Oeste, engolindo os quilômetros que separavam uma costa da outra. Do lado de fora do carro, a natureza armava alguma estripulia. Fabricava chuva no interior das nuvens e espocava raios por toda parte. Um cenário bastante melodramático.
Os ocupantes do carro não diziam muita coisa. O fim estava próximo, de um jeito ou do outro. Ambos sabiam disso. A questão se resumia a qual dos dois seria mandado para o túnel primeiro. E, quando ele ou ela chegasse lá, o tridente apontaria para baixo ou para cima?
O coração de Lowrie estava nas últimas. Cada ciclo de sístole e diástole revelava-se uma luta. Os remédios já não adiantavam muito. Para Lowrie, cada respiração podia ser a derradeira. E agora ele se entristecia ainda mais com isso, agora que havia redescoberto a si mesmo. A perda seria maior.
Meg às vezes tinha a sensação de que estava em outro lugar. Um lugar azul. Sentia nas próprias veias a pulsação do túnel. Restavam-lhe apenas algumas horas. Talvez minutos.
Para chegar aos penhascos de Moher, eles tinham de atravessar toda a Irlanda. Qualquer americano diria ser capaz de cuspir a uma distância maior. Mas, apesar da geografia, a viagem parecia longa. Especialmente com as mágoas e ressentimentos de duas almas rodopiando no banco da frente do carro como uma espessa neblina.
Por fim, depois de três horas e um sem-número de cidadezinhas de cartão-postal, eles chegaram. Os penhascos de Moher. Fechados. Pelo menos era o que dizia a placa.
- Fechado? - perguntou Meg, indignada. - E como é que alguém pode fechar um penhasco?
Lowrie apontou para a corrente pesada que fechava a entrada do estacionamento.
- Assim.
Na verdade, aquilo fazia sentido. O chuvisco havia se transformado numa chuva de verdade, e um vento traiçoeiro chegava a balançar o carro. Nuvens pesadas ameaçavam lançar raios, cargas positivas e negativas preparando-se para o grande aterramento.
- Humm... - resmungou Lowrie, preocupado.
Uma rajada de vento repentina poderia arrebatar uma pessoa e jogá-la no fundo do precipício. Sem falar que, naquele platô, qualquer ser humano poderia servir como uma espécie de pára-raio virtual.
Meg leu as emoções que ecoavam na cabeça de Lowrie.
- Tem razão - disse ela. - É melhor a gente desistir. Lowrie abriu a porta do carro com o ombro.
- Nada disso. Não quero desistir de mais nada. Pelo menos por hoje.
E ele saiu na tempestade.

¶¶¶

São Pedro tentava não pensar no assunto. Para se distrair, procurava pensar em outras coisas - na mesa, nos passarinhos exóticos que voavam ao seu redor, no esplendor do túnel. Ou em qualquer uma das coisas para as quais ele tinha sido obrigado a olhar durante os últimos dois mil anos.
Era proibido - estritamente proibido - intervir. Ah, mas como seria delicioso surrupiar uma alma das garras de Belzebu! Para Zeba, ser substituído era o pior dos pesadelos, porém ele acabaria segurando a onda. Além do mais, se a garota merecia uma entrevista nos portões do céu, era isso que ela receberia.
Mas era inútil continuar sonhando. Interferências desse tipo estavam fora de cogitação. Sempre que os espíritos se metiam onde não eram chamados, as conseqüências eram terríveis. Anjos e mortais. Água e azeite. Duas coisas que não se misturam.
Seria diferente se Belzebu tivesse mandado um Caçador de Almas. Nesse caso, ele, Pedro, estaria apenas equilibrando a balança. Todo mundo merecia uma oportunidade justa de redenção. Até o Chefão achava isso. Nenhum pardal cai do galho, etc etc.
Pedro convenceu a si mesmo de que Belzebu, sendo o demônio que era, havia mandado alguém para resgatar a alma da irlandesinha. E nesse caso sua obrigação angelical era mandar alguém túnel abaixo para dar uma espiadela no que estava acontecendo.
Um argumento meio fajuto, sem dúvidas, mas Pedro já estava ficando um tantinho entediado depois de dois mil anos sentado naquela cadeira de mármore.

