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O AGENTE PICOT ESTAVA de sentinela no lado esquerdo do pórtico de entrada, no Quai des Orfèvres, enquanto seu colega Latuile estava no lado direito. Eram cerca de dez da manhã, num dia de maio, de sol vibrante, e Paris apresentava cores pastel.
Em certo momento, Picot reparou nela, mas não deu importância: uma velhinha miúda que usava um chapéu branco, luvas de linho branco, um vestido cinza. Tinha as pernas muito magras, um pouco arqueadas pela idade.
Trazia uma sacola de compras na mão ou uma bolsa? Ele não se lembrava mais. Não a vira chegar. Ela havia parado na calçada, a alguns passos dele, e olhava os carros estacionados no pátio da Polícia Judiciária.
É comum haver curiosos, sobretudo turistas, que vêm dar uma espiada no Quai des Orfèvres. Ela avançou até a entrada, examinou o agente dos pés à cabeça, depois deu meia-volta e se dirigiu para a Pont-Neuf.
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No dia seguinte, Picot estava novamente de sentinela e, por volta da mesma hora da véspera, tornou a vê-la. Desta vez, após hesitar por um longo tempo, ela se aproximou e lhe dirigiu a palavra.
– É aqui que o comissário Maigret trabalha, não é?
– Sim, senhora. No primeiro andar.
Ela ergueu a cabeça e olhou as janelas. Tinha traços muito finos, muito bem desenhados, e seus olhos cinza claro pareciam ter sempre uma expressão de espanto.
– Obrigada, senhor.
Afastou-se com passinhos rápidos, e era de fato uma sacola de compras que trazia na mão, o que fazia supor que morava nos arredores.
No outro dia, Picot estava de folga. Seu substituto não prestou atenção na velhinha que penetrava no pátio. Ela ficou rondando ali por um momento, antes de transpor
a porta da esquerda e chegar ao saguão da escada. No primeiro andar, o longo corredor a impressionou e ela pareceu um pouco perdida. O velho Joseph, o bedel, se
aproximou e perguntou amavelmente:
– Procura alguma coisa?
– A sala do comissário Maigret.
– Deseja falar com o comissário?
– Sim. Vim por esse motivo.
– A senhora tem uma convocação?
Ela fez que não com a cabeça, consternada.
– É preciso uma convocação?
– Também pode deixar uma mensagem.
– Devo falar com ele pessoalmente. É da maior importância.
– Preencha esta ficha e verei se o comissário pode recebê-la.
Ela se sentou junto à mesa coberta de um pano verde. Um cheiro forte de tinta reinava no local, recentemente repintado. Ela não sabia disso e achou que, para um
prédio administrativo, a atmosfera era um tanto festiva.
Rasgou uma primeira ficha. Escrevia lentamente, pesando cada palavra e sublinhando algumas delas. A segunda ficha também foi para o cesto de lixo, depois a terceira,
e somente com a quarta ela pareceu satisfeita, dirigindo-se então ao velho Joseph.
– O senhor a entregará em mãos, não é?
– Sim, senhora.
– Suponho que ele seja muito ocupado.
– Muito.
– Acha que vai me receber?
– Não sei, senhora.
Tinha mais de oitenta anos, talvez 86 ou 87, e não devia pesar mais que uma adolescente. O corpo havia como que se depurado com o tempo e a pele era diáfana. Ela
sorria com timidez, como para seduzir o bom Joseph.
– Faça o possível, por favor. É muito importante para mim!
– Sente-se, senhora.
Ele se afastou e foi bater numa das portas. Maigret estava em conferência de trabalho com Janvier e Lapointe, que se mantinham ambos de pé, enquanto os ruídos de
fora entravam livremente pela grande janela aberta.
Maigret pegou a ficha, passou os olhos, franziu as sobrancelhas.
– Como ela é?
– Uma velha senhora muito digna, um pouco tímida. Ela me pediu para insistir que o senhor a receba.
Sobre o pontilhado da primeira linha, ela escrevera o nome com uma letra bastante firme e regular:
Sra. Antoine de Caramé.
Como endereço constava:
Quai de la Mégisserie, 8 bis.
Enfim, como razão da visita, ela dizia:
Desejo fazer ao comissário Maigret uma comunicação da mais alta importância. É uma questão de vida ou morte.
A letra já estava mais tremida e as linhas já não eram tão retas. Havia palavras sublinhadas. Primeiro a palavra comissário. Depois as palavras alta importância.
Quanto à questão de vida ou morte, ela sublinhara duas vezes.
– É uma louca? – murmurou Maigret, dando uma tragada no cachimbo.
– Não parece. É muito calma.
No Quai des Orfèvres era comum chegarem cartas de loucos ou semiloucos. Quase sempre continham algumas palavras sublinhadas.
– Você pode recebê-la, Lapointe? Caso contrário, a teremos aqui todas as manhãs.
Alguns instantes mais tarde, a velha era introduzida na pequena sala do fundo. Lapointe estava sozinho, perto da janela.
– Entre, senhora. Sente-se, por favor.
Olhando-o com curiosidade, ela perguntou:
– Você é o filho dele?
– Filho de quem?
– Do comissário.
– Não, senhora. Sou o inspetor Lapointe.
– Mas é apenas um rapazola.
– Tenho 27 anos.
Era verdade, mas era verdade também que parecia ter 22 e que muitas vezes o tomavam por um estudante e não por um policial.
– Foi o comissário Maigret que eu pedi para ver.
– Infelizmente ele está muito ocupado para recebê-la.
Ela hesitava, revirava nas mãos uma pequena bolsa branca e não se decidia a sentar-se.
– E se eu voltasse amanhã?
– Seria a mesma coisa.
– O comissário Maigret nunca recebe ninguém?
– Somente em casos de extrema importância.
– Meu caso é justamente de extrema importância. É uma questão de vida ou morte.
– Foi o que a senhora escreveu na ficha.
– E então?
– Se quiser me dizer do que se trata, comunicarei ao comissário e ele decidirá.
– Talvez me receba?
– Não posso lhe prometer nada, mas não é impossível.
Ela pareceu pesar longamente os prós e os contras e resolveu por fim sentar-se na ponta de uma cadeira, de frente para Lapointe, que se instalou atrás da mesa.
– De que se trata?
– Primeiro, é preciso que saiba que moro no mesmo apartamento há 42 anos, no Quai de la Mégisserie. No térreo há um vendedor de aves e, no verão, quando põe as gaiolas
na calçada, escuto-as durante o dia todo. Elas me fazem companhia.
– A senhora falava de um perigo.
– Corro certamente um perigo, mas você vai pensar que digo disparates. Os jovens tendem a achar que as pessoas velhas são caducas.
– Essa ideia não me ocorreu.
– Não sei como explicar. Desde a morte do meu segundo marido, há doze anos, vivo sozinha e ninguém nunca entra no meu apartamento. Ele se tornou espaçoso demais
só para mim, mas faço questão de conservá-lo até morrer. Tenho 86 anos e não preciso de ninguém para fazer a comida e a limpeza.
– A senhora tem um animal? Um cachorro, um gato?
– Não. Já lhe disse que ouço cantar as aves do térreo, pois moro no primeiro piso.
– Do que a senhora se queixa?
– É difícil dizer. Aconteceu pelo menos cinco vezes, em duas semanas, de objetos mudarem de lugar.
– Que quer dizer? Não os encontrou, ao voltar, no lugar onde estavam no momento em que saiu?
– Isso mesmo. Um quadro, na parede, está um pouco inclinado, ou então um vaso não está voltado na mesma direção.
– Tem certeza das suas lembranças?
– Eu sabia! Porque sou uma pessoa de idade, vejo que já duvida da minha memória. No entanto, eu lhe disse que moro no mesmo apartamento há 42 anos. Portanto, sei
com exatidão onde as coisas se encontram.
– Não lhe roubaram nada? Nada desapareceu?
– Não, senhor inspetor.
– Guarda dinheiro em casa?
– Muito pouco. O suficiente que preciso para viver durante um mês. Meu primeiro marido trabalhava na prefeitura e me deixou uma pensão que recebo regularmente. Além
disso, tenho economias na caderneta de poupança.
– A senhora possui objetos de valor, quadros, bibelôs, sei lá?
– Há coisas que prezo muito, mas elas não têm necessariamente valor comercial.
– Seu visitante ou sua visitante não deixa vestígios? Num dia de chuva, por exemplo, poderia deixar marcas de passos.
– Não chove há dez dias.
– Cinzas de cigarro?
– Não.
– Alguém possui a chave do seu apartamento?
– Não. Trago em minha bolsa a única chave que existe.
Ele a olhava, indeciso.
– Em suma, a senhora se queixa apenas de que objetos, em sua casa, mudam ligeiramente de lugar.
– Exatamente.
– Nunca surpreendeu ninguém?
– Nunca.
– E não tem nenhuma ideia de quem possa ser?
– Nenhuma.
– A senhora tem filhos?
– Infelizmente, nunca tive.
– Família?
– Uma sobrinha, que é massagista, mas raramente a vejo, embora ela more logo do outro lado do Sena.
– Amigos? Amigas?
– As pessoas que eu conhecia já morreram, em sua maior parte. E há outra coisa.
Ela falava normalmente, sem excitação, e seu olhar era firme.
– Estão me seguindo.
– Está querendo dizer que a seguem na rua?
– Sim.
– Viu essa pessoa que a segue?
– Vi várias, ao me virar bruscamente, mas não sei de qual delas se trata.
– Costuma ficar muito tempo fora de casa?
– De manhã, pelas oito horas, saio para fazer compras no bairro. É uma pena que não exista mais o mercado dos Halles, pois ficava a dois passos de casa e eu sabia
onde comprar. Desde então tentei diversos comerciantes. Não é mais a mesma coisa.
– A pessoa que a segue é um homem?
– Não sei.
– Suponho que volta para casa pelas dez da manhã.
– Mais ou menos. Sento junto à janela e descasco meus legumes.
– Fica em casa à tarde?
– Só quando chove ou faz frio. Senão, vou me sentar num banco, quase sempre no Jardim das Tulherias. Não sou a única a ter esse hábito. Há pessoas, mais ou menos
da minha idade, que reencontro há anos no mesmo local.
– E a seguem até lá?
– Seguem-me quando saio de casa, como se quisessem ter certeza de que não vou voltar em seguida.
– Alguma vez chegou a fazer isso?
– Três vezes. Como se tivesse esquecido alguma coisa, voltei a subir ao apartamento.
– Não havia ninguém, é claro.
– O que não impede, em outras vezes, que objetos tenham sido mexidos. Alguém pôs mau olhado em mim, não sei por que, pois nunca fiz mal a ninguém. E acho que são
vários.
– Que fazia seu marido na prefeitura?
– Meu primeiro marido era chefe de escritório. Tinha muitas responsabilidades. Infelizmente morreu jovem, aos 45 anos, de ataque cardíaco.
– A senhora se casou de novo?
– Cerca de dez anos mais tarde. Meu segundo marido era vendedor no Bazar da Prefeitura. Ele se ocupava dos instrumentos agrícolas e das pequenas ferramentas em geral.
– Ele também morreu?
– Havia muito estava aposentado. Se vivesse ainda, teria 92 anos.
– Há quanto tempo ele morreu?
– Achei que já lhe tivesse dito: doze anos.
– Ele não deixou família? Era viúvo quando casou com a senhora?
– Tinha somente um filho, que vive na Venezuela...
– Escute, senhora, comunicarei ao comissário o que acaba de me dizer.
– E acredita que ele me receberá?
– Se decidir vê-la, ele lhe enviará uma convocação.
– Tem o meu endereço?
– Ele consta na sua ficha, não é?
– É verdade, havia esquecido. Sabe, tenho tanta confiança nele! Ele me parece ser o único que pode compreender. Não digo isso para vexá-lo, mas porque o considero
um pouco jovem demais.
Lapointe a acompanhou até a porta e depois no corredor até a escada principal.
Quando retornou à sala de Maigret, Janvier não estava mais.
– E aí?
– Acho que tinha razão, chefe. É uma louca. Mas uma louca tranquila, muito calma, muito senhora de si. Está com 86 anos e eu gostaria de ser tão vigoroso quanto
ela na sua idade.
– Qual é o tal perigo que ela corre?
– Mora há mais de quarenta anos no mesmo apartamento no Quai de la Mégisserie. Foi casada duas vezes. Afirma que, quando se ausenta, objetos mudam de lugar.
Maigret reacendeu o cachimbo.
– Que objetos, por exemplo?
– Encontra quadros inclinados, vasos que não estão mais orientados do mesmo modo...
– Ela não tem gato, cachorro?
– Não. Contenta-se em escutar o canto das aves do andar de baixo.
– Algo mais?
– Sim. Está convencida de que a seguem na rua.
– Ela identificou alguém?
– Não, mas está com essa ideia fixa.
– Vai voltar?
– Insiste em vê-lo pessoalmente. Fala do senhor como do bom Deus e o considera o único capaz de compreender. O que é que eu faço?
– Nada.
– Ela voltará.
– Então veremos. Para todos os efeitos, você poderia interrogar o zelador.
Maigret voltou a mergulhar no dossiê que estava estudando, enquanto o jovem Lapointe retornava à sala dos inspetores.
– É mesmo uma louca? – perguntou-lhe Janvier.
– É provável, mas não uma louca como as outras.
– Conhece muitas loucas?
– Uma de minhas tias está num hospital psiquiátrico.
– Pelo que vejo, parece que essa velha impressionou você.
– Talvez, um pouco. Ela me olhava como se eu fosse um garoto incapaz de compreender. Confia apenas em Maigret.
À tarde, Lapointe passou pelo Quai de la Mégisserie, onde as lojas, em sua maioria, vendem aves e outros pequenos animais. Com o tempo radioso que fazia, os cafés
haviam posto mesas na calçada. Levantando a cabeça, Lapointe viu que as janelas do primeiro andar estavam abertas. Teve dificuldade de encontrar a zeladoria, que
se achava no fundo de um pátio. A zeladora se ocupava, ao sol, em remendar meias masculinas.
– Pois não?
Ele mostrou seu cartão da Polícia Judiciária.
– Gostaria que me dissesse o que sabe sobre a sra. Antoine de Caramé. É esse mesmo o nome dela? Uma senhora de idade que mora no primeiro andar.
– Eu sei, eu sei. Na verdade, Antoine é o nome de família do segundo marido, e então ela é oficialmente a sra. Antoine. Como tem muito orgulho do primeiro marido,
que ocupava um cargo importante na prefeitura, se faz chamar sra. Antoine de Caramé.
– Como ela se comporta?
– Que está querendo dizer?
– Não é uma senhora um pouco estranha?
– Eu me pergunto por que, de repente, a polícia se interessa por ela.
– Foi ela que nos procurou.
– Qual é sua queixa?
– Parece que, quando se ausenta, objetos mudam de lugar no apartamento. Ela não lhe falou disso?
– Só me perguntou se eu tinha visto pessoas estranhas subirem até lá. Respondi que não. Aliás, daqui não vejo quem entra e quem sai. A escada é logo na entrada,
no corredor.
– Ela recebe visitas?
– A sobrinha, uma ou duas vezes por mês. Mas tem épocas em que fica três meses sem aparecer.
– Ela se comporta como todo o mundo?
– Como todas as velhas senhoras que vivem sozinhas. É uma pessoa que recebeu uma boa educação e que é atenciosa com todos.
– Ela está em casa neste momento?
– Não. Aproveita o menor raio de sol e deve estar sentada num banco do Jardim das Tulherias.
– Ela costuma bater papo com a senhora?
– Algumas palavras, de passagem. Sobretudo pede notícias do meu marido, que está no hospital.
– Eu lhe agradeço.
– Suponho que não devo falar a ela da sua visita.
– Não tem importância nenhuma.
– Em todo caso, quanto a ser louca, não penso que seja. Tem suas manias, como todos os velhos, mas não mais do que os outros.
– Talvez eu volte a vê-la.
Maigret estava de muito bom humor. Havia dez dias que não caía uma gota de chuva, a brisa era leve e o céu azul pálido; nesse mês de maio ideal, Paris tinha as cores
de um cenário de opereta.
Ficou até um pouco mais tarde em sua sala, revendo um relatório que havia muito vinha se arrastando e do qual tinha vontade de se livrar. Ouvia passar os carros,
os ônibus; de vez em quando ressoava o apito de um rebocador no Sena.
Eram quase sete horas quando ele abriu a porta do escritório vizinho, onde Lucas estava de guarda com outros dois ou três inspetores, e lhes desejou boa noite.
Ao descer a escada, ele se perguntou se passaria pela Brasserie Dauphine para tomar um aperitivo. Ainda não havia decidido nada no momento em que atravessou o pórtico
flanqueado de dois sentinelas que o saudaram.
Acabou preferindo voltar para casa em seguida. Quando deu alguns passos em direção ao Boulevard du Palais, uma silhueta miúda surgiu à sua frente e ele a reconheceu
de imediato pela descrição que Lapointe fizera.
– É o senhor, não é? – ela pronunciou com fervor.
Não disse sequer o nome. Só podia ser ele, o famoso comissário cujos inquéritos ela acompanhava nos jornais, inclusive recortando os artigos, que colava em cadernos.
– Peço-lhe perdão por abordá-lo assim, na rua, mas lá em cima não me deixam passar.
Maigret sentia-se um pouco ridículo e imaginava o olhar de troça dos dois sentinelas às suas costas.
– Mas eu entendo, não estou chateada com eles. Afinal, é preciso deixá-lo trabalhar, não é mesmo?
O que mais impressionava o comissário eram os olhos de um cinza claro, um cinza aguado, muito doces e crepitantes ao mesmo tempo. Ela sorria. Era como se estivesse
encantada. Mas era também como se houvesse, naquele corpo miúdo, uma energia extraordinária.
– Para que lado vai?
Ele apontou a direção da Pont Saint-Michel.
– Não se incomoda de que eu o acompanhe até lá?
Ela andava com passinhos rápidos e parecia ainda menor.
– O principal, veja, é que saiba que não sou louca. Sei como os jovens veem as pessoas idosas, e sou uma mulher muito idosa.
– Tem 86 anos, não é?
– Estou vendo que o jovem que me recebeu lhe falou de mim. Ele é muito moço para a profissão, mas é muito bem-educado e muito atencioso.
– Estava me esperando na rua há muito tempo?
– Desde cinco para as seis. Achei que sairia do escritório às seis. Vi várias pessoas saindo, mas o senhor não estava entre elas.
Portanto, ela ficara uma hora inteira à espera, de pé, sob o olhar indiferente dos sentinelas.
– Sinto que estou em perigo. Não é sem razão que alguém se introduz em minha casa e mexe nas minhas coisas.
– Como sabe que mexem nas suas coisas?
– Porque não as encontro no lugar exato. Sou uma maníaca da ordem. Em minha casa, cada objeto tem seu lugar preciso há mais de quarenta anos.
– E isso aconteceu várias vezes?
– Pelo menos quatro vezes.
– Possui objetos de valor?
– Não, senhor comissário. Nada, a não ser aquelas coisinhas que acumulamos ao longo da existência e que guardamos por sentimentalismo.
Ela se virou bruscamente e ele perguntou:
– Alguém a está seguindo neste momento?
– Não, agora não. Suplico-lhe que venha me visitar. Quando estiver no local, compreenderá melhor.
– Farei o que puder para estar disponível.
– Faça mais do que isso por uma velha como eu. O Quai de la Mégisserie fica a dois passos daqui. Nos próximos dias, vá até minha casa e prometo que não tomarei seu
tempo. Também prometo não me apresentar mais no seu escritório.
Em suma, ela era bastante esperta.
– Irei em breve.
– Esta semana?
– Talvez esta semana. Ou senão no começo da semana que vem.
Ele havia chegado a seu ponto de ônibus.
– Agora, queira me desculpar, mas preciso voltar para casa.
– Conto com o senhor – ela disse. – Tenho confiança.
Teria sido difícil, naquele momento, dizer o que ele pensava daquela história. Certamente, era mais uma das muitas que os mitômanos inventam de boa fé. Mas, estando
diante dela e olhando seu rosto, sentira-se tentado a levar a sério suas palavras.
Em casa encontrou a mesa posta para o jantar e beijou a mulher nas duas faces.
– Com um tempo bom desses, imagino que tenha saído.
– Fui fazer umas compras.
Ele fez então uma pergunta que a surpreendeu.
– Também já lhe ocorreu de se sentar num banco de jardim público?
Ela teve que buscar na memória.
– Já deve ter ocorrido. Enquanto esperava a hora de uma consulta com o dentista, por exemplo.
– Há pouco encontrei uma senhora que passa quase todas as tardes num banco das Tulherias.
– Muita gente faz isso.
– No seu caso, alguém lhe dirigiu a palavra?
– Uma vez, pelo menos. A mãe de uma garotinha pediu que eu cuidasse da criança por alguns minutos, enquanto ia comprar alguma coisa do outro lado do parque.
Também ali a janela estava aberta. Na janta, como nos belos dias de verão, havia carnes frias, salada e maionese.
– Que acha de sairmos para dar uma voltinha?
O céu do anoitecer ainda estava rosado, e na calma do Boulevard Richard-Lenoir havia pessoas, aqui e ali, com os cotovelos apoiados à janela.
Eles andavam por andar, pelo prazer de estar juntos, mas nada de especial tinham a se dizer. Olhavam as mesmas pessoas que cruzavam, as mesmas vitrines e, de tempo
em tempo, um dos dois fazia uma reflexão. Passaram pela Bastilha e retornaram pelo Boulevard Beaumarchais.
– No fim da tarde fui procurado por uma estranha velhinha. Ou melhor, foi Lapointe que a recebeu. Mas ela me esperou na rua e me abordou quando eu passava.
“Para quem ouve a história dela, é uma louca. Ou pelo menos tem o cérebro mais ou menos perturbado.”
– Que aconteceu?
– Nada. Apenas afirma que, quando volta para casa, descobre que objetos mudaram ligeiramente de lugar.
– Ela tem um gato?
– Foi o que Lapointe perguntou. Não tem animais. Mora logo acima de um vendedor de aves e isso lhe basta, pois as ouve cantar o dia todo.
– Acha que é verdade?
– Enquanto ela estava à minha frente, sim. Seus olhos cinza claro exprimem ao mesmo tempo candura e bondade. Eu diria, mesmo, simplicidade de alma. É viúva há doze
anos. Vive só. Com exceção de uma sobrinha que raramente vê, não tem família.
“De manhã sai a fazer compras no bairro, com um chapéu branco na cabeça e luvas brancas. De tarde, na maioria das vezes, vai sentar-se num banco das Tulherias. Não
se queixa, não se entedia. A solidão não lhe parece ser um peso.”
– É o que acontece com muitos velhos, você sabe.
– Quero acreditar que sim, mas há nela uma coisa diferente que não consigo definir.
Quando chegaram de volta em casa, já havia anoitecido e o ar estava mais fresco. Foram para a cama mais cedo e, na manhã seguinte, como continuava a fazer bom tempo,
Maigret decidiu ir a pé até o escritório.
Uma pilha de correspondências o esperava, como sempre. Teve tempo de percorrê-las e de ver seus inspetores antes de retornar ao relatório. Não havia nada de importante
acontecendo.
Passou uma manhã banal, decidiu almoçar na Place Dauphine e telefonou para a mulher, avisando que não voltaria para comer. Terminado o almoço, esteve a ponto de
atravessar a Pont-Neuf e de ir até o Quai de la Mégisserie. Um acaso o impediu. Encontrou na calçada um ex-colega que se aposentara e eles conversaram durante um
bom quarto de hora, de pé, sob o sol.
Por duas vezes, à tarde, pensou na velha senhora que os inspetores já haviam batizado como a velha louca de Maigret. Por duas vezes adiou a visita para depois, para
o dia seguinte, por exemplo.
Será que os jornais não zombariam dele se viessem a saber dessa história de objetos que se mexem?
Naquela noite, ele e a mulher viram televisão. Na manhã seguinte foi ao escritório de ônibus, pois estava atrasado. Por volta do meio-dia, o comissário do 1º arrondissement
o chamou ao telefone.
– Estou com um caso que deve interessar sua brigada, pois a zeladora me disse que um dos seus inspetores, um jovem muito bonito, segundo ela, foi vê-la.
Ele teve um pressentimento.
– Quai de la Mégisserie?
– Sim.
– Ela morreu?
– Sim.
– Você está no local?
– Estou no térreo, na loja de um vendedor de aves, pois não há telefone no apartamento.
– Estou indo.
Lapointe estava na sala vizinha.
– Venha comigo.
– Alguma coisa grave, chefe?
– Sim, para você e para mim. Trata-se da velha senhora.
– A do chapéu branco e olhos cinza?
– Sim. Está morta.
– Assassinada?
– Suponho que sim, caso contrário o comissário de polícia não teria me alertado.
Eles não pegaram um carro, pois iriam mais depressa a pé. O comissário Jenton, que Maigret conhecia bem, esperava na calçada, bem ao lado de um papagaio preso por
uma corrente a seu poleiro.
– Você a conhece?
– Estive com ela uma única vez. Prometi visitá-la um dia desses. Ontem, por pouco não vim até aqui.
Isso teria mudado o curso dos acontecimentos?
– Há alguém lá em cima?
– Um dos meus homens e o dr. Forniaux, que acaba de chegar.
– Como ela morreu?
