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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LOBA DE PRATA - P.2 / Alice Borchardt
A LOBA DE PRATA - P.2 / Alice Borchardt

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

CAPÍTULO 16

A loba correu para a Basílica Luterana. Cheirava mais limpa que o palácio. A crua fúria e dor em seu coração afastaram à mulher como se nunca tivesse existido. Fugiu em busca das limpas e verdes colinas além da cidade.

Em alguns momentos, estava trotando entre as altas colunas que suportavam o telhado da igreja e que pareciam um bosque de mármore aos olhos da loba.

A enorme igreja estava inundada nos aromas de incenso e cera das velas, misturados com a fresca umidade de um edifício resguardado durante muito tempo da luz solar. Um lugar tão inocente como as clareiras do bosque que enchiam os sonhos da mulher. E então, de repente, a luz das tochas além dos portais da catedral cintilou em seus olhos.

A raiva queimava ainda no coração da loba. Correu para as tochas sem saber o que procurava: um inimigo ao qual combater ou a liberdade a alcançar?

Deteve-se derrapando na sombra, junto ao lugar onde Adriano enfrentava aos lombardos. Estava sozinho. A mulher, agora uma figura remota na mente da loba, não o advertira a tempo.

A praça estava cheia de soldados lombardos a cavalo, todos armados até os dentes.

Adriano havia elevado os braços para ordenar silêncio.

 

 

 

 

—Por que vêm aqui? Como se atrevem a ameaçar o vigário de Cristo?

As tropas pareciam retroceder, apinhadas, acovardadas pelas palavras do Papa.

Mas Basílio se adiantou até a vanguarda.

—Tudo terminou. – Ele gritou a Adriano. - Tomamos a fortaleza de Nepi, Palestrea e Piou, e agora Roma é nosso prêmio. Renda-se a mim antes que o passemos pela espada.

Das sombras, a loba podia ver o perfil de Adriano sobre ela. Era uma cabeça de César em uma moeda de prata, inflexível, de mandíbula forte e boca firme sob o nariz afilado como uma folha, seus olhos como pedra refletindo a luz das tochas. Clérigo e ao mesmo tempo guerreiro. Com ameaças ou sem elas, a loba soube que nunca se renderia.

A loba ouviu um golpe, um ruído de ruptura de madeira e pedra. Chegaram gritos da profunda escuridão da praça. Havia luzes em cada janela e balcão. Estava congregando uma multidão que chegava de cada bairro da cidade, pronta para proteger à Papa.

Os cavaleiros lançaram olhares inseguros por volta dos recém chegados, mas Basílio cavalgou para a figura magra e vestida de branco.

A loba ficou diante de Adriano. À luz das tochas, ela parecia quase uma criatura imaterial, uma forma prateada feita de luz de lua e sombra negra. Mas sua cabeça estava baixa e suas presas de marfim brilhavam dourados à luz.

A loba ouviu um cochicho entre a chusma: "É Lupa, a loba de Roma".

Por um momento, a multidão e os soldados permaneceram completamente calados. Os cavalos se agitaram e o suave som de seus cascos sobre os paralelepípedos era o único barulho.

O som equivocado. Pensou a loba. Deveria ter sido como um tambor.

Era como ela os caçara antes. Ah, as planícies haviam sido um mar e as altas vegetações movidas pelo vento cantavam com a música da liberdade, em uma terra ilimitada onde suaves nuvens brancas projetavam a seu passo, longas e frescas sombras na eternidade verde. Os cavalos tinham deslocado alcatéias tão imensas que ao passar como trovões pelas planícies elas rivalizavam com as mesmas nuvens. Castanhos e ruanos, negros e vermelhos, suas pelagens brilhavam à luz, presos e de uma vez companheiros na liberdade. O caçador e os caçados unidos entre si por uma necessidade não questionada, desafiando para sempre nela e na liberdade de seus corações.

O semental de Basílio se aproximou e gritou um desafio. A loba soube que já havia lutado contra sua espécie antes; estava cego de raiva e desejos de destruí-la. Saltou para diante como uma flecha ao deixar o arco. Os cascos do semental desceram para seu crânio, mas a mulher sumiu. Era a loba que estava presente e entendia com selvagem intensidade o que devia fazer.

No último momento antes que os cascos se estrelassem contra seu crânio, ela esquivou-os e se arremeteu contra os tendões do cavalo. O semental escoiceou.

Um casco golpeou a loba no ombro e ela saiu pelo ar, voando durante um instante e caindo sobre os paralelepípedos.

Era muito arriscado e perigoso. Por ela, a loba teria fugido. Cambaleou, com a terrível dor do coice nas costelas sentindo algumas como se haviam quebrado. A mulher estava novamente no controle. Se conseguisse enfurecer ou aterrorizar o cavalo, poderia derrubar Basílio e o homem estaria à mercê de suas presas. Ela queria matá-lo. Ainda podia sentir a mordida do colar de ferro ao redor de seu pescoço. Com fria e consciente ferocidade, carregou contra o semental.

Com um chiado assobiante, o cavalo se encontrou com ela na metade de caminho. A loba saltou, procurando o brando e sensível focinho.

O semental, furioso e com uma incrível presteza para um animal tão grande, atacou com seus cascos dianteiros, se preparado para seguir aproveitando sua vantagem e pisotear a loba em até convertê-la em partes sangrentas de pele e osso. Mas o homem sobre seu lombo atrapalhava seus esforços.

O cavalo se ergueu jogando no Basílio ao chão. O homem caiu aos pés da escada da basílica, entre o estrondo de sua armadura e um uivo de fúria. O semental carregou novamente, fazendo saltar faíscas dos paralelepípedos enquanto galopava para a loba.

Ela mal teve tempo para ficar em pé antes que o semental chegasse até ela. Os cascos golpearam os pedregulhos apontados para sua cara, afastando-se do Papa e de Basílio.

Maldito seja. Pensou a mulher. Quero a esse bastardo humano que tenta sacudir o atordoamento da queda.

Basílio estava gritando com toda a força de seus pulmões:

—Matem essa cadela infernal! Matem-na! Matem-na!

Mas os lombardos tinham seus próprios problemas. O medo se estendia entre os cavalos como os relâmpagos pelo céu; eram uma massa desorganizada e nervosa.

O semental era uma força enlouquecida. Nada e nem ninguém queria estar em seu caminho, mas a loba se manteve firme. Mulher e loba unidas, encerradas na lógica e no compromisso da batalha. Já não havia fuga. Era matar ou morrer.

A loba se lançou uma e outra vez contra os esporões do cavalo, tentando desequilibrá-lo. Deram voltas e mais voltas, em uma selvagem resistência de cavalo e loba, girando para o centro vazio da praça enquanto os homens de Basílio e a chusma se retiravam ante os furiosos animais.

A loba era vagamente consciente do cântico da multidão em torno da praça. –

- Lupa! Lupa! - Animando-a, incitando-a a seguir.

Mas o cavalo era muito rápido, muito poderoso. Cada vez que ela arremetia se encontrava com seus cascos ao vôo e seus dentes nus e tinha que saltar atrás para não morrer entre eles.

A loba sabia que cedo ou tarde um dos dois cometeria um engano. O semental escorregou sobre as pedras úmidas. Não chegou a perder o equilíbrio, mas cambaleou.

Como uma centelha, a loba se preparou para saltar. Imediatamente estava no ar: caiu sobre o pescoço do semental. Seus dentes se encontraram com um rangido no ponto mais fino da coluna, sob a cabeça.

O cavalo retrocedeu e corcoveou, tentando tirar à loba do lombo. A luz das tochas piscou ante os olhos da loba enquanto girava grosseiramente de um lado a outro. O mundo desvaneceu. O medo desvaneceu. Não restava nada, salvo sua presa sobre o pescoço do cavalo.

As mandíbulas de um lobo podem romper o fêmur de um homem, o osso mais longo e forte do corpo. Ela fechou a mandíbula e a espinha dorsal de seu inimigo se rompeu sob suas presas. O grito de morte do semental foi espantoso.

A loba se soltou, caindo novamente entre estertores, consciente de que sua boca estava cheia de sangue, mas daquela vez não era dela.

Mas havia aterrissado com forma de loba, dando-se conta enquanto ficava em pé de que os homens de Basílio estavam agrupados ao extremo da praça, do outro lado do cavalo morto, ainda tentando controlar a suas assustadas montarias.

Não pensou. Baixando a cabeça, o focinho gotejando sangue, sua pelagem brilhando dourado à luz das tochas, lançou-se contra a cavalaria de Basílio como um raio. A disciplina que ainda podiam conservar ficou feita a migalhas.

A loucura fluiu entre os cavalos como as ondas que se estendem ao atirar uma pedra à água. Em questão de instantes, eles estavam dispersos pela praça, fugindo, encolhendo-se, gritando em um cego frenesi animal.

Ao mesmo tempo, mais tochas brilharam em uma das entradas da praça. A loba compreendeu que a guarda papal estava chegando e graças a ela, o fazia a tempo. A guarda caiu sobre a desmoralizada cavalaria de Basílio como um aríete faria pedaços uma porta carcomida e a chusma a seguiu.

Ao redor da loba, tudo estalou em violência. Ela se encontrou se retorcendo e girando, evitando os cascos dos cavalos enquanto o horror e a alegria lutavam em seu coração.

Fugiu na acolhedora escuridão da igreja. Não recordaria depois como tinha encontrado seu vestido no corredor. Só soube que, depois de um breve lapso, suas garras pisaram na seda e o fragrante tecido que estivera em contato com a pele da mulher. A loba a combateu, querendo, desejando a noite, sonhando correndo livremente. Uma doce fome saturava sua mente. Uma imagem de pradarias sem fim, molhadas e refrescadas pela chuva, chamava-a. Fluíam como um imenso mar enquanto ela correu sob uma abóbada de céus estrelados não manchados pela luz humana. A loba sonhava, mas a mulher sabia. E desta vez foi à mulher que ganhou.

Com a fome do coração da loba ressoando em suas veias, Regeane se encontrou de joelhos entre os farrapos de seu vestido. Sentindo-se horrorosamente nua e vulnerável, se cobriu com as três capas de roupa obrigatórias para uma respeitável mulher romana.

A dor a afligia. Sua face e sua boca estavam cobertas de sangue. Estremecendo na escuridão, perguntou quanto teria salpicado seu vestido. Parecia que o sangue cobria o mundo. O sabor era quente e doce em sua boca. Ficava nela bastante da loba para gozar do sabor e desfrutar da sensação de poder criada pela matança, mas a mulher se sentia manchada.

Havia matado. Tinha tomado uma vida. O sangue do cavalo bulia em sua face e mãos.

Vagamente, mesmo através de grossas paredes de pedra, ela podia ouvir os sons na praça enquanto os cidadãos e os soldados expulsavam os lombardos.

Ela ficou torpemente em pé e se apoiou contra a parede. Avançou pouco a pouco através dos silenciosos corredores vazios até que encontrou um pátio com uma fonte. Enxaguou a boca e esfregou sua face e braços. Podia ver a fraca luz das estrelas e a água que saía de uma cabeça da Gorgona e ia cair em uma concha de pedra. A espuma da fonte salpicava um maciço de erva-doce e ela ficou de joelhos, com sua face contra o fresco mármore da fonte, sentindo o toque como uma pluma, das folhas sobre sua face. O suave aroma das ervas afastou a angústia e confusão de sua mente e fez descansar seus nervos alterados.

A loba subiu com suavidade em sua mente, tranqüila, sem tentar mudá-la ou controlá-la, mas presente, gozando da paz do sombrio jardim, longe das batalhas e perplexidades da humanidade. O olfato da loba lhe disse que havia outras ervas ali, seus perfumes flutuando no ar úmido e escuro, a espessa doçura da hortelã e o agudo aroma do tomilho a seus pés.

A mulher queria fazer perguntas a sua escura companheira, mas a loba não respondeu. Ela simplesmente era e, como sempre, usava todo seu ser nos problemas do momento. Percebia o sofrimento da mulher e desejava lhe dar paz.

Ali, juntas por fim naquele pequeno retalho de terreno selvagem, presas entre a imensidão da obra humana, sós e livres de ameaças, converteram em uma só.

Para a loba não havia bom e mau, certo ou errado. Só havia um padrão e ela era parte do mesmo. Julgar como fazia a mulher era algo tão estranho a sua natureza, como a esperança e o desespero.

Para ela, o mundo era uma tapeçaria de coisas dadas: amanhecer vermelho, depois ouro; ocasos formados pela sombra púrpura e luz sangrenta; planícies cobertas de altas vegetações e montanhas recortadas contra o céu azul; e tormentas cinza que se elevavam, surgindo aparentemente do nada, vagando ao azar, molhando a terra com a chuva, gastando sua fúria em selvagens estalos de relâmpagos.

A vida era parte do padrão e a morte também, como o eram o sangue e a dor. Ela havia lutado incontáveis vezes, percorrendo o longo e escuro atalho para a noite sem estrelas. Mas aquilo também era parte do padrão, parte do sutil tapete de luz e escuridão cuja única garantia era sua própria repetição interminável, sempre distinta, mas sempre a mesma.

O padrão era beleza, de algum modo sempre em harmonia eterna consigo mesmo. Era beleza! A fealdade, a tristeza, o desespero eram julgamentos humanos impostos por mentes inferiores e assustadas ao brilhante espectro da realidade, cujos limites a loba não podia compreender sequer vagamente.

Ela só sabia o que era e era parte do padrão e estava contente sendo ela mesma e seu eterno e imperecível amor por sua realidade e seu mundo.

A mentalidade da loba se desvaneceu pouco a pouco enquanto deslizava para o silêncio, deixando a mente da mulher ciente de tudo, ainda fazendo perguntas, mas em paz. Descansou em silencio sobre seus pés junto à fonte, ouvindo o som musical da água ao cair, bebendo o doce ar limpo pela tormenta de horas antes.

Sou humana, pensou Regeane obstinadamente e mais que a loba. Ou sou menos? Não pôde responder a sua própria pergunta e não se incomodou em tentar. As orelhas da loba, sempre alertas disseram-lhe que alguém se aproximava.

A mente da mulher reconheceu o passo.

Lucila.

 

                                                           CAPÍTULO 17

Lucila elevou a tocha, iluminando Regeane ajoelhada junto à fonte.

—Tem um problema com roupa. – Ela disse, mostrando um olhar desaprovador ao vestido de Regeane.

Regeane ficou em pé e olhou o brocado sujo e manchado de sangue. Seu longo cabelo caia sobre sua face.

—Sinto muito. Da próxima vez usarei algo escuro. As manchas não se notam tanto.

—De quem é esse sangue? Teu ou do cavalo?

—Meu, em sua maior parte. Gundabald me esbofeteou e sangrei pela boca e o nariz. Quer me encadear e me encerrar para sempre.

—Não conseguirá. - Disse Lucila. - Já é muito tarde para isso e ele não se dá conta. Assim que pudesse te liberar, mataria-a.

—Sim. - Respondeu Regeane com amargura. – Mataria, sim.

—Não diga nesse tom. Por que não teria que fazê-lo?

À luz da tocha, a face de Lucila era dura. A tensão marcava profundas linhas ao redor de sua boca.

—Eu não queria matar o cavalo, - disse Regeane. - Nunca tinha matado antes, sequer a um frango.

—Então já era hora de que aprendesse. - Disse Lucila com severidade. - Às vezes é necessário. Tome, - ela colocou um pente e uma rede para cabelo, de pérolas, na mão de Regeane. - Arrume o cabelo. Necessito que esteja apresentável para te levar ante o Papa. Além disso, você matou um animal, não um homem.

—Todos somos animais. - Disse Regeane, desenredando o cabelo. - Nem mais, nem menos.

—Talvez tenha razão, não saberia dizer. Eu acredito que os homens morrem com mais dificuldade, chutam mais tempo o final da corda que leva sua vida. O laço pode estar nas mãos do homem ou nas do tempo, mas se fecha igualmente. No final todos chegamos a ele. Pelo menos, o cavalo morreu rapidamente e sem dor. Claro que, se a pegarem, não lhe oferecerão uma morte tão rápida e limpa como a dele.

Regeane vacilou ante as palavras de Lucila.

—Basta! — Estalou a mulher.

Lucila fez umas quantas inspirações profundas e Regeane compreendeu que se ela dirigiu o grito a si mesma, porque tinha problemas para dominar. O medo de Regeane era contagioso.

—Tenha calma. - Continuou Lucila. - A cidade inteira está agora em chamas e há distúrbios por toda parte. Tenho que encontrar algum lugar para você. Minha casa já não é segura.

—Não entendo. O que aconteceu? A tropa do Para não rechaçou a tropa de Basílio e seus homens?

Lucila riu. Uma risada terrível, uma risada que ocupava o lugar das lágrimas e dos gritos. Levantou a tocha, estendeu a mão e pegou a face de Regeane entre seus dedos, apertando-a. — Não entende?

Regeane tentou menear a cabeça, mas descobriu que não podia. Lucila lhe segurava o rosto com muita firmeza.

—Não. – Ela sussurrou através de alguns lábios intumescidos pelo medo.

—Muito bem. - Disse Lucila e fez uma pausa. Regeane sentiu que o tremor fluía através de seus dedos e seu corpo ao ser reforçado seu controle por uma férrea vontade. - Estamos sobre uma onda e ninguém pode dizer se ela nos trará sãos e salvos à costa ou nos afogará. Esta cidade governou a si mesmo desde tempos imemoriais. E seus cidadãos recordam que derrocaram Papas e destronaram imperadores. Inclusive Desidérius e Basílio os temem. Esta noite, eles ajudaram às forças do Papa a rechaçar Basílio, - ela continuou, - mas amanhã, se Adriano ficar desacreditado, eles podem abrir as portas e boas-vindas a Basílio e o rei lombardo como seus salvadores. Se... se como eu disse, Adriano ficar desacreditado. Enquanto isso, eles, o povo, é o governo. Nesta noite, neste mesmo momento, não tenho nenhuma dúvida de que estarão saqueando a vila de Basílio e matando seus serventes que não tenham conseguido fugir. Amanhã, podem saquear a minha ou inclusive o próprio palácio do Papa, se demonstrar que Adriano está corrompido pela enfermidade de Antonius. Para isso basta que encontrem Antonius em seu estado atual, vivo ou morto! Você... — Lucila sacudiu ligeiramente a face de Regeane para dar ênfase a suas palavras impedirá que isto aconteça ou te prometo, que cairá comigo.

Regeane retrocedeu, liberando da mão de Lucila.

—Não precisa me ameaçar. – Ela disse. - Tenho tão pouca escolha como você: só a promessa do Papa me protege. Ganhando ou perdendo, que tenha êxito ou fracasse estamos juntas nisto. Mas não poderei ajudar a ninguém se Gundabald me pegar. Disse que tinha uma jaula para lobos e você sabe que tem. Se conseguirem vencer Adriano, nunca poderei ajudar a ninguém mais. Você não vê? — Regeane disse desesperadamente. - Gundabald me torturará até que já não tenha forças para resistir. Até que meu coração, meu espírito e minha vontade se rompam para sempre. Acabarei como minha mãe, fazendo tudo o que ele disser.

—Gundabald! — Lucila cuspiu umas quantas palavras em um latim gutural. - Como conseguiu entrar aqui esta noite?

—Augusta. – Regeane disse. - Não sabia que Augusta me traiu?

Os dentes de Lucila rilharam. - Puta, rameira. – Ela sussurrou. - Seja minha filha ou não, lhe arrancarei o coração por isso. Como se atreve a interferir em meus planos...

Lucila fez uma pausa. Sua face empalideceu e sua pele pareceu esticar sobre seus ossos como se tivesse sido golpeada por alguma terrível certeza.

—Cristo! – Ela sussurrou. - Agora Gundabald estará defendendo seu caso perante o Papa. Devemos fugir daqui, te esconder. Deus sabe o que ele estará contando a Adriano e depois do que aconteceu esta noite na praça, Adriano o escutará.

Nesse mesmo instante, a loba ouviu passos.

—Depressa. - Sussurrou Regeane. – Está vindo alguém.

Lucila levantou a tocha. Seus olhos investigaram febrilmente o pequeno pátio.

Regeane compreendeu que estavam presas. Só havia uma entrada.

Um momento depois, elas foram rodeadas por soldados com tochas. Um homem alto com uma adornada armadura se inclinou ante Lucila.

—Vejo que a encontraste, minha senhora. Sua Santidade deseja que retorne ao triclinio o quanto antes. Seu tio está lá está fazendo... — O homem fez uma pausa... - Tem feito algumas... Acusações muito graves.

Regeane não tinha reparado na presença da loba até o momento em que notou que as tochas pareciam antinaturalmente luminosas. A criatura suportou só alguns poucos pulsar do coração e depois partiu para as profundezas do ser de Regeane, em triste resignação e derrota. Deixando à mulher sozinha, com um nó gelado de ansiedade em seu ventre enquanto se preparava para enfrentar o pior.

A loba podia sonhar, mas a mulher tinha que viver se a loba devia lutar novamente. Tudo o que sentia Regeane era uma gélida determinação de sobreviver, não importava o que tivesse que fazer.

Ela fitou seus arruinados ornamentos com medo. Medo da impressão que causariam. Necessitava de toda vantagem possível se quisesse persuadir Adriano de que não cedesse ante Gundabald.

—Temo que não esteja em condições de me apresentar ante Sua Santidade. – Ela disse brandamente. - Posso...

Viu que a boca do soldado se estirava, com a negativa pronta em sua face, e modificou sua pergunta:

—Posso pedir a alguém que me deixe seu manto para me cobrir decentemente?

Um dos soldados lhe deu um manto escuro e grosso. Regeane o colocou sobre os ombros e ao redor de seu corpo, ocultando tanto de sua roupa como foi possível. Depois acompanhou os homens à vila, seguida por Lucila.

A grande sala estava mais escura que antes. Muitas dos abajures tinham esgotado o azeite e as velas se consumiam em seus suportes. Havia mesas e camas caídas entre a comida atirada ao chão e poças de vinho. Recipientes quebrados e fontes de prata caídas cobriam o chão.

As paredes e cantos estavam na sombra. Os poucos abajures e velas que ficavam iluminavam o Papa e os sacerdotes cardeais da cidade vestidos de vermelho, reunidos sob o rígido e reluzente mosaico do Cristo bizantino. Esperavam no centro da estadia, em frente ao leito do Papa.

O caos na antes elegante sala foi para Regeane como um reflexo da desordem na praça. Podia ouvir claramente os gritos do povo celebrando sua vitória e roubando os lombardos mortos.

Seu olhar se atravessou com o do Papa através da estadia. O arrepio de terror em seu ventre pareceu subir até seu coração, lhe esfriando todo o corpo.

Os olhos escuros sondaram sua face implacavelmente, como se tentassem chegar a sua alma e arrancar os segredos escondidos ali.

Provavelmente não queira saber ou não queira acreditar, mas ele sabe. - Ela pensou.

Regeane elevou o queixo e enfrentou com firmeza o olhar do Papa. Sou inocente. Inocente e culpada. Não procurei a existência da loba, mas ela está aí e devo defendê-la. A ela e a mim mesma. Somos uma, e seja o que for, não tive opção. Não me separarei dela, nem de ti e nem de Antonius. Ela tentou levar o pensamento a seu olhar, à mente de Adriano. Por favor, me proteja, me proteja deste homem que quer me destruir.

Os olhos de Adriano baixaram primeiro e o Papa se voltou para Gundabald.

Regeane sentiu que algo roçava os borde do manto em seu braço e ela compreendeu que Lucila estava de pé ao seu lado.

—É um homem perigoso. – Regeane disse com medo.

—Sim, querida; - Concordou Lucila. - Perigoso como só um homem de princípios pode ser. Perigoso para si mesmo.

Regeane olhou a seu redor e se deu conta de que a maioria dos convidados à festa ainda estavam presentes, embora vestidos como ela, com suas roupas danificadas cobertas com mantos escuros. Reuniam-se como traças de asas negras em torno da pouca luz que restava e a reconfortante presença do Papa.

—Sua sobrinha. Acredito ser, senhor. - Disse Adriano a Gundabald.

Regeane podia sentir o martelar de seu coração no peito.

—Minha querida sobrinha. - Disse seu tio, aproximando dela com os braços abertos.

Regeane sentiu uma momentânea confusão; depois se deu conta do jogo de seu tio, compreendendo que devia segui-lo.

As mãos de ambos se encontraram e Regeane viu os olhos de Gundabald. Olhos malignos, sequer enfurecidos, mas escuros e frios como a entrada de uma tumba. Sentiu que os dedos de seu tio se fechavam fortemente, como se quisesse esmagar os delicados ossos de suas mãos. Regeane entrelaçou as mãos e suas unhas, mais longas que as da maioria das mulheres, afundaram na branda carne das mãos dele.

Nada mudou no rosto ou os olhos de Gundabald, mas sua pressão se tornou mais moderada e ele despiu seus grandes dentes amarelos, no que obviamente esperava ser um carinhoso sorriso.

Regeane também lhe mostrou seus dentes.

—Ai, meu parente. – Ela disse. - Temo que separamos na confusão.

—Não tenha medo, doce sobrinha. - Respondeu Gundabald animosamente. - Viemos para te levar a casa.

Regeane liberou suas mãos, afastou-se de Gundabald e se ajoelhou ante Adriano.

—Rogo a Sua Santidade que ouça minha súplica.

Adriano a olhou com os olhos entreabertos e inquisitivos, com as escuras sobrancelhas inclinadas para seu nariz.

—Certamente. – Ele disse, parecendo um pouco desconcertado.

—Oh, por favor. Sei que meus parentes só procuram meu melhor interesse, mas, por favor... Oh, por favor... Tenho medo. Não. Medo é uma palavra muito fraca. – Ela estendeu seus braços para o Papa, com as para cima em um belo gesto de súplica. - Estou embargada pelo terror dos distúrbios e a confusão nesta desventurada cidade. Não há nenhum convento, nenhum estabelecimento de santas donzelas consagradas ao amor de Cristo onde eu possa encontrar asilo até que termine esta loucura? Sinto a maior confiança e afeto por meus parentes, mas são somente dois homens. — Regeane retorceu as mãos e para sua surpresa, viu que lágrimas reais corriam por sua face. - E se sobreviesse alguma desventurada ocasião, algum momento terrível e não pudessem me proteger? Por mais valentes que sejam, dois homens poderiam ser reduzidos facilmente e eu sofreria um destino terrível, com a carga adicionada de ser culpada por suas mortes em meu coração. Oh, por favor, - ela suplicou, unindo as mãos. - Necessito de um refúgio tranqüilo entre mulheres santas, um porto seguro onde eu possa descansar até que estas difíceis horas tenham terminado.

—Santidade, - exclamou Gundabald com voz assustada, - eu acreditei que o assunto da residência de minha sobrinha havia ficado decidido.

Adriano continuou olhando para Regeane, com olhos opacos.

—Decidiste você. – Adriano disse. - Porque eu não o fiz. Só prometi ouvir sua petição e a ouvirei. Não resolvi nada mais.

—Mas... — Balbuciou Gundabald, cuspindo saliva. - É como eu disse. A moça é... Uma selvagem e sua mãe foi uma má influência...

Regeane ficou em pé de um salto, esquecendo parecer patética. A idéia de Gundabald difamando sua mãe ante Adriano era muito para ela.

—Como se atreve? — Ela vaiou com furiosa incredulidade. - Você desprezava minha mãe. Você abusou...

Alguém a interrompeu:

—Mas que descaramento ela tem.

Regeane reconheceu a voz de Augusta. Ela estava perto de Adriano, com Lucila ao seu lado dela.

—Como se atreve a se apresentar como uma inocente assustada? — Disse Augusta com voz estridente. - Ela não estava assustada. Estava... Uh... — Os olhos de Augusta se abriram repentinamente, enquanto bocejava como um peixe fora da água. Regeane compreendeu que Lucila havia lhe dado uma forte cotovelada.

A Abadessa Emilia apareceu por entre as sombras perto do alpendre do triclinio, segurando firmemente Elfgifa pela mão e arrastando-a atrás dela. Regeane pensou ao vê-la, em uma galera de guerra a toda vela, rebocando um barquinho de pesca.

—Santidade, posso me atrever a intervir? Tenho razões para acreditar que os medos da jovem dama podem estar... — Emilia se deteve ante o Papa e olhou com dureza para Hugo e Gundabald, antes de continuar. - Bem fundados.

Regeane recordou que Elfgifa também tinha uma língua rápida e devia tê-la usado com a tia.

Emilia continuou falando sem parar para respirar.

—Se realmente a jovem dama desejar a proteção do convento, seria bem-vinda entre...

Um rugido de fúria interrompeu as palavras de Emilia. Hugo tinha visto Elfgifa e compreendido enfim quem era. Avançou para ela, com seus olhos esbugalhados de fúria.

Elfgifa se escondeu atrás de Emilia. Hugo estendeu a mão para pegá-la, mas Emilia o golpeou com força na orelha. Era uma mulher robusta, musculosa e certeira.

Hugo ficou sentado no chão, com os olhos frágeis.

Gundabald se aproximou de Regeane. Sua face estava vermelha de raiva e, como sempre, exsudava a mesma aura de crua violência que sempre a tinha apavorado.

Regeane queria se encolher, fugir, mas não o fez. Compreendeu que tinha que lhe fazer frente naquele momento ou sucumbir.

—Quieto. – Ela disse brandamente. Seu corpo inteiro tremia. Podia sentir a necessidade de mudar formando redemoinhos em torno dela, como a trêmula luz da lua em uma clareira às escuras.

Seus olhos se encontraram. A face de Gundabald estava a poucas polegadas da sua e sua mão estendida quase lhe tocavam o cabelo. Apesar de todos os espectadores e o Papa era como se estivessem sozinhos enquanto falavam em voz baixa. Então Regeane falou com um sussurro suave, gutural:

— Coloque uma mão em cima e morrerá. Sei que depois me matarão, mas pode valer à pena se eu vê-lo se retorcendo no chão, com a vida saindo a fervuras por garganta. Põe-me uma mão, um dedo em cima e verá o que pode acontecer. Juro-lhe.

O ódio e a maldade eram quase evidentes entre eles.

Gundabald despiu os dentes e Regeane soube que ele estava à beira de uma cega raiva assassina.

—Puta. – Ele sussurrou. - Vou matá-la.

Sim, pensou Regeane. Não agora, mas tão logo possa.

O som que ouviu as suas costas foi quase tão forte como um trovão. Ela se voltou para o Papa e compreendeu que ele havia batido as mãos.

—Vamos deter imediatamente esta imprópria disputa. Eu governo aqui e até que esteja morto ou deposto, tomarei as decisões. Agora, em nome de Deus, o que acontece? — Ele perguntou assinalando Hugo.

Hugo, ainda sentado no chão, estava piscando enquanto voltava sua consciência. Ele apontou um dedo trêmulo para Elfgifa.

—Ela... Ela...

Gundabald o golpeou na outra orelha, dizendo:

—Fecha o bico, tolo.

—Parece que tem alguma ofensa contra a menina. - Disse Emilia. – Se tem, eu gostaria de ouvi-lo. — Ela cruzou os braços e olhou com ferocidade.

Hugo ficou em pé e dirigindo um temeroso olhar para Emilia e Gundabald, começou a retroceder enquanto murmurava:

—Nada... Nada.

—Não tem um grande vocabulário verdade? — Comentou Lucila. Adriano lhe jogou um olhar que poderia acender uma fogueira.

Ambas as mulheres retrocederam, cobrindo suas faces com os mantos.

—Augusta. - Disse o Papa. - A reputação e a segurança desta jovem dama estão em jogo. Se tiver algo importante a dizer sobre o assunto, fale. E digo importante, não me refiro a contos e rumores mal intencionados, mas que estejam em seu conhecimento e tenham relação com o caso.

Augusta negou devagar com a cabeça.

—Muito bem. - Disse Adriano, voltando-se novamente para Gundabald. - Aos dois preocupa a segurança e a virtude da jovem entre os tumultos e tentações do mundo e eu acredito que um convento serviria igualmente bem a ambos os propósitos. Abadessa Emilia, tem uma cela penitencial?

Emilia parecia surpresa.

—Não sei... Eu... Raramente necessitamos de algo assim.

Por um momento, Regeane pensou aterrada que a abadessa ia colocar objeções em converter seu convento em uma prisão, mas finalmente Emilia disse:

—Sim, acredito que temos umas quantas portas com ferrolhos no lado de fora e não no de dentro. É realmente o tipo de alojamento que deve receber a jovem dama?

—Sim, é. - Disse Adriano. - Ela não deve sair, nem receber visitas. Nenhuma visita. – Ele recalcou olhando para Lucila. - Permanecerá sob chave até que o contrato matrimonial seja assinado e ela entregue a seu prometido.

 

                                                     CAPÍTULO 18

O ferrolho estava um pouco oxidado e fez um forte chiado metálico quando Emilia encaixou a barra em seu lugar.

É um som muito familiar. Pensou Regeane. Ficou em pé e ouviu os passos de Emilia se afastando e o silêncio que baixava sobre ela.

Haviam voltado para convento sob um forte guarda, com a tropa papal cavalgando em fila da três ao redor da carruagem puxada por mulas que levava Regeane, a Abadessa Emilia e Elfgifa.

Toda Roma parecia ter saído às ruas. Uma multidão, em sua maior parte de bom humor, dançava, bebia e fornicava. Tudo os botequins e muitos bordéis estavam fazendo um grande negócio, estavam cheias de luzes e a chusma pulava a suas portas. Os farristas aclamavam os soldados da tropa papal e se afastavam de boa vontade para que passassem. As pessoas nos balcões atiravam flores e as mulheres sopravam beijos e às vezes lhes gritavam luxuriosas promessas de entretenimentos mais íntimos aos que desmontavam e se detinham um momento.

Mas Regeane não se deixou enganar nem por um momento. Por duas vezes se encontraram atravessando a fumaça das vilas incendiadas. Os gritos que saíam das casas em chamas deixavam Regeane gelada de medo e lhe faziam desejar estar livre da loba, pois a criatura com quem compartilhava seu corpo podia ouvir muito bem.

Nas partes mais populosas da cidade, a carruagem passou estralando junto às ruínas de botequins que não tinham aberto o bastante rapidamente à bronca multidão.

Muitas casas e vilas privadas estavam fechadas e às escuras. Seus ocupantes se escondiam temendo mostrar uma luz, escondidos atrás de suas portas trancadas, perguntando por quem iria seguir o povo.

A Abadessa Emilia se reclinou, seus braços envolvendo protetoramente Elfgifa, os olhos fechados, os lábios murmurando uma oração silenciosa.

Regeane, por sua parte, deu um olhar através de uma abertura nas cortinas, aterrada, mas ao mesmo tempo fascinada pelo espetáculo e incapaz de bloquear as sensações de piedade e temor que a percorriam. Sentindo enquanto isso o assombro silencioso da loba ante a incompreensível loucura humana.

Quando chegaram às portas do bairro saxão, Emilia abriu os olhos, se benzeu e sussurrou um "graças a Deus". As ruas estavam calmas, guardadas por parentes das casas dos nobres saxões residentes perto do Vaticano.

—Estes latinos não têm um ápice de sentido comum entre todos eles. Em minha humilde opinião, só para demonstrar aos lombardos que não lhes têm medo, saqueiam sua própria cidade e arrasam-na antes que seus inimigos possam chegar a ela.

A carruagem se deteve ante as portas do convento. Regeane saltou abaixo, e Emilia desceu com Elfgifa a segui-la.

—Deus do céu! – Ela disse, enquanto guiava Regeane e Elfgifa. - Esta desventurada cidade já está quase toda em ruínas. Não vejo nenhuma razão para arruinar o resto. E Sua Santidade, Deus o guarde, não é melhor que outros. A metade de seu povo destruindo o lugar, e a outra metade... Deus o ajude... — Emilia soltou a mão de Elfgifa para se benzer novamente. - Escondida sob suas camas. Esse inútil do teu primo, um depravado que sequer tem a graça salvadora da coragem e seu tio Gundabald... — Ela voltou a fazer o sinal da cruz. - Basta olhar os olhos dele para saber que teria vendido a Cristo mais rapidamente que Judas e se teria felicitado pelo benefício da transação. Poderia dar lições de maldade a Lúcifer. E... E... — Ela vacilou, enquanto fazia com que Regeane e Elfgifa se sentassem à mesa e lhes servia pão, queijo e vinho. - E a Sua Santidade não ocorre nada melhor que encerrá-la. Uma moça virtuosa, se alguma vez vi uma. Típico de um homem. Uma inocente necessitada em toda esta confusão e deve encerrá-la sob chave em seguida.

—Eu... — Começou a dizer Regeane, mas foi enrolada pela conversa de Emilia.

—Se alegre, moça. Há coisas piores que o matrimônio. Sabe que eu mesma fui em outros tempos, uma mulher casada?

—Sim? — Conseguiu dizer a jovem.

—Oh, sim. Passei-me sentada e chorando toda a semana antes das bodas. Quase me pus histérica ao vê-lo. Era gordo, calvo e velho e estava coberto de verrugas como um sapo. Seu caráter não era melhor que seu aspecto. Era tão irritado como uma mancha de graxa e fedia como um urinol cheio.

—Ah...

—Oh, não, querida. - Disse Emilia alegremente. - No final, tudo foi para o bem. Uma semana depois, casamo-nos. Durante o banquete ele escondeu a maior parte de um boi, bebeu dois barris e meio da excelente cerveja de meu pai, sofreu um ataque e morreu afogado com seu próprio vômito, me convertendo em uma viúva rica e independente. Oxalá tenha a mesma sorte. Os homens... — Suspirou a abadessa. - Não entendo para que Deus os criou. Suponho que pela mesma razão que os ratos, os mosquitos e as pulgas. Outra cruz para as mulheres, de forma que sua salvação possa ser mais doce. Sei que são bons para algumas coisas, mas, além disso, não posso imaginar quais. Penso que poderíamos nos arrumar com muitos menos deles. Dizem que no céu não haverá matrimônios nem bodas, então entendo que todos poderemos percorrer nosso caminho em paz. E espero esse bendito estado com ditosa antecipação. Não, não se preocupe querida. Não importa o que diga Sua Santidade, você é bem-vinda entre nós e farei o quanto possa para que fique cômoda.

E havia feito, Regeane pensou na estreita cela, tendo em conta as ordens do Papa.

A cama era de armar, mas cômoda. Tinha um colchão de plumas, lençóis de linho, mantas e inclusive um cobertor de plumas de ganso se por acaso fizesse frio. Havia um braseiro em um canto e nele Regeane pôde ver um monte de brasas vermelhas, que esquentavam a estadia contra o crescente frio de fora. Junto a seu cotovelo havia uma mesa com um suporte de livro, um livro e uma alta vela que projetava uma luz incerta no quarto diminuto.

O cansaço pesava sobre seus ombros como um jugo. Quando ela começou a tirar o vestido arruinado, seus dedos tocaram algo duro no forro e recordou o espelho da Adrastea. Retirou-o cuidadosamente de seu lugar no forro de seda. Não queria olhar novamente a superfície de prata polida. Não ali. Não somente à luz de uma vela.

A prata estava gelada ao tato. Parecia como se seus dedos não possuíam poder para esquentá-la.

Regeane observou o motivo de flores na parte posterior durante um segundo. Valeriana vermelha. A flor de Roma. Crescia silvestre por toda parte, brotando entre as ruínas, arraigando inclusive na terra acumulada entre os tijolos de edifícios habitados, aparecendo em paredes e beirais.

As flores do espelho eram incrustações de coral realizadas com elaborada habilidade.

Bonito adorno. Pensou Regeane. Uma face quinquilharias que alguma vez deve ter adornado o vestido de uma senhora da moda. Seu dedo acariciou a parte de atrás do espelho.

Quem era essa Adrastea e por que me enviou seu espelho? Perguntou Regeane no quarto silencioso.

No momento, ela sentiu uma presença que se apresentava como as sombras da vacilante vela. Uma presença que parecia sustentada em suspense só por sua vontade.

Regeane pôs o espelho na mesa ao lado da vela e a presença se dissipou, parecendo desvanecer-se como uma sombra quando uma nuvem passa ante o sol.

O quarto tinha uma estreita janela perto do pé da cama. Simplesmente uma abertura, não o bastante grande para que coubesse um corpo humano. Mostrava um jardim e os telhados do bairro saxão. Mais à frente, Regeane podia ver o Tibre e a cidade sobre as colinas.

As orelhas da loba podiam ouvir o longínquo som dos tumultos e a violência. Ardiam fogos contra o céu noturno. As pessoas da antiga cidade matavam com o mesmo abandono com que se entregavam ao riso e a canção.

Dois reis enfrentados, Desidérius e Carlos e cada um desejando a cidade; cada um querendo ditar a política papal.

Urbi e Orbi, a cidade e o mundo. Pensou Regeane. Eu sou Pedro e sobre esta pedra... Construirei minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.

O Papa, o papado... Coisas não deste mundo, mas nele. E o que era ela, a não ser algo não completamente do mundo?

O forte vento levou o frio ao quarto e o aroma da fumaça da cidade. A rajada lhe picou os olhos, desaparecendo no limpar o ar. De além da cidade, levada em asas de ventos distantes, a loba cheirou a neve e o aguilhão da geada. Um ar de montanhas remotas, onde milhões de estrelas brilhavam como luz de cristal, encheu o quarto. Ela viu altas cúpulas, flutuando puras e inacessíveis como um sonho divino. Precipícios de granito cobertos com um manto de geleiras reluzentes e neve nunca pisada. O sol cambiante e em movimento enviava às vezes, arco íris aos olhos deslumbrados dos viajantes. Em outras ocasiões, os picos ferviam de nuvens de tempestades ou estavam envoltos na neblina da manhã, velados como rainhas orientais até que o ar se esclarecesse e a névoa fosse consumida pela luz.

Vales cujas primaveras eram como terrinas de flores na neve, tornando-se verdes pouco a pouco nos longos silêncios do verão e depois pardas como o feno espesso e abundante no outono, até que chegasse o inverno eterno das alturas.

Uma onda de desejo quase insuportável se elevou no coração da loba, levando um duro e doloroso nó à garganta de Regeane e lágrimas a seus olhos, em uma sensação de que Poderia abandonar para sempre o mundo dos homens e correr pela Campânia.

Estava fazendo mais frio por causa do vento. Nessas horas mais frias antes da alvorada, a neblina pousaria na vegetação e as longas fibras ficariam cobertas de cristal, que rangeria sob seus pés quando ela passasse. Poderia encontrar um lugar para ficar e dormir, uma toca onde o brando corpo de mulher permanecesse quente durante as longas horas diurnas. Quando a noite chegasse novamente, poderia correr até se perder na verde solidão daqueles vales e o vasto silêncio das cúpulas mais à frente.

Regeane abriu os olhos e o sonho desvaneceu.

Barrotes e ferrolhos. As estreitas áreas como aquela eram sua vida, não a liberdade de montanhas e dos bosques. Convenções que atavam suas mãos e pés e ditavam o que uma mulher devia fazer e ser. Correntes cristalinas e tormentas que incendiavam o céu noturno. Talvez tudo o que o mundo teria para ela seria um colar de ferro e uma corrente. Algum dia ela poderia estar na pira e rezar pedindo madeira seca, uma brisa suave e um fogo quente.

Sentia-se tão cansada... Que cambaleou para a cama. Oh, sono. Bendito, bendito sono. Sua roupa caiu no chão e Regeane se arrastou entre os limpos e suaves lençóis de linho, com um doce alívio. Apesar do braseiro, o ar do quarto era cada vez mais frio. Regeane se agasalhou até o queixo. Sua cabeça tocou o travesseiro e o sono caiu sobre ela. A loba sonhou com montanhas. Caçava em escuros bosques de abetos cobertos de neve, sob pinheiros cujas longas agulhas geladas reluziam como facas de geada... Sob uma lua sonolenta.

 

Triste, tão triste... A nua dor na voz sem palavras era tão terrível que tirou Regeane do sono. Ela despertou pensando em Elfgifa. Sabia que a menina havia sido levada ao dormitório dos órfãos, a cargo das monjas. Teria despertado por algum pesadelo e estaria chorando pelo consolo dos braços de Regeane?

Regeane se girou na cama e contemplou a escuridão. Só a luz das estrelas que entrava pela janela iluminava o quarto. A vela se consumou e sua chama se apagou em uma cascata de cera dura.

Mas a loba sabia a hora, como distinguia as horas do dia pelo sol e da noite pelo olfato e o ouvido e a posição das estrelas, que comparava com o padrão gravado em sua mente e seu coração desde o princípio dos tempos. Estava a ponto de amanhecer. Essa hora mais escura em que inclusive os quatro ventos pareciam sentir o peso da noite e um silêncio ofegante que precedia à chegada da alvorada. O quarto estava gelado e Regeane podia ver a nuvem criada por seu fôlego.

Ela ouviu, mas sequer as orelhas da loba ouviram. Só um sonho. Ela pensou. Tive meu próprio pesadelo.

Algo suspirou na escuridão e no silêncio. Não, pensou Regeane, recordando a face no espelho. Não. Mas sabia que por mais que quisesse negar, os mortos estavam chamando mais à frente do mundo.

Outro suspiro, mais sonoro e seguido de uma risada grave, entrecortada e cruel, que parecia brincar com seu medo. E as sombras começaram a crescer e se tornar mais escuras perto da mesa e do espelho.

Vem, vem a me visitar. De repente, o ar ao seu redor se tornou mais frio. As sombras eram uma feia neblina fosforescente, da cor de uma vela fúnebre.

Regeane bocejou, afogando e tentando não respirar quando o cheiro de podre encheu a cela. Afastou a roupa da cama e ficou em pé de um salto.

O frio era mais que frio, uma onda gelada que parecia chegar até seus ossos. Recordou que não podia correr, pois estava encerrada com aquela coisa. Afastou-se para a porta, quase afogada pelo horrível aroma. Ia gritar, decidiu. Golpearia os painéis de madeira. Alguém a ouviria.

Ao pensar, invadiu-a outro tipo de terror. O que pensariam dela as boas senhoras? Mas a coisa estava tomando forma e ela podia ver uma horrível blasfêmia da forma humana.

Regeane empurrou a porta com ombros e as costas. Descobriu que tinha medo de dar as costas à coisa, de lançar-se contra os barrotes e ferrolhos e sentir uma mão em seu ombro, então se voltaria para olhar à face de, sabia Deus de que horror.

Não, era melhor enfrentar, por mais espantoso que pudesse ser.

A coisa era já quase sólida. Regeane ouviu como se movia. Gotejava e salpicava a cada passo. Parecia úmida e coberta de putrefação, como um pedaço de carne podre. Regeane compreendeu que os passos da coisa a afastavam dela. Estava retrocedendo, fugindo.

O repentino aroma do perfume foi quase tão enjoativo como o mau cheiro. Um aroma penetrante, mas doce e fresco como a hortelã silvestre esmagada, sutilmente misturada com algo ainda mais doce. A pesada fragrância de um horta florescendo à luz do sol ou um prado na primavera, com a vegetação úmida pelo rocio.

O ar em torno de Regeane havia trocado e parecia carregado de promessa, como quando Deus tocou a terra rica e fecunda com Sua mão e criou a vida.

Ela foi subitamente consciente de que podia ver o quarto com claridade. A luz entrava por baixo da porta e ao redor do marco. Alguém. Ela pensou incoerentemente. – Há alguém no corredor com uma tocha ou uma lanterna. Mas não podia ser. Nunca tinha visto uma tocha ou uma lanterna com uma luz tão branca e feroz. Uma luz tão brilhante que Regeane podia ver o quarto inteira graças ao resplendor dos poucos raios que se filtravam em volta da porta.

A coisa feia era agora uma sombra. Lançou outro gemido carregado de solidão e perda enquanto se desvanecia em um nada.

O quarto ficou novamente escuro e frio ao redor de Regeane, mas ela soube que o frio era somente o frio de uma manhã de inverno e a escuridão era somente a escuridão da noite.

Regeane cambaleou para a cama, trêmula, com os dentes tiritando e entrou sob as mantas. O outro mundo estava em sua busca. Sabia que não ia poder dormir e se perguntou se poderia novamente alguma vez. Mas quando voltou a abrir os olhos, o sol enviava sua luz através da janela. E o quarto estava cheia do arrulho das pombas que davam as boas-vindas à manhã.

 

                                                       CAPÍTULO 19

Emilia enviou pão, queijo, vinho bem aguado e geléia de figo e morangos silvestres. O pão estava recém assado e a geléia era tão doce que Regeane comeu tudo e limpou o prato. Sobre a mesa ela encontrou uma muda de linho suave e uma boa túnica de lã marrom.

A água para se lavar chegou em uma bacia carregada por uma monja vestida com uma roupa similar a da mesa.

Era uma mulher de semblante severo, com um olho que reluzia como o de uma águia. Apesar das rugas, sua face tinha o mesmo perfil ameaçador de ave de rapina que dominava os monumentos do passado espalhados pela cidade.

Olhou com severidade e desgosto as roupas de seda e cetim de Regeane.

—Meu nome é Bárbara. – Ela disse. – E apesar de meu nome, nasci e me criei em Roma. Sou a cozinheira e você foi atribuída à cozinha. Lave-se e se vista, que já estou atraso em meu trabalho. Espero que venha logo. Por favor, se apresse.

A monja saiu furtivamente da cela.

Regeane se apresou. Recebeu um avental da irmã Bárbara, que a encarregou de colocar uma peça de carne no fogo em um oco junto à porta.

Ela tinha passado a maior parte de sua vida encerrada sob chave ou em intermináveis peregrinações com sua mãe. Suas comidas tinham procedido de botequins do caminho e hospedarias religiosas. Sabia muito pouco de cozinha.

A carne começou a chamuscar. Ao primeiro sinal de aroma de queimado, Bárbara chegou como um raio. Dirigiu um olhar assassino a Regeane e ergueu o espeto seis entalhes em seu suporte.

— Não sabe fazer nada? — Ela perguntou em tom farto.

Regeane protestou com soma mansidão:

—Mas tão alto não assará.

—Quer dizer que não queimará. - Disse Bárbara. - A carne deve cozinhar devagar, a fumaça quente sela por fora e o interior se coze em seus próprios sucos. E não volte a me questionar. Eu sou, - ela disse grandiosamente, - a melhor cozinheira de Roma. Possivelmente a melhor do mundo inteiro. Estudei arte culinária franca, as poucas e toscas, mas deliciosas, inovações sajonas e a magistral tradição de nosso próprio Apicitis. Necessito de temperos. Agora! Quero sálvia, manjericão, tomilho e romeiro para preencher o assado de porco do jantar. Vá buscar! — Bárbara bateu palmas. - Depressa, não há tempo a perder. Este é o melhor momento do dia para pegá-los, quando o rocio secou e eles ainda não perderam o sabor para o sol.

Regeane não tinha idéia do quanto tempero era suficiente. Tinha conseguido desarraigar uma planta de sálvia e outra de manjericão e estava ameaçando seriamente um arbusto de romeiro quando Bárbara chegou junto a ela como um falcão abatido.

Dessa vez o estalo de ira fez com que Regeane retrocedesse vários passos, aferrando as desafortunadas plantas. Sua face devia refletir seus sentimentos, pois a irmã Bárbara interrompeu a meia frase, contemplando-a com interesse.

—O quê, não há lágrimas? Normalmente estão chorando a estas alturas ou vermelhas de fúria. Não me olha com irritação, — disse ela olhando o rosto de Regeane. - e nem desdém, possivelmente. Vejo que tem um pouco de espírito.

Regeane estava furiosa. Podia sentir o rubor ardendo em sua face, mas consultou à loba e viu que a criatura estava se divertindo. As imagens que surgiam na mente de sua escura companheira eram as de um pássaro fingindo astutamente ter uma asa rota para afastar do ninho um predador. Ou um sapo inchando e despedindo um aroma ruim, fazendo com que lhe saíssem verrugas por todo o corpo e tentando convencer o proprietário de um par de mandíbulas com longos dentes, que era um adversário feroz e indigesto. Em suma, um engano.

—Posso ver, — disse Bárbara. - que você é uma completa novata e necessita de instrução.

Em alguns momentos, a monja voltou a pôr as plantas em seu lugar, calcando a terra ao redor de suas raízes.

—Crê que crescerão novamente? — Perguntou Regeane ansiosamente.

—Ora... Quem sabe... Suponho que sim. - Disse Bárbara sacudindo a mão. - Não estão muito longe de seus parentes silvestres que florescem ao ar livre na Campânia ou nas colinas junto ao mar. E se não crescerem, tenho muitas mais.

Realmente havia mais, crescendo em flanqueados de tijolos entre pulcros caminhos de pedras. Cada tipo de maravilha culinária estava confinada em seu próprio cubículo especial. As plantas pareciam apresentar se ao sol da manhã e Regeane pôde ver pelos ocasionais emplastros calvos de terra que nenhuma erva ruim ousava elevar a cabeça naquele ordenado lugar.

Bárbara deu uma olhadela à carne que assava devagar no fogo perto da porta da cozinha e guiou ao Regeane a um tosco assento sob uma árvore perto de um muro, onde as duas poderiam sentar e desfrutar da beleza e das delicadas fragrâncias do jardim.

—Olhe, - disse a monja, fazendo um gesto para a cozinha e o jardim atrás dela. - Olhe meu reino. Sou sua proprietária, a senhora absoluta de tudo o que vejo. E se você se deixa instruir por mim, você também terá algum dia seu próprio reino, embora seja somente um jardim murado.

Duas árvores guardavam a árvore menor, inclinando-se sobre a grade de ferro. Regeane alongou uma mão curiosa para uma das folhas.

—Adiante, menina. - Disse Bárbara. - Pegue uma e desfrute de sua fragrância.

Regeane o fez.

—Louro.

Ela recordou à loba na noite em que pareceu inexoravelmente atraída pelo fantasma tempero sobre o mar.

—Sim. - Confirmou Bárbara, tirando Regeane de suas lembranças. - O arbusto que dá coroas para nossos conquistadores e saborosos guisados.

Regeane riu.

—E o que prefere?

—O guisado é obvio. Mas não pela razão que pensa. Não porque seja cozinheira.

—Por que, então?

—Porque os conquistadores vêm e vão, mas o guisado perdura para sempre.

—Nada disso. - Disse Regeane. – ele desaparece na próxima comida.

—Ao contrário. Mesmo grande César adorava o sabor da carne cozida com cogumelos e vinho e dentro de mil anos homens e mulheres peregrinarão a lugares onde possam comer mantimentos preparados da mesma forma. Não, querida, é o conquistador é efêmero e o guisado é eterno. Por isso Cristo, em Sua sabedoria, fez de seu maior sacramento uma singela comida, porque a necessidade não é só de mantimentos, mas sim a boa comida une a toda a humanidade. Os homens se sentam juntos três vezes ao dia para compartilhar a riqueza da terra e os frutos de seu trabalho. O Papa pode comer em baixela de prata com os cardeais a seu lado e o camponês se senta sobre uma pedra com um pedaço de pão e um jarro de vinho vulgar em companhia de alguns amigos, mas ambos dão graças a Deus pela mesma coisa. E quem sabe? — Ela continuou com um brilho nos olhos. – Talvez o camponês desfrute mais de seu pão e seu vinho que o Papa de todos seus pratos. Por isso dizem que o apetite é o melhor molho. Em qualquer caso, Emilia me escolheu como sua instrutora na maior e antiga das artes.

Regeane contemplou pensativa, um maço de eneldo. As cabeças estavam quase amadurecidas e prontas para desprender suas sementes duras e marrons.

—Não estou segura de quanto tempo terei para aprender tudo o que pode me ensinar. Vou me casar logo.

—Sim, eu ouvi. Com algum rico senhor montanhês. Seguro que é um rufião bêbado que se deita sem tirar as botas.

Regeane suspirou profundamente, mas depois se encontrou sorrindo e logo se tornou uma aberta gargalhada.

—Você também?

—Então Emilia te contou sua história, não é?

—Sim, ontem à noite quando voltamos do palácio.

—Espero que tenha te dado a versão curta. - Murmurou Bárbara. - Às vezes ela embeleza descrevendo como ele ficou pálido primeiro, depois cinza e azul e por fim... Negro! — Ela exclamou, elevando as mãos. - Como segurou a garganta. — Barbara levou dramaticamente as mãos ao pescoço. - Como arqueou as costas... —Ela arqueou a sua.

—Oh, basta! — Gritou Regeane. Ela estava aferrando os flancos e as lágrimas corriam por suas bochechas. - Não é divertido. O pobre homem morreu!

—E tanto que o fez. - Disse Bárbara, recuperando a compostura. - Que Deus tenha piedade de sua alma. Embora se só a metade das coisas que Emilia diz dele são certas, duvido que tenha. — Deu alguns tapinhas no joelho de Regeane. - Não se preocupe querida. O que pode esperar quando de um grupo de mulheres que se retiraram do mundo? Nós... A maioria de nós tem suas razões. Além disso, não pensa que é bom estar preparada para o pior? Neste mundo, nossas esperanças do melhor podem ser defraudadas.

Bárbara sorriu com amabilidade para Regeane. Mas a jovem olhava tristemente além dela, observando um relógio de sol que se elevava entre um maciço de mal me quer no centro do jardim. Cada flor era um pequeno sol, um pátio para as abelhas que se ocupavam entre os casulos recém abertos, enquanto o relógio projetava sua larga sombra matinal sobre a pedra.

Esperar o melhor. Pensou Regeane. O que era o melhor que ela podia esperar? Alguém tão brutal e perigoso para que ela pudesse encontrá-lo na escuridão com a consciência limpa? Se é que sua consciência podia estar limpa depois de tal pecado.

Mas Bárbara pegou sua mão.

—Oh, vamos, não deixe que minha especulação ociosa danifique uma manhã tão brilhante como esta. Além disso, se for como eu disse é certo que poderá desarmá-lo com sua beleza e sua graça. E quanto à cozinha, suponho que se for rico o que você precisa é aprender a dirigir o cozinheiro. Posso te ensinar como fazer isso em uma palavra.

—Em uma palavra?

—Sim. - Disse Bárbara. – E essa palavra é lisonja. Prove a comida do homem e se te parecer boa, coloque-o nas nuvens. Pois se cozinhar é a maior e mais antiga das artes, é também a mais ignorada. E o louvor é mais estranho que o ouro e mais precioso que os rubis, inclusive para seus praticantes mais humildes. Adule-o e ele usará todas as suas habilidades para agradar a ti e a seu marido. A respeito dessa outra coisa que os homens são tão aficionados, disponha muita atenção a Lucila e siga fielmente suas instruções e será recompensada com a profunda devoção de seu marido. Depois, um caipira como ele deve estar encantado em se casar com uma mulher da casa real. E se quer conservar sua pele, te tratará bem. Pode lhe assinalar brandamente, mas bem brandamente, que se não o faz, o rei franco poderia tomá-lo como um insulto pessoal. Estou segura de que ele não vai querer isso.

O sorriso da Bárbara era absolutamente doce e ingênuo. Regeane se voltou e a olhou com apreensão por um momento.

—Lucila? Como sabe de Lucila?

—Vamos, querida... Todos sabem de Lucila. Não tenha medo. Lucila não é uma conexão que possa danificar sua reputação. Tem muitas amizades entre as mulheres desta cidade. Tanto entre as poderosas como entre as humildes e débeis. É muito apreciada. Às vezes acredito que inclusive em lugares que ela ignora.

—O Papa a proibiu de me visitar.

—Estou sabendo. - Disse Bárbara, tirando umas grandes tesouras de seu bolso. - Como diz Emilia. — Ela colocou as tesouras na mão de Regeane. - Agora, vá tirar as ervas que te pedi e tome seu tempo. Conheça minhas amigas, as coisas bonitas e inofensivas que crescem aqui. Porque as conhecendo e sabendo como usá-las, pode converter uma singela comida de camponês em algo que encantaria príncipes e reis. E não tema cortar nada, pois nada nocivo nem maligno cresce em meu jardim.

Regeane pegou as tesouras e saiu. As ervas e flores de Bárbara encantaram Regeane e a loba. A sombra no relógio de sol estava mais curta quando ela voltou para a cozinha e encontrou a Bárbara trabalhando com a massa de pão. Regeane pôs as ervas em um bloco de picar e voltou sua atenção para uma tarefa em que se sentia plena de confiança: esfregar panelas e caçarolas.

A cozinha estava bem ventilada e era agradável. Ela trabalhou em excesso enquanto Bárbara terminava de moldar o pão, a cortar as ervas com uma faca curva de duas lâminas e dava inicio à instrução de Regeane nas artes culinárias.

—Manjericão. – Ela disse, levando um pouco ao nariz. - E também canela e prego. Espero que note a diferença.

—Eu notei. - Respondeu Regeane. - Sinto se pequei muito, espero que não tenha que jogar fora.

—Não se preocupe. A canela e o prego servirão para condimentar as maçãs assadas do almoço, - explicou Bárbara, despojando as folhas de Sálvia. - Uma escolha interessante, querida. Tomilho de caule longo. Um pouco de arruda... Ah, pelo menos sabe de alguma coisa. Um ligeiro toque amargo corrige a doçura de um molho de vinho. Romero, indispensável na cozinha. Acrescentarei um toque de alho e miolo de pão e teremos nosso recheio. Esta tarde poderá prová-lo e ver se escolheu errado.

Regeane se sentiu alarmada.

_ Vai confiar no que escolhi?

—Não completamente. - Disse Bárbara dirigindo a faca com o que Regeane reconheceu como um perito movimento de vaivém. - Mas como já te disse, cozinhar é uma arte e inclusive um principiante deve se permitir um pouco de experiência se pretende alcançar todo seu potencial. E quando tiver terminado com as panelas, querida, pode esfregar um pouco o chão.

—Obrigado. - Murmurou Regeane. E esfregou enquanto Bárbara dissertava sobre cada membro do reino animal do qual Regeane teria ouvido falar alguma vez e vários, que os mais conservadores francos sequer consideravam comida, como caracóis e aves canoras. Quando acabou com eles, passou à descrição de formas de vida menos animadas, começando por frutas e nozes e chegando até a humilde couve. Ali ela parou, mas não para respirar, mas para informar a Regeane que era o momento de rastelar o forno de pão.

—Eu mesma acendi o fogo ao amanhecer, agora só haverá cinzas e as pedras estarão quentes e prontas para levar a massa a sua dourada plenitude. – Barbara disse dando-lhe uma cuba e um rastelo comprido. - Agora, tome cuidado. A porta está quente e as pedras, também. Não chegue muito perto. Eu abrirei a porta para você.

Bárbara sujeitava a porta do forno e Regeane rastelava como uma louca, tentando colocar as brasas na cuba antes que as pedras do forno esfriassem, quando Emilia entrou na cozinha.

—O que está fazendo, Bárbara?

—Estamos trabalhando, o que te parece? Disse-me que lhe ensinasse a cozinhar.

—A cozinhar, sim. - Gritou Emilia horrorizada. - Não que a convertesse em um ajudante de cozinha. Ela é uma dama real. Eu queria dizer que a deixasse recolher algumas ervas, possivelmente cortar um nabo ou dois.

Bárbara fechou de repente a porta do forno. Regeane teve o tempo justo de tirar o rastelo para que não se partisse em dois.