¶¶¶

Os penhascos de Moher eram de tirar o fôlego, mesmo para quem já havia atravessado um túnel celestial. Paredões de pedra cinzenta que se debruçavam sobre o mar na parte mais acidentada da costa irlandesa. Em forma de ferradura, davam a impressão de que um gigantesco monstro marinho da pré-história havia deixado ali a marca de suas mandíbulas.
O vento solapava o paletó de Lowrie e castigava-lhe o joelho mais fraco. A chuva escorria em seus olhos, atrapalhando a visão e embaçando a borda do penhasco.
- Anda logo! - berrou ele em meio ao furor da natureza. - Antes que eu perca a coragem!
Uma torre redonda empoleirava-se no cume do penhasco, ao longe.
- Tem mesmo de ser de lá? - perguntou Meg.
- Tem - respondeu Lowrie. - Lá do alto. Está no verso vinte e dois.
Meg franziu a testa, contrariada, e entrou na cabeça do velho pela última vez. Era difícil. Muito difícil. Como escalar uma parede escorregadia de barro.
- Já entrou? - perguntou Lowrie.
Mau sinal. Ele deveria ser capaz de sentir imediatamente a presença dela. A juventude e a vitalidade de Meg. Mas desta vez suas forças não pareciam muito maiores do que antes.
Meg flexionou os dedos do velho.
- Sim, já entrei. Mas você não vá embora. Precisamos subir juntos esse penhasco.
Eles se viraram contra o vento, inclinando o tronco para não cair. Lowrie, obviamente, pesava pouco mais que um travesseiro de penas; teria mais utilidade como asa delta do que como peso de papel. Quase se podia ouvir o vento dando risadas, zoando com a cara dele.
Mas os dois parceiros seguiram adiante. De início andavam quase agachados; depois tiveram de engatinhar. Meg abriu a boca de Lowrie para reclamar, porém, antes que pudesse falar, uma rajada de vento viu ali uma boa oportunidade para invadir a garganta do velho e deixar de lembrança uma ou duas folhinhas secas. Depois disso, Meg não abriu mais a boca.

¶¶¶

Àquela altura o corpo de Franco não passava de uma casca. Belch sugava a energia dele o mais rápido que seu neurocórtex era capaz de recebê-la.
- Delícia! - exclamou ele, enquanto uma gosma laranja se espalhava entre suas costelas ectoplásmicas.
- Talvez seja boa idéia ir mais devagar - sugeriu Elph, flutuando sem nenhum esforço acima da moto - e economizar um pouco dessa energia para o embate final. Quando chegarmos à zona-alvo, teremos muito o que fazer.
- Talvez seja boa idéia desligar você pra economizar energia! Elph riu.
- Me desligar? E deixar você no comando da missão? Isso seria o mesmo que pedir a um babuíno para programar um videocassete.
Isso provavelmente havia sido um insulto, mas Belch não quis perder tempo pensando no assunto. Não podia desperdiçar energia. Os fluidos vitais de Franco já estavam quase no fim. Agora chegavam em pequenos jorros, e não no fluxo contínuo de antes. Belch sentia-se como uma criança que tentava chupar com um canudinho a última gota de um copo de refrigerante. O final daquela história prometia muitas emoções.