– Ainda não sei. Uma vizinha, que mora no segundo andar, viu a porta entreaberta por volta das dez e meia. Não deu importância e foi fazer compras no mercado. Quando
voltou, às onze, a porta continuava entreaberta e ela chamou:
“– Sra. Antoine!... Sra. Antoine!... está aí?
“Como ninguém respondia, ela empurrou a porta e quase tropeçou no corpo.”
– Estava no chão?
– Sim. Na sala. A vizinha logo chamou a delegacia.
Maigret subia lentamente a escada e seu rosto estava sério.
– Como está vestida?
– Ainda com o chapéu branco e as luvas que pôs para sair.
– Nenhum ferimento aparente?
– Não vi nada. A zeladora me disse que um dos seus homens veio há três dias lhe fazer perguntas a respeito dela e imediatamente o chamei.
O dr. Forniaux, ajoelhado sobre o tapete, se ergueu no momento em que os três homens entraram.
Trocaram um aperto de mão.
– O senhor determinou a causa da morte?
– Asfixia.
– Isso significa que foi estrangulada?
– Não. Alguém deve ter usado um pano qualquer, uma toalha ou mesmo um lenço, que foi mantido diante do nariz e da boca até provocar a morte.
– Tem certeza?
– Confirmarei após a autópsia.
A janela estava completamente aberta e ouvia-se o chilrear das aves no andar de baixo.
– Em que momento acredita que aconteceu?
– Ontem, no final da tarde ou no começo da noite.
Morta, a velha parecia ainda mais miúda do que viva. Era apenas um pequeno corpo do qual uma das pernas estranhamente se dobrara, o que lhe dava o aspecto de um
fantoche desarticulado.
O médico lhe fechara os olhos. O rosto e as mãos eram de um branco marfim.
– Quanto tempo, na sua opinião, foi preciso para matá-la desse modo?
– É difícil dizer com precisão. Sobretudo na idade dela. Cinco minutos? Um pouco mais ou um pouco menos...
– Lapointe, pode telefonar ao Ministério do Interior e ao laboratório? Diga a Moers para nos enviar sua equipe.
– Se não precisam mais de mim, senhores, vou pedir que enviem o furgão a fim de que a levem ao Instituto Médico Legal.
O comissário do bairro também ordenou que seu auxiliar fosse até a rua, onde um pequeno grupo se formara.
– Mande circular. Não estamos na feira.
Tanto Maigret quanto ele estavam habituados com crimes. Esse, porém, os impressionava, talvez por se tratar de uma senhora muito idosa, e também por ela não apresentar
um ferimento aparente.
A decoração do apartamento datava do início do século ou mesmo do século XIX. Os móveis eram de mogno maciço, muito pesados, admiravelmente polidos, as poltronas
cobertas de pelúcia carmesim como se vê ainda em algumas salas de cidades do interior. Os bibelôs eram numerosos, assim como as fotos emolduradas. Havia fotos em
todas as paredes, que eram cobertas de um papel com motivos florais.
– Só nos resta esperar o Ministério Público.
– Não vai demorar. Enviarão o primeiro procurador-substituto acompanhado de um escrivão; ele dará uma espiada ao redor e a coisa estará terminada.
De fato, é assim que as coisas acontecem na maioria das vezes. Depois, são os especialistas que tomam posse do local, atravancando-o com seus aparelhos.
A porta foi entreaberta sem ruído e Maigret teve um sobressalto. Era uma menina. Certamente morava num outro andar e ouvira o barulho.
– Você costuma vir aqui?
– Não. Nunca vim.
– Onde mora?
– Na porta em frente.
– Conhecia a sra. Antoine?
– Às vezes eu a via na escada.
– Ela falava com você?
– Ela sorria para mim.
– Nunca lhe deu bombons, chocolates?
– Não.
– Onde está sua mãe?
– Na cozinha.
– Leve-me até ela.
Ele se justificou diante do comissário de polícia.
– Quando o Ministério Público chegar, mande-me avisar.
O prédio era velho. Havia muito que paredes e tetos não eram reformados, e viam-se frestas entre as tábuas do soalho.
– Mamãe, um senhor quer falar com você.
A mulher saiu da cozinha enxugando as mãos no avental. Havia ainda um pouco de creme batido perto do cotovelo.
– Comissário Maigret. Foi por acaso que vi sua filha empurrar a porta do apartamento da frente. Foi a senhora que descobriu o corpo?
– Que corpo? Vá para o seu quarto, Lucette.
– O de sua vizinha.
– Ela está morta? Eu sabia que um dia isso aconteceria. Na idade dela não se pode viver sozinho. Deve ter passado mal e foi incapaz de chamar.
– Ela foi assassinada.
– Não ouvi nada. É verdade que há muito ruído na rua.
– Não foi um tiro e não aconteceu esta manhã, mas ontem à tarde ou ao anoitecer.
– Pobre mulher! Era um pouco orgulhosa para o meu gosto, mas eu não lhe queria mal.
– Tinham boas relações?
– Acho que não trocamos mais de dez frases desde que me mudei para cá, há sete anos.
– Não conhece nada da vida dela?
– De vez em quando a via sair de manhã. No inverno usava um chapéu preto, no verão um branco, e estava sempre de luvas, mesmo para fazer compras no mercado. Mas
não é da nossa conta, não é mesmo?
– Ela recebia visitas?
– Que eu saiba, não. Espere. Duas ou três vezes vi uma mulher bastante forte, meio machona, bater à sua porta.
– Durante o dia?
– Ao anoitecer. Logo depois da janta.
– Notou, nos últimos tempos, pessoas entrando e saindo do prédio?
– Sempre há um monte de gente entrando e saindo. As pessoas vão e vêm como num moinho. A zeladora fica no seu quarto, no fundo do pátio, e não se ocupa dos moradores.
Ela se virou para a filha que tornara a entrar sem ruído.
– Não ouviu o que falei? Já para o quarto!
– É possível que eu volte a procurá-la, pois sou obrigado a interrogar todos os moradores.
– Ainda não sabem quem a matou?
– Não.
– Como a descobriram?
– Alguém que mora no segundo andar viu a porta entreaberta. Como a porta continuava assim uma hora mais tarde, essa mulher chamou e depois entrou.
– Já sei quem foi.
– Por quê?
– Porque é a mais curiosa de todo o prédio. O senhor verá que se trata da velha Rochin.
Ouviram-se passos e vozes no corredor, e Maigret foi juntar-se aos homens do Ministério que acabavam de chegar.
– Por aqui – disse ele. – O dr. Forniaux já veio, mas está muito ocupado esta manhã e teve que partir.
O procurador-substituto era um homem alto e jovem, muito elegante, distinto. Olhava ao redor com um ar de surpresa, como se nunca tivesse visto o interior de um
apartamento como aquele. Depois examinou por um instante a forma cinzenta e encarquilhada sobre o tapete.
– Sabem como ela foi morta?
– Por asfixia.
– Por certo não devia ser capaz de uma grande resistência.
O juiz Libart chegou pouco depois e também olhou a decoração do interior com curiosidade.
– É como se estivéssemos num filme antigo – observou.
Lapointe havia subido novamente, e seu olhar encontrou o de Maigret. Não fizeram nenhum comentário, mas os dois acharam idiota essa observação.
CAPÍTULO II
– ACHO QUE SERIA BOM eu lhe enviar dois ou três agentes para afastar os curiosos – propôs o comissário de polícia.
Moradores já formavam um grupo no corredor e na escada. Os homens do Ministério Público não se demoraram e os do Instituto Médico Legal levaram o corpo numa padiola.
Lapointe não deixou de notar a gravidade de Maigret, a palidez do seu rosto. Três dias antes, ele não conhecia a morta, nunca tinha ouvido sequer falar dela. Mas,
na sua perturbação, imaginária ou real, fora a ele que ela se dirigira, tentando falar com ele pessoalmente, porque confiava nele, e Maigret a revia abordando-o
na calçada com os olhos brilhantes de admiração.
Ele a tomara por uma louca, ou por uma semilouca. Uma vaga dúvida persistiu, porém, no seu íntimo, e ele prometera visitá-la. É o que teria feito, talvez naquele
dia mesmo.
Mas era tarde. Ela fora realmente assassinada, como temia.
– Recolham as impressões digitais em todas as peças, em todos os objetos, mesmo naqueles menos suscetíveis de terem sido tocados.
Ele ouviu um vozerio no corredor e entreabriu a porta. Havia ali uma dezena de jornalistas e fotógrafos que um agente impedia de entrar no apartamento.
Alguém estendeu um microfone em sua direção.
– De que tipo de crime se trata, comissário?
– Nada a declarar, senhores. Podem dizer que o inquérito ainda não começou.
– Quem é a vítima?
– Uma velha senhora.
– Sra. Antoine de Caramé, segundo nos disse a zeladora. Ela nos disse também que no começo da semana a Polícia Judiciária veio fazer perguntas a respeito dela. Por
quê? Tinham razões para acreditar que ela corria riscos?
– Tudo o que posso dizer é que neste momento nada tenho a declarar.
– Ela vivia sozinha, não é mesmo? E não recebia ninguém?
– Ao que sabemos, é isso. Mas ela tem uma sobrinha, cujo nome ignoro, que às vezes a visitava. É massagista e mora perto daqui, do outro lado da Pont-Neuf.
A rádio gravara essa curta declaração, que apareceria nos jornais vespertinos. É provável, portanto, que a sobrinha se apresentasse.
– Podemos fotografar o interior?
– Ainda não. O pessoal da Identidade Judiciária está trabalhando. Agora peço que deixem livre o corredor e a escada.
– Esperamos o senhor no pátio.
Maigret tornou a fechar a porta e fez finalmente uma inspeção no apartamento. Na entrada havia a sala, onde a sra. Antoine fora agredida, certamente no momento em
que voltava do seu passeio habitual ao Jardim das Tulherias.
Será que alguém visitava o apartamento na sua ausência, como ela suspeitara? Era provável. Mas para buscar o quê? O que esse apartamento podia conter que explicasse
tal obstinação?
Por certo a velha voltara mais cedo que de costume e o intruso, surpreendido, desembaraçara-se dela.
Isso indicava que ela o conhecia? Caso contrário, não teria o visitante podido fugir? Tinha necessidade de matá-la?
– E as impressões digitais?
– Até agora, somente as da velha, que começamos a identificar. Fora isso, há também as do médico na mesa da sala.
A sala tinha duas janelas e, como todas as outras peças, era de teto baixo. Uma porta dava para uma copa tão antiquada quanto o resto e quanto a própria velha. Numa
mesinha de canto, havia uma enorme planta verde num vaso de plástico coberto de tecido.
Em toda parte reinava a mesma ordem, a mesma limpeza meticulosa.
Na copa havia somente uma janela e, na frente desta, uma porta que a comunicava com a cozinha. O cesto de pão continha uma baguete ainda nova. Na geladeira Maigret
encontrou vários pacotinhos. Um deles continha uma fatia de presunto, outro, a metade de uma costeleta. Havia também uma alface e uma garrafa de leite pela metade.
A única peça restante era o quarto de dormir que, como a cozinha, dava vista para o pátio. Ali havia um imenso armário com espelho, de nogueira; a cama também era
de nogueira, assim como os outros móveis. No soalho estendia-se um tapete em estilo oriental de cores desbotadas e cuja trama se via.
Havia em tudo um certo ar de dignidade. Seria preciso, certamente à tarde, voltar para examinar os objetos um por um, inclusive o conteúdo dos armários e das gavetas.
– Terminamos, chefe.
Os fotógrafos retiravam seus aparelhos. Quanto às impressões digitais, não haviam sido identificadas outras senão as da velha senhora.
Maigret deu instruções a um agente de polícia para que não deixasse entrar ninguém, exceto o inspetor que enviaria ao local. Ele desceu a escada escura, de degraus
gastos, com o corrimão polido por dois ou três séculos de uso.
No pátio, jornalistas e fotógrafos estavam às voltas com a zeladora, que lhes respondia de má vontade. Lapointe continuava a acompanhar o comissário e se mantinha
em silêncio. Ele também estava impressionado. Lembrava-se da sra. Antoine na pequena sala onde a recebera e onde ele concluíra que ela não estava muito lúcida.
O vendedor de aves, sr. Caille, a julgar pelo nome pintado numa tabuleta, estava na entrada, perto das gaiolas, vestindo um longo blusão de algodão cinza.
– Permite que eu dê um telefonema?
– Tenha a bondade, senhor comissário.
O homem sorriu com um ar astuto, muito orgulhoso de ter reconhecido Maigret. O telefone ficava dentro da loja onde se empilhavam outras gaiolas e onde havia também
peixes vermelhos em aquários. Um velho, também de blusa cinza, lhes dava de comer.
– Alô!... Lucas?... Preciso que me enviem alguém para o Quai de la Mégisserie. Número 8 bis... Janvier?... Ótimo... Que ele entre no apartamento e não deixe ninguém
mais entrar... Ah! telefone para minha mulher dizendo que não almoçarei em casa...
Após desligar, ele se virou para o velho vendedor de aves.
– Mora há muito tempo no prédio?
– Desde que meu pai se instalou aqui quando eu tinha apenas dez anos.
– Então conheceu a sra. Antoine desde que ela se mudou para cá.
– Isso já faz quarenta anos. Seu primeiro marido, o sr. de Caramé, ainda vivia. Era um homem elegante, distinto. Ocupava um cargo importante na prefeitura e, quando
organizavam lá uma festa, ele sempre nos dava ingressos.
– Naquela época eles se relacionavam com muita gente?
– Dois ou três casais de amigos vinham quase toda semana jogar cartas.
– Como era a sra. Antoine?
– Miudinha, graciosa. Mas veja como é o destino: as pessoas diriam que não tinha saúde e que não chegaria à velhice, de tão frágil que era. Ele, ao contrário, era
um homem robusto que eu nunca vi ficar de cama. Era um bon-vivant. No entanto, foi ele que morreu repentinamente no escritório, enquanto sua mulher até ontem ainda
vivia.
– Ela voltou a se casar pouco depois?
– Não, não. Ficou sozinha durante cerca de dez anos. Depois conheceu, não sei onde, esse sr. Antoine que ela acabou por desposar. Nada tenho contra ele. Era certamente
um homem honesto, mas não tinha a distinção do primeiro marido.
“Trabalhava no Bazar da Prefeitura, como chefe de seção, acredito. Era viúvo. Montou lá em cima um ateliê de bricolagem, era a sua paixão. Não falava muito. Bom
dia, boa noite. Os dois também não saíam muito.
“Ele tinha um carro e, aos domingos, levava a mulher a passear no campo. No verão passavam uma temporada na praia, para os lados de Étretat.”
– Há outros moradores que os conheceram bem?
– Acho que sou o último. Os outros foram morrendo uns depois dos outros, e gente nova veio para cá. Não sei de mais ninguém entre os antigos.
– Está esquecendo o sr. Crispin, papai – interveio o filho, que continuava na entrada junto das gaiolas.
– É verdade, mas, como não o vemos mais, tenho dificuldade de imaginar que ainda vive. Está entrevado há cinco anos. Tem um apartamento de dois quartos no quinto
andar, e é a zeladora que lhe leva as refeições e cuida da limpeza.
– Ele era amigo dos Antoine?
– Deixe ver se me lembro. Chega um momento em que as coisas começam a se misturar. Ele veio morar aqui um pouco depois deles. Portanto, o sr. de Caramé ainda vivia.
Não acho que tenham se frequentado nessa época. Só mais tarde, quando a sra. de Caramé casou com o sr. Antoine, é que o vi com bastante frequência em companhia deste.
Também era comerciante, ramo de passamanaria, acredito, e trabalhava na Rue du Sentier.
– Eu lhe agradeço, sr. Caille.
Nesse meio tempo, Janvier havia chegado.
– Já almoçou?
– Fiz um lanche. E você?
– Vou almoçar com Lapointe. Suba até o primeiro andar e aguarde no apartamento. Não mexa em nada, nem mesmo num bibelô sem importância. Daqui a pouco saberá por
quê. Ah! só uma pessoa deve ter permissão de entrar se ela aparecer: a sobrinha.
Dez minutos depois, Maigret e Lapointe estavam instalados a uma mesa da Brasserie Dauphine.
– Um aperitivinho? – propôs o patrão.
– Não. Sirva-nos logo uma garrafa de beaujolais. O que tem no cardápio?
– Linguiças chegadas de Auvergne esta manhã.
Antes disso, Maigret escolheu filé de arenque.
– E então, o que está pensando? – perguntou Maigret com uma voz um pouco surda.
Lapointe não sabia o que responder.
– Nunca teria acreditado que ela dizia a verdade. Eu jurava que estava inventando coisas, como é tão comum entre pessoas idosas.
– Ela está morta.
– E, se a porta não tivesse ficado entreaberta, poderiam ter se passado dias até descobri-la. Ela conhecia o seu assassino, caso contrário não teria necessidade
de matá-la.
– Eu me pergunto o que ele buscava.
– Quando soubermos, se um dia soubermos, o inquérito estará a um passo do final. Daqui a pouco examinaremos o apartamento nos mínimos detalhes. Fatalmente há alguma
coisa da qual o assassino queria se apropriar. Alguma coisa difícil de achar, já que vasculhou várias vezes o local.
– E se ele tivesse enfim descoberto o que procurava?
– Então não nos restam muitas chances de pegá-lo. Precisaremos também interrogar os moradores. O prédio tem quantos andares?
– Seis, mais as águas-furtadas.
– Com dois apartamentos em média por andar...
O beaujolais estava perfeito, como também a linguiça acompanhada de uma porção de fritas.
– Há uma coisa que não consigo compreender. A sra. Antoine tinha 86 anos. Era viúva havia doze anos. Por que somente agora foram fuçar o apartamento? O que buscavam
estaria de posse dela de pouco tempo para cá?
“Nesse caso, ela saberia o que era. No entanto, declarou não fazer a menor ideia do que procuravam.”
– Ela parecia estar tão surpresa quanto nós.
– Seus dois maridos sucessivos não eram homens misteriosos. Muito pelo contrário. Ambos representavam bem o francês médio, um mais decorativo que o outro.
Ele fez um sinal ao patrão.
– Dois cafés, Léon.
O céu continuava azul e o sol brilhante. Nas margens do Sena viam-se turistas com a máquina fotográfica sobre o ventre.
Os dois homens voltaram até o Quai de la Mégisserie. Só um jornalista havia ficado ali, andando de um lado a outro no pátio.
– Não tem mesmo nenhuma notícia para mim? – ele murmurou, chateado.
– Até agora nada.
– Uma senhora subiu há uns dez minutos, mas se recusou a me dizer quem era.
Um pouco depois, Maigret e Lapointe a encontraram no apartamento. Era uma mulher forte, máscula, com idade aparente de 45 a cinquenta anos. Estava sentada numa das
poltronas da sala e Janvier parecia não haver tentado fazê-la falar.
– O senhor é o comissário Maigret?
– Sim. E lhe apresento dois dos meus inspetores.
– Sou Angèle Louette.
– Senhora?
– Não. Senhorita, embora eu tenha um filho de 25 anos. Não me envergonho, pelo contrário.
– A sra. Antoine era sua tia?
– Era a irmã da minha mãe. A irmã mais velha. No entanto, minha mãe foi a primeira a partir, faz dez anos agora.
– Vive com seu filho?
– Não, vivo sozinha. Tenho um pequeno apartamento na Rue Saint-André-des-Arts.
– E seu filho?
– Às vezes está em Paris, às vezes noutro lugar. No momento, acho que está na Côte d’Azur. Ele é músico.
– Quando viu sua tia pela última vez?
– Há cerca de três semanas.
– Vinha com frequência?
– Uma ou duas vezes por mês.
– Vocês duas se davam bem?
– Não discutíamos.
– Que está querendo dizer?
– Que não havia nenhuma intimidade entre nós. Minha tia era uma pessoa desconfiada. Certamente imaginava que eu vinha vê-la para ficar bem com ela, de olho na herança.
– Ela tinha muito dinheiro?
– Economias, mas que não deviam representar uma grande soma.
– Sabe se ela tinha conta bancária?
– Nunca me falou disso. Apenas me recomendava que a fizesse enterrar no mesmo túmulo do primeiro marido, que tinha um jazigo no cemitério Montparnasse.
“No fundo, acho que foi para não ficar sozinha que voltou a se casar. Conheceu o tio Antoine não sei onde. Um belo dia, me anunciou que se casaria de novo e me pediu
para ser testemunha...”
Maigret não perdia uma palavra do que ela dizia e fez um sinal a Lapointe, que tirara a caderneta do bolso, para não tomar notas. Era o tipo de mulher que provavelmente
se calaria se fosse submetida a um interrogatório oficial.
– Diga-me, srta. Louette, acha que sua tia tinha razões para temer por sua vida?
– Que eu saiba, não.
– Ela nunca lhe falou de um misterioso visitante?
– Nunca.
– Ela costumava lhe telefonar ou ir visitá-la?
– Não. Eu é que vinha de tempo em tempo para verificar se estava bem de saúde e se não precisava de nada. Alguma coisa poderia lhe acontecer e ninguém ficaria sabendo.
– Ela nunca pensou em contratar uma empregada permanente?
– Podia ter feito isso, o dinheiro das duas pensões era mais do que suficiente. Insisti que não vivesse mais sozinha, mas ela não aceitava sequer a ajuda de uma
faxineira. O senhor está vendo como ela cuidava do apartamento. Não há um grão de pó.
– A senhorita é massagista, não?
– Sim. Tenho uma boa clientela. Não me queixo de nada.
– E o pai do seu filho?
– Deixou-me antes que este nascesse. Fiquei contente, pois me enganei a respeito dele. Cometi um erro, como se diz. Não sei sequer onde ele anda e provavelmente
não o reconheceria se o visse na rua.
– Então, na certidão do seu filho consta que o pai é desconhecido e ele tem seu nome?
– Sim. Chama-se Émile Louette. Depois que começou a tocar guitarra nos cabarés, adotou o prenome Billy.
– Vocês dois se dão bem?
– Ele vem me ver de vez em quando, sobretudo quando precisa de dinheiro. É muito boêmio, mas é um bom rapaz.
– Também vinha ver a tia?
– Quando criança, ele me acompanhava. Acho que, depois dos quinze ou dezesseis anos, não voltou mais a vê-la.
– Será que também não pedia dinheiro a ela?
– Não faz o tipo dele. Pedia dinheiro a mim porque sou a mãe, mas a ninguém mais. Ele é muito orgulhoso.
– A senhorita conhece bem o apartamento?
– Bastante bem.
– Onde ficava a sua tia na maior parte do tempo?
– Nessa poltrona, perto da janela.
– Quais as ocupações dela durante o dia e à noite?
– Em primeiro lugar, a limpeza da casa e as compras no mercado. Depois, preparava suas refeições, pois não se contentava com um pedaço de carne fria tirado da geladeira.
Embora vivesse sozinha, comia na copa e não deixava de pôr uma toalha sobre a mesa.
– Ela saía muito?
– Quando fazia bom tempo, ia sentar-se num banco ao ar livre.
– Costumava ler?
– Não. Queixava-se de vista cansada para a leitura. Olhava as pessoas que passavam, as crianças que brincavam na rua. Tinha quase sempre um sorriso um pouco melancólico
nos lábios. Devia pensar no passado.
– Não lhe fazia confidências?
– Que teria podido me dizer? Sua vida era simples demais.
– Não tinha amigas?
– Suas antigas amigas morreram e ela não quis fazer novas amizades. Acabo de lembrar que foi por esse motivo, aliás, que mudou de banco.
– Há quanto tempo?
– Foi no último verão, no final do verão. Ela ocupava sempre o mesmo banco no Jardim das Tulherias. Um dia, uma mulher mais ou menos da idade dela lhe perguntou
se o lugar ao seu lado estava livre. Ela teve que responder que sim, não há lugares reservados nos jardins públicos. Logo no primeiro dia essa mulher se pôs a falar
com ela, contando que era de origem russa e que fora uma grande dançarina...
“No dia seguinte, minha tia a reencontrou no mesmo lugar e durante mais de uma hora a estrangeira lhe falou de seus antigos sucessos. Tinha vivido durante muito
tempo em Nice. Não parava de falar, queixando-se do clima de Paris.
“Foi um dos raros acontecimentos que minha tia me contou.
“– Eu gostava tanto do meu banco – suspirava – e fui obrigada não apenas a mudar, mas também a procurar outro local no parque, para não correr o risco de tê-la outra
vez ao meu lado.”
– Essa russa nunca veio aqui?
– Que eu saiba, não. E, conhecendo bem minha tia, ela certamente não a convidou.
– Em suma, a senhorita não tem nenhuma ideia da identidade do assassino.
– Nenhuma, senhor comissário. O que eu faço, tendo em vista o funeral?
– Deixe o número do seu telefone e a manterei informada. Por acaso tem uma foto recente da sua tia?
– A última tem mais de doze anos, pois foi tirada por meu tio Antoine. De preferência, telefone-me à noite, porque em geral durante o dia estou ocupada na casa das
clientes.
Um agente de polícia continuava postado na entrada do apartamento.
– O que achou dela, chefe?
– Fala com naturalidade e de uma maneira categórica.
Janvier olhava ao redor, com espanto.
– Todo o apartamento é nesse estilo?
– Sim. O quarto de dormir é ainda mais antiquado. Lapointe! Você que conhece um pouco o prédio, vá bater à porta de cada apartamento. Pergunte às pessoas se elas
encontravam a velha, que relações tinham com ela, se viram visitantes entrar no apartamento.