—O que? Opõe-te a que eu lhe ensine que a cozinha é trabalho? — Bárbara se destacou com orgulho. - Eu... Eu, a filha de uma das primeiras famílias de Roma não tenho vergonha de sujar as mãos a serviço de nossa comunidade. Por que deveria ter ela?

Emilia estendeu as mãos.

—Bárbara, a gente fala...

—Bem sei. - Foi à turva resposta.

—Não importa. Não importa. Sei que não me falta culpa, mas o que aconteceria se seu parente real se inteirasse de que ela esteve limpando fornos? E que mais a mandou fazer esta manhã?

—Recolheu ervas. —Emilia assentiu com aprovação. - Limpou as panelas e esfregou o chão.

—Esfregou o chão! — Gemeu Emilia. Primeiro levou as mãos ao peito; depois, à fronte. Pegou Regeane pelo braço e a tirou da cozinha, sem lhe dar tempo de soltar o cubo e o rastelo.

Atravessaram o corredor, com Emilia puxando Regeane e murmurando:

—O que pensará Sua Santidade?

—Eu não... — Começou a dizer Regeane, mas Emilia a fez calar.

—O que pensará o rei?

—Por favor...

—Que, - quase gritou Emilia, - pensará Lucila?

Viraram ao final do corredor e subiram pela escada.

Regeane se pegou ao corrimão, enroscou o braço nele e fez com que elas se detivessem.

—O que houve? — Disse Emilia.

—Por favor, Emilia. - Implorou Regeane. - Por favor, deixe-me limpas a cinza das mãos e da face.

—Mãos e face? — Perguntou a abadessa como se tivesse esquecido temporariamente o significado das duas palavras. – Oh! Sim. Definitivamente, mãos e face. Definitivamente.

—Obrigado. E eu não me preocuparia muito por meus parentes reais. Não conheço nenhum deles.

—Não entende? Que os conheça ou não, não carece de importância. Eles irão conhecê-la e isso é o que importa. Venha, vamos ver se gosta da irmã Angélica. Ela te ensinará uma habilidade mais elegante: o bordado.

—Oh... - Disse Regeane.

Regeane não gostou nada da irmã Angélica. A monja deixou claro desde o começo, obviamente acostumada a ensinar às filhas mais jovens e mãos direitas dos pobres, considerava uma nobre um completo estorvo.

Ela fitou Regeane com um olhar ligeiramente coroado de gelo e não perdeu tempo avaliando suas habilidades de costura. Por isso, Angélica se referia, não existiam. Costurar e remendar eram atividades próprias de uma filha da nobreza arruinada que queria se manter decentemente vestida e as habilidades com fio de ouro e prata requeridas para seu trabalho sempre estiveram além dos meios de Regeane.

Então ela foi relegada a bordar uma singela cruz no extremo de uma toalha de linho para o altar.

Regeane se mostrou cordata, mas estava desgostosa. Preferia esfregar o chão da cozinha em companhia de Bárbara. Ela, pelo menos, tratava Regeane como uma aluna voluntariosa e em certos aspectos, igual, enquanto a irmã Angélica agia com certo êxito, que ela não existia.

E Regeane se sentou em silencio à mesa, com a cabeça inclinada sobre a cruz e agüentou. Não demorou em descobrir que havia muito a agüentar.

A irmã Angélica lhe anunciou, como se tivesse feito um importante descobrimento, que mãos e mentes ociosas eram ferramentas do diabo e que não permitia nenhuma conversa entre suas alunas. Em vez de conversar entre elas, ouviam leituras destinadas a seu ensino e entretenimento. A leitura do dia, ela disse a Regeane, consistia em uma descrição das perseguições de Diocleciano.

Ao princípio, Regeane ouviu somente pela metade. Mas então se sentiu atraída pela vulgaridade das pessoas da narrativa. Não eram como os magníficos e freqüentemente trágicos personagens que encontrava nas histórias que lia, mas humildes, quem nunca soava muito na grande marcha dos assuntos humanos.

Eram criados, escravos, artesãos, pequenos lojistas e o ocasional sacerdote ou prelado pobre... Figuras escuras que se moviam silenciosamente entre seu rebanho, barrando coragem com seu exemplo.

E seu único pecado era que tiveram a desgraça de cruzar no caminho de um império tão inchado de presunção, que não podia encontrar mais digno objeto de culto que ele mesmo. Um ego personificado pela deusa, Roma.

Não render culto a esse santuário de poder era para o governo imperial, um terrível crime merecedor dos mais cruéis castigos. As mortes eram horríveis e estavam descritas com meticulosos detalhes.

Enquanto as histórias aconteciam, a imaginação de Regeane começou a dar vida a seus atores.

Quando se falava de homens, Regeane via Adriano, um homem disposto a se sacrificar antes que cometer um ato que considerava perverso ou ao Antonius, que até perdido no negrume de sua enfermidade, havia encontrado coragem para ser amável com ela quando se encontraram pela primeira vez.

Quando as mulheres eram submetidas à tortura e executadas, via Lucila, orgulhosa e desumana, mas também amável e valorosa ou a sua mãe, levando seu coração quebrado a um Deus ao qual pensava que tinha falhado e cujo amor não acreditava merecer.

Mas as crianças eram o pior, pois lhe faziam pensar em Elfgifa, no orgulho saxão da pequena e sua atrevida inocência.

A história de uma mãe que lutou com seu filho e segurando a pequena mão entre a sua, o obrigou a celebrar o sacrifício que salvaria sua vida, rasgou-lhe o coração. Ela faria oferendas de incenso a mil deuses antes de ver Elfgifa morrer.

A adesão aos princípios era boa e Regeane podia entender. Mas o amor de uma mãe, tão profundamente enraizado na malha da vida era uma força que podia transcender inclusive o poder da lei e o estado e anular os princípios.

Enquanto a agulha de Regeane ia e vinha voando através do tecido, ela começou a se sentir deprimida a princípio e depois, curvada pela inevitabilidade das histórias. Não havia pensado que pudesse haver tantas imaginativas e cruéis formas de arrebatar a vida de seres humanos. A teimosa resistência dos Cristãos devia tirar às vezes, o pior de seus verdugos.

Regeane começou a sentir que, se ouvisse outra história de pessoas marcadas com ferros em brasa, açoitadas, assadas vivas ou esfoladas, se levantaria de um salto, jogaria a toalha na irmã Angélica e sairia do quarto. Mas se apresentou uma solução para seu problema. Durante uma alegre descrição de como era derramado chumbo derretido nas feridas abertas de alguém, ela despistou e feriu a mão com a agulha.

O corte não era profundo, mas doía e sangrava copiosamente. Regeane deixou cair à agulha e o tecido em seu colo e segurou a mão. O sangue correu entre seus dedos e gotejou sobre o linho.

A monja ficou histérica, com grande determinação e habilidade.

A Abadessa Emilia chegou, mimando, consolando e aplicando panos frios e ervas aromáticas... Não em Regeane, mas na irmã Angélica.

Logo, Regeane se encontrou de volta a cozinha com a irmã Bárbara. A religiosa lhe lavou o corte da mão com vinho.

—Não é nada, um simples arranhão. Curará em alguns dias. Diga-me, querida, o que o provocou? A paciente Griselda, os sofrimentos da Santa Igreja sob o Imperador Nero ou a perseguição de Diocleciano?

—Diocleciano.

—Ah, bem. - Disse Bárbara. - Te economizaste o pior.

—Não posso imaginar nada pior.

—Eu sim: a paciente Griselda. Eu acho os padecimentos dessa digna mulher, aborrecidos e irritantes. A irmã Cecília, uma mulher bastante sábia e que ainda não conhece, disse-me que a história foi escrita como uma lição de moral a moças jovens, de forma que aprendessem a respeitar e obedecer a seus maridos. Mas eu acredito que Angélica as faz ler como indução à virtude e novas vocações. Com doses semanais da história da paciente Griselda, inclusive as menos impressionáveis de suas alunas acabam, se não odiando aos homens, pelo menos com uma desconfiança e medo firmemente arraigados. Angélica considera que assim é mais fácil para elas abandonar os deleites mais mundanos e, - ela adicionou santamente, - "fixar seu olhar no amante eterno". - Bárbara desmentiu no momento a piedade de sua declaração rindo ruidosamente.

—Não é divertido. - Disse Regeane, ainda afetada pela história e com lágrimas em seus olhos. - Foi terrível, e tudo o que queria essa pobre gente era viver em paz e praticar sua religião... Não sei como pode rir.

Bárbara se serenou e estendeu uma mão dura e calosa para tocar a face de Regeane.

—Oh, querida, que jovem é. Às vezes esqueço meus anos e a distância que me separa de crianças como você. Eu dei risada, porque o tempo me deu um pertinaz vício chamado perspectiva. Os mortos estão mortos e nada do que possamos fazer os ajudará. Além disso, se espera que tenham esquecido os pesares do pó, na eterna beatitude. E porque sei que muitas das pessoas de Deus salvaram suas vidas e sem dúvida as de suas famílias, cometendo apostasia, o que me faz sentir melhor. Não deveria, mas faz.

Bárbara lhe deu alguns tapinhas na bochecha, lhe dirigindo um sorriso tão contagioso que Regeane se encontrou devolvendo-lhe, com alegria.

—Muito melhor assim. - Disse Bárbara. Afastou um pouco e limpou o corte de Regeane com o tecido molhado em vinho. - Olhe, deixou que sangrar.

Regeane sacudiu a cabeça.

—Não entendo como ela pode ouvir dia após dia todos esses horrores e se alterar tanto por um pouco de sangue.

—Diga-me. Você sangrou sobre a peça que estava bordando?

—Sim.

—Isso foi o que a alterou. Ela teria preferido que te cortasse a garganta, sangrasse no chão a que danificasse seu trabalho. Além disso, para ela não são horrores.

—Não? — Perguntou Regeane. - Como podem não ser?

—São somente palavras para ela, querida. Angélica não tem imaginação e você sim. Agora, venha e me ajude a arrumar a mesa para a comida da tarde.

Bárbara levou Regeane ao refeitório. Era uma grande sala de teto baixo e vigas de carvalho. Não tinha janelas, mas dava para um alpendre com suportes de madeira sobre um pequeno jardim de rosas tardias. As roseiras estavam dispostas em círculo em torno de uma fonte cuja água caía em cascata sobre pedras musgosas.

Regeane caminhou imediatamente para o alpendre e contemplou com desejo o jardim iluminado pelo sol.

—Que bonitas são as rosas. – Ela disse. - Não sabia que podiam florescer tão tarde.

—Por isso eles se chamam "rosas da primavera". Era o jardim favorito da Abadessa Hildegarda. Quando ela chegou aqui para fundar seu convento trouxe algumas deliciosas flores brancas de sua fria terra do norte. Todos disseram que morreriam em nosso quente clima do sul, mas não morreram; floresceram e fizeram amor com as variedades nativas e agora temos várias espécies como nunca viram. As pessoas vêm de toda Roma para cortar ramos e começar seus próprios jardins.

—Fizeram amor?

—É uma expressão tão boa como qualquer outra. - Disse Bárbara. - Embora as flores o façam com toda inocência, ajudadas pelas abelhas. Mas venha, vamos colocar a mesa. É quase hora de fazer soar o sino do jantar.

O refeitório tinha uma longa mesa de madeira com bancos dos lados. Havia um grande aparador contra a parede oposta ao jardim, com pratos, taças, colheres e fontes.

A mesa era muito singela, de longas pranchas polidas.

Regeane deu um pulo ao ver um suporte de livro:

—Oh, não.

—Não te assuste. - Riu Bárbara. - A Abadessa Emilia escolhe as leituras nas refeições e não gosta de ouvir nada que perturbe sua digestão. Gosta de um pouco do Boécio ou alguns salmos, os mais alegres. E de vez em quando, uma história sobre os pais orientais, felizes ascetas que vivem no deserto, alimentados pelo maná do céu. Agora arrume quatorze serviços, com um prato, uma terrina, uma colher, uma taça e um guardanapo para cada um.

Quando Regeane terminou, Bárbara inspecionou seu trabalho e o declarou satisfatório. E as duas levaram a comida para o refeitório.

Bárbara fez soar a campainha e as monjas chegaram rapidamente. Para alívio de Regeane, não houve nenhuma leitura.

Ao terminar, Regeane ficou convencida de que Bárbara não exagerava ao se declarar a melhor cozinheira do mundo.

O primeiro prato era uma espessa sopa de lentilhas condimentada com ervas e presunto. O segundo, carne assada em um molho feito cuidadosamente com sua própria gordura, combinada com castanhas, cogumelos e vinho. Para a sobremesa, maçãs ao mel, ligeiramente amadurecidas com canela e prego e cobertas de nata.

Regeane comeu até que não pôde mais. Depois se levantou e ajudou Bárbara a recolher a mesa.

As monjas saíram devagar da sala para dormir a sesta em seus quartos, deixando sozinhas, Emilia, Bárbara e Regeane.

—Bem, como estava? — Perguntou a cozinheira, impaciente.

—Incomparável, como sempre. - Respondeu Emilia. Falou como se rendesse o habitual tributo a uma comida extraordinária, mas Regeane notou que ela parecia angustiada e preocupada.

—O que acontece? — Perguntou Bárbara.

—Nada. - Se apressou a responder a abadessa. - Só estava me perguntando o que fazer com a moça.

—Fácil, envie-a a Cecília. Pode passar uma tarde tranqüila com ela.

—Não sei. - Disse Emilia insegura. - Cecília é como uma mariposa. Suas contas nunca quadram, suas cartas só saem quando passo meses insistindo E...

—E todas as suas alunas a adoram.

—Sim. - Disse Emilia. - Porque ela enche suas cabeças de sonhos.

—Não vejo nada de errado em alguns poucos sonhos Emilia, - disse Bárbara olhando para Regeane, - sobretudo nessa idade. Melhor ter sonhos, que pesadelos.

—Oh, eu concordo. Acredito que agora mesmo é o melhor lugar para ela. Explique-lhe sobre a irmã Cecília e envie-a ao escritório. Quando tiver terminado, volte aqui. Tenho algo importante a discutir contigo.

—Muito bem. Regeane, venha até cozinha. Prepararei uma bandeja para Cecília.

Regeane seguiu Bárbara e esperou enquanto a cozinheira cortava o assado.

—Quando entrar, - disse Bárbara enquanto colocava os pedaços do assado em uma fonte de prata, - verá que Cecília usa um grosso véu sobre a parte inferior de seu rosto.

Regeane estava jogando nata sobre as maçãs.

—Por quê? — Perguntou.

—Porque ela não tem nariz.

 

                                             CAPÍTULO 20

Algo nervosa, Regeane entrou no escritório com a bandeja. Como havia dito Bárbara, havia uma mulher sentada com um livro nas mãos, a um canto.

—Ah, Regeane. Bárbara me disse que encontraria alguma forma de te enviar aqui antes que terminasse o dia. Deixe a bandeja sobre mesa e sente-se, por favor. Espero que Bárbara tenha colocado bastante comida para duas... Como vê, tenho uma convidada.

Regeane franziu o cenho um momento, e logo reconheceu a Dulcina, a cantora que ouvira na noite anterior, no banquete do Papa.

—Se conhece a Bárbara, - ela disse sorrindo a cantora, - haverá comida para três.

Dulcina se levantou, pegou a bandeja das mãos de Regeane e a colocou sobre a mesa. Depois abraçou a jovem.

Confusa, Regeane se enrijeceu e esteve a ponto de retroceder, mas em seu interior, a loba gemeu de forma suave e inaudível, e relaxou no afetuoso abraço de Dulcina.

A loba despertou de tudo e suas lembranças encheram a mente de Regeane. Lembranças de cantores de tempo atrás. Cantores tão amáveis, tão parte do mundo vivente, que suas vozes tinham poder para chamar inclusive às alcatéias de lobos, das montanhas para os prados frescos e verdes, salpicados da prata dos abedules e o vermelho dos fresnos, onde ela, como o resto dos lobos, caíam aos pés dos cantores. Os mais ferozes entre eles em paz com Deus e com o homem, encantados pela glória da canção.

—Filha do Orfeo. - Saudou Regeane quase com adoração.

Cecília aplaudiu brandamente.

—Excelente. Se hoje não fôssemos todos cristãos, Orfeu seria seu santo padroeiro, Dulcina.

Regeane estudou a face de Dulcina, recordando à cruel historia contada por Augusta, de como ela começou sua vida. Uma escrava que cantava nos botequins para conseguir alguns poucos cobres com os quais comprar comida extra. A tristeza daquelas origens pesava ainda sobre ela. Dulcina era magra, com as maçãs do rosto altas e surpreendentes olhos verdes esmeralda e cabelo escuro, fino e ralo. De alguma forma, ela conseguia parecer mais aristocrática que Augusta. Mas uma sombra de dor cobria seus olhos brilhantes como jóias e a suave curva de seus lábios. Parecia confusa e até um pouco envergonhada ante os elogios.

—Mas todos nós somos cristãos e agora uma filha de Orfeu é uma proscrita entre os piedosos. – Ela disse.

—Que tolice! — Negou Cecília com uma risada alegre. A risada de uma menina feliz.

Quando Regeane se aproximou dela, viu que os olhos de Cecília, o único visível acima do véu, eram os olhos de uma menina. De cor azul clara, limpos, muito abertos e inocentes, que enfrentavam o mundo com a mesma aberta alegria que Elfgifa. Era como se estivesse sempre pronta para divertir e desfrutar com qualquer nova experiência vivenciasse. Ao pegar sua mão, Regeane pôde ver, em sua face na sombra e o contorno de seus lábios, o vibrante resplendor do que uma vez devia ter sido uma grande beleza.

Cecília tomou a mão de Regeane entre as suas e lhe deu alguns tapinhas.

—Querida, realmente estou de acordo com Lucila. É tudo o que ela diz e muito mais: inteligente, sensível e formosa. Venha, sente-se conosco. Dulcina tem para ti uma mensagem de Lucila.

—Sim. - Disse a cantora, sentando-se à mesa. - Pediu que te dissesse que sua casa está segura novamente e está custodiada por uma companhia de mercenários francos. E pode te alojar ali quando quiser.

—Obrigado. - Respondeu Regeane.

—Uma mulher sagaz, Lucila. Embora algo arteira às vezes. - Disse Cecília. - Mas... Equivoca-se na posição social em Roma, suponho que seja necessário.

Arteira, sim. - Pensou Regeane, cruzando seu olhar com os tristes, mas de alguma forma sábios olhos de Dulcina. Ela seguiu as ordens de Adriano ao pé da letra e de uma vez desobedeceu-o por completo.

Tinha conseguido enviar uma mensagem a Regeane sem visitá-la nem usar sequer um mensageiro. Regeane intercambiou olhares de perfeito entendimento entre as mulheres. Cecília, apesar de sua inocência quase infantil, compreendia-a tão bem como Regeane e Dulcina. A diversão cintilou em seus olhos e seu suave risinho agitou o linho do véu ante seus lábios.

—Minha encantadora Dulcina, espero que não tenha pressa em partir, agora que seu verdadeiro assunto comigo está resolvido. Seja outono ou não, as ruas de Roma estão lotadas e cheias de pó e um longo e cansativo passeio em uma carruagem coberta seria tedioso e exaustivo.

As suaves bochechas de Dulcina avermelharam-se ligeiramente e ela baixou os olhos.

—Faria tudo o que Lucila me pedisse. – Ela disse. - Nobre senhora, se parecer que a utilizei, só posso dizer que lamento.

—Perguntava-me o que acontecia, - explicou Cecília, - para que a mais solicitada cantora de Roma se apresentasse ante minha porta, trazendo um valioso e ansiado presente, mas compreendi assim que me pediste ver Regeane. E não se atreva a pedir desculpas por sua lealdade a sua distinguida protetora. Oxalá todos nós tivéssemos um coração tão fiel. Não tenho mágoas em ser utilizada com um fim tão nobre como manter Adriano no trono papal.

A surpresa sobressaltou Regeane.

—Como sabe...

Cecília lhe pediu silêncio com um gesto da mão.

—Durante anos, todo mundo soube que Lucila servia aos interesses de Adriano de todas as formas possíveis, suas intrigas foram tão determinantes como qualquer outra coisa para que fosse eleito Papa. Por favor, lhe transmita minhas saudações e lhe diga que me visite quando desejar, pois levo muitos anos observando sua carreira a distância e freqüentemente desejei conhecê-la.

A resposta de Dulcina foi igualmente formal.

—Acredito que ela também quer te conhecer faz tempo, mas temia a humilhação de que você a rechaçasse, como tem feito muitos outros. É mais acessível para pobres e para seus velhos amigos. Jovens mendigas encontram um lar em suas classes de música e literatura, enquanto as primeiras famílias não passam da porta.

—Sim. - Suspirou Cecília. - Suponho que sou culpado de ter deixado de lado a algumas de minhas antigas relações. Mas temo que muitos de que me buscava, o faziam somente por um momento de excitação, uma oportunidade de mexericar sobre mim e meu grande infortúnio. Posso imaginar: "Oh, querida! – Ela imitou. - Como agüenta? É certo que agora é tão feia, como uma vez foi bela? diga-me, rogo-lhe, pôde lhe ver a face ou sempre usa um véu, como dizem? E é verdade que fez tirar todos os espelhos de seus aposentos?". O que ofereciam não era autêntica amizade, mas curiosidade mórbida. Ser o objeto de tal atenção é desagradável no melhor dos casos e muito irritante no pior.

Dulcina sorriu tristemente.

—Minha senhora, - ela disse, - acredito que pode ter sobrevivido a essa curiosidade mórbida, como a chama. Enquanto esteve entre a sociedade de Roma foi conhecida como árbitra da beleza e do bom gosto. Agora todos os aspirantes a poeta ou artista procuram sua aprovação, freqüentemente em vão.

—Certo. - Respondeu Cecília, parecendo esponjar-se atrás de seu véu. - Ah, não procuram "o inalcançável" todos os artistas e poetas? Suponho que minha boa vontade se converteu em outra coisa inalcançável.

—Não sei. Tudo o que sei, é que é de uma vez procurada e temida. Uma palavra amável de seus lábios abre muitas portas e um julgamento duro as fecha, pois grande é sua fama como a mulher de mais cultura de Roma. "Muito longo", você diz de um poeta e ele assustado, corta seus versos. "Empolado", diz de outro e ele modera. Seus elogios e críticas são muito estimados. Por isso eu esperava e de uma vez temia que me despedisse após ter dado minha mensagem a Regeane, porque pense o que pense de minhas canções, o pior seria ir embora sem que me dissesse uma palavra. Não importa se seu julgamento é favorável ou não, o que não posso suportar é te inspirar indiferença.

Cecília começou a aplaudir novamente.

—Maravilhoso. Nunca tinha sido abordada com tanta graça e encanto. É obvio, sou tão vaidosa como qualquer mulher. Possivelmente mais, devo pensar. A lisonja a levará muito longe comigo. Mas, venha querida. – Cecília continuou colocando a mão no braço de Regeane. - Nesta conversa entre Fira e Ateneu, estamos nos esquecendo de Afrodita.

Regeane ruborizou até as raízes do cabelo.

—Oh, céus. Afrodite não.

—Quem quer ser, então? As palavras de Dulcina me coroam como Firo, a deusa todo-poderosa. Ela deve ser Ateneu, a sabedoria entronizada. Então, aos efeitos deste pequeno simpósio, quem é?

—Diana. - Disse Regeane. - A deusa virgem, amante das coisas selvagens, moradora do bosque, protetora das donzelas, senhora da luz da lua.

—Diana, a donzela caçadora? — Perguntou Cecília. - O que pode saber do amor uma deusa virgem?

—Pode ser, - disse Regeane, - uma observadora aguda e objetiva.

—Suponho que sim. - Sorriu Cecília.

Regeane sentou-se sobre um grande arca de livros, sob uma janela que dominava o jardim de rosas. Persianas de madeira cobriam a janela e os poeirentos raios do sol da tarde brilhavam através das tabuletas parcialmente abertas, traçando um padrão dourado no chão.

Dulcina entrou na trama de luzes e sombras com uma lira na mão.

—Conhece Propertius, querida? — Perguntou Cecília.

—Só ouvi seu nome. Augusta, a filha de Lucila, mencionou-o.

—Sei quem é Augusta. Também sei que prefere não falar de seu parentesco com essa formidável mulher.

—Sim, envergonho-me dela. Em qualquer caso, quando Dulcina cantou no banquete do Papa, Augusta me disse que Propertius era o autor da canção.

—Tenho composto música para muitas de suas obras. - Disse Dulcina. - Eu gostaria de lhe mostrar. – Ela acariciou sua lira e começou a cantar.

Pouco a pouco, quase imperceptivelmente, Regeane se sentiu transladada no tempo, a uma época em que Roma era a resplandecente rainha das cidades e ser um próspero cidadão dela, a maior das fortunas.

Dulcina cantava sobre um jovem poeta recém-chegado das províncias, contando com suas próprias palavras como encontrou seu destino nos olhos e no rosto da mais adorável das mulheres, sua Cintia. O torturado poder de sua paixão derramava dos versos, vibrando no ar poeirento da estadia.

A música de sua poesia estava viva, tão vivida e real para Regeane como o dia em que o poeta a escreveu. Regeane estava tão seduzida e arrebatada por aquele mundo, como o poeta.

Um mundo onde os conquistadores festejavam alegres entre os despojos de continentes inteiros. Um mundo onde homens e mulheres bebiam as melhores colheitas e se reclinavam em leitos de seda entre o esplendor do mármore colorido, contemplavam pinturas dos artistas mais deliciosos e comiam deliciosas refeições condimentadas com especiarias de terras tão longínquas que eram somente lendas.

Um mundo onde as mulheres casadas como Cintia, se cobriam com roupagens de seda e do linho mais suave. Resplandecentes de jóias, elas ignoravam seus complacentes maridos e concediam seus favores quando e onde queriam.

Um mundo onde os abajures ardiam toda a noite e os amantes podiam beber juntos até a alvorada e se unir com selvagem paixão nos mesmos leitos da sala de banquetes. Regeane ouviu enquanto o poeta passava da atração à adoração, parecendo se elevar com seu deleite por sua divina amante acima dos mortais, como os deuses, encontrando êxtase e paz em seus braços... Até que chegou a escuridão.

O amor, pensou Regeane, parecia exigir a eternidade e desejar a posse de seu objeto. O poeta compreendeu que não tinha nada disso.

Regeane se perguntou se Cintia era realmente uma mulher inconstante ou somente um recipiente muito frágil para o fogo imortal do poeta. Pouco a pouco, ao longo de sua relação, os poemas mudaram, tornando-se ainda mais brilhantes. Os versos se tornavam mais belos ao descrever o poeta, ciúmes selvagens e um mórbido auto-aborrecimento à medida que sua obsessão pela mulher começava a lhe destruir. No fim, seu ódio por Cintia parecia tão grave como havia sido seu amor. Sonhava com sua morte e talvez a desejasse.

Ela morreu ou não? Perguntou-se Regeane. Ou o poeta só a queria morta para ele? Não importava, pois Propertius descobriu que não havia liberdade no amor, nem sequer na morte.

A sombra de Cintia começou a enfeitiçar seu sonho. Mesmo que sua voz chamasse de além da morte, estava banhada em paixão e desejo. Prometia uma eternidade sem descanso. As serpentes que guardassem sua tumba se enroscariam entre seus restos mortais. Seus ossos se misturariam com os dela. Ameaça ou promessa? Quem podia saber? Talvez nenhuma coisa e nem outra, só uma declaração de que o amor, uma vez dado, é mais poderoso que a morte e de que ela seria seu verdadeiro e único amor todos os dias de sua vida e mais além.

Mas as canções de Propertius acabavam de forma estranhamente animada. O último poema, de tom heróico e burlesco descrevia uma muito viva e zangada Cintia expulsando às prostitutas da cama do poeta e os alcoviteiros de seu triclinio. Ela limpava a casa e abria seus braços para Propertius. O poeta se despedia com uma imagem dele mesmo e sua amante, juntos e felizes. O primeiro homem em dizer que o amor é melhor que o poder ou a conquista dormia por fim, para sempre, nos braços de sua Cintia.

Regeane voltou para a terra com um sobressalto. Suspirou e se estirou.

—Um pouco de vinho sem água, querida. - Disse Cecília. - Para todas.

Regeane serviu três taças. Cecília não tirou o véu para beber. Era uma peça de tecido longo e solto e lhe bastou elevá-lo um pouco.

—Bem? — Perguntou Dulcina, voltando a guardar a lira em sua capa.

—Não necessita de nenhum louvor de mim, já sabe quão boa é. Mas terá, não obstante... Eu a recomendarei às primeiras casas de Roma. E nunca voltarei a falar com quem te negar a admissão. Mas venha, estamos desprezando a generosidade de Bárbara.

Elas se reuniram em torno da mesa. Os pratos estavam ainda quentes e tão deliciosos como antes.

Regeane se sentiu envergonhada em estar comendo novamente tão logo. Mas a loba não pôs objeções e lhe dirigiu um sorriso. E ela e Dulcina colocaram mãos à obra.

—Parece, - disse Regeane, - levando a boca uma porção particularmente generosa do assado que gotejava molho, - que o amor dá um tremendo apetite.

—Não sei. - Respondeu Dulcina. - Nunca estive apaixonada.

—Ah! - Interveio Cecília enquanto realizava a complicada manobra de passar uma colherada de maçã assada sob seu véu, sem manchá-lo. - Mas tem um amante.

—Albinus? Minha senhora, esse homem tem mais de setenta anos. Nem se molesta em ocultar sua calvície e nem se preocupa com sua barriga enorme. Um transporte de êxtase o mataria de impressão. Eu sou uma artista. Posso cantar sobre o amor e acreditar nele enquanto canto, mas não descido minha vida a sua volta. Sou muito prática. E você, Regeane?

—Vou me casar com um homem que está ao comando de um passo, na montanha nos Alpes.

—Oh, pobrezinha. - Disse Cecília. - Algum feroz bárbaro, sem dúvida. Mas muitos desses senhores nortistas são homens altos, arrumados e receosos com suas mulheres. E, - ela acrescentou como se tentasse suavizá-lo, - poderia chegar a lhe amar.

—Espero que não. - disse Regeane. As palavras saíram de sua boca sem pensar. - Não descido lhe amar. Descido sobreviver.

—Muito sábia querida. – Disse Cecília.

Dulcina assentiu.

—Olhe para o amor de Propertius, um assunto para os poetas, uma enfermidade da alma, uma maldição.

—Mas, querida minha, — disse Cecília, - não vivemos as mulheres para o amor e construímos nossas vidas a seu redor?

—Um rei e um guerreiro vão fazer um pacto sobre meu corpo. Não vejo aí nada ao redor do que construir uma vida.

—Você é uma mulher sensata, como eu. - Disse Dulcina. - Lucila encontrou Albinus para mim. "É muito agradável", ela me disse. "É obvio, estará em sua estima em algum ponto entre seu órgão de água e a antiga cítara que comprou o ano passado na Grécia. Então não deixe que seus cuidados lhe subam à cabeça. Mas é generoso e se você for prudente e discreta, estou segura de que estará muito bem." Tinha razão, ele é assim e estou bem. Além disso, ela não me disse o quanto amável e considerado é e me acreditem, um pouco de bondade e consideração significa muito para alguém tão acostumado aos maus entendimentos e os abusos como eu.

—Em sua infeliz infância, sem dúvida. - Disse Cecília.

—Infeliz não é a palavra mais adequada, minha senhora. Não me ocorre nada para descrevê-la, nenhuma palavra que seja cortês usar em sua presença. Posso recordar o dia que Lucila entrou em minha vida, como se fosse ontem.

Regeane se surpreendeu ao ver lágrimas nos olhos de Dulcina.

— Ela ofereceu-me uma moeda de prata, para cantar para ela. Lembro-me que a peguei em seguida e mantive a mão oculta às costas, temendo que ela me fizesse devolver se não gostasse de minha voz. Um pouco de dinheiro significava que eu podia seguir dormindo no canil em que me alojava algumas noites mais e com a barriga cheia. E não podem imaginar quão importante era para mim naquele momento. Cantei a canção mais bonita que sabia. Uma cantiga suja e grosseira que haviam me ensinado os donos do botequim. Divertiam-se me ensinando as canções mais sujas que podiam encontrar; a linguagem suja nos lábios de uma menina inocente era muito gracioso para eles. Mas Lucila não riu e nem se ruborizou. Quando terminei, ela colocou outra moeda de prata na minha mão e fez uma visita a meu amo. Então me levou ao paraíso. Ou, pelo menos, ao que era o paraíso para mim. Lençóis limpos, boa comida e uma vida entre pessoas que não me pegavam por prazer como fazia o taberneiro.

—E pensar que poderia pertencer a uma das primeiras famílias de Roma... —Disse Cecília.

—O que? — Perguntou Regeane. - Como é possível?

—Não sabe, querida?

—Não. - Disse Dulcina. - Seu povo é bárbaro. Seguro que têm truques entre eles, mas não estarão tão entendidos e nem aceitos. Muitas famílias, Regeane, não se incomodam em criar todos os filhos que têm.

—Os ricos são piores que os pobres. - Acrescentou Cecília. - Freqüentemente não querem dividir uma herança ou pagar um dote, então a criança é abandonada em algum lugar público. Pelo geral os levam a negociantes de escravos, para vendê-los no futuro.

—Seria melhor estrangulá-los ao nascer, que lhes deixar viver para suportar tudo o que eu sofri. Acredite-me, em tais circunstâncias, a vida é um duvidoso presente no melhor dos casos.

—Mas, vamos supor que tivesse nascido formosa. - Disse Cecília.

—Teria sido pior. Então o encarregado do bordel não teria me vendido ao botequim onde aprendi a cantar e chamei a atenção de Lucila. Mesmo assim, não escapei de tudo dos cuidados de seus... Clientes. Passaram anos antes que pudesse suportar o tato de um homem sem sentir arrepios.

—Que estranho. - Disse Regeane. - Mas vive com Albinus, um homem velho.

—Nunca tive medo de Albinus e estou a salvo, Regeane. Ele nunca poderá me fazer dano verdadeiro e nem me decepcionar. Já o vê, não posso lhe amar.

—Então é livre e pode gostar de outro. - Corroborou Cecília.

—Exatamente. — Dulcina baixou os olhos para sua taça de vinho. - Muito mais disto e terei que ser arrastada a minha carruagem e me tornar inconsciente na viagem de volta para casa.

Cecília empurrou a bandeja para ela.

—Coma um pouco mais, querida. E você, Regeane? O que pensa do amor, a deusa virgem?

Regeane elevou sua taça rapidamente, para cobrir o rosto, lembrando-se que tinha rendido seu primeiro beijo a um pastor anônimo da Campânia. Só tinha sentido piedade por ele naquele momento, mas recordava vividamente a sedosa carícia daqueles suaves lábios sobre os seus. Depois, havia sonhado com carícias muito mais íntimas, dadas em outros lugares e de formas muito mais prazenteiras.

Pensou nas longas noites que havia passado sozinha. No lento passar do sono à vigília havia viajado com a loba por um mundo de beleza, encantamento e liberdade. Havia se deslocado com outros lobos através de desertos gelados, cruzado vales, brincado nas margens dos rios à luz da lua E... Eles... Ela recordava fracamente... Sempre estiveram ao seu lado: irmãos, irmãs e amigos. Mas possuía amantes, a feroz beleza de prata? A loba não sabia e não podia, ou não queria recordar. Havia sentido o cálido, trêmulo e ávido vazio da fêmea, o quente e pulsátil poder do macho?

E então o conhecimento chegou como uma maré. É obvio que a loba desejava e algum dia o faria, mas ainda não. Não, ainda não. Mas logo, muito em breve, iria querer... O que?

Regeane se levantou de um salto, se voltou e caminhou rapidamente para a janela. Oh, Deus, havia uma complicação, algo com o qual não havia contado, absolutamente. Afastou para um lado as tabuletas da persiana e contemplou o jardim. O forte aroma das rosas a envolveu.

A loba se elevou na escuridão de seu ser e examinou o mundo através de seus olhos. A fera que a ganhasse teria que fazer algo mais que despir suas presas ante seus rivais. Teria que derrotar a todos em combate singular, pois ela não se renderia por menos. A mulher podia ser tomada e movimentada como um peão no tabuleiro dos jogos de poder dos homens, mas a loba era livre. Uma esbelta e prateada massa de fúria que só se submeteria ao melhor, ao mais forte e feroz de seus pretendentes.

A voz de Cecília interrompeu seus pensamentos.

—Perdoe-me, querida. Fui indiscreta? Fiz uma pergunta que não devia? Tem talvez, um amante?

Regeane sacudiu a cabeça, com seu punho crispado sobre o peito.

—Não. Seria muito perigoso para mim. ter um amante. Meu futuro marido poderia não sentir ciúmes por mim, mas os sentiria por sua honra. Só estava pensando. Sonho freqüentemente com o amor, mas ao despertar encontro meu travesseiro úmido pelas lágrimas. Pois se um amante pode ser um perigo para mim, mais seria que aprendesse a amar meu marido. A duração de meu matrimônio depende do êxito de meu ilustre parente, Carlo Magno. Se ele cair, estou segura de que meu marido olharia a seu redor em busca de outro enlace. O divórcio é comum entre os francos e também é algo ainda mais barato que o divórcio... O assassinato.

Dulcina rompeu a rir:

—O céu nos atira. Você ainda é mais realista que eu.

—Mas seu travesseiro está úmido pelas lágrimas. - Disse Cecília.

Regeane se afastou da janela e olhou a Cecília. Estava sentada à cabeceira da mesa e os enviesados raios do sol vespertino brilhavam sobre sua face e seu corpo, cobrindo-a com uma trama de luz dourada e sombras negras. Um dos raios caiu sobre o véu, tornando-o por um momento transparente aos olhos de Regeane. A jovem pôde ver com claridade os suaves traços de um rosto tão belo que lhe tirou o fôlego. Uma boca doce e sensual e maçãs do rosto cujos contornos faziam com que as faces de outras mulheres parecessem toscas e aplainadas. Olhos grandes e azuis como flores. E sob eles, o duro e negro oco triangular onde seria o nariz.

Regeane tentou que sua face não refletisse nada do que tinham visto seus olhos. Não estava assustada, mas triste ante a destruição de tanta beleza.

—Pergunto-me o que teriam pensado os antigos, de nosso pequeno simpósio. – Ela disse.

—Se referir a Platão, - respondeu Dulcina com um gesto de aversão, - ora! Posso imaginar essa turma de estúpidos varões debatendo em torno de uma mesa sobre existência do amor, uma completa abstração para eles. Como se o amor existisse como teoria abstrata. O amor é sempre particular, nunca geral.

—Por outra parte, - comentou Regeane, - acredito que o filósofo disse uma vez que as mulheres nunca falam da natureza do amor, mas sim de amantes.

—Talvez Dulcina tenha razão. - Disse Cecília. - Os filósofos não têm a mais remota idéia do que é o amor.

—Claro que não. - Seguiu Dulcina. - Qualquer mulher que deu a luz uma criança, deu-lhe o peito e lhe lavou e cuidou durante anos, sabe mais de amor que o mais inteligente desses néscios. Mas por que seguimos falando do amor? Olhe seu precioso Propertius que morreu por culpa do amor ou isso dizem. Desagrada-me o amor. A ela, - Ela assinalou Regeane, - dá medo e a você, te destruiu a vida.

Cecília saltou na cadeira e Dulcina tapou a boca com a mão.

—Oh, Meu Deus! Sinto muito, bebi muito vinho. Minha língua deve ter se soltado.

—Não é nada disso. - Disse Cecília. - Não se desculpe, querida. Sempre animo minhas alunas a me falar com liberdade. Eu gosto de saber o que pensam realmente quando lêem Lívio ou Ciceron. Eu gosto de lhes ouvir falar de suas vidas, suas esperanças, seus sonhos e suas aspirações... Freqüentemente, elas vêm me contar seus problemas e inclusive me pedir conselho. Nada do que me dizem sai daqui. Eu, por minha parte, estou acostumado a confiar nelas e lhes contei minha história mais de uma vez. Se não chegou a seus ouvidos é por que foram mais discretas do que acreditei. Devem entender que minha família é muito antiga. Inclusive há alguns quantos Cesar em minha linhagem. Dizem que somos o sangue mais puro de Roma. Nossos antepassados se remontam do império, mas agora somos pobres. Perdemos nossas grandes propriedades na Britânia e Gália e os lombardos confiscaram nossas terras latinas. Tudo o que resta de nossa antigamente imensa riqueza é uma vila na Via Latia e alguns poucos vinhedos perto de Nepi. Entretanto, dada nossa distinguida posição na sociedade, não nos surpreendeu que um dos homens mais ricos de Roma pedisse minha mão em matrimônio. Estava com mais de trinta anos, mas eu sabia qual era meu dever. Ele ofereceu-se para restaurar a fortuna da família.

—Sim. - Disse Dulcina. - Os antepassados distintos não reparam goteiras do telhado, nem substituem roupa puída ou levam o pão à mesa.

—Muito certo. Casei-me com o vestido de noiva de minha bisavó, o único objeto verdadeiramente luxuoso que restava a minha família. Um antigo vestido de seda e fio de ouro com citrinos e pérolas cultivadas. A única razão pela qual não tinha sido vendido era porque os citrinos e pérolas não valiam o bastante. Pedras semipreciosas, vocês sabem. Depois das bodas não tive escassez de vestidos luxuosos ou jóias bonitas. De fato, estava surpreendida pela generosidade de meu marido comigo, pois era notoriamente miserável com todos os outros. Até que um dia ele me deu de presente uma grande pérola negra. Naquela noite não a usei para o banquete e quando os convidados foram embora, senti o peso de sua mão. Então compreendi que não era uma esposa para ele, sequer um ser humano, mas outra de suas posses, como sua grande vila, seus cavalos ou seus cães. Eu estava ali para coroar seu êxito, para proporcionar o cenário adequado a sua magnificência. Quando me levantei do chão, disse-lhe que sentia não ter completado minha parte do acordo e que não ter usado a pérola não tinha sido de propósito; simplesmente não combinava com o vestido que usava. Ele golpeou-me novamente e disse "Coloque outro vestido". Naquele momento compreendi meu valor para ele. "Muito bem", eu disse-lhe. "Converterei-me na inveja de Roma. Sua casa será um lugar admirável, lajeado com o mármore mais fino. As pinturas das paredes e os móveis farão com que todos fiquem com a boca aberta. Nunca deixarei de me mostrar como uma amostra de sua riqueza. Meu traje estará sempre impecável. Minha conduta para seus, às vezes duvidosos sócios comerciais, será como você quer, fria ou cordial. Mas nunca, nunca mais volte a me tocar... De nenhuma forma... Nem com ódio e nem com amor ou irei embora nesse mesmo dia, sem que me importe o que diga e não voltarei." Cumpri com minha parte enquanto ele cumpriu com a sua, embora não posso pensar que ser privado de minha companhia fosse uma grande carga para ele. Eu era uma mulher adulta, um inconveniente que ele respeitava. Notei que nas estranhas ocasiões nas que escolhia se divertir, quase sempre escolhia alguém bastante mais jovem que eu, menino ou garota.

Regeane viu que Dulcina ficava paralisada por um instante, sua face retorcida pelo asco; depois envolveu o corpo com seus finos braços e mordeu o lábio inferior.

—Quanto a mim, — continuou Cecília, - minha vida se converteu em uma longa solidão. Ocultei minha miséria atrás de uma máscara de insuportável e bem criada cortesia. Mas a maior parte do tempo, sentia-me tão só como devia se sentir aquela vestal impudica, quando a terra foi selada sobre sua cabeça e ela, condenada a morrer em sua tumba solitária. Pelo menos, até que Rufus apareceu a nossa mesa. Não era especialmente bonito, mas era forte e atlético, com um sorriso contagioso. Era muito divertido, sempre de bom humor e com uma brincadeira pronta em todo momento. Quando fitava seus olhos verdes, esquecia minha dor e minha solidão. Do momento em que nos conhecemos, ele prestou-me estreita atenção. A princípio, era tudo muito inocente: pequenos presentes, flores, um livro de poesia, breves visitas quando meu marido estava fora por causa de seus negócios... Sempre estávamos, vocês me entendem, escoltados por meus numerosos serventes. Eu não queria me comprometer por causa de um bárbaro. E isso era Rufus, um senhor lombardo, por mais rico e poderoso que fosse. Mas com o tempo, as visitas foram se tornando mais e mais longas. Passávamos juntos noites inteiras perdidos na fascinação de nossa mútua companhia. Rufus não era como meu marido, a quem só lhe interessava aumentar suas riquezas, o mundo inteiro era sua província. Eu podia estar com ele. Divertiam-lhe as trivialidades de administrar uma grande casa e eu estava sempre estava ocupada com a minha. Mexericávamos durante horas sobre a arrevesada política desta grande cidade e as muito humanas personalidades atrás dela. Ele tinha muitos correspondentes em terras longínquas e nunca chegava sem alguma história nova e fascinante sobre os fatos dos reis na Gália e a Britânia, as intrigas de suas cortes bárbaras, de homens vivos e mortos e de batalhas ganhas e perdidas. Pois devem compreender, queridas, que quando eu falava dessas coisas com meu marido, topava com suas brincadeiras ou sua ira. Mas Rufus nunca se zangava comigo nem se zombava de mim, embora às vezes eu merecesse. Seus presentes também se tornaram mais elaborados e caros. Na realidade não tinham preço. Jardas de elegante renda de Bizâncio, geralmente impossíveis de conseguir em Roma; um preso de alguma preciosa especiaria que nunca poderia encontrar no mercado; um saltério iluminado esquisitamente por esses monges celtas que se encerram em celas junto aos tormentosos mares do norte... Ele levou o mundo a minha porta. Minha alma encolhida e assustada começou a se abrir como uma flor pela manhã. Resumindo, comecei a lhe amar. No fim, desesperada, perguntei a meu marido se era de tudo indiferente à relação entre o Rufus e eu. Respondeu-me com uma palavra: "Completamente". Uma semana depois, Rufus nos convidou a visitar sua vila no campo. O dia seguinte a nossa chegada saímos a cavalo para caçar. Meus arreios estavam frouxos e Rufus ficou atrás comigo.

Cecília fez uma pausa, virou e contemplou um ramalhete de rosas em um vaso de cristal junto a seu cotovelo.

Ao fitar as rosas pela primeira vez, Regeane compreendeu que deviam proceder de algum lugar distinto do jardim sob a janela. As rosas do jardim do convento eram principalmente singelas e de cor rosa ou branco. As do vaso eram duplas e tão vermelhas que pareciam quase negras na sombra da estadia. Só mostraram suas verdadeiras cores quando a luz do sol encontrou seu caminho até as pétalas, entre as pesadas venezianas. Sob seus raios, elas ardiam sem chamas, como as brasas vermelhas de um fogo moribundo, brilhando como se uma luz interior as iluminasse.

Cecília estendeu a mão e acariciou uma pétala suave como o veludo.

—Freqüentemente penso que se pudesse explicar os fatos da humanidade a uma rosa, só entenderia o doce e prolongado ato de amor em uma tarde sonolenta. A vegetação é uma cama coberta de veludo esmeralda para os amantes. As abelhas dançam ebriamente através de uma horta de pêssegos. O único relógio é o sol, movendo-se silencioso pelo céu... Como se descesse para as frescas sombras azuis de um crepúsculo de verão. Quando meu marido voltou da caçada, eu era uma adultera. Rufus e eu nos tornamos amantes. Meu marido continuou perseguindo a riqueza implacavelmente e Rufus e eu perseguimos um ao outro. Amávamo-nos de dia, de noite, sob a lua e as estrelas, à alvorada e ao anoitecer. Sempre que podíamos fugir e dispor de um momento, deleitávamo-nos unindo nossos corpos e nossas mentes. Pois éramos amigos além de amantes. A visão de sua face e o tato de sua mão bastava para me encher de uma alegria quase inimaginável. Os anos foram passando, um por um, embora parecesse muito rápido. Até que em uma tarde chuvosa voltei para casa e encontrei com um homem esperando a minha porta. Um pedinte. Pediu-me que lhe recebesse e escutasse sua súplica. Eu o atendi, a princípio voluntariamente e depois porque tirou uma faca e ameaçou cravar no coração em minha frente se não o ouvisse. Então, para meu desespero e minha dor eterna, eu o ouvi. Não posso repetir tudo o que me disse. Era vago, incoerente às vezes, mas em essência se tratava disto. Muitas famílias enriquecidas tiram seus ganhos de terras da Igreja situadas ao redor de Roma, que arrendam pagando seus direitos em espécie. A diocese de Roma usa o produto para alimentar os peregrinos e os pobres. Se os lombardos fizessem uma incursão pela fronteira durante a época de ceifa, os arrendatários não poderiam pagar em espécie e teriam que pedir dinheiro emprestado para fazê-lo, em efetivo. Se houvesse mais incursões lombardas, poderiam perder tudo. Meu marido era um importante prestamista e muitas grandes famílias estavam em dívida com ele. Meu amante era um conde lombardo. É preciso que eu diga mais?

—Seu marido estava usando seu amante para arruinar sistematicamente seus devedores. - Disse Dulcina.

—Exato. E eu tinha sido comprada e vendida como a mais envilecida prostituta da Cristandade e minha felicidade estava construída sobre uma poça de miséria e engano. Não posso recordar direito o que aconteceu nas horas seguintes a esta revelação, mas os criados acabaram escondendo de minha vista todas as facas e objetos afiados. Quando tentei me pendurar das vigas do teto de meu quarto, eles cortaram a corda e me baixaram. Quando estive bastante tranqüila para pensar, soube o que devia fazer. Chamei em casa a todos os devedores de meu marido que pude encontrar e esvaziei o conteúdo das caixas fortes em suas mãos. Tínhamos coisas maravilhosas em nossa vila, que eu tinha escolhido com bom gosto, enquanto meu marido enchia-as de dinheiro para comprar. Amontoei tudo no átrio. Tapeçarias, cristal estranho e precioso, estátuas antigas, manuscritos iluminados, roupa luxuosa... Tudo. E lhes permiti pegar o que quisessem. Quando meu marido voltou para casa, bom... Realmente não resta muito mais a contar.

O sol estava baixo e seus raios entravam através das persianas. Os móveis projetavam espessas sombras, escuras entre a luz alaranjada.

Regeane olhou espantada para Cecília, uma sinistra suspeita formando em sua mente.

—Você mesma fez... – Ela acusou, vendo que os formosos lábios desenhavam um sorriso sob o véu.

Cecília não negou.

—É obvio. É muito perspicaz, querida. Poucos imaginam. Posso te perguntar como soubeste?

—Seu marido não teria feito. Rufus a amava de verdade e o teria matado. E ele era muito frio e ardiloso para te mutilar.

—Sim. - Respondeu Cecília. – Era. O que fiz apenas o prejudicou. A maior parte de sua riqueza estava investida em suas muitas empresas e terras, em suas hortas e vinhedos. Não. Ele riu de mim e disse "Ora, está irada! E de ti, nada menos. Não seja tola. Amanhã pela manhã, voltará com ele". Mas não fiz. Não pude e nunca poderei. Havia me convertido em sua cúmplice e não podia suportar isso.

—Então teve sua vingança. - Disse Dulcina. - Quem pode dizer que te equivocasse?

—É estranho que diga isso. A Abadessa Hildegard usou palavras bem parecidas quando cheguei aqui procurando proteção de um mundo que em um dia horrível se tornou hostil. Disse "terá muito tempo para meditar sobre sua vingança". E tive.

—O que aconteceu com seu marido? — Perguntou Regeane.

—Rufus se ocupou disso. As propriedades de meu marido ardiam tão bem como as de seus devedores e ele morreu como um mendigo. Encontraram-no em uma manhã, ao lado dos degraus do palácio do Papa, onde os pobres recebem sua ração diária de comida. Estava vestido de farrapos, com a chuva caindo sobre seus olhos abertos.

—E Rufus?

Cecília se voltou para as rosas junto a seu cotovelo.

—Que estranho. – Ela disse. - Quando as rosas florescem na primavera, vêm e seguem até que o frio vento de outono envie suas pétalas a terra. Quase cada dia, chegam à porta do convento. A princípio, chegavam cartas com elas. É obvio. Eu sempre as queimava sem as abrir.

—É obvio? — Exclamara Regeane, com as lágrimas correndo sua face.

—É obvio. - Repetiu Cecília firmemente. - Mas as cartas deixaram de chegar a alguns anos. Agora são somente as rosas. E eu recordo e estou segura de que ele também, que durante seis formosos anos fui à mulher mais feliz da terra.

—Rogo a Deus, - sussurrou Regeane, cobrindo os olhos com as mãos, - não odiar e nem amar nunca a ninguém com tanta intensidade.

—Você fará, como eu tenho feito. - Disse Dulcina em tom carregado, levando a taça aos lábios. - Mas eu não tenho a coragem de Cecília ou talvez não esteja segura de que assim danificasse o alcoviteiro que me criou, para me vender pelas ruas ou o taberneiro que me matava de fome. Minha melhor e única vingança é o êxito.

—E a minha, - suspirou Regeane, - uma vitória sobre a morte.

Cecília se voltou novamente para as rosas da mesa.

—Sem ele, - ela disse, - somos como as imagens pintadas nas janelas de uma igreja quando não lhes chega o sol, somente sombras. O amor ilumina nossas vidas. Quando seus raios deixam de brilhar em nossos dias, não somos nada. Olhem... Desprezamos a rosa porque sua beleza é passageira? Alguns o fazem e procuram consolo no cristal ou no mármore. Mas o verdadeiro amor está perto do divino e, como todas as criações de Deus, sua beleza surge de dentro. O cristal se rompe, o mármore é corroído pelo passar do tempo. Mas a rosa desdobra sua bandeira ao sol todas as primaveras e fará isso sabe Deus quantos anos mais. Dulcina, tem a Lucila e suas canções. Regeane tem algo do qual não falará e eu... Eu tenho minhas rosas.

Cecília tocou brandamente uma delas. As pétalas vermelhas caíram sobre a mesa, parecendo uma poça de sangue.

 

                                                   CAPÍTULO 21

O sino do jantar estava soando quando Regeane levou Dulcina até a porta. A cantora a abraçou uma vez mais e se afastou, deixando as mãos sobre seus ombros. Seu magro rosto estava sombrio e seus lábios, uma dura linha.

—Cuide-se. – Ela disse. - Não, não se preocupe. Lucila não me disse nada de ti. Deus sabe que ela mantém a boca fechada em questão de segredos. Deve fazer. Provavelmente sabe muitos coisas, que arruinaria meia Roma. Mas havia muito nela quando me pediu que entregasse sua mensagem. Não tema se refugiar com ela, se for necessário.

—Obrigado.

—Não me agradeça. Uma tarde com Cecília é mais preciosa que os rubis. Minha fortuna será, que nenhum jantar da alta sociedade estará completo sem minha presença. Minhas tarifas se dobrarão dentro de um mês.

Ela abraçou Regeane novamente, rápida e fortemente e partiu.

Regeane se uniu a Bárbara para lhe ajudar a arrumar a mesa.

—O que te pareceu Cecília?

—Oh, Deus! — Exclamou Regeane, quase deixando cair uma fonte de serviço.

—Não gaste sua simpatia com ele ou em meus pratos. - Disse Bárbara. - Acredito que, a sua maneira, ela está absolutamente contente. Provocou a morte de seu asqueroso marido e quanto ao pobre Rufus, posso dizer que é um dos poucos seres humanos que conheci capazes de manter sua devoção durante toda uma vida. E a atormentou com êxito durante mais de dez anos. Essas malditas rosas não chegam sozinhas, pode imaginar. Cada ano nos pergunta e cada ano voltamos com a mesma resposta. Diga-me, ela pronunciou seu famoso discurso sobre o amor?

—Sim. - Respondeu devagar Regeane.

—Humpf... Se isso é amor, preferiria ser uma gata de rua.

Regeane teve que se abaixar no corredor perto da cozinha, por causa das lágrimas provocadas pela risada.

—Oh, Bárbara! Basta. – Ela suplicou, secando o rosto com o avental.

—Nada disso. – Barbara respondeu-lhe. - Só o que necessita depois de estar com Cecília, é uma dose de sólido sentido comum.

As monjas haviam começado a chegar e a se sentar. Regeane foi à cozinha e voltou com uma fonte de pão. Para seu desgosto, notou que não havia colocado muitos serviços na mesa, pois enquanto as monjas se sentavam, uma anciã entrou no recinto. Estava marcada pela idade e seu corpo se apoiava em um pesado cajado negro de espinheiro.

Como as demais, ela se vestia com um singelo manto de lã marrom. Caminhava em direção ao assento sob o suporte de livro, em frente à Emilia.

Quando passou junto de Regeane, ela se voltou e a jovem pôde notar que sua face estava tão enrugada como uma folha murcha, mas seu sorriso era benigno e carinhoso. Era tão belo, que iluminava sua gasta fisionomia, como o fogo em um abajur de alabastro brilha através da pedra translúcida.

—Oh, não. - Disse Regeane. Deixou a fonte sobre a mesa e correu em busca de outro serviço enquanto a anciã monja se sentava.

Ela colocou o prato e a taça ante a anciã e lhe serviu um pouco de vinho e deixou a jarra de água perto de sua mão.

A velha monja agradeceu sua cortesia com outro formoso sorriso e a benzeu brandamente, desenhando uma cruz no ar.

Regeane se inclinou educadamente, como correspondia ante alguém, sem dúvida venerável. Estava segura de que a anciã devia ser alguém importante para ocupar aquele lugar de honra na mesa.

Não reparou no completo silêncio da sala até que se ergueu. Emilia a olhava com um pouco parecido ao horror.

—O que acontece?

Emilia não respondeu. Levantou-se de um salto tão repentino que o banco caiu no chão e as demais monjas sentadas naquele lado da mesa só se salvaram de cair também, segurando umas nas outras. Em um instante, todas as monjas estavam do outro lado do quarto, com os olhos abertos de terror cravados no rosto de Regeane.

Regeane procurou à anciã, mas não havia nada ali, somente o prato com a colher colocada pulcramente no centro e meia taça de vinho.

—Não! — Gritou Regeane. - Não! — Ela se afastou da mesa, crispando os punhos sobre seu avental. - Às vezes os vejo, - ela balbuciou, - mas quase sempre me dou conta. Ela não era como os outros... Tão tranqüila e tão amável...

—A quem vê, Regeane?

A pergunta chegou da porta da cozinha, onde se encontrava Bárbara com uma fonte de assado de porco.

—Vejo os mortos, - respondeu Regeane grosseiramente.

Bárbara assentiu.

—Que aspecto tinha?

—Era anciã, vestida como todas nós. Coxeava e se apoiava em um cajado negro.

—A Abadessa Hildegard. - Bocejou Emilia. Fechou os olhos e se benzeu.

—Sim. - Disse Bárbara- Aquele cajado negro raramente se separou muito de sua mão durante os últimos dez anos de sua vida. Não tinha uma enfermidade concreta, mas os ossos velhos rangem e se rompem. Ah, bem, é bom saber que ela ainda pensa em nós e nos visita de vez em quando. Um pouco perturbador, é obvio, mas bom. Agora, vamos nos sentar para jantar.

—Santo céu, Bárbara! - Gritou a irmã Angélica. - Como pode estar tão tranqüila? Certamente Hildegard não nos visitou.

Regeane compreendeu que a irmã Angélica estava preparando um aterrorizante ataque de histeria. A monja caiu como uma árvore destruída e duas de suas companheiras mais jovens tentaram sujeitá-la enquanto uma terceira a abanava vigorosamente.

—E o que vamos fazer com esta moça? — Chiou Angélica, assinalando Regeane. - Não sabe bordar e põe a mesa para os mortos!

—Não podemos lhe reprovar que seja cortês, - disse Bárbara com certo deleite turvo. - Ela não sabia que Hildegard estava morta.

—Desejaria que deixasse de usar essa palavra, - gemeu Emilia.

—Que palavra? — Perguntou Bárbara em tom inocente enquanto entrava com o assado. Quando se aproximou de Regeane, a moça se encolheu. — Não tenha medo. – Ela disse. - Eu estou muito viva.

—Não! — Disse Regeane, afastando a cabeça. - É o assado. Não o cheira? —Ela perguntou. - O mau cheiro é asfixiante.

Bárbara permaneceu confusa por um momento e depois murmurou uma maldição, tão brutal como as que Regeane havia ouvido de Lucila.

—Já me pareceu quando o açougueiro a vendia. - A monja colocou a carne sobre a mesa e começou a trinchá-la cuidadosamente, cortando a grossa crosta que o fogo havia formado sobre ela. Alguém havia aberto profundos cortes na carne e inserindo umas folhas verdes neles. Bárbara tirou uma com a ponta de sua faca e a desdobrou. Estava escura e enrugada pelo calor do fogo, mas ainda reconhecível.

—O que é? — Perguntou Emilia, alongando uma mão para a folha. Bárbara golpeou o dorso da mão da abadessa com a parte plaina da faca. — Não a toque. Há pessoas que morreram por tocar esta planta e se Basílio estiver por trás disto, pode permiti-la ter da melhor qualidade... Ou talvez deveria dizer a mais letal. Se tivéssemos comido este bonito assado, certamente estaríamos mortas.

Emilia retrocedeu, fazendo novamente o sinal da cruz.

—Parece que Hildegard tinha uma boa razão para aparecer. O que é essa folha?

—Capuz de monge. - Disse Bárbara.

Acônito. Pensou Regeane, e pela primeira vez em sua vida, sentiu que ia desmaiar. Sentiu uma sensação desagradável. Primeiro a náusea, seguida de vertigem e depois tudo começou a escurecer.

A loba, como de costume, salvou-a. Lobos não desmaiam. Ela estava no máximo de sua energia, querendo ir à cozinha, saltar a taipa do jardim e encontrar Basílio. Os pensamentos da loba eram bem diretos e implicavam rasgar carne, fazer que brotasse o sangue e romper ossos. O fato de que a estadia estivesse iluminada e cheia de gente fez com que ela se dominasse com rapidez.

—Eu era o alvo. – Disse Regeane.

Bárbara a olhou do outro lado da mesa.

—Pode estar se subestimando, Regeane.

—Não. Bárbara, eu tenho que sair daqui.

Bárbara meneou a cabeça ligeiramente, como dizendo não aqui, não agora. Interrompeu-as um forte grito, do outro lado da estadia.

—Envenenada!

—Oh, não. - Suspirou Emilia.

—Ah, nossa querida irmã Angélica. - Disse Bárbara. A irmã Angélica estava histérica. Bárbara golpeou brandamente Regeane nos dedos.

—Disponha muita atenção, querida. Toda mulher precisa aprender os movimentos corretos. Isso é o que tem que fazer quando quiser piorar uma situação, já por si má, ou melhor, ainda, levá-la ao completo caos e fazer com que todos os varões das cercanias fiquem a beber.

—Envenenada! — Voltou a gritar a irmã Angélica.

O único som mais forte que sua voz era o estrondo do sino na porta. Angélica estava de joelhos, com os braços estendidos para o céu. Emilia a sustentava, tentando impedir que caísse.

Bárbara se dirigiu à monja jovem que seguia abanando inutilmente o lugar onde estivera a face da irmã Angélica.