¶¶¶

Meg ergueu os olhos para conferir o quanto já tinham avançado.
- Puxa - exclamou -, quanto mais a gente anda, mais longe o topo fica!
Não era verdade, claro, mas o desânimo de Meg era maior que suas forças. A chuva agora açoitava-os como um chicote. Gotas do tamanho de bolinhas de gude se espatifavam na careca de Lowrie. O coração tremia feito uma britadeira; os braços e as pernas ficavam cada vez mais fracos em razão do fluxo sangüíneo irregular. Meg despejava toda sua energia no corpo do velho. Mas isso não bastaria. Eles ainda tinham um longo caminho pela frente.
- Anda, Lowrie - transmitiu ela. - Faça daqui mesmo. Isso não é tão importante quanto a Sissy. Cospe logo, e vamos dar o fora daqui!
No fundo de sua própria mente, Lowrie refletiu: ele estava matando o que ainda sobrava daquela menina. E para quê? Só por causa de uma canção de ninar idiota? Uma grande estupidez.
- Está bem - disse ele. - Vamos cuspir daqui mesmo.
- Até que enfim você ligou o cérebro!
Meg virou as costas de Lowrie para o vento e debruçou-se sobre a cerca de segurança. A borda do penhasco ficava pelo menos um metro além da cerca. Seria preciso pular para o outro lado.
- Olha, Meg - advertiu Lowrie. - Você é capaz de voar, mas eu não. Pelo menos ainda não.
- Não me provoque - devolveu Meg, trepada na cerca. Por fim ela desceu e aproximou-se da borda. O estrondo das ondas percorria o paredão e caía sobre eles como uma força física. Uma sensação ao mesmo tempo extraordinária e tenebrosa.
Ela acumulou o quanto pôde de saliva na boca.
- Lá vai - disse, engolindo as consoantes.
E cuspiu. Direto nos sapatos de 650 euros de Lowrie. Por que as coisas nunca davam certo na primeira vez?

¶¶¶

- E então? - rosnou Belch. - Está vendo alguma coisa?
- Quieto! - gritou o holograma. - Estou fazendo uma varredura.
A moto já se aproximava da recepção de visitantes. Elph estava tendo problemas com o acúmulo de eletricidade na atmosfera, que atrapalhava seu radar. Então resolveu mudar para o ultravioleta.
- Ali! - anunciou ele, triunfante. - Naquela crista!
A visão noturna canina de Belch captou a imagem imediatamente. Lá estavam eles, na borda do penhasco.
- Fácil demais - observou ele com um sorriso no canto dos lábios.
E arremeteu a moto contra a corrente de segurança.

¶¶¶

Engraçado como a gente nunca consegue cuspir quando precisa. Engraçado para quem não está se equilibrando na beira de um paredão de mais de cem metros de altura, em meio a uma tempestade furiosa.
Meg pigarreou com vigor, pensando naqueles charutos fedorentos que Lowrie costumava fumar. Não era possível que eles não tivessem depositado uma boa quantidade de catarro na garganta dele. Mas nada. A garganta do velho estava seca como um osso no deserto. Todo o líquido extra daquele corpo havia vazado pelos poros na forma de suor.
- Não acredito! - berrou ela contra o vento.
Em sinal de condolência, a natureza enviou um raio, que caiu não muito longe de onde eles estavam, espalhando torrões de barro para todos os lados. Assustada, Meg cobriu os olhos com o braço de Lowrie e, espiando sob ele, avistou a figura de Franco. Montado numa motocicleta. Vindo na direção dela.
- Essa não... - foi tudo que conseguiu dizer.
Foi o suficiente.