Na sala havia um único objeto moderno, um aparelho de televisão, diante de uma poltrona estofada com um tecido estampado, de motivos florais.
– E nós dois – disse Maigret a Janvier – vamos vasculhar tudo metodicamente, anotando o lugar de cada objeto. Aliás, foi porque encontrou objetos ligeiramente fora
do lugar que ela começou a se preocupar.
O antigo soalho, com frestas entre as tábuas, não estava coberto por um único tapete, mas por vários, pequenos, um deles sob os três pés da mesa redonda.
Eles retiraram a mesa, levantaram o tapete para se certificarem de que não ocultava nada. Depois recolocaram no lugar a mesa redonda, coberta por uma espécie de
toalha de renda. Tiveram o cuidado de repor os objetos miúdos que haviam retirado: uma concha marinha com a indicação Dieppe, uma pastora de louça esmaltada, um
escolar em falso bronze com a maleta nas costas, vestido de marinheiro.
Sobre a lareira estavam alinhadas muitas fotografias, fotos dos dois homens, dos dois maridos que, por assim dizer, acabaram por se confundir no espírito da velha
senhora. Um dos dois, de rosto cheio, um pouco gordo, era calvo e escolhera uma pose favorável. Tratava-se certamente do chefe de escritório na prefeitura.
O outro, mais apagado, tinha bigodes grisalhos. Era o tipo de homem que mais se vê no metrô e no ônibus. Podia ser tanto funcionário público ou contador, quanto
contramestre ou vendedor num grande magazine, como era o seu caso. Ele sorria e o sorriso era sincero. Via-se que estava satisfeito com a vida.
– Diga-me, Janvier, como foi que a sobrinha entrou? Tinha uma chave?
– Não. Tocou a campainha e lhe abri a porta.
– Este móvel está fechado à chave. Deve haver um molho de chaves em alguma parte.
Foi a bolsa da velha senhora que ele examinou em primeiro lugar, a bolsa de couro branco que ela devia ter tirado do armário nos primeiros dias da primavera. Não
continha batom, apenas pó-de-arroz compacto, ligeiramente azulado. O lenço trazia bordada a inicial L e os dois homens descobririam, um pouco mais tarde, que a sra.
Antoine chamava-se Léontine.
Nada de cigarros. Ela não fumava, evidentemente. Um pacotinho de bombons comprados na Rue de Rivoli. Os bombons deviam estar ali há bastante tempo, pois estavam
grudados um no outro.
– Aqui estão as chaves.
Ele estava quase certo de que as encontraria na bolsa que ela levava sempre consigo. No molho havia três chaves de móveis e a chave de um quarto, bem como a da porta
de entrada.
– Ela abriu a porta e recolocou as chaves na bolsa antes de empurrar a porta. Senão as chaves teriam ficado na fechadura ou as teríamos encontrado no chão. Ela teve
o tempo exato de pôr a bolsa sobre a poltrona antes de ser atacada.
Maigret falava maquinalmente, mais para si mesmo do que para o inspetor Janvier. Não conseguia livrar-se de um certo sentimento de mal-estar. Mas, supondo que tivesse
vindo na véspera, que diferença faria? Ele não teria descoberto elementos suficientes para que se impusesse uma vigilância do apartamento 24 horas por dia. E o assassino,
ignorando sua visita, teria agido da mesma forma.
Experimentou as pequenas chaves, uma a uma, na gaveta de um móvel e acabou por encontrar a certa.
A gaveta estava cheia de papéis e fotografias. À direita, viu uma caderneta da Caixa Econômica em nome de Léontine Antoine, Quai de la Mégisserie, num montante de
dez mil francos. Havia apenas depósitos, nem uma única retirada, e os depósitos haviam começado 25 anos antes. É a razão pela qual fora riscado, sob o nome Antoine,
o nome de Caramé.
Vinte e cinco anos de vida, de economias. Compras no mercado de manhã, idas ao parque à tarde; talvez, quando chovia, ao cinema de vez em quando?
Uma outra caderneta era de uma agência bancária da Société Générale. O montante era de 23.200 francos. Dois mil e quinhentos francos haviam sido retirados alguns
dias antes do último Natal.
– Esse valor não lhe sugere nada?
Janvier fez que não com a cabeça.
– A televisão. Aposto que foi o que ela pagou com esses 2.500 francos, o que ela se ofereceu no Natal.
Havia uma outra retirada, doze anos antes, que certamente correspondia às despesas com o funeral do segundo marido.
Cartões postais. Em sua maioria eram assinados Jean. Vinham de diferentes cidades da França, da Bélgica e da Suíça, e devem ter sido enviados por ocasião de congressos.
Letras bem traçadas, um pouco redondas, e sempre o mesmo texto:
Com ternura
Jean
Jean era Caramé. Quanto a Antoine, certamente pouco viajara sozinho e não havia nenhuma carta dele. Contudo, eram numerosas as fotografias, dele só ou do casal.
Aliás, a máquina, bastante antiga, se achava na mesma gaveta.
Aparentemente, o casal Antoine mudava todo ano de lugar de férias e, além disso, adorava as excursões. Tinham ido a Quimper, a La Baule, a Arcachon, a Biarritz.
Também haviam percorrido o planalto central da França e passado temporadas na Côte d’Azur.
A idade variava de uma fotografia a outra e seria possível proceder a uma classificação cronológica.
Algumas cartas, sobretudo de Angèle Louette, a sobrinha massagista. Elas também provinham de cidades do interior.
Passamos umas boas férias aqui, Émile e eu. Émile é agora um rapazinho que fica rolando o dia inteiro nas dunas...
Havia uma única foto desse Émile, que agora se fazia chamar de Billy. Tinha quinze anos e olhava com firmeza para a frente, como quem desafia o mundo inteiro.
– Nenhum segredo, nada de inesperado – suspirou Maigret.
Uma mesinha continha lápis, canetas, uma borracha e papel de carta sem nome nem iniciais. A velha Léontine não devia escrever com frequência. E para quem escreveria?
Ela ultrapassara o pelotão dos que conhecera e que haviam morrido, todos, antes dela. Restava-lhe apenas a sobrinha e o sobrinho-neto, de quem, exceto a fotografia
e a menção numa antiga carta da mãe, não havia outro sinal.
A cozinha foi esquadrinhada, e Maigret observou instrumentos que não conhecia e que não lhe pareceram vir do comércio. Havia, por exemplo, um abridor de latas de
um tipo muito especial, e também uma pequena máquina, simples mas engenhosa, para descascar batatas.
Eles só compreenderam quando, na outra ponta do corredor, abriram um quartinho com a segunda chave. Era uma peça do lado de fora do apartamento, uma espécie de depósito,
com uma pequena janela que dava para o pátio. Ali havia uma mesa de carpintaria e nas paredes estavam penduradas, em boa ordem, várias ferramentas.
Era o lugar onde o sr. Antoine saciava sua paixão pela bricolagem. Num canto, sobre uma tábua, se empilhavam revistas técnicas, e uma gaveta continha cadernos nos
quais eram traçados esboços, entre os quais o da máquina de descascar batatas.
Quantas pessoas como ele, quantos casais como o que eles formavam, entre os milhões de parisienses? Pequenas vidas metódicas, bem ordenadas.
O que era incongruente era a morte da velha senhora tão delicada, de olhos cinza claro.
– Falta ainda ver o quarto e os armários.
Havia ao todo, no guarda-roupa, um casacão de inverno em astracã, um outro de lã escura, dois vestidos de inverno, um deles malva, e três ou quatro de verão.
Nenhuma roupa de homem. Quando o segundo marido morreu, ela deve ter dado a alguém suas coisas, a menos que dispusesse de uma das águas-furtadas ou de uma parte
do sótão do prédio. Seria preciso se informar sobre isso com a zeladora.
Tudo estava limpo, arrumado, e havia papel branco no fundo das gavetas.
No entanto, o da gaveta da mesa de cabeceira tinha uma mancha bastante grande, uma mancha de óleo ou graxa, quando a gaveta foi esvaziada.
Intrigado, Maigret cheirou e fez que Janvier também cheirasse.
– O que acha que é?
– Graxa.
– Sim, mas não qualquer graxa. Serviu para lubrificar uma arma. A velha senhora tinha um revólver ou uma pistola nesta gaveta.
– Que foi feito da arma?
– Não a vimos no apartamento, embora tenhamos vasculhado todos os cantos. No entanto, a mancha parece ainda fresca. Será que a pessoa que matou a velha...
Era difícil acreditar que o assassino, homem ou mulher, tivesse pensado em levar o revólver.
A mancha que eles acabavam de descobrir colocava tudo novamente em questão.
Teria a velha comprado a arma para se defender numa eventualidade? Era improvável. Tal como Maigret a vira, ela devia, isto sim, era ter medo de armas de fogo. Aliás,
ele não conseguia imaginá-la entrando numa loja de armas, pedindo uma pistola e indo testá-la no subsolo.
Mas por que não, afinal? Ela não o surpreendera por sua energia? Era frágil, com punhos não maiores que os de uma criança, no entanto mantinha o apartamento com
tanto cuidado, ou mais, que a melhor dona de casa.
– Provavelmente a arma pertenceu a um dos dois maridos.
– Mas o que foi feito dela? Temos que levar esse papel ao laboratório a fim de analisar o material gorduroso. Estou certo, de antemão, da resposta.
Ouviram uma campainha e Maigret, sem querer, procurou um telefone.
– Foi na porta de entrada – disse Janvier.
Ele foi abrir. Era Lapointe, que parecia extenuado.
– Viu todos os moradores?
– Todos os que estavam em casa. O maior problema é que quase não me deixavam fazer perguntas. Eles é que faziam. Como ela morreu? Qual foi a arma utilizada? Por
que não se ouviram tiros?
– Conte.
– O apartamento bem acima deste é habitado por um solteirão de uns sessenta anos que, ao que parece, é bastante conhecido. Vi livros de sua autoria na biblioteca.
Sai pouco. Possui um cachorrinho, e uma governanta vem toda manhã fazer a limpeza e preparar as refeições. Digo governanta porque foi a palavra que ele usou. Eu
a vi. Chama-se srta. Élise e é uma moça cheia de dignidade.
“A decoração é quase tão antiquada quanto aqui, com mais bom gosto. Em certo momento, ele me disse:
“– Por que ela resolveu comprar essa maldita televisão? Fica ligada toda noite até as onze horas. Eu, que me levanto às seis da manhã para fazer minha caminhada...”
Lapointe acrescentou:
– Ele nunca dirigiu a palavra a ela, embora more no prédio há vinte anos. Quando se cruzavam na escada, limitava-se a cumprimentá-la. Ele se lembra do marido, pois
também fazia barulho. Parece que tinha um ateliê com um monte de ferramentas e à noite ficava martelando, serrando, aplainando, sei lá.
– E o apartamento da frente?
– Não encontrei ninguém. Desci para me informar com a zeladora. É um jovem casal. O homem trabalha como engenheiro de som numa firma de cinema e a mulher é montadora
na mesma firma. Costumam jantar fora e voltam tarde. Também se levantam tarde, pois seu trabalho começa ao meio-dia.
– O terceiro andar?
Lapointe consultou suas anotações.
– Os Lapin. Só vi a avó e o bebê. A mulher trabalha numa camisaria na Rue de Rivoli e o marido é corretor de seguros. Ele viaja muito.
– O outro apartamento?
– Espere! Interroguei a avó e ela me disse:
“– Não, senhor, eu não conversava com ela. Era uma mulher muito libertina para mim. A prova é que deu um jeito de ter dois maridos. Eu também sou viúva, mas nem
por isso voltei a casar. Acaso poderia viver com um outro homem no mesmo apartamento, com os mesmos móveis?”
Lapointe consultou outra vez a caderneta.
– O padre Raymond. Não sei a que ordem pertence. É muito idoso e praticamente não sai do apartamento. Ele ignorava a existência de Léontine Antoine, ex-Léontine
de Caramé...
“Passo ao andar seguinte. Um apartamento vazio, que será ocupado dentro de quinze dias. Está sendo reformado e pintado para parecer o mais novo possível. Trata-se
de um casal de cerca de quarenta anos e com dois filhos no ginásio.
“Vi o velho em cujo apartamento a zeladora faz a limpeza. Ele circula numa cadeira de rodas que maneja com uma habilidade extraordinária. Achei que encontraria um
homem abatido, intratável, e encontrei, ao contrário, um sujeito muito bem-humorado.
“– Não diga que a mataram! – exclamou. – Havia cinquenta anos, ou mais, que nada acontecia neste prédio. Enfim, temos um belo assassinato! Sabem quem matou? Suponho
que não tenha sido um crime passional!”
E Lapointe acrescentou:
– O homem ria, divertia-se. Se ele pudesse descer, certamente teria pedido permissão para visitar o local.
“Uma mulher comum, no apartamento defronte, sra. Blanche, que tem uns sessenta anos e trabalha como caixa numa brasserie. Não cheguei a vê-la, pois só volta à meia-noite.”
Todo um pequeno mundo vivia, assim, lado a lado. A velha senhora do primeiro andar fora assassinada e isso causou um certo rebuliço.
– Como foi morta?
– Quem matou?
– Por que ela não chamou?
Os vizinhos, em sua maioria, se cumprimentavam vagamente na escada, mas não conversavam entre si. Cada um no seu canto, com a porta bem fechada.
– Você ficará aqui até eu enviar alguém para substituí-lo – disse Maigret a Janvier. – Pode parecer ridículo, mas tenho a impressão de que o homem ou a mulher que
vasculhou tanto o apartamento poderia muito bem voltar.
– Envie Torrence, se estiver livre. Ele adora televisão.
Maigret levou a folha de papel manchada de óleo ou graxa. No Quai des Orfèvres, foi diretamente até o andar superior, onde Moers dirigia os laboratórios.
– Poderia examinar esta mancha?
Moers cheirou, depois olhou Maigret como para dizer que era fácil e levou a folha a um dos especialistas ocupados na imensa peça de teto inclinado.
– É bem o que pensei. Graxa de fuzil.
– Vou precisar de uma análise oficial, pois é o único indício que possuímos até agora. Essa graxa está aí há quanto tempo?
– Meu técnico lhe dirá, mas vai demorar um pouco mais.
– Obrigado. Mande entregar-me os resultados.
Desceu até o escritório e se dirigiu à sala dos inspetores. Torrence estava ali, assim como Lapointe, que já redigia um relatório a partir das anotações feitas na
caderneta.
– Diga-me, Torrence, está com fome?
O gordo Torrence não compreendeu a pergunta.
– Às cinco da tarde?
– Certamente não terá tempo de comer mais tarde. Vá se alimentar ou comprar sanduíches. Irá ao Quai de la Mégisserie e substituirá Janvier no apartamento do primeiro
andar. Enviarei alguém para assumir seu posto amanhã de manhã, na primeira hora. Encontrará as chaves em cima da mesa redonda da sala.
“Fique atento, pois o assassino também possui uma chave e não precisou forçar a porta.”
– Acredita que ele voltará?
– Esse caso é tão estranho que tudo é possível.
Maigret ligou para o dr. Forniaux.
– Teve tempo de fazer a autópsia?
– Eu ia ditar meu relatório. Sabe de uma coisa? Essa mulher, do jeito que era, teria podido chegar aos cem anos. Tem órgãos em tão bom estado quanto uma menina.
“Ela foi asfixiada, como pensei logo de início. Posso acrescentar que foi com uma echarpe ou um tecido contendo fios vermelhos, pois encontrei um desses fios entre
os dentes. Ela tentou morder. Certamente debateu-se antes de sucumbir por falta de oxigênio.
– Obrigado, doutor. Aguardo seu relatório.
– Você o terá amanhã na primeira entrega da correspondência.
Léontine Antoine não bebia, pois não havia nem vinho nem outras bebidas alcoólicas no apartamento. Comia muito queijo. Eram detalhes que vinham ao espírito do comissário
enquanto ele olhava pela janela o tráfego na Pont Saint-Michel. Uma série de barcaças passava sob a ponte, puxadas por um rebocador que tinha um imenso trevo branco
pintado na chaminé.
O céu era de um rosa ligeiramente azulado, as folhas das árvores tinham um verde ainda novo e os passarinhos disputavam para ver qual piava mais.
Foi nesse momento que o agente que primeiro reparou na velha senhora pediu para ser recebido pelo comissário.
– Não sei se isso interessa ao senhor. Acabo de ver a fotografia no jornal. Eu conheço essa mulher. Quero dizer que a vi há quase uma semana. Eu estava de sentinela
no pórtico. Ela ficou um longo tempo andando de um lado a outro na calçada, olhando as janelas e depois o pátio. Achei que ia falar comigo, mas foi embora sem dizer
nada.
“Voltou no dia seguinte e se aventurou a pôr os pés no pátio. Não intervim. Pensei que fosse uma turista, como tantos que aparecem...
“No outro dia eu não estava de sentinela, mas Lecoeur, que me substituía, a viu entrar no pátio e se dirigir sem hesitação até a porta da Polícia Judiciária. Parecia
tão decidida que ele nem lhe pediu a convocação.”
– Eu lhe agradeço. Faça-me um relatório. Lecoeur também.
Portanto, ela ficara rondando em volta da Polícia Judiciária até resolver pedir para falar com o comissário Maigret. Este lhe enviara Lapointe, que por um momento
ela pensou ser seu filho. O que não a impediu, mais tarde, de esperar o comissário na calçada.
O velho Joseph batia à porta, sabia-se que era ele pelo modo de bater, e abriu antes de receber uma resposta.
Estendeu uma ficha onde se lia: Billy Louette.
Estranho! A massagista dissera algumas horas antes que o filho estava em algum lugar na Côte d’Azur.
– Faça-o entrar, Joseph.
CAPÍTULO III
– SUPONHO QUE QUERIA falar comigo.
– Ainda não. Sua mãe me disse que estava na Côte d’Azur.
– Minha mãe está sempre inventando coisas!... Posso fumar?
– Fique à vontade.
O jovem não estava impressionado por se achar na Polícia Judiciária e olhava Maigret como se este fosse um funcionário qualquer.
Não se tratava de desafio nem de ostentação. Ele tinha os cabelos bastante compridos, cabelos ruivos, mas não era um hippie. Sobre uma camisa xadrez, vestia um casaco
de camurça. As calças eram de veludo bege, e calçava mocassins.
– Quando li no jornal o que aconteceu à minha tia, imediatamente pensei que ia querer falar comigo.
– Fico contente que tenha vindo.
Ele não se parecia nem um pouco com a massagista. Enquanto ela era alta e forte, com ombros másculos, ele era baixo e um tanto magro, de olhos azul-claros. Maigret
sentou-se atrás da mesa e indicou-lhe a poltrona à sua frente.
– Obrigado. O que aconteceu exatamente com a velha? Os jornais não dizem muita coisa.
– Dizem o que sabemos: que foi assassinada.
– Roubaram alguma coisa?
– Aparentemente não.
– De toda forma, ela nunca guardava muito dinheiro em casa.
– Como sabe?
– Eu ia vê-la de tempo em tempo.
– Quando estava duro?
– Claro. Caso contrário, o que teria para contar? Minhas histórias não a interessavam.
– Ela lhe dava dinheiro?
– Costumava dar uma nota de cem francos, mas com a condição de eu não vir muito seguido.
– Você é músico, me disseram.
– É verdade, sou guitarrista. Faço parte de uma pequena banda chamada Les Mauvais Garçons.
– Isso garante o seu sustento?
– Tem altos e baixos. Às vezes somos contratados numa boate importante, outras vezes tocamos em cafés. O que minha mãe lhe falou a meu respeito?
– Nada de especial.
– Está vendo que não é o amor materno que a caracteriza. Em primeiro lugar, não temos de modo algum o mesmo caráter. Minha mãe só pensa em dinheiro, nos seus velhos
dias, como ela diz, e fica economizando moedas. Deixaria de comer, se pudesse, para economizar ainda mais.
– Ela gostava da tia?
– Não a suportava. Cheguei a ouvi-la suspirar:
“– Será que essa velha nunca vai bater as botas?”
– Por que lhe desejaria a morte?
– Ora, por causa da herança. A velha, com a pensão dos dois maridos, devia ter um belo pé-de-meia.
“Já eu gostava bastante dela. E acho que ela gostava também de mim. Sempre fazia questão de me preparar um café e servir biscoitos. Dizia:
“–Você não deve comer todo dia, não é verdade? Por que não escolhe uma boa profissão?
“Minha mãe também queria que eu tivesse outra profissão. Chegou mesmo a escolher por mim quando eu tinha quinze anos... Queria que eu fosse ortopedista.
“– Há tão poucos ortopedistas que às vezes é preciso esperar um mês para uma consulta. É uma profissão que dá dinheiro e não é desagradável – ela argumentava.”
– Quando foi visitar sua tia pela última vez?
– Há cerca de três semanas. Tínhamos ido a Londres, de carona. Esperávamos conseguir um contrato, mas eles são melhores que nós, e lá existem tantas bandas que nos
desprezam. Voltamos sem grana e então fui procurar a velha.
– Ela lhe deu os cem francos?
– Sim. E meus biscoitos.
– Onde você mora?
– Mudo-me com bastante frequência. Às vezes estou com uma garota, outras vezes sozinho, como agora. Ocupo um quarto mobiliado num pequeno hotel da Rue Mouffetard.
– E trabalha?
– Mais ou menos. Conhece o Bongo?
Maigret fez que não com a cabeça. O jovem parecia surpreso de que alguém não conhecesse o Bongo.
– É um pequeno café-restaurante na Place Maubert. O patrão é do Auvergne e logo compreendeu o que se passava no bairro. Ele atrai os hippies, às vezes deixando-os
beber de graça. Em troca da janta e de alguns francos, também acolhe artistas. É o nosso caso. Fazemos duas ou três apresentações por noite. E há ainda Line, uma
menina que canta de forma extraordinária.
“Isso atrai a clientela. As pessoas querem ver de perto os famosos hippies e não acreditam quando lhes dizemos que não fumamos maconha nem haxixe.”
– Espera continuar sendo músico?
– Espero que sim. É o que mais gosto de fazer. Até comecei compor, mas ainda não encontrei meu estilo. O que posso lhe dizer, em todo caso, é que não fui eu que
matei a velha. Primeiro, porque não faz meu gênero matar pessoas. Depois, porque eu sabia que seria o primeiro suspeito.
– Tinha a chave do apartamento?
– O que faria com ela?
– Onde estava ontem por volta das seis da tarde?
– Em minha cama.
– Sozinho?
– Finalmente sozinho, sim. Havíamos passado quase toda a noite no Bongo. Eu estava com uma garota que parecia legal. Era nórdica, dinamarquesa ou sueca. Bebemos
muito. De manhãzinha a levei para casa, e só pelas três da tarde pude dormir.
“Pouco depois percebi que ela saía da cama e ouvi ruídos. Não despertei completamente, mas senti que a cama estava vazia ao meu lado.
“Eu estava exausto, prostrado, e ainda por cima de porre, e só me levantei depois das nove.”
– Isso significa que ninguém o viu, digamos, entre cinco e oito da noite.
– Exato.
– Poderia encontrar de novo essa garota?
– Se ela não estiver hoje à noite no Bongo, estará numa outra boate do bairro.
– Você a conhecia?
– Não.
– Então é uma nova namorada?
– Não é exatamente o que está pensando. A gente vai e vem. Eu lhe disse que fomos a Londres. Também fomos a Copenhague, de carona, e em toda parte logo fazemos amizades.
– Sabe o nome dela?
– Só o prenome: Hilda. Sei também que o pai é um funcionário bastante importante.
– A idade?
– Vinte e dois anos, pelo que me disse. Não sei com quem ela já havia marcado encontro, senão talvez tivesse ficado comigo umas semanas. É assim que as coisas acontecem.
Depois a gente se separa, na maioria das vezes sem saber por quê. Ficamos amigos.
– Fale-me de suas relações com sua mãe.
– Já lhe disse que nós dois não nos damos bem.
– No entanto, foi ela que o educou.
– Contra a sua vontade, e é uma das razões pelas quais ela sempre quis mal à velha. Esperava que esta se ocupasse de mim. Como trabalhava, ela me levava toda manhã
à creche e vinha me buscar no fim da tarde. O mesmo aconteceu depois, na escola.
“Ter um filho era algo que a incomodava, sobretudo quando recebia homens.”
– Ela recebia muitos?
– Depende dos momentos. Durante seis meses vivemos com um homem que eu era obrigado a chamar de papai e que ficava a maior parte do tempo em casa...
– Ele não trabalhava?
– Dizia ser viajante de comércio, mas raramente viajava. Em outras ocasiões, eu ouvia ruídos durante a noite e na manhã seguinte não encontrava mais ninguém. Eram
quase sempre homens mais jovens que ela, sobretudo nos últimos tempos.
“Há uns quinze dias a encontrei no Boulevard Saint-Germain com um cara que vi várias vezes nas boates e que se chama Grand Marcel.”
– Você o conhece?
– Não pessoalmente, mas tem fama de ser um cafetão. Convém não esquecer que ela está envelhecendo.
Ele se mostrava ao mesmo tempo cínico e cândido.
– Veja que não estou suspeitando que minha mãe tenha matado a velha. Ela é assim, é o jeito dela. Também tenho o meu jeito, sou assim e não posso mudar. Talvez me
torne um astro, talvez mais um fracassado como tantos em Saint-Germain. Tem outras perguntas a me fazer?
– Certamente muitas, mas elas não me ocorrem neste momento. Está contente com sua vida?