—Deixa de fazer corrente, Cornélia e responda ao sino.

Alguns instantes depois, Cornélia entrou com dois soldados vestidos com púrpura e ouro do guarda imperial e dois meninos, um loiro e outro moreno.

O menino loiro se lançou para Regeane como um projétil e estava em seus braços antes que ela compreendesse que era Elfgifa.

Regeane ergueu os olhos para o alto por um momento e depois perguntou:

—O que aconteceu a seu cabelo?

—A mãe de Póstumo cortou. - Explicou Elfgifa. – Ela disse que eu estaria mais segura como um menino. Foi depois de que começaram os tumultos na rua e cortaram o homem pela metade e deixaram a sangrar por toda parte e os lombardos chegaram em nossa busca...

—Espere, - disse Regeane. - Para começar, o que estava fazendo na Rua de Póstumo? Acredito que devia estar aqui estudando as letras com as outras crianças E...

—Estava perdida desde esta manhã. - Disse Bárbara.

—E não me disse? — Perguntou Regeane, furiosa.

Bárbara encolheu os ombros.

—O que poderia ter feito a respeito, além de adoecer de preocupação? Os soldados do Papa estavam a procurando.

—É. - Disse Elfgifa assentindo. - Não nos encontraram até a pouco, quando cruzamos a ponte e lhes disse quem era. – Ela abraçou Regeane e lhe falou ao ouvido. - Só escapei para ver o Póstumo porque é meu amigo e meu pai diz que a amizade é sagrada, mas isso não é o que quero te dizer. Ouça, por favor, é importante, sei que é.

Angélica chiou novamente, interrompendo-a.

—Por que ela muge? — Perguntou a menina.

Regeane baixou Elfgifa, pegou sua mão e a levou a cozinha. Bárbara as seguiu, levando o assado e deixando-o sobre a mesa.

—Agora, o que é tão importante?

—Recorda o lugar que fugimos quando o soldado nos perseguiu, onde conhecemos o Antonius? Lucila me disse que não falasse dele. É segredo, mas não pode ser para você.

—Não é. - Respondeu Regeane. - O que acontece?

—Falei dele para Póstumo. - Disse Elfgifa ofegante. Ele quis vê-lo. Então passamos pelo deságüe da primeira vez, mas algo estava errado. Havia sangue por toda parte e corpos no pátio. Então os soldados nos viram. Corremos e ao chegar a casa de Póstumo os soldados tentaram nos pegar, mas eram lombardos e o pessoal da rua não deixou. Então começou a briga e partiram o homem pela metade e a mãe do Póstumo me cortou o cabelo. — Elfgifa calou ao ficar sem ar.

Regeane ficou em pé. A cozinha estava às escuras. Olhou pela janela. Os últimos raios do sol estavam se perfilando uma franja de nuvens perto do horizonte, a lua nova era uma peça de alabastro em um céu salpicado de estrelas. A noite estava sobre ela. O que poderiam querer os lombardos da pobre gente que Adriano cuidava junto com Antonius? Ela se perguntou. Então recordou com horror que um sínodo eclesiástico estava a ponto de se reunir na cidade para examinar a aptidão de Adriano para ser Papa. Seu testemunho sobre Antonius poderia condená-lo.

—Bárbara, - Ela sussurrou. - Tenho que ir.

Bárbara se aproximou com o abajur na mão. A luz era fraca e iluminava só suas três faces. Do outro quarto, Regeane podia ouvir ainda os fortes lamentos de Angélica.

—Não posso deixar que faça isso, querida.

—Não pode me deter. - Respondeu Regeane. - Ninguém pode.

Havia uma cuba de água junta ao fogo da cozinha. Regeane o pegou e arrojou o conteúdo nas chamas. Uma nociva mistura de fumaça, vapor e cinza se elevaram do fogo, enchendo o quarto.

A loba tomou Regeane. A mudança foi tão rápido que não teve tempo de fugir. Ela ouviu o estertor de Bárbara e o grito de alegria de Elfgifa.

Regeane saiu da cozinha a toda velocidade. Atravessou o jardim em alguns instantes e saltou a taipa limpamente. Encontrou-se na margem do rio, contemplando Roma, do outro lado do Tibre.

 

                                                         CAPÍTULO 22

A loba permaneceu na gélida escuridão, farejando o vento. Os grosseiros aromas da cidade e o rio lhe desagradavam. Recordou as palavras de Lucila e compreendeu que a chusma devia reinar ali agora. Inclusive do outro lado da água, podia ver o resplendor de alguns incêndios e ouvir sons de luta.

Os verdes espaços abertos da Campânia e as montanhas mais à frente atraíram sua alma. Uma brisa chegou da água, arrastando um aroma ainda mais horrível. Seus olhos de animal distinguiram as formas de cadáveres inchados no barro perto da margem.

Embora fosse sinistro, ela conhecia seu dever. Inclusive a loba acatava uma lei tão antiga que não podia recordar sua origem: não abandone os teus. A luta de Antonius e Lucila era agora parte de sua vida. Ela havia escolhido assim, como loba e como mulher e devia manter a fé. Deixou atrás os cadáveres e mergulhou na água.

A corrente a levou para o atestado coração da cidade, perto do Corso. Saiu da água e se sacudiu para secar em meio das retorcidas ruelas junto ao Tibre. Era uma área tão sujeita às inundações, que só os mais pobres viviam ali.

As estreitas ruas empedradas estavam úmidas e lamacentas por causa da urina. Os refugos das casas e o lixo putrefato entupiam os deságües. Os aromas dos míseros lares humanos abrasavam seus sentidos.

A luta devia ter sido feroz, pois havia alguns cadáveres. Um, jazendo em uma ruela, tinha intacta a parte inferior do corpo, mas sua face e sua cabeça eram uma polpa sangrenta. Outro pendurado pelos pés, de um balcão, de cabeça para baixo, mas não tinha cabeça e as vísceras que saíam do estômago aberto brilhavam úmidas e viscosas a fraca luz da lua.

A loba de prata trotou para diante, agradecendo que aquelas perigosas ruas estivessem quase abandonadas. Ante ela viu as janelas acesas de um botequim perto do Corso.

Fundiu-se com as sombras enquanto tentava escorrer além da porta...

Até que o viu.

A princípio, o tomou por um cão grande, possivelmente um mastim. Suas ancas se elevaram enquanto se preparava para lutar, mas então compreendeu que estava visualizando outro de sua própria espécie.

Confundiu-se pela cor, marrom puxando para o vermelho. O fino focinho, a máscara de pelagem mais escura na cara e nos olhos enviesados, proclamava o lobo. E não estava interessado nela, isso podia ver. Ele sequer havia notado sua presença.

Estava sentado de um lado da porta do botequim, com as orelhas eretas, os olhos ávidos e espectadores. Sua boca estava aberta, sua língua vermelha saia dela em uma grande careta.

Dois bêbados saíram do botequim, ajudando-se mutuamente a andar, rua abaixo. O lobo os ignorou.

O seguinte a sair foi uma moça com a face escura e um vestido de seda andrajoso, que guiava um soldado bem maior que ela; uma prostituta e seu cliente. O soldado cambaleou e se apoiou pesadamente no braço da moça.

O lobo se abaixou com uma expressão de incontido deleite e enfiou a cabeça sob sua saia.

A loba de prata viu surpresa e depois consternação na face da moça quando o frio focinho e a língua úmida alcançaram sua meta. Ela gritou e se afastou de um salto, deixando sozinho o soldado, que caiu pesadamente sobre os paralelepípedos. A moça chutou com força o lobo e o animal fugiu para a escuridão de um beco ao lado do botequim.

A prostituta retrocedeu para ajudar o cliente caído, inclinando-se e tentando lhe colocar em pé. Um engano. Compreendeu a loba de prata, ao ver a cabeça de outro lobo aparecer de um lado do edifício.

Nessa posição, ela era evidentemente irresistível. Em um momento, o lobo voltou a colocar a cabeça sob sua saia.

A moça deu um grito de ultraje e fúria ao cair com o soldado sobre os paralelepípedos.

O soldado conseguiu ficar de joelhos e desembainhar sua espada. Golpeou com força, em um poderoso e terrível ataque. Mas não o fez. O fio da espada tirou faíscas das pedras da rua. O lobo ficou atrás dele imediatamente, fechando seus afiados dentes sobre as costas do homem.

Um ameaçador grunhido estremeceu por um momento cada músculo do corpo de Regeane, até que ela se deu conta de que não era dirigido a ela, mas ao lobo vermelho. O soldado chiou um pouco, soltou sua espada. O lobo vermelho se afastou do casal e voltou para beco, onde se sentou tentando aparentar inocência, coçando a orelha com uma pata traseira.

Outros dois lobos apareceram a seu lado. Um era cinza, somente uma sombra na escuridão e o outro tão negro, que ao princípio parecia unicamente um par de olhos que captassem a luz.

O lobo cinza grunhiu novamente ao vermelho, desta vez com menos ameaça e mais reprovação no som.

O soldado e a moça conseguiram ficar em pé. Olharam de modo selvagem ao redor durante alguns momentos e depois correram para a porta de um albergue junto ao botequim.

Os três lobos deslizaram silenciosamente na franja de luz que saía da porta do botequim e ficaram paralisados ao ver a loba de prata.

O lobo vermelho fez uma careta sorridente, com sua língua ainda pendurada como estivera enquanto esperava suas vítimas. Aproximou da loba, que o deteve com um grunhido tão feroz que inclusive ela se surpreendeu. Iria fazê-lo em pedaços se aproximasse.

Sua boca se fechou com um estalo. O lobo emitiu um suave gemido que poderia ter representado uma desculpa e voltou junto aos outros dois.

O lobo cinza entrou de tudo na franja de luz. Aos olhos de Regeane, ele era a criatura mais formosa que já tivesse visto. Carente de espelhos ou critérios de comparação, Regeane havia se esquecido quão magníficos eram os lobos e inclusive ela mesma.

O lobo era do escuro cinza prata de uma sombra na neve. Seu ventre e a parte de atrás das patas eram de um branco tão puro como o das geleiras. Suas omoplatas e peito eram amplos e fortes. Atrás, as finas patas pareciam pisar na terra de forma tão leve como um bailarino. A cabeça e as orelhas eretas estavam emolduradas por uma pelagem tão grossa como a poderosa musculatura que havia sob ela. Os sinais mais escuros em sua face rodeavam um par de olhos tão belamente expressivos que pareciam ser os olhos de um amante olhando sua amada.

A loba de prata sentiu um tremor atravessando seus músculos que haviam se enrijecido inconscientemente para o combate. Relaxou sua postura ameaçadora e levantou a cabeça.

Seriam de sua espécie? Perguntou-se. Certamente deviam ser. Não eram os pequenos e escorregadios lobos da Campânia, mas lobos gigantes nórdicos, predadores das montanhas.

O grande lobo cinza parecia carregar o ar das alturas com ele. Uma lembrança de prados em flor, de ladeiras salpicadas com as elegantes formas de abetos e peles cobertas com um manto de neve. De um frio tão profundo que limpava o ar de todos outros aromas e empapava cada fôlego com pura luminosidade.

Elevado sobre suas patas traseiras, ele ultrapassaria a maioria dos homens por um pé ou mais. E seria um oponente formidável inclusive para algum animal tão grande como um urso.

Mas a loba de prata sabia que não tinha por que temê-lo. Aquela certeza era mais profunda que seus pensamentos ou sua memória selvagem. Em vez disso, sentiu a incrível feminilidade pela primeira vez, como loba. Não no sentido de se sentir menor ou mais fraca, mas uma limpa consciência de sua própria beleza selvagem. Embora não houvesse cor em um desafio, ela poderia pelos menos igualá-lo em velocidade, e suas mandíbulas eram tão poderosas como as dele. A loba de prata o recebeu como igual. Uma fêmea recebendo um macho, sabendo ambos que em seu acasalamento poderiam prender um breve e delicioso fogo na carne do outro.

A loba de prata sentiu uma rápida punhalada de calor em suas virilhas, uma urgência que enviou um arrepio de deleite por sua pele. Cada pelo em seu corpo ficou arrepiado por um instante.

O lobo cinza emitiu um suave som gutural. Não era um grunhido, mas algo semelhante ao ronronar de um grande gato. O cabelo de seu pescoço ondeava quase como as dobras de uma capa de pele, como se dissesse "Olhe-me. Não sou tudo o que poderia desejar?"

Ela estava aturdida. Era muito jovem para responder aquele primeiro gesto de união, mas se sentia secretamente encantada. A mulher estava aterrada. As imagens que alagavam a mente da loba eram deliciosamente sensuais... As carícias de uma longa língua em certos lugares, as presas daquele focinho magnífico, que poderiam tocar a pele em diversos pontos insuportavelmente sensíveis com doce ternura. Quão cômodo seria passar uma gélida noite coberta por aquele corpo grande e quente... A mulher queria sentir-se desgostosa consigo mesma, queria estar furiosa... E estava assustada. Se pelo menos não houvesse sentido aquele deleite quase angustiante misturado ao medo em seu coração...

De repente houve um brilho de luz e um forte som de vozes chegou a seus ouvidos, ao abrirem a porta do botequim. Outro dos paroquianos saiu cambaleando para a rua.

A loba de prata entrou em movimento quase antes de pensar e se encontrou correndo na escuridão de outra rua. Sua mente um torvelinho de emoções.

Os três lobos recolheram sua roupa entre as negras e chamuscadas madeiras de uma casa queimada.

—Não vejo o que tem que errado em se divertir um pouco. - Disse o que era o lobo vermelho. - Do que serve estar em boa forma se não poder desfrutar?

—Lave a face. - Respondeu a mulher que era a loba negra. - Empresta a essas mulheres.

—Oh, adoro almíscar. - Gemeu encantado o lobo vermelho.

—E os homens falam de cadelas. - Disse a loba negra.

O homem que era o grande lobo cinza prendeu a espada à cintura.

—Não era formosa? — Ele perguntou.

—Magnífica. - Corroborou o lobo vermelho.

—Obviamente uma senhora. - Disse a loba negra.

—Ela não gostou.

—Isso demonstra o que eu digo. Um passo mais e teria te esquartejado.

—Obviamente é uma de nós. - Disse o lobo cinza em tom sonhador. - Embora não sabe se comunicar ainda. Não entendia.

—Oh, sim. Ela entendia. - Disse a loba negra. - Aquele pequeno gesto quando pareceu que todo seu corpo ia se converter em uma chama de prata, diz mais a um olho experiente, que livros inteiros.

—Deve ser. - Disse o lobo cinza, olhando através do vigamento de madeiros enegrecidos, sob a pálida luz da lua.

—Que ardente. - Comentou a loba negra. - Não posso acreditar. - Nunca te vi assim.

—Meu sangue corre quente na noite. – Disse o lobo cinza. - Tudo o que lembra a noite é que sou um líder. A aparência de humanidade em mim simplesmente é isso: uma aparência e desejo inimigos aos quais intimidar, submeter e governar. Uma companheira a quem posso mostrar minha força e meu poder, que iguale o calor de minha paixão com a dela.

—Então, acredito que escolheste errado. Ela provavelmente se considera uma mulher humana a maior parte do tempo. E as mulheres humanas são escravas mais abjetas que nossos primos, os cães. — A loba negra cuspiu no espesso monte de cinzas seus pés. - Apostaria que está casada com algum caipira que lhe prende durante o dia e a viola todas as noites.

—Espero que não. - Disse o lobo cinza irritadamente. – Para seu próprio bem. Do contrário, conhecerá meus dentes de perto. Talvez seja tudo o que possa fazer por ela... Mas se seu homem for um bruto, eu a libertarei dele. Prometo. Não acho estes romanos muito difíceis de matar.

A mulher, a loba negra riu com dureza, entredentes.

—Entendo então que não têm apetite. - Disse o lobo vermelho.

—Já jantamos esta noite. - Respondeu ela. - Um salteador incauto que foi tão tolo para tentar lhe cravar uma adaga. — Ela fez um gesto assinalando o lobo cinza. - O néscio era tenro. Um pouco gorduroso para meu gosto, mas tenro.

—Hum... - Disse esperançoso o lobo vermelho. – Acha que poderíamos encontrar outro? Estou morrendo de fome.

—Vamos tentar. - Disse o lobo cinza. - Espero que vejamos novamente a beleza de prata. Talvez possamos segui-la até sua casa e se o marido dela for como a maioria dos humanos, eu romperei seus ossos e lamberei sua medula.

 

A loba de prata atravessou o Corso e fez uma pausa para farejar o vento. A mistura de aromas embotou seu nariz, confundindo à loba e assustando a mulher. Pelo menos uma dúzia de incêndios ardia na cidade. Mais à frente do aroma entristecedor da fumaça, se podia notar um miasma de morte e putrefação. Ela compreendeu que a cidade não pertencia ao Papa e nem aos lombardos, mas a si mesma. Uma maré de conquistadores bárbaros e reis haviam passado através e acima dela, mas no final seus autênticos governantes tinham sido sempre seus turbulentos e teimosos habitantes. A maré da qual Lucila havia falado estava atuando. Os magnatas que controlavam as terras que alimentavam à cidade e seu furioso e independente povo decidiriam entre os lombardos e o Papa.

Ela pensou nos outros lobos que havia visto. Seriam realmente como ela? Por um momento, um sonho que ela havia acreditado morto a havia possuído, o sonho do amor. Quem era o lobo cinza? Que tipo de homem seria durante o dia? Um Clérigo, guerreiro, ladrão ou louco?

A loba de prata queria voltar e encontrá-lo Para lhe seguir. Encontrar-lhe e começar o longo salto que terminaria em... O que? Sua espécie fazia amor como lobos ou como humanos, tendo em conta que compartilhava a natureza da fera e a do homem? Ou era sua união alguma secreta beleza negada a ambas as espécies e conhecida somente pela sua?

Ela suspeitava que fosse. O coração livre da loba clamava pelo lobo cinza, urgindo-a a descobrir quem e o que era. As imagens fluíam através de seu cérebro. Poderiam levar sua dança de amor a um mundo que seria um jardim para eles. Poderiam consumar seus desejos na cúpula de uma montanha que nenhum homem teria pisado jamais, onde a neve fosse tão densa que suas patas passariam sobre ela como uma pedra ricocheteando na água. Cômodos onde o frio podia matar um homem em pouco tempo, eles poderiam encontrar um lugar adequado para um par de amantes lupinos. À chamada dos profundos bosques, eles poderiam entrar facilmente em lugares impenetráveis para a humanidade. Escondidos entre árvores tão altas e grossas que ririam da aferrada da tocha. Poderiam explorar juntos as infinitas possibilidades do desejo nas clareiras iluminados pela lua e adorar à senhora da noite.

Oh, Deus, o sonho era real. Havia fome no coração da loba e dor em sua garganta.

A mulher se encolheu de terror. Quem quer que fosse ele de dia, como ia ter poder para protegê-la da ira do rei e do Papa? No momento em que seus olhos se encontraram, ele a quisera tanto como ela queria a ele. Ela estava presa em uma armadilha e não podia atraí-lo, para que perecesse com ela. Não, apertaria os dentes e abraçaria um homem. E tentaria esquecer os mistérios da luz da lua.

O mau cheiro de um matadouro tirou a loba de seus pensamentos. Percorreu o Corso, movendo-se furtivamente de uma sombra a outra. Compreendeu que o aroma procedia da casa onde Antonius havia vivido com o resto dos mutilados proscritos da cidade. Dois soldados lombardos montavam guarda na porta. Haviam colocado tochas nos suportes situados sob suas cabeças e a rua estava brilhantemente iluminada ao seu redor.

O feroz brilho queimou os olhos da loba, que se desvaneceu entre as sombras, recordando-se que havia uma entrada traseira pelo esgoto.

Passou um momento vagando entre as ruelas dos arredores até encontrar o encanamento. A loba pensou, choramingando e grunhindo brandamente contra a vontade da mulher que a guiava tão inexoravelmente e finalmente mergulhou pela estreita abertura.

Estavam no desordenado pátio. Sangue e outras substâncias piores se endureciam a seu redor. Inclusive sob fraca luz, a visão superior da loba podia reconhecer alguns deles.

O homem dos cotos em lugar de pernas havia sido decapitado. E antes de lhe cortarem a cabeça eles haviam lhe castrado. A poça de sangue era maior entre suas pernas. Por que fizeram aquilo? Não conseguia imaginar. Possivelmente só por diversão.

A moça com o buraco na bochecha havia morrido sob tortura. Pendurada de um balcão, com a cabeça entre seus braços desconjuntados. Havia sido presa e açoitada. O que restava de seu vestido rasgado era sua carne pendurada em tiras. Já não se movia, mas o sangue seguia gotejando do castigado cadáver, sobre as pedras do chão.

O moço corcunda havia sido estripado e abandonado à morte. A loba podia ver e cheirar o repulsivo rastro sobre as pedras ao arrasta-se na agonia, até que o sofrimento e a hemorragia haviam acabado com ele. Alguns soldados da guarda papal jaziam entre os mortos. Eles, pelo menos, puderam podido morrer lutando. Adriano fazia um esforço em defender o lugar.

A mulher se fundiu com a loba e tornaram-se uma só. A morte a quatro patas deslizando para a entrada da igreja. Ao longe, através da escuridão, ela ouviu o grito de alguém. Era um grito horrível, mais animal que humano. Um grito de dor agônica, que acabava em enfermos soluços.

A loba se lançou para diante, como um silencioso raio de prata e se deteve na entrada do que haviam sido a casa de Adriano. Custou-lhe um momento assimilar a cena por completo.

O antes bonito quarto estava quase nu, após de ter sido despojado de tudo o que pudesse ser de algum valor, salvo a mesa. Preso sobre ela estava o jovem pastor, que ela havia deixado Antonius sob seus cuidados.

Haviam lhe prendido de barriga para cima, deixando só um braço livre. Um soldado de barba negra sujeitava o braço pela mão. Dois dos dedos estavam torcidos e ensangüentados. O homem estava aproximando pinças de ferro no terceiro dedo dele.

—Por favor. - Suplicava o moço, com os olhos brancos, pela agonia. - Por favor, meus bons senhores... Não sei nada.

A loba reconheceu o soldado de barba negra. Era um dos homens de Basílio, que a seguira pelo beco. Elfgifa tinha tido razão ao querer lhe cortar a garganta. Adriano deveria ter feito.

—Sirus, talvez devêssemos deixar vivos alguns mais. - Disse nervosamente outro soldado que estava junto a ele.

—Vivos para fazer o que? — Grunhiu o barbudo. - Até que queriam falar contra seu amo, seu protetor, acredita que os homens do sínodo escutariam esses desvarios? Por um momento pensei que a garota sabia de alguma, mas morreu logo. — Ele sorriu ao moço preso à mesa. - Penso ir mais devagar com este aqui. Agora, - ele disse, dando tapinhas em umas correntes de prata que desciam de seu cinto, o colar de Lucila. - Me diga como uma criatura como você pode ter estas jóias.

A loba pôde ver o terror animal nos olhos do moço quando ele levantou a cabeça. Não respondia, só olhava as pinças na outra mão do soldado, com horrorizada fascinação.

—Muito bem, romperei alguns dedos mais. Pode ser que assim você se torne mais falante. - Sirus se voltou para seu companheiro. - Sustente o abajur no alto. – Ele disse forçando o braço do moço para baixo sobre o beira da mesa e aproximando as pinças de seus dedos.

Os olhos do moço se fecharam firmemente. Seu corpo se debateu com as cordas que lhe atavam à mesa.

A loba sentiu cada músculo se enrijecendo em seu corpo. Parecia estar se movendo muito de devagar. Ela rasgou primeiro a garganta do homem que sustentava o abajur, que se afastou cambaleando da mesa entre gorgolejos, o único som que podia fazer. Ele olhava surpreso para o sangue que brotava por toda parte, quando morreu.

O abajur de bronze caiu no chão. O azeite salpicou e sinistras chamas azuis saíram de sua boca e começaram a brincar sobre o metal. A luz no quarto passou a um crepúsculo purpúreo.

Um momento depois, Sirus caiu de costas, sob os dentes da loba. Seu pescoço caiu como fruta amadurecida nos dentes que o esperavam. A loba lhe rompeu a coluna pela parte mais baixa, para que não morresse imediatamente.

A loba pensou na moça. Inclusive recordou seu nome, Cresta, enquanto fechava suas mandíbulas sobre a garganta do soldado, lhe asfixiando pouco a pouco.

Ao moço preso à mesa, pareceu que os sons de sufoco e os estertores continuaram durante um longo tempo. Enfim se detiveram e ele somente pôde ouvir o tamborilar de pés no chão. Então o barulho cessou também e houve só silêncio. Alguns poucos golpes de faca o liberaram. Ele rolou fora da mesa e caiu de joelhos, segurando a mão mutilada, mantendo-a no alto ante sua face. Seus olhos se afastaram do corpo nu de Regeane. Ela havia tirado o colar de Lucila do cinto de Sirus e o colocara em torno do pescoço.

As chamas do abajur caído estavam crescendo e as sombras dançavam freneticamente sobre a parede.

—Não falei nada, minha senhora. - Sussurrou o moço, olhando-a por entre seus dedos. Para ele, Regeane parecia uma verdadeira deusa. Seu longo cabelo de pontas de prata era como um vestido sobre seu corpo, cobrindo sua nudez. As curvas de seus seios e estômago criavam um desenho de luzes e sombras com as chamas. Seus olhos o atraíam; brilhando em seu rosto escurecido, pareciam ver o mais fundo de sua alma. - Não falei nada, minha senhora, - ele soluçou novamente. - Não posso dizer se foi por lealdade a senhora ou ao pobre leproso, Antonius. Ou porque sabia que me matariam assim que falasse, como mataram os outros. Não deveriam... — Ele abriu a boca. Suas lágrimas corriam por sua face. - Não deveram ser tão cruéis.

Não, não deveriam. Pensou Regeane enquanto a mente da mulher tentava assimilar o simples assombro da loba. Por que toda esta loucura?

—Como chegou aqui?

—O leproso Antonius me enviou. Disse-me que advertisse ao sacerdote e lhe explicasse onde estava oculto.

Claro. Compreendeu Regeane. Antonius queria que Adriano soubesse qual era seu esconderijo.

—Mas quando cheguei aqui, não havia nenhum sacerdote. Somente soldados. Então chegaram os lombardos... — O moço riu histericamente, limpando o nariz com o dorso de sua mão boa. Ainda tinha a outra como uma garra ante sua face, olhando Regeane por entre os dedos. - Salvei-me porque estavam ocupados com a moça... A moça que açoitaram até matá-la.

—Onde está Antonius?

—Nos Cumes. Há muitas cavernas na rocha. Ninguém vai lá de noite, dizem que o lugar está enfeitiçado.

—Está. - Disse Regeane enquanto tirava o pendente e o entregava ao pastor. - Tome. Ganhaste seu pagamento e o dobro. Agora, pode encontrar a vila de uma mulher chamada Lucila?

—A... —Sua voz se perdeu. Não queria usar a palavra ante quem podia ser sua protetora.

—Sim. Ela o ajudará.

—Não temo por minha segurança uma vez fora daqui. - Disse o rapazinho. - Estes romanos não gosta dos lombardos.

—Tomaram parte nisto os dois soldados daí fora?

O moço assentiu.

—Atacaram e mataram os guardas do Papa e deixaram estes quatro para interrogar os prisioneiros. Ajudaram a açoitar a moça até a morte. Alternaram-se.

—Apague o abajur. - Disse Regeane. - Tire a barra da porta e lhes chame.

O moço a olhou com medo.

—Estão armados.

—Estes dois também estavam e não teve nenhuma importância.

O moço elevou o abajur com uma mão trêmula. Justo antes de apagá-lo, ele voltou a olhar à mulher, mas ama loba lhe devolveu o olhar, com os dentes brilhando nas mandíbulas meio abertas, os olhos vermelhos e reluzentes no resplendor da chama.

 

                                             CAPÍTULO 23

As copas das árvores estavam de cor cinza à luz da lua, quando Regeane saltou a taipa da vila de Lucila.

Estava pensando que matar não era difícil se soubesse o que fazer e se pegava às vítimas de surpresa. Os cães e os lobos autênticos advertiam de suas intenções antes de atacar. Ela não necessitava e não havia feito.

Moveu-se em silencio através do jardim às escuras. Recordava a mensagem de Lucila de que a vila estava defendida por uma companhia de mercenários francos. Não queria que ninguém a visse e desse o alarme.

Ela apareceu no átrio e viu a Lucila sozinha, passeando junto ao lago. A única luz era a face da lua nova, que brilhava no céu e na água. Foi fácil invocar a mudança. Um instante depois, Regeane se elevou como uma mulher e caminhou para Lucila, que pestanejou e olhou à pálida figura que se aproximava dela.

—Regeane? Ou é só um fantasma?

—Aqui estou. Sabia que eu viria de alguma forma, verdade?

—Sim. — A palavra foi um suspiro. Lucila se aproximou para tocar Regeane, como se quisesse se assegurar que era real. Afastou a mão como se ela queimasse. - Cristo! — Ela exclamou olhando os dedos manchados de sangue de Regeane.

—Não é meu. - Disse Regeane com indiferença.

—De quem é?

—Não sei seus nomes. Eram homens de Basílio. Enviou soldados a casa onde vivia Antonius. Mataram todos os que encontraram. Mutilaram alguns antes de matá-los. — Livre da indiferença da loba à violência, Regeane se sentiu repentinamente doente de horror. - Surpreendi-lhes torturando alguém... Um moço... O pastor que paguei para que escondesse Antonius. Eu... A loba... Não, a loba e eu os matamos. Fiz com que o pastor fugisse e ele pode aparecer aqui. Você o reconhecerá por seus dedos quebrados. Por favor, o receba com amabilidade e não tente lhe surrupiar informação: quando me reunir com o Antonius, nem o moço saberá onde ele estará.

Depois de falar, Regeane se asseou convertendo-se em loba e entrando no lago. Lucila emitiu um som entrecortado e afastou a face, cobrindo-a com o manto. A loba se sacudiu para se secar como os cães, e Regeane reapareceu instantes depois.

—Deus! — Sussurrou Lucila. Ela estava com a boca aberta e com uma mão apertada contra o peito. Sua face parecia pálida sob fraca luz da lua.

—Sinto muito. - Disse Regeane. - Sobressaltei-te?

—Sobressaltou-me? Oh, sim, acredite. - Respondeu Lucila acidamente. - Sobressaltada é uma palavra muito fraca, para como me sinto.

—O que vê? Eu não posso ver a mudança, estou dentro dela.

—Nada. - Respondeu Lucila. - Mas tampouco se vê as asas de um pássaro quando está em vôo. Só um tremor, uma faísca difusa, como a luz da lua refletindo em águas agitadas.

—Tenho frio. Muito mais agora que a loba não está comigo, pois matei e não queria matar.

—Há outro manto no banco e um pouco de vinho. - Respondeu Lucila, assinalando à porta do triclinio.

Regeane se cobriu e se serviu de uma taça de vinho. O jarro era o mesmo que tinha visto em sua primeira noite com Lucila, com o bico em forma da cabeça de lobo grunhindo.

—O jarro te assustou na primeira vez que esteve aqui, não?

—Sim. Por um momento tinha conseguido enganar a mim mesma a respeito de minha verdadeira natureza, mas vê-lo trouxe tudo de volta.

—E ainda está tentando se enganar. - Disse Lucila. - Posso ver as lágrimas em sua face. Por que toda essa dor? É pelos homens que mataste?

Regeane se encontrou estremecendo. Embalou a taça de vinho nas mãos e bebeu profundamente.

—Não sei.

—Pense... Que opção tinha?

Regeane sacudiu a cabeça.

—Nenhuma. Não podia deixá-los torturar o rapazinho. De fato, não pude suportar ver o que lhe faziam... E algumas das outras coisas que tinham feito ali... Eram inexprimíveis. Mataram lentamente aqueles pobres desgraçados, só por ver como sofriam. Os homens de Basílio mereciam morrer. A loba sabia. Eu sabia. Mas a loba não recorda seus olhos quando a luz sai deles, como eu o faço. Não lhe importa. Para ela tudo é simples. Faz o que deve ser feito. Protege-me enquanto estou com ela. — A face de Regeane se torceu de dor. - Mas não sou totalmente ela. Também sou eu mesma e por isso sofro.

—Não posso te ajudar. - Disse Lucila. - Se fizer essas coisas, tem que encontrar alguma maneira de viver com elas, como faço eu.

—Você?

Lucila riu.

—Recorda o que disse Adriano, sobre Pablo Afartha, que assassinei?

—Você não negou.

—Do que serviria? Meia Roma sabe que o fiz e não foi o primeiro. Pablo pertencia ao rei lombardo e por um tempo controlou o trono de Pedro, tanto como se ele mesmo se sentasse nele. Quando os nobres romanos se uniram, lhe desafiando e escolhendo Adriano, Pablo prometeu que ataria uma corda em torno do pescoço de Adriano e o arrastaria cativo até Desidérius. Mas então eu havia atraído os francos em uma aliança com a Santa Sé. Antonius era meu embaixador ante o rei franco. É uma das razões do afeto que lhe tem Adriano. Enfrentando uma possível guerra com os francos, Desidérius não enviou tropas em ajuda a Pablo, e este teve que fugir. Mas o néscio foi para Ravenna, cujo arcebispo lhe queria menos que eu mesma e o reteve ali. Adriano queria um julgamento público e o desterro de Pablo. Viajei a Ravenna em segredo e disse ao Arcebispo Comus que não ficaria precisamente abatida pela dor, se Pablo sofresse alguma desgraça fatal. Entretanto, aquele idiota tinha o fígado tão delicado como Adriano. Homens! Com toda essa lábia de leis e processos! — Lucila cuspiu. - Que tolice. Como se Pablo Afartha se preocupasse pela lei alguma vez. Como se tivesse feito ter fracassado nossa aliança franco ou de ter caído Adriano ou eu em suas mãos...

Regeane tinha algo mais de calor, graças ao vinho que fluía quente por suas veias, animando-a. Tomou outro gole.

—E?

Lucila riu entredentes, como se a divertisse de sua própria astúcia.

—Aluguei uma grande casa e dei uma festa para o arcebispo, Pablo e seus homens. Contratei quase todas as prostitutas de Ravenna para entretê-los. Não esperavam menos de mim. E depois, sou a bem dissoluta Lucila. Quando todos estavam entregues à bebida e ao êxtase do prazer carnal, não havia uma, mas três bonitas moças para cada homem, meus homens e eu descemos ao Pablo aos porões do palácio do bispo e o estrangulamos com um pedaço pau. — Lucila baixou o olhar para suas mãos. — Eu fiz girar o pau que lhe rompeu o pescoço. Aquilo não foi o mais fácil para mim. — Sua voz se agitou. – Ele suplicou, rogou, fez promessas que não valiam nem o fôlego necessário para pronunciá-las. Teve uma morte bem indigna. Atribui a morte ao Arcebispo Comus, que preferiu se calar a admitir que tivesse sido enganado por uma mulher.

—Matar te adoece tanto quanto a mim.

—Sim. - Disse Lucila, olhando necessitada para Regeane. - Não acredito que tivesse confessado contigo, do contrário.

—Eu não posso te dar a absolvição.

—Nem eu a ti.

Regeane bebeu novamente.

—Como matarei meu marido? Sabe o que queria Gundabald.

—Faça de forma que não a apanhem e só se for absolutamente necessário. É o melhor e único conselho que posso te dar. E não aprenda a se recrear na morte como fazem alguns homens. As mulheres têm o poder da vida e da morte. Nós, depois de tudo, damos a luz e temos o destino da humanidade em nossas mãos. Por isso os homens tentam nos governar com tanto afinco, querida. Eles sabem que se olhássemos bem o que têm feito com a existência humana, poderíamos fechar nossas pernas e pôr fim à comédia em nossos ventres ermos.

—Você faria de verdade, Lucila? Seria capaz?

Lucila jogou a cabeça para trás e uma expressão de dor atravessou sua face.

—Não. Posso recordar a primeira vez que Antonius deu chutes em meu ventre. Então acreditava que algo era possível. Ah, ele era minha vida. Minha vida estava nele. Sigo esperando embora toda esperança já se perdeu. As mulheres estão malditas com a vida. Prende-nos e seguimos acreditando com cada criança que iluminamos, que o mundo será melhor do que foi no passado. Que o mundo o receberá com amor.

—Nem sempre é assim.

—Nunca é. Uma criança querida é freqüentemente somente outra boca a alimentar. Talvez tenhamos sorte quando algum homem encontra uma espécie de honra no fato de que seu jorrinho de sêmen encha nosso ventre e considera apropriado protegê-lo.

O vento se tornou mais forte. Nuvens altas passaram ante a lua.

—Está soprando o vento norte. - Disse Lucila. - Amanhã haverá cristais na grama e inclusive as flores de meu jardim sentirão o frio.

—Quem é Adrastea e por que tenho seu espelho?

—Adrastea é uma mulher morta. Uma puta morta. Por que se importa tanto?

—Não sei, mas de algum modo penso que os mortos são tão importantes nisto como os vivos. Diga-me Lucila, quem ela era?

Lucila encolheu os ombros.

—Já que pergunta, farei algo melhor que te falar dela. Mostrarei-lhe. - Havia um abajur no banco, junto ao jarro de vinho. Lucila o acendeu golpeando uma pederneira com um anel de aço.

—Tenho outra sala de jantar. – Ela disse, resguardando a chama do vento. - Uma que não uso nunca. — Embora ela sorrisse ao dizer, havia um toque de crueldade em seu riso.

Lucila guiou Regeane em volta do lago do átrio, até uma porta coberta por uma cortina. O interior, uma vez corridas às cortinas, estava totalmente às escuras. A pequena chama do abajur criava um mínimo círculo de luz em torno das duas mulheres. Lucila caminhou para uma das paredes e elevou o abajur.

—Olhe Adrastea. – Ela disse, afastando a cabeça e cobrindo-a face com o manto. Adrastea estava pintada como Vênus, sentada entre almofadas em seu penteador, nua e atendida por suas donzelas. Alguém estava às suas costas, lhe arrumando o cabelo longo e loiro. Outra elegante beleza lhe mostrava jóias para sua inspeção. A terceira, com a cabeça inclinada quase em adoração, calçava sandálias em seus pés brancos e pequenos enquanto sua ama contemplava o trabalho do penteado em um espelho de prata.

O detalhe da pintura era tão delicado, que Regeane pôde reconhecer o espelho com seu motivo de flores. Seus olhos estudaram o rosto de Adrastea e soube que não estava olhando uma visão idealizada do artista, mas o rosto de uma mulher viva. Os grandes olhos verdes mostravam uma faísca de travessura e as sardas salpicavam seu nariz belamente formado. Os lábios, ligeiramente grossos, sorriam convidativamente. Os seios nus eram exuberantes e um pouco arrebitados, elevando os mamilos cor rosa. A cintura era fina e o ventre, uma plataforma docemente encurvada de desejo onde aninhava um sexo coberto de encaracolados pêlos loiro avermelhado.

—Como Antonius deve tê-la amado. - Disse Regeane.

—Sim. Não suporto olhar as pinturas deste quarto, mas tampouco sou capaz de destruí-las. Estão entre as últimas que ele fez antes de contrair a enfermidade que foi sua ruína. Segundo ela, veio fugindo do este, de um cruel e perigoso amante bem situado no governo. Não devia ter lhe acreditado. Eu devia saber que nada bom vem jamais de Constantinopla. Esses malditos gregos só causam problemas. Oxalá tivesse prendido outro qualquer homem de Roma, mesmo meu Adriano, antes que meu filho. Ela sabia. Inclusive na primeira vez que se deitou com meu filho... Essa cadela sabia que possuía a enfermidade que acabaria com sua beleza e com sua vida. Quando meu filho caiu doente, eu comecei a investigar a causa de sua enfermidade. Enviei uma mensagem a um correspondente na corte do imperador em Constantinopla, lhe perguntando por Adrastea. Parece que seu último amante não só não era uma alta autoridade, como também já estava percorrendo os caminhos vestido de negro e com um sino na mão. Fiz com que a tirasse de sua casa, a esplêndida casa que havia pago com meu dinheiro, pois eu concedia tudo a Antonius. Mandei que a trouxessem aqui e minhas criadas limparam a maquiagem que cobria sua face e seu corpo. As chagas, essas marcas pálidas e intumescidas que destroem pouco a pouco a carne do leproso estavam por toda parte.

Lucila deixou de falar. Sua raiva lhe tinha feito abrir os lábios em busca de ar. À luz dos abajures, sua face era como uma pedra e seus olhos reluziam como a ponta de uma adaga.

—Devo dizer algo em seu favor: No final, ela se comportou com mais dignidade que Pablo Afartha e seus vômitos. Teve a elegância de se mostrar contrita. Não suplicou por sua vida. A única desculpa que deu foi que Antonius era sua última esperança, o último brilho de um abajur agonizante antes que o azeite se esgotasse e chegasse a noite. Não posso dizer que me comoveu. Queria vê-la morrer entre gritos, mas não queria que Antonius me odiasse, então que lhe ofereci a mesma escolha que cessar a seus inimigos: a adaga ou a execução pública. Na realidade, ela optou pelo arsênico. Dei-lhe um esplêndido funeral, como desejava Antonius.

—Sele sabe?

—Não poderia dizer. - Respondeu Lucila. - Nunca mais falamos dela.

Lucila se afastou das sombras, caminhando até o centro do quarto e lançou o abajur no chão. As chamas se prenderam ao azeite, chegando quase até o teto.

As duas mulheres se olharam. A da pintura estava congelada no tempo, nos últimos momentos antes que a beleza fosse extinta pela enfermidade e a morte. Lucila, a mulher viva, estava de pé do outro lado das chamas. Sua face, uma nua máscara de dor.

—Meu filho... Meu filho. – Ela chorou. – Essa cadela tirou meu filho. É por meus pecados, Regeane? Está pagando Antonius pelo que eu tenho feito? É isso?

Regeane retrocedeu para as cortinas que cobriam a entrada do triclinio e afastou-as para um lado. O vento puxou seu manto. Ela podia sentir a mudança que se aproximava como a sombra de uma nuvem percorre uma planície.

—Não sei nada do pecado, Lucila. Nunca o entendi. É uma coisa da Igreja. Vou acreditar em uma Igreja que me chamaria bruxa e me queimaria? Não posso. Todos os anos passados de joelhos e todas as penitências que minha mãe ofereceu, não conseguiram nada,, e tampouco o farão agora. Só espero poder te devolver a seu filho como é.

Lucila viu algo como um relâmpago de verão reluzindo ao redor de Regeane e à loba correndo como uma trêmula luz de prata, escorregadia como as nuvens que, uma a uma, dançavam com a lua.

 

                                                   CAPÍTULO 24

O que quer, prateada? Perguntou a mulher à loba. Como uma só elas voavam através da Campânia. Vai tentar o impossível?

A loba não podia responder com palavras, mas a mulher entendeu sua alegre resposta. Por que não? Eu sou uma coisa impossível.

Com as luzes de Roma atrás dela, a loba se deteve no alto de uma colina para inspecionar seu reino. A lua semi-oculta pelas nuvens lançava uma luz brilhante em seus olhos. Sob ela se estendia muito vegetação, somente quebrada por linhas de arbustos pequenos e árvores baixas. Barrancos e correntezas de água onde a loba podia, se desejasse, encontrar água e presas. No fundo de seu coração selvagem, a loba se recordou e regozijou.

As lembranças que alagavam o cérebro da mulher eram quase insuportáveis em sua vivência. A loba não só lembrava a alegria, mas também a dor e seu ocasional fim inexorável, a morte. Freqüentemente uma morte rápida sob os cascos afiados e da querida presa. Ou igualmente rápida ante as armas de sua própria espécie, as presas longas e brancas e as mandíbulas capazes de triturar o osso. Ou a morte mais temida, pela lenta tortura da enfermidade.

Também recordava da vida, não como os humanos a viviam às vezes, mas uma experiência de ansiedade constante e medo dos infortúnios do manhã, desgosto pelos grandes e poderosos entre os seus, mas a vida plena e vivida ao máximo entre o amor de outros como ela, o exultante triunfo e os às vezes amargos desenganos da caça.

Uma vida endurecida por pontadas de fome, alternadas de indigestão. Uma vida de desejo, potente e apaixonado, alcançando sua plenitude em um amor não tocado pela culpa ou o pesar. Uma vida modelada pela liberdade que desejava a mulher, um sentido de poder sobre si mesma e seu próprio mundo, uma força selvagem que nunca poderia ser traída ou escravizada na estúpida barbárie da servidão humana.

A mulher ou a loba podiam morrer. Talvez essa mesma noite, como uma ou como outra. Mas não iria a tropeções pelo caminho até a morte, odiando a vida ou o mundo a seu redor. Não seria uma escrava, nascida para arrastar sua carga desde nascimento até a morte. Seria livre, livre como a loba, incapaz de ficar aprisionada pelo terror ou a crueldade. Abraçando a existência, inclusive sua dor, até o último extremo. Sendo como a vegetação movida pelo vento, pelo grande arco dos céus escuros, impulsionada pelo grito do vento que parecia lhe apressar em seu caminho.

Por um último instante, loba e mulher olharam a lua e depois, quase com um suspiro silencioso, Regeane se rendeu a alegre liberdade do medo da loba, empreendendo a marcha para Cumas.

As nuvens estavam se tornando mais escuras e uma gelada neblina se arrastava pela Campânia, quando a loba chegou ao pé da rocha. O templo elevava sua casca vazia contra o céu, com as nuvens como suas únicas companheiras.

A loba seguiu o caminho sagrado para o topo. Antes de chegar à cúspide ela notou duas figuras encapuzadas e vestidas de negro, esperando. Nenhuma possuía uma tocha ou um abajur. Os raios de lua encontravam seu caminho entre as fendas nas espessas nuvens e as figuras pareciam sombras pintadas de negro.

Uma delas a avistou e falou: - Disse que viria uma loba, irmão.

—Sim. - Respondeu a outra. - Uma loba maior e mais poderosa que os lobos da Campânia. Uma loba que não atuaria como uma loba.

— Nós a saudamos-lhes, Lupa. - Disse uma das figuras, elevando a mão.

A loba de prata levantou a cabeça e os olhou com orgulho.

—Nem todos esqueceram que uma vez Deus falou aqui. - Explicou um dos encapuzados. - Alguns de nós ainda recordamos. Venha, ele espera junto ao lar.

Antonius estava sentado junto ao alto cone do fogo sagrado. Saudou Regeane com a mão.

—Lupa. – Ele disse. - O que quer de mim? O que pode querer de mim?

Regeane ficou em pé ante ele, como mulher. O vento colocava o frio em seus ossos e lhe movia o cabelo como um véu escuro ao redor de seu corpo. Os dois encapuzados ocultaram o rosto em seus mantos e se ajoelharam ao lado de Antonius.

—Venho, - disse Regeane, - para te trazer uma cura, se puder.

—A única cura para mim é a morte. - Respondeu Antonius e levantando-se, afastou o manto que ocultava seu rosto. - Mesmo assim, escondo minha fealdade de uma criatura tão bela como você, Regeane.

Regeane olhou para baixo. A névoa era como um sudário sob a sempre cambiante luz da lua. Cobria a paisagem com sua carícia úmida, ocultando os contornos da costa, esfumando a imensa planície da Campânia. A luz da lua passeava pela espessa camada de nuvens.

Como a rocha e o templo, Regeane parecia suspensa entre o céu e a terra. Não de todo de nenhum dos dois, mas algo diferente e possivelmente, mais poderoso.

—A fealdade e a beleza não existem para a loba, Antonius. – Ela disse. - Pelo menos, não como você as vê com seu olho de artista.

Uma rajada de vento açoitou seu cabelo, alvoroçando-o ao redor de sua face como uma chama. O pó da pilha de cinza cobriu a túnica de Antonius, que baixou a cabeça para fugir de sua fúria.

—Você foi, - seguiu falando Regeane, - meu primeiro amigo. O primeiro em me ajudar. Nem a mulher nem a loba podem esquecer isso. Te entregue a mim e tentarei te completar.

—Como?

—Indo para onde vão os mortos.

Ela se afastou dele, para a entrada do templo. Os dois encapuzados voltaram para seus postos aos lados do portal, uma porta que se abria agora à escuridão.

—Minha. —Regeane recordou suas próprias palavras a Cecília. - Uma vitória sobre a morte.

Ela esqueceu Antonius por um momento e vacilou. Mas a mulher não lutava já com a loba. Era uma só.

Havia uma luz no interior. Seu brilho mostrava o templo como o que era: os grandes ocos nas paredes, a obra de pedra quebrada sob os pés, o pedestal rachado... Um vazio onde estivera a estátua de ouro do deus. O resplendor emanava de uma figura que se apoiava em uma pesada fortificação. Quando a figura ficou mais perto, Regeane reconheceu à Abadessa Hildegard.

Elevou a mão em um gesto de saudação, recordando e reconhecendo a luz que havia chegado em seu socorro na noite em que o mal parecia afligi-la, quando as criaturas da escuridão se lançaram atrás dela.

A anciã se deteve na porta do templo, ante Regeane, e falou: — Não te faria enfrentar às forças da noite sem uma palavra. Não pense que nos mundos além da morte somos todos iguais. Você amou a minhas irmãs enquanto esteve entre elas e recebe por isso minha bênção e a de Deus.

A anciã elevou sua mão e Regeane se ajoelhou sobre os degraus do templo. Sentiu a mordida do mármore em sua carne. O vento soprava com mais força. A névoa parecia estar subindo mais rapidamente. Longos farrapos se moviam entre as altas e brancas colunas.

—Deus a proteja em sua viagem. - Disse Hildegard enquanto traçava uma cruz no ar com os dedos.

Depois desapareceu.

Regeane se encontrou com a mulher fora do tempo. Velhice e juventude se passavam em seu rosto, como a mudança de estações na mente de Deus.

—É uma criatura do tempo? — Perguntou Regeane ficando em pé.

—Sou o que o tempo é à eternidade. Cada coisa contém as sementes de sua destruição. Seu fracasso é compensado sempre no momento do renascer.

—Não posso entendê-la.

—Não. E como a mortal que é, nunca poderá. Está pronta para a viagem?

Regeane estendeu os braços, quase desesperada.

—Estou-o. Pode me dizer se voltarei?

Soou um breve riso entre as sombras que se reuniam atrás de Regeane, entre os esfarrapados fantasmas. Era como o chiado dos morcegos. Mas o rosto da coisa ante Regeane não mudou, salvo para envelhecer e rejuvenescer novamente.

—Alguns voltam. – Ela disse. – Outros não. E a alguns não importa, tanto é sua dor. Viaje ou não conosco. É-nos indiferente.

Regeane sentiu um momento de vacilação. Mesmo a loba mostrou medo ao procurar em Regeane, o amparo de sua forma lupina. Por um momento Regeane se perdeu nas lembranças da loba. Viu destruição quando um incêndio provocado por um raio percorreu uma planície, matando tudo o que não pôde fugir, uma avalanche movendo-se como uma nuvem montanha abaixo, arrastando cadáveres de homens e feras e depositando-os, irmãos na morte, em um vale. A terra tremia, com abismos que se abriam sob seus pés e fogo que brotava do alto de uma montanha. Uma cinza abrasadora e assassina chovia por toda parte.

Havia tantas formas de morrer... O universo era morte e a morte o governava. Toda a vida tomava mil caminhos para a destruição. Mas a vida continuava, faiscando, iluminando, ardendo como uma vela em uma tumba. Uma estrela cintilando à beira do horizonte e o crepúsculo, voltando sempre. Como às rosas de Cecília, para sempre.

Regeane nunca havia se sentido mais mulher ou mais loba.

A loba trotou degraus acima, para os risinhos incessantes dos fantasmas, e atravessou a porta.

Quando Regeane era menina, anos antes, alcançou sua feminilidade e encontrou à loba em seu interior. Havia vivido na propriedade de seu padrasto. Mesmo então havia sido uma menina solitária. Sua mãe, ainda bela, pendurava-se sempre no braço de seu padrasto, Firminius. Aquele valentão corpulento e com ambições sociais vestia sua frágil mãe como um adorno.

Regeane estava sozinha com freqüência. Pela tarde, antes que alguma das donzelas de sua mãe a levasse para a cama, ela aparecia pela estreita janela de sua câmara para ver o ocaso. A última luz do dia se desvanecia em um resplendor pelo caminho de sua vila. Regeane sonhava seguindo aquele caminho até o fulgor dourado. Pois entendia como mulher que uma criança não olha o reino da possibilidade absoluta com medo, desejo, amor ou aborrecimento, mas simplesmente com limpa aceitação.

A criança espera o momento de se internar nesse estranho reino que ainda não compreende de todo. E assim foi como Regeane empreendeu sua selvagem viagem, lançando-se como uma flecha para um resplendor de luz dourada.

Ali estava mulher, nascimento, nua, em um templo de escuridão. Os pilares do salão se elevavam até o céu. Do alto de cada um deles, uma garganta despendia baforadas de chamas e fumaça negra. A fumaça era uma camada tão negra que borrava as estrelas. O solo a era de cristal negro e refletia o sangrento resplendor das chamas que rugiam nos pilares.

—Bem-vinda, - disse uma voz, - à terra arruinada.

Regeane soube que estava em meio a uma corte e que os súditos daquele governante eram horrores. Eram claramente visíveis à luz dos terríveis fogos que ardiam no alto, percorrendo o longo corredor entre os pilares de chamas. O corredor levava a um trono, no qual se sentava a mulher com face de caveira que a tinha recebido na primeira vez que entrou no templo. Mas dessa vez a visão era pior. Então, Herófila havia se envolvido em um manto que o cobria tudo, menos a face de marfim. Agora estava vestida com uma gaze que cobria um voluptuoso corpo de mulher. Os seios tinham mamilos escuros que se marcavam contra o tecido. A carne terminava no pescoço e um crânio nu e enegrecido oscilava sobre a coluna de ossos. Uma serpente envolvia seu corpo, com os anéis ao redor de seu peito e da cintura, a cauda no pescoço e a cabeça profundamente colocada entre suas virilhas.

A voz ressoou novamente na mente de Regeane. Eu, rainha dos Mortos, dou-te as boas-vindas. Pois sabe, Mulher Loba, que o caminho para o paraíso passa pelas portas do inferno.

O séquito ao seu redor não era menos terrível. Alguns pareciam estar mortos, pois nada vivo podia ter aquele aspecto. Horrores sem olhos enegrecidos pelas chamas. Farrapos de carne desprendendo de brilhantes ossos vermelhos. Pareciam cadáveres sendo limpos pelos abutres.

Outros brilhavam com a maligna luz azul da putrefação. Estavam inchados pela podridão, molhados pelos sucos da decomposição. Mas todos se moviam com uma horrível vida. Rindo, uivando, chorando, rodeavam o trono da rainha. Fora do templo, Regeane podia ver por entre as colunas, uma desolação cheia de crateras. Ao longe brilhavam nogueiras na escuridão.

Regeane se deu conta de que podia reconhecer alguns deles. Os que tinham vivido na casa com Antonius. Drusis, cego e sem pernas, com as vísceras caindo da abertura de seu ventre. Sirus, um de seus assassinos, aquele que ela havia matado pouco a pouco, com a face negra e os olhos saltados, aproximou-se repulsivamente dela, com os braços estendidos. A moça, Cresta, açoitada até a morte, arrastou-se em sua direção, deixando um rastro de limo sangrento.

Um pesadelo. Tem que ser um pesadelo. A mente de Regeane gritou e soluçou.

—Não há nada, - seguiu dizendo a voz como um trovão, atrás do trono de pedra negra, nada entre você e o que teme.

Em alguns momentos, a turfa de horrores estaria sobre ela. Suas mãos podres pegariam sua carne nua. Regeane abriu a boca e tentou mudar, mas a loba lhe falhou. Não iria em ajuda de Regeane. Ela estava sozinha.

Regeane pôde sentir seu corpo caindo lentamente, enquanto caía de joelhos. Em sonhos, não se cai. Mas seus sentidos estavam alerta. Suas mãos pareciam mover-se como tentáculos através de um líquido espesso enquanto procuravam seus próprios olhos, não para cobri-los, mas para tirá-lo de suas conchas. Seus joelhos tocaram o chão e a fria pedra enviou uma onda de dor através de sua carne nua.

A eternidade. A mente de Regeane tropeçou e sondou o conceito. Pareceu-lhe ver um cacho sem fim que a encerrava em um terror demente, enquanto os mortos se esforçavam para chegar a ela, em uma loucura que começaria uma e outra vez repetindo sem cessar. Um pesadelo do qual ninguém poderia fugir. Ela permaneceria ali, perdida em uma angústia perpétua e perseguida em vão pelos mortos.

Então Regeane sentiu a loba e compreendeu que ela não se fora. A fera estava sempre com ela e quando olhou à turfa demoníaca através de seus olhos, o coração da mulher esteve a ponto de arrebentar, não de medo, mas de compaixão.

Ela era mais que loba e mulher, era uma mulher loba. Nem uma nem outra, mas um ser que encarnava ambas as criaturas de uma vez, incomensuráveis. Mais poderosa que qualquer das duas, gigantesca.

A loba, como ela havia dito a Antonius, não via a fealdade nem a beleza da forma em que o fazia a mulher. Via só à humanidade presa nos grilhões do tempo.

O tempo faz com que os mortos se convertam em pó, o tempo mutila. O tempo mata. O tempo corrompe. Nas portas da eternidade os mortos seguem levando as cicatrizes de sua viagem não só através do tempo, mas também os ferimentos que, em nossa vangloria, infligimo-nos uns nos outros.

Então a visão de crueldade desvaneceu e a multidão ao seu redor se tornou mais e mais alta. Regeane notou que estavam se tornando transparentes e ao fazê-lo, pareciam mais tristes e mais inofensivos. Depois desapareceram como um farrapo de fumaça capturada pelo vento. Só deixaram o rugido e o aroma das fogueiras que ardiam no alto dos pilares e o incessante gemido do vento que soprava como o fôlego de uma terrível maldição. Todos haviam desaparecido, salvo o fantasma sem olhos da moça que tinha sido açoitada até a morte. A moça que havia amaldiçoado Regeane por ser jovem e bonita. A moça Regeane havia vingado. Cresta.

Já não era um horror. Regeane a viu como quando era jovem; em sua adolescência, quando começava sua vida. Ela estava vestida de branco, com uma grinalda de flores no cabelo. E carregava uma espada na mão.

Herófila ainda estava em sua cadeira e também havia sofrido uma mudança. Já não era a obscenidade de luxúria e morte com que toparam os olhos de Regeane momentos atrás, mas a sacerdotisa de túnica branca e coroa de louro que estava na entrada dos dois mundos. Ela elevou uma mão e chamou o Regeane:

—Se aproxime de meu trono, moça, pois você realmente viu. Olhaste as mortos, não com o olho do medo, mas com o da verdade e escapaste assim do primeiro perigo de seu atual estado.

Regeane percorreu o longo corredor entre as colunas negras, para o trono. A pedra estava gelada sob seus pés e a areia levada pelo vento do deserto mais à frente do templo martirizava sua carne nua. O espectro de Cresta, com a espada na mão, a seguia.

O vento uivou mais forte e redemoinhos de areia gemeram nos extremos do templo, açoitando o solo. Os olhos de Regeane lacrimejaram e ela levantou a mão para limpá-los.

—Não chore, - sussurrou Cresta, - pelos dores da infeliz carne humana, pois irrompeu aqui onde nenhuma carne viva tem que entrar.

Regeane se deteve ante o trono e olhou para cima. Podia ver a face da mulher. Não era velha, mas tampouco jovem; carecia de idade.

—O que quer?

—Peço cura para Antonius. - Disse Regeane.

—Então, - respondeu Herófila, - você deve procurar alguém que possa curá-lo.

Ela olhou corredor abaixo, além das altas colunas que pareciam árvores letais com folhas de chamas, para o longínquo deserto. O vento seco e quente soprou novamente e Regeane ouviu o queixoso lamento, o mesmo lamento que a despertara a noite, no convento. Um soluço de dor tão profundo, tão amargo, que parecia além da esperança ou mesmo do amor. Um som desolado e solitário, o pranto de alguém condenado a vagar para sempre sem consolo e nem descanso.

—Quem vai lhe guiar está chamando.

Regeane olhou a seu redor. Seus olhos só encontraram uma desolada extensão de pedra e areia, iluminada pelos fogos do templo.

—Não vejo ninguém.

—Ela está ali, - disse Cresta, - te aguardando. Dê-lhe o espelho e tenha esperança. — Ela estendeu a espada para Regeane.

Regeane se voltou e a fitou nos olhos. Antes tinha visto só um espectro sombrio, embora belo. Agora, Cresta parecia uma mulher real, de cabelo castanho avermelhado, olhos cor avelã e semblante pálido, leitoso. Sorriu para Regeane, quase travessamente por um momento e logo sua face se serenou e depois endureceu.

—O que devo fazer não é fácil para mim, - disse o fantasma. - Tenho que tomar seu sangue para que o espírito possa beber e converter-se em uma de nós e para que seu sangue marque o caminho de volta. Viajará como loba para o jardim e cada vez que sua garra tocar a terra, o sangue será uma oferenda. Mas antes de fazê-lo, quero que haja paz entre nós. A primeira vez que nos encontramos, odiei-a. Sua beleza me recordava tudo o que tinha sido e nunca poderia ser novamente. Você perdoará meu rancor? Quando morri, meu atormentado espírito flutuou nas imediações, pensando que todo o mundo era crueldade e dor e que como tinha sido a vida, assim deveria ser a eternidade. Mas chegou você.

—Vinguei-a. - Disse Regeane.

—Não. Fez-me justiça.

Justiça? Perguntou-se Regeane enquanto elevava a mão para a espada de Cresta, recordando a sangrenta refrega em que tinha matado os guardas. Perguntou se inclusive, se os mortos se enganavam às vezes. Tinha sido justiça? Talvez sim. Certamente, ela não havia mostrado misericórdia.

Herófila respondeu seu pensamento, inclinando-se para diante e apoiando o queixo em sua mão.

—Nós também temos nossos debates e nossas divisões, mesmo aqui. A pobre alma que clama por ti, busca a salvação, vá como sua salvadora. Pois nossos pecados nem sempre nos encontram, Regeane. Às vezes, convertemo-nos no pecado que cometemos e esse é seu castigo. Sua vontade não pode esquecer o modelo de uma vida terrestre humana. Você é como eu disse, sua salvação. Dê no que dê.

—Farei. - Disse Regeane, e estendeu a mão.

A espada mordeu profundamente, fazendo um corte através de sua mão. O sangue começou a gotejar de seus dedos. Uma sombra revoou na luz vermelha que rodeava as três mulheres e começou a sorver. Um instante depois, alguém de mãos ósseas segurou sua mão.