¶¶¶

Belch havia acabado de completar dezesseis anos quando explodiu com o tanque de gás. Dezesseis anos. Idade suficiente para tirar carteira de motociclista. Esse tinha sido seu plano. Assaltar a casa de McCall, vender os trecos dele, comprar uma moto. Andar pelas ruas na companhia de Rissole. Maneiro.
Para sorte de Meg, o plano nunca chegara a se realizar. Porque se tivesse experiência com as motos, e não fosse o amador que de fato era, Belch jamais teria tentado pular a cerca com moto e tudo. Simplesmente teria atropelado o arame, e, neste caso, todos os personagens desta historieta sobrenatural teriam sido jogados - gritando ou uivando - penhasco abaixo.
No entanto, como aquela era apenas a terceira vez que subia numa motocicleta, ele achou por bem impressionar a todos e jogou a roda dianteira sobre a cerca, achando que o resto da máquina viria naturalmente. "Querias, Zacarias", teria dito Evil Knievel, o lendário ás das acrobacias sobre duas rodas. Para realizar aquela façanha teria sido necessário uma rampa. E Belch não tinha rampa alguma.
Engastalhada na tela de arame, a moto rugia como um bicho preso numa armadilha. O corpo de Franco foi catapultado para o outro lado da cerca, acertando Lowrie em cheio no peito. O quarteto deslizou através da lama e parou bem na beirinha do penhasco.
Meg e Belch só tinham olhos um para o outro. Não que rolasse um clima entre eles.
- Está tudo acabado, Meg - sentenciou o meio-cão. - Você agora vem comigo.
Meg contorcia o rosto de Lowrie, que Franco apertava com as mãos. A proximidade do padrasto dava-lhe a sensação de que estava viva outra vez.
- Me larga! Me deixa em paz!
- Me larga, me deixa em paz - repetiu Belch. - Você é de dar dó!
O coração de Lowrie batia tão acelerado quanto um liqüidificador. Respirar estava cada vez mais difícil. Manchas dançavam diante dos olhos dele. E agora também havia aparecido uma dor. Uma dor vermelha.
- Anda, vai! - disse Meg, arfando. Lowrie mal encontrou forças para responder:
- Hein?
- Vai, cospe logo. Eu seguro ele. Aí a gente vence! Lowrie percebeu imediatamente que ela tinha razão. A única maneira de despachar aqueles dois era completar a lista.
Apertando a garganta de Franco com dedos de ferro, Meg finalmente conseguiu se desvencilhar. Agora já não havia mais lágrimas. Apenas determinação. Não em benefício próprio, mas do parceiro.
- Eu e Lowrie ainda podemos nos separar - disse ela, concentrando todas as forças no estrangulamento do inimigo. - Mas vocês não, não é? Isso significa que Lowrie pode se arrastar até a borda, e aí a gente vence. Você sabe o que vai rolar depois, não sabe?
Belch arregalou os olhos, mal acreditando no que estava acontecendo. Procurou freneticamente por uma última gota de energia no crânio de Franco, mas não encontrou nada. Tanque vazio. Ele se contorcia e se debatia, quase sem forças. Era apenas um fantasma preso numa concha.
Lowrie arrastava-se na lama. A dor havia se alastrado para a perna, e ele não conseguia ficar de pé. As batidas do coração misturavam-se aos rugidos do mar. Algo mais também estava batendo. Cada vez mais próximo. Algo azul. Só mais alguns centímetros, e ele poderia morrer em paz.
Elph observava do alto toda a confusão. Via o cretino de seu hospedeiro metendo os pés pelas mãos, mas não podia fazer rigorosamente nada. Na condição de holograma, não tinha nenhum poder físico, a não ser... a visibilidade.
Só restava uma chance para a turma das trevas. Uma esperança - e não podia falhar. Elph aproximou-se de Lowrie e ajustou seu espectrômetro digital. Bastaria um clique para que ele se tornasse visível a olhos humanos. Depois de ativar todos os seus apetrechos, ele preparou uma careta e apertou o botão.
Lowrie levantou os olhos. Uma criaturinha flutuava diante dele. Só podia ser do mal. Engenhocas sinistras brotavam do corpo dela, e um raio verde emanava de um dos olhos. Assustado, o coração de Lowrie bateu um tiquinho mais forte. Mais forte do que podia,
De algum modo eles estavam conectados, pois Meg logo sentiu Lowrie partir.
- Não! - gritou ela, quase sem energia vital.
Belch também estava partindo, mas, ao contrário dos demais, levava um sorriso no rosto.
- A gente se vê em breve - disse ele. - Muito em breve. O túnel se abriu acima deles, perfurando as nuvens como o canudinho de um gigantesco copo de refrigerante. E eles foram sugados para o alto.
Meg estendeu a mão para seu parceiro. Chamou por ele, mas Lowrie não podia ouvi-la. Seu corpo estava nos estágios finais de encerramento operacional. Apenas o cérebro estava vivo, e não por muito tempo.
Elph passou por Meg, zumbindo.
- Foi ótimo trabalhar com você - comentou. - Talvez possamos jogar no mesmo time depois que eu me livrar do protozoário.
Meg sequer ouviu o que ele disse. Chorava muito, e só tinha olhos para o parceiro, o único homem que se preocupara com ela em toda a vida. Mas agora tudo havia terminado. E ela tinha falhado. De novo.