– Na maior parte do tempo, sim.
– Não teria preferido ser ortopedista como sua mãe queria? Por certo, agora estaria casado e teria filhos.
– Isso não me tenta. Talvez mais tarde.
– O que sentiu ao ficar sabendo que sua tia-avó estava morta?
– Senti uma pontada no coração. Não a conhecia muito. Para mim, era uma mulher bastante idosa que há muito já devia estar enterrada. Mesmo assim eu gostava dela.
Gostava sobretudo dos seus olhos, do seu sorriso.
“– Coma” – ela me dizia, e ficava me olhando comer os biscoitos com uma espécie de ternura. Além de minha mãe, eu representava toda a sua família.
“– Não quer mesmo que eu lhe corte os cabelos?”
“Era o que mais a importunava.
“– Assim dá a impressão de ser o que não é. Pois, no fundo, você é um bom rapaz.”
“E o funeral, quando será?”
– Ainda não sei. Deixe-me seu endereço e o avisarei. Certamente dentro de dois dias. Depende em parte do juiz de instrução.
– Acredita que ela sofreu?
– Mal pôde reagir. Por acaso tem uma echarpe de lã vermelha ou com desenhos vermelhos?
– Nunca uso echarpe. Por que me pergunta isso?
– Por nada. Estou investigando, tateando.
– Não tem suspeitos?
– Suspeitos precisos, não.
– Pode ter sido um ladrão comum?
– Por que teria escolhido a sra. Antoine e por que a teria atacado num prédio cheio de gente? O assassino buscava alguma coisa.
– Dinheiro?
– Não estou certo. Se ele a conhecia, devia saber que só guardava em casa pequenas quantias. Além disso, visitou várias vezes o apartamento na ausência da velha.
Sabe se ela possuía um ou vários objetos de valor?
– Sei de muitas joias, mas de pouco valor. Eram joias modestas que os dois maridos lhe ofereceram.
Maigret as encontrara. Um anel ornado de rubi combinando com brincos, um bracelete de ouro e um reloginho também de ouro.
Na mesma caixa havia um alfinete de gravata com uma pérola que deve ter pertencido a Caramé, bem como abotoaduras de prata. Eram enfeites antiquados praticamente
sem nenhum valor comercial.
– Ela não possuía documentos?
– Que está querendo dizer com documentos? Era uma velha muito simples, que teve uma existência tranquila com o primeiro marido e depois com o segundo. Não conheci
Caramé, que morreu antes de eu nascer, mas conheci o outro, Joseph Antoine, que era um bom sujeito...
Maigret levantou-se, suspirando.
– Vai com frequência à casa da sua mãe?
– Quase nunca.
– Sabe se ela vive sozinha neste momento ou se o tal Marcel, de que me falou, está morando com ela?
– Realmente, não sei.
– Eu lhe agradeço por ter vindo, sr. Louette. É possível que uma noite dessas eu vá escutá-lo.
– A melhor hora é por volta das onze da noite.
– É uma hora em que já costumo estar na cama.
– Continuo sendo suspeito?
– Até prova em contrário, todos são suspeitos, mas você não é mais que um outro qualquer.
Maigret fechou a porta depois que o jovem saiu e foi se apoiar à janela. Anoitecia. Os contornos se tornavam menos nítidos. Ele ficara sabendo de muitas coisas,
mas elas não lhe serviam para nada.
O que podiam estar buscando na casa da velha do Quai de la Mégisserie?
Fazia mais de quarenta anos que ela morava no mesmo apartamento. Tivera um primeiro marido que nada tinha de misterioso, depois ficara viúva durante dez anos.
O segundo marido, do mesmo modo, não parecia colocar problemas. Havia doze anos que morrera, e ela levava uma existência monótona sem ver ninguém, exceto a sobrinha
e o sobrinho-neto.
Por que não haviam tentado penetrar na casa dela mais cedo? O que buscavam estaria ali há pouco tempo?
Ele alçou os ombros, suspirou e se dirigiu até a sala dos inspetores.
– Até amanhã, rapazes.
Voltou para casa de ônibus, pensando na estranha profissão que escolhera. Olhava seus vizinhos anônimos e dizia para si que de uma hora para a outra poderia ter
que se debruçar sobre a existência de um deles.
O jovem ruivo de cabelos compridos lhe parecera simpático, mas Maigret tinha curiosidade de fazer à mãe dele algumas perguntas indiscretas.
A sra. Maigret abriu a porta assim que ele chegou ao patamar da escada, como sempre.
– Parece preocupado.
– Há razões para isso. Estou envolvido num caso do qual não compreendo nada.
– O assassinato da velha senhora?
Ela lera o jornal, é claro, e ouvira o rádio.
– Chegou a vê-la viva?
– Sim.
– O que pensou a respeito dela?
– Achei que fosse uma louca ou uma semilouca. Uma pessoa muito delicada, muito frágil, que me suplicou ocupar-me dela como se eu fosse o único no mundo a poder ajudá-la.
– Fez alguma coisa?
– Não podia mandar protegê-la noite e dia por um inspetor.
“Tudo o que ela se queixava era de não encontrar, ao voltar para casa em certos dias, os objetos no seu devido lugar.
“Confesso que pensei ser imaginação dela ou perda de memória. Mesmo assim prometi visitá-la, mais para tranquilizá-la do que por qualquer outra coisa. Ontem, ela
deve ter voltado mais cedo que de costume, e seu ou sua visitante ainda estava no apartamento.
“Foi suficiente manter uma echarpe ou um outro tecido sobre o rosto para asfixiá-la...”
– Ela tem família?
– Apenas uma sobrinha e um sobrinho-neto. Cheguei a ver os dois. A sobrinha é alta e forte como um homem. Trabalha como massagista. O jovem, ao contrário, é baixo,
magro e ruivo, e toca guitarra numa boate da Place Maubert.
– Não roubaram nada?
– É impossível saber. O único indício, se posso falar de indício, é que a gaveta da mesa de cabeceira conteve um revólver que não está mais lá.
– Ninguém mata uma velha senhora, a sangue frio, por um revólver. Nem penetra no apartamento várias vezes para agredi-la.
– Vamos comer!
Jantaram frente a frente, diante da janela aberta, sem ligar a televisão. A temperatura estava muito amena. O ar imóvel impregnava-se aos poucos de um agradável
frescor e mal se ouvia o farfalhar das folhas nas árvores.
– Como não veio para o almoço, resolvi aquecer de novo o guisado de ovelha.
– Fez muito bem.
Ele comia com apetite, mas seu espírito estava noutra parte. Recordava a velha dama vestida de cinza, na calçada do Quai des Orfèvres, e o olhar de confiança e admiração
que punha nele.
– E se deixasse de pensar nisso esta noite?
– Eu gostaria, mas não consigo. Tenho horror de decepcionar as pessoas e, no caso, a pobre velha perdeu a vida.
– Não quer dar uma caminhada?
Ele concordou. Não tinha vontade de ficar a noite toda encerrado no apartamento. Além do mais, durante um inquérito, ele tinha o hábito – para não dizer a mania
– de repetir todo dia os mesmos gestos.
Desceram em direção à Bastilha e se sentaram no terraço de um café. Um violonista cabeludo tocava introduzindo-se entre as mesas, enquanto uma garota de olhos muito
escuros estendia um pires aos consumidores.
Isso o fez pensar, claro, no jovem ruivo que nos dias de dureza também devia percorrer os cafés.
Maigret mostrou-se mais generoso que das outras vezes e sua mulher reparou nesse fato. Não disse nada, limitou-se a sorrir e eles ficaram um bom momento a olhar
as luzes da noite.
Ele fumava lentamente, em pequenas tragadas. Em certo momento foi tentado a ir até o Bongo. Mas para fazer o quê? O que ficaria sabendo mais do que já sabia?
Os moradores do prédio no Quai de la Mégisserie também eram suspeitos. Um ou outro podia conhecer a velha senhora mais do que admitiu. Era fácil tirar o molde da
fechadura e mandar fazer uma chave falsa.
Por quê? Era a pergunta que não parava de voltar ao espírito de Maigret. Por quê? Em primeiro lugar, por que as visitas repetidas? Não pelo pouco dinheiro que havia
no apartamento, algumas centenas de francos fáceis de achar na gaveta da cômoda e que não foram tocados. Maigret encontrara cédulas introduzidas na caderneta da
Caixa Econômica.
– Amanhã mandarei fazer um inquérito sobre os dois maridos.
Isso parecia ridículo. Ainda mais que o segundo marido morrera havia vários anos.
Devia haver um segredo em algum lugar, um segredo bastante importante para que um ser humano fosse sacrificado.
– Vamos indo?
Ele bebera um cálice de calvados e por pouco não pedira um segundo. Seu amigo Pardon, que o prevenia contra qualquer bebida alcoólica, não teria gostado.
– Suportamos o vinho e o álcool durante anos, depois chega uma idade em que o organismo não os tolera mais.
Ergueu os ombros e saiu se esgueirando entre as mesinhas. Na calçada, a sra. Maigret enlaçou o braço no dele. Foram andando pelo Boulevard Beaumarchais, pela Rue
Servan, até o Boulevard Richard-Lenoir e seu velho e bom apartamento.
Ao contrário do que temia, ele adormeceu quase em seguida.
Nada se passou no Quai de la Mégisserie durante a noite, e o gordo Torrence pôde dormir à vontade na poltrona da velha. Às oito da manhã, Lourtie foi substituí-lo
e encontrou um repórter conversando com a zeladora.
Às nove, um Maigret com cara de poucos amigos empurrou a porta da sala dos inspetores, fez um sinal a Janvier e a Lapointe para que o acompanhassem.
– Aliás, venha você também, Lucas.
Sentou-se à mesa e escolheu um cachimbo como se essa escolha fosse muito importante.
– É o seguinte, rapazes. Não avançamos um passo desde ontem de manhã. Na falta de encontrar o que quer que seja no presente, vamos cavoucar um pouco o passado. Você,
Lucas, irá ao Bazar da Prefeitura, na seção de artigos de jardinagem e pequenas ferramentas. Vendedores que eram iniciantes no tempo do sr. Antoine devem ainda trabalhar
no local.
“Faça todo o tipo de perguntas. Eu gostaria de saber o máximo possível sobre o sujeito, sobre sua maneira de pensar, de viver etc.”
– Certo, chefe. Não seria melhor eu pedir uma autorização à chefia administrativa? Não irão recusá-la e os funcionários se sentirão mais à vontade do que se eu for
lhes falar, de certo modo, confidencialmente.
– Tudo bem. Quanto a você, Janvier, irá à prefeitura e fará o mesmo em relação a Caramé. Será mais difícil, pois já faz muito tempo que morreu. Se os que o conheceram
estiverem aposentados, consiga o endereço e vá até a casa deles.
Era rotina, evidentemente, mas às vezes a rotina recompensa.
– Quanto a você, Lapointe, venha comigo.
No pátio, o jovem inspetor perguntou:
– Vamos de carro?
– Não. É logo do outro lado da ponte. Rue Saint-André-des-Arts. Levaria mais tempo indo de carro.
O prédio era velho, como o do Quai de la Mégisserie e como todos os prédios do bairro. À direita havia uma loja de molduras, à esquerda uma confeitaria. A porta
envidraçada da entrada se abria para o corredor que levava a um pátio.
Maigret procurou a zeladora e se apresentou. Era uma mulher corada e gorducha que, em criança, devia ter covinhas e que ainda as tinha quando sorria.
– Achei mesmo que alguém da polícia viria.
– Por quê?
– Quando li o que aconteceu a essa pobre senhora, pensei que uma das minhas moradoras era sua sobrinha.
– Fala de Angèle Louette?
– Sim.
– Ela lhe falou de sua tia?
– Não é de conversar muito, mas de vez em quando me encontra na entrada e troca algumas palavras comigo. Uma vez falávamos dos maus pagadores. Ela me disse que tinha
alguns em sua clientela e que não ousava insistir demais porque eram pessoas importantes.
“– Ainda bem que um dia terei a herança da minha tia!
“Foi exatamente o que ela disse. Contou-me que esta tivera dois maridos, que recebia duas pensões e que devia ter muito dinheiro guardado.”
– Ela recebe muitas visitas?
A zeladora pareceu embaraçada.
– O que está querendo dizer?
– Tem amigas que vêm vê-la?
– Amigas, não.
– Clientes?
– Ela não trabalha aqui, vai à casa das pessoas.
– Recebe homens?
– Bem, não vejo por que ficar calada. De vez em quando, sim. Há mesmo um que ficou com ela cerca de seis meses. Tinha dez anos menos que ela e era ele que fazia
compras no mercado e arrumava a casa.
– Ela está em casa neste momento?
– Saiu há cerca de uma hora, pois começa suas visitas de manhã cedo. Mas há alguém lá em cima.
– Um de seus visitantes habituais?
– Não sei. Ela voltou tarde ontem à noite. Quando acionei o mecanismo para abrir a porta, ouvi os passos de duas pessoas e não vi ninguém voltar a descer.
– Isso acontece com frequência?
– Não muita, mas de tempo em tempo.
– E o filho dela?
– Praticamente nunca aparece. Há meses que não o vejo. É um tipo meio hippie, mas acho que é um bom rapaz.
– Eu lhe agradeço. Vamos dar uma espiada lá em cima.
Não havia elevador. O apartamento dava vista para o pátio. A porta não estava fechada à chave e Maigret entrou, acompanhado de Lapointe, num living mobiliado num
estilo bastante moderno, ao gosto dos grandes magazines.
Não ouvindo nenhum ruído, empurrou uma porta e, numa cama de casal, encontrou um homem que abria os olhos e que o olhou apavorado.
– Que foi? O que quer de mim?
– Eu procurava Angèle Louette, mas já que o encontrei aqui...
– Por acaso o senhor não é...
– O comissário Maigret, sim. E já nos vimos, há muito tempo. Naquela época, você era barman na Rue Fontaine. O Grand Marcel, como lhe chamavam.
– Ainda me chamam assim. Não levaria a mal em me dar um minuto para que eu vista uma calça? Estou completamente nu.
– Fique à vontade.
Ele era alto, o corpo magro e ossudo. Vestiu rapidamente a calça, procurou as pantufas que estavam debaixo da cama.
– Com Angèle, veja, não é bem o que está pensando. Somos bons amigos. Ontem passamos a noite juntos e não me senti muito bem. Então, em vez de atravessar Paris inteira
de volta à minha casa, no Boulevard des Batignolles...
– Entendo. E, como por acaso, encontrou suas pantufas aqui.
Maigret abriu um armário. Havia ali dois ternos masculinos, camisas, meias e cuecas.
– Muito bem! Agora conte.
– Posso preparar uma taça de café?
Maigret o acompanhou à cozinha onde Marcel preparou um café como se fosse um hábito.
– Não há nada a contar. Tive altos e baixos, como bem sabe. Nunca fui cafetão, como andaram dizendo por aí. Aliás, tiveram que me soltar.
– Que idade tem?
– Trinta e cinco.
– E ela?
– Não sei exatamente. Deve estar perto dos cinquenta. Talvez já tenha cinquenta.
– O grande amor, em suma!
– Somos bons amigos. Ela não consegue viver sem mim. Se fico uma semana sem vir, tenta me encontrar em todos os lugares que frequento.
– Onde estava anteontem no fim da tarde?
– Anteontem? Espere. Eu não estava longe daqui, pois tinha um encontro com Angèle às sete horas.
– Ela não me falou disso.
– Certamente esqueceu. Devíamos jantar juntos. Tomei um aperitivo no terraço de um café do Boulevard Saint-Germain.
– Ela compareceu às sete?
– Talvez tenha chegado um pouco atrasada. Sim. Chegou mesmo bastante atrasada. Uma cliente a fez esperar. Chegou um pouco depois das sete e meia.
– Jantaram juntos como previam?
– Sim. Depois fomos ao cinema. O senhor pode verificar. O restaurante é o Chez Lucio, no Quai de la Tournelle. Eles me conhecem bem.
– Qual é a sua profissão atual?
– Na verdade, estou procurando trabalho, mas não está fácil de achar neste momento.
– Ela o sustenta?
– Busca de propósito palavras para me ferir, não é? E isso só porque, há muitos anos, a polícia me acusou injustamente. Pois bem, é verdade, de vez em quando ela
me empresta um dinheirinho. Ela mesma não ganha muito.
– Esperava dormir toda a manhã?
– Angèle deve voltar daqui a alguns minutos, pois tem uma hora de folga entre duas visitas. Ela foi vê-lo ontem e lhe disse tudo o que sabe. O que veio fazer hoje
aqui?
– Como vê, foi uma ocasião de encontrá-lo!
– Poderia passar para a outra peça e deixar que eu tome um banho?
– Autorizo-o também a se barbear – ironizou Maigret.
Lapointe estava pasmado com a descoberta que acabavam de fazer.
– Ele foi preso quatro ou cinco vezes por proxenetismo. Também era suspeito de servir de espião para a quadrilha dos corsos, que há alguns anos andou assustando
Paris. Mas ele é tão difícil de pegar quanto uma enguia, e nada pôde ser provado.
Ouviram-se passos na escada. A porta se abriu. A sobrinha da sra. Antoine ficou imóvel na entrada.
– Entre, vamos! Vim lhe fazer uma pequena visita.
Ela olhava vivamente a porta do quarto de dormir.
– Ele está ali, sim. Neste momento toma um banho, depois vai se barbear.
Ela acabou por fechar a porta, erguendo os ombros.
– Afinal, é algo que diz respeito só a mim, não é mesmo?
– Talvez.
– Por que diz talvez?
– O fato é que se trata de um velho conhecido meu e que outrora teve atividades que a lei reprova.
– Está querendo dizer que é um ladrão?
– Não. Não que eu saiba. Mas, quando era barman, tinha duas ou três mulheres que trabalhavam para ele no bairro, inclusive uma dancing-girl no estabelecimento.
– Não acredito. Aliás, se fosse verdade, ele teria ido para a prisão.
– Não foi, de fato, por falta de provas.
– Isso ainda não explica a razão de ter vindo aqui.
– Primeiro eu gostaria de lhe fazer uma pergunta. Ontem me falou do seu filho e me disse que ele estava na Côte d’Azur.
– Foi o que pensei.
– Na verdade, ele não deixou Paris e tivemos uma conversa muito interessante.
– Sei que ele não gosta de mim.
– Assim como a senhorita não gostava da sua tia, não?
– Ignoro o que ele pode lhe ter contado. É um rapaz desmiolado, nunca fará nada de bom.
– No dia em que sua tia morreu, teve um encontro, às sete da noite, com o Grand Marcel, num café do Boulevard Saint-Germain?
– Se ele disse, é porque é verdade.
– A que horas chegou?
A pergunta pareceu desestabilizá-la um pouco e ela hesitou alguns instantes antes de responder.
– Uma de minhas clientes me fez esperar. Devo ter chegado por volta das sete e meia.
– Onde jantaram?
– Num restaurante italiano do Quai de la Tournelle, Chez Lucio.
– E depois?
– Fomos ao cinema Saint-Michel.
– Sabe a que horas sua tia foi assassinada?
– Não. Só sei o que o senhor me disse.
– Entre cinco e meia e sete da noite.
– O que isso tem a ver?
– Possui um revólver?
– Certamente que não. Nem saberia como usá-lo.
Marcel saía recém-barbeado do quarto, de camisa branca, ocupado em pôr uma gravata de seda azul.
– Está vendo? – disse num tom brincalhão. – Fui despertado por esses senhores que vi de repente de pé junto à cama. Por um momento me perguntei se não era um filme.
– Você possui um revólver? – perguntou-lhe Maigret.
– Não sou tão estúpido! É o melhor meio de se fazer prender.
– Qual é o número do seu prédio no Boulevard des Batignolles?
– Número 27.
– Agradeço a ambos pela cooperação. No que se refere à sua tia, senhorita, pode mandar retirar o corpo no Instituto Médico Legal e marcar o funeral para o dia que
lhe aprouver.
– As despesas correrão por minha conta?
– Presumo que sim, pois é a parente mais próxima e herdará uma quantia suficiente para se manter depois do enterro.
– O que devo fazer? Devo procurar um cartório?
– Dirija-se ao banco, que lhe dará as informações. Se acaso não sabe, há uma caderneta da Caixa Econômica e um talão de cheques na gaveta da cômoda.
– Obrigada.
– De nada. Não se esqueça de me avisar a hora do enterro.
Raramente ele tinha visto olhos tão duros como aqueles que o olhavam. Marcel, por sua vez, fingia não estar nem aí.
– Tenha um bom dia, sr. Maigret – ele lançou, com ironia.
Maigret e Lapointe desceram e, na esquina, o comissário entrou num bar.
– Esses dois me deram sede. Uma cerveja, por favor. O que vai tomar?
– A mesma coisa.
– Duas cervejas.
Maigret enxugava a testa com o lenço.
– Eis como passamos nosso tempo quando uma velha senhora de olhos cinza morre de morte violenta. Vamos à casa das pessoas e lhes fazemos perguntas mais ou menos
idiotas. Neste momento, aqueles dois devem estar rindo de nós.
Lapointe não ousava dizer nada. Ele não gostava de ver o chefe naquele estado de humor.
– E observe que isso acontece em quase todos os inquéritos. Há um momento em que a máquina gira em falso, não sabemos para que lado nos voltar. Então um acontecimento
intervém, em geral uma coisa insignificante à qual de imediato não damos importância...
– À sua saúde.
– Tintim.
Nessa hora ainda matinal, a rua estava animada, com as donas de casa indo de loja em loja. Não estavam longe do mercado Buci, que Maigret apreciava particularmente.
– Venha.
– Aonde vamos?
– De volta ao Quai. Veremos se Lucas e Janvier tiveram mais sorte.
Janvier já havia voltado, Lucas ainda não.
– Foi fácil, chefe. Seu sucessor permanece no cargo e o conheceu muito bem quando era iniciante.
– Conte.
– Não há nada a ocultar, a não ser que o chamavam pelas costas de Sua Majestade Caramé. Era um homem distinto e que dava muita importância à sua aparência. Orgulhava-se
do cargo que ocupava e esperava a medalha da Legião de Honra que lhe haviam prometido. Aproveitava toda ocasião para vestir um fraque, pois lhe caía bem. Seu irmão
era coronel.
– Ainda vive?
– Foi morto na Indochina. Caramé gostava de falar dele. Dizia:
“– Meu irmão, o coronel...”
– É tudo?
– Tudo que puderam me dizer. Nunca se soube que tivesse algum vício em particular. Sua única tristeza era não ter filhos. Um velho bedel me contou uma história sem
poder garantir sua autenticidade...
“Após três ou quatro anos de casamento, ele teria enviado a mulher a um ginecologista e este teria pedido para ver o marido. Descobriu-se que não era ela a estéril,
mas ele. A partir desse momento ele não falou mais de ter filhos.”
Maigret andava de um lado a outro da sala, sempre com um ar rabugento, e parava às vezes diante da janela como para tomar o Sena por testemunha da peça de mau gosto
que lhe pregavam.
Bateram à porta. Era Lucas, que subira rapidamente a escada e estava sem fôlego.
– Descanse um pouco.
– Encontrei na seção de ferragens um sujeito que trabalhou diretamente sob as ordens de Antoine. Está agora com sessenta anos e é chefe de setor.
– O que ele conta?
– Parece que Antoine era uma espécie de maníaco. No bom sentido da palavra. Ou seja, cada louco com sua mania. Quando lhe perguntavam a profissão, respondia: inventor.
“E é verdade que obteve uma patente por um abridor de latas aperfeiçoado que vendeu a uma fábrica de artigos domésticos. Fez outras invenções...”
– Um aparelho de descascar batatas...
– Como sabe?
– Eu o vi no Quai de la Mégisserie.
– Estava sempre querendo aperfeiçoar alguma coisa. Parece que tinha em casa um ateliê onde passava as horas de folga.
– Também vi. Ele não fez uma invenção mais importante?
– Segundo o homem com quem falei, não, mas às vezes Antoine lhe dizia, balançando a cabeça com um ar esperto:
“– Algum dia farei uma verdadeira descoberta e todo o mundo falará de mim.”
– Ele não foi mais preciso?
– Não. Descontada essa mania, era um homem taciturno, mas consciencioso no trabalho. Não bebia. Não saía à noite. Parecia estar contente com sua mulher. Digo contente
e não apaixonado, considerando a idade dos dois. Entendiam-se bem e se estimavam mutuamente. Meu interlocutor foi duas vezes jantar no Quai de la Mégisserie, onde
os encontrou muito bem instalados.
“– Uma mulher encantadora – ele me disse. – E muito distinta! A única coisa um pouco constrangedora é que, quando fala, nunca se sabe se está falando do primeiro
ou do segundo marido. É como se os confundisse.”
– É tudo?
– Tudo, chefe.
– Um detalhe é certo: houve, não faz muito tempo, uma pistola na mesa de cabeceira. E essa pistola desapareceu.
“Estou com vontade de dar uma chegada no Boulevard des Batignolles. Vem comigo, Lapointe? Pegue um dos carros. Não aquele com motor que está falhando.”
Antes de deixar a sala, ele escolheu um cachimbo não recentemente usado.
CAPÍTULO IV
A PLACA DE MÁRMORE, à porta do pequeno hotel, anunciava: Quartos mobiliados por dia, por semana ou por mês. Todo o conforto.
Os moradores, em sua maioria, alugavam por mês, e o conforto consistia numa toalete em cada quarto e numa sala de banhos para cada dois andares.