Regeane se negou a retroceder e manteve a mão firme enquanto a coisa se transformava em carne ante seus olhos. Primeiro foi o esqueleto; depois a carne foi vestindo vagarosamente o osso... A pálida e cerúlea carne de um cadáver. A face era um horror fundo, de lábios murchos e retraídos e os olhos, buracos sem pálpebras. Mas enquanto bebia, a coisa assumiu aspecto de vida. A carne pálida adquiriu cor, como se estivesse viva. Os lábios voltaram para seu lugar, os olhos brilharam nas conchas negras e foram cobertos com suaves pálpebras de veias azuis e uma mulher ficou de joelhos ali, completa e adorável como tinha sido em vida. Soltou a mão de Regeane. Estava maquiada, adornada com jóias e vestida de seda. Tão formosa como devia estar quando Lucila a vestiu para sua viagem à tumba. Ela ficou em pé e girou alegremente, olhando em seu espelho. — Sou eu novamente.

Herófila, sentada em seu trono, suspirou profundamente.

—Venha, Adrastea. – Ela disse. - É o que desejaste tanto tempo?

—Sim. - Sussurrou Adrastea, ao parecer incapaz de separar os olhos do espelho em suas mãos. - Minha beleza voltou. Agora eu a tenho para toda a eternidade.

Regeane fechou sua mão ferida e a levou a peito. Ondas de dor corriam por seu braço, levando-a a beira da consciência.

—Me diga, Adrastea. – Ela sussurrou através dos lábios ressecados. - Como posso salvar Antonius?

—Encontra o jardim de Labirinto. – Ela disse quase ausente. Seu olhar estava cravado no espelho. – Atravesse o deserto até que chegue a um rio de fogo. Muitos fantasmas vagam ao longo de suas margens, incapazes de cruzá-lo. Alguns não a verão e outros sequer prestarão atenção em ti embora o façam. Mas deve procurar até que encontre alguém um disposto a te levar do outro lado, mas tome cuidado. Se trocar uma palavra com essa turfa errante ou responder quando lhe falarem, estará condenada a vagar para sempre entre eles. Além do rio está o jardim de Labirinto.

—Antonius a viu como foi, não é? — Perguntou Regeane. - Refiro a quando a pintou com o espelho na mão. Ele não era mais que outro espelho para você.

Pela primeira vez, o olhar de Adrastea se separou do espelho e olhou malévola para Regeane.

—Isso é tudo o que significa o amor para você, não é certo? — Insistiu Regeane. - Ver seu encanto refletido no prazer do outro. Por isso o tomou como amante e como vítima.

—Coisa antinatural. – Gritou Adrastea. – Você não é nem fera e nem humana... Quem é para me condenar, você, destinada a não conhecer o amor a menos que leve a morte? — Ela retrocedeu com o espelho na mão e sorriu, cantarolando brandamente para si em tom de consolo. - Tenho minha beleza. É tudo o que peço e se duvidar, sempre posso me olhar no espelho e ver-me nele.

Ela começou a desvanecer lentamente; mas enquanto desaparecia, Regeane viu que seu corpo começava a cair novamente na ruína da tumba. Mas seu reflexo no espelho permanecia inalterado, um rosto jovem e belo para sempre. Então, da eterna corrente de ar que soprava no deserto, um zéfiro a tomou, levando-a como uma folha ao vento, para os imensos limites da eternidade.

—Ela está no inferno e não sabe. -Disse Regeane a Herófila e Cresta.

—Não poderia dizer. - Respondeu Herófila. – Talvez com o tempo chegue a se conhecer melhor.

—Mas aqui não existe o tempo.

—Certo. Não há tempo, mas muitos mistérios. Então existe esperança de que algum dia ela seja capaz de esquecer seu amor por si mesma e substituí-lo por compaixão e arrependimento. Mas isso seria doloroso e ela prefere permanecer como está. Aprenda Regeane, que o preço do paraíso é a dor. Agora, se você quiser, vá procurar a cura de Antonius.

Quando Herófila deixou de falar, também pareceu deixar de ser. E desapareceu levando Cresta com ela. Regeane se encontrou sozinha. Só ouvia o incessante gemido do vento e o rugido das chamas no alto das colunas.

Toda compulsão que tivesse mantido sua forma de mulher desapareceu também e Regeane se viu novamente como loba. Começou a atravessar o que Herófila havia chamado de terra em ruínas. Cada vez que sua garra dianteira tocava a terra, a dor era como um ferro em brasa, em seu sensível almofada entre as unhas, mas a loba, controlada pela vontade da mulher, seguiu adiante.

A terra em ruínas era pedra e areia e o céu, uma escura mortalha sem estrelas. Regeane encontrou seu caminho pela luz das cidades em chamas. Quando se aproximava de alguma, via que estava habitada, cheia da crueldade insensata e a cega tragédia que afligiam o homem desde o começo dos tempos.

Nas ruas iluminadas pelo fogo que devorava os telhados e saía pelas janelas e portas de moradas agonizantes, as mulheres choravam sobre seus maridos caídos e os homens clamavam contra o céu enquanto contemplavam suas mães e filhas ultrajadas e assassinadas.

Em algum lugar, os canais de deságüe estavam vermelhos de sangue dos assassinados. Os vencedores alvoroçavam ebriamente entre a matança, mesmo enquanto sucumbiam à enfermidade e se lançavam contra suas próprias espadas para fugir da dor da água fugindo de seus intestinos e as bolhas em suas axilas e virilhas, que os enlouqueciam. Outros sofriam tortura, esfolados, marcados com ferros, cegados e queimados, retorcendo-se em agonia e que se voltava contra seus verdugos e lhes aplicavam o mesmo trato.

Todas essas visões atormentaram a loba enquanto ela e obrigava a seguir adiante. Seu sofrimento consistia em perguntar se estava vendo verdadeiros espíritos encerrados em uma incessante repetição de crueldade, dor e desespero. O escasso consolo que podia encontrar estava em acreditar que eram somente sombras do que haviam sido e que em algum lugar, as almas de quem tinha sofrido tanta agonia estavam livres.

A última cidade era só um monte de escombros cheio de cadáveres inchados, sendo devorados por cães e moscas. Ante ela viu um bosque, atravessado por um rio de fogo.

A loba empreendeu um doloroso meio galope, seu coração desejando as árvores e o frescor sob os espessos galhos. A cinza era uma tortura quase tão intensa como sua pata ferida. Talvez pudesse encontrar água limpa para beber no bosque e cheirar outra coisa que não fosse pó e carne queimada.

Mas quando chegou mais perto do bosque notou que também era uma ruína. As árvores carbonizadas elevavam-se em uma trama de galhos nus contra o sombrio céu. Um céu que refletia a luz sangrenta das cidades em chamas. Em alguns momentos, ela esteve entre a esquelética margem. Sentiu os galhos mortos quebrando-se contra seu corpo, enquanto passava. Eram quebradiços. Estavam podres.

Correu costa abaixo, para o rio de fogo. Muitas árvores haviam caído, formando sinistros enredos de galhos e arbustos espinhosos, armadilhas mortais para seus pés cansados.

A única água que encontrou fedia a mofo e seu sabor estava manchado pela madeira podre. A casca em tiras, dos troncos de árvores pareciam à carne desprendida dos ossos de um cadáver. O bosque não era nenhum santuário. Ela seguiu descendo para o rio, cujas chamas brilhavam através das árvores.

Na borda rochosa, Regeane encontrou os fantasmas que Adrastea havia falado. Ela pode ver alguns deles, mas mesmo a loba afastou o olhar. Alguns caminhavam sem ver, movendo os lábios em comunhão silenciosa consigo mesmos. Outros choravam ou gemiam, com o queixo crispado, cuspindo bílis e a fúria de uma vida na escuridão vazia. Outros não eram mais que vozes tristes e solitárias flutuando ao vento. Suas palavras eram uma tortura para os ouvidos de Regeane e pareciam lhe pedir que falasse com eles, embora só para lhes oferecer o pouco consolo que pudesse.

Clamavam a dilaceradora tragédia do ser humano. E Regeane, com sua alma encerrada no corpo da loba, chorou silenciosamente o que sua forma lupina não podia chorar, com eles.

—Morri em minha cama de criança. - Gemia uma. - A dor... Oh, a dor...

—Eu fui capturado e tomado como escravo. - Chorava angustiada a voz de um homem. - Não podia viver sem liberdade e morri sob tortura depois de minha terceira fuga.

—Eu morri de fome. - Se lamentava uma voz infantil. - Minha mãe me deixou morrer quando meu pai a abandonou.

Não, pensou a loba. Não. E apesar da ferida em sua pata, ela começou a correr ao longo das rochas, afastando-se daquele caldeirão de dor humana. As chamas brotavam da água, chamuscando seu flanco.

As vozes a seguiram como um enxame de fúrias, levando sua miséria a seus ouvidos.

—Eu adorava meus filhos... — Choramingou uma voz. - Mas eles me envenenaram por meu ouro.

—Eu fui estrangulada. – Gemeu outra. - Meu marido me acusou de adultério. Eu era inocente, mas ele me estrangulou porque queria outra mais rica que eu.

Não. Pensou a loba, tentando voltar para a pobre proteção das árvores mortas. Um espesso matagal espinhoso fez com que ela retrocedesse.

Subitamente, ela se tornou uma mulher novamente. As pedras quentes perto do rio queimavam seus pés. Havia um bendito silêncio.

A figura de um homem estava em pé ante ela. Era uma sombra perfilada pelas chamas. Estranhamente, era a única entre todas as que vagavam por ali, que parecia vê-la.

—Sou Wolfstan, a pedra do lobo. – Ele disse.

Pai. Quis dizer Regeane, mas não o fez. Não se atreveu a deixar que as palavras passassem de seus lábios.

—Silêncio. - Disse ele. - Permaneça calada como te advertiu Adrastea. Só um de nós pode ser ouvido aqui.

Ele se voltou ligeiramente. O fogo o iluminou e Regeane pôde ver a larga ferida provocada pelo dardo que deixou fugir a vida de seu peito.

—Quantos ocasos e amanheceres houve Regeane, desde que saltava no ventre de sua mãe? Segui-a desde a primeira vez que abriu os olhos. Recordei-a e a quis. Esperei-te aqui.

Regeane era agora uma mulher e podia chorar. Caminhou para seu pai, com as lágrimas correndo por sua face.

—Una as mãos, — disse ele, — para que possa beber e sentir minha mortalidade novamente.

Regeane juntou as mãos. Os lábios de seu pai tocaram suas mãos ensangüentadas e se solidificou ante ela como um homem.

Seu primeiro ato foi tirar o manto e envolvê-la nele, para cobrir sua nudez. A advertência de Adrastea foi esquecida, de palavras afogaram a garganta de Regeane. Sua solidão era uma amarga dor que lhe impunha silêncio.

—Cale-se e não se mova. - Disse Wolfstan, colocando um dedo sobre seus lábios. - Não fale. Segui-a todos os dias de sua vida. Não só entre a alvorada e o crepúsculo, mas também durante as horas da noite, quando as estrelas se movem em silencio sobre o mundo. Através dos dias em que o sol ardia sobre suas costas e os campos reluziam dourados. Ouvia sua voz no vento do verão e nas solitárias noites de inverno, quando as grandes árvores rangiam pelo frio e a neve cobria a terra em silêncio. Soube de seus sonhos e medos. Li contigo às palavras dos livros, e lutei a seu lado em sua solidão e dor. Filha. Minha querida filha. Nunca estiveste sozinha. Eu via através de seus olhos na primavera, quando os novos brotos eram um resplendor verde nas árvores e prados e no outono, quando as folhas brilhantes eram um alegre coro de cor contra a terra parda. Segui-te e a amei todos os dias de sua vida. E esperei, caminhando aqui, negando minha própria paz para que pudesse saber.

Regeane sentiu que os braços de seu pai a elevavam. Ele levou-a as chamas que rugiam no rio ardente. Ela podia sentir o calor subindo a seu redor, sufocante, furioso, maligno, quase uma coisa vivente que estendia tentáculos de fogo para arrebatá-la dos braços de seu pai. Então chegaram do outro lado, em um prado iluminado pela nova luz de um sol nascente.

Wolfstan a deixou sobre a vegetação e segurando sua face entre as mãos, a fitou. Ele era um homem grande com um espesso cabelo loiro. Regeane se perguntou se sua face era tão comum. Tinha um rosto amável, forte e masculino, com um nariz marcado por mais de um combate e cicatrizes das batalhas que havia lutado.

—Sua mãe nunca entendeu minha dupla natureza. Odiava-a e a temia. Deus a perdoe! Para sua mãe, o todo-poderoso tinha a face de Gundabald. Mas aqui na ribeira, nesta brecha entre o engano e a eternidade, alguém deve deixar não só os pesares do pó, mas também suas injustiças, antes procurar a luz eterna. Então aqui deixo meu amor traído, minha perda e minha amarga dor.

Regeane tentou falar e sentiu novamente o dedo de Wolfstan em seus lábios.

—Cale-se. Vi suas lágrimas e elas serão estrelas que iluminarão meu caminho em todas as minhas viagens... Para sempre.

Então ele desapareceu e um gigantesco lobo cinza se elevou em seu lugar. O lobo se voltou e correu para a beira do prado, onde começava o bosque. Voltou-se uma vez para olhar novamente Regeane e desapareceu. Seu eterno amor passou sobre ela como uma onda.

Regeane ficou em silêncio junto ao bosque, cheirando o puro ar da manhã.

Estremeceu, cheia de pesar e alegria durante um longo momento. O manto de Wolfstan era de uma malha áspera e grossa, realçado por uma estreita franja de brocado de ouro. Poderia ter sido parte do traje de caça de um rei. Ela envolveu com ele e empreendeu a marcha sem olhar atrás.

A vegetação era macia e fresca sob seus pés e estava ligeiramente úmida pelo rocio da manhã. No alto da colina, a alvorada resplandecia entre as nuvens. Sangrava-lhe a mão. O sangue brilhava em gotas de cor rubi sobre a vegetação verde.

Seguindo o caminho que havia seguido o lobo, ela chegou ao bosque. A luz era cinzenta. O macio musgo na casca das árvores brilhava com um escuro tom esmeralda. Nenhum pássaro cantava na quietude da manhã.

O solo a estava coberto de samambaias. Às escuras folhas se dobravam sob suas suaves pisadas e voltavam a se elevar, sem deixar rastro de seu passo. A franja de bosque era estreita e Regeane deixou as árvores ao chegar ao alto de uma colina. Havia um jardim resguardado entre as colinas, como uma criança embalada no peito sua mãe. Ela compreendeu que por fim havia alcançado a sua meta.

Deteve um momento e olhou ao longe. O sol estava sobre a linha do horizonte, e algo ainda mais luminoso brilhava sob seus primeiros raios. Era uma formosa cidade branca que captava toda a luz? Ela não sabia e não podia estar segura porque o amanhecer era muito luminoso para seus olhos.

Começou a descer para o jardim. Quase gritou de dor quando chegou à margem. Estava rodeada de sarças e flores brancas de quatro pétalas disseminadas sobre duros e espinhosos caules negros.

Ela se deteve novamente. Estava muito cansada... Sua mão pulsava com uma dor fria e surda. Não sabia se teria forças para suportar mais sofrimento, mas alongou a mão ferida para os rígidos caules verde escuro, que se afastaram facilmente a seu contato.

Ela encontrou-se em um caminho lajeado que levava a uma fonte. O caminho estava rodeado de flores, que brotavam por toda parte, tumultuosamente indiferentes à estação. Regeane conhecia os nomes de algumas delas, linhas e linhas de aveludada lavanda púrpura, sálvia, trevo branco, amarelo e vermelho perfilavam o caminho como uma fronteira.

Atrás das plantas mais baixas estava à alta dedaleira e abundantes açucenas. Açucenas, como não havia visto nunca. Brancas com franjas lavanda e com as cabeças inclinadas pelo peso do rocio. Atrás, outras plantas mais altas elevavam crespas pétalas retorcidas, de cores laranja e vermelha como se aguardassem o sol, ofegantes.

Atrás, entre os altos ciprestes estavam às rosas. Singelas, duplas, vermelhas, rosas e brancas, e sobre suas pétalas, pulverizadas como as estrelas no céu noturno, as gotas de rocio captavam a luz do sol, convertendo-a em um arco íris diminuto.

Eu estive aqui antes. Pensou Regeane. Caminhei por aqui nos sonhos quando durmo mais profundamente. Sonhos dos quais recordo pela metade. Caminhei por aqui e meu coração atormentado desejou este lugar, sua leveza curadora e sua paz. Eu o encontrarei perto da fonte.

E assim aconteceu.

Seu cabelo era branco e sua curta barba era de cor cinza, mas seu rosto tinha a mesma beleza sem idade de Herófila. Ela deve ter feito algum ruído ao aproximar ou ele captou seu pensamento, porque elevou os olhos do livro que estava lendo e estudou sua face.

—É o Labirinto?

—Sim, sou o Labirinto. O que quer de mim, uma criatura tão bela como você?

—Procuro, - disse ela, - a cura para um homem. Está ao seu alcance?

—Embora eu seja uma das criaturas mais inferiores por aqui, sim. Está.

Regeane se perguntou quem seria então a maior das criaturas daquele lugar, mas não disse nada. Conformou-se, sentando sobre um dos bancos de pedra e olhando os jogos da água à luz do sol. Estava tão sedenta, como havia estado enquanto procurava o rio.

—Posso beber?

—Sim. - Disse Labirinto. - Mas não coloque sua mão ferida na água, pois é a água da vida e o ferimento é o único que te prende a terra. Se curá-lo não poderá voltar.

—Não estou segura de que queira voltar.

Labirinto sorriu.

—Noto que é uma criatura muito jovem e que sua vida foi dura, mas não tema. As coisas podem melhorar logo. Se ficar aqui, nada mudará nunca para ti, nem para o bem e nem para mau. Eu era velho quando vim para cá. A casca ressecada de um homem. Tinha razões para acreditar que havia experimentado tudo o que a vida podia me oferecer. Minha visão era imprecisa e eu mal podia ouvir o ruído de um trovão. Meu espírito estava tão seco e murcho como o resto. Já era inútil para o mundo e o mundo para mim. Fazia tempo que tinha esquecido minha juventude e seus esforços. O aborrecimento tinha feito presa em meu espírito. Eu tinha apurado a taça da vida até os sedimentos e só queria descansar aqui ao sol.

Regeane se ajoelhou junto à fonte e começou a beber. Ao fazê-lo, notou como a fadiga a abandonava. Uma sensação de calada vitória entrou em seu coração ao compreender que havia ganhado. Antonius seria como antes e a poesia de seus dedos, a magia que seus ágeis pincéis podiam criar em uma parede, se renovaria para a maior beleza do mundo. Ela não tinha gasto seu sangue, sua dor, para nada.

—Onde está o homem a quem desejas que cure? — Perguntou Labirinto afastando seu livro.

—Em Cumas.

—Ah, Cumas. Eu vivi ali muito tempo e amei a sacerdotisa. Lembro-me de Acrópoles, o santuário no alto de sua rocha, junto ao mar escuro como o vinho.      Ainda de joelhos junto à fonte, Regeane o olhou com tristeza.

—Agora está em ruínas.

Labirinto franziu o cenho.

—Ícaro me disse.

—Ícaro?

—Sim, meu filho. Diga-me, o que dizem os homens dele?

—Que... — A língua de Regeane vacilou ante a estranheza de falar com uma lenda sobre uma lenda, mas continuou. - Que voou muito alto e o sol fundiu a cera de suas asas, fazendo com que caísse ao mar.

Labirinto riu.

—Que tolice. Havia asas, mas não cera. Não. Ícaro gostava de provar os limites de tudo. Eu sulquei o ar como os navios percorrem o amplo seio do mar com uma vela. Ícaro pôs a prova os limites de minha destreza e encontrou a morte nas rochas. Mas aquilo foi só em uma de suas vidas. Após, ele teve muitas.

—Enquanto você permanecia aqui?

—Sim. Verá querida, que a alguns homens basta uma vida, enquanto que para outros, mil não seriam suficientes. Ícaro é um deles. Ele vem e me traz notícias do mundo que eu deixei para trás há tanto tempo. Um mundo, eu poderia adicionar, que me assombra. Embora não me aprove abandonar meu jardim freqüentemente, raramente me encontro com uma criatura como você. Ninguém havia entrado nunca em meu santuário.

—Vê-me como sou? — Perguntou Regeane vacilante.

—Sim. Vejo a mulher elegante, toda delicadeza e intelecto, e também sua ágil companheira da noite, que se deleita na liberdade da luz da lua. Quando estava vivo, via sua espécie como a matéria dos sonhos e ilusões. Mas ao vir aqui conheci alguns vagabundos no bosque, filhos da beleza mais íntima da vida, e compreendi. Os homens vêm o mundo através das raias da razão. Não existiu jamais pior tirano que a razão. Pois os cegos por ela não podem procurar o que há na extremidade de seus olhos, visto só pela metade.

—Os homens razoáveis, - disse Regeane, - me atariam a um poste e me queimariam.

—Certo. Como poderiam tolerar tal poder em uma mulher? Soa a uma bruxa.

—É tão terrível ser uma bruxa?

—Não. —Labirinto sorriu. - Pois a terra é uma mulher suave e bela e a bruxa é sua voz. — Ele olhou ao longe, com olhos que já não viam Regeane. – Me lembro de minha juventude há muitos anos. Nasci em Giz, essa bela ilha lápis-lazúli. Ah, era a alvorada da terra então e nós fomos os primeiros em degustar suas frutas dadivosas. Cultivamos as uvas selvagens nascidas nas ladeiras das montanhas; pequenos e suaves globos purpúreos, formosos e redondos como os lábios de uma mulher. Nossos campos estavam dourados com o trigo e se inclinavam ante a brisa do mar. Apesar do tempo que estou morto, ainda posso saborear as suaves e brancas fatias de pão e cheirar o aroma do vinho que bebíamos com elas. A azeitona, cinza rainha mãe das árvores, emprestava-nos seu fragrante azeite para acariciar nossos paladares, quando nos dávamos um festim de perdizes ou pombas, ou compartilhávamos camarões-rosa e pescado, sempre presente riqueza do mar. Os dias foram passando, tecidos como os fios de uma tapeçaria ou como as notas de uma maravilhosa melodia, dessas que tocam os pastores quando cochilam entre suas ovelhas em uma tarde de verão. Não posso distinguir alguns dias dos outros porque era todo deleite. Construí o salão de dança de Ariadna, para que pudéssemos dar graças a terra, anciã e benévola mãe do homem, por todos os seus presentes. Naquela época, Regeane, nós não pensávamos em violações e nem em conquistas. Sabíamos cortejar a terra e fomos com tanta suavidade a ela como um amante a uma virgem. Obtivemos dela infinito prazer e plenitude. E a bruxa era uma sacerdotisa que fiava abundante e alegre, a medida da vida, sobre sua pista de dança.

Regeane apoiou a cabeça sobre o pórfiro da fonte e fechou os olhos.

—O que aconteceu?

Labirinto riu torvamente.

—Um sonho de poder, moça. Os egípcios vieram a nossa ilha. Cobiçavam nosso vinho e nosso azeite. Antes que chegassem, Minos era só um homem que às vezes era possuído por um deus. Eles lhe ensinaram a acreditar que era de fato um deus, e que como tal, podia tomar o que quisesse. O precioso azeite e o vinho ficaram armazenados em seu palácio. As perdizes e pombas foram parar em sua mesa e só restou o esplendor de sua casa ao longe, para encher os corações e estômagos de seu povo. Suas mãos abrangiam mais e mais... E eu, que havia construído coisas maravilhosas para ele, não pude continuar suportando-o. Quando falei contra ele, manteve-me cativo em uma vila sobre um alto escarpado da qual escapei sulcando o vento. Não vivi para presenciar o fim de Minos, mas meu filho diz que chegou em uma nuvem de fogo.

—E a bruxa?

—Os homens a odeiam e a amaldiçoam, — disse Labirinto, — porque é a encarnação de sua vergonha. Ela lhes recorda sua formosa senhora, a terra. Esqueceram como amá-la e agora temem suas tempestades e suas correntes. Sua crueldade invernal, seu calor de verão e seu pó. Suas horas apaixonadas, quando sua crista se agita e brota fogo dos topos das montanhas. Dizem que esta é sua face, pretendendo não saber que é só uma delas, esquecendo-se as horas em que ela lhes sorri neles e estende seus braços afetuosos. Esquecem que quando vêem sua escuridão e crueldade, vêem somente seu próprio reflexo em seus olhos. Havendo-a condenado, sentem livres para espoliá-la e saqueá-la, como a uma bruxa.

Regeane ficou em pé, ainda envolta no manto de seu pai. Jogou a cabeça atrás e inspirou profundamente o ar da manhã.

—Entendo por que te encontrei no jardim.

Labirinto meneou a cabeça.

—Eu não fiz o jardim. Foi um presente de amor.

Regeane olhou a mão que ainda sangrava. As gotas vermelhas manchavam as lajes a seus pés.

—Devemos ir. – Ela disse. - Acredito que não tenho muito tempo. Ainda estou sangrando.

Labirinto alongou uma mão para o ferimento. Regeane olhou o jardim, querendo vê-lo novamente à luz da manhã e beber de sua beleza: as flores, manchas de cor contra o ouro verde da vegetação; a grama, faiscando tão brilhantemente à luz do sol, que ela não poderia dizer onde acabava o verde e começava o ouro; as rosas, cujo aroma estava começando a encher o ar; e os altos ciprestes recortando-se contra a bola laranja de luz no horizonte.

—Quero recordá-lo. Recordar tudo.

—Para poder encontrá-lo novamente algum dia? — Perguntou Labirinto.

—Sim. - Respondeu Regeane. - Para poder encontrá-lo novamente algum dia.

Então ele pegou sua mão. Regeane sentiu um tremendo puxão, dor. Não sabia nada de dar a luz, mas aquilo era similar a como ela imaginava que devia ser. Um segundo depois estavam juntos na rocha de Cumas, ante o fogo sagrado. A névoa acabara-se, as estrelas eram uma cascata de luz sobre ela e o vento agitava o manto de seu pai. O jardim era somente uma lembrança.

Antonius jazia a seus pés, com seu corpo nu estendido sobre o fogo frio. Parecia morto. Tinha os olhos fechados e sua pele estava azul pelo frio. Os efeitos de sua enfermidade eram óbvios: dedos de pés e mãos destruídos, o nariz branco e desfeito, a boca arruinada. Mas ainda flutuava sobre ele a sombra de sua antiga beleza.

A lua estava baixa e a terra jazia em sombras sob a rocha. Os fantasmas não estavam à vista. O templo se elevava vazio atrás de Regeane.

As duas sombras vestidos de negro esperavam nos degraus do templo, como estátuas colocadas à porta de uma tumba.

O vento cessou e a noite ficou muda. Regeane parecia ouvir o silêncio.

Labirinto baixou os braços e enquanto Regeane o olhava, ele levantou-os devagar. Enquanto o fazia, o fogo ardeu no círculo de pedra do antigo lar sagrado. As chamas pareciam reais e Regeane se sobressaltou.

Mas então ela compreendeu que as chamas não desprendiam calor. Antonius não sofria dano, mas parecia flutuar entre elas como a salamandra vive o fogo. Mas quando os braços de Labirinto continuaram subindo, o fogo se tornou branco, convertendo-se em uma estrela de brilho tão intenso, que deslumbrou Regeane por um momento antes de desvanecer.

Ela olhou novamente. Antonius estava estendido diante dela, em toda sua juventude e força. Sua carne brilhava contra a cinza, com o rubor da vida. Enquanto ela o fitava, ele estremeceu no frio ar noturno e virou sobre um flanco, para fugir do frio. Regeane tirou o manto de seus ombros e o deixou cair em cima dele. Labirinto caminhou ao redor do fogo e pegou sua mão que ainda sangrava.

—Meu jardim? — Ele perguntou. - Retornará comigo?

Regeane estava de pé diante ele, consciente de que só estava vestida com a sombra e seu próprio cabelo cor da lua.

—Não. – Ela respondeu. - Provarei o mundo e verei o ele que tem para mim, antes de dormir.

—Ah. — Labirinto retrocedeu. - Adeus então, adorável dama da luz da lua. Olhando-a, entendo por que os deuses imortais podiam sentir desejos de estar entre os braços de uma mulher mortal. É o que tanto ânsia meu néscio filho, para beber uma e outra vez da fonte da vida.

Ele foi embora deixando sozinha Regeane com a amarga noite invernal e as estrelas. Ela se voltou para as duas sombras que esperavam nos degraus do templo e assinalou Antonius.

—Quando ele despertar, - ela disse, - o devolvam a sua mãe.

Um instante depois, ela era loba. Em atenção a sua pata que ainda sangrava, coxeou pela rota, para Roma.

 

                                                     CAPÍTULO 25

Quando Regeane atravessou à corrente, suas patas racharam uma camada de gelo nas beiradas. A noite era amargamente fria. Ela era consciente que suas energias estavam seriamente gastas. Não sabia se conseguiria chegar a Roma e à segurança da vila de Lucila antes que amanhecesse.

Fez uma pausa e contemplou a desolada Campânia. A névoa que antes flutuava sobre os prados havia caído na terra, congelando e formando gelo sobre a vegetação. As fibras rangiam quando ela coxeava sobre elas. A lua estava baixa e as estrelas brilhavam com uma fria luz sobre ela.

A mente da mulher estava quase tão cansada como a fera. Cedo ou tarde, a morte cairá sobre mim. Por que não aqui? Por que não agora? E então... O que? O jardim de Labirinto? Quem sabe? Ela pensou, olhando o esplendor gelado sobre ela. Havia tanta fealdade como beleza no mundo além da porta do templo, mas quanto daquela beleza ou fealdade era real? Quanto era ilusão? A mente da mulher, encerrada no estreito crânio da loba vacilou ante o problema. Mas não importava.

Uma pontada de dor subia por sua pata ferida quando tocava a terra. Isto é bastante real. Ela pensou. A fadiga dominava de cada um dos gritantes músculos de seu corpo, tentando-a a deitar-se na grama coberta de gelo e dormir. As lembranças da loba eram como música, um fluxo contínuo de imagens que ameaçavam a mente e a vontade da mulher. Ela estava muito confusa e para rechaçá-los, a beira do limite de suas forças. O frio que nunca a tinha incomodado antes atravessava agora sua espessa pelagem, gelando seus ossos.

Roma. Ela pensou e tentou forçar a seguir adiante. Mas a mulher sabia que Roma estava muito longe. As imagens que obscureciam sua consciência diziam que sua morte estava muito perto. Que era segura se ficasse ao ar livre, nua e sozinha. Tinha gasto muito de sua força, de seu sangue vital, para salvar Antonius. Talvez estivesse condenada.

Para o desânimo da mulher, a sempre confiante loba aceitou. Por que lutar até o final, então? Bastava se deitar ao lado do arroio. Haveria um pouco de dor e então chegaria à escuridão. Uma escuridão não muito distinta do sono e então poderia correr para sempre ao lado de seu pai, pelos imensos limites da eternidade...

A loba baixou o focinho ao arroio a seus pés. Beba e depois se deite e descansa. Deixa que o sangue flua devagar sobre a vegetação gelada. Ela bebeu torpemente a água gelada.

A impressão do frio a levou de repente a um completo alerta. Beber muita água gelada na condição em que estava era terrivelmente perigoso. Ela se afastou da água, grunhindo, com as orelhas firmes contra seu crânio. Não. A água seria uma virtual condenação a morte, para seu corpo já gelado.

A fúria a afligiu. Ela levantou a cabeça e pela primeira vez em sua vida, elevou sua voz contra um mundo monstruosamente injusto, universo cruel e as estrelas longínquas e indiferentes.

O som de sua garganta começou em um rugido de raiva e acabou em um lamento de agonia. Ressoou através da noite vazia como a chamada de um clarim. Então deixou cair à cabeça e cambaleou, compreendendo mulher e loba o que dizia seu cansado corpo: não podia seguir.

Um instante depois ela se sentiu estremecida pelo terror. Recebia uma resposta! As chamadas estavam muito longe, só o mais fraco dos lamentos, mas claro no ar noturno.

Seu corpo inteiro se agitou. Seu primeiro impulso foi correr, mas quando sua pata ferida golpeou a terra, a dor a paralisou. Já não tinha forças para correr.

Uma breve risada irônica flutuou na consciência da mulher. Tinha clamado contra a morte e só tivera êxito em chamá-la junto a ela. Então uma raiva vermelha alagou os pensamentos da loba, varrendo de um lado à mulher e sua civilização. A loba grunhiu com desprezo a choramingante criatura que afastava o olhar do sangue e tremia ante a morte. Era bem consciente de seu poder e uma pata ferida não o arrebatava todo. Eram gramas e gramas de músculo duro e nervo flexível, com presas que podiam rasgar a garganta de um touro e mandíbulas capazes de truncar o fêmur de um homem como se fosse um galho. Um desafio mais que notável para qualquer lobo natural.

Os uivos chegaram novamente, dessa vez mais perto e Regeane estremeceu ao distinguir uma súplica neles. Como se estivessem lhe pedindo que respondesse e dissesse onde estava.

Que assim seja. Ela pensou. Podia ser de uma forma ou de outra. Se havia muitos, podia perder. Bem, melhor uma luta que a morte lenta por causa da noite e do frio. As imagens no cérebro da loba eram de sangue e carne vermelha e quente fumegando no ar gelado. Se ganhasse poderia se alimentar e recuperar sua força.

Elevou a cabeça e uivou novamente, um grito que era de uma vez desafio e convite. Alguns momentos depois pode ouvi-los chegar, os suaves rangidos da vegetação cristalizada sob suas patas.

A loba coxeou rapidamente de volta ao arroio. A água não era grande coisa, mas poderia protegê-la se tentassem rodeá-la. Um instante depois que alcançou sua posição, ele chegaram ao alto da colina ante ela, com suas formas negras e olhos amarelos na escuridão. Adotaram um passo mais lento enquanto desciam para ela, detendo-se o pé da colina.

Eram os mesmos três lobos que encontrara na cidade: o lobo vermelho, o lobo cinza e a loba negra. Sua primeira reação foi um profundo tremor de alívio, mas a segunda foi de desconcerto e medo. Eles não haviam sido hostis antes, de fato. O gigante cinza tinha sido amoroso, mas o que fariam agora, quando vissem que estava ferida? Fez-lhes frente com orgulho, a cabeça alta, as orelhas eretas, a pata ferida dobrada sob seu peito.

Por um longo momento, ficaram olhando uns aos outros. Depois o grande lobo cinza se voltou para a loba negra, como se estivesse fazendo uma pergunta. Tocaram os focinhos e sua cauda ondeou uma vez como em aquiescência. O lobo vermelho, provavelmente recordando a hostilidade de Regeane, ficou atrás, sentado com um grande sorriso e começou a coçar a orelha vigorosamente com a pata traseira.

Pulgas. Disse a loba com repulsão. Como podia um lobo de sua nobre espécie cair tão baixo para ter pulgas?

A loba negra se aproximou dela sem amostras de ameaça e alongou devagar o focinho. O sentido era inequívoco. Quer que sejamos amigos?

A loba queria. Não sabia se poderiam ajudá-la; não sabia se haveria alguém que pudesse, mas sua companhia era imensamente melhor que estar sozinha com seu sofrimento. Então estendeu seu focinho para a outra brandamente, até que se tocaram. Não sabia o que havia esperado cheirar, mas a surpreendeu. Havia um matiz de carne vermelha, o aroma do frio ar noturno preso na pelagem da outra, e um doce aroma de pão quente.

A loba negra emitiu um amável som gutural, como um suave gemido. Era como se dissesse "bem-vinda". Então, brandamente, sua cabeça escorregou ao longo da mandíbula da loba de prata, até que o focinho repousou sobre seu lombo.

Por um momento, a loba de prata não soube como responder e então compreendeu. Naquela posição, a garganta da outra se oferecia nua para seus dentes, como a sua os dentes da loba negra. Simplesmente dizia "confio em você".

A loba de prata descansou a cabeça sobre os ombros da outra. Seus corpos estavam muito perto, assumo contra peito e o calor da loba negra foi como um incêndio para seu próprio corpo gelado. Ela tremeu de frio, de excitação, de medo. Podia cheirar a quente e limpa pelagem da loba negra e a suave pontada de feminilidade que flutuava em torno dela, como um perfume exótico.

A outra loba rompeu o primeiro contato ao retroceder. Sua língua limpou a face da loba de prata tão rapidamente que Regeane não teve tempo de se opor o que era aos seus olhos, uma indignidade. Então o focinho da negra baixou a sua pata ferida.

O cabelo da loba de prata se arrepiou e ela grunhiu brandamente, mais de medo que de fúria. Medo da dor. Os olhos da grande loba negra se encontraram com os da loba de prata. Ela leu compaixão e um pouco de diversão neles enquanto sua longa língua vermelha se metia entre as dobras das almofadinhas entre as unhas. A língua da loba aliviou os espasmos de dor que tinham sido o fundo de seus pensamentos desde Cumas.

Regeane estendeu a pata ferida para a loba negra, para deixar que as gentis carícias fizessem seu trabalho de cura. Enquanto isso, sua atenção passou ao grande lobo cinza. Ele estava observando atentamente suas saudações com a loba negra, interrompendo depois o escrutínio para andar nas pontas das patas por entre a vegetação que rodeavam a borda. Tinha o focinho baixo e as orelhas rígidas, estudando cuidadosamente o terreno. De repente saltou no ar e ao cair imobilizou algo contra o solo. Suas grandes mandíbulas se fecharam com um estalo. Depois, com um movimento tão rápido que a loba de prata não pode seguir, arrojou algo pequeno em sua direção, algo que caiu com um golpe suave a seus pés. A loba de prata baixou o olhar e viu um camundongo. Tinha o pescoço quebrado e ainda tremia nos estertores da morte. A loba retrocedeu, metendo na água gelada uma de suas patas traseiras. Saltou, para aterrissar com um lamento.

A loba negra grunhiu e afastou a cara. O lobo vermelho não se incomodou em ocultar seu alvoroço, saltou no ar e baixou com os quartos traseiros elevados e as patas dianteiras e o focinho contra o solo; depois rodou sobre seu lombo e agitou as quatro patas no ar, conseguindo dar a impressão geral de um humano paralisado pelo riso.

Em rápida sucessão, um segundo camundongo aterrissou ao lado do primeiro e depois um terceiro. A loba negra olhou Regeane pacientemente e empurrou um dos ratos para ela com o focinho. Estava claro.

O grande lobo cinza olhou para o lobo vermelho, que ainda estava parecendo rir e grunhiu. Depois voltou o olhar à loba de prata, com expressão imperiosa.

Estranhamente, foi à mulher e não a loba quem tomou a decisão. A sua maneira, a loba era uma tradicionalista, mas a mulher sabia que estava, pelo menos em parte, morrendo de fome. Então, se havia ratos, teria que comer ratos. Por outra parte, não eram mais estranhos que outras coisas que ela tinha comido como mulher.

Ela engoliu o primeiro sem lhe permitir tocar sua língua. O sabor não era ruim. Tinha gosto de nozes, rangente, mais parecido ao dos cogumelos que dos mamíferos. Comeu o segundo mais devagar e logo saboreava o terceiro. Não está mau. Ela pensou. Uma nova delícia. Nada mal. Perguntou-se o que pensaria Bárbara, a cozinheira do convento.

Cinco ratos depois, ela se sentia quase como sempre. Quando sua pata ferida tocou o solo, ela se perguntou que magia teria obrado a língua da loba negra. A almofadinha ainda estava doendo, mas podia caminhar sem moléstias. Já não coxeava.

O grande lobo cinza a olhou com aprovação e começou a guiar devagar à alcatéia ao longo da margem, procurando mais ratos. Ele comeu o rato seguinte e lançou um longo e significativo olhar à loba de prata.

Ela sentiu uma selvagem excitação. Ele queria ensiná-la a caçar. Sua seguinte presa foi uma lenta demonstração de como caçar.

Teria que caminhar devagar e em silêncio, com os olhos e orelhas alertas ao som mais leve, a rápida fuga, os suaves sons sussurrantes dos roedores procurando comida. Depois, o salto e a rápida queda.

A loba de prata começou a imitar seus movimentos. A cabeça inclinada, os olhos e orelhas sondando os ramos secos mortos pelo frio do inverno. Logo paralisou ao ver o primeiro, um gordo camundongo pardo que se alimentava dos restos de um girassol seco. Ela saltou, mas suas garras não acharam nada ao cair. O camundongo fugiu disparado, direto para o lobo vermelho, que pegou alegremente, com uma grande careta canina.

Ela não teve mais êxito com o seguinte, que se lançou para a loba negra.

A loba de prata rilhou os dentes e continuou imitando o grande lobo cinza. A vez seguinte, quando viu movimento, saltou imediatamente e caiu sobre uma lebre. O animal escorreu entre suas garras e lhe golpeou na face, fugindo depois. A loba ficou piscando, sacudindo a cabeça como se tivessem levado uma bofetada.

Evidentemente, o lobo vermelho achou muito divertido. Saltou no ar e ficou a rolar. O lobo cinza se voltou como uma enguia e lhe deu uma dolorosa dentada na anca. O seguinte salto do lobo vermelho não foi de diversão. Ele lançou um gemido e se sentou, lambendo o lombo furiosamente entre olhadas a seu companheiro.

O lobo cinza se voltou para ela e a olhou como dizendo "Seguimos?". A seguinte tentativa de Regeane deu melhor resultado: algo brando e peludo se debatia sob suas patas. Suas mandíbulas se fecharam. Outro delicioso camundongo.

Depois, caçar pareceu lhe fácil. Tinha a inata habilidade do predador de concentração absoluta. Tudo que tinha que fazer era confiar em seus sentidos. Ela percebeu, para mortificação do lobo vermelho e aprovação do lobo cinza, que era uma dos melhores na caça.

Quando todos se fartaram de ratos, o lobo cinza os levou para a planície e começaram a correr. Bem alimentada e descansada, a loba de prata podia correr com eles.

O mundo inteiro parecia dormir ao redor dos quatro lobos e eles fluíram como sombras pelas colinas geladas. É, pensou a loba de prata, a melhor de minhas noites. Deve ter sido antes do homem, com suas cidades, sua crueldade e suas guerras... Uma inocência primitiva. Só as estrelas eram suas companheiras.

Assustaram um cervo que dormia em um arvoredo perto de uma granja abandonada. Perseguiram-no, mais por diversão que para lhe matar. A loba de prata acelerou o ritmo e ficou surpresa por sua própria velocidade ao ficar à altura do aterrorizado animal.

Então viu a cabeça parda, o grande olho escuro e muito aberto, a garganta que pulsava cheia de sangue e vida. Cheirou o acre e espesso almíscar do terror, e compreendeu que, o que era divertido para ela era uma agonia para o cervo. Viu que era uma gama grávida.

E a mulher refreou a loba.

Interrompeu a perseguição e voltou para se reunir com o resto. Naquele momento, ela cheirou a cidade. Roma. Pensou. E a vila de Lucila. Sentiu no coração uma pontada de dor quando a mente da mulher compreendeu que a noite havia terminado.

Os lobos passaram a um meio galope, dirigindo-se a uma aldeia abandonada escondida entre as dobras das colinas, muito perto da cidade. A loba de prata os seguiu, captando o penetrante aroma da fumaça de lenha procedente de uma das casas às escuras. Supôs que devia ser uma de suas tocas. Era o que teria feito ela, se fosse capaz. Encontrar uma base onde ter roupa e um fogo esperando-a antes de voltar para a cidade. Um passo seguro entre o mundo dos homens e o dos lobos.

Deteve antes que chegassem ao povoado e os outros com ela. Estavam olhando-a e ela compreendeu que era um convite a que se unisse a eles. O grande lobo cinza deu um passo para ela.

O desejo ardeu na mente da mulher, como o fogo em ramas secas. A loba não estava pronta para sua iniciação nas artes do desejo, mas a mulher estava. Mais que pronta.

Se ela era a luz da lua, ele era a luz das estrelas. A pelagem cinza brilhava como o ardente arco dos céus sobre ela. Regeane viu a largura de suas omoplatas e sentiu a presença de sua masculinidade e ao mesmo tempo, o imenso mistério da noite.

Uma vez dentro da choça, o grande lobo cinza seria um homem e ela uma mulher. Os outros dois poderiam se vestir rapidamente e partir. Estariam sozinhos. Ele não precisaria lhe falar. Não lhe falaria.

Poderiam fitar-se nos olhos, como estavam fazendo agora e falar todos os segredos de seus universos sem usar as palavras. Ele seria forte, muito grande e forte. Ela pode sentir suas carícias em sua imaginação.

E soube que uma vez que tivesse em seus braços, não lhe negaria nada. Abriria-lhe seu ser mais profundo, avidamente e sem pudor.

Se tão somente pudesse cobrir o conhecimento, a previsão que a tornava humana. Aqueles três estavam a salvo, livres e sem preocupações em seu duplo estado, como ela nunca poderia estar. O que seria de suas vidas se um rei ou um Papa começasse a lhes caçar?

A loba negra se deslizou para ela e se uniram novamente como antes. O toque de focinho, a cabeça sobre o ombro, o sentimento de amor e confiança. Uma bênção. Um adeus.

Então a loba de prata se voltou e correu sem olhar atrás. Quando atravessou a primeira colina e baixou o olhar para a cidade, viu uma tira de luz no horizonte; as estrelas estavam morrendo sob seu resplendor.

Lucila recebeu à loba quando ela saltou a taipa da vila. Estava junto a uma das tochas, com um abajur na mão. Ela apagou a chama quando viu a loba se aproximar.

—Graças a Deus. – Ela suspirou.

Regeane estava de pé diante de Lucila, como mulher. Lucila lhe pôs seu manto sobre os ombros e a jovem se envolveu em enquanto ela a ajudava a voltar para a vila.

—E Antonius?

—Está bem. - Respondeu Regeane. – Você o verá quando voltar. Estou esgotada. —Ao falar, Regeane se deu conta do quão cansada estava. A fúria que a tinha salvado da morte no arroio e a emoção de correr pela Campânia com os outros lobos a esgotara por completo. – Estou há um dia e meio sem dormir. – Ela disse a Lucila enquanto a mulher a guiava pelo alpendre da vila, para uma das dependências.

Regeane se sentou à beira da cama e Lucila lhe deu uma taça de vinho.

—Diz que ele está bem? Como pode ser isso?

—Lucila, por favor. Não me restam forças. Tudo que posso dizer é que esta noite obtive tudo o que poderia pedir e muito mais. Agora, em nome de Deus, me deixe descansar.

—Sim, sim. Só queria me assegurar. Está cômoda? Quer comida? — Ela perguntou ao ver como Regeane apurava o vinho.

Regeane sacudiu a cabeça e sorriu.

—Já comi. – Ela disse.

Lucila estremeceu.

—Acredito que é melhor que não pergunte onde nem o que.

Regeane riu entredentes ao entrar entre as mantas, depois bocejou.

—Ratos.

—Ratos! — Gritou Lucila, enojada.

—Ratos.

—Ratos... Lobos comem ratos?

—Às vezes. - Respondeu Regeane antes de cair adormecida.

 

                                                             CAPÍTULO 26

Os três lobos se vestiram na choça junto a um fogo pequeno.

—Meu Deus. Por todos os deuses, vocês viram como ela corria? — Sussurrou o grande lobo cinza. - Que caçadora será. Teria conseguido pegar aquela cerva se quisesse.

—É bela. - Reconheceu o lobo vermelho. - Mas altiva. Sente atraída, eu notei. Por que não a uniu em uma pequena, digamos, aventura? Os dois teriam gostado de algumas quedas.

—Quero algo mais que quedas com ela. – Disse o lobo cinza. - Embora, por Deus! Também as haverá.

—Eu acredito, - disse a loba negra enquanto colocava seu vestido, - que ela não entende o quanto verdadeiramente livre é. É tímida, pude sentir e ignora seus próprios poderes. Algo tão simples como caçar ratos foi uma revelação para ela.

—Sua ferida me inquieta. Muito poucas coisas nos podem fazer um dano que sobreviva à mudança.

—Não era uma ferida normal. Soube quando minha língua a tocou. Só o céu sabe por que torturas passou, antes que pudéssemos resgatá-la. Quando a encontramos ela não esperava sua própria espécie, mas nossos primos selvagens. Você propôs que corrêssemos pela Campânia esta noite, - disse a loba negra ao lobo cinza.

—Sim. Eu tinha uma segunda intenção. Esperava encontrá-la lá. É aonde eu iria se vivesse nesta cidade fétida.

—Oh, não acredito que a cidade seja tão ruim. - Comentou o lobo vermelho. - Me parece que estou aprendendo a desfrutar dela.

—Sim. - Respondeu secamente a loba negra. - Já sei do que desfruta. Foi assim como pegou as pulgas?

—Eu não tenho pulgas. - Disse o lobo vermelho enquanto coçava vigorosamente as costelas e vestia sua camisa.

—Você assim diz. - Disse a loba negra em tom malicioso. - Mas mantenha-se longe de mim até que se lave e se livre delas.

—Até como mutante, - disse o lobo cinza, - você é um verdadeiro porco Gavin.

—Pego o que posso Maeniel. E entre uma coisa e outra, eu pego um monte.

—De pulgas, sobretudo. - Disse Matrona.

—Há mais de uma cadela no bosque. - Disse Gavin. - Conheci uma muito linda que vive junto ao Foro, em nossa primeira noite na cidade.

—Cadela ou mulher? — Perguntou Maeniel.

—Por como cheirava, ambas. Fizemos de uma maneira, logo depois da outra e depois das duas. Ela ficou muito impressionada por como tratei meus rivais. Sim, não era muito pulcra, mas o que são algumas poucas pulgas entre amantes?

—Pervertido. - Disse Matrona.

 

Regeane despertou várias vezes de seu longo sonho. Numa das vezes viu Antonius olhando-a, com Lucila a seu lado. Não havia rastro da enfermidade em seu corpo. Beijou-a castamente na fronte e então ela voltou a dormir.

Despertou novamente por um abraço de Elfgifa. Ouviu a voz de Lucila brigando em segundo plano. Novamente se afastou flutuando na letargia.

Por fim despertou espontaneamente, de tudo consciente. Uma franja de luz matinal entrava através da estreita janela. Ela se sentou e viu que Lucila tinha preparado roupa para ela. Havia uma camisa branca e um vestido sobre uma cadeira perto da cama.

Regeane bocejou e ficou em pé e estava se vestindo quando Lucila entrou na estadia.

—Até que enfim. Saia quando tiver terminado. Eu estava a ponto de tomar meu café da manhã. Reúna-se comigo, temos muito que discutir.

Regeane seguiu Lucila até um pequeno jardim separado do átrio principal. Era retirado e discreto. Havia flores de aspérula ao redor de um lago de peixes e sobre as paredes caiadas dos armazéns que rodeavam o lugar.

—Sou uma autêntica cadela pelas manhãs, - disse Lucila, - e os serventes raramente me incomodam aqui.

Havia uma mesa de mármore à direita do lago e duas cadeiras com cômodas almofadas. Regeane se sentou em uma delas e Lucila na outra.

—Acredito que encontrará isto um pouco mais substancioso que o café da manhã romano habitual. Não sigo o costume de começar o dia com pão seco, vinho azedo e talvez, se estiver de humor para luxos, alguns figos. A gente nunca sabe que dificuldade trará o dia e prefiro estar bem fortalecida.

Olhando a mesa, Regeane decidiu que a idéia de fortalecimento de Lucila era mais que adequada. A mesa oferecia peito de capão frio cortado em fatias, com um molho de vinho de passas, pão recém feito, mel, manteiga e queijo branco. Tudo servido com um suave vinho branco ligeiramente aromatizado com manjericão.

—Quanto tempo eu dormi? — Ela perguntou entre um bocado e outro.

—Todo o dia de ontem, - respondeu Lucila. – E a noite inteira.

Regeane suspirou.

—Estava cansada.

Não disseram nada mais até que despacharam sua comida e relaxaram sobre suas taças de vinho. Lucila franziu o cenho.

—Tenho algumas notícias para ti, preferi guardar até que terminasse o café da manhã, não queria danificar seu apetite. Mas deve saber Regeane, que seu futuro marido está aqui em Roma.

Uma onda de surpresa silenciosa percorreu Regeane. Baixou o olhar à taça de vinho em sua mão, uma formosa peça de cristal opalescente que parecia madrepérola. Ela colocou-a cuidadosamente na mesa de mármore. Suas mãos tremiam.

—E? — Ela perguntou.

—Você está muito tranqüila.

—Recorda que estou a tempo esperando isto. O que deveria fazer? Gritar? Chorar? Correr de cima a baixo, arranhando a face e arrancando maços do cabelo? Não, Lucila, seja o que for não sou assim. Viu-lhe? Conte-me, como é?

—Em sua posição, as notícias são o pior imaginável. Eu não o vi, mas despachei a Augusta para lhe receber em Ostia.

—Augusta?

—Sim. - Disse Lucila. – Ela choramingou e fez ruídos patéticos, mas me deve algo por ter ajudado seu desprezível tio. Em qualquer caso, informou-me que não é velho. Eu esperava que fosse. Os homens mais velhos dormem profundamente à noite e pensam muito em seus estômagos e intestinos. Uma jovem atraente pode levá-los pelo nariz sem dificuldade. E o que é pior, tampouco é efeminado. Esses homens são ainda mais fáceis. Basta ignorar seus pequenos pecados e lhes oferecer honesta amizade que alguém brinda a uma amiga simpática. Mas não houve sorte. É um homem sadio e na flor da vida. Augusta o achou inteligente, cortês e bem versado. Opina que é uma mulher muito afortunada. Disse que ele era impressionantemente lúcido, para se tratar de um bárbaro.

Regeane jogou a cabeça para trás durante um segundo e contemplou o luminoso céu azul do outono. Fechou os olhos e se levou dois dedos às pálpebras. Uma voz em sua mente falou com claridade. Tem que matá-lo.

—Não. – Ela sussurrou. - Não. Não quero fazê-lo.

Ela baixou a cabeça e abriu os olhos. Parecia que havia passado um longo tempo. Encontrou-se olhando a face de Lucila.

O olhar da mulher era plaino e opaco. Estava sorrindo com dureza.

—Sim. – Ela disse, respondendo os pensamentos de Regeane. - Já sei que não quer, mas quanto menos se diga, melhor. As paredes têm ouvidos.

—Ele colocou alguma objeção no contrato matrimonial?

—Não. Adriano o fez redigir pela chancelaria de palácio. Maeniel o viu.

—Sabe ler?

—Isso parece, porque Adriano disse que ele perguntou algumas coisas sobre o estipulado, embora não teve objeções sérias.

Regeane assentiu.

—Graças ao céu.

—Seu agradecimento é prematuro, querida. Uma vez fora de Roma, o contrato é simplesmente um pedaço de papel. Não há forma de que o rei ou o Papa possam lhe obrigar a cumpri-lo, nas montanhas.

—Não sei. - Disse Regeane mordendo o lábio. – Ele irá querer progredir e o rei é muito ciumento de sua honra. Abusar de mim provocaria a ira real.

—Sim e deve se apresentar como o caminho ao favor real. Tenho um plano para isso... O que me leva a festa de compromisso. Será esta noite, em uma das vilas de Augusta. — Lucila tirou uma tabuleta de cera das dobras de seu vestido e a colocou sobre a mesa. – Você se vestirá de branco. Seda, ligeiramente bordada com margaridas douradas. Agora há um conde franco em Roma. A propósito, ele me proporcionou os mercenários francos que custodiam minha vila. Chama-se Otho. É gordo e tem os olhos de algo, que poderia esperar te encontrar saltando sobre as flores em um dia úmido. Mas mova suas pálpebras para ele e terá encantado o sapo. Não direi que o rei dos francos confie nele, mas que o usa com freqüência. Estou segura de que levará notícias a Carlos sobre o prêmio que recebeu do tal Maeniel. Com um pouco de sorte, você será convocada a corte e esse desventurado matrimônio não durará muito.

—Não sei, Lucila. Suponhamos... Somente suponhamos que posso chegar a um acerto com esse Maeniel. O que aconteceria então?

—Não há remédio. Otho tem que ser convidado para suas bodas, em todo caso. E impressionar ajudará a sua causa, mas isto não é a parte mais importante de meu plano, mas só uma possibilidade marginal. Pense menina — disse Lucila, - alongando a mão e dando alguns tapinhas na frente de Regeane. - Não importa o que acontecer, você vai estar sozinha com esse homem durante vários anos.

Regeane assentiu novamente.

—O que decidi, - continuou Lucila, - é enviar esta mesma tropa de mercenários às montanhas contigo. Não acredito que tenha problemas para persuadir Otho de que seria uma boa idéia. Uma garantia adicional da lealdade de Maeniel. Poderíamos dizer.

—Já vejo... Assegurariam o cumprimento do contrato matrimonial.

—Isso. O que nos leva a outra complicação.

—Gundabald. - Disse Regeane em tom desanimado.

Lucila elevou suas cuidadas sobrancelhas e sorriu para Regeane com satisfação.

—Uma garota pronta. – Disse. - Como soubeste?

—Porque conheço Gundabald. Ele teria o comando nominal dos mercenários e começaria a corrompe-los imediatamente. Quando terminasse, não seriam leais a nada nem a ninguém mais que a ele.

Lucila riu brevemente. Depois se afastou para trás em sua cadeira e olhou ao longe, com um fraco sorriso nos lábios.

Regeane sentiu um frio medo arrastando-se sobre ela.

—Que planos tem com respeito a Gundabald?

Lucila se inclinou sobre a mesa para servir outra taça de vinho. Sua face estava muito perto da de Regeane.

—Penso, - ela disse muito maciamente, - em lhe fazer estrangular.

Regeane se levantou de um salto.

—Não! — Ela gritou.

—Isso. - Vaiou Lucila. - Diga ao mundo inteiro.

A jovem se sentou rapidamente.

—Não. – Ela repetiu com mais discrição.

—Por quê? — Replicou Lucila em voz baixa. - Tanto lhe quer?

Os punhos de Regeane se crisparam. Ela olhou a superfície da mesa.

—É um assassinato. Um assassinato.

—Te ocorre outra solução?

Regeane não respondeu. Estava recordando o fantasma do rio ardente, a ferida em seu peito.

—Wolfstan o perdoou.

—Quem?

—Meu pai. Encontrei-me com ele no mundo além da morte. Ele havia perdoado Gundabald.

Lucila fez um gesto vacilante com a mão, para eliminar Regeane de sua vista. Descansou o queixo na mão e se aproximou dela.

—Vamos ver se entendo. Diz que encontrou seu pai no mundo além da morte. Quando? Como?

—A noite que salvei Antonius. Viajei ao outro mundo e encontrei com meu pai lá. Ainda conservava o ferimento que Gundabald lhe fez.

—Pode falar com os mortos? — Perguntou Lucila, sem fôlego.

—Sim. Vi a Abadessa Hildegard no convento. Estava morta. As monjas se assustaram.

Lucila se tornou para trás e lançou um gemido.

Regeane se sobressaltou, temendo que sua amiga estivesse sofrendo uma espécie de ataque e então se deu conta de que ela estava rindo.

—As monjas se assustaram. Oh, Meu Deus! – Ela continuou sorrindo. – Oh, Mãe de Deus. Oh, Filho de Deus. Imagino que fariam. Não é surpresa que Emilia tivesse tanta pressa em se livrar de ti. Na noite que fugiu, enviei-lhes uma mensagem dizendo que estava aqui. Elas foram até Adriano no dia seguinte, lhe dando todo tipo de razões pelas quais ele deveria te deixar aos meus cuidados. A tentativa de envenenamento, os ataques de histeria da irmã Angélica... Todas as explicações menos a autêntica. Ah, ah, ah... —Cada "ah" era um toque de riso. - Moça, você é uma companhia muito incômoda.

Então a alegria de Lucila cedeu. A mulher deixou de rir e começou a esfregar os olhos. De repente, outro pensamento pareceu atacá-la. Seus olhos exploraram rapidamente o pequeno jardim.

—Não vê nenhum por aqui, certo?

—Não.

—Graças ao céu pelos pequenos favores. - Disse Lucila, meneando a cabeça.

—Mas, - explicou Regeane vacilante, - nem sempre sei quando os vejo. Às vezes parecem tão mortais...

Aquilo voltou a inquietar Lucila e passou um bom momento antes que pudesse se controlar. Quando o fez, uma expressão dura e bastante fria apareceu em seus olhos.

—Viu Adrastea?

—Sim. - Disse Regeane e afastou o olhar de Lucila, desviando-o para um maço de flores brancas e brilhantes sob o sol. - Está no inferno.

—E espero que se apodreça lá. - Replicou Lucila. Ela estendeu a mão e pegou a de Regeane. – Olhe para mim, moça. — A expressão de Lucila era resolvida e implacável. - Pode ser que seu pai tenha perdoado Gundabald. Suponho que diz a verdade, pois o encontrou em um mundo no qual os mortais comuns não têm acesso. Mas você não tem o luxo da generosidade de seu pai. Não lhe pode permitir isso Ele está morto e nada pode lhe fazer mal. Faz muito bem esquecer as afrontas passadas, mas deveria pensar no dano que Gundabald pode te fazer no futuro.

Fazia calor no pequeno pátio e as abelhas visitavam as flores a beira do lago. Regeane fechou os olhos e inalou profundamente. Doces fragrâncias a rodearam. O delicado aroma das flores, o aroma mais forte do limpo corpo de Lucila que dava um quente aroma humano no ar... Mas sobretudo o ar mesmo, que parecia um limpo vinho branco e fazia de cada inspiração um gole de prazer.

Que estranho resultava sentar rodeada de beleza e tramar a morte de um homem.

—O que acontece? — Perguntou Lucila.

—A loba. - Disse Regeane. - Às vezes ela só quer desfrutar do mundo que a rodeia.

—Está evitando a questão. E diga à loba que parta. Um simples animal não poderia entender a conspiração, Pelo menos não do tipo que planejamos.

A loba vagou de volta a sua escuridão diurna e a mente de Regeane retornou ao presente.

—O que estamos planejando? — Ela perguntou, arqueando as sobrancelhas interrogativamente.

—Seu tio gosta das más companhias, não é? Ele freqüenta bordéis, botequins e lugares assim.

—Sim.

—Bem. O assassinato é melhor e mais fácil quando parece ser resultado da vida do morto. Agora, sem dúvida, seu tio sabe que encontrou outros amigos. Amigos, eu poderia acrescentar, em posição de te ajudar mais do que ele tem feito. Acredito que seu encantador tio verá que se equivocou nos métodos que escolheu para lidar contigo. Que você é mais inteligente e poderosa do que ele acreditava. Chegará a minha vila ansioso de... Digamos... Limar asperezas, aparar arestas. — Lucila fez uma pausa e sorriu com malícia.

—Seriamente pensa isso? A última vez que o vi, ele ameaçou me matar.

—E segue querendo. Mas primeiro terá que se recuperar. Pois do contrário, como poderia encher os bolsos com o ouro de Maeniel?

—Não quero saber nada dele. Até sua proximidade me deixa arrepiada.

—Naturalmente. Mas quando ele vier, como já disse, deve parecer alegre por suas melosas palavras. Cuidado, não se deixe convencer muito rápido, pois poderia suspeitar. Mostre-se mais relutante a princípio. Estas coisas requerem um manejo muito destro e delicado. De fato querida, inclusive pode mostrar alguma medida de desconfiança ao terminar a conversa. Mas acima de tudo, deve lhe fazer acreditar que ele poderá te persuadir no futuro, de que se volte sob sua influência... Para ser breve, de que te converta em sua cúmplice, consciente ou não. Deixe que ele acredite e terá vencido. Então, é obvio, contratarei meu homem para que comece a espreitá-lo. E quando Gundabald for encontrado flutuando de barriga para baixo no Tibre, você estará no cortejo fúnebre, chorando e com um discreto véu negro. E o Hugo? Terei que incluí-lo em minhas instruções?