¶¶¶

Flit agarrava-se à parede do túnel, esperando o momento de cumprir suas ordens. Tudo muito simples. Um favorzinho para Pedro, e ele estaria dentro. Ninguém precisava saber. Essa era a condição.
Ele tinha acompanhado a coisa toda. O penhasco, a tempestade e depois aquela criatura de motocicleta. Muito emocionante. Ter uma televisão devia ser mais ou menos assim.
Por fim, já sem nenhuma energia vital, eles foram sugados pelo túnel. Belch flutuava ao longo do caminho, um fiapo de baba escorrendo dos lábios sorridentes.
- Belo dia - disse Flit, procurando ser simpático.
- Arf- respondeu Belch, desconfiado.
Depois veio a menina, que não olhava para ele, pois ainda estava conectada à Terra. Teria de cortar aquele laço, senão jamais encontraria a paz.
- Menina, menina! - chamou Flit, o salvador da pátria. Meg virou-se lentamente, o rosto ainda inchado de tanto chorar.
- Flit?
- Sim, menina, sim! Flitty Flit Flit! Menina lembra pedras?
- Pedras?
- É, pedras! Menina ficando surda, será? Pedras no bolso. Azuis.
Meg lembrou-se de repente. As duas pedras azuis que Flit lhe dera quando se conheceram. Pedras da vida. "Baterias extras", ele havia dito. Naquela ocasião ela não havia entendido direito, mas agora...
Ela vasculhou os bolsos. As pedras ainda estavam lá. Azul e prata. Brilhantes e quentes. Tão logo fechou os dedos sobre elas, Meg sentiu suas forças voltarem. O túnel recuou e agora pulsava cada vez mais longe. Meg flutuou de volta à Terra, ao encontro dos dois corpos esparramados à beira do penhasco.
Um coisa terrível de se pensar, mas o aspecto de Lowrie era lastimável. A chuva havia arruinado as roupas novas dele, e o rosto estava todo sujo de lama. Ele não respirava. Mas ainda restava uma centelha. Uma centelha alaranjada atrás do globo ocular direito.
Meg colocou uma das pedras sobre a testa do velho, e ela se derreteu como um cubo de gelo numa chapa quente. O efeito foi instantâneo. Lowrie arregalou os olhos e encheu os pulmões com a voracidade de um mergulhador em apuros.
- Meg? - disse ele, em meio à chuva. - Eu estou...?
- Não - respondeu a parceira. - Você está vivo. Não sei por quanto tempo, mas vivo.
Lowrie cuspiu um bocado de lama e minhocas.
- E aquelas... criaturas?
- Foram embora. Pra sempre, eu acho.
- E você?
Meg deu de ombros.
- Sei lá. Tenho uma dessas pedras também. Com ela, acho que posso demorar aqui mais um pouquinho. Se você quiser, claro.
Lowrie abriu um sorriso molhado de chuva.
- Claro que eu quero! Quem mais aturaria a minha rabugice?
Pois bem. Nossa história poderia terminar por aqui. Todo mundo feliz para o resto da eternidade. Acontece que Franco permanecia ali, catatônico. Não estava morto, mas também não estava exatamente vivo. E ninguém merecia aquilo.
Meg e Lowrie se entreolharam. Ambos sabiam o que devia ser feito.
- Adeus - disse Lowrie simplesmente.
- Tchau - sussurrou Meg.
Tinha de agir com rapidez, senão perderia a coragem. A pedra afundou na testa de Franco, devolvendo os anos de vida que lhe haviam sido tomados. Seus olhos brilhavam novamente. Ele voltara a si, mas já não era o mesmo.
Meg tomou o rosto do padrasto entre as mãos.
- Você viu como são as coisas por lá? - perguntou ela. Franco fez que sim com a cabeça, o horror do inferno ainda fresco na memória.
- Ótimo. Então nunca se esqueça disso.
Franco jamais se esqueceria, mesmo que quisesse. As coisas mudariam muito dali em diante.
Naturalmente, ceder a pedra ao padrasto violento constituía um ato da mais pura bondade. Uma explosão de luz branca e suave abraçou Meg e lançou-a delicadamente rumo à boca do túnel.