À direita da entrada, ficava a recepção, com uma estante de compartimentos e chaves penduradas.
– O Grand Marcel está?
– O sr. Marcel? Acabou de chegar. Seu carro está diante da porta.
Era um carro conversível, vermelho vivo, de um modelo não muito recente. Mesmo assim, dois rapazes o olhavam com inveja, calculando a velocidade que podia atingir.
– Ele mora há muito tempo aqui?
– Mais de um ano. É um locatário bastante simpático.
– Suponho que não dorme com frequência em seu quarto.
– Chega geralmente de manhã, pois trabalha à noite. Ele é barman num cabaré.
– Traz mulheres?
– É raro. De toda forma, isso não me diz respeito.
O patrão era gordo, com duas ou três papadas não barbeadas, e usava velhas pantufas gastas.
– Qual o andar?
– Segundo, quarto 23. Espero que não nos traga aborrecimentos. Eu o reconheci. E não gosto muito de ver a polícia na casa.
– Está tudo em ordem, não?
– Com vocês, nunca se sabe.
Maigret subiu, seguido de Lapointe. Um letreiro, ao pé da escada, dizia: Favor limpar os pés.
E acrescentava em caracteres diferentes, traçados à mão: É proibido cozinhar nos quartos.
Maigret conhecia esse aviso. Ele impedia os moradores de terem um fogareiro a álcool para aquecer pratos prontos que compravam no restaurante mais próximo.
Bateu no 23, ouviu passos e a porta se abriu bruscamente.
– Ora vejam! – surpreendeu-se o Grand Marcel. – Já chegaram!
– Esperava a nossa visita?
– Quando a polícia começa a meter o nariz em algum lugar, é quase certo que voltaremos a vê-la.
– Está se preparando para se mudar?
Havia uma mala em cima da cama, uma outra no chão. O ex-barman amontoava ali seus pertences e suas roupas.
– Sim, enchi o saco. Cansei.
– De quê?
– Daquela mulher que deveria ter feito a carreira de sargento.
– Vocês brigaram?
– Um pouco. Ela me xingou porque eu ainda estava na cama quando vocês chegaram. Qual é? Não sou massagista e não preciso ir passar a mão nas pessoas a domicílio.
– Isso não explica por que está mudando de hotel.
– Não estou mudando apenas de hotel. Enchi o saco e vou para Toulon. Lá tenho amigos, dos bons, que logo me arranjarão trabalho.
Maigret reconheceu numa das malas um dos ternos que vira pouco antes no armário da Rue Saint-André-des-Arts. O outro, o Grand Marcel o vestia. Seu sobrenome era
Montrond, mas ninguém o chamava assim e, no hotel onde se hospedava, era o sr. Marcel.
– É seu o carro vermelho que está diante do hotel?
– Não vale grande coisa. Já tem uns dez anos, mas ainda impressiona.
– Por certo vai pegar a estrada.
– Exatamente. A menos que pretenda me impedir.
– Por que impedir?
– Com os tiras, nunca se sabe.
– Uma pergunta: já pôs os pés no apartamento do Quai de la Mégisserie?
– O que eu teria ido fazer lá? Dar satisfações à velha?
“– Bom dia, cara senhora. Sou o amante da sua sobrinha. Como estou em dificuldades, ela é que me sustenta, pois tem necessidade de um homem. É uma famosa marafona
e não devo me comprometer com ela.”
Continuou a arrumar as bagagens, buscando objetos que pudesse ter esquecido nas gavetas. Retirou de uma delas uma máquina fotográfica. Possuía também um toca-discos.
– Pronto! Espero apenas a sua partida para ir embora.
– Há um endereço no qual pode ser localizado em Toulon?
– Basta me escrever para o bar L’Amiral, no Quai de Stalingrad. Em nome de Bob, o barman, que é um velho amigo. Acha que ainda precisará de mim?
– Nunca se sabe.
Antes que as malas fossem fechadas, Maigret apalpou seu conteúdo, mas não descobriu nada de comprometedor.
– Quanto dinheiro obteve dela?
– Do sargento? Quinhentos francos. E com minha promessa de devolvê-los em breve. Nunca sei o que ela quer. Uma hora me despreza e me põe porta afora. Alguns minutos
depois, começa a chorar dizendo que não pode viver sem mim.
– Boa viagem – suspirou Maigret, dirigindo-se para a porta.
Ao passar diante da recepção, disse ao patrão:
– Parece que está perdendo um cliente.
– Ele me avisou. Está de partida para o sul onde ficará algumas semanas.
– O quarto ficará reservado?
– Não, mas lhe arranjaremos um outro.
Os dois homens voltaram à Polícia Judiciária. Maigret fez uma chamada telefônica a Toulon.
– Gostaria de falar com o comissário Marella. Aqui é Maigret, da P.J.
Logo reconheceu a voz do colega. Os dois haviam começado quase ao mesmo tempo, e agora Marella dirigia a Polícia Judiciária de Toulon.
– Como vai você?
– Tudo bem, sem problemas.
– Acaso conhece o bar L’Amiral?
– E como! É um dos pontos de encontro da delinquência.
– E um tal de Bob?
– É o barman. Funciona como pombo-correio.
– Hoje à noite ou amanhã, um certo Marcel Montrond chegará aí. Provavelmente irá de imediato ao Amiral. Gostaria que fosse vigiado.
– De que suspeita?
– De tudo e de nada. Não sei. Está mais ou menos envolvido num caso que me incomoda.
– A velha do Quai de la Mégisserie?
– Sim.
– Que história estranha, não? Sei apenas o que os jornais e o rádio disseram, mas parece um caso muito misterioso. Já falou com o rapazinho da guitarra?
– Sim. Não parece estar envolvido. Aliás, ninguém parece estar envolvido e não há razão aparente alguma para que a velha senhora fosse morta.
– Manterei você informado. O Marcel de que fala não é o Grand Marcel?
– Ele mesmo.
– O cara é meio gigolô, não? Veio várias vezes ao sul e sempre deixou na mão alguma coroa.
– Obrigado. Até breve.
O telefone tocou quase em seguida.
– Comissário Maigret?
– Sim.
– Aqui é Angèle Louette. Primeiro faço questão de lhe dizer que botei aquele vadio na rua.
– Eu sei. Ele está a caminho de Toulon.
– Quero que saiba que ele não é o meu tipo e que não vou cair nessa outra vez.
– O que reprova nele?
– Viver à custa das mulheres e ficar a metade do dia numa cama que não é sequer dele. Ele não queria partir. Fui obrigada a lhe dar um dinheiro para que fosse embora.
– Eu sei.
– Ele se gabou disso?
– Claro. Chama a senhorita de sargento, diga-se de passagem.
– Queria também lhe comunicar que o enterro será amanhã de manhã. O corpo será reconduzido ao Quai de la Mégisserie esta tarde. Não haverá velório porque minha tia
não conhecia ninguém. O enterro será amanhã às dez horas.
– Ela passará pela igreja?
– Haverá uma benção na Notre-Dame-des-Blancs-Manteaux. O senhor ainda não descobriu nada?
– Não.
– Tem o endereço do meu filho?
– Ele me deu.
– Gostaria de avisá-lo. Apesar de tudo, ele deve querer assistir ao enterro da tia-avó.
– Ele mora no Hôtel des Îles et du Bon Pasteur, na Rue Mouffetard.
– Obrigada.
Maigret conhecia a impaciência dos juízes de instrução e, pouco depois, atravessou a porta que separa a Polícia Judiciária do Palácio da Justiça.
Nos corredores onde se alinhavam os gabinetes dos magistrados, havia clientes, testemunhas ou acusados em quase todos os bancos, e alguns dos que esperavam entre
dois gendarmes tinham algemas nos pulsos.
O juiz Libart estava sozinho com seu escrivão.
– Então, senhor comissário? Como anda o nosso pequeno caso?
Disse isso de um modo quase jovial, esfregando as mãos.
– Eu quis deixá-lo trabalhar em paz. Ainda não tem nenhum resultado?
– Nenhum.
– Nem suspeito?
– Suspeito provável, não. E nem um único indício, a não ser que o assassino foi surpreendido pela velha senhora no momento em que procurava alguma coisa.
– Dinheiro?
– Não acredito.
– Joias?
– Não teria conseguido quase nada com as que ela possuía.
– Um maníaco?
– É improvável. Por que um maníaco teria escolhido o apartamento dela? E por que teria ido várias vezes antes da tarde do crime?
– Uma questão de família? Um herdeiro apressado?
– É possível, mas improvável. Sua única herdeira é uma sobrinha massagista que ganha bem no seu trabalho.
– Você parece desanimado.
Maigret fez um esforço para sorrir.
– Perdoe. É um mau momento por que estou passando. O enterro será amanhã.
– Vai comparecer?
– Sim. É um dos meus velhos hábitos e muitas vezes me levou a uma pista.
Voltou para almoçar em casa, e a sra. Maigret, vendo seu rosto carrancudo, evitou fazer-lhe perguntas.
Ela andava quase na ponta dos pés e lhe serviu carne assada com rúcula, um dos pratos que ele preferia.
Quando retornou ao Quai des Orfèvres, Lapointe bateu à porta da sua sala.
– Entre.
– Desculpe, chefe. O que é que eu faço?
– Nada. O que quiser. Se tiver uma ideia...
– Tenho vontade de retornar ao vendedor de aves. Ele vê passar muita gente que entra e sai do prédio. Talvez, de tanto interrogá-lo, consiga se lembrar de alguma
coisa.
– Como quiser.
Ele detestava sentir-se assim, sem impulso, sem imaginação. Os mesmos pensamentos lhe voltavam com insistência, mas não conduziam a parte alguma.
Em primeiro lugar, a velha sra. Antoine não era louca.
Mas então por que ficara rondando o Quai des Orfèvres antes de ousar dirigir-se à polícia? Ela teria suspeitas?
Por certo imaginava que dariam de ombros se ela se queixasse de ver os objetos mudar ligeiramente de lugar em casa.
No entanto, era a verdade. O apartamento fora de fato vasculhado várias vezes.
Para encontrar o quê?
Não dinheiro, como ele dissera ao juiz de instrução. Tampouco joias.
Mas era algo bastante importante para que o misterioso visitante, surpreendido, assassinasse a velha senhora.
Será que ele encontrou por fim o que procurava? Estaria saindo com seu butim no momento em que ela voltava mais cedo que a hora habitual?
O que uma pessoa muito idosa, viúva de dois maridos e vivendo modestamente, podia possuir que valesse tirarem-lhe a vida?
Ele rabiscava vagos desenhos numa folha de papel e percebeu, de repente, que aquilo se assemelhava mais ou menos à velha senhora.
Por volta das cinco da tarde, começou a sentir-se oprimido em sua sala e dirigiu-se até o Quai de la Mégisserie. Levava uma fotografia do Grand Marcel que encontrara
nos arquivos da Brigada de Costumes.
A foto era ruim, com traços mais duros do que na realidade, mesmo assim dava para reconhecer o personagem. Começou pela zeladora.
– A senhora já viu este homem?
Ela foi buscar os óculos sobre o aparador.
– Não sei dizer muito bem. De um certo modo, parece um rosto conhecido. Mas há tanta gente parecida com ele.
– Observe bem. Deve ser uma lembrança bastante recente.
– É o terno xadrez que me chama a atenção. Vi um terno como esse há uma ou duas semanas, mas não poderia dizer onde.
– Aqui, no seu alojamento?
– Acho que não.
– No pátio? Na escada?
– Francamente, não sei. Seu inspetor veio ainda há pouco me interrogar. Mas não posso inventar coisas. O senhor sabe que a trouxeram de volta?
– A sra. Antoine?
– Sim. A sobrinha está lá em cima. Deixou a porta entreaberta e acendeu velas dos dois lados da cama. Alguns moradores entram timidamente e fazem uma pequena oração.
Se eu tivesse alguém para me substituir, iria amanhã ao enterro, mas estou sozinha. Meu marido está há três anos num hospital psiquiátrico.
Maigret retornou até a calçada, diante das gaiolas de aves. O Caille filho o reconheceu em seguida.
– Ah! Acabo de receber a visita de um dos seus inspetores, o jovem.
– Eu sei. Poderia olhar atentamente esta fotografia?
Ele se aproximou, balançou a cabeça, examinou mais de perto, depois um pouco mais de longe.
– Não posso dizer que o reconheço. Mas há algo que me traz de volta uma lembrança.
– O terno?
– Não exatamente. A expressão do rosto. Ele parece zombar das pessoas.
– Não é um dos seus fregueses?
– Com certeza não.
– Não quer perguntar a seu pai?
– Vou perguntar, mas ele é míope.
Quando voltou, balançava negativamente a cabeça.
– Não o reconheceu. Aliás, devo dizer que o velho passa quase todo o tempo no interior e só se interessa pelas aves e pelos peixes. Gosta tanto deles que quase se
recusa a vendê-los.
Maigret entrou no prédio, subiu até o primeiro andar. A mulher que mora em frente do apartamento da velha saía de casa, com uma cesta de mercado na mão.
– Ela está aí – disse em voz baixa, apontando a porta entreaberta.
– Eu sei.
– O enterro é amanhã. Parece que o primeiro marido tinha um jazigo no cemitério Montparnasse e é junto dele que ela pediu para ser enterrada.
– Ela falou disso a quem?
– À sobrinha, certamente. À zeladora também. Dizia que Ivry era muito longe, que se sentiria perdida no meio de milhares de túmulos.
– Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa. Posso entrar um instante em sua casa?
O apartamento estava em ordem; era mais escuro que o da velha porque uma árvore quase cobria as janelas.
– Já viu este homem?
E mostrou novamente a pequena foto tirada pela Identidade Judiciária.
– É alguém que conheço?
– Não sei. É o que lhe pergunto.
– Tenho a impressão de já tê-lo visto e não faz muito tempo. Fumava um cigarro. Fiquei pensando no que estava faltando: é o cigarro.
– Não tenha pressa. Reflita.
– Não foi na loja de um dos meus fornecedores. Também não foi no pátio.
Sentia-se que ela fazia um esforço para se lembrar.
– É importante, suponho.
– Sim.
– Tem a ver com a sra. Antoine?
– Provavelmente.
– Meu testemunho poderia comprometer essa pessoa, não é?
– É bem possível.
– O senhor deve compreender por que não ouso ser muito categórica. Não quero criar problemas a uma pessoa inocente.
– Se for inocente, saberemos.
– Nem sempre. Às vezes há erros judiciários. Mas tudo bem! Eu estava saindo...
– Que dia?
– Não lembro. Foi na semana passada. Eu ia buscar minha filha na escola.
Uma garota de uns doze anos estava ocupada em fazer seus deveres na peça vizinha.
– Portanto, era um pouco menos de quatro da tarde.
– Ou então meio-dia. É o que estou tentando lembrar. Mas deviam ser quatro horas, pois eu estava com a cesta do mercado e é o momento em que faço minhas compras
para a janta. Meu marido não volta ao meio-dia, e fazemos um almoço leve, minha filha e eu.
“Eu descia a escada sem prestar muita atenção à frente e alguém esbarrou em mim. Subia apressado, pulando os degraus. Por pouco não me derrubou. É por isso que eu
lembro.
“Ele se virou e me perguntou se tinha me machucado. Respondi que não, que não era nada.”
– Sabe em que andar ele parou?
– Não. Eu também estava com pressa. Minha filha não gosta que eu a faça esperar na frente da escola e, com o tráfego atual, não tenho coragem de deixá-la voltar
sozinha.
Maigret suspirou. Uma pequena esperança, enfim!
Alguns instantes depois, ele empurrava a porta da câmara mortuária e olhava fixamente o rosto de traços finos da velha senhora que fora tomada por louca.
As cortinas haviam sido puxadas em grande parte e o quarto estava na penumbra, deixando vazar apenas uma trêmula mancha de sol. Duas velas acesas, uma de cada lado
da cama, completavam o aspecto insólito da peça.
Angèle Louette estava ali, imóvel, silenciosa, numa poltrona, e Maigret chegou a pensar que ela dormia. Foi ao olhar para ela uma segunda vez que notou seus olhos
escuros fixos nele.
Ficou recolhido por alguns instantes diante da morta e voltou para a sala, onde reencontrou com alívio a luz do dia. Conforme esperava, Angèle o acompanhou.
Ela tinha os traços mais duros do que nunca.
– O que veio fazer?
– Prestar minhas últimas homenagens à sua tia.
– Confesse que é a menor de suas preocupações. Com os moradores é a mesma coisa. Dos que vieram espiar, somente dois atravessaram a porta. Voltou a ver aquele vagabundo
do Marcel?
– Partiu para Toulon no seu carro.
Ele percebeu que ela levou um choque.
– Que alívio! Tive dificuldade de colocá-lo na rua. Sabe que fui obrigada a lhe dar quinhentos francos para que deixasse meu apartamento?
– Pode apresentar queixa por extorsão.
– É, talvez o faça. Em todo caso, se ele tentar voltar...
– Sabe que ele veio aqui na semana passada?
Ela estremeceu violentamente e as sobrancelhas se franziram.
– Que dia?
– Não sei.
– A que horas?
– Cerca de quatro da tarde.
– Foi ele que lhe disse?
– Não.
– E o interrogou sobre essa visita?
– Esta manhã eu ainda não estava sabendo. Como ele conhecia o endereço da sua tia?
– Um dia, há cerca de um mês, atravessávamos juntos a Pont-Neuf. Maquinalmente, mostrei de longe as janelas do apartamento e disse a ele:
“– Tenho uma velha tia que mora ali.”
– Deve ter acrescentado que um dia ela lhe deixaria um belo pé-de-meia.
– Conheço bem as mentiras dele. Eu disse apenas que ela tivera dois maridos e que vivia folgadamente. Onde ele está?
– Neste momento, a menos que tenha mudado de ideia, está a caminho de Toulon.
– Sempre me falava de Toulon e dos amigos que tem lá.
– Sabe como era a família dele?
– Não.
– Ele nunca lhe falou da sua juventude?
– Também não. Só sei que a mãe ainda vive, numa cidadezinha do centro do país.
– Tem mesmo certeza de que não pôs os pés aqui nos últimos oito dias, digamos, nos últimos quinze dias?
– Vai recomeçar?
– Reflita antes de responder.
– Tenho certeza.
– Sabe o que há dentro da gaveta da mesa de cabeceira?
– Nunca a abri.
– Mesmo esta manhã, ao arrumar os móveis para a câmara mortuária?
– Mesmo esta manhã.
– Sabia que sua tia possuía uma arma?
– Sem dúvida que não. Minha tia seria a última pessoa no mundo a segurar um revólver na mão.
– Ela não tinha medo de viver sozinha?
– Não tinha medo de nada e de ninguém.
– Em algum momento ela lhe falou das invenções do segundo marido?
– Um dia me mostrou um pequeno aparelho de descascar batatas. Inclusive me prometeu um, que nunca me deu. Foi quando Antoine ainda vivia. Também me levou até o ateliê
dele, se é possível chamar assim um cubículo onde mal cabe uma pessoa.
– Eu lhe agradeço.
– Irá ao enterro?
– Provavelmente.
– O corpo será levado às quinze para as dez. Devemos estar na igreja às dez horas.
– Até amanhã.
Havia momentos em que a dureza quase masculina de Angèle não era tão antipática e podia passar por franqueza. Ela não era graciosa, nunca fora bonita, e com a idade
engordava.
Por que não reivindicaria o mesmo direito que os homens que, numa situação semelhante, buscam aventuras?
Ela não se escondia. Recebia em casa os amantes de uma noite ou de uma semana. A zeladora os via entrar e sair. Os outros moradores deviam estar sabendo.
Por outro lado, era desconfiada e fixava o interlocutor como se estivesse sempre à espera de uma armadilha.
De volta ao Quai, Maigret passou na Brasserie Dauphine para beber um vinho branco do Loire. Não queria cerveja. O vinho branco quase espumante, que embaçava o copo,
combinava melhor com a atmosfera primaveril.
Era a hora sem movimento. Exceto um entregador que vestia um avental azul, não havia mais ninguém.
– Mais um – ele decidiu pedir.
O dr. Pardon não precisava saber. Aliás, Pardon recomendara apenas moderação.
No Quai des Orfèvres, encontrou Lapointe que havia percorrido mais uma vez o prédio de cima a baixo, exibindo a fotografia do Grand Marcel.
– Sucesso?
– Nada.
– Amanhã de manhã precisarei de você para me conduzir ao enterro.
Voltou para casa a pé, repassando mentalmente pensamentos mais ou menos desagradáveis.
– A única coisa certa é que um revólver desapareceu.
Mas será que isso era mesmo certo? Graxa de fuzil fora encontrada no fundo da gaveta. Mas não poderia ter chegado ali de outro modo?
Os peritos de Moers afirmavam que a mancha não tinha mais que um mês.
Ele se punha a desconfiar de tudo, de si mesmo, e gostaria de recomeçar o inquérito do zero, com a condição de ter um ponto de partida, por menor que fosse.
– Já de volta?
Ela não lhe abrira a porta e, desta vez, ele usara a chave.
– Acho que hoje à noite vou sair.
– Aonde vai?
– A um lugar onde é melhor não levá-la, um pequeno boteco de hippies, na Place Maubert.
Teve tempo de ler o jornal, de tomar uma ducha fria antes da janta. Mais uma vez eles comeram diante da janela aberta.
– Amanhã vou ao enterro.
– Haverá gente?
– Fora a sobrinha, é possível que eu seja o único. Dois moradores, ao todo, foram vê-la na câmara mortuária.
– E os jornalistas?
– O caso não atraiu os leitores. Agora eles se contentam com algumas linhas na terceira página.
Ligou a televisão. Precisava esperar até as dez da noite se quisesse encontrar Billy Louette no Bongo.
Na esquina do Boulevard Voltaire, chamou um táxi, deu o endereço e o motorista o olhou com curiosidade, surpreso de que um burguês fosse se misturar com a canalha
num lugar como aquele.
Nada havia de especial na decoração. As paredes eram pintadas de branco, com uns traços coloridos que nada significavam.
Era a única originalidade aparente. O balcão de bebidas era de zinco clássico, e quem atendia era o próprio patrão, em mangas de camisa e avental azul. Uma porta
dava para uma cozinha enfumaçada de onde emanava um cheiro de gordura queimada.
Uns dez casais comiam, sobretudo espaguete, que parecia ser a especialidade da casa.
Alguns jovens vestiam jeans e camisas com estampas floridas. Outros eram curiosos que tinham vindo para ver.
Para ver e sobretudo para ouvir, pois três músicos faziam tanto barulho quanto uma orquestra inteira. O guitarrista era Billy. Havia também uma bateria e um contrabaixo.
Os três músicos tinham os cabelos compridos e vestiam, todos, calça de veludo preto e camisa rosa.
– Vai jantar?
O patrão quase teve que berrar para se fazer ouvir.
Maigret fez sinal que não e pediu um vinho branco. Billy o vira entrar, sem manifestar nenhuma surpresa.
O comissário nada conhecia da música pop, mas esta não lhe parecia pior que a que ouvia às vezes no rádio ou na televisão. Os três rapazes pareciam muito dispostos
e acabaram por atingir uma espécie de frenesi.
Foram aplaudidos ruidosamente. Era o intervalo. Billy foi ao encontro de Maigret no balcão.
– Suponho que veio me ver.
– Claro. Teve notícias da sua mãe?
– Hoje não.
– Nesse caso, não deve saber que o enterro será amanhã de manhã. Vá até o Quai de la Mégisserie às quinze para as dez. Haverá uma benção na igreja Notre-Dame-des-Blancs-Manteaux.
Depois o corpo será enterrado no cemitério Montparnasse.
– Que eu saiba, meu tio-avô Antoine está enterrado em Ivry.
– Exato. Mas sua viúva preferiu o jazigo do primeiro marido.
– Daqui a pouco vamos tocar de novo. O que achou do nosso som?
– Infelizmente não entendo nada de música. Há uma pergunta que eu gostaria de lhe fazer. Sabia que a sua tia-avó possuía um revólver?
– Sim.
Por fim alguém respondia simplesmente, sem se perturbar.
– Foi ela que lhe falou?
– Já faz muito tempo, um ano ou dois. Eu estava duro. Fui pedir uma grana emprestada e notei que ela tinha várias notas de cem francos na gaveta da cômoda.
“Para alguns, umas centenas de francos nada significam. Mas há outros, e às vezes me incluo entre esses, para quem isso representa uma fortuna.
“Eu disse a ela com toda a naturalidade:
“– A senhora não tem medo?
“– De quem? De você?
“– Não. Mas vive sozinha e as pessoas sabem disso. Um ladrão poderia...”
Fez sinal aos companheiros de que não demoraria a juntar-se a eles.
– Ela me respondeu que estava armada contra os ladrões e foi abrir a gaveta da mesa de cabeceira.
“– E não pense que eu hesitaria em usá-la – falou.”
Assim, não havia mais apenas a mancha de graxa. Alguém também vira a arma.
– Tratava-se de um revólver ou de uma pistola?
– Qual a diferença entre os dois?
– O revólver tem um tambor, a pistola é plana.
– Então, ao que lembro, era um revólver.
– De que tamanho?
– Não sei, mal olhei para ele. Mais ou menos do tamanho da mão.
– Falou a alguém sobre isso?
– A ninguém.
– Não disse nada à sua mãe?
– Nossas relações não são muito cordiais para que eu lhe conte histórias.