Regeane, maravilhada ante sua própria calma, estendeu a mão e se serviu de outra taça de vinho.

—Não acredito. – Ela disse, reflexiva. - Com o Gundabald morto, Hugo fará o que eu lhe diga. Tem-me medo.

—Excelente. Nestes assuntos, o melhor é manter as coisas o mais simples possível. A economia sempre é preferível à sede de sangue e as matanças.

—Hugo saberá. - Disse Regeane enquanto olhava o céu sem nuvens e tomava outro gole de vinho.

—Sim, querida. Mas não dirá nada, certo?

—Não. Ele não tem dinheiro e dependeria de mim para sua manutenção e seus prazeres. Temeria que não lhe acreditassem e eu lhe cortasse os recursos.

—Exato. E já não teria medo de ti, pois estaria totalmente aterrorizado. E às vezes, em alguns homens, o medo é melhor garantia de lealdade que o amor.

 

                                                           CAPÍTULO 27

O céu era do mesmo azul limpo e sem nuvens sobre o Foro, o vento cortante e frio. Maeniel se deteve Ao resguardo de um enorme bloco de pedra. Junto à pedra, um lance de degraus de mármore subia sem levar a parte alguma. Embora estivesse quente à luz do sol, o ar seco era frio nas regiões sombreadas. Gavin estremeceu.

—Sigamos cavalgando, - ele disse. - Estas ruínas me deprimem, e além disso, nunca se sabe quem poderia estar à espreita, esperando que...

—Silêncio, Gavin. - Disse Maeniel.

—Silêncio, Gavin. Cale-se, Gavin. Não comece, Gavin. Sei o que estou fazendo, Gavin. É tudo o que ouço de ti quando está de mau humor. Eu gostaria de assinalar que levamos bastante ouro para comprar a metade desta espantosa cidade e você só quer jogar em lugares solitários onde...

—Gavin, - disse Maeniel enquanto desmontava e começava a subir os degraus de mármore, - você viu alguma vez alguém que pudesse me tirar algo contra minha vontade, em qualquer parte?

—Não, mas...

—Nada mas. De sim ou de possivelmente. Ninguém pôde, nunca. Além disso estamos sozinhos. Do contrário, eu veria algo, cheiraria algo ou ouviria algo e não o faço.

Maeniel se deteve para olhar os degraus. Estavam gretados e quebrados, manchados por séculos de liquens e musgo. O joio, com alguma flor dourada, brotava dos interstícios brilhando contra a pedra escura. Um lado da escada estava espaçoso, o outro desaparecia em um manto aveludado de verdor onde trepadeiras e inclusive árvores pequenas lutavam para conseguir espaço.

—Foi aqui? — Disse Maeniel. - Tudo mudou tanto... Supõe-se que Augusto disse "Encontrei uma cidade de madeira e de mármore", mas acredito que ele encontrou algo vivo e deixou só um cenotáfio.

—Maeniel, de quem demônios você está falando?

- De César.

—Qual deles? — Perguntou Gavin.

Maeniel alcançou o alto dos degraus e contemplou as ruínas do Foro. Visto daquela ligeira elevação, o lugar tinha o aspecto de um parque. Embora uma noite de gelada tivesse apagado um pouco sua exuberante vegetação e deixado nuas algumas árvores, o verde dos mais robustos seguia prevalecendo. Aqui e ali, maciços outonais de varinha de ouro ondeavam ainda seus estandartes cor de açafrão entre as ruínas. A seus pés, sobre o musgo entre duas colunas quebradas, pequenas flores azuis formavam um tapete cerúlea que dava a boas-vindas ao sol.

—O primeiro, Gavin.

—O primeiro. — Gavin sorriu afetadamente. - A quem lhe importa o primeiro? Não acredito que dele resta nem pó para provocar um espirro . – Ele disse unindo a ação às palavras com um espirro. - Maeniel, eu vou pegar um resfriado de morte...

—Duvido. - Respondeu Maeniel com frieza enquanto fechava os olhos e tentava se recordar. Sentia o calor do sol em seu pescoço, quase igual naquele dia... Alguns... Oitocentos anos atrás. E não era inverno, mas primavera. Mês de março.

As pedras sob seus pés estavam molhadas e escorregadias depois de uma noite de chuva. As imagens, sons e aromas quase tinham afligido seus sentidos de lobo, pois os tinha ativo contra sua vontade, impulsionado por uma profunda consciência visceral de que aquele dia podia ser seu último sobre a terra.

Os comerciantes de ruas anunciavam suas mercadorias, salsichas, vinhos e queijos... Com vozes que eram um violento ataque para seus delicados ouvidos. Estava rodeado de corpos vestidos com togas que empurravam o seu, cada um com seu próprio miasma particular de perfume e transpiração. Acima de todos os aromas de comida rançosa e vinho azedo, flutuava o aroma de ossos queimados dos sacrifícios da manhã nos templos que rodeavam o Senado.

Maeniel tinha se separado da multidão que enchia a antiga praça do mercado, e estava junto ao pedestal da estátua de alguma deusa árabe, com mil seios. Tinha colocado firmemente sob controle seus sentidos de lobo e esperado que Julho César chegasse ao grande lance de escadas que levava ao Senado. Viu ante ele uma face ambiciosa e ávida. A face e olhos de alguém que tinha querido, desejado alguma coisa com uma força além da carne mortal, durante tanto tempo que havia se esquecido do que se tratava. Uma face viva só para as energias fúteis e sem sentido que o guiavam de seu interior.

Mesmo depois de tantos anos, a pura futilidade daquela face consumiu a força dos braços de Maeniel e a vontade de sua alma. Sua mão que estivera sobre o punho de sua espada; naquele momento baixou e se afastou.

Gavin irrompeu em seus pensamentos sobre o remoto passado:

—Maeniel, você vai deixar todo esse ouro no cavalo? — Gavin assinalou um alforje de couro sobre o grande ruano de Maeniel.

—Gavin. – Respondeu Maeniel com calma. - Não me incomode por umas poucas ninharias.

—O que chamas ninharias? — Perguntou Gavin ultrajado. - É o melhor de todas as riquezas que ganhamos alguma vez. Não posso recordar quantos anos de esforçada luta...

—Ninharias. - Repetiu Maeniel firmemente. - O que ganhamos em tantos anos de luta é nosso vale, nossas montanhas e sobretudo, nossa liberdade. Comparado com isso, considero que um pouco de ouro não tem importância.

—Dirigimo-nos ao encontro de sua futura esposa Maeniel e eu gostaria de seguir adiante. Quero averiguar qual é seu problema antes de irmos muito mais longe. Você viu esse contrato matrimonial? Pedia tudo, virtualmente uma corte própria. Maeniel, essa mulher pode ser sua ruína. Terá seus próprios soldados. O que faremos se decidir...

—Se decidir o que? — Maeniel olhou Gavin nos olhos.

—Bom, não sei. - Disse Gavin, elevando as mãos. - Mas é certo que, se este matrimônio seguir adiante, lhe ocorrerá alguma traição. Em nome de Deus, às vezes você se preocupa por tudo: o maldito feno, a maldita colheita, a maldita lenha, inclusive o mofo do maldito queijo. Mas agora que tudo o que ganhamos está em perigo, você fica de pé em um monte de mato falando sozinho sobre Julho César. Pergunto-te, que demônios tem a ver Julho César, com tudo disto? Além disso, não pode saber muito dele, você não é tão velho. Não pode ser tão velho. Ninguém pode.

—Sim... - Disse Maeniel. – Tente convencer a ti mesmo. Mas te direi a verdade... Gavin, eu era um moço de sua idade quando vim aqui por ordem de meu professor, para matar Julho César.

—Não. - Exclamou Gavin, voltando-se sobre o corpo. - Não ouvirei isso. É impossível.

Maeniel riu com dureza. Gavin voltou a se voltar e o encarou.

—Não sabia que teve um professor. Quem era e como te convenceu para...

—Não teve que me convencer. Eu estava desejando, inclusive ansiava. César destruiu meu povo.

A brisa soprou com força ao redor dos dois homens, lhes ensurdecendo com o ruído. Gavin sentiu que o cabelo do pescoço lhe arrepiava.

—Como era, esse César? Não significa nada para mim... Somente um nome em um livro de história que os sacerdotes me fizeram ler faz muito tempo.

—Não estou seguro disso. - Disse Maeniel. – Afinal, sou somente um lobo que é um homem. Às vezes não sei se entender de tudo, a nenhum homem.

Gavin abaixou a cabeça e afastou o olhar de seu chefe, para as ruínas do Coliseu no horizonte.

—Mas, - seguiu Maeniel, - ele destruiu todo um povo e sua forma de vida para pagar suas dívidas. No processo, arruinou incontáveis vidas humanas. Matou centenas de milhares e enviou à escravidão outros tantos. Sei, vi-os aqui. Tantos com os olhos feridos, suportando os estranhos costumes romanas, aprendendo dolorosamente a falar outra língua. Alguns deles me reconheceram como o que era quando vim. Às vezes me falavam. Não pedindo ajuda ou consolo, mas acredito que para ouvir por última vez a música de um mundo que lhes ordenara esquecer. Mas eu não era de seu mundo, assim como tampouco sou totalmente do teu e havia pouco que pudesse fazer. A única razão pela qual me detive aqui hoje é porque me pareceu reconhecer e recordar este lugar. Mas tudo mudou.

—E o que tem isso? — Disse Gavin, assinalando o Coliseu. — Nem sequer o haviam construído, então.

Um sentido de antigüidade passou sobre Gavin, quando ele compreendeu que Maeniel havia estado ali antes que uma coisa que caía aos pedaços tivesse sido construída.

—Quanto tempo viveste, então?

—Não sei. - Disse Maeniel. - É como para César é contar as areias do tempo, sou um lobo e nunca senti a necessidade.

—Como chegou à cidade, o bastante perto para matá-lo?

—Meu professor, Llama...

—Llama ensinou Merlin... - Interrompeu Gavin. - E Merlin é só uma velha história.

—Possivelmente... Ou talvez não. - Disse Maeniel, afastando-se um pouco mais. - Esqueci. Não sabe o quanto estranho é ser velho, saber que acontecimentos que uma vez pareceram de importância catastrófica em minha própria vida sejam só ossos secos da história para você.

—Muito bem. Morderei a língua.

—Espero que não. - Disse Maeniel com uma careta.

—Quero dizer, — explicou Gavin com lenta paciência, - que é você quem está contando a história, assim conta-a a sua maneira.

—De acordo. Meu professor, Llama, passou um ano me preparando para ser um romano. Depois de tudo, ele dizia, se o amigo do César pôde fazê-lo eu também poderia. Aprendi tanto quanto pude de sua roupa, seu idioma e seus costumes. Ao terminar o ano, podia passar entre os romanos como um deles. Ao chegar aqui, não demorei em descobrir que não precisaria. A cidade já era como uma puta velha, sempre disposta a se vender pelo preço adequado. Fazendo-me passar por um rico fazendeiro da Gália, averigüei rapidamente tudo o que precisava saber para obter meu objetivo: a localização da residência de César na cidade, a que horas ele ia ao Senado, quais eram seus amigos e companheiros habituais... Mas não vi o homem até que abri passo através do Foro e o esperei com a mão sobre minha espada.

—Como havia planejado fugir depois de matá-lo?

—Não tinha nenhum plano. - Respondeu Maeniel, se voltando e olhando Gavin com um meio sorriso nos lábios.

Gavin ficou surpreso por seus olhos que eram de uma cor peculiar, azul aço sob algumas luzes, escuros como um mar agitado sob outras e agora,ao sol, da cor de uma nuvem de tormenta quando o dia desvanece em um crepúsculo púrpura.

—Que estranho. – Ele disse sarcasticamente. - Sempre o havia considerado inteligente.

—Era jovem então e a coragem precipitada era o que se esperava de um guerreiro.

—Se me perguntar isso...

—Ninguém o fez.

Mas Gavin seguiu igualmente:

—Aqueles galos possuíam muita coragem precipitada e pouco sentido comum. Por isso foram uma presa tão fácil para César.

—Possivelmente. - Disse Maeniel. Ele estava olhando novamente ao longe, acima das caladas ruínas banhadas pela luz do outono. - De toda formas esperei-o ali. E me encontrei com seus olhos. Era um homem fraco, de bochechas fundas e os olhos que ardiam em suas profundas conchas, com uma fome insaciável.

—Suponho que devo perguntar fome do que. — Gavin tentou soar aborrecido.

Maeniel se voltou para ele, com o ligeiro sorriso novamente nos lábios. Seus olhos seguiram uma pomba que voava sobre suas cabeças, com suas asas com um leque iluminado pelo sol.

—Não sei.

—Maeniel, - disse Gavin, em tom de advertência, - eu não gosto quando você se torna enigmático.

—Os homens debilitam às vezes as coisas ao lhes dar um nome. Demos graças aos deuses por que não encontraram um nome para isto. Mas eu sei o que é. Eu o tenho, você o tem, inclusive o pássaro o tem. Como confiaria suas asas ao ar invisível? Como sulcariam as asas de um falcão, o calor que sobe pela ladeira de uma montanha iluminada pelo sol? Um lobo tem quando se enrosca em sua toca depois de uma caçada, sem se preocupar com o manhã, sabendo que deverá caçar novamente, mas seguro de suas patas fortes e suas presas afiadas. Eu tinha, também, inclusive em casa de Llama, isolado como ele me tinha do mundo das feras. Conheci a transcendental confiança quando atravessava o prado, por volta da névoa da manhã, para me banhar no rio à alvorada. Um menino a conhece quando procura o peito de sua mãe com os lábios e acha seu prazer e consolo. Eu o tinha inclusive em minha própria e magnífica estupidez e demonstrei ao não me preocupar com o que me aconteceria se conseguia afundar minha lâmina em seu corpo. Mas pude ler a verdade em seu olhar inquieto e faminto. Todo seu poder não lhe tinha dado nenhuma tranqüilidade, nenhuma esperança, nenhuma alegria. Então o olhei enojado enquanto subia pelos degraus e o cheirei. Senti um mau cheiro que afogava inclusive outros que flutuavam a meu redor, o poderoso aroma da raiva humana, o medo humano e o desespero. E compreendi que procedia dos homens que o rodeavam. O aroma de uma alcatéia aproximando-se da presa. Maldição, Gavin. Sabia ele que aqueles a quem considerava seus irmãos iriam matá-lo? Agora acredito que talvez não lhe importasse. Estava cansado de viver... Talvez tivesse preferido que eu acabasse com ele. Uma morte limpa nas mãos de um inimigo jurado. Não sei. Só sei que se detiveram no alto da escada, como se fossem fazer lhe algum pedido. Um momento depois suas lâminas estavam sobre ele, mesmo a do homem que se dizia ser seu filho. Os homens armam muito alvoroço por uma morte. - Comentou Maeniel. - Um lobo o teria deixado simplesmente para os pássaros carniceiros. Parti rapidamente, estava iniciando um tumulto. Levei a notícia a sua viúva, Calpurnia. Uma grande dama, majestosa como os romanos de antigamente. É estranho... As mulheres conservam as virtudes dos povos, mais tempo que os homens.

—Isso é porque não têm mais remédio. Ofereça-lhes alguma outra opção E... Bem, olhe Matrona.

—Esse é teu problema, não? — Disse Maeniel com picardia. — Não acredito que ela o deixe fitá-la freqüentemente.

—Maeniel, - se lamentou Gavin, - estou agradecido. Vou em busca de um pouco de aventura e ela me desdenha durante meses.

—Em qualquer caso, falei com Calpurnia e pedi que os serventes a vigiassem. Temia que pudesse tomar alguma saída romana. Depois me afastei de Roma a toda pressa. Não só de Roma, mas também do homem. À noite me encontrou fugindo para as montanhas como lobo.

Maeniel se voltou e caminhou de volta para os cavalos.

—Foi um grande homem. - Disse Gavin.

Maeniel se deteve e contemplou as ruínas e o vasto céu nu.

—Não, não foi. Os grandes homens sempre deixam o mundo melhor, que como o encontraram. Ele não. Ele destruiu um estado que poderia ter sido um freio entre seu povo e os de mais além, que caíram sobre eles como uma maré. E arruinou seu próprio governo.

—Pode ser que aqueles romanos viram sua tira do poder como uma opção entre a desordem e o despotismo.

Maeniel olhou novamente Gavin nos olhos.

—Isso não é nenhuma opção e você sabe. Tendo crescido entre pessoas que faz suas próprias leis e as obedece. Não. O governo romano era pugnaz, caótico e propenso à corrupção. Mas tinha espaço para o crescimento e a mudança. E acima de tudo, quando se assistia às deliberações era possível ouvir mais de uma voz. Depois dele, nunca houve mais que a voz de um só homem. Por isso lhe digo que Augusto encontrou algo vivo e o deixou convertido em um cenotafio. Como César encontrou algo vivo na Gália, um povo que poderia ser poderoso e magnífico e ter atuado como um baluarte contra a selvageria. Não, não foi um grande homem, mas um homem pequeno e com o talento guiado pela cobiça e uma sede de poder além do normal. Se alegre de que não tenhamos Césares e nem legiões sem rosto para ser seus instrumentos.

Maeniel se voltou para seu cavalo. Gavin o seguiu, acreditando pela metade o que dizia seu chefe de guerra. Mas a quietude que rodeava ao homem o assustou. Já estava na sela e os dois se dirigiam a casa de Lucila, quando lhe perguntou:

—Por que me diz tudo isto?

—Porque não quero que nenhum César venha a meu vale das montanhas, seja seu nome Carlos ou qualquer outro e destrua a meus amigos. Estou te explicando por que as apostas são muito altas neste matrimônio, para que me comporte de forma distinta que como um pai de minha gente. Casarei-me com a garota, seja como for. E ela será honrada em minha casa por todos vós. E guardaremos nossos segredos. Então espero que tenha desfrutado ontem da noite da liberdade da Campânia, porque essa liberdade está a ponto de terminar. Compreenda, Gavin: terminar. Pois enquanto ela estiver conosco, seremos homens, não lobos. E você se comportará na vila de Lucila. Todos o farão.

Gavin mostrou uma atípica mansidão quando chegaram à casa de Lucila. Maeniel elevou o pesado alforje do cavalo enquanto Gavin anunciava sua identidade à servente da entrada. Era uma bonita embarrada e Gavin não tirou os olhos dela.

Ele seguiu Maeniel a uma distância receosa quando entraram no jardim do átrio. A moça fez uma pausa, olhou-os, riu bobamente e desapareceu na casa.

Gavin se sentou em um banco de mármore ao lado do lago.

—Suponho que teremos que nos sentir como em casa.

—Não muito como em casa . - Advertiu Maeniel.

—Oh, não. - Disse Gavin, tentando soar tranqüilizador.

Maeniel pôs o alforje sobre o banco, ao lado de Gavin, e ficou em pé, esperando. Ao pouco tempo, uma muito elegante Elfgifa apareceu pela porta do triclinio. Vestia camisa de seda e o rígido vestido de brocado que usara no banquete do Papa e uma fileira de pérolas adornava seu curto cabelo dourado.

A menina olhou espectadora para Maeniel e disse:

—Não vai me dar um beijo?

Os dois homens a olharam atônitos por um instante e depois Gavin estalou em risada.

Maeniel lhe lançou um duro olhar.

—Dizia a carta... — Perguntou Gavin, se afogando. - Dizia a carta que lhe enviaram, alguma coisa sobre a idade de sua futura esposa?

Maeniel deu em seu capitão um forte chute no tornozelo.

O lábio inferior de Elfgifa se sobressaiu.

—Sabia que algo ia falhar. - Disse Gavin. - Sabia que algo tinha que dar errado. – Ele se queixou. - Agora sei o que é.

O lábio de Elfgifa se sobressaiu ainda mais: - Não tenho nada de errado. – Ela disse, batendo o pequeno pé. - Todos dizem que sou muito bonita. O que lhe acontece?

—Cale-se, Gavin. - Disse Maeniel entredentes. Depois se voltou para Elfgifa. – Você é muito bonita. — Maeniel se inclinou e depositou um suave e terno beijo na fronte da menina.

—Pobre Maeniel. - Comentou Gavin, secando-os olhos. - Vais passar muito tempo sem...

—Sem o que? — Perguntou Elfgifa inocentemente.

A pergunta deixou novamente Gavin fora de si. Débeis sons de uma histeria incipiente começaram a chegar das cortinas do triclinio. Maeniel soube que todo os criados da vila estariam ouvindo.

—Minha senhora... Se não se importar, poderia me trazer uma taça de vinho e quando eu tiver acabado de estrangular meu amigo, me reunirei contigo e falaremos do futuro.

Elfgifa estudou seriamente Maeniel por um momento.

—Se é seu amigo, por que quer lhe estrangular?

Gavin estava quase paralisado, mas conseguiu levantar-se de um salto e se afastar de Maeniel.

—Sempre havia pensado que você não gosta de estrangular as pessoas. - Seguiu dizendo a menina.

Gavin se apoiou em uma das colunas que sustentavam o telhado do alpendre.

—Vai ser maravilhoso esperar à consumação.

—O que é uma consumação? — Perguntou Elfgifa. - E por que você atua dessa forma? É porque vai estrangulá-lo? Posso olhar?

—Sim. - Respondeu Maeniel entredentes. - Mas possivelmente não o estrangule. Pode ser que o afogue lentamente no lago.

De repente, Gavin deixou de rir e olhou fixamente para as duas mulheres que se aproximavam do alpendre.

—Olhe, - disse Elfgifa a Regeane, pegando o manto castanho de Maeniel, - este é o homem que veio para se casar contigo.

Regeane se parou em seco. O sangue abandonou seu rosto, deixando-a quase tão pálida como as açucenas que floresciam junto ao lago.

—Oh, céus! - Sussurrou Lucila. Uma onda de risinhos afogadas chegou das cortinas do triclinio—. O que está acontecendo aqui?

—Este é Lorde Maeniel. - Disse Elfgifa agitadamente. Ainda sujeitava o manto. - Já sabem. É o senhor montanhês que vai casar se com Regeane. Os serventes disseram que terei que recebê-lo apropriadamente e lhe mostrar amabilidade. E como vou ser uma das donzelas de Regeane, vim para falar com ele e esse homem ruivo ali, - ela assinalou Gavin um gesto, - começou a rir. Não sei por que. Não acredito que seja cômica. — Ela assinalou Maeniel. – Ele me disse que vai estrangulá-lo e me prometeu que poderei olhar.

—Não vai estrangulá-lo. - Disse Lucila. – E embora o faça, não poderia olhar e obrigado por me colocar a par da situação, menina espantosa.

A face de Elfgifa se obscureceu e o lábio inferior saiu um pouco mais.

—Não sou espantosa. Eu sou encantadora. Regeane diz que sou. Eu te disse onde ela estava quando fugiu. Eu pus fogo em Hugo e o fiz soltá-la...

—Basta. - Rugiu Lucila. - Além disso, como donzela pessoal...

—Não vou ser uma donzela pessoal. - Interrompeu a menina. - Vou ser dama de honra. Póstumo diz que como filha de um Guerreiro sou de classe muito nobre para ser donzela pessoal. Vou a...

—Eu disse, basta! - Ordenou Lucila com uma voz como um bloco de pedra caindo sobre a terra. O olhar assassino que lançou para as cortinas do triclinio prometia brutais conseqüências para os responsáveis por aquela travessura. –Assim estão se divertindo um pouquinho com o noivo, certo? — Ela disse em um tom falsamente meloso.

Som de pés que se afastavam rapidamente seguiu suas palavras. Elfgifa manteve sua posição e puxou duas vezes do manto de Maeniel e sussurrou:

—Se aproxime. — Ela olhava Gavin com apreensão. Maeniel se inclinou obedientemente e Elfgifa aproximou os lábios de sua orelha. - Sabe o que diz meu pai dos homens ruivos?

—Não. - Sussurrou por sua vez Maeniel.

—Diz que Judas tinha o cabelo vermelho.

A face de Maeniel se convulsionou de risos. Gavin, que havia ficado com a boca aberta, levantou-se zangado:

—Espere um maldito momento...

Maeniel se endireitou, com a mão sobre os cachos dourados de Elfgifa.

—Gavin pode ter o cabelo vermelho, - ele disse, - mas não acredito que seja aparentado do apóstolo.

—Isso espero. - Disse Elfgifa, lançando outro olhar de suspeita ao capitão. - Meu pai diz...

—Acabou. - Disse Lucila. - Esse teu pai te encheu a cabeça de insensatez. Entre em casa e não nos incomode mais. Agora mesmo! – Ela ordenou com uma palmada.

A moça que havia aberto a porta apareceu novamente, com expressão adequadamente afligida. Pegou Elfgifa da mão como se fosse a levar-lhe, mas Maeniel baixou um joelho no chão ao lado da menina e olhou para Regeane. Aliviado, viu que sua palidez cerúlea havia desaparecido e a cor alagava suas bochechas.

—Será um bom senhor para Regeane, não é? — Perguntou Elfgifa. - Meu pai diz que se o homem for a cabeça da casa, a mulher é seu coração. E um homem sem coração não é mais que um cadáver. — Elfgifa falou rapidamente mas com claridade, para assegurar-se de que Maeniel entendia.

—Sim. - Prometeu ele. - Serei. Nunca poderia descuidar de meu coração, pequena. Então fique tranqüila. Darei-te as boas-vindas em minha casa como dama do honra de minha senhora.

A criada levou Elfgifa rapidamente e Regeane ficou frente à Maeniel. Ela viu um homem alto, um pouco por acima do normal e de corpo maciço. Os músculos avultavam-se em seus braços nus. Ele usava calça com perneiras cruzadas e uma grossa camisa branca de linho, o bastante longa para ser uma túnica. Em cima da camisa usava uma cota de malha. Seu manto marrom estava preso ao ombro por um broche de ouro, com uma cabeça de leão com grandes olhos de rubi. Sua face era o que mais chamava a atenção. Era poderosa, de nariz forte, queixo fendido e com um ar de aparente severidade. Mas as profundas linhas de riso ao redor da boca e as rugas junto aos seus olhos indicavam que ele era um homem que sorria freqüentemente e amava o riso. Em conjunto, uma face amável, forte e segura. Seu cabelo era espesso, escuro e rebelde, que estava solto sobre seu pescoço e sua testa. Ele usava-o curto; o cabelo longo era um estorvo para um guerreiro e não encaixava bem sob um elmo. Estava claro que ele era um guerreiro, pois carregava uma longa espada, singela e prática, em um cinto de couro de boi.

Fascinado, Maeniel se aproximou de Regeane como se estivessem sozinhos. Ela estava no jardim da cozinha com Lucila e vestia um manto de lã marrom sobre seu singelo vestido branco. Sujeitava as pontas do manto, onde colocara alguns pêssegos tardios, que pegara das árvores de Lucila. Seu cabelo estava recolhido para trás, caindo livremente sobre suas costas, com as pontas de prata brilhando ao sol. O lobo em Maeniel subiu e cheirou o perfume dos pêssegos e a carne aquecida pelo sol e o vento limpo.

Então. Pensou Maeniel. Então fui capturado há tempo. Eu era um lobo, mas Llama me converteu em um homem e um guerreiro. Então fui capturado e agora, uma formosa mulher o faz novamente.

Maeniel deu um passo mais. As mãos de Regeane estavam ocupadas pelo manto, e quando o braço de Maeniel passou em torno de sua mão, ela pensou absurdamente Vão cair os pêssegos.

Seu beijo foi casto, suaves lábios fechados sobre os dela, mas havia tal naturalidade na força dos braços em torno dela e sua presença no abraço, que todo o corpo de Regeane estremeceu, sem que nunca chegasse ou seja se tinha sido de medo ou de desejo. Ela relaxou contra um corpo tão forte que parecia feito de pedra aquecida pelo sol. Seus lábios se abriram ligeiramente, mas Maeniel não aproveitou sua vantagem. O beijo terminou e ele deu um passo para trás, liberando-a de seus braços e de seu feitiço.

—Felizes são as palavras do poeta. – Ele disse: - "Ela é uma formosa pedra preciosa do reino de sol e do vento, uma taça de mel. Um homem poderia afogar em tal doçura". Posso pegar um pêssego?

—Um... O quê? — Perguntou Regeane, aturdida. Voltou em si com um estremecimento e estendeu o manto para Maeniel. – Foram tocados pela geada. – Ela advertiu.

—Como seu cabelo, deliciosa dama. - Respondeu Maeniel enquanto escolhia uma das frutas cobertas de veludo. Ele a comeu em poucas mordidas, sustentando o olhar de Regeane. Ele atirou o caroço em um leito de flores. - Delicioso, amadurecido e estranho. – Ele disse. - Como quem me deu. — Os sucos da fruta brilhavam sobre seus lábios.

Regeane se permitiu um ligeiro tremor enquanto tentava se recuperar. Sabia que em algum lugar, a loba estava deitada sobre um leito de flores, com as quatro patas para o ar, retorcendo-se em deleite. Ela lançou um pensamento a sua escura companheira: Você é horrível. À loba não se importou.

Lucila olhava os dois com um olhar parecido ao horror. Gavin olhava também, com a boca aberta.

—Feche a boca, Gavin, antes que lhe saiam os miolos. - Disse Maeniel. – Traga os presentes que trouxemos para a dama.

Lucila pegou rapidamente os pêssegos do manto de Regeane e lhe arrumou um pouco o cabelo que havia se soltado e estava ao redor de sua face.

—Não esperávamos vê-lo tão logo. - Disse.

—É certo. - Confirmou Regeane. - Esperava te conhecer esta noite na festa. —Ela olhou sua roupa. - Temo que não esteja vestida adequadamente. Sinto muito...

—Não se desculpe, por favor. - Disse Maeniel. - Sou eu quem deveria pedir perdão por vir sem anunciar.

Gavin pigarreou e esvaziou os alforjes sobre a mesa de mármore.

Mesmo Lucila que estava acostumada à riqueza ficou boquiaberta ao ver tanto ouro e de todo tipo. Havia colares, anéis, moedas, pingentes, broches... Pedras, preciosas e semipreciosas brilhavam entre o ouro. Rubis de cor vermelha escura, safiras azuis como o céu do crepúsculo, a água clara das água marinha e topázios coloridos pelo sol acendiam a massa de riquezas.

—Um presente de bodas para minha futura esposa. - Disse Maeniel.

Lucila lhe lançou um rápido olhar calculista.

—É um homem generoso, ao fazer rica e independente sua mulher antes das bodas.

—Ela é uma dama da mais alta realeza e deve manter sua propriedade de forma adequada. - Respondeu Maeniel.

Regeane ficou contemplando a riqueza estendida ante ela. Mordeu o lábio sem saber o que fazer. Olhou para Maeniel. Em seus braços, ela havia sentido como se conhecesse desde mil anos atrás, mas agora ele lhe parecia um estranho. Um estranho agradável, sim, mas um estranho. E então recordou que ele era um homem a quem possivelmente teria que matar algum dia. Ele cobriria de ouro à mulher e a mulher saciaria todos seus desejos do êxtase entre seus braços. Mas o que tinha ele para a caçadora, a caçadora prateada da meia-noite? Não, ele nunca poderia conhecer a loba.

Regeane olhou a riqueza sobre a mesa e a loba pensou na trêmula luz do sol sobre um lago montanhês à alvorada ou em uma cascata sob o arco íris, vista através da fresca escuridão verde de um bosque de verão. E as jóias pareciam às bagatelas oferecidas às criadas no mercado dos ladrões. Não, a loba não era tão fácil de comprar ou vender.

Maeniel a olhava com uma expressão fixa, calculista. Revolveu despreocupadamente o monte de ouro com a mão: —Por favor, - ele disse, - escolha algo para usar esta noite. Como um agrado para mim.

—É obvio. - Disse mecanicamente Regeane.

Ele pegou um formoso colar de ouro puro. Regeane e Lucila compreenderam que era muito antigo e de um feitio tão delicado que devia ser precioso e inclusive de valor intrínseco. Uma confecção de cântaros diminutos se alternava com flores de ametista suspensas em uma grossa e plaina corrente de ouro.

Regeane tocou o colar. Sua mão se fechou sobre ele e o dia desapareceu como quando tocou o vestido no mercado, no dia que conheceu Lucila. Estava em um longo salão brilhantemente iluminado com tochas, rodeada de festa e alegria. Os convidados ocupavam leitos que se estendiam por toda a estadia. Um moço tocava uma flauta. Sua música enviava um arrepio de abandono e desejo por suas veias. Estava sentada perto de seu amor.

Ele ocupava o leito oposto ao dela. Que estranho é o coração. Pensou a moça que era e não era Regeane. Ele não era um homem impressionante. Tinha uma barba curta, frisada e escura e um cabelo igualmente escuro e encaracolado. Sua pele tinha o aspecto curtido pelo ar livre de um marinheiro, o colar de ouro e ametista era um presente dele. Ela o acariciou brandamente enquanto fitava seus olhos. Havia um olhar orgulhoso e sábio neles e ela se sentiu serenamente consciente de que compartilhariam aquela sabedoria quando estivessem juntos antes do amanhecer.

Ele elevou uma bela taça de cor negra e vermelha. Sua parte inferior, um pouco obscurecida pelo vinho, mostrava a imagem de Vênus com Marte, ambos presos pela rede do Vulcano. Seus corpos estavam travados em um frenesi de desejo, indiferentes às malhas que os rodeavam.

Ele torceu o braço e levou a taça aos lábios dela. Regeane elevou a sua e a ofereceu. Com os braços entrelaçados, eles beberam juntos. A cena desapareceu. Regeane esteve a ponto de gritar quando uma aguda dor atravessou sua mente e seu corpo como um fluxo de tormenta.

Agora estava em alguma outra parte. Jazia em um féretro e estava vestida para um enterro, mas ainda não estava morta. Usava seu melhor vestido branco, bordado com rosas de ouro, o colar e um diadema. Não podia ver o diadema, mas estava segura de que conhecia sua forma: uma coroa de folhas de salgueiro dourado finamente forjadas. Não se moveu, pois soube instintivamente que inclusive o menor movimento lhe ocasionaria uma dor intolerável. Devia ter quebrado quase todos os ossos do corpo ao cair.

Através da janela, ela podia ouvir o estrondo do mar ao se romper contra a borda rochosa. Mas a seu redor só havia escuridão. Alguém falou entre as sombras, com uma voz carregada de lágrimas.

—Ela despertou. Esperava que não o fizesse.

A moça que era e não era Regeane reconheceu a voz de sua mãe.

A mulher saiu da escuridão. Estava vestida de negro, com sua face pálida contra a escuridão. A seu lado estava uma sacerdotisa, também vestida de negro e com um bastão, que usava uma máscara de gorgona, com a boca retorcida de fúria e serpentes agitando em seu cabelo. O bastão estava coroado pela deusa da papoula, com as vagens cruzadas como uma coroa e os olhos fechados.

—A flor do sonho. - Sussurrou Regeane.

—Não devia ter caminhado tão perto das rochas. - Soluçou sua mãe. - Não em sua condição. Você caiu.

—Não caí. – Regeane ouviu à moça dizer fracamente.

—Não. - Disse a sacerdotisa, com sua voz amortecida pela máscara. - Supus que não. Bem, agora é como desejava. O homem que amava não está, a criança carregava em seu seio não está e logo, você tampouco estará. — Ela estendeu uma taça a Regeane, das mesmas cores negra e vermelha. A imagem do cálice era do gênio do sonho, um formoso jovem com os olhos fechados e asas nos ombros. - Beba agora as águas de Leteo e encontre o descanso.

A moça fechou os olhos e apertou os lábios.

—Me levem para perto fogo. – Ela disse. - Não quero morrer aqui, com o mar soando em meus ouvidos. O mar me tirou tudo. Suas ondas o golpearam, a água o afogou, deixando só a carne açoitada pela tormenta. Não quero ouvir sua raiva triunfal enquanto me afundo na noite.

Levaram-na em seu féretro ao centro do salão de colunas vermelhas. O lugar era alto e arredondado, caiado e pintado pelo beiral. O fogo ardia elevando-se para uma abertura do teto. As chamas tingiam os rostos dos homens e mulheres reunidos. Alguns choravam, outros olhavam desaprovadores com olhos de pedra, mas todos levantaram a mão, um a um.

Então o cálice tocou seus lábios. A fumaça do fogo encheu suas fossas nasais e sua luz lhe deslumbrou.

Regeane olhou de longe como avançava a comitiva fúnebre pelos caminhos, através do mosaico de campos de grãos amadurecidos. As cabeças se inclinavam, murmurando seu pesar sob um aprazível céu azul.

Escuridão... Uma longa escuridão.

A tocha dos ladrões de tumbas penetrou pelo telhado. Onde uma vez houvera beleza havia só osso enegrecido por tanto tempo clandestino. Mas os dentes continuavam brancos e o ladrão soube enquanto via o resplendor de púrpura e ouro em sua garganta que ela devia ter sido jovem.

Pegou o colar e o escuro crânio e saiu, rompendo, caindo com um ruído surdo sobre o chão. Já tinha o colar, mas havia colocado uma mão sobre o peito do cadáver enquanto se inclinava para pegá-lo, afastando uma mão sobre o leito de pedra. A mão de osso caiu e as longas unhas seguravam seu braço e o abriram até o osso. O grito do ladrão ressoou nos ouvidos de Regeane enquanto arrancava o colar do pescoço e o sujeitava ante ela, ofegando.

—Não... Acredito... Que esse não.

—Não. - Disse Maeniel. Ainda estava sustentando o colar e o deixou cair entre o resto do ouro.

Regeane seguia estremecida pelo terror de sua visão. Aventurou outro olhar para Maeniel. Estava sendo colocava a prova, avaliada.

Maeniel pegou outro, singelo mas de ouro maciço, com gravações nos extremos.

—O que pensa desse, então?

Regeane o pegou, fechando os dedos sobre ele.

Novamente escuridão e o som do mar. Uma pira flamejava em uma ponta de terra. Ao redor de Regeane tudo eram sons de pesar e angústia. O vento afastou as chamas por um segundo e Regeane pôde ver a escura figura em seu interior. E soube que com aquela mulher perecia também todo seu mundo. Compreendeu que a escuridão era a escolha e o violento mar um canto funerário, não por uma mulher, mas sim por todo um povo.

Regeane afastou a mão rapidamente.

—Não. – Ela sussurrou inexpressiva. O que me está fazendo? Ela pensou.

—Talvez tenha razão. - Disse Maeniel enquanto deixava o colar com as demais jóias. – Este, dizem que pertenceu a uma poderosa rainha, que nunca foi derrotada em batalha.

—Não seria apropriado para mim.

Maeniel levantou uma massa de correntes de ouro com um dedo engarfado. Era outro colar, feito de finas correntes douradas de ouro vermelho, amarelo e branco, com adornos de cachos de uvas nos quais, cada um era uma pérola.

Regeane o pegou, perguntando que truque estaria tentando o homem. Daquela vez teve uma visão da manhã: Maeniel jazia sobre uma pedra no centro de um círculo de menhires. Estava nu. Sua carne jovem era bela sob a suave luz. Seu rosto era o de um homem muito mais jovem e os musculosos membros estirados em uma relaxação voluptuosa eram como os de um adolescente.

Novamente, como com o pastor da Campânia, Regeane teve consciência da completa vulnerabilidade de seu sonho inocente. Havia uma mulher sentada junto a ele, vestida somente com o colar que sustentava Regeane. Tinha um pente de prata na mão e estava arrumando seu longo cabelo escuro. Havia um ar inconfundível de complacência e poder em seu olhar quando a desceu para o adormecido Maeniel.

Regeane afastou a mão do colar.

—Este, suponho. – Ela disse.

Maeniel o colocou brandamente ao redor de seu pescoço. Depois pegou a mão de Regeane e a beijou.

—Agora me despedirei de vocês, senhoras. Até esta noite. – Ele disse a Regeane. E partiu do jardim seguido por Gavin, deixando Regeane e Lucila junto às ninharias de ouro sobre mesa.

 

                                                     CAPÍTULO 28

Quando ela esteve segura de que eles haviam partido e ouviu ser fechadas as portas da entrada, Regeane tirou as jóias e as deixou sobre a mesa com o resto.

—É mais do que parece. – Ela ofegou enquanto cambaleava para um banco. Sentou-se pesadamente.

—O que acontece com essas coisas? — Perguntou Lucila. - O que aconteceu? Você teve visões?

—O bastante para ver que não é um homem comum. Mas não posso imaginar o que é. Um mago, talvez... Não sei.

—Moça, - disse Lucila, amontoando o ouro e começando a colocá-lo novamente nos alforjes, - me fale com coerência. Diga-me o que acontece. Vi sua face quando tocou o primeiro colar e parecia que havia visto uma dúzia de fantasmas.

—Assim foi, de certo modo. Alguns objetos levam consigo a lembrança de acontecimentos, bons e maus, com os que estiveram relacionados. Estão vivos, nesse sentido. Recorda o vestido da carreta quando nos conhecemos? Que descrevi como vil?

—Sim.

—Bem, todas estas peças de joalheria estão vivas... Dessa forma. Estou segura de que ele as escolheu a propósito.

—Se o fez, você se delatou por completo. A dissimulação não é uma arte natural em você.

—Não mesmo, não é? — Admitiu Regeane enquanto se sentava no banco, retorcendo-as mãos com desespero. Podia sentir as lágrimas que desciam por seu rosto.

—Basta. - Ordenou Lucila. - Não é momento para lágrimas, mas de pensar com claridade e fazer planos. Devemos decidir o que faremos com este homem. Agora, enquanto ainda está em Roma. O Conde Otho me ouve, se consigo lhe convencer de que esse Maeniel poderia trair aos francos...

Algo quente e suave caiu com delicadeza sobre o colo de Regeane e ela sentiu uma mão que lhe apertava o ombro, consoladora. Piscou, levantou o olhar e viu o manto de seu pai. O levou ao peito e secou suas lágrimas com ele. O amor e uma insuportável sensação de perda, alagou-a, cegando-a ao mundo que a rodeava. Seus pais falharam um com o outro e de certo modo haviam falhado com ela. Regeane pensou, recordando o amor ferido de sua mãe. Mas apesar de estar influenciada por seus ensinos religiosas e a malícia do mundo, sua mãe amara. E os braços de seu pai haviam sido sua força nos canhões do inferno.

Ela o avistara entrar no bosque. Esperava-o ali Gisela, segura de seu perdão e o de Deus? Era a morte somente um sonho de qual despertamos em um jardim de luz? Regeane viu Antonius ao seu lado, sorrindo.

Era belo novamente. Umas poucas cicatrizes esvaídas marcavam os finos traços aristocráticos, mas pelo resto parecia um homem sadio e na flor da vida. Estava magro e vestia a túnica bordada e a toga de um nobre romano. Os dedos sobre o ombro de Regeane estavam intactos e eram poderosos, firmes e fortes. Ela conseguira. E a sensação de vitória sobre a morte afastou os demônios da dúvida e do desespero como o sol faz com que a névoa se desvaneça.

—Deixe que chore se deseja, Mãe. - Disse Antonius amavelmente. - Há um momento para as lágrimas e me acredite, sei que podem aliviar o coração.

—Cale-se, Antonius, estou pensando. Se pudermos convencer Otho de que...

—Sempre intrigando, não é, Mãe?

—Sim. - Respondeu Lucila. – Você conhece minha mente. É o mais sagaz de meus filhos. Diga-me como poderíamos convencer ao Conde Otho de que esse Maeniel é perigoso.

—Eu não me incomodaria. - Replicou Antonius. – Pelo menos já não. Vi Otho esta manhã.

—Sim. - Disse Lucila. - É obvio, deve ter urgentes raciocínios políticos para estar aqui.

Antonius assentiu.

—Quer ver se há algo de certo na história que estão difundindo os lombardos, de que a família de Adriano está tocada pela lepra. - Disse Regeane.

—Não é lerda, certo, Mãe? — Comentou Antonius. - Em todo caso, eu o vi esta manhã e desmenti todos os rumores. Inclusive me despi em sua presença.

—Tentou te seduzir? — Perguntou Lucila.

—Não acredito que essa seja uma de suas debilidades.

—Que lástima, sempre é ter um bom ponto de apoio com esses bárbaros. Pretendem que desprezam o afeminado.

—Sim. - Confirmou Antonius. - Foi uma espécie de prova. Não obstante, quando deixei claro que os rumores não eram mais que um truque lombardo, convenci-o seria uma boa idéia me nomear capitão do guarda de Regeane.

A moça deixou fugir um suspiro de alívio.

Lucila aplaudiu, elevando os olhos para o céu: —Um golpe professor! – Ela gritou enquanto abraçava o filho. – Oh, meu filho, meu formoso e perfeito filho... —As lágrimas corriam por sua face. - Como poderei agradecer a Regeane?

Antonius se liberou brandamente do abraço da mãe e lhe beijou a mão.

—Acredito que te ocorrerá algo, Mãe. – Ele disse com uma ironia quase tenra.

—Querido... —respondeu Lucila.

Mas Regeane viu uma faísca de malícia igualmente sutil em seus olhos.

—Seu pai estaria orgulhoso de ti. - Continuou a mulher.

—Quem? — Perguntou Antonius com ar inocente. - O pirata de barba negra, com seus músculos e cicatrizes? Ou o poeta siciliano que ganhou seu coração com canções? Acredito que era muito aficionado ao vinho. Não me contou que morreu em uma briga de botequim?

Lucila o olhou amargamente por um momento.

—Só tentava fazer com que estudasse suas lições, não tem idéia do quanto é difícil conseguir que um moço travesso se aplique. Ou pelo menos não até que seja pai.

Antonius piscou um olho para Regeane.

—Esta fantasma procissão de pais me guiou toda a vida. – Ele suspirou. - Acredito que o melhor era o da Sombra que cheirava a alho e cebola. Ela inventou-o quando eu ia partir com Adrastea.

—Eu não gostava de Adrastea, mas lembro-me que aquilo não o deteve.

—Não. - Disse Antonius, sentando no banco junto a Regeane. - Obrigado por não dizer "Eu te adverti". Diga-me, de verdade estaria meu pai orgulhoso de mim?

Algo mudou no rosto de Lucila. Seus olhos cobraram um aspecto enfeitiçado. Por um momento, pareceu encolher sobre si mesma e seu aspecto era quase o de uma velha, mas ela se recuperou imediatamente. Ergueu-se, com os olhos cintilando.

—Querido, estou segura disso. Mas tenho uma pergunta mais importante que a fazer... Está apaixonado pelo Regeane?

—Lucila! — Gritou Regeane.

Mas Antonius jogou a cabeça para trás, sorrindo.

—Quer dizer, Mãe, que se for usar minhas sutis habilidades como correio, meu encanto pessoal e meu ar aristocrático para arruinar sua vida e a minha?

—Em uma palavra, sim.

—Não. - Respondeu Antonius, começando a enumerar as razões com os dedos. Primeiro, devo-lhe muito para colocá-la no perigo que acreditaria ser um assunto amoroso. Segundo, ela não é meu tipo. Já sabe o tipo de mulher que eu gosto: vulgar, um pouco estúpida, desavergonhada e cruel.

—Esqueceu de mencionar a cobiça.

—Sim, isso também. Acredite-me, Mãe. Meu comportamento será irreprochável.

—Assegure-se disso. Que não possa haver suspeita sobre ti. E recorda que as aparências podem enganar. Inclusive as ações mais inocentes podem ser mal interpretadas, insinuando culpa onde não a há.

—Mãe, você tem tendência a exortar.

Lucila colocou o resto do ouro no alforje.

—O sermão terminou, espero que ambos o recordem. – Ela disse, e partiu com o ouro.

Regeane continuou sentada em seu lugar. Antonius guardou silêncio.

Uma mariposa se deteve em sua busca de néctar entre as flores e se pousou sobre seu joelho, baixando suas asas em uma vela. Os olhos de Regeane e os da loba distinguiram as nervuras endurecidas que mantinham a forma das asas poeirentas. Então a mariposa as desdobrou novamente e se afastou voando.

—O que pensa de Maeniel? — Perguntou Antonius.

—Eu gostei. Quando me abraçou, queria ser sua esposa.

—É isso possível?

—Não estou segura.

—Sim, eu sei. Quando estava tranqüilizando minha mãe sobre nossa relação no futuro, não mencionei uma terceira razão para não poder te olhar como amante: não é humana.

—Não. - Admitiu ela em voz baixa.

Uma libélula passou voando junto à face de Regeane e ela moveu a mão rapidamente, apanhando-a pelo tórax. Sustentou-a por alguns momentos, com ela se debatendo e zumbindo indignada, antes de soltá-la e deixar que seguisse seu caminho em paz.

—Conhece muitos humanos capazes de fazer isto tão facilmente?

—Muito poucos, possivelmente nenhum. Enjaula à loba, Regeane.

—Não. - Respondeu ela. – Na noite que Basílio te seqüestrou, ele tentou me matar. Naquela noite a loba encontrou sua liberdade. Serei livre ou estarei morta. É assim simples. Não posso eliminá-la, somos uma só.

—Então, sempre estará em perigo.

—Sei. E esse Maeniel é um formidável oponente.

Antonius assentiu.

—Já havia me dado conta. Por que acha que me converti em capitão de sua guarda? Para te proteger e para acautelar qualquer pequeno e letal plano que possa estar incubando minha mãe.

—Alguém deveria dizer a sua mãe que o assassinato é mal visto em certos círculos.

—Não nos círculos nos quais vamos mover nos você e eu, Regeane. Ali é um instrumento político. Compreende?

—Sim. - Disse ela. – Ou pelo menos começo a compreender. O sangue de um rei corre por minhas veias junto com o de lobo. E nunca poderei fugir dos perigos que ambas supõem. Devo aprender a me defender.

—Quanto a minha mãe, não vou pedir desculpas por ela, não as necessita. Você não sabe como era Roma quando os lombardos controlavam o papado. — Antonius inclinou a cabeça. - Um novo assassinato cada dia, normalmente de algum amigo de minha mãe ou de Adriano. Ele era muito popular entre os nobres e o povo, para lhe atacar abertamente, mas houve muitos atentados contra sua vida. Lembro-me muita bem à noite em que foi envenenado... Durante um jantar na vila de um homem que considerava seu melhor amigo. Minha mãe lhe deu remédio para provocar seu vômito enquanto eu sustentava a cuba. Vomitou um jantar muito bom que o teria matado se tivesse seguido em seu estômago. Durante muitos anos, minha mãe apenas se atreveu a sair durante o dia e nunca à noite. Uma vez foi atacada por um grupo de soldados lombardos e acredito que só sobreviveu porque deu um ânimo sobrenatural a seus homens ao pegar uma espada e lutar junto a eles. Eu mesmo atravessei os Alpes para ir a corte dos francos e fazer a aposta de minha mãe.

—A aposta?

—Sim, sobre que rei franco prevaleceria, Carlos ou Carloman.

—Suponho que fez a escolha correta...

—Carlos. - Assentiu Antonius. - Tinha suas cartas apoiando a candidatura de Adriano ao trono papal. Quando a saúde do Papa lombardo começou a falhar...

—Espero que sua mãe não tenha nada a ver com isso!

Antonius fez uma pausa, com uma expressão calculista no rosto. Levou lentamente um dedo aos lábios.

—Minha mãe, - ele sussurrou, quase para si mesmo, - é uma bruxa sem princípios, mas não acredito... — ele começou a suspirar, mostrando alguns dentes brancos e fortes. - Bom, prefiro não lhe perguntar. Em qualquer caso, aquelas cartas circularam entre os sacerdotes e patrícios aqui em Roma, encarregados de escolher o novo Papa, o que virtualmente garantiu a vitória de Adriano. Mas esteve muito perto, Regeane. As amigas de Minha mãe e suas garotas, revelaram em duas ocasiões tramas contra a vida de Adriano. E uma vez ele teve que fugir da cidade e esconder na propriedade de um amigo.

Regeane estremeceu, embora o ar fosse quente. A loba olhava curiosa o jardim através de seus olhos. Podia sentir a indefinição da fera frente à intriga, a traição e o engano. Seu próprio coração ansiava a simplicidade do selvagem. Tinha fome e caçava. Estava enfurecido e lutava. O amor era um jogo de sombras à luz da lua, governado pela oportunidade e a escolha, não pela força ou a política. A rendição de todo o ser ao prazer e o desejo. A fêmea é respeitada: dá vida, é vida. Seu corpo é um templo. A fera não usa a força. A poderoso assassina de fortes tendões, a senhora das horas entre a meia-noite e o amanhecer, rende culto no templo do amor.

—Sim. - Disse Antonius. – Soa tentador rechaçar o mundo.

Regeane se sobressaltou um pouco.

—Como soubeste?

—Suponho que se eu pudesse fazer o mesmo que você, também estaria tentado.

—Parece desfrutar do jogo, pelo jogo mesmo.

—Sim. E se for preparada, também aprenderá a desfrutar. Porque temo, Lupa, que vais jogar toda sua vida.

—por quê?

—Esse Rei Carlos... Os homens já começam a lhe chamar de Carlos o Grande, Carlo Magno. Eu estive com ele na noite que escreveu as cartas que asseguraram a escolha de Adriano como Papa. Aquelas cartas foram escritas em segredo, Regeane. Seu irmão Carloman vivia ainda. Carlo Magno estava casado com uma princesa lombarda e sua mãe favorecia uma aliança com os lombardos. Mas Carlo Magno já estava preparando o terreno para a atual política franco. — Antonius elevou uma mão e suas palavras fizeram com que a cena cobrasse vida ante Regeane. - Estávamos sozinhos em sua câmara, além do escrivão. Carlos não sabe escrever, embora possa ler bem em três ou quatro idiomas. Tínhamos somente umas poucas velas de junco e o escrivão trabalhava em excesso sob sua luz. Carlos andava de um lado a outro, com as mãos às costas. Não só devia ter tido presente à importância daquelas cartas durante muito tempo, mas também todas e cada uma das palavras que queria usar, pois o escrivão não teve que fazer nenhuma só correção no pergaminho. E não falava só com a confiança de um rei, seu porte era o de um imperador. Quando terminou de ditar e o escrivão estava selando as cartas que eu devia levar a Roma, perguntei-lhe como podia estar tão seguro de que levaria seus planos adiante. Ele explicou-me muito claramente: "Meu irmão o rei Carloman está doente, como terá observado. Será um milagre se ele sobreviver outro inverno. Os senhores francos não apoiarão sua esposa, uma mulher estrangeira e nem a seus filhos. Não contra mim. E quanto às simpatias de minha mãe para os lombardos, bem, ele disse com um ligeiro sorriso, um assunto de família e me ocuparei dele quando chegar o momento." E o tem feito, Regeane. Carlos, Carlo Magno, vai converter-se em um rei muito poderoso. Sua conexão com sua família se tornará ainda mais valiosa e mais arriscada para você. Deve aprender os caminhos do poder mundano ou morrerá.

Regeane podia sentir as batidas de seu coração.

—Se não manter a loba enjaulada, - disse Antonius, inclinando-se e apoiando a mão no joelho, - aprenda pelo menos ser discreta. Já há muita gente em Roma que sabe.

Ela ficou em pé de um salto e olhou para Antonius, com os punhos crispados.

—O pastor! Não o...

Antonius elevou uma mão, para tranqüilizá-la.

—Não, Regeane. Embora me custasse convencer minha mãe para que não o eliminasse.

Regeane se voltou, tremendo.

—O que é que sou, que estendo a morte por toda parte?

Antonius deixou escapar uma risada.

—Se serene, moça. A morte é parte do jogo. Para os grandes e para os humildes. Verá fracasso, derrota e sim, morte a seu redor enquanto viver. O rapazinho não arriscou sua vida só por ti e por mim, mas também por pérolas e prata suficientes para comprar uma granja. Terá sua vida e sua granja, assegurei-me que isso. Reserve suas lágrimas e suas recriminações para uma causa melhor.

A jovem se aproximou de uma das colunas do alpendre e se apoiou nela.

—Como você se parece com sua mãe.

Antonius riu.

—Sim. Mas não só sou como minha mãe, já descobrirá com o tempo, sou pior. Mas seque essas lágrimas, pois esta noite deve estar encantadora.

Regeane fechou os olhos por um instante. Sua mente flutuava. Recordou as mãos de Maeniel sobre seu corpo. Aquilo não era amor, mas era alguma coisa. Seria o resto igual de bom? A loba emitiu um suave som de puro deleite, seus desejos estavam muito claros para Regeane. O sol era quente sobre a face da mulher e brilhava através de suas cílios. O ar era fresco, mas as pedras fora da cidade conservariam o calor do sol. A loba queria se estender sobre uma delas e passar a tarde dormitando. Sonharia com a primavera, com água que corria da montanha congelada durante todo o inverno e que se convertia em uma enchente com o degelo. Com prados onde o delicado aroma da vegetação e das flores que acabavam de brotar enlouqueciam os sentidos até o êxtase. Com vales banhados pelo sol onde só se ouvia o canto dos pássaros, que guardam silêncio quando as longas sombras azuis do ocaso se convertem em uma noite cheia de estrelas.

Regeane abriu os olhos e Antonius lhe sorriu.

A loba passou além da mulher. Sentiu o frio, mas triste intelecto do homem. Antonius sabia o que era o mundo, mas não se envaidecia de seu conhecimento. E mais além do intelecto, ardia a chama de um amor gentil e duradouro. A loba lhe deu sua confiança.

—A quem tenho que encantar?

—Primeiro, saudará os homens que vão ser sua guarda. Recomendo-te que procure nesse alforje cheio de ouro que te deu Maeniel e faça um bom presente a cada um deles: devem saber quem os paga. Um toque de, alegra-me tanto que vós, sois fortes e bonitos homens, protejam minha delicada beleza do perigo, tampouco estaria mau.

Regeane sorriu.

—Isso. - Disse Antonius. - Reparta esse sorriso generosamente e conseguirá mais que o ouro. Depois, conhecerá Rufus.

—Rufus? —Regeane franziu o cenho. - Quem é... O Rufus de Cecília? —Ela perguntou, recordando-se.

—Sim. Recorda-se de Cecília?

—Claro. - Sussurrou Regeane. - Como poderia esquecê-la? Mas como é que você a conhece? Dizem que nunca sai do convento.

—Você é uma menina, Regeane. - Disse Antonius, meneando a cabeça. - Sim, ela nunca sai do convento, mas tem um fluxo quase constante de visitas. E com freqüência se trata de visitantes muito aristocráticos, diria eu. Dulcina e você receberam sua aprovação e seus tapinhas nas costas. Ela disse que a achou doce, compassiva, apaixonada, engenhosa e encantadora. Por não mencionar atraente.

—Só atraente? — Disse Regeane, um pouco decepcionada.

Antonius fez um elegante gesto com a mão, imitando Cecília:

—Uma beleza, querida, que não aturde, mas que atrai. Que não desvanecerá com o tempo, mas que aumentará até se converter em uma magnífica presença.

Regeane sorriu e fez uma reverência.

—Seja como for, - continuou Antonius, - sua aprovação chegou aos ouvidos de Rufus que lhe suplica que interceda por ele ante Cecília.

Regeane se afastou de Antonius, aproximando-se da estátua coberta de musgo, de uma moça que derramava água no lago. Uma suave brisa agitou a superfície, rompendo o reflexo do sol em lascas de luz. Uma carpa pegou um inseto que patinava entre os reflexos, desaparecendo depois nas profundezas com uma sacudidela de seu musculoso corpo.

—Não servirá de nada. – Ela disse.

—Eu sei, Regeane. Mas não tem que prometer que Cecília te dará conta, só que irá falar com ela.

—De acordo então. Eu irei.

—Muito bem. As terras de Rufus estão muito perto de Roma. Até agora ele se manteve leal ao duque lombardo, mas se minha mãe e eu conseguirmos lhe convencer para que se uma a nós, Basílio não poderá conseguir lugar em Roma. De fato, ficará isolado e em território inimigo. Rufus tem seus próprios homens, lutadores experimentados e leais a ele. Não esqueça que este jardim pode ser pacífico, mas do outro lado dos muros a cidade é um caos. Só nos protege o medo de Basílio a atacar abertamente os francos. Faça o quanto possa por agradar Rufus e ganhá-lo para nossa causa.

Ela assentiu tristemente.

—O último, é obvio, é Gundabald.

Os lábios de Regeane formaram uma estreita linha.

—Sua mãe deixou muito claro o que devo lhe dizer.

—Bem... — Antonius baixou o olhar para seus joelhos, com um torcida sorriso, negando-se a enfrentar os olhos em chamas da jovem. – Bem, - ele repetiu. - Suponho que quanto menos se diga será melhor.

 

—Não há nada errado nela. - Disse Gavin enquanto cavalgavam rua abaixo, afastando-se da casa de Lucila. Ele soava feliz.

—Há sim. E muito. - Disse Maeniel. - Mas não estou seguro do que.

—Maeniel, - avisou Gavin, - já me está deixando nervoso.

—Não olhou para ela quando tocou as jóias?

Gavin se sacudiu um pouco e logo recordou que não estava em sua forma peluda. O gesto revelava estranheza entre os lobos.

—Direi-lhe de outra maneira. - Seguiu Maeniel. - Segundo todas as nossas referências, a garota é pobre. Atuou como uma mulher normal recebendo um magnífico presente?

—Não. Certamente que não. Parecia suspicaz e um pouco reservada.

—Tinha suas razões, o primeiro colar que lhe dei era realmente maldito. Eu nunca pude suportar seu contato mais que alguns momentos. Ela deve ter sentido, como aconteceu comigo, o destino fatal da mulher que o levou a primeira. A segunda jóia pertenceu a Genebra.

—O que? — Gritou Gavin.

—Genebra.

—Essa Genebra?

—Não há outra.

—Era uma zorra. - Disse Gavin e um instante depois um golpe o fez cair no chão. Ele ficou em pé imediatamente, procurando o pomo de sua espada.

Maeniel deteve seu cavalo ante ele, de lado, bloqueando seu caminho. Sorriu.

—Quer provar seus dentes contra mim, cachorrinho?

Gavin sacudiu a cabeça como se tentasse limpá-la.

—Nunca te vi assim. – Disse Gavin, confuso. - O que te tem feito esta cidade? Éramos felizes em nossas montanhas O que eu disse? E não me diga que vai começar a desvairar sobre como conheceu genebra.

—Sim, vou.

Gavin foi atrás de seu cavalo com um ar de dignidade ofendida.

—Não. – Ele gritou. - Não vou lutar contigo. É muito bom e não quero me suicidar. Além disso, - ele refletiu, detendo-se e elevando o olhar para Maeniel. - Doeria-me quase tanto se ganhasse como perdesse. Segui-o fielmente desde que nos conhecemos naquele bosque irlandês.

Maeniel viu que havia lágrimas nos olhos de seu capitão e suspirou profundamente. Gavin perseguia o cavalo traçando um círculo para montar novamente. O animal se afastou justo quando ia montar lhe.