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 14

PARA TODO O SEMPRE

O OCEANO ATLÂNTICO nadava na direção da América. Lowrie observava-o junto à base de uma torre redonda. Uma sensação extraordinária, ainda estar vivo para apreciar a natureza daquela forma.
Agora ele dispunha de mais tempo, não restava dúvida. Tinha consciência de que Meg havia feito algo por ele, tinha lhe dado alguma coisa. Não sabia exatamente o que, mas disto ele sabia: não desperdiçaria aquela espécie de prorrogação com sentimentos inúteis de autopiedade. Tinha no bolso o número do telefone de Sissy Ward e um cartão de crédito com um limite pronto para ser estourado.
Um persistente raiozinho de sol perfurou a espessa camada de nuvens e pousou sobre a testa de Lowrie.
- Obrigado, parceira - sussurrou ele, os olhos voltados para o céu.
E depois cuspiu no mar, do alto dos penhascos de Moher.

¶¶¶

Meg aproximava-se do forcado. Para onde ele apontaria, para cima ou para baixo? O momento da verdade. O fulgor do inferno era ofuscante. Criaturas tisnadas de fuligem, empoleiradas no portão, usavam o tridente para espetar sem piedade os recém-chegados. Meg segurava a respiração, esperando a qualquer instante que uma força invisível a puxasse para baixo. Mas essa força não veio. Meg passou direto pelo portão do inferno. Só então respirou aliviada. Mamãe, aqui vou eu.
Um dos limpa-trilhos lançou-se na correnteza. Era Belch. Não estava livre da força da gravidade do inferno, mas talvez pudesse subir o bastante para...
Belch enroscou-se no tronco dela. Palavras sem sentido escapavam de seus lábios molhados de baba.
- Meg Finn... - balbuciava ele - Vem comigo, Meg Finn... Para Meg, aquela era a gota d'água. Ela já não suportava mais. Depois de tudo que havia acontecido, o vira-lata ainda estava atrás dela. Só lhe restava uma coisa a dizer.
- Belch! - berrou ela. - Vá pro inferno!!!
Dado o recado, ela lascou um pontapé no focinho suarento dele, e a criatura que um dia fora Belch Brennan despencou no fogaréu do inferno com o nome de Meg Finn gravado na lembrança como uma oração. Ou como uma praga.