O jovem foi juntar-se aos companheiros e a música recomeçou. Percebia-se que ele estava realmente possuído pelo ritmo que criava e que a bateria sublinhava.
– É um rapaz legal – disse o patrão inclinando-se sobre o balcão. – Aliás, os três são gente boa e nenhum usa drogas. Eu não poderia dizer o mesmo de toda a minha
clientela.
Maigret pagou a consumação e saiu para a calçada. Teve alguma dificuldade de achar um táxi, que o levou de volta para casa.
Na manhã seguinte, subiu até o andar dos juízes de instrução e entrou na sala de Libart.
– Eu gostaria que me desse um mandato de busca, em nome de Angèle Louette, solteira, que exerce a profissão de massagista e mora na Rue Saint-André-des-Arts.
O escrivão redigiu o mandato.
– Isso significa que está próximo da solução?
– Não faço a menor ideia. Confesso-lhe que estou indo um pouco às cegas.
– Ela não é a sobrinha da velha senhora?
– Exatamente.
– E sua herdeira ao mesmo tempo? Sendo assim, parece estranho.
Maigret esperava essa objeção que viria ao espírito de qualquer um. Angèle Louette estava certa de herdar mais cedo ou mais tarde, num prazo relativamente curto,
dada a idade da tia. Por que se arriscaria a passar o resto da vida na prisão por se apropriar de algo que de todo modo lhe caberia?
– Mas tudo bem! Siga sua ideia. Desejo-lhe boa sorte.
Às quinze para as dez, Maigret chegou ao Quai de la Mégisserie em companhia de Lapointe, que dirigia um pequeno carro preto. Não se viam tarjas de luto na entrada,
nenhuma reunião de pessoas, nem um único curioso.
O carro fúnebre encostou junto à calçada e dois homens atarracados foram buscar o caixão. Não havia flores nem coroa de flores. Em várias janelas, cortinas se mexeram.
A zeladora veio até a porta e fez o sinal da cruz.
O velho vendedor de aves saiu por um momento da penumbra da loja e ficou ao lado do filho, na entrada.
Foi tudo.
Angèle Louette embarcou sozinha no carro fúnebre. A igreja estava vazia, com exceção de duas mulheres que esperavam diante de um confessionário. Era como se todos
estivessem com pressa, tanto o padre como o pessoal da agência funerária.
Maigret ficara no fundo da igreja, onde Lapointe, após ter ido estacionar o carro, veio juntar-se a ele.
– Não é nem mesmo triste – observou o jovem inspetor.
Era verdade. O sol inundava a nave. Não haviam fechado a porta e ouviam-se os diferentes ruídos da rua.
– Et ne nos inducas in tentationem...
– Amen...
O caixão, que não devia pesar muito, foi levado. Menos de um quarto de hora depois, entraram no cemitério Montparnasse e se detiveram numa das aleias, diante de
uma lousa de mármore rosa.
– Eu lhe disse que não haveria ninguém – murmurou a massagista, enquanto desciam o caixão na cova.
Ela acrescentou:
– Não houve tempo de gravar o nome dela na pedra, junto com o do primeiro marido. Os marmoristas farão isso na semana que vem.
Ela se vestira sobriamente de preto, o que lhe dava um ar ainda mais severo. Parecia uma governanta, ou uma diretora de escola.
– Bem – murmurou Maigret –, agora nós vamos para a sua casa.
– Nós?
– Sim, eu disse nós.
– Não é o bastante? O que quer de mim?
O cemitério estava ainda mais alegre do que a igreja; o sol brincava no verde das árvores e ouviam-se cantos de pássaros.
– Um instante. Devo distribuir as gorjetas. Posso dispensar o carro?
– Sim, há lugar no nosso.
Tornaram a encontrá-la junto à grade da entrada e Angèle se acomodou no banco de trás, enquanto Maigret ocupava seu lugar habitual ao lado de Lapointe.
– Para a Rue Saint-André-des-Arts.
A sobrinha da velha senhora disse amargamente:
– Eu já esperava ouvir os mexericos das pessoas. Sempre há alguém para falar nas nossas costas e, se não houver nada a dizer, para inventar histórias. Mas que a
Polícia Judiciária, que o comissário Maigret em pessoa esteja me perseguindo...
– Sinto muito, mas cumpro apenas meu ofício.
– Por que eu teria ido em segredo à casa da minha tia?
– E por que outra pessoa teria ido até lá?
– Acredita que eu seria capaz de matar uma velha senhora?
– Não acredito em nada. Eu investigo. Assim que tiver estacionado, Lapointe, me encontre lá em cima.
No apartamento, ela retirou o chapéu e as luvas, depois o casaco do tailleur sob o qual vestia uma blusa branca. Pela primeira vez, Maigret observou que, embora
um pouco másculo, seu corpo era bem feito e surpreendentemente bem conservado para a idade.
– Então me diga de uma vez por todas o que quer.
Ele tirou do bolso o mandato do juiz de instrução.
– Leia você mesma.
– Isso significa que vai vasculhar tudo, pôr tudo de pernas para o ar?
– Não se preocupe. É o nosso hábito. Espero dois especialistas da Identidade Judiciária que recolocarão os objetos no seu lugar exato.
– Ainda não posso acreditar.
– Vi que seu filho não estava no enterro.
– Confesso que, com tudo o que aconteceu ontem, esqueci de avisá-lo. Não sei sequer seu endereço exato. Tudo o que sei é o que o senhor me disse.
– A senhorita não o avisou, mas eu avisei. Por isso me surpreendo de não tê-lo visto. Parece um bom rapaz.
– Sim, mas só faz o que lhe dá na veneta.
– E não quer ser ortopedista.
– Ele lhe falou disso?
– É muito mais direto do que a senhorita, e não há necessidade de lhe fazer dez vezes uma pergunta.
– Ah, se ele tivesse tido a vida que eu tive!... Faça o que quiser, mas preciso beber alguma coisa.
Não era vinho que ela bebia, mas um uísque que tirou de um móvel na sala que continha todo um estoque de bebidas.
– Quer?
– Não.
– Vinho tinto? Branco?
– Por ora não preciso de nada.
Os homens da Identidade Judiciária chegaram antes de Lapointe, que estava sabe-se lá onde à procura de um estacionamento.
– Muito bem, rapazes. Examinem todas as peças com pente fino. Vocês sabem o que buscamos, mas a presença de algum outro objeto poderia ser interessante também. O
que lhes peço é que recoloquem cada coisa no seu devido lugar.
Ela acendeu um cigarro e se instalou numa poltrona perto da janela de onde se via toda uma perspectiva de telhados, bem como uma pequena porção da torre Eiffel.
– Fique aqui com eles – disse Maigret a Lapointe, que finalmente chegou. – Preciso dar uma volta no bairro.
Ao sair, dirigiu-se à Rue Mouffetard, não sem antes tomar um copo de vinho branco num boteco onde havia ovos cozidos no balcão.
CAPÍTULO V
O HOTEL ERA ESTREITO, alto, cheio de odores fortes. Maigret subiu até o quarto andar, bateu à porta que lhe indicaram com má vontade.
Uma voz sonolenta falou:
– Entre!
Com as janelas fechadas, o quarto estava escuro.
– Suspeitei que fosse o senhor.
O jovem ruivo saiu da cama, completamente nu, e prendeu uma toalha em volta da cintura. Nos lençóis havia uma moça morena, voltada para a parede, da qual se viam
apenas os cabelos sobre o travesseiro.
– Que horas são?
– O enterro acabou há pouco.
– Deve estar se perguntando por que não fui. Espere um pouco até eu enxaguar a boca, ela está pastosa.
Encheu um copo de água na torneira e bochechou.
– Não devia ter ido embora ontem à noite. O clima ficou sensacional. Três jovens ingleses chegaram, cada um com sua guitarra, e improvisamos durante mais de duas
horas. Uma garota bacana estava com eles. É ela que está vendo aí.
“Não tive coragem de me levantar esta manhã para ir ao enterro da velha. Talvez não seja muito elegante da minha parte, mas não queria ver minha mãe.
“Ela encontrou o pé-de-meia?”
– Que pé-de-meia?
– As economias da minha tia-avó. Ela devia ter um bom dinheiro guardado, pois gastava muito pouco. O segundo marido também fazia economias. Minha mãe finalmente
terá sua casinha.
Ele entreabriu as janelas que deixaram penetrar um raio de sol. A moça resmungou, virou-se, deixando descoberto um seio nu.
– Sua mãe tem a intenção de comprar uma casa?
– Uma pequena casa no campo para passar os sábados e domingos, e onde poderá um dia se retirar. Sonha com isso há anos. Tentou que a velha lhe emprestasse o dinheiro
necessário, mas não deu certo. Desculpe por não ter nada para lhe oferecer.
– Estou só de passagem.
– Ainda não encontrou o revólver?
– Não. O Grand Marcel foi embora.
– Está brincando! Minha mãe deve estar enlouquecida!
– Foi ela que o botou na rua. Ele partiu para Toulon, onde tem amigos.
– Logo arranjará outro. Não consegue ficar três dias sem um homem. E, quanto mais ela bebe, a coisa vai ficando mais difícil e mais cara.
Seu cinismo não era agressivo. Continha mesmo uma certa doçura, talvez a saudade de uma família que não teve.
E então ele fingia-se de forte.
– Não deixe Paris sem me avisar. Meu inquérito está longe de acabar e posso ainda precisar de você.
O jovem designou a cama com um movimento do queixo.
– Como vê, tenho com que me ocupar.
Maigret retornou para a Rue Saint-André-des-Arts. Os homens da Identidade Judiciária o esperavam.
– Terminamos, chefe. Não há praticamente nada a assinalar. Vestidos, quase todos escuros, roupa de baixo, meias, calçados. Ela deve ter mania de calçados, pois encontramos
oito pares.
Angèle Louette continuava ali, sentada numa poltrona, aparentemente indiferente.
– A geladeira está bem abastecida. Embora viva sozinha, ela tem como preparar boas refeições. Muitas fotografias, sobretudo dela e de uma criança, quando ela era
bem mais jovem. Um livro de contas onde anota as entradas de dinheiro ao lado do nome dos clientes.
– Está esquecendo o principal – falou o segundo especialista.
O outro ergueu os ombros.
– Não sei se isso significa alguma coisa! Em cima do guarda-roupa há poeira e, nessa poeira, uma mancha de óleo ou graxa. Do tipo que se emprega para as armas.
Angèle interveio:
– Nunca houve armas na casa.
– No entanto, os vestígios são recentes. No cesto de lixo encontrei um papel engordurado que deve ter servido para embrulhar um revólver.
– Nesse caso, é Marcel que o possuía e o levou embora.
Maigret subiu numa cadeira para ver ele mesmo a mancha.
– Convoco-a a ir ao Quai des Orfèvres às três da tarde.
– E os meus clientes? Acha que não tenho nada a fazer?
– Vou lhe entregar uma convocação oficial.
Pegou um formulário amarelo no bolso e preencheu os espaços em branco.
– Eu disse três horas.
Lapointe esperava pacientemente. Eles se dirigiram até o pequeno carro preto que estava estacionado a mais de trezentos metros. Os homens de Moers também haviam
partido.
– Ela tem o telefone dele?
– Sim.
– Com certeza aproveitará que está sozinha para fazer uma ligação a Toulon. Entre as fotos havia alguma da velha?
– Três ou quatro, já antigas. Há também uma de um homem bigodudo que ela me disse ser o sr. Antoine.
Maigret voltou para almoçar em casa. Sua mulher não lhe fez perguntas como na véspera, a não ser sobre o enterro.
– Havia gente?
– Além da sobrinha, apenas Lapointe e eu. Uma benção foi dada a toque de caixa. Parece que todos tinham pressa de se ver livre dela.
Quando voltou ao escritório, Janvier lhe anunciou:
– O comissário Marella telefonou de Toulon e pede para entrar em contato com ele.
– Solicite uma ligação.
Ele a obteve alguns minutos mais tarde.
– Marella?
– Sim. Telefonei para ver se o encontrava. O tal Marcel chegou ontem à noite bastante tarde e foi direto para o bar L’Amiral. Ele me reconheceu e me dirigiu um breve
cumprimento ao se instalar no bar. Ficaram conversando a meia-voz, Bob e ele, sem que eu pudesse ouvir nada, pois puseram a tocar em alto volume o jukebox.
– Havia mais alguém com eles?
– Não. Em certo momento, Bob se encerrou na cabine telefônica e fez uma ligação. Quando voltou, parecia satisfeito e fez um gesto que traduzi por:
“– Tudo certo!”
– Só isso?
– Não. Marcel alugou um quarto no Hôtel des Cinq Continents, Avenue de la République. Levantou-se às nove da manhã e pegou seu carro para ir a Sanary. Isso não lhe
diz nada?
– Não.
– É lá que mora Pepito, o mais velho dos dois irmãos Giovanni.
Estes foram por muito tempo considerados como chefes da bandidagem na região. Marco, o mais moço, morava em Marselha. Pepito mandou reformar em Sanary uma luxuosa
casa de veraneio na qual vive tranquilamente.
Foram detidos uma dezena de vezes e a polícia sempre teve que soltá-los por falta de provas.
Agora haviam envelhecido e levavam uma vida pacífica de dois ricos aposentados.
– Marcel ficou muito tempo na casa dele?
– Cerca de uma hora. Em seguida voltou para o bar L’Amiral e depois foi almoçar num restaurante italiano da cidade velha.
– Ele já manteve antes contato com os Giovanni?
– Não que eu saiba.
– Poderia mandar vigiar Pepito? Gostaria de saber se vai a algum lugar nos próximos dias ou se recebe em sua casa alguém que não seja um dos comparsas habituais.
– Isso será feito. Como desforra. E o seu caso, como anda?
– Algumas pistas começam a se esboçar, mas ainda não levam a parte alguma. Quando eu tiver terminado, acho que vou descansar a cabeça ao sol aí perto, em alguma
parte do seu setor.
– Será um prazer para mim. Há quanto tempo não nos vemos?
– Dez? Doze anos? Foi o caso de Porquerolles.
– Eu lembro. Até breve, Maigret.
Eles haviam começado juntos no Quai des Orfèvres e durante mais de dois anos percorreram a via pública antes de serem designados primeiro para as estações ferroviárias,
depois para os grandes magazines. Ambos eram jovens então, e solteiros.
O velho Joseph trouxe a convocação que, de manhã, Maigret entregara a Angèle.
– Faça-a entrar.
Ela estava mais pálida, mais tensa que de costume. Seria a atmosfera da Polícia Judiciária que a impressionava?
– Sente-se.
Ele apontou uma simples cadeira diante da sua mesa e abriu a porta da sala dos inspetores.
– Pode vir até aqui, Lapointe? Traga o seu bloco.
Lapointe, que várias vezes lhe servia de estenógrafo, instalou-se na ponta da mesa com lápis na mão.
– Como a senhorita está vendo, trata-se desta vez de um interrogatório oficial. Tudo o que disser será registrado e depois assinará o auto de perguntas. Pode ser
que eu faça algumas a que já respondeu, mas suas respostas serão transcritas.
– Em suma, o senhor me considera como a suspeita número um.
– Como suspeita, simplesmente. Não há número. Pelo que pude perceber, a senhorita não tinha nenhuma afeição por sua tia.
– Tudo que ela me deu foi uma nota de cem francos quando eu lhe disse que estava grávida.
– Portanto, reprovava-lhe a avareza.
– Ela era egoísta, não pensava nos outros. E estou certa de que, se voltou a casar, foi por uma questão de dinheiro.
– Ela teve uma juventude difícil?
– Nem isso. O pai tinha posses, como se dizia na época. A família morava perto do Jardim de Luxemburgo e as duas filhas, minha mãe e minha tia, fizeram bons estudos.
Foi somente quando tinha uma certa idade que meu avô se pôs a especular e perdeu quase tudo o que possuía.
– Foi então que ela casou com Caramé?
– Sim. Ele vinha com frequência à casa dos meus avós. Por muito tempo se pensou que era por causa da minha mãe, acho que ela também pensava assim. No final, foi
minha tia que ficou com ele.
– E sua mãe?
– Casou com um empregado de banco que tinha má saúde. Morreu jovem, e minha mãe passou a trabalhar numa casa de comércio da Rue Paradis.
– Tiveram então uma vida bem modesta.
– Sim.
– Sua tia não as ajudava?
– Não. Não sei exatamente por que escolhi a profissão de massagista. Talvez porque havia uma no prédio onde morávamos e ela tinha um carro para visitar seus clientes.
– A senhorita também tem um carro?
– Um pequeno Citroën.
– Para ir à sua casa de campo, quando tiver uma.
Ela franziu as sobrancelhas.
– Quem lhe disse isso?
– Pouco importa. Parece que sempre sonhou com uma pequena casa no campo, não longe de Paris, para passar os fins de semana.
– Não vejo que mal há nisso. É o sonho de muita gente, não? Era também o de minha mãe, mas ela morreu antes de realizá-lo.
– Quanto espera herdar da sua tia?
– Quarenta, cinquenta mil francos? Não sei. Conto com algumas coisas que ela me disse. Pode ser que tivesse outros investimentos.
– Em suma, se continuava a vê-la, era unicamente por causa da herança.
– Se quiser pensar assim... De todo modo, ela era a única pessoa que restava da minha família. Já viveu sozinho, sr. Maigret?
– E seu filho?
– Raramente o vejo, apenas quando precisa de dinheiro. Ele não tem nenhuma afeição por mim.
– Reflita antes de responder à pergunta que vou fazer e não esqueça que suas respostas estão sendo registradas. Aconteceu-lhe de ir várias vezes à casa da sua tia
na ausência dela?
Ele teve a impressão de vê-la empalidecer, mas ela não perdeu a calma.
– Permite que eu fume?
– Como quiser. Mas não tenho cigarros para lhe oferecer.
Havia apenas cachimbos em cima da mesa, seis cachimbos dispostos por ordem de tamanho, um ao lado do outro.
– Eu lhe fiz uma pergunta.
– Gostaria que a repetisse.
Ele fez novamente a pergunta, sem hesitar.
– Depende do que chama ir à casa dela. Aconteceu-me de chegar ao Quai de la Mégisserie antes que ela voltasse. Nesse caso, eu esperava.
– Dentro do apartamento?
– Não. No corredor.
– Isso às vezes durava muito tempo?
– Quando ela demorava a chegar, eu dava uma volta na rua ou então ficava olhando as aves nas gaiolas.
– Sua tia nunca teve a ideia de lhe entregar uma chave da casa dela?
– Não.
– Nem supondo que pudesse passar mal?
– Ela estava convencida de que isso nunca lhe aconteceria. Não desmaiou uma única vez na vida.
– A porta nunca estava aberta?
– Não.
– Mesmo quando ela estava em casa?
– Mesmo estando em casa ela trancava a porta à chave.
– De quem ela desconfiava?
– De todo mundo.
– Inclusive da senhorita?
– Não sei.
– Ela lhe demonstrava alguma afeição?
– Não demonstrava absolutamente nada. Dizia para eu me sentar. Preparava-me café e ia buscar alguns biscoitos na lata de flandres.
– Não lhe pedia notícias do seu filho?
– Não. Devia vê-lo com tanta frequência, ou mais, do que eu.
– Nunca lhe falou de deserdá-la?
– Por que haveria de me deserdar?
– Retorno à questão da porta fechada. Observei que a fechadura não é complicada e que é fácil tirar um molde.
– Para fazer o quê?
– Pouco importa. Volto à minha pergunta com uma variante. Não lhe aconteceu, uma única vez, de se achar sozinha no apartamento?
– Não.
– Tem certeza?
– Sim.
– Não poderia sua tia ter se ausentado por um instante para fazer uma compra no bairro, para comprar biscoitos ao descobrir a lata vazia, por exemplo?
– Não aconteceu.
– Sendo assim, nunca teve a ocasião de abrir as gavetas?
– Não.
– Não chegou a ver sua caderneta de poupança?
– Um dia notei que ela pegava alguma coisa na cômoda, mas ignoro que quantia estava registrada ali.
– E seu talão de cheques?
– Não faço a menor ideia do que ela tinha no banco. Na verdade, não sabia sequer que possuía uma conta.
– Mas sabia que ela tinha dinheiro.
– Eu suspeitava.
– Não apenas economias.
– Que está querendo dizer? Não compreendo.
– Não tem importância. Alguma vez tentou obter um empréstimo dela?
– Uma única vez, como eu lhe disse. Quando fiquei grávida e ela me deu cem francos.
– Falo de uma época mais recente. A senhorita queria ter uma casinha no campo. Não pediu a ela para ajudá-la?
– Não. Está se vendo que o senhor não a conheceu.
– Eu a conheci.
– E, como todo mundo, tomou-a por uma encantadora velhinha, com um sorriso doce e uma atitude tímida. Na realidade, ela era dura como aço.
– Possui uma echarpe com linhas ou desenhos vermelhos?
– Não.
– No sofá da sala, na casa da sua tia, não há uma almofada com listras vermelhas?
– É possível. Sim, acho que sim.
– Por que razão a senhorita e o seu amante se desentenderam ontem de manhã?
– Porque estava ficando impossível.
– Que quer dizer com isso?
– Quando conheço um homem, não lhe peço um certificado de boa conduta. Mas Marcel exagerava. Não procurava trabalho. Teria podido sem dificuldade arranjar emprego
num bar.
“Ele preferia ficar em minha casa, sem fazer nada.”
– Ele conhecia sua tia?
– Obviamente que não o apresentei a ela.
– Ele sabia da sua existência?
– Acho que cheguei a falar dela a ele.
– E lhe disse que ela devia possuir um belo pé-de-meia?
– Não é meu costume falar assim.
– Em suma, ele sabia onde ela morava e que possuía pelo menos economias.
– É provável.
– Chegou a vê-lo alguma vez no Quai de la Mégisserie?
– Nunca.
– No entanto, ele foi até lá e foi visto por pelo menos duas pessoas.
– Nesse caso, o senhor sabe mais do que eu.
– Em algum momento pensou em casar com ele?
– Certamente que não. Depois que tive um filho, nunca mais pensei em casar. Obtenho dos homens o que desejo e a coisa não vai mais longe. Compreende o que quero
dizer?
– Compreendo muito bem. Falemos agora do revólver.
– Outra vez?
– Ele deve estar em algum lugar, e jurei a mim mesmo que o encontraria. Durante um certo tempo ele ficou na gaveta da mesa de cabeceira, na casa da sua tia. A senhorita
afirma que não sabia de nada e que sua tia tinha medo de armas de fogo.
– É verdade.
– No entanto, ela mantinha essa arma ao alcance da mão, o que indica, entre parênteses, que não era tão indiferente ao perigo como a senhorita está dizendo.
– Onde está querendo chegar?
Maigret enchia lentamente o cachimbo.
– Esta manhã, na sua casa, encontramos vestígios dessa arma que ficou escondida por um certo tempo em cima do seu guarda-roupa.
– Quem afirma isso é o senhor.
– Os peritos comprovarão. Ou foi a senhorita que pôs a arma ali, ou foi seu amante.
– Não gosto dessa palavra.
– Ela a incomoda?
– É inexata, pois não havia amor entre nós.
– Suponhamos que ele tenha ido ao Quai de la Mégisserie.
– Para matar minha tia?
– Para descobrir o que a senhorita não gosta que eu chame de pé-de-meia. A velha senhora retorna e se vê frente a frente com ele. Ele se serve da almofada do sofá
para asfixiá-la.
– E por que pega o revólver? Por que o esconde a seguir em cima do guarda-roupa e por que, ao partir para Toulon, o leva consigo?
– Acredita que o levou?
– Se esse revólver existe de fato, ele deve estar, como o senhor diz, em algum lugar. Quanto a mim, não fui à casa da minha tia na tarde da sua morte. Estou convencida
de que Marcel também não foi até lá. Quem a matou foi provavelmente o que chamam um delinquente comum, não um assassino. Ainda tem perguntas a me fazer?
– Já está se ocupando com a sucessão?
– Ainda não. Daqui a pouco devo ver um tabelião que é amigo de uma das minhas clientes. Sem isso, eu teria muita dificuldade de escolher um.
Ela se levantou, como que aliviada.
– Quando devo assinar?
– Fala do seu depoimento? Em quanto tempo, Lapointe?
– Estará datilografado dentro de meia hora.
– A senhorita ouviu. Até lá, aguarde na sala de espera.
– Não posso voltar outra hora?
– Não. Faço questão de concluir. Verá seu tabelião um pouco mais tarde e, esta noite, estará algumas dezenas de milhares de francos mais rica. A propósito, pretende
morar no apartamento do Quai?
– O meu é suficiente.
Ela se dirigiu à porta, com o corpo rígido, e saiu sem dizer mais nada.
Ele tomou o trem noturno e teve a sorte de se encontrar sozinho no compartimento do carro-leito. Em Montélimar, quando o sol levantava, despertou, como lhe acontecia
toda vez que descia em direção ao sul.
Montélimar era para ele a fronteira onde começava a Provença e, a partir daí, não perdia nada do espetáculo. Gostava de tudo: da vegetação, das casas de um rosa
pálido ou de um azul lavanda com telhas crestadas pelo sol, das aldeias plantadas de plátanos onde já se viam pessoas nos bares.
Em Marselha, enquanto o trem manobrava na estação Saint-Charles, escutou o sotaque cantante e tudo lhe pareceu saboroso.
Havia muito não vinha ao sul com a mulher e prometeu-se fazer isso nas próximas férias. Mas então seria verão e haveria muita gente!