—Quieto, maldito. - Uma pequena multidão se reuniu para ver o espetáculo e alguns zombavam dos esforços de Gavin. Maeniel teve piedade dele e sujeitou a brida dos arreios, permitindo que Gavin sentasse sobre a sela.

—Muito bem. - Disse Gavin, novamente sobre a sela. – Acredito que insultei à dama.

—Sim, acredite. Ela era uma poderosa rainha que nunca foi derrotada em batalha. Mas como posso te explicar um mundo desaparecido há muito? Um mundo que era só uma vaga lembrança dos tempos de seu tataravô? Sinto muito, Gavin. Há momentos nos quais odeio ser humano e este é um deles. Mas não deveria fazer lhe pagar isso.

Eles se afastaram das ocupadas ruas e entraram nas ruínas vazias. O céu era de um claro e brilhante azul invernal e o vento soprava brandamente através da desolação verde e parda.

—Nunca pensei, - disse Maeniel, - que seria açoitado pelas lembranças. Tem razão, Gavin, as montanhas são limpas. Ali vagamos livremente e podemos desatar nossas naturezas. Aqui, em meio a esta corrupção, acho o rosto da humanidade muito real.

—Eu era um homem, mas da forma em que o conta, sei está dizendo a verdade... Você foi primeiro, um lobo. — Gavin parecia impressionado. Não, pior que impressionado, quase afligido pela notícia. – Eu sequer sabia que isso podia ocorrer.

—Ocorreu, pelo menos em meu caso. Nunca perguntei a outros. E você?

—Não — disse Gavin com voz trêmula. - Acredito que não quero saber.

—Eu tampouco e não estou seguro de que tinha que ter te dito isso. Mas é o único amigo que tenho em vários séculos. E me senti... Sozinho.

Gavin guardou silêncio um longo momento.

—Todo lobo e nada de homem. – Ele disse. - Lobo por nascimento e homem por escolha.

—Não, não. Não por escolha. Llama escolheu por mim. Deus, às vezes vos desprezo, Gavin. Não pessoalmente, mas toda a sua espécie. Falam do lobo como um faminto assassino, mas que lobo poderia lhes igualar em crueldade e depravação? Como covardes vocês não têm rival e nenhum assassino se aproxima de vós. Inclusive correm a quatro patas para encontrar uma multidão de amores. Lugares onde colocar o membro e ofegar em êxtase. A mudança de forma é para vós um novo caminho de depravação.

Gavin saltou de seu cavalo e lançou um pedaço de mármore em Maeniel.

—Basta! – Ele gritou.

Maeniel colocou facilmente seu cavalo fora do alcance dos projéteis de Gavin.

O capitão se rendeu, contemplando ofegante como ria Maeniel.

—Você crê nisso, pobre inocente. Verdade? Agora entendo muitas coisas de você. Coisas que tinha visto, mas que não podia compreender. Deus, lembro-me como tratou Riculf. Aquele rei francês, Martel enviou- para cuidar do passo. Não entendeu que estava governando. - A voz de Gavin se elevou em um grito. - Mas você e outros o tratavam como a um deus. Agora entendo por que. Tem...

—Vai dizer um pouco de cães? — Interrompeu-lhe Maeniel, com a voz carregada de ameaça.

—Estava pensando.

—Revise a frase. Diga, tenho a ética de um lobo.

A boca de Gavin ficou seca de repente. Engoliu saliva rapidamente.

Maeniel jogou a cabeça para trás, gargalhando.

—Animais... Os animais não necessitam de ética. Não somos corruptos. São os humanos quem necessita.

Gavin pegou as rédeas de seu cavalo.

—Não entendo como viveste tanto tempo, - ele se queixou enquanto voltava a montar.

Maeniel deixou cair às rédeas de seu cavalo e ficou com as mãos plainas sobre suas coxas, olhando através das ruínas cobertas de vegetação que havia ante eles.

—Eu mesmo não entendo muito bem. Lembro-me quando esta cidade era muito jovem. A Roma eterna, o centro do mundo, cheio de gente. Odiava-a, mas pensava que era invencível. Agora não encontro nada onde governavam os Césares, onde seus nobres patrícios traíam uns aos outros e lutavam pelo poder. Nada mais que vento e silêncio. É uma surpresa. Isso é tudo.

Gavin encolheu os ombros.

—Os lobos não têm história.

—Não. Acredito que não há palavras que sirvam para a forma em que nos unimos e encaixamos no mundo. Nós resolvemos nossos acordos entre nós há muito tempo. Temos palavras como lobos... Palavras para amar, caçar, lutar e matar. Para neve, montanha, vegetação, fogo e estrela. Para muitas outras coisas, mas não para pecado, corrupção e o mal. Todo isso é invenção humana. Quando mudei pela primeira vez, minha companheira me disse isso, assustada. Não voltei a mudar por muito tempo, até que vi umas moças se banhando em um rio.

Gavin assobiou entredentes.

—É como dizem os sacerdotes: as mulheres e a luxúria são nossa perdição.

—Considerando o quanto você gosta, - disse Maeniel secamente, - não posso acreditar que esteja de todo em seu contrário. Escondi-me entre os arbustos e me encontrei ereto como um homem... Em ambos os sentidos.

—Deixe-me adivinhar: todas fugiram.

—Todas, menos uma.

—Converteu-o em lobo e o comeu. É isso? — Perguntou Gavin com uma careta.

—Não tinha fome. E, além disso, - respondeu Maeniel com um frio olhar, - eu era um lobo e os lobos não matam a aqueles cujos corpos compartilham. Ela estava a salvo. Mas eu seguia sendo um animal, não tinha aprendido ainda a crueldade e perversão dos humanos, nem seu possessivo caráter. Nosso acoplamento foi gentil e de uma vez ferozmente apaixonado. Deixei-a em bom estado, dormindo satisfeita junto à margem. Inclusive montei guarda perto em meu estado natural, até que sua gente, carregando tochas por causa da noite, encontrou-a.

—Foi seduzido pelo amor humano?

—Sim. Assim fui atraído da inocência do animal para a profunda tragédia da humanidade. Pois seu amor reflete os paradoxos de sua espécie. No pior dos casos, uma crueldade infligida sem indício de decência. Mas no melhor, uma paixão tão doce que uma pobre fera... Governada por leis acordes por seus ancestrais antes do amanhecer dos tempos, não pode entender jamais. Como lobo eu obedecia às leis de minha espécie. Quando as transgredi, não soube que deus me deu o poder de desobedecer assim... Perdi minha alma. Ao longo dos séculos Gavin, tentei fugir do humano, no lobo. Inclusive tentei uma ou duas vezes fugir do lobo entre os humanos. Mas não posso fazer nenhuma das duas coisas. Agora enfrento outro dilema. E minha mente volta para as leis que me governam.

—Você pensa muito, Maeniel. Que dilema?

—Nunca, em todos os séculos que vivi me foi oferecido um presente como à loba de prata. A moça da vila chama minhas virilhas, mas a loba chama meu sangue. Por mais depravações que tenha sofrido como mulher ou como loba, ela é virgem. Eu sei. É virgem e está preparada para o fogo íntimo que arde em mim como homem e como lobo. Só eu posso ser ambas as coisas para ela.

—Deus! Cristo Jesus! — Disse Gavin. - Deve estar louco. Nem sabe como ela se chama. Pode ser que seja uma porca, uma rameira. Talvez tenha um marido...

Maeniel sorriu. Não havia nada de humano no sorriso, somente alguns dentes furiosamente nus.

—E o que importa isso? Acha que ela irá querer enfrentar a mim, como homem ou como lobo?

—Não. - Disse Gavin, olhando a selvagem expressão de Maeniel. - Eu não o faria. Não, tal como está agora. Demônios, homem, por que não toma as duas? Mais de um marido, mais de um homem, tem feito.

—Aí está o problema. - Disse Maeniel com uma risada desagradável. - Eu não sou um homem e não posso fazer isso. – Ele pegou as rédeas, picou esporas e se afastou a galope.

 

Regeane atuou docilmente como lhe haviam dito Antonius e Lucila. Saudou seus homens, interpretando à patroa encantadora e dando ao papel o toque justo de frágil inocência. Sorriu bela e inocentemente a cada um deles, ofereceu sua mão para que a beijassem e pareceu ruborizar. Perguntou o nome de cada soldado e surpreendeu a si mesma ao recordar todos. Pôs fim a seu primeiro encontro dando a cada um deles, um anel ou um broche do tesouro dado por Maeniel.

Quando os mercenários saíram da sala de recepções da vila e o último teve atravessado as cortinas em direção à rua, Regeane se voltou para Antonius, perguntando:

—E daí? Fiz tudo certo?

—Maravilhoso. Dois ou três deles pareciam ter sido trespassados por uma lança e os outros estão absolutamente encantados.

Regeane baixou o olhar e acariciou o suave linho de seu vestido com os dedos. O objeto era como havia dito Lucila, elegantemente enganoso: fino linho egípcio com bordados de prata no pescoço e na barra. Possuía umas mangas longas, tão profundamente cortadas, que quase se arrastavam pelo chão. Sob ele, ela usava uma grossa camisa de seda com mangas longas e ajustadas e sob essa camisa, uma muda de linho sem mangas. O adorno deixava muito à imaginação e era caloroso. Ao vê-lo pela primeira vez, Regeane havia gritado:

—Céus, que gasto!

—Tolices. – Havia respondido Lucila. - Seus homens devem saber que é uma donzela adequadamente rica e modesta. Além disso, esse Maeniel é quem paga agora seus gastos. Acredito que não te dá conta do quanto rica ele te fez. Ele levava o resgate de um rei naquelas alforjes. Há famílias inteiras em Roma que vivem durante anos com o que vale uma dessas peças.

Lucila tentou fazer com que ela usasse uma pesada corrente corporal de ouro elaboradamente forjada, dizendo que aquela jóia era a moda do momento em Bizâncio, mas Regeane se mostrou pouco inclinada a isso. Elfgifa contribuiu com sua opinião:

—É muito feio.

Lucila ficou furiosa:

—Feio ou não, está de moda e eu não vou ser criticada pela representante de um povo que acredita que o traje apropriado para a corte é uma camisa larga para os homens, curta para as mulheres e rodeada por um cinto de couro. Assim reserve sua opinião para você, jovenzinha.

Antonius estava paralisado pelo riso. Quando secou os olhos, disse: — Mãe, na realidade não te importa essa condenada coisa, só está tentando sair com a sua. Esqueça a arte e deixe um pouco à natureza.

Lucila se virou zangada e Regeane saiu vitoriosa do braço de Antonius.

—Levarei-a a reunião. - Disse ele. - Depois, sou seu chambelán.

—O que é um chambelán? — Perguntou Elfgifa.

—Não sei, mas estou segura de que Antonius será um muito bom.

Uma vez finalizada a longa entrevista, Regeane se sentou tremendo um pouco e acariciando brandamente a custosa malha.

—Antonius, - ela disse em voz baixa. - Sabe que foi o primeiro homem a dizer que era bela?

—Sim? Bom, a beleza é outra arma. Aprenda a usá-la.

Regeane suspirou.

—Estava pensando em outra coisa.

—Sei. - Disse Antonius. - Esquece-o. Inclusive a menor paquera seria perigosa para os dois. Chamarei Rufus.

—Não. - Disse ela, levantando-se. – Pelo menos hoje quero sair ao ar livre. Me leve aonde ele está esperando.

Antonius sorriu e lhe ofereceu seu braço.

—Vamos, então. É um bom passeio.

Regeane estava suando quando encontraram Rufus. Tinha sido um bom passeio, como disse Antonius: baixar um lance de torcidos degraus de mármore, atravessar um campo sob o sol e depois subir outra escada que levava a um arvoredo de velhos ciprestes. Sua sombra fresca foi bem-vinda. Por fim chegaram a um labirinto de ruínas maior que o Foro.

Rufus estava sentado em um banco em frente a uma pilha de lajes de mármore que formavam uma pequena colina. Um pequeno jorro de água que saia do alto formava pequenas cataratas que caíam em uma fonte rota na base.

Como implicava seu nome, Rufus era ruivo, mas seu cabelo estava intercalado de fios cinza, que também cobriam suas têmporas. A primeira impressão de Regeane foi de fealdade. Ele tinha um nariz grande e avultado, como se tivesse sido quebrado várias vezes e a branca e fina cicatriz de um corte de espada danificava sua fronte. Tinha uma boca larga e generosa, maçãs do rosto altas e bochechas fundas, que acompanhavam a quase delicada palidez que quem tem as pessoas de cabelos vermelhos.

Contudo, não parecia o amante romântico capaz de ganhar a devoção de Cecília... Até que sorriu. Aquele sorriso teve o mesmo efeito que acender um abajur em um quarto às escuras. Qualquer mulher o amaria. Pensou Regeane ao vê-lo.

Ele se levantou com rapidez, deixando de um lado um papel que estava lendo, e se inclinou profundamente sobre a mão de Regeane.

—Minha senhora. – Ele disse. - Não deveria ter caminhado tanto. Eu podia ter ido até ti.

—Eu sei. – Regeane respondeu. - Mas eu quis de sair. — Ela soltou-se lentamente sobre si mesma, contemplando ao seu redor. A área estava coberta de ervas, moitas e aqui e acolá, algum pinheiro crescido que lutava por seu espaço. - Que lugar é este?

—Impressionante, não? — Sorriu Rufus. – Diz-se que isto, minha encantadora dama, é tudo o que resta da casa de ouro de Nero, antigamente o mais famoso e belo palácio do mundo inteiro. Eu gosto de vir e passear por aqui. Penso no mundo romano, nos velhos tempos e em nosso novo reino.

—Assim passa a glória do mundo. - Citou Antonius. - Meus antepassados usavam a cor púrpura e coroas de louro dourado. Governavam o mundo, mas nós, seus descendentes devemos pedir humildemente, - ele se inclinou ante Rufus, - aos valentes bárbaros que sejam nossos protetores nos maus tempos.

—Está se tornando gracioso. - Disse Rufus com outro de seus contagiosos sorrisos. - Certamente, seus antepassados sabiam mais de tecidos feitos em casa que de púrpura e estavam mais acostumados à aguilhoada para bois que às coroas de louro. E quanto a governar o mundo, o mais provável é que passassem suas vidas servindo humildemente nas legiões ou atrás de um arado. A atual desordem do mundo, embora o deploramos profundamente, ofereceu oportunidades a ambos. Então passemos aos negócios, de acordo?

Os lábios de Antonius se arquearam divertidos.

—Alegra-me vê-lo novamente, Rufus.

—O mesmo eu digo. Não sei o que aconteceu por que, moço, mas estou muito contente de que se encontre bem outra vez.

Ambos os homens se estreitaram as mãos com cordialidade. Rufus se voltou para Regeane:

—Diga-me, como está minha querida Cecília?

—Oh! — Bocejou Regeane. Não sabia o que dizer e tentou ganhar tempo. Afastou do pescoço a gola do vestido, para enviar um pouco de ar a sua pele úmida. - Por favor, preciso me sentar à sombra alguns momentos.

—É obvio. - Disse Rufus, guiando-a para o banco. - Quer uma taça de vinho? Sempre trago uma boa provisão de comida quando venho aqui.

Regeane aceitou a taça de vinho, um pouco de pão e um excelente e cremoso queijo branco. O vinho era delicioso,e o queijo se estendia sobre o pão como manteiga. Regeane ficou sentada, comendo, bebendo e temendo o que teria que dizer a Rufus, até que ele se inclinou e elevou brandamente seu queixo com um dedo.

—É tão difícil é querida?

—Sim. - Murmurou ela envergonhada, entre de um bocado de pão e queijo.

Rufus voltou para seu assento, com as mãos sobre os joelhos.

—Encantadora. – Ele disse a Antonius, que se apoiava em silencio no tronco de um pequeno cipreste. – Ela é sempre tão direta?

—Em geral, sim. Ainda não tive tempo de instruí-la na arte de aparentar prometer tudo sem se comprometer, na realidade, em nada.

—Bem, Regeane. - Continuou Rufus. - Diga-me ao menos se minha adorável Cecília está desfrutando de sua pequena manha de criança.

—Manha de criança? — Perguntaram juntos, Regeane e Antonius.

—Sim, uma manha de criança. Ela sempre foi muito aficionada a elas. Tem um grande temperamento.

—Meu Deus, Rufus! - Disse Antonius. – Você chama manha de criança um retiro de dez anos em um convento? Além disso, ela cortou...

—Sei o que ela fez. - Interrompeu Rufus, com face repentinamente pálida. - Não necessito que me recorde isso. Mas sempre acreditei que se aquele idiota do Maximus, seu marido, tivesse mostrado um pouco de tato, um mínimo de sentimentos humanos, Cecília teria voltado para meus braços em duas semanas. Mas o néscio não pôde resistir à tentação de provocá-la, de enfurecê-la. O resto foi uma loucura.

Regeane estremeceu enquanto bebia um pouco de vinho. O suor estava se secando sobre sua pele e a área entre as ruínas havia se tornado mais frio ao alongar as sombras.

—Se ele foi cruel com ela, - Regeane disse, - ele pagou o preço. Nunca esquecerei a descrição que me fez Cecília sobre sua morte, empobrecido nas ruas, com a chuva caindo sobre seus olhos abertos.

Para sua surpresa, Rufus gargalhou.

—ela te disse isso? Oh, não tinha ouvido.

—Não é certo? — Perguntou Regeane. - Quer dizer que ela me mentiu?

—Não de todo. - Disse Rufus. - É verdade que Maximus nunca voltou a ser tão rico depois de que nossa pequena... Digamos sociedade... Terminasse, mas morreu na cama e em sua casa. Acredito que foi por causa do fígado. Ele ficou da cor de um limão amadurecido pouco antes de morrer ou pelo menos é o que dizem. Não nos falávamos mais então. Sim, acredito que sua excessiva afeição ao fruto da videira acabou com ele. Não obstante, fosse o que fosse a causa não se tratou de Cecília, mas não estou seguro de que ela pense o mesmo. Ela sempre tendeu a dramatizar as coisas... Um pouquinho.

—E as rosas?

— As rosas? Oh, sim, as rosas! Diga-me, alegra-a recebê-las? Está contente com elas?

—Sim! Acredito que se deixasse de lhe enviar ela sairia por fim.

Rufus meneou a cabeça.

—Não, eu nunca deixaria de enviar-lhe. Não poderia fazê-lo. Verá querida, que não suporto a idéia de humilhá-la publicamente ou lhe fazer acreditar que seu amante a esqueceu e deixou de sofrer. Muitas matronas romanas derramaram lágrimas ante nossa desdita e nossa miséria particular, para que eu deixe de enviá-las agora. Como poderia seguir Cecília uma heroína e uma figura de tragédia, sem elas? Vou lhe dizer um segredo, Regeane. Mesmo que eu morra, as rosas continuarão sendo enviadas. Incluí uma cláusula em meu testamento. Até que ela exale seu último suspiro estará rodeada pela fragrância das rosas... Em meu nome.

Regeane colocou cuidadosamente a taça de vinho sobre o banco, ficou em pé e encarou Rufus.

—Você é tão mau como ela.

—Regeane! — Repreendeu-lhe Antonius.

—Não. - Disse Rufus. - É certo. Que Deus me perdoe. A moça tem razão. Sou mau, com mentiras, rosas, loucura e tudo, mas... — Ele se levantou, ficando frente a frente com Regeane. - Sou um homem feliz. Como pensam os homens, tive uma boa parte das coisas boas que oferece a vida: riqueza, diversão, boa saúde e prazeres. E não posso dizer que Cecília tenha arruinado nenhuma dessas coisas para mim. Mas há algo que me faria mais feliz, - ele disse elevando um dedo.

—Cecília.

Rufus se separou de Regeane e contemplou o caminho, como se estivesse observando algo que Regeane não pudesse distinguir.

—Se ela viesse agora por este atalho, nos sentaríamos juntos. Ela leria para mim Tácito e Suetônio e teceríamos uma magnífica fantasia sobre Roma em uma época em que as legiões partiam. Quando Nero vivia aqui em sua casa de ouro, com a formosa e condenada imperatriz a seu lado. Emocionaríamo-nos com histórias de escuros e antigos crimes, torturas, intrigas e a inexorável retribuição final que chegaria àqueles fascinantes e dourados pecadores. E quando terminasse nossa viagem através do tempo, passearíamos de mãos dadas até uma clareira que conheço, onde brilha a lua e a vegetação é alta e suave. Havia noites nas quais eu fazia com que meus homens dispusessem um banquete em um prado e esquentassem o ar com braseiros, para que pudéssemos deitar sob o céu aberto. Eu faria esta noite para ela e todas as que ela quisesse. E nunca nos separaríamos novamente.

—Nunca tinha pensado que o amor fosse eterno. - Disse Regeane. Suas próprias palavras lhe pareceram cheias de surpresa e inclusive um com pouco de medo. – Em certas ocasiões até havia acreditado impossível.

Rufus se afastou dela, aproximando-se de um leito de varinhas de ouro iluminadas pelo sol da tarde.

—É obvio. – Ele disse. – Você ainda jovem. Havia me esquecido de quão jovem é. O amor é eterno. Eis aí seu terror e sua beleza definitiva. O amor nunca acaba. A alegria pode se esgotar nele, e às vezes, inclusive a dor. Mas ele permanece ali como algo vivo, e te segue a cada momento de sua vida. Não passa um dia sem que eu pense "Oxalá Cecília estivesse aqui para compartilhar este momento comigo". Conte-me uma piada, me faça rir e desejarei poder ouvir seu riso. Penso nela, no arrebatador momento da manhã antes que o sol cubra as colinas de luz dourada, e no crepúsculo, o instante perfeito em que o céu se enche de matizes de púrpura, violeta, vermelho e ouro. — Rufus se deteve a luz do sol, rompendo ociosamente as poeirentas cabeças das flores. O sol moribundo fazia com que seu cabelo brilhasse como o fogo. - Passeio com ela na primavera, quando florescem os campos. Sonho que está em meus braços durante as breves e calorosas noites do verão. No outono, ela está ao meu lado, entre o pó do feno. Quando meus arrendatários levam o primeiro feixe ao altar, ela caminha coroada de trigo e folhas de outono através dos campos brilhantes. É de uma vez Demeter e Afrodite. Nas frias noites de inverno, quando as estrelas são tênues luzes no negro céu da meia-noite e o vento geme nos telhados, me acordando eu a busco e sei que talvez ela se foi para sempre. Porque, Regeane, eu sei que se o amor for eterno, também são a loucura, as mentiras e as rosas. E que pode ser que ela nunca volte.

Regeane ficou em pé, com os punhos crispados. As lágrimas turvavam sua visão. Rufus se afastou da luz do sol para ficar à sombra do cipreste.

—Não posso prometer que ela vá ouvir-me. - Disse Regeane. - Mas irei vê-la e o defenderei o melhor que possa.

Rufus sorriu e se aproximou de Regeane segurando seus punhos fechados na mão e abrindo-os cuidadosamente.

—Não se preocupe pelo êxito ou pelo fracasso, querida. Sou um homem sensato e conheço bem Cecília. Só quero que lhe dê uma desculpa.

—É obvio. - Disse Antonius. - Uma desculpa. Algo para salvar o que resta de seu rosto.

Rufus deu um salto.

—Pelo amor de Deus, Antonius! - Suplicou Regeane.

Para sua surpresa, Rufus recuperou a compostura e soltou uma gargalhada.

—Antonius, quantos homens se apaixonam realmente pela face de uma mulher? Isso era tudo o que Adrastea significava para ti, um rosto bonito?

—Devo me lembrar não voltar a cruzar espadas contigo no futuro. - Disse Antonius. - Te apontaste um tanto aqui... Um muito evidente.

—Alegra-me que tenha sentido.

—Espero que Cecília aceite a desculpa que vou oferecer lhe. - Disse Regeane. – Talvez queira voltar, mas não está segura... De ser bem-vinda.

Rufus levou aos lábios uma das mãos de Regeane e a beijou.

—Asseguro-lhe.

—Vamos, Regeane. - Apressou Antonius. - É tarde, e as sombras se alongaram muito. Você tem que se vestir para a festa desta noite.

—Meus homens estão perto. - Disse Rufus. - Estas ruínas não são seguras a noite. Alguns deles os escoltarão de volta a casa de Lucila.

 

                                                 CAPÍTULO 29

Lucila estava esperando perto de uma porta no muro traseiro da vila quando eles retornaram.

—Gundabald e Hugo estão aqui. Onde quer os receba, na sala ou no jardim do átrio?

Regeane tinha a boca seca e podia sentir as batidas fortes de seu coração. Arrumou o vestido e perguntou a Lucila:

—Que aspecto tenho?

Lucila lhe compôs um pouco o cabelo.

—Não muito ruim. Está um pouco vermelha por causa caminhada, mas por sorte não usa cosméticos e não suou muito. Com as novas roupas e jóias, acredito que o efeito é satisfatoriamente ameaçador.

—Bom. - Disse ela.

—Não se mostre total. - Advertiu Lucila. – Os faria suspeitar. Deixe claro que pensa ser a proprietária de sua casa, mas seja conciliadora. Finja acreditar que quando voltar a seu país necessitará de seu respaldo político.

Regeane assentiu ausente.

—Quer que a acompanhe? — Perguntou Antonius.

—Não. Os surpreenderia se não chegasse sozinha e poderia não falar livremente.

Ela se dirigiu às cortinas que separavam o quarto às escuras, do átrio.

Gundabald e Hugo estavam esfriando os pés perto da entrada, sentados em um banco de pedra. Seu tio contemplava o lago e Hugo olhava nervoso ao seu redor, obviamente impressionado pelo luxo do lugar. Foi o primeiro a ver Regeane se aproximar e se levantou de um salto. Gundabald o fez mais devagar. Os dois se viraram para ela.

Regeane se deteve, mantendo alguns metros entre ela e o mais próximo de seus parentes. Esperava estar assustada, mas se surpreendeu ante suas próprias observações.

Cristo! Eles eram um casal andrajoso. O manto e a camisa de Hugo estavam puídos e havia óbvias manchas de suor em torno de suas axilas. O manto bordado em ouro de Gundabald, que tão elegante lhe havia parecido no passado estava sujo e suas meias de linho formavam bolsas nos joelhos. Ambos usavam botas manchadas de barro e muito rotas. E Por Deus! Como cheiravam mal. Regeane sentia o mau cheiro com freqüência no passado e seu olfato de loba poderia lhes ter reconhecido na escuridão. Mas pela primeira vez ela se deu conta de que o mau cheiro que associava a eles era o resultado de corpos que raramente se lavavam e seus sujos cabelos e barbas. Gundabald a olhava com olhos injetados de sangue, por causa da bebida e da falta de sono.

Por um momento, Regeane se perguntou se Lucila se incomodaria em fazer com que matassem a qualquer deles, não valiam a pena. Mas então Gundabald sorriu e ver seus gastos dentes amarelos fez com que voltasse nela uma sombra do antigo terror.

—Então? Não dá um beijo em seu rio?

O lábio da loba se tornou para trás... Pelo menos, Regeane teria jurado que era a loba, até que notou raiva na face de Gundabald e medo na de Hugo.

—Atreve-te a me grunhir, mucosa estúpida? — Perguntou seu tio em voz baixa. - Sei que acredita ter encontrado novos amigos, amigos fortes que a defenderão... E isso eles farão até que esteja casada e a caminho à fortaleza nas montanhas, de seu novo senhor. Mas o que fará quando ficar sozinha com ele?

—Não tente me assustar, Gundabald.

Ele deu um passo para ela.

—Não se aproxime de mim. - Disse Regeane brandamente.

Gundabald vacilou e deu um passo para trás. Hugo parecia ter vontade de fugir as pressas. Um choramingo escapou de sua garganta.

—Não seja idiota. - — Lhe repreendeu Gundabald. - Ainda é de dia.

—Gundabald. - Disse ela, meneando lentamente a cabeça. - Já não estão seguros perto de mim à luz do dia. Isso acabou. Eu mudei.

Hugo ficou atrás de Gundabald.

—Antes sempre o fazia. - Disse seu tio.

—Sim, mas agora o faço com bem mais freqüência e facilidade. Então o advirto que não confie no sol. — A loba se elevou no intimo de Regeane, abrindo seus destes em um grande sorriso canino, com a língua vermelha e longa sobre as poderosas presas. A expressão de seus olhos era de riso. Um riso vencedor em um mortal duelo de vontades. E Regeane soube que o que havia dito a Gundabald, só para assustá-lo era a verdade.

Em algum lugar na escuridão da Campânia, no mundo entre a vida e a morte, na luta por salvar a vida de Antonius, a loba havia alcançado sua plenitude. Regeane podia chamá-la de dia ou de noite e a magnífica fera assassina se elevaria em seu serviço. Havia ganhado.

—Pai... — Choramingou Hugo.

—Feche o bico, idiota.

—Sim. - Disse Regeane. – O faça calar. Ela não gosta de ouvir choramingações. Os cães choramingam e ele é um cão. Agora, o que é que quer? Ou melhor, já sei o que quer. Vou lhe mostrar.

Regeane se voltou e afastou as cortinas do triclinio. Parte do tesouro de Maeniel jazia sobre a mesa, um descuidado monte de moedas de ouro, colares, anéis e jóias.

—Não está mal. - Disse Gundabald. - Soubeste se arrumar.

—Isto não é nem a décima parte do que ele me trouxe. As peças mais valiosas estão bem guardadas.

Gundabald se aproximou da mesa e pegou uma pequena pilha de moedas, fazendo-as tilintar em sua mão.

—Uma décima parte? — Ele perguntou, com a cobiça brilhando em seus olhos.

—Menos que isso. - Disse Regeane. De repente ela se sentiu cansada. Cansada e furiosa. Havia vencido. Agora, só tinha que enganar aqueles néscios para que confiassem nela e o assassino de Lucila se ocuparia do resto.

Viu como eles contemplavam absortos, a isca preparada por Lucila. Ela pegou um anel da mesa, com um esplêndido rubi engastado em uma ridícula ornamentada peça de artesanato celta e o deixou cair na mão aberta de Hugo.

—Esta bagatela bastará para comprar um monte de mulheres e de vinho. Você o quer, Hugo?

Hugo retrocedeu com a vista cravada no anel, hipnotizado pela pedra que tinha na mão.

—O que você quer? — Perguntou Gundabald.

Regeane fitou seus olhos com expressão de falsa inocência.

—O que eu poderia querer?

Gundabald riu e soltou um resmungo de brincadeira.

—Você quer alguma coisa... Do contrário, seus estupendos amigos não nos teriam deixado cruzar a porta. Está muito claro. – Ele disse com certa mortificação, - que já não me tem medo.

Os dedos de Regeane brincaram ociosamente com o monte de jóias da mesa. Separou uns quantos rubis da Índia, do restante e empurrou-os para a beira da mesa e fazendo-os cair em sua mão. Depois alongou o braço para Gundabald, que abriu suas mãos esperando o presente. Os rubis caíram entre os dedos de Regeane, e ele pegou um para contemplá-lo à luz.

—Este senhor está coberto de riqueza. - Disse ela. - Deve dormir e sonhar com ouro, para encontrá-lo enchendo suas arcas ao despertar. Um rio de riqueza flui pelos passos de sua montanha. Caravanas carregadas de especiarias, seda, jóias e ouro. Ele anseia o favor de Carlo Magno para se tornar ainda mais rico e eu me apresentei como o caminho, a esse favor.

—E a luz da lua? — Perguntou Gundabald.

Regeane riu.

—Não temo à luz da lua. Vocês sempre foram muito curtos das idéias para compreender. Eu lhe dava as boas-vindas, eu abraçava-a, amava-a, mas nunca, Gundabald, nunca tive medo. E agora sou a proprietária da noite e tudo o que ela contém. Para este senhor serei um terno brinquedo envolto em seda, até que cheguemos a seu lar, essa fortaleça nas montanhas da qual você falava. Néscios. Ele não é um pombinho para depenar, mas uma horta que deve ser atendida, trabalhando-a ano após ano até que lhe tenha tirado todo o benefício. Esse Maeniel é um homem adequado e posso lhe converter em um dos maiores senhores dos francos. Eu serei sua dama e vocês dois meus companheiros de confiança, se me deixarem. Não terei rivais por seus favores e não tolerarei sua existência. Sofrerão... Acidentes. Já me ocuparei disso. Nenhum de vós tem a menor idéia do Gisela deu a luz.

Gundabald retrocedeu, observando-a.

—De verdade acha que poderá lhe enganar sobre sua natureza durante anos?

Regeane tentou manter a dureza de seu rosto.

—Com sua ajuda, posso lhe enganar tanto tempo quanto quero.

Gundabald lhe deu um olhar longo, lento e calculista. Depois se aproximou da porta e olhou para o jardim.

—Custa um pouco fazer idéia. – Ele disse. - Meu plano, você terá que admitir era muito singelo. Tomar o quanto pudéssemos... Depois simular um acidente de caça e depois, como aflita herdeira e piedosa viúva, te conviria mostrar um pouco de piedade religiosa, querida. Você poderia passar o resto de sua vida sob a segura supervisão de seu tio e seu primo.

—Sim. - Disse Regeane. - Em uma estreita cela de pedra, acorrentada pelo pescoço à parede. Estava pensando nisso?

—Oh, não! — Balbuciou Hugo. - Nem sequer sonharíamos...

—Ao inferno com que não o fariam! — A voz de Regeane estalou como um látego e a esquentou...

—É melhor assim. - Disse Gundabald, sopesando os rubis. – Pelo menos os subornos foram pagos e as bonitas palavras pronunciadas. Agora podemos nos dedicar aos negócios.

Regeane assentiu.

—Vós, cavalheiros... Farão bem em ouvir minhas condições, porque não penso passar nem um dia mais sob sua "supervisão", Gundabald.

Seu tio apoiou as costas contra no muro.

—O que planeja é uma completa loucura. – Ele disse.

—Uma loucura? — Sorriu Regeane. - Você matou meu pai, arruinou minha mãe e converteu minha juventude em um inferno de miséria e desespero. Dê-me uma razão, só uma, para confiar em ti.

Gundabald se aproximou dela.

—Conhecemos seu segredo. – Ele rugiu, inclinando-se sobre a mesa.

Regeane estava do outro lado da mesa, a poucas polegadas de distância. Sua voz caiu um grave e rouco sussurro.

—Afaste-se, Gundabald e afasta seu pestilento fôlego de minha face ou saberá mais de meu segredo do que você gostaria. Agora!

Gundabald obedeceu, com o ódio brilhando em seus olhos, em uma escura e maligna cintilação.

—Sigo dizendo que seu plano é uma loucura. Cedo ou tarde, esse homem descobrirá seu segredo e a matará.

Regeane se esforçou para recuperar a compostura.

—Possivelmente não. – Ela disse. – Ou talvez descubra meu segredo e não seja capaz de me matar. Mas te digo uma coisa e será melhor que ouça bem. Não haverá oportunos acidentes de caça. Este matrimônio é importante de uma forma que nenhum de vós compreende, alheios como são aos conselhos de Papas e reis. Suas intrigas me arruinariam e eu os arrastaria comigo. Asseguraria-me disso. Aceite, Gundabald, que já não tem poder sobre mim. Agora é ao reverso. Eu dou as ordens e você obedecerá ou estará fora. Meu grito faria entrar em uma dúzia de homens armados e lhes diria que os jogassem nos esgotos. Sem meu dinheiro é onde passariam o resto de suas miseráveis vidas. Expliquei-me com claridade?

Com um gesto da mão, Regeane varreu algumas das moedas e jóias para o chão. Hugo se equilibrou pelo ouro, recolhendo-os aos punhados e guardando-os em sua bolsa.

Gundabald ficou em seu lugar, seu peito agitado pela raiva.

—Acredito, — ele disse, - que nos entendemos.

—Não falarei por ti, Gundabald, mas eu te entendo perfeitamente. A única jogada que poderia fazer seria revelar meu segredo ao mundo. E o que conseguiria? Diga-me?

Os olhos de Gundabald se afastaram dos dela, cravando-os nas sombras.

—Nada. - Murmurou.

—Equivoca-se, Gundabald. Conseguiria algo bem pior que tudo. Meu senhor e marido está muito contente com sua dama da realeza e poderia decidir que você é um louco ou um mentiroso e te eliminar. Ou o Papa, que apóia fervorosamente este matrimônio poderia vê-lo como um perigoso arruaceiro. Deve se perguntar se quer correr o risco.

Gundabald rezingou, sorrindo depois, embora a raiva seguisse ardendo em seus olhos. Falou entredentes:

—Minha querida sobrinha, você é uma mulher inteligente, bem mais do que tinha pensado. Vejo que, se quero me beneficiar de nossos estreitos laços de sangue terá que ser sob suas condições.

Hugo ficou em pé, com a bolsa avultada e olhando um e outro.

—Pai, - ele disse vacilante, - eu acredito que é melhor que façamos o que ela diz.

Gundabald lhe lançou um olhar, mas a expressão que adotou ante Regeane era cuidadosamente neutra.

—De acordo. – Ele disse. - O que quereria que fizesse?

Regeane relaxou. Estava segura de que os tinha. Eles haviam sido submetidos. Não por ela, mas por sua própria cobiça e estavam preparados para ser levados para a armadilha.

A loba tinha lembranças de momentos como aquele. Montes de lembranças. Lembranças de uma caçadora. Seus olhos experimentados, escolhendo uma presa no rebanho, esperando o tropeção revelador em terreno fácil, a respiração trabalhosa sem que houvesse havido esforço, o agarre incapaz de seguir ao resto, o touro ou vaca com sinais de idade. Ela observou Hugo e Gundabald por um momento, com a fria e mecânica visão de uma assassina.

Hugo retrocedeu alguns passos e um músculo se agitou na face de Gundabald.

—O que quer que façamos? — Ele perguntou nervosamente seu primo.

—Tome um banho, para começar. - Respondeu ela. - Tudo o que está na mesa é para vocês.

Hugo esqueceu seus temores e começou a recolher tudo, imediatamente.

—Comprem roupa nova para estar apresentáveis ante meu senhor. Gundabald, ainda tem contatos na corte de Carlo Magno, certo? — Perguntou Regeane.

—Sim. - Disse devagar seu tio.

—Muito bem. Necessitarei deles. – Regeane respirou fundo. - Me será muito útil. Não posso converter meu marido em um grande senhor, sozinho. Necessitarei da ajuda de homem experiente como você. Nunca prestei muita atenção à política.

Gundabald começou a recolher também o ouro da mesa, assentindo como se tivesse tomado alguma decisão.

—Farei que os criados de Lucila lhes mostrem a saída. Voltem dentro de alguns dias e poderemos jantar com calma e falar do futuro.

—É obvio. - Respondeu Gundabald. - Um agradável jantar em família.

—Sim. - Disse cansada, Regeane. A loba estava pronta para matar. Não restava nada a dizer e ela ansiava se livrar de seus parentes.

Já na porta, Gundabald se voltou para ela.

—Estou seguro, - disse ele, conciliador, - de que agora que vimos seu verdadeiro valor, não haverá mais briga entre nós.

—Certo. - Replicou Regeane. - A sociedade será bem mais frutífera que a dissensão.

Quando eles partiram, Regeane encontrou Lucila e Antonius aguardando-a no jardim. Deixou-se cair em um banco junto ao lago olhando às escuras águas.

—Ouviram?

—É obvio. - Disse Lucila. - Com muita atenção. Por quem toma, por uma tola incompetente? É minha protegida.

—Fiz bem?

—Não sei. - Respondeu Antonius. - Acredito que poderia ter sido um pouco menos... Sincera.

—Não pude evitar. Detesto esses dois.

—Isso eu vi. - Disse Antonius, olhando apurado o pórtico por onde haviam saído Hugo e Gundabald.

—O que tenham pensado não importa. - Interveio Lucila. - Consegui meu objetivo. Regeane os recebeu de forma civilizada e lhes deu ricos presentes. Suponho que esse par de insetos gastará pelo menos parte do dinheiro em uma farra pelos piores botequins e bordéis de Roma. Meu homem se ocupará deles esta noite ou amanhã.

Regeane fitou Lucila.

—Na realidade não importava o que lhes dissesse, não é?

Antonius sorriu e encolheu os ombros, afastando-se em direção ao lago.

Regeane golpeou o chão com o pé.

—Tinham tudo planejado.

—Sim. - Disse Lucila com irritante complacência.

—Surpreende-me que se incomodasse em me consultar.

—Estive a ponto de não fazê-lo, mas precisava saber como e por que se organizam estas coisas. Mas você pressente querida. Quando soube seu segredo, decidi não deixar vivo esse miserável.

—Mas por quê? Nem sequer o conhecia.

—Para que precisava conhecê-lo? Vi aquela espantosa hospedaria, o chiqueiro pestilento onde a encerravam e as marcas em suas costas. Que mais precisaria? Diga-me, por favor.

Antonius voltou para perto elas.

—Regeane. – Ele disse. - Consulte à loba. O que pensa ela?

A jovem se voltou, confusa.

—Já consultei. – Ela sussurrou. - Sei o que pensa. Ela é... É indiferente.

—Acredito que seja sua melhor metade. - Disse Antonius. – Ou pelo menos a mais preparada. Ouça, moça... Em todos os lugares e entre todos os povos, a lei dá aos maridos certa autoridade sobre suas mulheres. Nós três tomamos medidas para te tornar independente de seu marido.

—Sim. - Disse Regeane.

—Muito bem. - Antonius falava lentamente, como se dirigisse a uma menina. - E o outro grupo ao qual a lei dá poder sobre as mulheres são seus parentes varões, certo?

Regeane assentiu.

—Com Hugo e Gundabald eliminados, quantos parentes restariam?

—Nenhum ou pelo menos nenhum tão próximo para que importasse. Já sei... Eu seria livre.

Antonius olhou sua mãe. Os olhos de ambos se encontraram, transmitindo uma mensagem sem palavras.

—Há mais, não é? — Disse Regeane.

—De certo modo, suponho que Gundabald seja meu presente de casamento. - Explicou Lucila. - E pode que Hugo também.

—Não estou de acordo contigo a respeito de Hugo, Mãe. - Interveio Antonius._

- Acredito que o tolo enganador e sem miolo soltaria o conteúdo de sua vazia cabeça por todos os botequins e prostíbulos de Roma e seus arredores. Cedo ou tarde, seus desvarios de bêbado chegariam aos ouvidos equivocados. Se encarregue também dele. Regeane tinha razão. Os dois necessitam de um banho. Faz com que o tomem... No Tibre.

—Deus do céu! — Exclamou Regeane.

—Enfrente os fatos, moça. Nenhum deles pode ser de utilidade para você e estão em posição de te prejudicar gravemente.

—Que enfrente os fatos? Por Deus, Antonius! Sabe o que me disse Gundabald uma vez? Queria fazer que eu o ajudasse a matar meu próprio marido. Eu lhe disse que não passaria um só dia sob sua supervisão. Bem, pois tampouco aceito a sua, nem a de sua mãe. Não. – Ela soluçou. - Não quero participar de um ato tão vil. Viram como olhavam o ouro? Podem ser comprados, estou segura.

Antonius elevou as mãos ao céu e se afastou. Lucila suspirou profundamente.

— Você tem um sentido moral muito agudo. Eu também estou segura de que poderiam ser comprados... Durante um tempo. Mas o que acontecia quando acabasse o ouro? — Lucila perguntou em tom amável.

Regeane seguiu chorando em silêncio.

—Não posso suportar a idéia. – Ela sussurrou. – Deixe-lhes viver. Antes eu odiava Gundabald, mas o pobre Hugo... Nunca o odiei.

Lucila abraçou Regeane e apoiou a cabeça sobre o ombro da jovem, lhe dando suaves tapinhas nas costas.

—Deixem-lhes viver. - Repetiu Regeane.

Lucila observou seu rosto manchado pelas lágrimas.

—Oh, não... — Ela disse tristemente.

—Deixem...

—Mãe, - interveio Antonius, - ela precisa ser livre. Deve tomar sua própria decisão. Não podemos tomar por ela.

Lucila olhou seu filho e suspirou profundamente.

—Meu filho, o melhor dos filhos, pode ser que esteja certo. Muito bem, Regeane. Eu não faria isto por ninguém mais, certamente sequer por Antonius, mas lhes deixarei vivos por ti, querida filha de amor. Mas há algo que deve saber. – Ela disse elevando um dedo.

Regeane secou as lágrimas e olhou para Lucila.

—Acredito que antigamente, no maravilhoso reino que criaram os romanos, um homem ou uma mulher podia cavar um nicho para ele e viver uma vida independente. Mas já não é assim. Neste mundo quebrado e caótico só há governantes e governados. Deve decidir por si mesma, o que quer ser.

 

Poucas horas depois, Regeane se encontrou sozinha em uma carruagem puxada por mulas, a caminho a sua festa de compromisso. Havia recebido conselhos de Antonius e Lucila antes de sair, Muitos deles.

Enquanto se vestia, ela teve uma rápida conversa com Lucila sobre furar as orelhas.

—Não seguram os furos.

—O que quer dizer?

—Os furos desaparecem.

Lucila se sentou sobre a cama, com aspecto surpreso.

—Está me dizendo que os furos se fecham?

—Sim. O que acontece?

—Estava pensando em seu hímen, querida... As coisas podem se tornar muito ruins para você, se seu hímen se... Renova constantemente.

—Não me preocupa. Minha mãe me disse que ela não sentiu nenhuma dor. Suponho que eu tampouco sentirei.

Lucila suspirou.

—De certo modo, é uma lástima... Uma verdadeira lástima. – Lucila disse, voltando-se para rebuscar em sua mesa.

—O que é uma lástima? — Perguntou Regeane, enquanto pegava um vestido de seda bordado com cristal e pérolas cultivadas no pescoço, nas mangas e na barra.

—Cuidado com isso, pode romper.

—O que é uma lástima?

—Uma mulher capaz de renovar perpetuamente sua virgindade deixaria os homens loucos. Teria um imenso êxito como cortesã.

Antonius estava no quarto contínuo, separado somente por uma cortina.

—Mãe! — Ele disse em tom de recriminação.

—Já sei, já sei. "Não dê idéias à moça". Em todo caso, tenho aqui um pouco de ungüento. Se aplicar antes do ato, reduzirá o desconforto. Tome. – Ela disse, alongando um frasco pequeno de cristal a Regeane. – Leve isso

Regeane retrocedeu e se deixou cair pesadamente sobre a cama de Lucila.

—Esta noite? Vai ser esta noite?

—Querida, — disse Lucila, - nunca estará mais casada que agora. Sim, será esta noite.

A cabeça de Regeane dava voltas.

—Considerando como ele te saudou, — prosseguiu Lucila. - Deve estar ansioso.

Regeane recordou Maeniel, o suave e casto beijo que ele lhe deu na fronte. A loba, no mais profundo de seu cérebro, despertou e a olhou com expressão ardilosa. Podia ser divertido. Regeane se levantou de um salto, com as mãos contra as ardentes bochechas.

—Estávamos desejando provar. – Ela disse.

—As duas, é? — Lucila lhe lançou um olhar de desaprovação, dando tapinhas com o pé.

Do outro lado da cortina, Antonius uivava em uma gargalhada.

—Cale-se! — Gritou sua mãe em direção à cortina. - Regeane, me ouça. Acredita-se que as noivas virgens não devem ficar desejando. Tem que se mostrar diminuída, tímida, um pouco assustada.

A partir de então, uma cascata de conselhos caiu sobre os ouvidos de Regeane.

—Deixe-o tomar a iniciativa. Quando o fizer, finge que te dói.

—Mas supõe que não me doa.

—Finja, de toda forma! - Disse Lucila. - É o que esperam.

—Mãe, deixe de assustá-la. Estou seguro de que ela fará muito bem. Mas não tenha muito medo, Regeane. Aconteça o que acontecer, recorde-se que não pode ser ferida permanentemente.

A partir desse momento, o conselho degenerou em um intercâmbio de gritos entre Antonius e Lucila. Regeane se vestiu rapidamente e fugiu.

Lucila havia planejado viajar na carruagem com ela, mas Antonius se opôs, dizendo: — Aquiete-se, Mãe. Não a deixe ainda mais nervosa do que já está. Dê-lhe um pouco de solidão, para se recuperar.

Regeane viajou sozinha.

A loba cheirou a brisa da noite e Regeane se perguntou se seria permitido abrir as cortinas da carruagem. Não havia ninguém a quem perguntar então ela as abriu.

O ar era frio. Estavam passando junto ao Coliseu, um muro de escuras ruínas a sua direita. Havia poucas casas e lojas ali e as ruas estavam quase desertas. Em algum lugar ao longe, um cão uivou. Seria mesmo um cão? Não podia estar segura, nem sequer com seus sentidos superiores,

A loba elevou a cabeça e farejou o ar. Jogos de poder. Antonius e Lucila estavam ensinando lhe a jogá-los. A maior parte dos conselhos se centrou, não no que ela devia esperar ou fazer, mas em como agradar Maeniel.

Regeane consultou à loba. Sua irmã da meia-noite não tinha medo daquele homem. Ela sabia, da mesma forma em que sabia que Lucila era uma amiga, que Maeniel nunca abusaria dela ou lhe faria mal. Mas a queria? Ela pensou no lobo cinza. Quem seria, o que seria enquanto caminhasse sobre duas pernas. Ela não tinha idéia. Não seria um homem jovem, supôs. Ele já teria deixado atrás sua primeira juventude. Mas tampouco seria velho. Tinha sido o indiscutido líder da alcatéia. Regeane não podia imaginar nenhuma criatura o bastante arrojada para desafiá-lo. Mas Talvez fosse um homem comum, um taberneiro, um sacerdote ou um pequeno comerciante.

Ela perguntou-se como seria ser a esposa de um plebeu. Viver em um pequeno apartamento sobre sua loja, cuidando de um monte de crianças. Cozinhar e limpar todos os dias. Lavar a roupa em uma fonte do pátio e estendê-la em uma corda sobre a rua.

Uma vida de singela rotina cotidiana, resolvendo pequenas crises: bebês mudando os dentes, crianças doentes, ter a comida a tempo, atender os negócios e cuidar das contas da casa. E também uma vida alegre, compartilhada com um homem a quem poderia confiar seu ser mais íntimo. Um homem de quem nunca teria medo.

A loba esperava na escuridão, com as orelhas eretas, alerta. Preparada para seu serviço. Para mudar e correr sob as rodas da carruagem. Fugir. Encontrar o grande lobo cinza e se submeter a ele. Poderiam fugir juntos por todo mundo. Para Bizâncio ou aonde ninguém pudesse lhes encontrar.

Mas estava paralisada pela fria certeza da mulher, de que o homem que era o lobo cinza de dia poderia não ser alguém a quem a mulher Regeane fosse amar nunca. Ela podia especular e fazer hipóteses. Podia ter esperanças, mas não sabia. Prender-se a alguém sem conhecê-lo seria uma completa loucura.

Ouviu o súbito ruído dos cascos de um cavalo aproximando-se de sua carruagem e um instante depois distinguiu o cavaleiro. Era o capitão da escolta que a levava para a vila de Maeniel. Tinha a barba grisalha e seu cabelo caía sobre o ombro.

—Minha senhora... — Disse o soldado em tom severo.

A loba lhe devolveu o olhar através dos olhos de Regeane. Tão rápida. Pensou ela alarmada. Não a tinha chamado. Mas talvez estivesse zangada por não poder gozar de sua liberdade. A vontade de Regeane a refreou com firmeza.

O homem do cavalo parecia um pouco apreensivo, como se seu instinto o advertisse de alguma presença mais.

—Minha senhora. – Ele repetiu em tom mais suave. – Feche as cortinas, por favor. Com todos os receios... Se alguém a visse... Bem, não gostará que tenhamos de derramar sangue para protegê-la. Um estranho prêmio como à senhora poderia tentar inclusive ao mais covarde dos ladrões.

Regeane se obrigou a sorrir.

—Sinto muito. – Disse Regeane. – Não havia pensado.

Ela fechou as cortinas e se recostou sobre as almofadas. A carruagem era escura e cansativa. O aroma de seu próprio corpo misturado ao aroma poeirento das grossas almofadas de seda lhe provocava um ligeiro asco. Assim soube que a loba seguia com ela.

Ambas se encontraram face a face em sua mente. Os lábios se retraíram sobre os dentes da loba. Regeane sentiu que nunca havia enfrentado de todo, o poder da fera. Tinha atuado por instinto ao matar ao cavalo de Basílio. Colocara à loba em movimento e deixara que a guiassem seus reflexos animais. Mas agora, as duas estavam a sós. Ela se deu conta que a fera se rebelava contra o jogo de mentiras e enganos que havia empreendido. A loba estava fazendo seu movimento em busca da liberdade.

—Não. - Disse Regeane brandamente. - Você tem sua sabedoria, mas eu a mulher, tenho a minha. Dar-te liberdade mataria às duas. Basta! Não me importune no banquete e nem mais tarde, na cama de matrimônio. Fique quieta esta noite, inclusive quando a lua estiver alta no céu. E aguarde enquanto eu faço o que puder para nos liberar.

 

                                                 CAPÍTULO 30

O lobo chegou sem ser chamado, aos sonhos de Maeniel. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, ele estava encadeado pelo homem. Mas voltava em sonhos, sempre recordado.

Maeniel o lobo elevou a cabeça e leu o vento que soprava da geleira sobre ele. A primavera estava no ar. O céu era um cristalino lago azul. As montanhas elevavam seus limpos topos brancos.

No ar puro e sob a clara luz, o lobo saboreou a maior liberdade de todas. A liberdade para ser. Simplesmente, ser. A liberdade para existir sem pensamento, previsão e nem memória, daqueles jugos que pareciam pesar sobre cada momento de vigília dos humanos desde o nascimento até a morte. Naquele mundo, o lobo se limitava a ser e cada momento da vida era um deleite.

Ele bebeu um pouco de um arroio de degelo, estremecendo pelo frio e contemplou o prado de montanha que se estendia ante ele.

Encorajados pelo ar quente e a neve fundindo-se, os rebanhos de ovelhas de montanha, cabras selvagens e uros subiam das terras baixas para reclamar seus pastos do verão.

O lobo saltou com facilidade o alto de uma rocha plaina. Deitou-se com a cabeça sobre as patas, olhando passar um pequeno rebanho de cabeças de gado selvagens. Era um grupo de aspecto endurecido, mas fracos. Algumas de cor parda, outras com manchas vermelhas escuras sobre o branco. Todas possuíam chifres tão longos como o corpo do lobo. Eram fêmeas, acompanhadas de alguns bezerros em metade de crescimento. Olharam-nas nervosas ao passar, mas sem medo. Nenhuma estava sequer ligeiramente intimidada.

Nem ele as subestimava um ápice. Uma chifrada ou um coice podia romper seu crânio ou sua coluna, deixando-o agonizante sobre a neve ensangüentada. Aqueles enormes chifres podiam estripar o mais forte dos lobos.

Não seriam presas fáceis para ninguém. Uma vaca sem bezerro que se incomodou se deteve ante ele, golpeando ligeiramente o solo com suas patas e depois soltou um urro que soava a brincadeira.

O lobo permaneceu quieto, como se dormitasse, mas os músculos de seu ventre se esticaram um pouco. Não, não a escolheria como oponente. A vaca seguiu seu caminho, afastando despreocupada as quantas moscas com o rabo.

Depois das vacas chegou um velho touro de cor escura, com uma espessa juba mais clara no peito e nas omoplatas. Ainda era forte. Mas seu focinho estava cinza. Marcava sua idade. Seu corpo se enrijeceu quando viu o lobo descansando sobre a rocha.

O lobo baixou as orelhas e depois voltou a elevá-las.

O touro seguiu adiante, soprando pela ascensão. Deteve-se junto ao mesmo arroio que o lobo havia bebido antes e colocou o focinho na água para saciar sua sede. Depois arranhou o gelo da borda com a pata até despir a grama morta pelo inverno e começou a comer.

Sobre a rocha, o lobo sentiu o sol da primavera esquentando seu lombo. Bocejou lentamente e se sentou. Pôde ouvir pequenos ruídos entre as rochas. A alcatéia lhe vira se mover e estava se aproximando,

O lobo cinza saltou de sua pedra e se aproximou do touro.

Seus olhos se encontraram.

Venha. Diziam os do touro. Venha se quiser. Venha se deseja. Já nos encontramos antes e sempre venci. Se o fizer desta vez, te pisotearei até que não reste mais que pedaços ensangüentados. Se perder, que assim seja.

O lobo cinza empreendeu sua carreira.

O uro baixou a cabeça com um sopro de fúria e fugiu.

A alcatéia surgiu entre as rochas em um semicírculo em torno do velho touro.

O touro era lento, mas parecia ganhar velocidade a cada passo, deixando Maeniel para trás com facilidade.

A caça transcorria em silêncio. O velho touro não tinha fôlego a esbanjar, nem um rebanho de vacas a quem proteger. O único som era o retumbar de seus cascos, o sussurro das almofadinhas dos lobos sobre a neve e a pesada respiração dos caçadores e da presa. Muito longe para serem afetados, outros herbívoros do prado se limitaram a levantar as cabeças para contemplar o drama da perseguição.

As fêmeas jovens adiantaram facilmente Maeniel. Eram rápidas como galgos de carreiras e se aproximaram dos flancos do touro, com cruel eficácia. Em alguns momentos, a neve ficou manchada pelo sangue carmesim que caía dos quartos traseiros e dos flancos do touro.

Maeniel começou a ficar para trás e notou a estratégia do touro. Estava correndo para uma pilha de rochas perto do centro do prado. Ainda estavam de cor negra pela umidade do degelo e salpicadas de luminosos emplastros brancos aqui e lá.

Quando o touro chegou às rochas, se voltou e chifrou seus perseguidores com incrível rapidez. As fêmeas se dispersaram, mas um jovem macho recebeu o golpe em cheio. Sua coluna quebrou e o corpo ensangüentado caiu sobre a neve a algumas jardas de distância. Outros lobos frearam a marcha, mas Maeniel aumentou sua velocidade, lançando-se à carga.

O touro baixou a cabeça e pela primeira vez bramou um desafio.

O impulso de Maeniel o elevou acima de outros lobos acovardados, justo para os chifres do touro. Pela extremidade do olho, Maeniel viu a ponta da haste, movendo-se como um raio para lhe empalar. Mas ele esmagou seu corpo sobre a neve no último momento e o chifre lhe passou por cima do lombo. Ele saltou para a garganta do touro com todas as forças de seus poderosos quartos traseiros.

Um último bramido ensurdeceu todo o resto... Terminando em um gorgolejo quando suas mandíbulas esmagaram a traquéia do touro. Ele manteve a presa mesmo quando o animal se encabritou quase como um cavalo em sua agonia, golpeando a neve que saía formando nuvens em torno do caçador e do caçado. O fôlego lhe escapava entre as presas e seus ouvidos captaram o enjoativo ruído de um osso ao se romper. Dele ou do touro, não sabia. Uma sensação de justiça embargou o lobo, incompreensível em termos humanos. Por que vivemos ou como vamos morrer.

Um esforço dos pulmões. Um pulso na garganta, procedente de artérias isoladas de suas presas por músculos e tendões, refletiu um batimento do coração que vacilava, lutando... Até que por fim se deteve.

Maeniel o lobo se elevou sacudindo-se e aceitou a comemoração de sua alcatéia. Chegaram em torno dele, pressionando seu corpo e lhe dando toques na face e nas mandíbulas.

Seu corpo lhe resultava estranho e ele lutou contra a inquietante sensação que o embargava. Queria voltar, ficar com seus companheiros, comer, dormir e cantar depois da luz azul da lua.

Debateu-se, mas foi mais rápido. Isto não é real. Sussurrou uma voz em sua mente. É só uma lembrança.

Ele despertou como humano, com seu corpo esmagado sobre uma cama, na vila que tinha alugado em Roma. Através da porta, pôde ver os criados acendendo tochas no jardim. Sentou sobre o leito, passando os dedos pelo escuro e rebelde cabelo.

Matrona entrou no quarto. Não levava abajur nem vela. Ela podia ver na escuridão tão bem como ele. Fitou-o e o brilho de seus olhos refletiu a luz das tochas do jardim.

—É hora de que se levante. – Ela disse. – Banhe-se e se vista para a festa.

Maeniel ficou em pé.

—Matrona, quem é o mais forte?

—Você é.

—Se atreveria alguém a me desafiar?

—Ninguém. - Disse Matrona. - Acredito que Gavin é quem mais se aproxima, mas só te chega ao ombro. Você é o mais velho, o mais sábio e o mais feroz. O melhor.

—Devo me casar com a mulher.

—Você é o líder. – Ela respondeu. - Às vezes um líder paga por sua grandeza sendo o primeiro a morrer.

—Isto não é a morte.

—Não seja idiota! Oh, líder. A garota cheira a intriga. Olhe seus amigos. Primeiro, tem o respaldo do Papa...

—Como sabe tudo isso?

Matrona soltou um risinho.

—Augusta. – Ela disse. - Essa trapaceira estava zangada com Lucila e só queria um ouvido amistoso que ouvisse suas queixas. Nunca lhe ocorreria fofocar, mas estava ansiosa em dar informação. Quase tanto como eu estava de ouví-la.

Maeniel começou a se aproximar do banho, tirando a roupa enquanto caminhava. Matrona não prestou atenção. Já havia lhe visto nu muitas vezes.

—O Papa redigiu o contrato matrimonial. - Disse Maeniel, inundando-se na piscina.

—Sim. - Lhe respondeu Matrona quando ele saiu à superfície. - A garota desdenhou seus próprios parentes. Augusta estava um pouco surpresa por isso, mas me pareceu um claro sinal de inteligência. Não soavam muito melhor que as coisas que se encontra crescendo junto à água estancada.

—É escória. - Disse ele enquanto esfregava a face e o corpo com uma áspera esponja.

—Sim. E ela é íntima amiga de Lucila, a amante do Papa. E pelo que sei, Antonius, o filho predileto de Lucila, vai ser seu chambelán. Você está rodeado.

Maeniel saiu da água e começou a se secar. Depois refletiu, com o cenho franzido.

—E esse franco, o tal Conde Otho, que vai vir esta noite?

—Pode ser que seja o pior de todos. Tem reputação de servir fielmente os interesses de Carlo Magno, mas pelo resto carece de princípios e é absolutamente desumano.

—E por que iria estar tão interessado em meu matrimônio?

—Esse Carlo Magno, - sugeriu Matrona, - vai ser um rei muito poderoso. É rápido colocando a seus nobres em vereda.

—E eu obedecerei.

—Um pouco rápido, possivelmente. Nossa fortaleza única e bem defendida resulta inexpugnável.

Maeniel começou a se vestir. Calções brancos de linho, meias de algodão bordado, camisa e para coroar tudo, uma dalmática de seda branca com ouro nas mangas, no pescoço e na barra.

—Olhem o noivo. – Brincou Matrona. - Vejamos se pode fazer com que a noiva corra.

—Você é uma cadela luxuriosa e grosseira.

—Obrigado pelo elogio. – Disse Matrona. – Acredita que é virgem?

—Estou quase seguro. Não acredito que vendesse algo tão valioso como sua inocência por um preço que não fosse muito elevado.

—Sua fortaleza. - Disse Matrona.

Maeniel estava se penteando.