¶¶¶

Hora de tentar contornar a situação. Belzebu queimava os miolos para encontrar um jeito de reverter aquele fiasco em beneficio próprio. O Mestre mantinha-o à espera no saguão. Mau sinal.
A secretária - uma atriz loiraça, vencedora do Oscar - finalmente apareceu para buscá-lo:
- O Senhor das Trevas vai recebê-lo agora.
Percebendo na voz dela um tom de insolência, Belzebu pensou em vaporizá-la ali mesmo, mas desistiu a tempo. O Mestre tinha muito apreço pelas suas secretárias. Algumas duravam uma semana inteira antes de serem despachadas para o depósito de lixo. Literalmente.
Satã encontrava-se num dos cantos do escritório, debruçado sobre um joguinho eletrônico.
- Morra, seu alienígena de uma figa! - dizia ele entre dentes, manipulando os botões com impressionante rapidez.
- Aham - pigarreou Belzebu, para se fazer notar. Satã ficou imóvel. Belzebu também. Pigarrear para o Mestre do Submundo talvez não tivesse sido uma boa idéia.
- Você me fez perder uma vida, Zeba.
- Mil desculpas, Mestre - suplicou o Número Dois do inferno. - É que tenho notícias importantes.
Lúcifer levitou a alguns palmos do chão de mármore. Vestia-se de maneira informal naquele dia; usava um moletom e um par de tênis da Air-Demo.
- Notícias sobre a garota irlandesa, eu espero. Belzebu engoliu a seco.
- Sim, Mestre. Notícias sobre a irlandesa.
- Notícias boas?
- A curto prazo... não.
O Diabo franziu a testa, contrariado.
- Mas a longo prazo colheremos os frutos de uma importante lição aprendida.
- E que lição seria essa? - perguntou Satã.
- Bem... Aprendemos que não podemos confiar naquelas geringonças eletrônicas do Myishi. Uma delas falhou num momento crítico e arruinou todo o resgate. A menina já estava no túnel, pelo amor de D... Satã!
Lúcifer tamborilou com as garras sobre a mesa.
- Quer dizer que a menina estava no túnel, hein?
- Aura vermelha e tudo mais.
Ali mesmo Satã tomou uma decisão.
- Esse Myishi... um arrogante, isso sim. Deixe-o na corrente do esgoto por alguns séculos. Estamos mesmo precisando de um filtro novo.
- Sim, Mestre - disse Belzebu, esforçando-se para esconder um risinho de satisfação. - Imediatamente.
Ele se apressou na direção da porta, ansioso por sair dali enquanto a coisa estava boa para o seu lado.
- Ah, Belzebu, mais uma coisa...
Belzebu congelou no lugar, tenso, esperando a qualquer instante sentir nas costas a terrível pontada da vaporização.
- Sim, Mestre?
- Um diretor de cinema está programado para chegar hoje. Um sujeito gótico. Faz uns filmes bem macabros, com super-heróis sombrios. Queria que ele desse um jeito na decoração deste lugar. Vá encontrá-lo na chegada. Pessoalmente. - O Diabo fez uma pausa para estalar todos os ossos de suas garras. - E vê se não pisa na bola desta vez, Zeba. Senão Myishi vai ter companhia no esgoto.
Belzebu fez uma sofisticada mesura em sinal de subserviência. O teatro antes de tudo, pensou. O teatro antes de tudo.

¶¶¶

- Sei não - disse Pedro, dando um tapinha no seu computador novinho em folha. (Por incrível que pareça, um programador havia conseguido entrar no céu.) - Seu currículo é impressionante para uma adolescente. Nada de muito peso na coluna do bem.
Meg fazia sua conhecida carinha de "sou apenas uma menininha engraçadinha". Mas não enganava ninguém.
- Olha só isto aqui - continuou Pedro. - Furto em lojas. Fraude. Vandalismo. Malandragem na escola. Há muito mais, só que a tela não tem espaço suficiente.
- É só usar o cursor - sugeriu Meg.
- Claro que eu sei pra que serve um cursor - retrucou São Pedro, de um jeito nada santo. - Só estou tentando ilustrar um ponto de vista, ora bolas. Você nunca sabe a hora de fechar o bico, não é, menina?
- Não, não sei - disse Meg, em vez de fechar o bico.
- E você tinha de chutar o tal de Belch, não tinha? Violência no túnel. Acho que nunca tinha visto isso antes. Impressionante, até no seu caso.
Meg resmungou algo que, com sorte, seria recebido como um pedido de desculpas.
- Bem, por outro lado, você deu a pedra a seu padrasto. Meg fez que sim com a cabeça. Agora estava com medo de falar.
- E também ajudou aquele mortal a realizar seus desejos. Mais gestos de cabeça, desta vez mais rápidos.
Pedro coçou a barba pela enésima vez. Aquilo era pior do que esperar pelo resultado da loteria.
- Humm... Está bem, então. Pode entrar. - Ele apertou um botão escondido sob a mesa, e imediatamente um buraco se abriu no céu, feito um alçapão. - Eu sei, eu sei... Não é exatamente um portão perolado, mas a expressão "os portões perolados do paraíso" fica muito melhor nos livros do que "buraco no céu".
Meg só fazia sacudir a cabeça. Não ia mexer em time que estava ganhando.
Pedro apontou o indicador na direção dela, fazendo-a flutuar.
- Vai, minha filha, sobe. Acho que há alguém à sua espera. Meg Finn flutuou até o alçapão. Um vulto aguardava por ela na entrada. Não dava para ver quem era, mas sentia-se no ar o doce perfume do jasmim.

 

 

                                                                  Eoin Colfer

 

 

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