Alguns quilômetros adiante avistava-se o mar, do mesmo azul que o dos cartões postais, com pescadores imóveis nos barcos.
O comissário Marella estava na plataforma da estação e lhe acenou com grandes gestos.
– Por que não aparece mais seguido? Há quanto tempo não vem a Toulon?
– Uma dezena de anos, como lhe disse ao telefone. Não se incomoda de eu vir meter o nariz onde não sou chamado?
Maigret se achava fora da sua jurisdição. Aqui o chefe era Marella, um homem não muito alto, de pelos escuros, evidentemente, e sempre animado. Desde o último encontro
dos dois, ele deixara crescer uma barriga que lhe dava um ar mais burguês.
Antes, poderiam tê-lo tomado tanto por um gângster quanto por um policial. Os gângsteres também têm uma tendência a criar barriga, mas nessa idade, em geral, já
se retiraram dos negócios.
– Não quer tomar um café?
– Aceito. Tomei um no trem, mas estava ruim.
– Então vamos.
Atravessaram a praça, que brilhava sob um sol já quente. Entraram num café-restaurante e se instalaram no bar.
– O que me conta?
– Nada. É um caso doido no qual tenho a impressão de patinhar. Onde está Marcel, neste momento?
– Na cama. Durante uma parte da noite, encheu a cara com uns amigos no restaurante Victor, na frente do Port-Marchand. Todos pequenos delinquentes. Por volta da
meia-noite, umas mulheres juntaram-se a eles.
– Você o conheceu quando ele estava aqui?
– Ele nunca viveu muito tempo em Toulon. Sua estadia mais longa foi de dois anos. Convém dizer que os bandidos daqui não o levam muito a sério e o consideram um
pouco como um amador.
– Quem é esse Bob, com quem ele troca mensagens?
– O barman do Amiral. Acho que procura não se envolver. Em todo caso, nunca conseguimos pegá-lo.
– E os irmãos Giovanni?
– Há somente um aqui, o mais velho, Pepito. O outro, ao que me disseram, mora nos arredores de Paris. Pepito comprou uma magnífica casa de veraneio de uma velha
americana que queria voltar para morrer no seu país. É a mais bela casa de Sanary, com um porto privado onde ele tem um barco.
“Pepito vê muito pouca gente e quase nunca antigos companheiros. Procura fazer-se esquecer. Mesmo assim, continuo de olho nele e ele sabe; quando nos cruzamos na
rua, me cumprimenta com toda a deferência.”
– Gostaria de saber o que Marcel foi fazer na casa dele.
– Também tenho curiosidade de saber, sobretudo porque Marcel nunca trabalhou com ele.
– Em que hotel ele está hospedado?
– No Hôtel des Cinq Continents, na Avenue de la République, a dois passos da capitania dos portos.
Eram apenas oito horas da manhã.
– Não quer ir vê-lo comigo? Assim terá uma vaga ideia do caso. Ele vai ficar furioso de ser despertado tão cedo.
Maigret não se hospedou em hotel, pois esperava voltar na mesma noite. Marella obteve o número do quarto de Marcel, os dois subiram e bateram vigorosamente à porta.
Demorou bastante até que uma voz sonolenta perguntasse:
– O que é?
– Polícia.
Marella é que respondera e Marcel, descalço, de pijama amarrotado, se arrastou até a porta e a entreabriu.
– Ora vejam! O senhor aqui também! – resmungou ao ver Maigret. – Bem, já que o comissário Marella o acompanha...
Foi abrir as cortinas e acendeu um cigarro, mudou de lugar uma calça atirada sobre uma das poltronas.
– Que foi que eu fiz desta vez? – perguntou.
– Nada de novo, provavelmente.
– A propósito – interveio Marella, dirigindo-se a Marcel –, sei que ontem à tarde foi ver a Maria. Não sabe que há vários meses ela está com o Bexiguento?
– Ele está na prisão.
– Peguei-o na semana passada, é verdade, e desta vez a coisa é séria, pois se trata de tráfico de drogas. Tem gente de fora envolvida com ele. E você não é daqui.
– Obrigado pela informação. Há muito tempo conheço a Maria. E o senhor, comissário Maigret? Por que fazer essa viagem quando nos vimos anteontem?
– Talvez para levá-lo de volta a Paris.
– O quê? Está brincando?
– Primeiro há a questão da chave.
– Que chave?
– A do apartamento da velha. Quem tirou o molde da fechadura? É um trabalho que Angèle não saberia fazer direito.
Marcel permaneceu impassível.
– Tudo bem! Falará disso em presença de um estenógrafo e assinará o auto de perguntas.
– Mas pelo amor de Deus! Nada tenho a ver com essa maldita história! Eu vivia com o sargento, concordo. À espera de encontrar algo melhor, admito, e estou bem contente
de ter ido embora.
– Pelo menos duas pessoas o reconheceram.
– Baseadas em quê?
– Na foto que figura em nossos arquivos, ou melhor, nos da Brigada de Costumes.
– E quais são essas duas pessoas?
– O vendedor de aves do térreo e a locatária que mora bem defronte à velha. Você chegou mesmo a esbarrar nela ao subir a escada de cabeça baixa e se desculpou.
– Os dois estão sonhando.
– Vestia o terno xadrez que estava usando ontem.
– E que é vendido em todos os grandes magazines, deve haver não sei quantos milhares desses ternos em Paris.
– Então diz que não tinha a chave. Abriu a porta com uma gazua?
– Vão ficar por muito tempo?
– Não sei. Por quê?
– Pois nesse caso pedirei para me trazerem café e croissants.
– Peça.
Ele tocou a campainha para chamar o serviço de quarto e fez o pedido.
– Quanto aos senhores, sinto muito mas nada tenho a oferecer. Não usei nenhuma gazua para abrir porta e nem mesmo sei como se faz isso.
– Quando ela lhe falou do revólver?
– Quem?
– Sabe de quem se trata. Angèle. Não foi você que adivinhou que havia um revólver no apartamento da velha.
– Eu não sabia sequer da existência dela.
– É mentira. Angèle mesmo admitiu, e está registrado no auto de perguntas, que lhe mostrou as janelas da sua tia, dizendo-lhe que um dia seria a herdeira.
– Acredita nela? Não sabe que ela mente como respira?
– E você?
– Eu digo a verdade. Não posso me permitir fazer nada errado, pois a polícia está de olho em mim. A prova é essa foto que encontrou na Brigada de Costumes e da qual
eu mesmo não lembrava.
O garçom trouxe o café com croissants e um cheiro bom invadiu o quarto. Instalado diante de uma mesinha de centro, Marcel, sempre de pijama e descalço, pôs-se a
comer.
Marella lançou um olhar a Maigret, como para lhe pedir a permissão de intervir.
– O que contou a Bob?
– Quando cheguei, anteontem à noite? Ele me deu notícias suas e lhe dei as minhas. É um velho amigo e fazia uma eternidade que não nos víamos.
– E que mais?
– Não compreendo.
– Qual de vocês dois pensou em Giovanni?
– Talvez tenha sido eu. Há tempos também o conheci. Eu era ainda um garoto e ele morava em Montmartre.
– Nesse caso, por que não foi você que telefonou?
– Por que eu lhe teria telefonado?
– Para marcar um encontro. Foi Bob que fez isso em seu lugar. O que pediu a ele para contar?
– Não sei o que está querendo dizer.
– Não se faça de bobo. Sabe muito bem que ninguém vai bater à porta de Giovanni assim sem mais, sobretudo para quem não passa de um pequeno gigolô. Ontem, no entanto,
você foi vê-lo e ficou cerca de uma hora com ele.
– Batemos um papo, nós dois.
– Bateram um papo sobre o quê?
Marcel estava ficando nervoso. Não gostava do rumo que a conversa tomava.
– Digamos que lhe perguntei se não tinha um trabalho para mim. Ele possui vários negócios, todos regulares. Poderia precisar de um homem de confiança.
– Ele o contratou?
– Vai refletir e dará uma resposta dentro de alguns dias.
Marella olhou novamente para Maigret para indicar que havia concluído.
– Ouviu o que o meu colega Marella lhe disse há pouco. Ele dará instruções e você passará na sala dele para repetir tudo o que acaba de nos dizer. Aguardará que
o auto de perguntas seja datilografado e o assinará.
“Procure não esquecer nada, sobretudo no que se refere a Bob e Giovanni.”
– É necessário que eu fale dele?
– Você mentiu?
– Não. Mas ele não vai gostar de saber que falei dele à polícia.
– Não há outro jeito. Não deixe Toulon até receber permissão.
– Muito bem. E, se eu não encontrar trabalho, pagarão o hotel por mim?
– Podemos lhe oferecer pensão num outro hotel – interveio Marella. – Lá se sentirá muito bem e terá sombra.
Os dois homens desceram de volta à rua.
– Não me envolvi demais no que não era da minha conta? – perguntou Marella com uma certa preocupação.
– Pelo contrário. Prestou-me um grande serviço. Poderá fazer o mesmo com Bob.
Eles só precisaram atravessar a avenida. O bar, que ficava na esquina do quai com uma rua estreita onde não passavam veículos, intitulava-se L’Amiral. Havia quatro
mesas na calçada, com toalhas xadrez. Em contraste com o sol de fora, que o reflexo na água tornava ainda mais brilhante, o interior parecia escuro e ali reinava
um agradável frescor.
Um barman de nariz quebrado de boxeador e de orelhas achatadas se ocupava em lavar os copos. Naquela hora havia somente um freguês, e um garçom punha as coisas no
lugar.
– Bom dia, comissário. Em que posso servi-lo?
Ele se dirigiu a Marella, pois não conhecia Maigret.
– Tem vinho da Provença? – este perguntou.
– Rosé em garrafa.
– Dois copos de rosé. Ou uma garrafa, tanto faz.
Os dois estavam descontraídos e somente Bob não se sentia à vontade.
– Diga, Bob, recebeu uma visita anteontem à noite?
– Aqui, como sabe, visitas não faltam.
– Não me refiro a um freguês. Falo de alguém que veio expressamente de Paris para vê-lo.
– Para ver a mim?
– Digamos, para lhe pedir um serviço.
– Não vejo que serviço eu poderia lhe prestar.
– Você o conhece há muito tempo?
– Sete ou oito anos.
– É um sujeito correto?
– Nunca esteve na prisão. A ficha judiciária dele é limpa.
– E a sua?
– Não completamente, como o senhor bem sabe.
– O que ele queria?
– Estava de passagem e veio bater um papo.
– Pediu para você telefonar.
– Telefonar?
– Não se faça de bobo. Um dos meus homens estava na sala e o viu se fechar na cabine enquanto seu amigo aguardava. Durou algum tempo. Ele estava nervoso. Quando
você retornou e lhe falou em voz baixa, ele pareceu aliviado.
– Certamente se trata de uma de suas ex-amigas, Maria, que ele foi ver.
– Ela mora atualmente em Sanary?
– Certamente não.
– Não tem interesse algum em ficar calado, Bob. Você telefonou para Pepito Giovanni, com quem trabalhou no passado, quando ele ainda não havia abandonado suas atividades
ilícitas. Conseguiu que ele recebesse seu amigo Marcel. E não é pouco, pois um Giovanni não recebe qualquer um, muito menos em casa. O que lhe contou?
– A Giovanni? Que eu tinha comigo alguém que procurava trabalho.
– Não!
– Por que diz não?
– Porque sabe muito bem que não é verdade. Aliás, Giovanni será o primeiro a rir quando eu contar isso a ele.
– Eu disse que ele tinha um negócio importante a lhe propor. Um negócio inteiramente regular.
– Viu uma amostra desse negócio?
– Não.
– Sabe do que se trata?
– Marcel não me disse. Disse apenas que era um grande negócio. Um negócio internacional, que interessaria particularmente a América.
– A coisa está melhorando e vou acabar por acreditar em você. Giovanni concordou?
– Disse para lhe enviar meu amigo ontem às três da tarde.
– É tudo?
– Recomendou que ele não esquecesse de levar a amostra e que não fosse acompanhado.
O vinho rosé era novo e com sabor de fruta. Maigret escutava esse diálogo sorrindo vagamente. Sempre apreciara muito Marella que, se tivesse ficado em Paris, ocuparia
talvez seu lugar no Quai des Orfèvres. Mas em Toulon ele estava mais no seu meio. Nascera em Nice e conhecia todos os delinquentes, todas as prostitutas entre Menton
e Marselha.
– Tem algo mais a lhe perguntar, Maigret?
Bob franziu as sobrancelhas.
– Quer dizer que esse senhor é o comissário Maigret?
– Exatamente. E é com ele que se arrisca a ter que lidar.
– Peço que me desculpe por não tê-lo reconhecido.
E, como Maigret abrisse a carteira:
– Não, não, é por conta da casa.
– De jeito nenhum.
E pôs uma nota de dez francos em cima da mesa.
– Suponho que se apressará a avisar Giovanni, assim que tivermos partido.
– Não se me pedirem para não avisar. Não tenho vontade de me indispor com o senhor. Tampouco com o comissário Marella.
Eles tornaram a sair ao sol, em meio a marinheiros de gola azul e pompom vermelho.
– Quer que vamos juntos ver Giovanni? Ou prefere ir sozinho?
– Ao contrário.
– Nesse caso, passemos no escritório para pegar o meu carro.
Atravessaram La Seyne, onde um navio estava sendo desmontado, e depois avistaram a ponta de Sanary onde, bem na extremidade, erguia-se uma casa bastante ampla.
– É a casa dele. Mesmo se Bob não telefonou, Marcel deve ter telefonado, e ele nos espera. Com Giovanni, a coisa será um pouco mais dura.
CAPÍTULO VI
ELE VEIO EM DIREÇÃO AOS dois na imensa sala inundada de luz. Vestia um terno de seda creme e caminhava com a mão estendida.
– Bom dia, Marella – disse a este.
Depois, fingindo só então perceber Maigret:
– Ora! Sr. Maigret! Não esperava a honra da sua visita.
Era um homem elegante, robusto, sem adiposidade. Devia ter sessenta anos, mas à primeira vista aparentava cinquenta.
A sala fora mobiliada com bom gosto, certamente por um decorador, e suas proporções lhe davam um pouco o aspecto de um cenário de teatro.
– Onde preferem que nos instalemos: aqui ou no terraço?
Conduziu-os até o terraço onde, debaixo de guarda-sóis, havia confortáveis cadeiras.
O maître de casaco branco os acompanhou e esperava, como em posição de sentido.
– O que lhes mando servir? Que acham de um Tom Collins? A esta hora, é ainda o que há de mais refrescante.
Maigret fez um sinal de que concordava e Marella o imitou.
– Dois Tom Collins, George. Para mim, o mesmo de sempre.
Estava bem barbeado e tinha as mãos cuidadas, com unhas tratadas por manicure. Parecia muito à vontade.
– O senhor chegou esta manhã? – perguntou a Maigret como para iniciar a conversa.
Via-se o mar aberto e um iate a motor balançava-se no pequeno porto privado.
– Vim no trem noturno.
– Não me diga que veio apenas para me ver!
– Nem sequer sabia, quando cheguei a Toulon, que viria à sua casa.
– Fico ainda mais lisonjeado.
Apesar da bonomia, havia no seu olhar uma certa dureza que ele buscava em vão ocultar sob a cordialidade de superfície.
– Quer dizer então que está fora do seu território, comissário?
– Exato. Mas meu amigo Marella está no dele.
– Nós nos entendemos muito bem, Marella e eu. Não é mesmo, Marella?
– Enquanto não me der a ocasião de lhe criar problemas.
– Levo uma vida tão calma! Sabe muito bem que raramente saio. Esta casa tornou-se quase todo o meu universo. Um amigo de vez em quando, uma bela mulher ocasionalmente.
– Inclui o Grand Marcel entre seus amigos?
Ele pareceu chocado.
– Aquele coitado que veio me ver ontem de manhã?
– Mesmo assim o recebeu.
– Porque tenho por princípio dar a cada um sua oportunidade. A mim também, no passado, aconteceu de precisar de uma ajuda.
– E deu-lhe essa ajuda?
O maître voltava com dois grandes copos gelados e um menor que continha suco de tomate.
– Os senhores me desculpem, mas nunca tomo bebidas alcoólicas. Um brinde.
“Creio que me fazia uma pergunta.”
– Eu lhe perguntei se tinha podido ajudá-lo.
– Infelizmente não. Não encontro lugar para ele em nenhum dos meus negócios.
“Como sabe, sr. Maigret, tornei-me um homem de negócios importante e correu muita água sob a Pont-Neuf desde que nos encontramos.
“Possuo doze cinemas na Côte, dois deles em Marselha, um em Nice, um em Antibes e três em Cannes. Sem falar do de Aix-en-Provence.
“Tenho também um cabaré em Marselha e três hotéis, um deles em Menton.
“Tudo perfeitamente regularizado, lhe garanto. Não é verdade, Marella?”
– É exato.
– Tenho também um restaurante em Paris, na Avenue de la Grande-Armée, que é mantido por meu irmão. Um restaurante muito elegante, onde se come muito bem e ao qual
os senhores, aliás, estão cordialmente convidados.
Maigret o observava, com o rosto imperturbável.
– Estão vendo que não tenho lugar em meus negócios para um pequeno rufião sem talento.
– Ele lhe deixou a amostra?
Apesar do autocontrole, Giovanni sentiu o golpe.
– De que amostra está falando? Certamente deve estar equivocado.
– Aceitou receber Marcel porque Bob, ao telefone, lhe falou de um grande negócio, um negócio de envergadura internacional.
– Não compreendo. Foi Bob que lhe contou essa história rocambolesca?
– A coisa devia interessar particularmente os americanos.
– Mas não tenho nenhum negócio com os americanos.
– Vou lhe contar uma pequena história, Giovanni, e espero que tire dela algum proveito. Havia em Paris uma velha senhora frágil e encantadora que pôs na cabeça que,
no seu apartamento, alguns objetos mudavam ligeiramente de lugar na sua ausência.
– Não percebo o que...
– Um instante. Essa velha senhora foi pedir a proteção da Polícia Judiciária e de início a consideramos como uma louca. No entanto, eu pretendia ir vê-la, nem que
fosse para tranquilizá-la.
– Parece-me que li alguma coisa a respeito nos jornais.
– De fato, eles falaram do assunto, mas em poucas linhas, sem saber do que se tratava.
– Um charuto?
– Obrigado. Prefiro meu cachimbo.
– E você, Marella?
– Aceito.
Havia uma caixa de havanas em cima da mesa e os dois homens pegaram cada qual um charuto.
– Desculpe, não queria interrompê-lo. Então foi visitar essa velha senhora.
– Ainda não cheguei lá.
– Eu escuto.
– Ela tinha uma sobrinha de meia-idade que tem um gosto pronunciado por homens mais jovens que ela. Há cerca de seis meses, por exemplo, vivia com esse Marcel que
você recebeu ontem.
Giovanni começava a mostrar-se interessado.
– Essa velha senhora foi assassinada antes que eu tivesse a ocasião de visitá-la, como lhe prometera.
– Que tipo de assassinato?
– Por asfixia. Pressionaram-lhe uma almofada sobre o rosto. Na idade dela, não pôde resistir por muito tempo.
– Estou tentando entender a relação que isso pode ter comigo.
– Eu lhe disse que o Grand Marcel era o amante da sobrinha dela. Duas testemunhas afirmam tê-lo visto pelo menos uma vez na casa.
– Suspeita que foi ele o autor do crime?
– Ele ou a sobrinha. O que dá mais ou menos na mesma.
– O que eles queriam?
– A amostra.
– O que quer dizer?
– O objeto que Marcel veio lhe apresentar.
– De que objeto se trata?
– Sabe isso melhor que eu, pois muito provavelmente ele está agora em seu poder.
– Continuo sem compreender.
– Trata-se de um revólver. Confesso-lhe desde já que ignoro suas particularidades e o que lhe confere tanta importância.
– Nunca tive arma em minha vida, como deve saber. No tempo já distante em que eu era apenas um jovem delinquente, fui interpelado várias vezes pela polícia e nunca
puderam me prender por porte de arma.
– Eu sei.
– Sendo assim, não vejo por que eu teria aceito um revólver que um rufião de terceira categoria me teria trazido.
– Não se preocupe. Não vou pedir a meu amigo Marella para vasculhar sua mansão do porão até o sótão. É muito avisado para deixar esse objeto num lugar onde pudéssemos
descobri-lo.
– Obrigado pelo elogio. Um outro Tom Collins?
– Basta um, obrigado.
Marella nunca tinha visto Maigret trabalhar de uma forma tão discreta. Ele falava a meia-voz, como sem dar importância a suas palavras, mas sentia-se que cada uma
delas produzia efeito.
– Eu não esperava, ao vir vê-lo, que confessasse o objetivo da visita do Grand Marcel. Queria apenas avisá-lo. Ele não lhe deve ter dito que esse revólver está intimamente
ligado a um assassinato.
“Não premeditado, aliás. A velha senhora, que passava uma parte das tardes num banco do Jardim das Tulherias, voltou para casa, por uma razão ou outra, mais cedo
que de costume. Surpreendido, seu visitante ou sua visitante...”
– Refere-se à sobrinha?
– Sim, a sobrinha. Ela ou ele pegou uma almofada no sofá e a pressionou, pelo tempo que foi preciso, sobre o rosto da velha senhora.
“Está percebendo agora que esse negócio ‘internacional’ não combina com suas atividades atuais, eu me refiro a seus cinemas, hotéis, restaurantes etc.”
Maigret se calou e o olhou tranquilamente. Giovanni sentia-se pouco à vontade, mas conseguia não deixar transparecer demais.
– Agradeço-lhe por ter me avisado. Se esse rapaz voltar, será posto imediatamente na rua.
– Ele não voltará antes que lhe dê algum sinal, e sei que não lhe dará esse sinal.
– Estava sabendo disso, Marella?
– Desde ontem.
– Disse a seu colega Maigret que me tornei um homem de negócios importante e que tenho boas relações com todas as autoridades da região, inclusive o prefeito?
– Eu disse a ele.
– Só me resta, portanto, repetir que nada tenho a ver com esse caso.
Maigret levantou-se, suspirando.
– Obrigado pelo Tom Collins.
Marella também se levantou, e Giovanni os acompanhou através da sala até a grande escadaria de mármore.
– Sempre os receberei com prazer, senhores.
Os dois entraram no carro.
– Não vá muito longe – disse Maigret a Marella quando saíam da propriedade. – Será que há um boteco de onde se possa ver o porto da mansão?
Antes de deixarem Sanary, pararam diante de um bistrô pintado de azul, à frente do qual quatro homens jogavam bilhar.
– O que vai tomar?
– Um copo de vinho rosé. O Tom Collins me deixou um gosto desagradável na boca.
– Não compreendi bem sua atitude – murmurou Marella. – Você não insistiu. Deu a impressão de acreditar no que ele dizia.
– Em primeiro lugar, ele não é um homem que falaria.
– É verdade.
– O que tenho contra ele? Apenas que recebeu um pequeno delinquente após um telefonema de Bob, o barman. Não sei sequer como é feito esse revólver.
– Ele existe realmente?
– Existe, sim. Foi ao buscá-lo que os visitantes da velha mudaram ligeiramente os objetos de lugar.
“Acha que poderíamos, mesmo com todos os seus homens, esquadrinhar um grande barraco como esse? Acha que Giovanni se contentou em esconder a arma em sua mesa de
cabeceira?
“Logo veremos se tenho razão.”
Um quarto de hora mais tarde, eles viram um homem com boné de marinheiro descer até o pequeno iate, cujo motor não tardou a roncar.
Alguns instantes depois, Giovanni descia os degraus que levavam ao porto e se instalava a bordo.
– É muito arriscado para ele, compreende? Está com pressa de se desembaraçar da arma. De todo modo, o negócio não deu certo.
O iate deixava o porto e, abrindo um sulco na água, dirigia-se ao largo.
– Dentro de alguns minutos, o revólver estará a não sei quantos metros de profundidade. Não há chance alguma de reencontrá-lo.
– Compreendo.
– Bem, no que se refere a Toulon, para mim está encerrado.
– Não quer jantar lá em casa? Depois da última vez que veio, montamos um quarto de hóspedes.
– Volto com o trem noturno.
– É necessário?
– Mais ou menos. Amanhã ainda tenho uma jornada bastante intensa.
– A sobrinha?
– Entre outras coisas. Continue mandando vigiar o Grand Marcel. Também seria bom ficar de olho no tal de Bob, que me parece bastante influente para um simples barman.
Acha que Giovanni leva realmente uma vida regular?
– Há anos tento colocá-lo contra a parede. Homens como ele, mesmo quando mudam de conduta, conservam sempre um contato discreto com o mundo do crime. Acaba de ter
uma prova.
O iate branco, que descrevera uma ampla curva no mar, já voltava em direção ao porto.
– Ele deve estar se sentindo melhor, agora que se desembaraçou da sua “amostra”.
– O que vai fazer até a partida do trem?
– Gostaria de rever o Grand Marcel. Acha que é na casa de Maria que tenho chances de encontrá-lo?
– Eu ficaria surpreso. Depois do que lhe disseram dos amores dela, ele desconfia. É um falso durão, que não está disposto a correr riscos.
– E no Amiral?
– É provável que passe por lá.
Quando chegaram ao bar, eram cinco da tarde, novamente um horário sem movimento. Bob não estava atrás do balcão, mas sentado numa mesa diante de Marcel.