—Eu opino, - seguiu dizendo Matrona, - que poderia defendê-la frente a Carlo Magno.

—Você e Gavin e nenhum dos dois sabe nada da força de um exército.

—Você é o líder. - Disse Matrona. - Vigie suas costas. Os lobos não são traiçoeiros, mas os homens sim.

Momentos depois, Maeniel estava inspecionando o salão de banquetes. Era enorme, desenhado para impressionar os visitantes com a riqueza e a importância de seu anfitrião. Mas tinha um ar ligeiramente descuidado. As elaboradas pinturas das paredes estavam esvaídas e haviam se desprendido em alguns pontos, mostrando manchas brancas do gesso. Os abajures de bronze suspensos do teto careciam de brilho. Parecia não ser limpos há anos. O veludo púrpuro dos leitos estava puído e gasto, mostrando algumas calvas ocasionais. Mas Maeniel considerou que tudo pareceria o bastante magnífico à luz dos abajures.

Alguns poucos criados trabalhavam em excesso pela estadia, cobrindo as velhas mesas com ricos tecidos de damasco.

Dos banhos chegavam os gritos da gente de Maeniel. Ele suspirou ao se dar conta pela mistura de vozes, de que homem e mulheres estavam se banhando juntos.

—Homens e mulheres juntos. - Sussurrou um criado a outro. - Sujos bárbaros...

—Sorri quando disser isso. - Lhe disse Maeniel quando passou junto a ele. O banho estava cheio de vapor. A gente de Maeniel gritava, chapinhava e se jogava na água com frenético abandono.

Matrona pegara Gavin e o sujeitava seu cabelo em uma firme presa. Maeniel pensou em lançar um uivo, sua forma habitual de reclamar a atenção da alcatéia, mas decidiu não fazê-lo. Responderiam da forma acostumada e assustariam aos criados. Deu uma palmada.

Matrona soltou Gavin, que saiu da água, abrindo a boca. Outros prestaram atenção.

—Tenho algo a lhes dizer.

—Já esperávamos. - Disse Matrona. Vestida parecia robusta. Nua, resultava voluptuosa. Gavin a olhou ofegante e se aproximou dela.

—Estes romanos são gente educada, mais que os francos e quero que os atendam corretamente em minha festa nupcial. - Explicou Maeniel com severidade. - Os criados viram que se banham juntos e pensam que vocês têm uma moral relaxada.

Joseph, que tinha a forma e o tamanho de um urso e estava coberto de um suave e úmido cabelo castanho, coçou a cabeça e perguntou:

—O que é uma moral relaxada?

Matrona rompeu a rir e escorregou, afundando-se na água. Emergiu cuspindo água. Gavin se lançou sobre ela, segurando-a como pôde e voltou a afundá-la.

Maeniel grunhiu.

Gavin soltou a Matrona.

—Moral relaxada significa sexo em abundância. - Disse Silvia em tom escrupuloso. Flutuava na água como uma pequena baleia.

—Podemos ter todo o sexo que quisermos. - Replicou Joseph indignado. - Somos humanos, não? Verdade que eles fazem o tempo todo? — Ele apelou a Maeniel. - Diga-me

Gavin se deslizou novamente para Matrona.

Maeniel inspirou profundamente. Estava se enfurecendo.

—Eu não queria mudar, - ele disse, - para não danificar meus ornamentos nupciais. Mas se me irritam, vou mudar. E então veremos se irão se mostrar tão desrespeitosos.

Houve um absoluto silêncio.

—Muito bem. – Ele seguiu. - Estas são as regras: Não peguem no nariz nem cocem os testículos na mesa. Ambos os hábitos são repulsivos.

—Depois nos dirá para que não nos embebedemos! — Protestou Joseph.

—Conheço-os muito bem para isso, mas não quero que urinem sob a mesa nem nos cantos. As noites são cálidas aqui. Saiam fora e façam o mesmo, se querem vomitar. Se quiserem alguém e este ou esta concordar, levem a um dormitório. Temos muitos. Nada de rolar pelo chão sob as mesas.

—E se disser que sim a mais de um? — Ronronou Matrona.

—Então todos esperarão seu turno. Não haverá brigas para ver quem é o primeiro. E por último, mas não menos importante, nada de uivos. E nenhuma mudança de pele sob nenhuma circunstância. Acredito que isto cobre a maioria das coisas que podem ocorrer esta noite. Quanto ao resto, usem seu sentido comum.

Maeniel estava no certo. O grande salão de jantar estava bem mais atraente à luz dos abajures que durante o dia. As chamas amarelas projetavam um resplendor de elegância sobre as mesas cobertas de tecido, as gastas cortinas e as pinturas danificadas.

O Conde Otho foi o primeiro a chegar. Era um homem corpulento, sólido como uma rocha. Possuía lábios finos, quase invisíveis, e um nariz farpado. Seus olhos fundos mostravam sua dureza. Não só parecia capaz de condenar a morte um homem, como também fazê-lo ante a sua esposa e seus filhos, sem que lhe alterasse um fio de cabelo.

Maeniel se inclinou profundamente. Os olhos do Otho varreram o ambiente e depois se cravaram no mais valioso. As pesadas baixelas de prata sobre as mesas.

O pessoal de Maeniel estava reclinado em leitos junto às mesas. Estavam limpos, penteados, sóbrios e comportando-se o melhor que podiam. O Conde Otho os ignorou, com seus olhos e sua mente absortos na prata.

—É tua ou a alugaste para a ocasião? — Perguntou.

—A vila? — Disse Maeniel inocentemente.

O conde fitou seus olhos.

—Por favor. – Ele disse. - Não se faça de tolo.

—É minha. - Respondeu Maeniel. - Sou um homem rico. Minhas saudações Sua Majestade Carlos, o rei dos francos. Sou seu mais obediente, humilde e leal servo.

Otho limpou a garganta.

Maeniel pegou uma pesada taça da mesa. A prata era tão pura que podia fazer uma marca com a unha. Ele a entregou ao conde.

Otho mordeu brandamente a base e a sopesou em sua mão, com um olhar de aprovação.

—É um homem generoso.

—E se apresentar meus cumpridos ao rei, verá que posso ser ainda mais.

Otho fez saltar a taça no ar, sentindo seu peso.

—Entendo que quer remarcar sua lealdade.

—Por completo. Não tenho exército e não quero me encontrar com um franco chamando a minha porta.

—Um homem como eu gosto disso. - Disse Otho. – Me assegurarei em falar bem de ti ao rei.

Uma agitação entre os criados os interrompeu.

Regeane saiu de sua carruagem rodeada por sua guarda pessoal e começou a caminhar pelo amplo atalho, para o triclinio.

Por mais calculista que seja. Pensou Maeniel. Não pode imaginar o aspecto que tem agora.

Ela estava formosa. A brisa noturna colava seu longo vestido de seda a seu corpo virginal. Não andava com o olhar baixo, como Talvez devesse fazer uma donzela, mas com a cabeça erguida. Seu jovem rosto era belo como uma flor, sobre a suave coluna de seu pescoço, com a delicada face emoldurada por um fino véu de renda. Seu cabelo cor da meia-noite estava coroado de flores. Jovem, na cúspide de sua feminilidade, ela avançou para ele com expressão enigmática à luz das tochas. Quando chegou à porta do triclinio, estendeu sua mão para Maeniel.

Ele levou aos seus lábios a perfumada suavidade e lhe beijou os dedos.

—Saudações, minha dama. Compartilhará meu leito?

Algo mudou nos olhos dela, demonstrando que havia captado o duplo sentido da pergunta.

O lobo em Maeniel se agitou nervoso. É perigosa. Ele disse ao homem tão claramente como se tivesse falado. Depois se foi e Maeniel, o homem, disse que não fosse tolo. Como podia aquela garota frágil e como uma flor ser um perigo para ele?

Regeane se deixou levar pelo braço até um lugar de honra sobre um leito elevado. Reclinou perto de Maeniel. Aquilo foi um sinal para que todos outros ocupassem seu lugar.

O leito de Maeniel e Regeane estava sobre um assoalho em frente à porta e o jardim iluminado com tochas. Outros convidados ocupavam dois grandes leitos semicirculares, um em frente ao outro.

Como no palácio de Adriano, uma pequena banda de músicos se postou no centro do espaço entre as mesas, começando a tocar suavemente. O Conde Otho estava examinando o serviço com interesse. Como a taça de vinho, os pratos em frente a ele eram também de pesada prata. Maeniel decidiu que o conde ia ser um convidado muito caro.

Uma ruga apareceu no sobrecenho de Maeniel. Na mesa resplandeciam os pratos e taças de prata para os convidados, junto com fontes de fruta tardia e cântaros de vinho tinto e vinho branco frio. Mas não havia comida.

Todos olharam espectadores para o casal.

—Como o organizaste? — Perguntou-lhe Regeane.

—Encarreguei que trouxessem a comida. - Sussurrou Maeniel. - Espero que os serventes não estejam bêbados na cozinha.

—Dá uma palmada. - Murmurou Matrona para Maeniel, da mesa mais próxima.

Ele obedeceu.

Os serventes entraram no triclinio com os aperitivos, enquanto outros se dedicavam a servir o vinho.

Regeane olhou-os. Não se pareciam com nada que tivesse visto antes, mas decidiu que se conseguira comer ratos, aquilo não seria um desafio tão grande. Achou-os deliciosos, com um indício de salsicha de fígado.

O banquete era bastante lúgubre. A gente de Maeniel à direita parecia arrumada, sóbria e acovardada. Lucila, Antonius e outros romanos à esquerda, tinham um aspecto rígido, sóbrio e desaprovador. Só Otho parecia relaxado, como se estivesse calculando o valor total da baixela de prata. Maeniel pensou que ele parecia um homem convencido em ter encontrado algo bom.

Suspirou.

Regeane se reclinou rigidamente ao seu lado. Poderia estar do outro extremo da sala.

Os aperitivos foram despachados e Otho pareceu satisfeito de seus cálculos. Então começou a examinar Regeane, loteando-a. Lucila e Antonius se encontravam a seu lado.

—É muito bela. - Disse o conde.

Um criado começou a servir um vinho branco, muito caro, mas quase repulsivamente doce.

Antonius sorriu:

—Observei que é fácil olhar para ela.

—Não me interessam muito as mulheres belas. - Grunhiu Otho. – Se mostram ser profundamente estúpidas, egoístas e vaidosas. Alguém com esse caráter é uma fonte de problemas.

—Não acredito que a estupidez, a vaidade ou o egoísmo sejam defeitos de Regeane. - Disse Antonius. - Nenhuma dessas características está desenvolvida em sua natureza.

—Então, que defeito tem?

—Nenhum. - Interveio Lucila, indignada e possivelmente um pouco culpada.

—Tolices. Há algo que falha nela. Uma garota tão atraente, de sangue real deveria ter se casado há muito tempo.

—Acredito, - disse Antonius em tom melífluo, - que sua família era muito pobre e sua mãe uma mulher muito devota que não estava disposta a ficar sem sua companhia.

—Sandices! — Sussurrou Otho. - Sua beleza atrairá amantes, como uma chama às traças. Esse idiota do Maeniel vai ter problemas.

—Ela rechaçará seus pretendentes com doces sorrisos e educadas negativas. - Replicou Antonius. - Além disso, parece que Maeniel é capaz de manter a ordem em sua própria casa.

—É rico, mas ela o arruinará. Gastará sua fortuna em roupas e jóias.

—Tolices. - Disse Lucila. - Esta moça não tem a menor inclinação à cobiça. Mas ao reverso. É singela em seus gostos e moderada em seus hábitos.

—Hum... Virtuosa, discreta e singela... Qual é o problema, então? Acaso é estéril?

Lucila se incorporou no leito fitando indignada, o conde.

—O quê? É uma noiva virgem e sabe muito bem. As que são como ela, mostram ser tão fecundas como um vale bem regado em mês de maio. É um fato que...

Antonius deu toque no tornozelo de sua mãe.

—Cale-se Mãe. Está se deixando levar da forma mais ofensiva.

Otho começou a rir.

Lucila fechou a boca com um audível estalo.

— Ela tem algum defeito. - Murmurou Otho novamente. – Ou é um desperdício deixar-lhe a esse Maeniel.

—Ela não tem defeitos. - Disse Antonius brandamente.

Otho riu novamente.

—É estúpida?

Lucila tomou um gole de vinho, com as bochechas acesas. Antonius se pronunciou: —O que considera mais perigoso: a estupidez ou a inteligência?

Otho provou o vinho espesso e adocicado.

—É um asco.

—Tem um gosto pretensioso. - Comentou Lucila.

—Certamente. - Corroborou o conde. - Seria um êxito na corte franco. Pergunto-me se a generosidade de Maeniel se estenderá a um jogo de ânforas para o rei.

—Certamente. - Disse Antonius. - Se não ele não der, a formosa dama Regeane o fará.

—É seu chambelán?

—Sim.

—Em resposta a sua pergunta, eu acredito que a estupidez é mais perigosa. Pessoa estúpida é mais propensa a não querer enfrentar os fatos, a se fortificar atrás de algum escuro ponto da lei ou de suas próprias e tolas considerações sobre o que resulta apropriado. Ou o que é pior, nega-se a tomar uma decisão até que se encontra a frente do desastre. Mas a inteligência pode ser persuadida a lidar com o mundo, a certo nível de realidade.

—Ela é inteligente. - Disse Antonius.

—É óbvio. Foi o bastante inteligente para te nomear seu chambelán. E ambos sabem que o que consegue em troca de nada é...

—É nada. — Antonius terminou a frase por ele.

Em seu leito, Regeane permanecia rígida ao lado de Maeniel. Seus sentidos de lobo eram agudamente conscientes da cálida massa junto a ela. Sentia o sadio calor de seu corpo no ar. Podia cheirá-lo. Devia ser seu cabelo; sabão e roupa branqueada ao sol, em seus ornamentos nupciais. Um tênue aroma de fumaça de lenha. Ele devia ter comprovando a comida nas cozinhas.

Estavam deitados em paralelo, face a face.

—Como está a comida?

—Como soubeste?

—O carvão. – Ela respondeu.

—Hum... Repulsivamente ostentosa, mas nada mal.

—Muito bem. - Disse Regeane.

—Tive que conter o cozinheiro. Queria colocar vinho a tudo. Ele usou açafrão e pimenta para tingir de amarelo a metade de Roma e queimar o estômago de dois terços de seus habitantes. E com um bom vento, poderia cheirar a canela e o prego de Atenas. Se o que cozinha possuir penas, plumas ou presas, ele tira depois de prepará-lo. Há um magnífico pavão branco aí dentro. Acredito que está morto, mas não estou seguro. Também há um javali que seria bastante ameaçador se não tivesse uma maçã na boca. Um faisão feito de alcachofras e uma grande alcachofra feita de carne de faisão. Nada parece o que é nem sabe como se supõe que deveria ser. Tudo isto está me custando um braço e uma perna, para não mencionar a mão e o pé que lhe colocarei em cima. Espero que seus amigos romanos estejam contentes.

Regeane começou a rir sem poder se conter.

—O cozinheiro também é alugado, como a vila?

—Oh. Sim. Graças a Deus que não tenho que levá-lo comigo, de volta às montanhas. Lá, nós comemos pratos mais singelos.

Novamente o aroma de fumaça de lenha. Parecia parte de sua pele. Ela pôde lhe ver junto a uma pequena fogueira ao amanhecer, com os raios de luz atravessando à fumaça que se elevava. Um cavalo ruano não muito longe. O ar era frio.

Em seu coração, Regeane soube que estava sonhando novamente. Como tinha feito quando Gundabald lhe colocou a corrente em seu pescoço, como ao tocar a roupa e as jóias. A diferença era que não queria que aquele sonho terminasse.

Ele tinha um pé apoiado sobre uma armadilha de carvalho. Usava uma singela túnica verde, meias marrons e botas. Sustentava um copo de couro na mão, uma taça de despedida. Bebeu e lambeu os lábios apreciativamente. Depois se voltou para ela:

—Cavalgará comigo, minha dama?

Regeane se aproximou dele.

—Sim. Oh, sim. - Murmurou.

Alguns homens passaram a seu lado, apenas visíveis entre a fumaça. Guiavam dois cavalos, um baio vermelho sangue e um corcel berbere, cinza como o aço e vários sabujos que puxavam de suas trelas.

Os olhos de Maeniel pousaram sobre ela. Possuíram-na, devoraram-na. Ela lhe pertencia. Ele atacaria mesmo o diabo se o Senhor dos Infernos tentasse arrebatar-lhe

Regeane se deteve quando chegou tão perto de Maeniel que não pôde se aproximar mais. Seu fôlego fumegava ligeiramente no ar frio. O calor que despedia seu corpo o acariciava. Tocou sua mão, a que sustentava o copo.

—Cerveja? — Perguntou.

—Não, vinho.

—Dê-me um pouco.

Maeniel aproximou o copo de seus lábios, e Regeane bebeu. O aroma era embriagador, ligeiramente quente e doce, mas com a acidez das maçãs verdes. Ela suspirou.

O braço livre do homem rodeou sua cintura.

—Cavalgaremos para as montanhas. Conheço um lugar acima das nuvens, que domina o mundo inteiro. Deteremo-nos ali e nos deleitaremos. — Ele inclinou a cabeça e começou a beijar as gotas de vinho que estavam nos lábios dela, uma a uma, suavemente.

Ela suspirou novamente, devagar e com os olhos fechados. Ao beira da letargia, sonhou caindo. Regeane desabou, despertando pelo susto.

Maeniel riu.

—Tão aborrecido sou, que faço com que durma?

—Não! – Respondeu, ruborizando violentamente.

Ele arqueou as sobrancelhas.

—Ah.

Incômoda, Regeane mudou de postura sobre as almofadas. O vestido se esticou sobre sua coxa, puxando por um momento do tecido que cobria seu peito e seu estômago.

Maeniel inspirou profundamente. Suas fossas nasais se abriram como as de um semental nervoso. Afastou o olhar bruscamente e quando voltou a fitá-la, havia algo novo em seus olhos. Alongou a mão e elevou o colar que usava ela em torno da garganta.

—Dizem. – Regeane balbuciou. - Que não sou bem dotada.

—Uma flagrante mentira. – Disse Maeniel. - É soberba em todos os aspectos, fresca como as primeiras flores selvagens que florescem através da neve invernal; pura como o ar da montanha que sopra nos passos; fragrante e deliciosa como o feno recém seco em uma cálida tarde de outono.

Seu contato seguia parecendo casual. Mas não era. Seus dedos estavam quentes. Moviam-se brandamente para cima, tocando seu ombro, depois a pele de sua nuca. Regeane era muito sensível ali, não sabia por que, possivelmente por causa da loba. Em qualquer caso, estremeceu ligeiramente ao senti-lo e seus joelhos afrouxaram. Ela ruborizou, com as bochechas ardendo. Sentiu que seus lábios e, sim, outra parte começavam a inchar. Envergonhada por mostrar sua paixão tão abertamente, ela baixou a cabeça. Antonius observava atentamente.

—Parece que ele está disposto a comê-la viva. – Ele disse a sua mãe.

—Sim e ela parece encantada em ser o prato principal de seu próximo festim. Espero que ambos saibam o que estão fazendo.

—Acredite-se, Mãe. Não sabem. - Suspirou Antonius.

—Formosa... - Disse Maeniel. Sua mão seguiu subindo, acariciando seu cabelo. - Simplesmente formosa.

Regeane se deu conta de que tinha a testa quase apoiada em seu ombro. Ele estava mais perto. Tentando romper o feitiço, disse ironicamente:

—É um perito.

Maeniel lhe acariciou a face, depois o queixo e levantou sua cabeça. Alguns momentos antes estavam sentados a vários centímetros de distância, mas agora sua face estava somente há algumas polegadas da dela.

—Formosa, deliciosa donzela. – Ele sussurrou. – Você não tem a menor idéia de quão bons são meus créditos como perito. — Ele deu-lhe um casto beijo de irmão na fronte e se afastou.

Regeane exalou um suspiro de alívio.

—Tão inoportuno te pareço?

—Não. - Respondeu ela brandamente. - Acredito que minha mente esteja corrompida por uma loucura sensual que nunca havia sentido antes. Sinto-me culpada e assustada, de que os outros possam vê-la.

—Ah! - Disse Maeniel e levou a mão à testa em um zombeteiro gesto de profunda tristeza. - O que? Há uma mancha de vergonha em seu coração?

—Não. - Disse ela—. Meu coração está estupendamente bem e também o resto de meu corpo. São as fofocas da aristocracia romana o que temo. Você não acreditaria o quão rápido e longe que pode viajar uma história na boca das mulheres. "Oh, você teria que ter visto. - Ela imitou. - Ela não podia esperar para sentir a boca dele sobre a sua. E ele... Não era melhor, despindo-a com os olhos diante dos convidados... Tentando ocultar suas carícias furtivas com o disfarce da cortesia... Repulsivo, querida. E em um matrimônio como o seu, onde o decoro deveria ser absoluto".

Lucila e Antonius os observavam desde sua mesa.

—Saibam ou não o que estão fazendo, - disse Lucila, - é bom... O homem é fogo, a mulher a estopa, chega o desejo e sopra. E aqui está soprando como o vento, meu filho.

Antonius suspirou.

—Tomaste precauções?   

—É obvio. — Lucila fez um gesto com a mão, quase derrubando uma urna de prata decorada com uvas púrpuras e brancas.

Cera? Pensou Antonius, sem estar seguro. Fosse o que fosse não eram uvas.

—Os mercenários? — Perguntou. - Onde estão?

—Rodeando a vila. Para o caso de algum... Acidente.

A música se tornou mais e mais alta. Quando o servente tentou encher novamente a taça de Antonius, ele a cobriu com a mão e meneou a cabeça. O nível de ruído estava aumentando. Uma jarra circulava dissimuladamente entre os músicos, que tocavam ligeiramente desafinados.

Regeane observou com alarme que bastante convidados começavam a ter os olhos frágeis.

Maeniel observou com alarme que Gavin tinha conseguido cruzar a sala e estava compartilhando o leito de Augusta, inegavelmente a mulher mais atraente da festa depois da noiva. Oh, não! Pensou. Os homens podem pensar o que quiserem da castidade dos bárbaros e dos lobos, mas Gavin está sempre à espreita.

—Comprou você o vinho? — Perguntou-lhe Regeane.

—Não, por quê?

—Não sei o que lhe jogaram.

—O que? Como o que lhe jogaram? Quer dizer algo em relação ao vinho? A que se refere?

—Ópio, absinto, cicuta... Essas coisas.

—Cristo! Onde está essa maldita comida? Talvez, se conseguirmos que comam alguma coisa...

Os comensais, incluindo a gente de Maeniel, pareciam excepcionalmente desinibidos. Gavin estava sussurrando algo ao ouvido de Augusta, que o ouvia de olhos baixos.

Silvia estava reclinada junto a Joseph e Gordo. Usava um vestido dourado, em uma escolha desafortunada. Ela parecia um sol em miniatura, ao refletir a luz dos abajures. Alguém a beliscou e ela se levantou no ar com um gemido. O leito no qual estava fez um ruído, rangendo e torcendo ameaçadoramente. Gordo e Joseph tentaram parecer inocentes.

—Acredito que essa cama é muito velha. - Disse Regeane para ajudar.

Maeniel passou a mão pela face.

—Onde está essa...

Naquele momento, uma trompetista soou torpemente na porta do salão e o cozinheiro e os criados entraram com a comida.

O primeiro prato era evidentemente um javali. Suas presas tinham uma cor dourada e o resto de seu corpo parecia coberto por um brilhante esmalte branco, adornado com imagens de distintas ervas culinárias.

—O que é isso? — Perguntou Regeane quando passou junto a ela.

—Que me condene se eu sei. - Respondeu Maeniel.

O javali branco deu três voltas à mesa em forma de ferradura, enquanto a desafinada trompetista seguia soando como uma ovelha doente.

Por fim, Augusta, que tinha adormecido com a cabeça apoiada no braço de Gavin, despertou. Olhou a seu redor enquanto piscava, voltando à consciência.

A trompetista fez um ruído particularmente horrível.

—Jesus! - Se queixou Augusta. - Que alguém mate essa coisa e acabe com sua miséria.

Outros convidados gostaram entusiasticamente daquela sugestão e a trompetista emudeceu.

Maeniel conseguiu deter o avanço do javali o tempo suficiente para trinchá-lo. Resultou ser uma complexa surpresa de carnes, composta de vitela e porco, com bolsas de erva-doce, queijo e fígado. Os convidados caíram sobre ele, ajudados em sua gulodice por um molho de passas adoçada com sedimentos de vinho.

O pavão branco entrou a seguir, transportada por nada menos que quatro criados. O trompetista não pôde resistir à tentação e o peru chegou à mesa justo quando o instrumento emitia seis ou sete sons parecidos com fortes ventosidades.

Augusta pareceu ofendida, o que o resto dos convidados considerou hilariante.

Augusta golpeou a mesa com sua taça:

—Façam calar esse idiota. – Ela gritou. - Coloquem um bocal nesse corno e acabem com ele. Mais vinho para todos. Estou tão seca como o deserto da Arábia..

As jarras de vinho começaram a circular.

Maeniel contemplou o pavão que descansava com todas suas plumas sobre uma pesada fonte de prata, com a cabeça colocada timidamente sob uma asa.

Os quatro cozinheiros se plantaram orgulhosos ante Maeniel.

—Oh, que lástima. - Sussurrou Regeane. - É tão bonito que não pode saber muito bem. Teria ido melhor com frango assado.

Maeniel exalou um eloqüente suspiro e deu à ave uma espetada de prova com a faca de trinchar.

O peru tirou a cabeça da asa e olhou Maeniel com olhos reluzentes. Não parecia contente.

Os quatro cozinheiros ficaram atônitos e começaram imediatamente a culpar uns aos outros:

— Acreditei que você se ocupava em prepará-lo. - Repetiam mutuamente. Depois começaram a fazer dramalhões e intercambiar acusações, no vulgar latim das ruas.

O peru olhou perversamente para Maeniel e lançou o estreito bico contra seu olho esquerdo. Maeniel se abaixou bem a tempo, mas pôde sentir como o bico lhe roçava o cabelo.

O ave se voltou mostrando uma clara visão de sua parte traseira. Depois desdobrou sua cauda, lançou um grito incrível e saltou no chão. Saiu do triclinio com passo majestoso e todo o ar crédulo de um conquistador, seguida pelo aplauso dos convidados.

Maeniel se voltou para os cozinheiros, que seguiam discutindo:

—Silêncio! —Sua voz soou como um bloco de pedra se chocando contra outro. Os cozinheiros se calaram imediatamente. - Tragam o resto da comida e sirvam antes que o bom sentido e a razão de meus convidados sejam anulados pela bebida. E não quero mais ruídos grosseiros e indignos desse maldito corno. Enquanto isso, agradeço-lhes a nova experiência. Nunca haviam me servido um prato que tentasse me trinchar. Não me tragam nada mais que salte da fonte e fuja quando eu tentar comê-lo.

Os cozinheiros assentiram e se saíram rapidamente. O resto da comida chegou em seguida. Estava claro que, além do peru que agora passeava perto do lago, com suas plumas desdobradas e resplandecentes à luz da lua, o cozinheiro se esmerou.

A alcachofra gigante resultou ser feita de espinafres, acompanhadas com toucinho, azeite de oliva e ovos duros. Estava deliciosa. Seguiu-a um porco-espinho feito de verdadeiras alcachofras cheias de miolo de pão, queijo e uma mistura de ervas frescas e escuras azeitonas picantes. Os pratos de frango eram perfeitos. Capão tenro em amêndoas, em uma nata de amêndoas e sálvia; aves defumadas de carne rosa em um escuro molho de vinho. Outras maceradas em vinho tinto e envoltas em um presunto curado em sal e acompanhadas de fatias de melão. Peitos de frango maceradas em vinho branco e amadurecidas com açafrão e estragão, com um caldo abundante em pasta com carne siciliana. Tudo seguido de, em caso de que alguém seguisse com fome, pelo menos uma mais dúzia de carnes aromatizados com sálvia e erva-doce.

Os vinhos foram à coroação de uma safra rica em esplendor. Havia um branco delicado como uma flor, com uma suave fragrância a manjericão. Vinho tinto, de suave textura e cheio dos complexos aromas da fumaça subindo entre as parras enquanto os trabalhadores se alimentavam de caracóis. De longas noites em escuras adegas repousando, enquanto o vento que parecia surgir das geladas Dolomitas despia as vinhas de uma última geada da primavera, deixando as pequenas uvas verdes e com o toque ácido para a colheita de uvas. Um gosto que ressoava na língua como o orgástico momento final da união amorosa.

Regeane brindou por Maeniel com o vinho branco sobre amostras dos pratos de frango. Ele brindou por ela com o vinho vermelho sobre um leitão cozido em maçãs, acompanhado de suco de laranjas da Ibéria.

Os convidados haviam bebido muito estavam nos braços do Morfeo. Alguns poucos, inspirados por Baco saíram atrás do pavão. Um pequeno grupo perseguia a ave ao redor do lago. O peru era lento, mas seus perseguidores eram ainda mais, movendo-se inseguros sobre suas pernas, pelo vinho tomado com o jantar. Alternaram-se caindo no lago, para logo serem pescados por seus companheiros. Em tais ocasiões, estavam acostumados a fazer uma pausa para beber um pouco mais, para não pegar frio.

Gavin estava lançando os mais elaborados cumprimentos a Augusta, cujo marido Eugenius estava presente e sóbrio. Cada vez que Gavin começava a beijar o ombro branco e sardento de sua mulher, Eugenius ficava a brincar ostentosamente com o punho de sua adaga. Augusta que estava totalmente bêbada, não podia falar e ria constantemente.

Antonius e Lucila estavam absolutamente sóbrios, ao igual à Matrona. Os três dirigiam turvos olhares a Maeniel e Regeane.

O casal de homenageados não estava precisamente sóbrio. Tinham alcançado esse enlevado estado de alegria no qual todas as mulheres são formosas e todos os homens belos, onde as luzes são mais brilhantes, a música procede do coro celestial e todas nossas inibições são como fios, para uma mão despreocupada.

Nas profundezas da alma de Regeane, a loba estava preocupada, mas a mente da mulher não. A mulher estava bêbada, mas só em parte para causa do vinho. O desejo ardia nela como nunca havia acontecido antes. Ah! O que sentia estava mais à frente do mero desejo. Era uma entristecedora necessidade que não só consumia seus temores, mas inclusive reduzia o sentido comum e a razão, a pálidas e poeirentas cinzas. Ela devia ter aquele homem. Quando ele a olhou como o grande predador cinza olha para um cervo, a mulher compreendeu que Maeniel estava preso na mesma louca fogueira que ela.

Perto de seu leito havia outro onde descansavam Silvia, Gordo, Joseph e alguns mais. Em sua maioria estavam inconscientes, mas Silvia, um montículo dourado à luz das velas, tentava sair. Presumivelmente por causa dos restos de vinho em sua bexiga. O leito rangeu fortemente e caiu no chão. Maeniel ergueu os olhos para o alto e suspirou.

—Espero que não seja uma antigüidade valiosa. - Disse Regeane.

—Não tem importância. – Ele disse enquanto a ajudava se levantar. - Quando o dono da vila vier me cobrar pelos danos, o móvel se transformou em uma estimada herança pertencente a sua família desde os dias dos Césares, que não pode ser substituído por simples metais preciosos em forma de moedas. Mas, enfim, ele dirá, nestes tempos degenerados, que o vil metal deve compensar a beleza, a antigüidade e o orgulho familiar. Se contentará com alguma coisa, preferivelmente não o plebeu cobre ou a prata mercantil, mas o aristocrático ouro.

—Hum... — Murmurou Regeane ao se dar conta que estava sendo guiada para fora da sala de banquetes, para uma quarto vazio. Ela se deteve, resistindo durante um momento.

—Não há nada errado. - Disse Maeniel. - Estamos casados.

A loba olhou Regeane de sua escuridão primitiva. Parecia preocupada. O lado humano tinha turvado sua mente com drogas ou álcool. Algo estava errado, como na noite do banquete com o Papa.

Maeniel descansou um braço sobre seu ombro, guiando-a. Longe dos braseiros do salão, ela podia sentir o calor que emanava de seu corpo. Ele correu uma cortina, e o ruído das argolas repicou nos ouvidos de Regeane.

Estavam em um quarto iluminado só por uma vela em um castiçal. Maeniel fechou a cortina com uma mão e atraiu à mulher para si com a outra.

O beijo não brincava. A língua do homem explorou sua boca e seus braços e mãos rodearam seu corpo, com os quadris colados. Seus seios se incendiaram ao se mover contra um peito que parecia guarnecido de aço.

Enfim, ele a soltou e Regeane bocejou procurando ar. Mas o comichão de intranqüilidade seguia agitando sua mente.

—Venha, bebe um pouco disto. - Ofegou Maeniel aproximando seu corpo.

Regeane viu um cântaro e uma taça de prata sobre a mesa.

—São peças muito valiosas. - Disse Maeniel, assinalando-as com um gesto. - E realmente são antigas. Dizem que Lívia, a irmã do César Augusto, mandou-as fazer para seu amante favorito e serviu de modelo para a figura feminina.

As figuras gravadas no cântaro mostravam um homem despindo uma mulher, beijando seus seios enquanto deixava que a túnica escorregasse por seus quadris.

A taça tinha um círculo de rubis, um fogo vermelho escuro que ardia no quarto em sombras. O relevo ao pé da taça mostrava às duas figuras em pleno abraço amoroso.

Estavam unidas, mas ela se inclinava um pouco para trás. As mãos do homem a acariciavam e o rosto dela mostrava os inícios do êxtase.

Regeane e a loba contemplaram aquela culminação do desejo. O quarto girava como se estivessem caindo. A mensagem enviada pela loba era de profunda inquietação: Isto não acabará como deseja.

Mas os braços de Maeniel estavam em torno dela e seu desejo crescia novamente, mais forte pelo breve descanso.

O beijo foi menos intenso, mas as mãos dele procuraram e encontraram lugares que respondiam a suas carícias com espasmos de prazer. Quando lhe provocou alguns gemidos, liberou-a e encheu a taça.

—Beba. – Ele sussurrou.

—Não sei... Acaso quer que a noiva fique inconsciente? Bebi muito vinho.

—Não. - Respondeu ele. Sua voz era amável, hipnótica e de uma vez embriagadora. - É o vinho do desejo. Hidromel da primavera. Na primavera, as abelhas se alimentam de papoulas brancas levadas pelos ventos de março. Flores selvagens que salpicam prados ainda cobertos de neve. O vinho do amor, servido somente aos amantes.

Regeane bebeu. O hidromel era uma indescritível e doce essência da primavera, um líquido que se dissolvia em sua língua, um toque que começava em seu coração e chegava até as pontas de seus dedos. Seus temores adormeceram. Seu consciência estava aflita pelo desejo e não tinha espaço para nada mais.

Ele a beijou novamente e ela sentiu o gosto do hidromel em seus lábios.

Maeniel a fez levantar o queixo, com um dedo.

—De quem você é?

—Tua.

—Tire o vestido.

Ela o fez, tirando-o pela cabeça e jogando-o em um lado. Nunca chegaremos ao dormitório. Ela pensou. Mas a quem importa.

Ele a beijou novamente. O corpo de Regeane estava quase intumescido pelo prazer em alguns lugares e quando os dedos do homem a acariciaram através de sua camisa de linho, ela se sentiu como se estalasse em chamas. Desejava-o de forma insuportável, simplesmente insuportável. Morreria se ele não a possuísse.

—Faria algo que eu te pedisse?

—Sim.

—A camisa.

Em um momento, a camisa caiu ao chão. Regeane ainda usava outra, sem mangas, assim como a proteção em seu peito e um pano de linho cobria seu sexo.

Ele colocou a mão sob sua camisa e fez cair o tecido que ela usava. Depois moveu a mão para cima, lhe levantando a camisa. Ficou contemplando o suave e encaracolado delta de Vênus e ela ruborizou. Maeniel pôde sentir o calor contra sua pele.

Ele lhe subiu um pouco mais a camisa e soltou a proteção dos seios de Regeane, que caiu no chão. Então deixou que a camisa voltasse para seu lugar e lhe acariciou o corpo através da sedosa malha.

—Está bêbada?

—Sim.

—É virgem?

—Sim. - Respondeu ela com um suspiro.

—Sabe o que é o órgão de um homem?

Ela assentiu e viu que Maeniel havia estendido seu manto e sua túnica sobre a larga mesa.

—Muito bem. - Disse ele. - Entende o que estou a ponto de fazer com o meu?

—Ohooo!

—A estas alturas, tomarei como um sim.

Suas mãos seguiam explorando. Enquanto ele lhe falava, Regeane se sentiu perdida em um jardim de estranhas delícias, salvo que ele estava pegando as flores. Pouco a pouco, aquela parte de seu ser, o espírito que sussurrava sobre o passado remoto e às vezes do impreciso futuro, enviou uma mensagem a sua mente.

Ela estava com ele, até os joelhos em um lago da montanha. O lago era um lugar de selvagem beleza, rodeado de pinheiros, samambaias e rosas. Cascatas caíam de uma elevada rocha salpicada de líquen e musgo cinza esverdeado. A umidade da espuma em sua base molhava seus lábios e se condensava em seus cílios.

Seus corpos estavam unidos profundamente, quase até a dor. Ela estava sendo possuída pelo homem que a envolvia com seus braços.

O corpo dele estava úmido e usava uma coroa de ervas aquáticas com flores amarelas. Seus ombros e braços estavam cobertos por uma rede de aromáticas flores brancas. O que é? Perguntou ela. Recordava as histórias de donzelas seduzidas por deuses que exigiam adoração além de amor, e uma absoluta posse do espírito, assim como do corpo. Não era ela uma das tais donzelas e ele uma espécie de deus? Como suporta a carne mortal, o fogo divino?

Ele se moveu e ondas de prazer enlouquecedor percorreram o corpo de Regeane. Ele se moveu novamente. Os pensamentos se apagaram e também as lembranças. Tudo se dissolveu no poder do que a carne estava fazendo à carne.

Ela voltou para o quarto às escuras, descansando nos braços de Maeniel. Tinha sido uma lembrança? Um sonho? O futuro? Não importava, não era real, mas iria ser.

Ele tirou-lhe a camisa, deixando-a nua.

—Sabe o que estou a ponto de fazer? — Maeniel repetiu.

—Sim. - Respondeu ela. Seu corpo inteiro estremeceu. Livre das roupas, Regeane abriu as pernas para recebê-lo. - Acredito que morrerei se não o fizer. – Ela disse ingenuamente.

—Muito bem. - Replicou Maeniel, subindo-a sobre a mesa. A faca brilhou no ar, sobre seu ombro.

Nas profundezas da alma de Regeane, a loba rugiu um aviso. O desejo morreu. Sua mão esquerda apanhou a mão do homem da faca, que tentou se liberar. Mas ela não era uma mulher mortal. O homem pareceu surpreso por um momento ante a dor que ela estava lhe infligindo. Então baixou o braço e usando o ombro de Maeniel como ponto de apoio, conseguiu se soltar.

Maeniel afastou Regeane de um empurrão e se voltou golpeando com a velocidade de uma serpente. A faca do assassino abriu um talho em seu ombro.

Antonius afastou a cortina, uma tocha em uma mão e uma espada curta romana na outra. Cravou sua arma sob as costelas do atacante, paralisando seu braço direito.

Mas Maeniel viu o estilete em sua mão esquerda, apontado a seu coração. Ele adiantou-se pegando o assassino pelo ombro e o queixo e torceu-lhe violentamente a cabeça para a direita. O pescoço do intruso se rompeu, fazendo um ruído úmido.

Como um ramo verde. Pensou Regeane. Ao empurrá-la Maeniel, sua cabeça tinha batido na mesa, deixando-a aturdida por um momento. A loba tentou tomá-la, mas a tocha na mão de Antonius a impediu. Ela olhou como desabava o assassino, morto antes que sua cabeça golpeasse o chão.

—Maldito seja! Mataste-o. - Disse Antonius.

—Não tinha escolha. - Respondeu Maeniel, assinalando o mortal estilete.

Regeane se levantou, apoiando-se em uma mão enquanto buscava algum ferimento na cabeça com a outra.

Lucila entrou correndo no quarto. Pegou à cortina para se apoiar, mas ela se rasgou. Maeniel impediu que caísse, devolvendo-a a em posição ereta. Ela olhou para o assassino.

—Meu Deus! — Exclamou. - É Petrus.

—Conhece-o. - Disse Maeniel, muito brandamente. Naquela suavidade se escondia uma infinita ameaça.

Antonius replicou arrojando seu manto para Regeane:

—Mulher, está nua! Cubra-se!

Regeane se envolveu no manto, começando a recolher suas roupas do chão.

Os poucos convidados que permaneciam sóbrios se congregaram na porta.

—Minha mãe conhece muitas pessoas. - Explicou Antonius a Maeniel. - Algumas são inclusive respeitáveis... Outras não.

Regeane correu para outro quarto. Estava muito escuro, mas ela podia ver o bastante para se dar conta de que se tratava de um pequeno armazém. Uma janela cruzada deixava passar o frio ar da noite.

Recordou uma história da Bíblia. Na Gênese, uma vez perdida a graça de Deus, a nudez ia acompanhada da vergonha. Era certo. Ela tinha gozado de sua nudez junto a Maeniel. Havia se sentido vestida, reluzente pelo desejo, com seus medos e inibições dissolvidos pelo contato do homem.

A loba guardou silêncio, contemplando a vasta extensão de estrelas através da janela, em uma orvalhada de luz através do negro e morto céu.

Ela se lembrou do grande lobo cinza e o puro vento das montanhas. Recordou a gelada fisionomia de Maeniel... Sua faceta da morte quando despiu seus dentes e fez cair seu inimigo. Embora a idéia de lhe amar podia ser atraente para seu corpo quente e trêmulo, à noite, a loba e seu frio raciocínio humano lhe diziam que lhe confiar seu segredo seria uma loucura. Vira-o matar um homem com as mãos nuas.

Maeniel não liderava sua banda de rufiões por nenhum direito humano ou divino, mas porque era o mais forte e podia sossegar as revoltas com o punho e a espada. Eles o respeitavam não porque fosse o melhor, mas porque era o pior dentre eles. Cedo ou tarde, a loba teria que lutar por sua vida.

Já não sentia desejo. Só o frio e penetrante vento através da janela, e vergonha. Profunda vergonha e vulnerabilidade por sua nudez. Por tão nua e só se encontrava.

De repente ouviu um grito de mulher ao outro lado da porta.

 

                                               CAPÍTULO 31

Regeane despertou sobre um dos leitos do triclinio. Usava uma leve túnica de linho e lhe doía a cabeça. Apalpou um ponto muito sensível em sua têmpora esquerda. Ao se virar, notou que a sala estava semeada de cadáveres.

Havia um homem morto sobre a mesa, com a garganta aberta. Outro jazia à porta do salão, com sua cabeça em meio de um poça de sangue. Havia outro entre as cadeiras caídas dos músicos, atravessado por uma lança.

A loba fez com que Regeane se levantasse imediatamente. Quanto tempo havia passado inconsciente? Não muito, os primeiros raios do alvorada estavam chegando ao jardim. Devia descobrir o que tinha acontecido antes de tomar atitude.

Foi ao quarto onde tivera seu momento de paixão com Maeniel. Estava vazio.

Ante ela havia outra cortina. Atravessou-a e se encontrou em um estreito quarto romano. Havia um espelho sobre um pequeno penteador ao lado da cama. Pegou o espelho e se olhou nele, sua face estava imprecisa, tanto pelo objeto como pela escassa luz, mas estava com os olhos limpos. Não havia sangue em seu cabelo e só restava uma pequena marca de um lado da face.

Enquanto se olhava, seus traços voltaram a se rabiscar. Pareceu-lhe cheirar fumaça. Os olhos do espelho lhe devolveram o olhar através de um véu de chamas, e a fumaça os obscureceu. O metal esquentou em sua mão.

Ela teve a presença de ânimo para se afastar e deixar o espelho de barriga para baixo sobre a cama.

Virou-se, dando-se conta de que alguém mais a observava.

O quarto, seguindo o costume de muitos lares romanos possuía duas portas. Uma dava a outra estadia e a segunda ao peristilo.

Matrona se encontrava na porta do jardim.

—O que aconteceu? — Perguntou Regeane.

—Muitas coisas e nenhuma boa. Os homens de Basílio atacaram ontem à noite, quando você entrou em outro quarto para se vestir. Como uma tola, abriu a porta ao ouvir o grito de Lucila e lhe deram um murro. Deve ter uma cabeça muito dura. A princípio acreditamos que a tinham matado, mas estávamos muito ocupados tentando nos defender para te ajudar.

—Parece que você teve êxito.

—Sim. O que viu no espelho? — Os olhos de Matrona eram poços de escuridão. Parecia olhar Regeane de fora do tempo.

—Minha face.

—Oh, não. – Matrona sorriu. – Você viu mais que isso. Sei por que o espelho é meu. Uma vez ele pertenceu a uma princesa do grande povo que viveu aqui antes que os romanos fizessem que o Tibre começasse a cheirar. Os das tumbas pintadas. O que viu? Se me disser, poderei te ajudar.

Regeane tinha a boca seca.

—Só minha face. – Regeane insistiu.

—Como quer. - Disse Matrona encolhendo de ombros. Aproximou-se dela e examinou o machucado de sua têmpora. - Pouca coisa. Pela forma em que te golpeou o soldado e como você desabou, pensei que seria muito pior.

—Bem, pois não foi. Onde está Antonius?

—Lá fora, com meu senhor.

Regeane saiu para o jardim e Matrona pegou o espelho. Depois de alguns momentos, franziu o cenho e uma expressão de grande tristeza atravessou seu rosto. Depois voltou a deixar o espelho, de barriga para baixo, no penteador. Uma bela deusa de finos ossos decorava o dorso. Estava sentada em uma cadeira, com um pergaminho no colo, enquanto um moço saltava ante ela, tocando uma flauta. Os dedos de Matrona acariciaram o delicado trabalho.

—Uma vez a chamaram deusa, rainha do céu. – Ela disse. - Agora não posso recordar seu nome.

Regeane encontrou ao Antonius e Maeniel juntos. As roupas das duas estavam rotas e ensangüentadas. Antonius estava com uma vendagem no braço. Maeniel pareceu surpreso ao vê-la, mas Antonius não.

—Minha senhora! - Disse Maeniel, inclinando-se; - Acreditávamos seriamente ferida. Precisamente estávamos discutindo como encontrar um físico para ti. —Ele parecia confuso ao vê-la em tão bom estado.

Um sopro de brisa do amanhecer agitou a longa túnica cinza de Regeane. Estavam junto à estátua de algum deus que ela não conseguia identificar. Era formoso, mas lhe faltava um braço. Provavelmente. Ela pensou. Ele sustenta seu símbolo ritual. O rosto do deus tinha uma beleza andrógina. Sua cabeça se elevava para contemplar o céu que brilhava pelo este.

Regeane sentiu rigidez nos músculos de seu ventre e ao mesmo tempo a terrível certeza de que quando acabasse aquele novo dia, muitas coisas estariam resolvidas para sempre.

—Hoje é o dia em que se reúne o sínodo, não é? — Ela perguntou a Antonius.

—Sim.

—Por que é tão importante isso? —perguntou Maeniel.

—É um dia decisivo. Não só para o povo de Roma, mas também para os grandes senhores dos arredores. - Explicou Antonius. - Desidérius, o rei lombardo, desejou durante muito tempo controlar o Papado, para poder usá-lo contra seu inimigo Carlo Magno. Quer derrocar o atual Papa e escolher um lombardo em seu lugar, alguém que atue em seu favor e declare Carlo Magno um usurpador. O povo de Roma e os magnatas, os grandes senhores e os latifundiários devem escolher agora entre Desidérius e os lombardos e Carlo Magno e os francos. O que é seguro é que Desidérius destruirá este estreito estado que ainda pertence ao Papa e ao povo de Roma e o assimilaria ao ducado da Lombardia e converteria os vigários de Cristo em seus capelães da corte. É obvio, não é algo desejável ao ponto de vista de Carlo Magno nem o nosso, vivendo como fazemos neste pequeno resto do que foi uma vez o maior império sobre a terra.

Antonius deixou de falar e todos guardaram silêncio. Antonius podia ser intrigante, dizer verdades pela metade e mentir descaradamente com expressão de absoluta inocência, mas tanto Regeane como Maeniel ficaram comovidos por sua sinceridade naquele momento. E souberam que aquele homem estava dizendo a verdade tal e como a via.

Então ele rompeu a chorar. -

—Levaram minha Mãe. Estou seguro de que agora estarão torturando-a.

—Oh, Deus! - Disse Regeane, lhe abraçando. — Por quê?

—Antonius e eu acreditamos, - respondeu Maeniel, - que ela encomendou a tarefa de... Digamos... Petrus eliminar seu tio. Parece que estava acostumado a trabalhar para ela. Possivelmente o subornaram para que se passasse ao serviço dos lombardos lhe oferecendo um pagamento melhor.

Regeane murmurou a pior obscenidade franco que conhecia.

—Sabia que havia lhes dado muito dinheiro.

—Não. - Lhe corrigiu Maeniel. - Não acredito que lhe compraram com seu dinheiro. Acreditamos que seu tio renunciou à idéia de te controlar e me extorquir, e se associou com o Basílio e os lombardos. O objetivo de seu ataque era raptar você e Lucila. Parece que ela foi acusada de praticar magia negra, de ter posto o Papa no Trono do Pedro, fazendo um trato com o demônio, o inimigo do homem.

—O que... — Regeane começou a se perguntar pela acusação de lepra, mas Antonius secou os olhos rapidamente, lhe lançando um olhar de advertência. Ela se afastou um pouco dele. A decência não permitia sequer a uma grande dama familiaridades com um homem que não fosse seu marido.

Maeniel observou os dois com expressão opaca.

—Mas a acusação em si não importa, certo? Só que seja suficiente para destruir Adriano. De fato, o rei franco enviou o Conde Otho e seus homens para aumentar a resolução dos romanos, não para repudiar Adriano.

—Sim. - Disse Antonius amargamente. – Minha mãe dirá o que eles queiram ou o que mais lhes convenha. E fica para ver se os romanos apoiarão Adriano ou não.

—Você vai ao sínodo, não? — Perguntou Regeane.

—Sim. - Respondeu Antonius. - Quando mostrarem minha mãe, meus amigos e eu tentaremos resgatá-la de Basílio, não importa o que tenha dito e nem em que condição esteja. Mas quero que você pegue Regeane e fuja. Se partirem agora, podem estar na Ostia ao anoitecer. Têm bastante dinheiro para embarcar para território franco. Estarão sentados tranqüilamente em suas montanhas em poucas semanas.

Regeane se separou dos dois homens. Havia mais luz, mas uma espessa névoa enchia o jardim.

—Não. – Ela disse. - Não vou. Você e sua mãe são meus amigos. Mais que amigos, deste-me conselho e amparo. Pude ajudar antes e possivelmente possa ser útil agora. Não irei.

Palavras não pronunciadas flutuaram no ar entre eles. Agora era a esposa de Maeniel. O contrato tinha sido assinado e estivera a sós com ele, que podia argumentar a consumação.

—Use a força. - Disse Antonius

—Não funcionará. - Respondeu ela.

Maeniel olhou as mãos. Eram as grandes e poderosas garras de um lutador, musculosas e de dedos grossos. A noite anterior tinha matado um homem forte com elas. Elevou o olhar.

—A força não! — Ele exclamou. - De alguma forma, não acredito que a dama respeite mais minha força do que respeitava a de seu tio e seu primo. Não levarei a inimizade a meu leito, nem a olharei através da mesa. Além disso, compartilho a decisão de minha senhora. Jurei lealdade ao rei dos francos, Carlos. O chamado Carlo Magno. Minha palavra é meu laço, embora a tenha dado a um inseto como o Conde Otho. Apoiarei ao candidato de Carlos ao Papado. E como homem de Carlos, eu não desertarei de seu serviço em momentos de necessidade.

Regeane recordou seus temores da noite anterior: seu medo de que Maeniel fosse uma uva sem semente, um salteador sem escrúpulos. Viu que seus temores tinham sido tolos e lhe pegou a mão.

—Vejo que meu senhor é um homem de honra. Espero que seja também em seus entendimentos comigo.

Maeniel viu um olhar de quase enlouquecido desespero no rosto de Regeane.

—Espero... Acredito ser como há me descrito em todas as coisas, minha senhora. – Ele disse enquanto levava sua mão dela aos lábios, para lhe beijar os dedos.

Antonius secou as lágrimas com o manto.

—Loucos... Loucos... Loucos bárbaros. – Ele murmurou.

Matrona, que estava atrás de Regeane, interveio: - Eu te encontrarei outro vestido. Agora, vá e se banhe. A roupa que usa é de Silvia. Venha, há banhos para homens e mulheres. Paguei aos criados e eles estão esquentando a água. — Ela deu uma palmada. - Atendam-me e façam o que eu digo. Os bispos e cardeais estão se reunindo no coro do Luterano. A missa está a ponto de começar. Devemos nos apressar.

Regeane e Antonius se apressaram, Maeniel se voltou para segui-los.

—Espere! — Disse Matrona. - Quero te dizer algo.

Maeniel arqueou uma sobrancelha.

—O que?

—Venha. Siga-me. O que sei é muito importante para deixá-lo ao azar.

Matrona guiou seu senhor até o quarto onde ele estivera a ponto de morrer. O assassino seguia estendido no chão, onde havia cansado. O quarto estava cheio de luz agora e a cortina rota deixava uma abertura. Matrona se inclinou sobre o cadáver e pegou seu braço direito, mostrando a Maeniel a mão que Regeane havia segurado, para lhe salvar a vida. A mão estava solta.

—Os ossos estão quebrados. - Disse Maeniel, atônito.

—Um sim e outro não. - Esclareceu Matrona. - Mas os tendões estão destroçados. Isto não fez uma mulher normal. Ela te salvou a vida. Não há mais machucados na mão, porque ele morreu em seguida e não sangrou. Se uma mulher normal tivesse tentado deter o assassino, ele teria se liberado, lhe rompendo possivelmente alguns dedos e depois teria cravado a faca em suas costas.

Maeniel se ajoelhou junto a ela.

—Então...?

—Ela é a prateada. - Disse Matrona.

Maeniel se levantou.

—Não! - Disse.

Matrona grunhiu cinicamente e saiu para o jardim, seguida por Maeniel.

—Gavin me disse que você se crê velho porque viu alguns quantos Césares. – Ela disse. Ela se sentou em um banco junto ao lago e contemplou as tranqüilas águas. Havia manchas de azul nelas, à medida que o sol dissipava a névoa. O azul, o cinza e o branco das nuvens se perseguiram sobre a superfície da água. - Eu nasci antes dos deuses que fizeram os deuses. Não posso te dizer que idade tenho, porque quando nasci, não possuíamos as quatro estações em um ano. Cada inverno era uma espécie de morte para nós e lamentávamos o fim da vida e a beleza. Esperávamos cada primavera contendo o fôlego, temendo que não chegasse e quando chegava, voltávamo-nos loucos de felicidade pelo renascer do mundo. Viajei durante muito tempo com meu povo e subi nos navios quando chegam da Grécia através do escuro mar iluminado pelo sol. Sentei-me junto ao fogo em um salão cheio de fumaça e ouvi a um cantor cego que falava do belo mar azul. Pronunciei oráculos para os latinos quando se liberaram do povo das tumbas pintadas. Aqueles velhos romanos amavam e temiam meus poderes de mudança de pele. No fim, o medo prevaleceu e fui expulsa entre tochas e maldições. Encontrei outro povo nas montanhas. Vi pela primeira vez uma espada como a que usa Antonius, quando as legiões romanas entraram na Gália. Vi os soldados através da neve, e os separei de meu povo por meio de minha voz e me alimentei quando os invasores se perderam e morreram de frio. — Ela sorriu torvamente.

—O que aconteceu a seu povo?

Matrona encolheu os ombros.

—Eram como outros. Os homens não podem aceitar a soberania da fera. Não acreditarão que são nossos irmãos. Não acreditarão que brotamos da mesma raiz e somos parte da mesma árvore e que quando a árvore cai, todos perecem. Meu povo era livre e feliz. Eu o guiei até altos prados, em vales onde sabia que nunca chegariam os romanos, mas não estavam contentes. Sonhavam com o ouro romano, com o luxo romano. Pratos e taças de ouro e prata. Vinho branco e tinto. Mulheres suaves e formosas, vestidas de seda e veludo. Os romanos os subornaram e depois os conquistaram. E voltei a ficar sozinha. Não conto isto para ganhar sua simpatia, mas para que se dê conta de que sei muitas coisas. A garota é uma de nós. Ninguém mais teria conseguido romper a mão desse homem. Vi que ela se olhava em meu espelho. Não sei o que viu, mas pôde ver algo no espelho que usamos para ver mais à frente. Repito que é uma dos nossos.

—Eu não...

—Grande lobo cinza, não me aporrinhe com seu cepticismo. Agora, pelo menos sabe como te viu Gavin. Necessitarão de carros para ir a Luterano, eu me ocuparei das mulas. - Disse Matrona, partindo para os estábulos.

Maeniel ficou em silêncio. O que lhe havia dito Matrona, explicava muitas coisas de Regeane e dela mesma. Sempre tinha a vira como uma dos membros mais fortes e confiáveis de sua banda. Se ela havia visto o amanhecer do mundo, aquilo explicaria sua força e sua vontade de ferro: tanto ela como ele haviam suportado o tempo.

Matrona cumpriu sua palavra. Quando Regeane entrou no jardim havia uma carruagem puxada por mulas junto à porta. Matrona havia encontrado para ela um velho, mas respeitável vestido de seda de ouro. Ela o usava debaixo de uma camisa de seda, apenas mais branca que seu pálido rosto.

—Meu senhor.

—Minha dama. - Respondeu Maeniel, levando sua mão aos lábios. Recordou à loba de prata flutuando sobre a vegetação, com sua pelagem brilhando com o gélido fulgor do metal, ressaltado pelas regiões mais escuras da garganta, do ventre e do interior das patas.

Deus! Ela é formosa em ambas as formas. Depois de lhe beijar as pontas dos dedos, ele se demorou segurando a mão suave. Logo, se recordou da mão esmagada do assassino. Se Matrona estivesse no certo, ela lhe salvara a vida.

Maeniel e Matrona podiam envelhecer mais devagar que os mortais, mas envelheciam.

E se uma faca encontrasse seu coração antes que ele pudesse recorrer à mudança, morreria tão rapidamente como qualquer mortal.

Regeane liberou sua mão gentilmente, mas com firmeza.

—Devo ir já, mas obrigado por tudo. – Ela disse vacilante. - Opino igual a Antonius. Vá para suas montanhas e seja livre.

—A vida não é mais que uma moeda para ser gasta. Não estamos dotados de fôlego, nossos rostos não estão voltados para a beleza do mundo... Para que possamos nos encolher e nos ocultar da dor e das dificuldades. Vemos por igual a beleza e a fealdade e não criticamos quem a outorga. Estou as suas ordens. Meus homens e eu cavalgaremos com vocês, como suas escoltas.

—Tome cuidado. - Disse Regeane. - Tomarei a palavra.

Ele se inclinou e a acompanhou até sua carruagem.

Maeniel guiava às quatro mulas brancas que puxavam do veículo, procurando que mantivessem um passo cômodo para sua passageira. Gavin cavalgava ao seu lado, lhe cobrindo de acusações, advertências, ameaças e por fim, rogos.

—Você ficou louco? Tem os miolos cheios de vermes? Não raciocina? Meu Deus! Pense no que está fazendo! Essa garota franco poderia fazer com que o matassem! — Ele seguiu lhe curvando até chegarem ao palácio. Maeniel ouviu, renunciando a toda esperança de conseguir que Gavin o entendesse. Havia procurado aquela garota durante mil anos e podia perdê-la em um instante.

—Nunca tinha amado uma mulher humana antes. - Grunhiu Gavin.

—Tenho feito? Não? Se não uma, mas a mil e agora elas são pó. Todas elas... Tornaram-se pó.

Houve-as, antes que me capturassem como homem. Ele pensou. Essas não têm nomes. Mas as demais... Deus! Cada delas era uma mancha de culpa em sua alma, um lugar de dor que voltava sua mente.

Morgana, feia, mas com o desejo encarnado. Pele branca e sardenta, grandes seios eretos e uma boca generosa, sempre disposta a rir ou beijar. Largos quadris acolhedores. Um cabelo de fogo.

Genebra. Ainda desafiava os homens que, como Gavin, falavam mal dela. Maeniel estremeceu e elevou o olhar para as nuvens que cobriam o céu. Às vezes, o recipiente da carne é muito frágil para o espírito que contém. O corpo de Genebra era um frágil abajur com um fogo muito brilhante para uma casca mortal. Quando a levaram para a pira, as estrelas caíram dos céus cintilando contra o negrume da meia-noite. Os céus a choraram.

—Oh! Sim — Ele disse. - Amei as mulheres e paguei por meu amor. Agora são somente o pó.

E se enumerasse somente algumas poucas delas, minguaria como homem.

Ele deteve o veículo em uma das ruelas próximas ao palácio. A praça estava lotada, as pessoas se amontoavam em torno dos degraus da igreja. Maeniel se voltou para Gavin:

—Está disposto a me obedecer?

Gavin pareceu desesperado e ao mesmo tempo, aborrecido.

—É obvio. E a dar minha vida por ti. – Ele respondeu enquanto desmontava.

Regeane fingiu não ter ouvido nada.

—Minha senhora. - Disse Maeniel, lhe dando a mão para que saísse.

—Minha senhora, meu traseiro. - Grunhiu Gavin às suas costas. Imediatamente ele estava deitado sobre os paralelepípedos da rua, olhando para o céu e depois para as costas de Maeniel e Regeane que se afastavam. Não estava seguro de como havia ocorrido.

Matrona o ajudou a se levantar, sem sorrir.

—Pode ser que tenha razão. – Ela disse. - Pode ser que caminhemos para o desastre. — Os gigantescos Joseph e Gordo estavam junto a ela. - Mas no momento somos um somente. — Logo, eles avançaram para rodear Maeniel e Regeane, que tentavam abrir passo até os degraus. – Ele é a lei. Ele nos guia e nós o seguimos... À luta.

Regeane notou a aproximação da gente de Maeniel. Ante aqueles enormes homens armados e algumas mulheres, ela observou surpresa, que a multidão se afastava sem problemas. Chegaram em alguns instantes à praça em frente à igreja. A multidão havia deixado vazio o espaço aberto do centro. Os guardas Papais bloqueavam a entrada da igreja.

Antonius, vestido de branco, esperava com os homens de armas do Papa. Com aquela roupa, ele parecia um antigo romano, mas não usava toga, mas um grosso manto e uma túnica. Um pesado cinto de ouro lhe rodeava a cintura e ele levava uma grosa corrente do mesmo metal em torno do pescoço. A seu sinal, os homens do Papa abriram as portas de bronze para Regeane e seus companheiros. A multidão se afastou rapidamente para lhes deixar passar. De fato, se amontoaram.

No altar, a missa estava terminando. Os altos assentos de madeira do coro percorriam as paredes da igreja, albergando bispos e sacerdotes cardeais da cidade. Os grandes nobres ocupavam o centro da igreja. Os nobres e suas esposas eram um arco íris de cores para os olhos de Regeane Nunca ela havia imaginado que pudessem existir tantas ricas malhas. As cores cantavam. Os azuis, quentes como um céu do verão, contrastavam com o sedoso brilho de uma meia-noite invernal. O vermelho, rico como o coração de uma rosa, esfumava em púrpura imperial, delicado violeta da primavera ou cristalina ametista. Um festim realçado pelos brilhos de verde e ouro, competindo em captar a atenção. As jóias brilhavam em torno de pescoços, braços e mãos. Véus de seda, linho e renda cobriam as cabeças das mulheres.

A resplandecente multidão estava formada pelos partidários do Papa, seus juízes e seus amigos. Eram tão escolhedores Papais como os sacerdotes alinhados nas paredes da igreja. Tinham muito a perder se fracassasse a política franco do Papa e muito a ganhar se alcançassem êxito.

Regeane elevou o olhar e viu que o telhado da igreja dispunha de painéis de cristal colorido. Estavam banhados em uma cálida luz azul.

O espaço perto do altar estava vazio. O piso de mármore branco estava ligeiramente colorido pelas vidraças das janelas e dos painéis do teto.

Regeane olhou as pessoas que rodeavam o altar.

Gundabald e Hugo estavam lá. Ela soprou brandamente, com desprezo. Havia-lhes dito que se banhassem e eles pareciam ter feito. Seus cabelos e barbas estavam bem cortados e brilhavam com o que podia ser pomada. Suas roupas pareciam recém compradas e estavam assombrosamente limpas. Silve estava de braço dado com Hugo e usava um vestido de veludo azul, com um bobo sorriso nos lábios e uma aliança de casamento no dedo.

Regeane deixou sair dos lábios uma exclamação que tentou converter em uma tosse. Hugo soube que ela estava rindo dele e ficou vermelho. Mas Gundabald a olhou com um aterrador brilho de ódio. Basílio estava perto, com um contingente de guerreiros. O olhar de Gundabald se expressava tão claramente como se falasse: Logo você rirá pelo outro lado da boca. A risada de Regeane terminou com um estremecimento de medo.

Bárbara e Emilia estavam lá também, com Elfgifa. Quando a menina viu Regeane, tentou se liberar e correr para ela, mas as monjas a retiveram rapidamente. Perto, entre as monjas, estava a anciã da hospedaria levando pela mão um menino de aspecto muito asseado. Regeane reconheceu Póstumo e se surpreendeu ao se dar conta de que a mulher que tinha visto sempre como uma anciã devia ser a mãe do menino.

Inclusive Cecília estava ali, embora coberta por um pesado véu. Rufus estava com um numeroso contingente de seus homens no mesmo lado da igreja que Regeane. Ao que parecia, não só lhe acompanhavam seus soldados, mas também outros nobres, que deviam ser seus vassalos. Não sabia que ele era tão poderoso. Perto dele e aparentemente sob seu amparo, encontravam muitas das donzelas de Lucila. Regeane reconheceu Fausta e Susana entre elas.

A missa chegou a seu fim. Os coroinhas de Adriano lhe tiraram os adornos, deixando-o somente com o singelo chapéu branco, prerrogativa do Vigário de Cristo. Ele se dirigiu para a clara luz do teto da catedral.

Basílio abriu caminho entre seus homens até ficar perto de Gundabald e Hugo. Estava tão esplendidamente vestido como qualquer dos nobres, mas sua túnica de cor preta e de ouro cobria uma cota de malha. Ele usava um elmo sob o braço e espada no flanco. Elevou o braço e assinalou acusador, para Adriano.

—Falso sacerdote. Você não é Papa por escolha de bons homens cristãos, mas por intuito do Maligno. É o servo do Diabo e seu poder o sentou como uma blasfêmia na cadeira do Pedro.

A igreja ficou muda.

—Onde está ela, Basílio? — Perguntou o Papa.

Regeane pôde ver que Basílio ficava surpreso. Ouviu um rumor de passos. Os homens da guarda Papal entraram na basílica, enchendo os corredores laterais e afastando às pessoas da entrada e correram o enorme ferrolho de ferro das portas de bronze.

Uma onda de medo percorreu a multidão de magnatas. Inclusive as monjas se apinharam entre si. Umas poucas se benzeram, mas Bárbara se limitou a suspirar. Elfgifa, tentando não perder detalhes, tinha os olhos brilhantes de excitação. Mas não acontecia o mesmo com os adultos, quase todos pareciam assustados.

—Onde está ela? — Repetiu Adriano. A tranqüila fúria de sua voz era suficiente para sossegar um tumulto. Só uma Papa ou um rei pode soar assim. Pensou Regeane. Pela primeira vez desde que o conhecia, Basílio parecia assustado. – Você se encontra a algumas polegadas da morte, Basílio. Onde ela está?

Basílio olhou alarmado ao seu redor. Podia ter mais partidários na praça, mas na igreja estavam claramente superados em número, pelos do Papa. Estava preso na armadilha de Adriano.

Regeane captou um movimento a sua esquerda. Antonius estava abrindo seu manto para alcançar sua espada com facilidade. À direita, Maeniel estava fazendo o mesmo. Ela pôde ver movimentos parecidos entre todos os guerreiros presentes.

—Ela confessou. - Gritou Basílio.

—Basílio, - disse o Papa, - com a suficiente motivação, qualquer pessoa confessaria o que queiram que confesse. Quero-a aqui, agora mesmo.

Regeane ouviu uma sucessão de estalos e um ofego de absoluto espanto a seu redor.

Maeniel a segurou, tombando-a no chão e cobrindo-a com seu corpo. Ela elevou a cabeça para olhar mais à frente do braço do homem. Os soldados da guarda Papal tinham arqueiros entre eles. Os estalos tinham sido o ruído dos arcos sendo montados. Muitos homens tinham imitado Maeniel, jogando-se no chão com suas esposas.

Basílio e seus homens seguiam em pé.

—Isso, Basílio. - Disse Adriano. - Fique onde está. Se você se jogar no chão, meus homens tomarão como um sinal para disparar.

Basílio chamou um de seus homens, falando rapidamente em seu ouvido. Os dois olharam para Adriano.

O Papa assentiu, e o soldado saiu da igreja através da sacristia.

Bum! Bum! Bum!

Regeane havia se esquecido dos bispos e sacerdotes cardeais, que tinham permanecido sentados e quietos em seus bancos elevados, olhando acima das cabeças da multidão. Não estavam ameaçados pelos soldados do Papa, que se colocaram atrás do coro e dando as costas aos prelados.

Bum! Bum! Bum!

Regeane se retorceu sob o Maeniel, mas logo que pôde mover seu corpo.

—O que é esse ruído? Deixe que eu me levante. Estou me afogando e não posso ver o que acontece

Maeniel soltou uma risada e levantou um pouco seu corpo

Bum! Bum! Bum!

—O que é isso? — Repetiu Regeane.

—Cale-se. - Disse Antonius. - É um dos sacerdotes. Não está contente com as arbitrariedades de Adriano e dá golpes com seu bastão contra o piso dos bancos do coro.

—O que vai acontecer?

—Nada, a menos que outros se unam a ele.

Logo que acabou de falar Antonius, a basílica inteira ressoou com os golpes, quando outros bispos expressaram sua opinião.

—Merda! - Disse Antonius.

—Não é bom, eu entendo. - Comentou Maeniel.

Adriano elevou sua mão esquerda em um gesto para os arqueiros. Os arcos desceram e suas cordas afrouxaram pouco a pouco. Os golpes foram baixando.

Os notáveis no centro da nave começaram a se levantar, rezando agradecidos.

Os homens de Basílio, que se tinham apinhado em um grupo compacto, cada um lutando por um lugar atrás de outro, relaxaram, dando um pouco mais de espaço.

O rosto de Basílio começou a mostrar um pouco de cor.

—Temos provas. – Ele gritou.

—Provas? — Exclamou alguém. - Inferno, morte e condenação! Prova do que? Que crime cometeu Sua Santidade?

Regeane viu que quem havia falado era Rufus, com a face vermelha pela fúria.

Basílio chamou... Gundabald!

Gundabald se aproximou lentamente do espaço central entre Adriano e Basílio. Deteve-se e assinalou Regeane com um dedo:

—Ali está, a filha do Diabo. — ele deixou cair o braço. - Se dizem que o demônio pode aparecer como um anjo de luz. Isso aconteceu minha pobre irmã Gisela. Ele seduziu-a com seu ouro e sua atitude. Pretendia se casar com ela... Tomá-la em honorável matrimônio. — Gundabald voltou a assinalar Regeane. - Ele engendrou a aquela menina demoníaca nela. Felizmente, afastamos a minha irmã de seu visitante do reino das sombras, mas descobrimos com horror que havia ficado uma menina.

Regeane sentiu o áspero ar entrando e saindo de seus pulmões. Seus lábios, sua face e seus dedos estavam aturdidos. Nunca imaginara que seria possível se assustar tanto como naquele momento. A igreja estava em completo silêncio, pendente das palavras de Gundabald.

—Ai... Minha irmã era uma Santa. Nós lhe pedimos que estrangulasse a criança ao nascer, que a enviasse a se unir às legiões dos condenados. Mas para sua eterna aflição, ela não o fez. Em seu lugar, dedicou sua vida à penitência, chorando por seus pecados, tentando redimir... — Ele disse elevando a voz e assinalando outra vez Regeane. - A esta filha da escuridão. Ela tem poderes. – Ele rugiu e sua voz reverberando sob o telhado. - Pode caminhar sobre dois pés ou correr a quatro patas. Nenhum ferrolho ou fechadura podia contê-la. De noite, podia ser vista como uma névoa, convertida em fumaça para fugir através de uma janela fechada ou sob uma porta. Pode adotar a forma de um morcego e voar dentro e fora do inferno. À noite em que sua mãe morreu, ela correu a quatro patas e tomou seus bestiais amantes, tantos como a desejaram, sob a luz da lua.

A irmã Angélica se destacou entre as monjas, lançando um penetrante gemido que fez tremer as telhas e depois sofreu um ataque de histeria:

—Soube quando a garota viu Hildegard, que os mortos são como os vivos para ela. Essa diaba é uma com a baixeza da tumba. Enviem-na para lá, pois seu lugar não é com os vivos.

Gundabald se aproximou de Regeane, detendo-se justo ao alcance de um braço. Parecia estar quase sóbrio. O branco de seus olhos estava de cor amarela, mas já não era uma teia branca. Observou-a com turva satisfação.

—Está morta, mocinha. Morrerá antes que entre o sol! — Ele disse-lhe em voz baixa, aproximando-se depois de Basílio.

O lombardo se adiantou para se unir a Gundabald.

—Antonius! — Ele gritou. - Venha aqui.

Antonius se aproximou do centro da nave, com a mão sobre o punho de sua espada.

Basílio o contemplou com medo.

—Deveria estar... Morto. A última vez que o vi, você cheirava à tumba. Sua face estava tão devorada pela enfermidade que devia cobri-la e inclusive os homens mais fortes fugiam horrorizados. Suas mãos eram garras e os ossos lhe saíam da pele. A marca do diabo estava sobre ti. Todos os presentes sabem que estava condenado... Apodrecendo, mas ainda vivo. — Basílio se voltou para os notáveis reunidos. - Todos sabem, eu digo! — Sua voz se elevou em um grito. - Ninguém pode me contradizer. Nenhum de vós ousaria mentir, não ante o altar de Deus.

Ninguém falou, mas tampouco ninguém quis lhe olhar nos olhos.

Basílio se voltou novamente, desta vez para Adriano:

—E agora... Agora o vejo aqui, ante mim, um homem sadio na flor da vida, quando não faz nem um mês, transmitiu as marcas da maldição de Deus... Por sua lida com uma rameira, uma bruxa e — ele assinalou Antonius, um feiticeiro. Esta moça, que seu próprio sangue repudia... Vestida de seda e ouro... Não é uma santa com um toque curador. A que condenado feto da escuridão ela invocou para tirar seu servidor de um nada? Para ter esse poder, deve estar muito perto do trono do inferno. E você, - a voz de Basílio era um rugido, - deve ser um vassalo do rei dos demônios, ou não teria enviado um servidor assim.

Todos ficaram calados enquanto Basílio voltava para junto de seus homens

—Tolices! - Disse Antonius em voz alta. – Tolices. – ele repetiu mais alto. - Ninguém pode contemplar o rosto desta doce virgem, - ele fez um gesto para Regeane, - e não ver que é uma donzela inocente e virtuosa.

—O eterno inimigo do homem pode aparecer ante aqueles a quem quer enganar... Como um anjo da luz. - Gritou Basílio.

—Posso acreditar que seja um perito nos atos diabólico, Basílio. - Respondeu Antonius. - Os antigos senhores do abismo devem ser muito parecidos com você, se é que não são parentes.

—Basta. - Disse Adriano. - Posso acreditar que aconteceu algo estranho. Essas acusações são muito inquietantes e você tem que oferecer alguma explicação...

Ele não pôde continuar falando, pois três homens entraram pela sacristia. Traziam alguém, meio guiando, meio carregando, envolto em uma túnica negra com capuz. Mesmo à distância que se encontrava, Regeane pôde cheirar sangue fresco. Sangue velho, coagulado e podre, o mau cheiro da carne crua e do sangue e o pior de tudo, da carne queimada.

Lucila. Ela reconheceu.

A irmã Angélica começou a gemer. Não muito alto. Não havia forma de que uma mulher pudesse encher aquela enorme igreja de ruídos, mas provocando o nervosismo entre os grandes nobres. Os homens amaldiçoavam e as mulheres choravam.

O grupo que levava Lucila se deteve. Somente a ajuda dos soldados mantinha a mulher em pé. Quando a soltaram, ela deslizou lentamente até o chão. A túnica cobria seu corpo e o capuz sua face. Os soldados se afastaram dela e se reuniram com outros homens de Basílio.

Lucila ficou ante o altar, como uma pequena mancha de tinta negra no mármore, presa pela estranha luz azul que entrava pelo teto.

Adriano permaneceu nos degraus, contemplando a figura ante ele, enquanto abria e fechava os punhos como um homem que não queria olhar o que devia ver cedo ou tarde.

Uma mão ensangüentada saiu de entre as dobras da túnica, com a carne viva onde eram as unhas. A mão se moveu sobre o escorregadio mármore, como se a figura pretendesse se voltar.

A multidão retrocedeu com um gemido coletivo de horror, afastando-se da ferida Lucila, como se afastassem de um cão com o espinhaço partido pela roda de uma carruagem, mas que ainda se movesse, com os olhos suplicando a morte.

Regeane sentiu uma terrível solidão. As lembranças da loba se agitaram em sua mente. Ela viu um lobo enforcado como se fosse um homem. Outro queimado vivo. E outro preso a dois cavalos que o esquartejaram ao galopar em direções distintas.

As crueldades que os humanos praticavam uns contra os outros tinham seu reflexo na ferocidade de sua lida com as feras.

—Não. - Disse Maeniel, segurando seu braço. - Quando essas comporta se abrirem sairemos daqui e cavalgaremos para Ostia com meus homens. Mataremos tudo o que tentar nos deter. Dentro de uma semana estaremos nas montanhas e uma vez ali ninguém poderá te fazer mal.

Regeane o fitou e depois a Gavin, que a contemplava com a boca aberta.

—Loba, — ele perguntou, - morcego e névoa?

Maeniel o pegou firmemente pela orelha.

—Feche o bico, Gavin.

O capitão obedeceu.

—E se houver algo de certo no que dizem? — Ele perguntou com amargura.

—Nada que pudesse fazer seria pior que isto.

Regeane se soltou e foi em auxílio de Lucila, seguida de Antonius.

A mulher estava se movendo. Havia conseguido se apoiar sobre um flanco. Sua mão esquerda estava mais ferida que a direita e ela a usou para se sentar.

Regeane se ajoelhou a seu lado. O capuz escorregou da cabeça de Lucila. Tinha um olho fechado e coberto de sangue, o outro estava aberto. Sua boca estava triturada e ela babava sangue. Seu rosto era uma massa de machucados. Regeane olhou a túnica e viu mais sangue manchando a malha. Tinham-lhe arrancado três unhas da mão esquerda e os dedos da direita estavam inchados.

—Bastardos. - Murmurou Lucila. - Me diga Regeane, tiraram-me o olho direito? Não posso ver por ele.

Antonius usou uma parte de seu manto para limpar o sangue e as crostas. O olho se abriu e embora o branco estivesse de cor vermelha, uma expressão quase bela transfigurou o rosto de Lucila.

—As outras coisas que me fizeram não importam, eu posso ver. Malditos sejam. Todos ao inferno. – Ela gemeu. - Mas não, quando eu acabar com eles, os enviarei ante Deus e Ele poderá fazer o que quiser com eles.

Depois, para horror de Regeane, ela se firmou no ombro de Antonius com a mão direita e ficou em pé.

—Sabe o que tem que fazer. – Ela sussurrou no ouvido de seu filho.

—Mãe, não sei se temos tempo. Quando desapareceu, a notícia se estendeu pela cidade.

Lucila se voltou para Regeane.

—Me consiga tempo. – Ela sussurrou. As duas unhas que restavam na mão esquerda cravaram no braço de Regeane.

—Sim.

Lucila desmoronou, caindo nos braços de seu filho. Antonius a levou para o interior do palácio.

Regeane ouviu um pranto infantil e se voltou para ver que procedia de Elfgifa. Emilia a abraçava enquanto a menina soluçava contra o pescoço de sua tia.

Bum! Bum! Bum!

Os golpes retumbaram em toda a igreja. Adriano elevou a mão e eles desvaneceram.

Um bispo muito velho ficou em pé enquanto outros voltavam para seus assentos.

—São acusações muito sérias. – Ele disse a Adriano. – E você terá que refutá-las ou ser tombado. Não pode resolver isto pela força das armas.

Adriano observou Regeane durante um longo momento. Seus olhos eram claros e cinzas, como uma marejada de inverno.

—Há alguma outra testemunha? — Ele perguntou.

—A esposa de meu filho. - Respondeu Gundabald, empurrando Silve para diante. Ela parecia totalmente paralisada pelo terror.

—Bem, moça. É Regeane o que diz seu tio? — Perguntou Adriano.

O queixo de Regeane se elevou e ela cravou um olhar de vermelha raiva em Silve

Silve olhou para Adriano, para o chão e o teto, para a multidão ou qualquer pessoa ou coisa, salvo para Regeane. Gundabald elevou o punho.

—Sim! — Gritou a garota a toda pressa. - Sim! Sim! Sim!

Regeane se aproximou dela com os punhos crispados.

—Pequena zorra, eu te ajudei. Salvei tua e você me chama bruxa. Como se atreve?

Silve emitiu um gorgolejo e gemeu: — Não, não, não...

Ela se afastou de Regeane para encontrar com o Gundabald, acovardando-se ao ver sua face retorcida pela raiva.

—Venha aqui, moça. - Disse Adriano. Quando Silve chegou a seu lado, assinalou Regeane—. Agora, por sua alma. Diga-me a verdade. É ela o que diz seu tio?

Silve se voltou e olhou para Regeane. Ela choramingava e tinha os olhos vermelhos e tristes, mas daquela vez lhe sustentou o olhar.

—Não quero te condenar. – Ela disse em uma lastimosa dignidade. - Sim, você tem razão. Sou uma puta da pior espécie. Não sei se ela é filha do diabo, mas é certo que pode ver os mortos e falar com eles. E eu, com meus próprios olhos vi como ela se transformava em animal e depois em mulher novamente.

Um grande suspiro coletivo saiu dos presentes, enquanto todos começavam a falar.

Silve se afastou com a cabeça encurvada e arrastando os pés. Hugo tentou segurá-la pelo braço, mas ela se liberou e lhe vaiou como uma serpente.

Regeane observou que Maeniel e seus homens e igualmente formidáveis mulheres estavam reunidos em um semicírculo atrás dela. Compreendeu que estavam preparando para lutar

Não. Ela pensou. Não. Como no arroio quando esteve a ponto de morrer de frio, não foi à loba que lutou, mas a mulher.

A loba estava presente. Trotava ao longo da praia. A água cobria as marcas de suas patas à medida que deixava rastros na fina areia. As ondas rompiam em um rugido e a névoa a encerrava em um silêncio branco. No alto, as gaivotas voavam e chiavam. Seus gritos agudos, quase zangados, eram um contraponto ao estrondo das águas.

—Pois bem? — Perguntou Adriano, lhe fazendo voltar para a igreja.

Bum!

O ensurdecedor ruído começou novamente quando os bispos golpearam os bancos de madeira com seus bastões. Continuou mais um pouco e depois emudeceu.

O velho bispo tomou a palavra:

—Seja o que tenha feito essa mulher, Lucila, já foi castigada. A jovem Regeane deve responder ante as acusações. Se a liberar, Adriano, nós o consideraremos seu cúmplice.

Bum!

O bastão do bispo golpeou as pranchas e outros prelados demonstraram seu acordo da mesma forma. A igreja pareceu estremecer.

Adriano elevou uma mão e se fez o silêncio. Um silêncio tão profundo que Regeane pôde ouvir os murmúrios da multidão na praça e o som do vento do oeste ao passar pela igreja.

—Sou da realeza. O sangue dos reis francos corre por minhas veias. — Ela fez uma pausa, surpreendida ante o tom sonoro e seguro de sua voz. - Meu pai era um senhor saxão e ele e os seus defenderam os bosques do norte contra as legiões romanas. Envergonharia-me que tal linhagem encontrasse seu fim pela néscia lábia. Desvarios de um sujo bêbado e uma molhada em vinho. E não me submeterei ao julgamento de simples homens. — Ela elevou a voz tanto quanto pôde. - Sou filha, de reis. Deus é meu único juiz e só a ele me submeterei. Invoco meu direito a um julgamento por combate... Ao julgamento de Deus.

—Muito bem. - Respondeu Adriano. -Deixa só a questão de que ambas as partes escolham seus campeões.

Bum!

A igreja ressoou pelo golpe dos bastões e o tremendo grito dos notáveis reunidos na igreja.

Isto é algo que podem entender. Pensou Regeane.

Quando cessou o ruído, Maeniel deu um passo adiante.

—Como marido da dama e homem apto, eu serei seu campeão.

Os sons continuaram. Regeane foi levada pela guarda Papal a uma capela sem terminar perto da entrada da igreja. Enquanto entrava no pequeno quarto de mármore, ela pode ouvir como abriam as portas e o rugido da massa.

Um dos guardas se deteve ao sair da capela. Tirou o elmo e a olhou com gravidade. Regeane o reconheceu como um dos garçons no banquete do Papa, que tinha dado a taça a Elfgifa.

—Minha senhora. – Ele disse em voz baixa. – Sugiro que encomende sua alma a Deus, pois vi o campeão de Basílio e ele nunca perde.

—Obrigado. - Respondeu ela, com os lábios rígidos.

Maeniel entrou atrás do soldado. Até então Regeane não se dera conta realmente de quão grande ele era, mas o fez ao ver sua figura junto à do jovem. Ele colocou as mãos sobre os ombros do guarda e o fez girar com facilidade.

—A senhora já está bastante assustada. Não façamos com que fique com mais medo. Eu também vi o campeão de Basílio e acredito que posso me ocupar dele. Agora, vá. Eu gostaria de falar um momento em particular com minha dama.

Regeane percorreu o quarto rapidamente. O assoalho era um mosaico representando por uma coroa de uvas. As folhas verdes rodeavam o centro. As paredes eram de mármore com marcas cinza. Três altas janelas lanceoladas mostravam um claro céu azul. Um banco de mármore cinza percorria as paredes.

Regeane se sentou no banco. Não podia olhar para Maeniel e cravou os olhos em suas mãos sobre o colo

—Deveria fugir. – Ela disse.

—Por quê? Porque o campeão de Basílio é uma monstruosidade com excesso de peso? Escute moça, esses homens revistam ser menos capazes de defender...

—Não! Porque sou culpada.

—É obvio. Névoa? — Ele perguntou com suavidade.

Regeane sorriu, mas não era um riso agradável.

—Não! Como poderia alguém se converter em névoa? É uma tolice. – Ela disse, lhe olhando por fim, nos olhos.

—Soa lógico. Morcegos?

—Sandices. Um morcego é um animal muito pequeno. Eu não caberia dentro.

—Certamente. Loba? A loba é... — Maeniel deixou que sua voz se perdesse. - Posso entender melhor a loba.

As lágrimas molhavam a face de Regeane e ela estava com as mãos fortemente crispadas no colo. Maeniel se sentou junto a ela no banco, lhe acariciando brandamente a face com o dorso da mão.

—Regeane, minha adorada. Não importa que conte essas fantasias a mim ou a minha gente. Deus sabe que eles têm suas próprias idéias estranhas. Mas eu a aconselharia que não falasse assim ante desconhecidos. Poderiam te interpretar mal.

Regeane o olhou incrédula.

—Crê que estou louca.

—Não, não, não. Ssssh. – Ele sussurrou, abraçando-a e fazendo que apoiasse a cabeça sobre seu peito—. Não, não acredito que esteja louca, mas não estou disposto a acreditar nesse miserável teu tio. O que queria ele que você fizesse?

Regeane já não podia lhe ocultar nada.

—Queria que eu o ajudasse a matar você.

—Sim, e você foi muito honesta. Então agora, quando se nega a encher suas arcas com meu ouro, ele tenta te arruinar e acabar com sua vida. Quando eu tiver acabado com o campeão de Basílio, me ocuparei dele. Deixarei seu cadáver para que apodreça, não alimentaria meus cães com seus ossos, nem meus falcões com tiras de sua pele. E quanto aos outros dois, seu primo e sua rameira de aluguel, não confiaria neles nem para que me dissessem se é de dia ou de noite. Com o vinho que gostam de beber, pode ser que sequer soubessem.

Regeane suspirou brevemente e começou a rir.

—Quase parece que não se importe que forma eu assuma, desde que seja uma boa esposa para ti.

—Acredito que será. – Ele lhe disse lhe acariciando o cabelo. - Quando você estiver em minhas montanhas, quente, mimada e bem alimentada com nossos queijos, você adorará sua variedade e seu sabor. Com nossa cerveja e nosso pão, Matrona faz um pão distinto para cada dia do ano, esquecerá todas essas doentias e lastimosas fantasias provocadas pela crueldade e o abandono de seu tio.

—E se não esquecer? — Perguntou ela com a voz afogada pelas lágrimas.

—Bom, tenho algumas regras. Não pode matar, nem sequer assustar nossas ovelhas, cabras, vacas e cavalos. Dependemos do leite, sim, inclusive do das éguas, para fazer queijo e a maior parte de nossa riqueza. E não quero uma esposa que se deite no tapete junto ao fogo e rompa os ossos com os dentes para lhes chupar a medula. Não deixo que meus cães entrem no quarto e tampouco tolerarei uma esposa que mude o cabelo. Meus tapetes são persas. Os lençóis são do mais fino linho egípcio. Meus móveis são feitos pelos mais hábeis artesãos das montanhas. As cortinas da cama são de brocado e as almofadas e mantas são como dormir entre nuvens. As pulgas estão proibidas.

Regeane começou a rir sem poder remediar. Ele a fez levantar a face e lhe deu um beijo. As lágrimas davam um sabor salgado a seus lábios

—Melhor?

—Fiz o quanto pude

—Sim. - Disse ele. - Agora deixe que eu me ocupe do campeão de Basílio.

A porta se abriu e entraram Bárbara, Antonius, Elfgifa e Póstumo. A menina tentou correr para Regeane, mas Bárbara não a permitiu. Mas fez com que se aproximasse andando e lhe desse um decoroso beijo, mas Elfgifa perdeu o controle e a abraçou. Regeane a colocou no colo.

—O que vai acontecer?

—Nada. - Respondeu Regeane. Podia sentir no desesperado abraço da menina, suas dúvidas sobre as mentiras consoladoras dos adultos.

Póstumo se aproximou dela como um homenzinho e beijou sua mão estendida. Regeane pôde ver o medo abrasador em seus olhos.

Afastou a Elfgifa e a devolveu a Bárbara. O rosto da monja estava sulcado de rugas de preocupação.

—Tire as crianças daqui, Bárbara. Leve-os. Aconteça o que acontecer, não devem ver.

—Não se preocupe. - Disse Bárbara. - Emilia parte amanhã para Wessex com os dois. O pai de Elfgifa ficará encantado em acolher o moço. Sua mãe não queria lhe deixar partir, mas sabe que ele terá um melhor futuro ali que nesta cidade, sobretudo se ganharem os lombardos. Basílio mataria Póstumo e sua mãe com a mesma facilidade com que afastaria uma mosca de sua taça. Igual e rápido.

Elfgifa se liberou e correu novamente para Regeane, que a segurou pelas mãos.

—Meu pai diz que não devemos abandonar os amigos nos maus tempos.

Regeane manteve seguras as mãos da menina, para impedir que ela a abraçasse novamente. Deu-lhe um beijo na testa.

—Também devemos respeitar os desejos dos amigos. E eu seria muito mais infeliz do que sou agora se soubesse que você havia ficado comigo para ser ferida, ou talvez morta. Vá agora. Seu dever de hospitalidade requer que te faça cargo de Póstumo. Ele vai te acompanhar até a casa de seu pai e não conhece o idioma saxão e nem tem amigos. Tal como ele te ajudou aqui em seu país, você terá que cuidar dele no seu.

Elfgifa retrocedeu, com uma expressão de quase adulta tristeza no rosto. Voltou-se e pegou a mão de Póstumo, precedendo Bárbara através da porta.

—Saudações e até sempre. - Sussurrou Regeane. - Que Deus te acompanhe e te guarde de todo mal.

Chegou um rugido da multidão na praça. Regeane compreendeu que deviam ter visto o campeão de Basílio.

—Acredito que Maeniel fará agora sua entrada. - Disse Antonius. - Regeane, você tem alguma idéia da miserável crueldade que fez cair sobre ti?

—O que quer dizer?

Antonius lhe estendeu uma peça de tecido. Era linho sem tingir, o mais tosco das malhas caseiras.

—Deve permanecer presa à estaca, com a madeira empilhada sob seus pés, contemplando a luta de seu campeão. Se ele perder, render-se ou morrer, acenderão a fogueira. Agora, tire esse vestido dourado e vista isto. Eu deixaria minha camisa, mas esta maldita coisa é muito áspera e poderia te esfolar. Sairei enquanto você se troca.

Antonius saiu rapidamente e Regeane se tirou o vestido dourado, deixando-o sobre o banco. Depois colocou o manto penitencial sobre a cabeça. Era como um saco e lhe cobria da cabeça até os tornozelos, arrastando-se um pouco pelo chão. As mangas desciam por baixo dos ombros.

O vento ressoou novamente no edifício. As portas de bronze da catedral e a capela retumbavam uma e outra vez. Fora, o ruído da multidão era só um murmúrio.

Regeane elevou a vista. As três janelas mostravam unicamente o céu azul, com umas poucas nuvens impulsionadas pelo vento do oeste.

Estava sozinha Onde encontrar coragem? Ela e a loba se encontraram em sua alma. A loba esperou, olhando os olhos de Regeane como se dissesse. "Sabe que isto não é o final".

Como poderei suportar se acenderem o fogo? Pensava a mulher. Estava segura de que Maeniel a tomava por louca. E até com a melhor das intenções, com quanta força ele lutaria por uma louca? Não, estava condenada. Ficou quieta por um momento e depois um violento e incontrolável tremor percorreu seu corpo. O pânico momentâneo cedeu, deixando ambas, serenas e lúcidas.

Reuniu ânimos recordando a serpente na igreja enfeitiçada. Negou-se a mostrar medo diante de Silve. Na massa que esperava ali fora havia mil Silves, brutas e dispostas a se excitar ante a visão de uma mulher queimada viva. E não envergonharia a sua casa real mostrando medo diante delas.

A porta abriu e Antonius entrou com quatro guardas Papais. As lembranças posteriores de Regeane, de seu percurso até a pira seriam fragmentárias. Tentaram que ela tirasse os sapatos, alegando que os penitentes deviam estar descalços. Ela respondeu que não se considerava uma penitente.

—Não há nada pelo qual eu deva fazer penitência.

Conseguiram convencê-la para que tirasse a cinta que sujeitava seus cabelos. Antonius a pegou pelo braço e o guarda Papal lhes abriu passo entre a multidão.

O percurso não foi tão ruim como ela havia previsto quando saíram do palácio. Temera pedradas e maldições, mas a maioria dos congregados perto da igreja se mostravam indiferentes ou muito divertidos, olhando-a como poderiam ter cuidado alguma estranha fera ou ave, um tigre ou um macaco levado ante eles para seu entretenimento.

A estaca era na realidade um poste de pedra, de seis pés de altura e aproximadamente um de largura. Quatro degraus levavam até ele.

Gundabald e Basílio aguardavam ali, montados a cavalo. Dirigiram a forma em que amarraram Regeane, acrescentando um novo refinamento à argola de ferro que aprisionava suas mãos: uma corrente que ia da argola de ferro a seu pescoço. O verdugo a fez inclinar a cabeça e apertar a face contra a pedra enquanto a fechava a marteladas. Gundabald e Basílio se inclinaram sobre ela para valorizar a obra do verdugo.

—Isto não pode soltar com uma chave, - comentou Gundabald. - Terá que ser aberta a marteladas.

Regeane voltou à cabeça para vê-lo. Antonius estava ainda ao pé dos degraus, olhando-a.

—Por favor. – Ela lhe pediu. - Tenho muita sede. Traga-me algo para beber.

Antonius fez com que alguém lhe desse uma jarra de barro com um pouco de vinho azedo. O sabor era horrível, mas ela deu um gole.

Basílio e Gundabald estavam rindo juntos.

—Sua mãe era uma fraca, sempre estava chorando. Mas seu pai... — Gundabald se voltou para Regeane, que lhe cuspiu o vinho diretamente entre os olhos. Gundabald gritou e esteve a ponto de cair de seu cavalo.

—Escória. Seus lábios profanam os nomes de meus pais.

As pessoas ao redor do cavalo de Gundabald a aclamaram inclusive enquanto ela se esquivava os cascos do cavalo encabritado. Basílio carregou contra ela, com o punho elevado para lhe dar um golpe realmente pesado. Regeane tentou pensar uma forma de evitá-lo, mas estava imobilizada pelo pescoço e pelas mãos.

Outro cavaleiro se interpôs entre eles e Regeane reconheceu Rufus.

— Para trás, cavalheiro. - Rugiu ao Basílio. - Sua crueldade excede toda medida.

Gundabald, cavaleiro ruim, já estava a meio caminho através da praça, conformando-se manter seu cavalo controlado. Rufus e seus homens rodearam o poste, fazendo retroceder à multidão e formando um círculo defensivo entre Regeane, de forma que ela podia ver claramente o campo de batalha em frente ao palácio.

Rufus falou em voz alta para Basílio e a multidão: — A dama não sofrerá mais insultos e nem indignidades. Sua vida está em jogo e isso já é o bastante. Não tolerarei abusos de ninguém. Já o adverti e o próximo que violar minhas ordens morrerá.

—Meu senhor, - protestou o verdugo. - Devo empilhar os troncos aos seus pés. É a lei.

—Certo. - Suspirou Rufus. - Adiante.

O verdugo, um homenzinho cinza de olhos aquosos, começou a descarregar madeira de uma carreta próxima, ajudado por duas crianças que pareciam seus filhos. Começaram a pôr ramos finos nos degraus.

Regeane olhou as pedras a seus pés. Eram blocos de granito, mas podia ver que estavam chamuscados e uma espessa fuligem enchia os vãos entre eles. De fato, ela podia cheirar, inclusive com seus sentidos humanos, o carvão e a fumaça velha. O vento açoitou seu cabelo e o pesado manto de linho se agitou em torno de seu corpo.

Adriano e seus acompanhantes tomaram posições nos elevados degraus da igreja. Regeane compreendeu que queriam estar cômodos. Os criados estavam levando cadeiras e tamboretes para que os notáveis reunidos pudessem contemplar o drama, sem desconfortos.

Adriano, sozinho, permanecia no degrau mais alto.

—A Papa queria te benzer. - Disse Rufus. - Nós nos negamos. Se investisse da majestade conferida ao Vigário de Cristo, como iríamos poder julgar se é culpada ou não?

Regeane assentiu.

—Moça, escolheste uma forma de julgamento contra a qual não há apelação terrestre. Mesmo que os anjos do céu baixem à terra com provas de sua inocência, igualmente teremos que queimá-la, se seu campeão perder.

Adriano a olhou. Não elevou a mão, mas se manteve alto, pálido e solitário frente às resplandecentes roupas de sua grei. Compartilhando seu desconforto, embora ela estivesse segura de que também compartilharia seu destino, no caso de Maeniel falhar.

A multidão murmurou com deleite e Regeane viu entrar na arena improvisada em frente à igreja, o que devia ser o campeão de Basílio. Era o homem maior que já vira, tanto que era quase grotesco. Tudo nele era enorme: braços, pernas, mãos, pés, peito e ombros. Todo seu corpo era proporcionalmente maior que o de seu adversário.

Maeniel permaneceu tranqüilamente nos degraus. Armou-se com elmo, cota de malha, proteção para as coxas e perneiras. Estava examinando várias espadas que lhe ofereciam seus homens.

Então Matrona chegou com outra. A bainha era velha, com o cordato gretado, mas quando Maeniel desembainhou a espada, ela brilhou como o frio resplendor da luz da lua sobre as águas tranqüilas. Ao elevá-la para o sol, o arco íris brincou ao longo da lâmina, enviando chamas vermelhas, amarelas, azuis, púrpura e verde.

Regeane ouviu que Rufus continha o fôlego.

—O que acontece?

—A espada. Sempre tinha acreditado que essas coisas eram lendas...

Ela encolheu de ombros o melhor que pôde.

—É bonita, mas...

—Bonita? — Soprou Rufus. – Claro. Você é uma mulher, não um guerreiro. Pela primeira vez começo a acreditar que Basílio pode não ter todas consigo. Minha senhora, não tenho idéia de onde poderia encontrar uma arma assim e muito menos a coragem de usá-la.

O campeão de Basílio aguardou, com sua própria espada nua na mão. A arma era também maior que a de qualquer outro homem, pelo menos um pé mais larga que a espada de Maeniel. Ele estudou a seu oponente com uma contida e brutal diversão em seus olhos sonolentos.

—Como ele se chama? — Perguntou Regeane a Rufus.

—Scapthar. Há muito tempo é o campeão de Basílio. Tem vinte e sete mortes creditadas. Começou desafiando pobres granjeiros a lutar, obrigando-as a aceitar os duelos. Então matava e ficava com suas terras e as vendia. Sua carreira chegou aos ouvidos de Basílio, que o contratou. Estão juntos até hoje.

Scapthar gritou a Maeniel. Este, que estava bebendo uma taça de vinho, ignorou-lhe.

Scapthar avançou elevando a espada. Maeniel o observou sobre a beira da taça. O campeão lombardo desceu sua espada, mas Maeniel já não estava ali, embora Scapthar estivesse a ponto de matar alguns quantos espectadores. A lâmina golpeou o chão, fazendo brotar faíscas dos paralelepípedos.

Maeniel, a alguns pés de distância, entregou a taça a Gavin e desembainhou sua espada. Scapthar girou rapidamente e lançou outro golpe. Maeniel parou e a espada soou como um sino, emitindo um som sinistramente parecido a um grito de alegria. Alguns espectadores ofegaram e Regeane viu pela extremidade do olho que Rufus se benzia.

Nenhum dos combatentes usava escudo. Ao que parecia, Scapthar preferia dirigir sua espada com as duas mãos. E ele começou a encurralar metodicamente Maeniel. Cada vez que o lombardo lançava um golpe, o coração de Regeane estremecia. Às vezes a gigantesca espada passava tão perto de Maeniel que Regeane estava segura de que o partiria em dois. Mas de alguma forma, nunca chegava a acontecer. Parecia que Maeniel estava benzido com a presteza de uma víbora. Mas ao contrário das víboras, ele podia atacar enquanto se retirava.

Ao princípio, apesar de sua incapacidade de golpear Maeniel, Scapthar parecia ter a vantagem. Perseguiu implacável seu inimigo e a multidão se afastou para lhes deixar espaço. Regeane ouviu apostas sobre quanto tempo demoraria Scapthar em matar a seu adversário.

A luta se transladou de um lado a outro da praça, até que os dois homens se encontraram lutando quase aos pés de Regeane. Maeniel seguia fazendo Scapthar falhar. O vento seguia soprando com força e o sol estava alto no céu, queimando o rosto, os braços e as costas de Regeane.

Os olhos de Regeane estavam cravados em Maeniel e ela notou que ele estava reservando suas forças. O suor mal era um tênue brilho sobre sua pele exposta, Enquanto que Scapthar suava tão profusamente que as gotas caíam de seu queixo e manchavam sua camisa. Mesmo assim, Regeane seguia sem estar segura de que Maeniel tivesse possibilidades.

O sol tinha chegado a seu ápice e Regeane se alarmou ao ver que Maeniel se movia mais devagar. Os golpes de seu inimigo se aproximavam mais e mais. Mas cada vez ele os desviava com a milagrosa espada, em ocasiões quando parecia que Scapthar estava a ponto de matar ou mutilar. Cada vez, a espada de Maeniel lançava um doce som zombeteiro e cada vez que falava, atacava. A princípio, só um pequeno corte ou dois no braço do lombardo, nada sério, apenas arranhões para um homem de seu tamanho. Mas Regeane se deu conta de que Scapthar estava deixando um rastro de sangue, um rastro que estava se tornando mais espesso à medida que avançava a luta.

O calor era cada vez mais intenso, em parte pelo sol quente sobre as superfícies de pedra e em parte pela multidão de corpos apertados na praça.

Por um momento, Regeane afastou os olhos dos combatentes. A praça estava abarrotada, as pessoas enchiam todos os cantos. Alguns vendedores ofereciam vinho, pão frito e bolos de todo tipo. Os espectadores cobriam os telhados de todos os edifícios, mesmo os da basílica. Os alpendres e balcões estavam lotados e quatro ou cinco pessoas lutavam por um posto em cada janela.

—Regeane! — Antonius estava perto do poste de pedra. Tão perto como permitiam os troncos da pira.

—Onde esteve? Não havia tanta gente esta manhã. O que está acontecendo?

—Minha mãe te pediu tempo e o conseguiu. Somos quatro: Adriano, Minha mãe, você e eu.

—Cinco. - Corrigiu ela, assinalando com um gesto da cabeça para Maeniel.

—Cinco então. E pode ser que nenhum de nós assista o próximo amanhecer. Mas te prometo que Basílio tampouco o verá.

Um grito da multidão desviou a atenção de Regeane. Maeniel havia tropeçado. Ela viu como ele caía. Scapthar se equilibrou sobre ele com mais rapidez que tinha visto Regeane em todo o dia. Mas Maeniel rolou sobre si, contra o homem que lhe dera a rasteira, fazendo com que ele caísse sobre suas costas. A espada de Scapthar o partiu em dois.

A multidão se afastou, deixando espaço para os lutadores e o cadáver.

—Admita sua derrota, Scapthar. - Disse Maeniel. - Deixe que me leve a mulher. Não quero sua vida.

Scapthar meneou a cabeça, como um boi ferido.

—Não me pagam para deixar viver homens. Ou mulheres.

Regeane viu que algo mudava e endurecia o rosto de Maeniel. Espero que ele nunca me olhe assim. Ela pensou.

O sol seguiu seu caminho e começaram a chegar às nuvens. Espessas e escuras, com extremidades brilhantes, mas não chegavam a ocultar o céu por completo. O vento aumentou, agitando as roupas de todos. O olfato de loba de Regeane captou o aroma da chuva no vento.

Nem sequer os mais ardentes espectadores possuíam energias para seguir insultando ou aclamando os campeões, que seguiam a luta, tão silenciosos como eles.

Maeniel e Scapthar se lançaram em um assalto letal. O lombardo tentava esgotar seu inimigo lhe fazendo dar voltas pela praça, enquanto que Maeniel o feria sem piedade a cada lance. Por fim chegaram ao mesmo lugar onde haviam começado, em frente aos degraus da basílica

O Papa estava ali com os bispos e os cardeais. Havia esperado durante todo o dia. Um dia que estava chegando a seu fim.

Scapthar era uma massa sanguinolenta e quem l olhava não podiam acreditar que continuasse vivo. Sua roupa estava molhada em sangue, sua armadura coberta de amassados. Quando ele se detinha, as gotas que caíam de sua roupa formavam poças a seus pés.

Mas seu oponente também estava cansado. O rosto de Maeniel estava cinza pelo esgotamento. Sua túnica empapada de suor havia secado e voltado a ensopar.

Além disso, ele tinha um ferimento na perna, feio, mas não fatal. Sua bota jorrava sangue a cada passo. Cada vez que ele elevava o braço para aparar um golpe de seu inimigo, movia mais devagar.

O sol estava baixo no céu, perto do horizonte. Enviava seus últimos raios pelas ruas, enchendo-as de um último resplendor dourado.

No poste, Regeane também estava perto do limite. Suas mãos estavam intumescidas e por mais que agitasse os dedos não conseguia restaurar a circulação. Sentia os dedos como atravessados por facas. O roçar do colar havia deixado seu pescoço em carne viva. Não havia comido e nem bebido nada em todo o dia. Estava com a língua porosa e os lábios gretados.

Maeniel e Scapthar se moviam em círculo, ambos parecendo muito cansados para atacar. Um profundo rumor encheu a praça. O lombardo deu um passo para trás e bramou como um touro furioso. A estranha luz cintilou sobre sua espada e sua armadura, fazendo com que parecessem estar envoltas em chamas. E ele arrojou sua espada como se fosse uma faca, em direção a Maeniel.

Maeniel se moveu para a direita, evitando a lâmina.

Regeane gritou, pois tinha visto o propósito de Scapthar. Ao esquivar a espada, Maeniel havia se colocado ao alcance das mãos de seu inimigo. Em um instante, ele estava com um dos punhos de Scapthar em torno de sua garganta e o outro imobilizando seu braço direito, pela mão.

Regeane voltou a gritar enquanto os dois homens se debatiam no chão. Ela não queria ver Maeniel morrer, mas ao afastar o olhar viu o verdugo com uma tocha. Não. Ela pensou. Não. Mas então Sim! Seus dentes afundaram em seu lábio inferior. Sua boca se encheu de sangue, que logo caía por seu queixo em um fino fio. Por um instante Seus olhos encontraram os olhos de Rufus. Ela tentou afastar o olhar, mas o olhar dele prendeu o seu. Olhos que pareciam dois poços de vazio negrume.

O verdugo elevou a tocha.

Rufus apoiou a ponta de sua espada no homem, que retrocedeu confuso e deixou cair à tocha. Um dos homens de Basílio a recolheu rapidamente, jogando-a na pira. Um feixe de lenha seca o prendeu com um rugido. Regeane se retorceu contra o poste. As ataduras rasgaram suas mãos e ela se debateu sem êxito contra o colar. Então ficou quieta. Só lhe restava um instante de vida, livre de dor.

Ela viu Basílio, cavalgando através de uma multidão que soava como uma tormenta para clamar sua vitória. A sua esquerda, ouviu Rufus que lhe dizia "Não deixarei que sinta as chamas" e o viu elevar sua espada. O sol poente lhe dava nos olhos. Ela ouviu um som, um bramido que se elevava entre a multidão. Um grito de raiva e triunfo tão terrível, que mesmo naquele momento, lhe arrepiou os cabelos. Através das chamas, ela viu Maeniel em pé, com seu braço esquerdo vermelho até o cotovelo, os dedos gotejando sangue, e com algo preso à mão. Basílio estava perto dele e Maeniel arrojou o que segurava, em sua face.

—Ele ganhou! Meu Deus, ele ganhou! — Exclamou Rufus. - Vamos, apaguem essas chamas!

Milagre dos milagres, os homens de Rufus começaram a jogar água no fogo e afastar a lenha de seus pés. E Regeane soube que iria viver. Maravilhosa, e incrivelmente, Regeane soube que iria viver... Viver. Oh, Deus! Ela pensou. Graças a Deus... Eu vou viver.

Scapthar não havia morrido ainda, não de todo. A multidão retrocedeu. Ele estava caído sobre as pedras da rua, com o sangue saindo a jorros do ferimento entre suas pernas. Ele gritou... Abriu a boca para gritar novamente... E morreu.

Basílio fez seu cavalo retroceder e tentou cavalgar de volta a suas filas. Alguém estava lutando com o colar de Regeane, tentando abri-lo, quando ela viu Basílio morrer. Antonius apareceu entre a multidão que o rodeava e cravou uma espada no pescoço de seu cavalo. As patas da fera moribunda se dobraram e uma dúzia de mãos arrancaram Basílio da sela. Pelos ruídos que ouviu Regeane não acreditou que ele estivesse vivo quando seu corpo chegou ao chão.

Os homens de Basílio tentaram manter sua posição. Frente aos cidadãos comparativamente desarmados, eles até teriam êxito, mas Rufus, seus homens e os de Maeniel se uniram aos romanos, e tudo o que restou depois dos lombardos, teve que ser raspado.

Alguém encontrou um jarro de um vinho meio decente e Regeane o bebeu misturado com água. O vinho lhe subiu direto à cabeça e por isso ela não protestou quando Maeniel chegou para reclamá-la. Ele depositou-a sobre a sela em frente a ele. Regeane descobriu que só queria apoiar a cabeça em seu ombro e rodear seu pescoço com os braços. Dali, ela viu o semicírculo do sol poente desaparecer no horizonte.

O céu sobre eles era uma abóbada de espessas nuvens negras com extremidades azuis, salpicadas de relâmpagos.

O aguaceiro começou antes que eles chegassem à vila. Maeniel deteve o cavalo e eles ficaram no meio da rua escura e vazia, deixando que a água caísse sobre eles, que lavasse o suor do medo de sua pele e do sangue da matança. A água gelada aliviou suas feridas e começou curá-la. Eles abriram a boca e beberam dos mananciais do céu

Ainda estava chovendo quando chegaram. A roupa de Regeane estava completamente molhada. Ele a levou a um quarto onde se secaram com toalhas, iluminados por uma única vela. Maeniel saiu e voltou com uma túnica limpa. Ele ofereceu-lhe um cofre, do qual Regeane escolheu um vestido.

Era de branca e pura seda virgem, com bordados de ouro no corpo, nas mangas e na barra. Ela o vestiu pela cabeça.

Devo ir. Regeane pensou. Sua mente estava limpa. O tecido acariciava sua pele, com um deleite sensual. Ele a beijou brandamente, com deliciosa ternura. Outra delícia.

Irei pela manhã.

Maeniel a levou a triclinio. Talvez houvesse mais comida na mesa, do que houvera no banquete nupcial. Presuntos, queijos amarelos, brancos e azuis, cântaros de vinho, garrafas de argila e ânforas a esfriar em neve. Havia peças inteiras de porco, vaca, vitela e cordeiro. E pão por toda parte, os escuros e suculentos pães cheios romanos.

Não havia velas e nem abajures, a única luz era a das tochas. Os leitos haviam sido substituídos por bancos. Havia duas cadeiras na mesa de honra e Maeniel levou Regeane até lá. Todos ficaram em pé e elevaram suas taças para ela.

As cortinas que separavam o salão do jardim ondearam ao vento. Regeane estremeceu.

A loba se elevou da profunda escuridão. Como sempre, ela carecia de voz, mas Regeane soube que a mulher e a criatura estavam acareadas. Entreaberto e ardente olhar a prendeu.

Suas cadeiras estavam tão perto que o braço de Maeniel pressionava o seu

A loba dirigiu sua atenção a ele e olhou claramente para o enorme lobo cinza. Pôs-se cheirar o vento das alturas, saborear a pureza do ar soprando sobre uma geleira coberta de neve, preso em um inverno perpétuo em picos tão altos que atravessavam a tênue camada de ar que cobria o mundo.

O lobo cinza escalou mais alto que as árvores ou a vegetação, mais à frente do atalho do Íbice, que percorre as rochas nuas e varridas pelo vento como se dançasse a beira do céu. Ele correu embora o ar fosse tênue e o frio tão intenso que penetrava grossa pelagem e o levava quase à agonia.

Mais e mais alto, sobre gelo coberto de neve, beirando simas que se abriam como gélidas bocas desdentadas e exalavam uma morte fria e silenciosa. Ante ele se elevava um penhasco banhado pela luz da lua, resplandecendo contra o negro céu.

O lobo subiu esforçadamente, sem fazer caso da dor que lhe queimava os pulmões, da tensão dos músculos e de tendões, que pareciam dispostos a liberar-se de seus músculos na passagem seguinte, que para o olho inexperiente da mulher parecia o teto do mundo.

Alguém tocou sua face e a visão desvaneceu. Regeane se deu conta de que Matrona estava inclinada sobre ela e Maeniel lhe sustentava a mão.

—Minha senhora, - Matrona disse com suavidade. - Está bem? - Matrona lhe acariciou a face.

—Deixem de beber, seus bêbados! Peguem um prato de comida e tragam a nosso jovem irmã... Ela necessita de comida. E vinho. Não, não esse tinto da Campânia, mas do branco esfriado na neve.

Em alguns instantes, houve um prato e um copo diante de Regeane. Salsichas de carne vaca e de porco, carne fria, lombo de javali, tudo bem temperado. Uma espécie de verduras cozidas em queijo e azeite e vinho fresco e que saciava a sede. Cada bocado era um prazer. Não, mais que prazer, uma distinta variedade de êxtase.

Em um momento, quando ela elevou o olhar, a comida havia desaparecido. O braço de Maeniel estava em torno de seus ombros.

—Sente melhor agora?

—Sim. – Ela respondeu com um gemido de indigestão.

O braço ao redor de seus ombros se enrijeceu e o dorso da mão livre de Maeniel lhe acariciou a face.

Nas profundezas de seu cérebro a loba lançou um grito de medo e fúria. Olhe-o. Ela disse tão claramente como se houvesse pronunciado.

Não. A mulher se voltou para sua escura companheira. O grande lobo cinza se perdeu. Estamos separados pelo poder do rei e do Papa, da lei e de Deus... Então ela sentiu uma terrível onda de dor, pois sabia que a loba prateada estava dizendo a verdade e que, cedo ou tarde, deixaria a cama daquele homem e procuraria a liberdade definitiva da luz da lua. Como foi a princípio, é agora e será sempre, pelos séculos dos séculos. Amém. Aquela paródia de oração anunciava sua vitória e sua perdição.

Gundabald atravessou as cortinas que separavam o salão do jardim. Seis dos mercenários de Basílio o acompanhavam. Todos levavam arcos. Nos olhos de Gundabald havia um toque de loucura. A seta de seu arco apontava diretamente o peito de Maeniel.

O quarto ficou sumido em um completo silêncio.

—O que quer Gundabald? — Perguntou Maeniel.

Gundabald riu. Pode ser que seja uma risada. Pensou Regeane. Um desagradável cacarejo na silenciosa estadia.

—Tudo o que tentei falhou. Inclusive agora, a chusma me persegue. Mas meus amigos e eu não encaixamos no papel de proscritos. Não quando na mesa em frente a nós há um tesouro que pode nos tornar ricos para sempre.

Regeane olhou para as baixelas de ouro e prata e para a taça adornada com rubis junto à mão de Maeniel.

Maeniel encolheu os ombros.

—Dê a ele, Matrona. Depois, é somente ouro e prata.

Matrona respondeu com um grunhido e ficou em pé, começando a recolher pratos e taças e a colocá-los em um saco improvisado com um manto.

Sequer Regeane se deu conta de que, enquanto ela trabalhava estava se aproximando mais do semicírculo de homens na porta.

Não! Ela pensou. Não! A seta apontava diretamente para o peito de Maeniel. Regeane recordou seu pai. O ferimento que acabou com sua vida. Rosas de cor branca e rosa, as pétalas sujas em sangue. E soube o que Gundabald ia fazer. A loba soube o que Gundabald ia fazer. Ela se lembrou do vento na cela do convento, do vento de mais à frente do mundo e sentiu que começava a sopro. De repente, o ar se tornou mais espesso, com o aroma de sangue e das rosas.

Regeane se liberou do braço de Maeniel, derrubou a cadeira de uma patada e ficou em pé.

—Querida sobrinha! - Disse Gundabald. - Querida sobrinha, se você for prudente...

Mas o vento soprava mais forte, fazendo ondear grosseiramente a cortina. Regeane compreendeu. Ela o havia invocado. Sua vida o havia invocado e talvez sua morte.

—Tio... – Ela disse como último aviso. – Vá agora mesmo ou morrerá.

A seta se moveu de Maeniel para ela. Todas as letais e reluzentes pontas dos dardos apontavam para seu corpo.

Ela se tornou a loba de prata. Por um horrível momento se enredou com seu vestido, mas se liberou e saltou como uma mola. Com um brilho de luz de lua e com as presas nuas, ela se lançou à garganta de Gundabald. Esperava morrer em pleno salto... Mas não aconteceu.

Seu tio era brutal e covarde, mas não estúpido. Ela havia caído em sua armadilha.

Algo como uma nuvem negra voou para ela. Os pesos de aço da rede se fecharam a seu redor. A loba caiu no chão, lutando aos pés de seu tio.

Gundabald lançou um grito de puro triunfo.

—Olhe! Olhe com o que se casaste!

Os mercenários aproximaram suas tochas ao Regeane, cegando a loba. Então ela virou mulher novamente e as setas voltaram a apontar para ela.

—Agora, - disse Gundabald a Maeniel, - acredito que estará encantado em me pagar para que eu leve isso.

Regeane suspirou. Um som singelo, mas terrível. Seu lamento era o pranto de quem se debateu contra a morte, mas por que fim sucumbia a seu frio abraço. O protesto de alguém entranhado no pesar, que se dá conta do verdadeiro sentido da separação do ser amado.

Todos no quarto sentiram a dor daquele som, inclusive Gundabald.

—Não entendo como pode sentir tanto. - Disse, apontando a seta para seu coração.

—Gundabald! — Clamou a voz de Maeniel e o lobo cinza se elevou sobre a mesa, desafiando-o.

Os olhos de Gundabald se dilataram e seu queixo caiu frouxamente. Regeane pensou que ele parecia um homem cujo pior pesadelo havia se tornado realidade.

Os rostos dos mercenários estavam cheios de terror. Um forte golpe de vento chegou à entrada do salão e a luz das tochas se tornaram azul.

Maeniel era o lobo cinza, como as escuras nuvens de tormenta ou a sombra de uma rocha sobre uma geleira. Seu salto foi tão poderoso que levou da mesa até o Gundabald. E ele virou o homem novamente. Com a mão esquerda arrebatou a seta. Com a direita o mataria, homem a homem.

A alcatéia inteira saltou por cima das mesas, sobre os mercenários. A quatro patas, sem armas, sem roupa e nem armadura. Com cabelo, presas e raiva... Olhos reluzindo na escuridão.

O vento gritou através da estadia. Garrafas e cacharros se romperam quando a alcatéia saltou para diante, sem atender a nada que não fosse o ataque.

Maeniel levantou Gundabald pelo pescoço, asfixiando-o. Gundabald se debateu violentamente, dando chutes, arranhando a face do homem lobo enquanto a sua se tornava mais escura.

Fora, soou um coro de gritos e grunhidos. A alcatéia pegando e matando os mercenários.

— Eu jurei a minha dama, - rugiu Maeniel fitando os olhos de Gundabald, que mataria seu torturador com as mãos nuas... — O corpo de Gundabald deixou de se agitar e frouxou como um trapo. – E fiz. – Concluiu Maeniel, deixando cair o corpo sem vida no chão.

O vento morreu e as tochas voltaram a brilhar.

Maeniel se ajoelhou ajudando Regeane, com as mãos trêmulas, a se liberar da rede.

—Meu Deus! – Ele sussurrou. - Meu Deus. Por que fez isso? Por que não deixou que eu me ocupasse de tudo? Ele teria morrido no momento de sair daqui.

—Não, ele não pensava em te deixar vivo. Ele matou a meu pai, com um dardo de seta, no coração.

Maeniel contemplou o corpo enfraquecido e sem vida.

—Pode ser que esteja certa. Tem algum ferimento?

—Não. - Murmurou Regeane enquanto ele a abraçava. Ela fechou os olhos e apoiou a cabeça em seu ombro. Então sentiu que a loba, no silêncio de seu coração, apoiava sua cabeça sobre o mesmo ombro em perfeito amor e harmonia. E eram uma só.

Os braços de Maeniel a envolveram protetores. Foi pouco antes que se desse conta que o chão de pedra sobre o qual estavam era duro e a brisa da noite era fria.

Maeniel se levantou foi até mesa e passou a túnica pela cabeça. Depois ele esfregou as mãos e deu o vestido a Regeane

—Não me disse... E quando eu lhe tentei confessar, - Regeane elevou o tom, - você me tratou... Como se estivesse louca!

—Regeane, fomos os atores principais de um dos melhores dramas representados nesta cidade, desde que a corte imperial se transladou para Constantinopla. Quantos ouvidos acha que teria atrás daquela porta? Cinco, dez, duas dúzias ou possivelmente mais. E naquele momento, que o céu me valha, eu havia passado por muitas coisas. Tinha medo por ti. Medo de que sua mente se quebrasse. Pensei que meus temores se cumpriram quando a vi se lançar contra Gundabald. Fui impiedoso, lento com a morte dele, que sentiu uma completa agonia a cada passo do caminho. — Maeniel pronunciou as últimas palavras crispando o queixo.

Ele estendeu os braços para Regeane e ela se deixou abraçar. Seguiam ali quando entraram os lobos.

Gavin voltou o primeiro, nu e aborrecido. Ao ver que Regeane o olhava foi pegar suas roupas

—Tem um monte de hábitos humanos... - Comentou Maeniel. - O pudor é um deles.

Matrona entrou depois, sem mostrar vergonha por sua nudez.

—Estão mortos. – Ela disse. - Mais tarde levaremos os corpos a algum lugar. Não estávamos famintos... Pelo menos, não tão famintos.

Matrona e outro membro da alcatéia pegaram o cadáver de Gundabald para levá-lo os de seus companheiros.

Outros entraram, se vestiram e se dispuseram a comer e beber, sobretudo beber, novamente. Mas antes que se sentassem Gavin elevou uma das ânforas que estava esfriando em neve e todos encheram suas taças com o doce vinho aromatizado com mel.

Regeane pegou a mão de Maeniel. Estava o bastante esgotada para cair, mas ao mesmo tempo cheia da mais profunda paz que nunca havia conhecido. Ficou olhando-os, quando eles elevaram suas taças para ela.

Deus! Eram um bando selvagem... Donos, ela estava segura, de seu domínio nas montanhas. Ela seria sua senhora, uma tarefa fascinante e às vezes perigosa. Perguntou-se, estaria à altura.

Mas Maeniel tomou a palavra:

—Irmãos, amigos, camaradas de armas e, sobretudo, companheiros nos caminhos sem rastro da luz de lua. Dou-lhes Regeane, sua senhora. A loba de prata e minha esposa.

 

                                                                                                    Alice Borchardt

 

 

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