Este não pôde deixar de exclamar quando viu os policiais:
– Outra vez!
– Sim, outra vez. Pode nos servir uma garrafa de rosé, Bob?
– Quantas vezes vou ter que repetir que não matei a velha?
– Não precisa repetir. Mesmo assim, você foi até o Quai de la Mégisserie.
Maigret lhe falava com intimidade e um ar bonachão.
– Continuo esperando que prove. E também que me diga o que eu teria ido fazer lá.
– A amostra.
– Não compreendo.
– Há pouco, alguém mais importante que você também não compreendeu. No entanto, ele forneceu provas.
– Foi à casa de Giovanni?
Marcel empalidecera. Bob voltava para a mesa com os copos e a garrafa.
– O que ele lhe disse?
– Um negócio internacional, hein? E capaz de interessar especialmente os americanos.
– Não faço a menor ideia do que está dizendo.
– Não tem importância. Vim avisá-lo apenas que é inútil apresentar-se à mansão de Sanary com a esperança de obter uma quantia mais ou menos significativa.
– O senhor viu Giovanni? – perguntou Bob, retomando seu lugar.
– Acabamos de deixá-lo.
– Ele admitiu que recebeu Marcel?
– E que você lhe telefonou.
Maigret bebia o vinho da Provença saboreando-o em pequenos goles. Dentro de duas horas, o trem o levaria a Paris.
Voltou-se novamente para Marcel.
– Se realmente não foi você que matou a velha, eu o aconselharia a dizer toda a verdade e a voltar a Paris comigo.
As mãos compridas de Marcel escavam crispadas pelo nervosismo.
– E você, Bob, o que tem a dizer?
– Nada tenho a ver com isso. Estou apenas ajudando um amigo, e é tudo. Não sei de nada dessa história.
– Por que eu voltaria a Paris? – perguntou Marcel.
– Para se apresentar à polícia.
– Mas eu já lhe disse...
– Eu sei, eu sei. Não foi você que matou a velha senhora. Mesmo assim, não deixará de ser acusado de cumplicidade, se foi a sobrinha que matou.
– E é para eu ser preso que me aconselha a deixar Toulon?
– É possível que seja mais seguro para você do que ficar aqui.
O homem assumiu um ar matreiro.
– Não, comissário. Não sou ingênuo a esse ponto. Se tem um mandato de prisão, mostre e leve-me consigo. Sabe muito bem que não pode fazer isso porque não possui
provas, exceto as duas testemunhas sem valor que viram passar um terno xadrez.
– Como quiser.
– É realmente difícil ficar em paz durante anos!
– Teria sido melhor continuar.
Foi Marella, desta vez, que pagou a conta. Depois, olhando o relógio de pulso, ele falou:
– Ainda tem tempo de dar um alô à minha mulher e de conhecer minha nova casa.
Esta ficava fora da cidade, nas colinas. Não era uma casa grande, mas tinha um aspecto acolhedor e muito alegre.
Um rapaz de uns quinze anos se ocupava em cortar a grama e a máquina zumbia como uma mosca monstruosa.
– Já conhece o meu filho, Alain.
– Eu o vi quando era ainda um bebê.
– O bebê cresceu, como vê.
Entraram na sala, que era mais um grande living room. A sra. Marella saiu da cozinha com um rolo de massa na mão.
– Oh! perdão. Não sabia que havia um convidado.
Maigret a beijou nas duas faces. Ela se chamava Claudine e ele nunca a vira sem um sorriso nos lábios.
– Espero que jante conosco. Estou justamente preparando uma torta de morangos.
– Ele retorna a Paris no trem noturno.
– Chegou há muito tempo, Maigret?
– Esta manhã.
– E já está de partida?
– Graças a seu marido, que me deu uma importante ajuda.
– O que quer beber? Notei que aprecia muito o vinho da Provença. Tenho um na adega que é bem melhor que o do Amiral.
Os dois passaram cerca de uma hora falando de coisas diversas. O rapaz de quinze anos, Alain, veio apertar a mão do comissário.
– Não está no colégio?
– O senhor esqueceu que hoje é sábado?
Era verdade. Maigret havia esquecido. Os acontecimentos da semana se encadearam de tal modo que ele não contara os dias.
– Que série está cursando?
– O primeiro clássico.
– Quer seguir a mesma carreira que seu pai?
– De jeito nenhum! Nunca se sabe a que horas se voltará para casa e, quando se dorme, há sempre o risco de ser despertado pelo telefone.
Maigret estava melancólico. Ele também gostaria de ter tido um filho, mesmo se este não quisesse ser um policial.
– Bem, já é hora! Não quero perder o trem.
– Levo-o até a estação.
Alguns instantes depois, eles se afastavam da casa, de cuja entrada Claudine lhe fazia acenos de despedida.
Quando o táxi parou no Boulevard Richard-Lenoir quase deserto dos domingos de manhã, a batida da porta do carro foi o bastante para que a sra. Maigret se precipitasse
até a janela aberta.
Ela o esperou no patamar da escada.
– Achei que passaria a noite em Toulon. Por que não telefonou dizendo que voltaria?
– Para lhe fazer uma surpresa.
Com um pano ao redor dos cabelos, ela se ocupava da limpeza da casa.
– Muito cansado?
– Não muito. Dormi bem.
– Quer que eu lhe prepare um banho?
– Seria ótimo.
Ele havia se barbeado no trem, como fazia sempre antes de chegar a Paris.
– Obteve os resultados que esperava?
– Mais ou menos. A propósito, Marella e Claudine mandaram lembranças. Estão morando agora numa casa muito agradável fora da cidade.
– Claudine continua alegre como sempre?
– Não mudou. O filho é que se tornou um rapagão com uma voz de baixo.
– Você tem o dia todo livre?
– Quase. Mais tarde precisarei sair por um momento.
Enquanto a banheira enchia, ele telefonou para a Polícia Judiciária e quem estava de plantão era mais uma vez o bravo Lucas.
– Nada de novo no Quai?
– Nada de especial, chefe.
– Quem está com você?
– Neveu, Janin, Lourtie...
– É o suficiente, não preciso mais. Diga-lhes que deem um jeito para que haja alguém vigiando noite e dia a casa onde mora Angèle Louette, a massagista, na Rue Saint-André-des-Arts
. Eles não precisam se esconder. Um aviso: ela tem um carro.
Ele permaneceu um longo tempo na água espumosa, enquanto a mulher preparava um café. Por volta das nove e meia, desceu e pegou um táxi que mandou parar na esquina
da Rue Saint-André-des-Arts. Era Janin que estava de sentinela e o comissário foi apertar-lhe a mão.
– Subo para vê-la e é possível que o que vou dizer dê a ela a vontade de sumir.
– Não se preocupe, ficarei de olho. Fizemos um arranjo, Neveu e eu. Em vez de longos turnos de vigilância, nos revezaremos a cada três horas e, na próxima noite,
Lourtie nos dará uma mão.
Maigret subiu a escada e tocou a campainha. A porta se abriu quase em seguida.
Angèle Louette vestia seu tailleur preto e estava com um chapéu na cabeça.
– O senhor de novo! – ela resmungou. – Não pode me deixar tranquila um único dia?
– Estava saindo?
– Dá para ver, não? Não ponho chapéu para ficar em casa.
– Retorno de Toulon.
– E o que isso me interessa?
– Isso lhe interessa muito. Seu amante foi até lá de carro e nos encontramos.
– Nada mais temos a ver um com o outro.
– Têm a ver, sim. A prova é que foi ele que se encarregou das negociações com Giovanni.
Ela não pôde evitar um estremecimento.
– E já lhe adianto que essas negociações fracassaram, sua tia morreu por nada. Sabe onde se encontra o revólver neste momento atual? No Mediterrâneo, a não sei quantas
dezenas ou centenas de metros de profundidade.
“Marcel não lhe telefonou para dar notícias?”
– Se ele tivesse telefonado avisando que o senhor viria, por certo não me encontraria em casa.
– Onde vai agora?
– À missa, se quer saber. E pouco me importa se isso lhe surpreende.
– Tenho uma mensagem para a senhorita. Está convocada ao meu escritório amanhã de manhã às nove horas. Recomendo-lhe não se atrasar. Recomendo-lhe também levar uma
pequena valise com objetos pessoais e mudas de roupa, pois é possível que fique retida por um certo tempo.
– Isso significa que serei presa?
– É uma possibilidade a considerar. Aliás, não depende de mim, mas do juiz de instrução. Só mais uma palavra e a deixarei partir. Desde cerca de uma hora, está sendo
vigiada e continuará sendo até o momento em que entrar amanhã na minha sala.
– Eu o odeio.
– Não esperava menos da senhorita.
Quando Maigret tornou a descer, ele a ouviu andar de um lado a outro da sala, pronunciando frases raivosas.
– Você a conhece? – ele perguntou a Janin.
– Não.
– Vou mostrá-la, pois deve descer dentro de uns instantes.
Ela ficou ainda uns dez minutos em casa. Quando saiu e viu os dois homens na calçada em frente, empertigou o corpo num gesto de indignação.
– Ela é fácil de reconhecer, como vê. Se fosse um boxeador, estaria entre os pesos pesados.
Maigret voltou para casa a pé, na paz ensolarada do domingo de manhã. Perguntava-se o que ele e a mulher fariam à tarde. Podiam passear de carro, que a sra. Maigret
conduzia, mas ela tinha medo de dirigir aos domingos, sobretudo nos arredores de Paris.
Pouco importa o que fariam. Mesmo quando se contentavam em andar lado a lado ao longo das calçadas, eles nunca se aborreciam.
– Chegou cinco minutos tarde demais. Seu amigo Marella acaba de telefonar. Pede que ligue o mais cedo possível, no seu telefone pessoal. Parece que ele lhe deu o
número.
Ela olhava o marido com atenção.
– Não se surpreende que ele o chame domingo de manhã quando o deixou ontem à noite?
– Eu já esperava um pouco por isso.
Ligou para Toulon e ao cabo de alguns minutos estava com Marella na linha.
– Fez boa viagem?
– Depois daquele vinho da Provença, dormi feito um bebê.
– Suponho que adivinha por que telefonei.
– O que aconteceu com ele?
– Esta manhã, às sete horas, foi retirado das águas do porto.
– Esfaqueado?
– Não. Uma bala calibre 38 bem no meio da testa.
Houve um silêncio na linha. Cada um dos dois homens seguia seu pensamento.
– Prestou-lhe um grande serviço quando o aconselhou a acompanhá-lo a Paris. Ele quis bancar o esperto. Imaginou que você mentia e que apesar de tudo tiraria algum
proveito do negócio.
– Vejo que Giovanni é intocável.
– Está vendo que ele tomou suas precauções. Posso até jurar que o matador nem sabe para quem trabalhou. As instruções devem ter passado por um intermediário seguro.
– Tem alguma ideia?
– Muitas. Aqui na Côte, há uns vinte sujeitos capazes de cometer esse crime. Podem mesmo ter ido buscar alguém em Nice, Cannes ou Marselha. E esse cara já não está
mais em Toulon. Deu um jeito para não ser visto.
Marella pareceu refletir.
– Nós o pegaremos mais cedo ou mais tarde, mas talvez dentro de quatro ou cinco anos, e por um caso completamente diferente.
– Entendo, aqui é a mesma coisa. Agradeço-lhe por ter me informado. Estava presente quando lhe esvaziaram os bolsos?
– Sim. Nada de especial. Dois mil francos na carteira, além da identidade e da habilitação de motorista. Os documentos do veículo estavam no porta-luvas do carro,
que passou a noite defronte ao Hôtel des Cinq Continents.
“Fora isso, moedas e uma chave.”
– Gostaria que me enviasse esse material.
– Será enviado daqui a pouco. Vou despachá-lo na estação. Há também um lenço, cigarros e chicletes.
– Abriu a valise dele?
– Um terno xadrez preto e branco e roupas de baixo. Nenhum papel. Apenas um romance barato de capa colorida.
– Nenhuma agenda com números de telefone?
– Não. Mas é possível que eu não tenha sido o primeiro a abrir a valise. Segundo o médico, a morte se deu por volta de uma da madrugada. É só uma estimativa provisória,
pois ele fará a autópsia hoje à tarde.
– Claudine não está muito chateada comigo?
– Por que estaria chateada?
– É que, por minha causa, você perdeu a manhã de domingo.
– Ela está na cozinha. Ouça! Gritou para que eu lhe diga que manda um abraço a você e sua mulher. Quanto a mim, esse caso não me diz mais respeito e deixo ao meu
auxiliar a tarefa de um inquérito de rotina.
– Voltou a ver Bob?
– Não. Espero que não tenha a mesma sorte. Isso me aborreceria, pois tem se comportado bem.
– Acho que ele é muito necessário a Giovanni.
– Pensou o mesmo que eu. Há com certeza alguém que faz a ponte entre Giovanni e os delinquentes.
– E Bob cumpre bem essa função, não é mesmo?
– Tenha um bom dia.
– Você também. E obrigado pela grande ajuda que me deu.
Maigret desligou.
– Era uma má notícia? – perguntou a sra. Maigret ao vê-lo preocupado.
– Profissionalmente, eu deveria dizer que é uma excelente notícia. Um sujeito foi a Toulon e sua morte nos evita levá-lo ao tribunal. É um ex-cafetão que vivia às
custas de uma mulher de cinquenta anos. Se ele próprio não cometeu o crime, foi pelo menos o cúmplice de um assassinato.
– O da velha senhora?
A velha senhora com chapéu e luvas brancas, sim. Ele a revia, no Quai des Orfèvres, abordando-o subitamente na calçada com olhos brilhantes de admiração e esperança.
Ela estava morta. Agora o Grand Marcel também havia morrido, e o objeto que o casal tanto buscava, o famoso revólver guardado ingenuamente na mesa de cabeceira,
se perdera para sempre.
– O que preparou para o almoço?
– Fricassê de vitela.
Ficaram sem fazer nada até meio-dia e meia. Maigret chegou mesmo a ligar por algum tempo o rádio que, obviamente, não falou do morto de Toulon.
– Tem vontade de ir ao cinema? – ela perguntou.
– Não acha que o dia está muito bonito para nos encerrarmos numa sala?
– Alguma outra ideia?
– Vamos sair e então veremos.
Ela tomou-lhe o braço, como sempre, e eles se dirigiram às margens do Sena. Passaram assim pelo Quai de la Mégisserie onde a loja do vendedor de aves estava com
as portas fechadas.
– Qual é o andar?
– O primeiro.
– Tem gente que vai ficar feliz.
– Que está querendo dizer?
– As pessoas que alugarão o apartamento. Daqui terão uma das mais belas vistas de Paris.
Continuaram o passeio e não tardaram a chegar ao Jardim das Tulherias.
– Que tal nos sentarmos um pouco? – ele propôs.
Era uma vontade que lhe surgira na véspera à noite. Ele não se lembrava de alguma vez ter se sentado num banco de jardim público. E não estivera longe de pensar
que não serviam para nada, a não ser de leito para os mendigos ou de refúgio para os namorados.
Mas demoraram até encontrar um banco livre. Todos os outros estavam ocupados, e não apenas por pessoas idosas. Havia muitas jovens mamães que vigiavam seus filhos.
Um homem de uns trinta anos lia um livro de biologia.
– Estamos bem acompanhados, não?
Barquinhos com velas brancas flutuavam na água límpida do lago.
– Não se molhe, Hubert. Se se inclinar assim, vai cair na água!
Não era repousante? A vida, vista daqui, parecia simples e sem histórias.
A velha senhora vinha diariamente a esse lugar, quando o tempo permitia. Como fazia uma outra velha senhora diante deles, devia dar migalhas de pão às aves que se
aproximavam sempre mais.
– Foi por causa dela que quis vir?
– Sim – ele confessou. – E eu queria, pelo menos uma vez na vida, me sentar num banco de jardim público.
Acrescentou vivamente:
– Sobretudo com você.
– Você não tem boa memória.
– Já fizemos isso?
– Durante o nosso noivado, num banco da Place des Vosges. Foi lá, inclusive, que me beijou a primeira vez.
– Tem razão. Minha memória é péssima. Eu gostaria de beijá-la, mas há muita gente ao redor.
– E não combina bem com a nossa idade, não é?
Resolveram não jantar em casa. Foram comer num restaurante que apreciavam muito e onde iam de vez em quando, na Place des Victoires.
– Ficamos no terraço?
– Não aconselho – interveio o maître. – O ar não tardará a refrescar e à noite é imprudente jantar do lado de fora.
Saborearam uma carne de vitela, que estava deliciosa, depois minúsculas costeletas de cordeiro, por fim uma torta de morangos.
– É raro – murmurou a sra. Maigret.
– O quê?
– Que possa dedicar um dia quase inteiro a mim. Aposto que amanhã vai me telefonar avisando que não vem almoçar.
– É possível e mesmo provável. Terei que enfrentar o sargento.
– É assim que chama essa pobre mulher?
– Uma pobre mulher que provavelmente matou a tia.
– Mas não foi premeditado, foi?
– Não.
– Ela perdeu a cabeça ao ser descoberta?
– Está querendo defendê-la?
– Não, mas pensei várias vezes nela. Você me disse que é uma mulher feia.
– Em todo caso, não tem encantos.
– E já devia ser assim quando jovem.
– Certamente.
– Já que os homens não a paqueravam, teve que se resignar a agir de outro modo com eles.
– Você daria um bom advogado.
– Cinquenta e cinco anos! É a idade dela, você disse. É provável que considerasse esse Marcel como o último e se agarrava a ele com toda a sua energia.
– Ainda se agarra, pois não sabe o que lhe aconteceu.
– Não acha que ela tentará fugir?
– Há um inspetor permanentemente diante do prédio onde ela mora.
– Não gostaria de estar no seu lugar, amanhã de manhã.
– Eu também não.
Era a profissão dele. E Angèle Louette não era das que inspiram a piedade.
A sra. Maigret compreendeu o curso que tomavam os pensamentos do marido quando ele murmurou:
– Sabe, o filho de Marella não quer de jeito nenhum seguir a carreira do pai.
O que ele próprio teria aconselhado ao filho, se tivesse tido um?
Foram andando de braços dados em direção ao Boulevard Richard-Lenoir e ficaram um longo tempo sem falar.
CAPÍTULO VII
QUANDO, EXATAMENTE ÀS NOVE HORAS, o velho Joseph a fez entrar na sala de Maigret, este a olhou de um modo diferente das outras vezes, com um certo constrangimento,
talvez porque se lembrasse das palavras que sua mulher dissera na véspera.
Chegou mesmo a levantar-se para recebê-la, e a pequena valise que ela segurava na mão lhe dava um aspecto quase patético.
Estava pálida. Mas era a sua aparência de sempre. Se não fosse feia, se fosse uma mulher bonita, teria ele se mostrado tão severo com ela?
– Ponha no chão a valise e sente-se.
Tudo já estava instalado e Lapointe, na ponta da mesa, estava pronto para estenografar o interrogatório.
– São nove horas, não é mesmo? Já não pude atender uma cliente às oito e uma outra me esperava neste momento. O senhor está retirando meu ganha-pão.
Na véspera, como soube pelo relatório dos inspetores, ela havia retornado logo após a missa e não saíra mais de casa.
A luz ficara acesa no apartamento até tarde da noite.
Ninguém fora vê-la. Havia passado sozinha todas aquelas horas de espera.
Era o que lhe dava esse aspecto mais grave e como que abatido?
Maigret pegou o telefone.
– Pode verificar se o juiz de instrução Libart já chegou?
Ficou ouvindo o sinal de chamada não atendida.
– Ainda não, senhor comissário. O escrivão também não se encontra.
– Obrigado.
Ele acendeu o cachimbo e disse a Angèle Louette:
– Pode fumar, se quiser.
– Gentileza sua. O cigarro do condenado, não é?
– Senhorita, chegou a hora de irmos ao fundo das coisas. É possível que eu lhe faça perguntas que já fiz, mas espero que seja pela última vez.
Parece que o próprio tempo se mancomunara para dar a esse confronto uma atmosfera cinzenta e triste. Depois de ter se mantido esplêndido nas duas últimas semanas,
o céu estava escuro e uma chuva fina caía sobre Paris.
– Suponho que admite que sua tia foi assassinada.
– Não posso contradizer as conclusões do médico-legista.
– Sabe se ela tinha um ou vários inimigos?
– Não.
Estava calma, mas era uma calma encoberta, como o tempo. O rosto não tinha expressão alguma, e ela olhava tranquilamente o comissário ocultando bem as emoções, se
as sentia.
Era como se a longa solidão do domingo lhe houvesse retirado a combatividade.
– E amigos?
– Também não sei de amigos.
– A senhorita era a única pessoa que ela recebia no apartamento do Quai de la Mégisserie?
– Que eu saiba, sim.
– Marcava encontros com ela?
– Minha tia não tinha telefone. Insisti que instalasse um, mas ela sempre recusou.
– Por que ia vê-la?
– Porque eu era a sua única parente.
Continuava vestindo o tailleur preto que lhe dava a aparência de estar de luto.
– Sabia quando encontrá-la em casa?
– Sim.
– Conhecia sua rotina?
– Era sempre a mesma.
– De manhã ela saía para ir ao mercado no bairro. É isso?
– Exato.
– Depois do almoço, se lembro bem, cochilava um certo tempo na poltrona.
Angèle concordou com a cabeça.
– A seguir, se o tempo permitia, ia ao Jardim das Tulherias onde se sentava num banco.
– Tudo isso já foi dito, não?
– Tenho minhas razões para repetir. Não gostava dela, não é mesmo?
– Não.
– Nunca a perdoou por ter lhe dado apenas uma nota de cem francos, quando outrora lhe pediu ajuda porque estava grávida, não é verdade?
– São coisas que a gente não esquece.
– Mesmo assim continuou indo vê-la. Quantas vezes por ano?
– Nunca contei.
– Por mês?
– Uma vez. Eventualmente duas.
– Sempre à mesma hora?
– Quase sempre. Termino minha jornada de trabalho às seis. Era também a hora, no verão, em que ela voltava para casa.
– Ela a convidava a sentar-se?
– Eu não esperava que me convidasse. Afinal, era minha tia.
– E era a sua única herdeira?
– Sim.
– A senhorita pensava nisso?
– Pensava que essa herança me facilitaria a vida na velhice. A profissão de massagista é mais penosa do que se imagina e requer uma certa força física. Dentro de
alguns anos já estarei muito velha.
– Enquanto esperava, pedia dinheiro a ela?
– De tempo em tempo. Na minha profissão, há períodos de baixa. A época das férias, por exemplo, quando todas as minhas clientes deixam Paris, algumas por dois ou
três meses.
– Vocês discutiam, a senhorita e sua tia?
– Nunca.
– Não lhe censurava sua avareza?
– Não.
– Ela sabia dos seus sentimentos em relação a ela?
– Suponho que sim.
– E a senhorita sabia que ela não guardava grandes quantias de dinheiro em casa.
– Sabia.
– Quem tirou o molde da fechadura?
– Não fui eu.
– Foi então seu amante?
– Ele nunca me disse isso.
– Mas mostrou-lhe a chave que mandou fazer?
– Eu nunca tive chave.
– A senhorita recomeça a mentir. Não apenas tinha a chave do apartamento, mas também a do quartinho do seu tio Antoine, do outro lado do corredor.
Ela se calou, como uma criança que é repreendida e fica emburrada.
– Tenho uma má notícia a lhe dar, e isso talvez mude o curso do seu depoimento. Anteontem estive em Toulon.
Ela estremeceu, pois sabia, como ele pensava, que Marcel fora até essa cidade.
– Confesse, primeiro, que vocês não brigaram e que a senhorita não o mandou embora.
– Pense o que quiser. Não posso impedi-lo.
– Aquela discussão, porque ele não saía da cama, foi uma comédia representada para mim.
Ela não disse nada.
– Voltei a encontrá-lo em Toulon. E a senhorita sabe, claro, o que ele foi fazer lá.
– Não.
– Está mentindo outra vez. Existe lá, a alguns quilômetros da cidade, uma mansão habitada por um certo Pepito Giovanni. É um ex-delinquente que mudou mais ou menos
de conduta e agora dirige importantes negócios. Suponho que Marcel trabalhou para ele no passado, mas era apenas uma das pequenas peças da organização.
“Marcel nunca foi um gângster de peso. Fazia um trabalho miúdo, como figurante, de certo modo.”
Uma chispa de cólera passou pelos olhos da mulher, mas ela não protestou.
– Está de acordo comigo?
– Nada tenho a dizer.
– Peço que me dê licença um instante.
Pegou novamente o telefone e, desta vez, conseguiu encontrar o juiz de instrução.
– É Maigret. Posso subir até aí?
– Eu o aguardo. Não demore muito, pois tenho um interrogatório daqui a dez minutos.
Ele deixou sua cliente sozinha com Lapointe e atravessou a porta que se comunica com o Palácio da Justiça.
– Como vai o inquérito?
– Não quero me adiantar, mas espero terminá-lo hoje. No sábado fui a Toulon, onde alguns acontecimentos se desenrolaram, mas lhe falarei disso daqui a pouco.
“Por ora, preciso de um mandato de prisão em nome de Angèle Louette.”
– Não é a sobrinha?
– Sim.
– Acha que foi ela que matou a velha senhora?
– Ainda ignoro, mas espero não tardar a descobrir. Por isso, não sei se utilizarei ou não esse mandato.
– Você ouviu, Gérard? Pode preencher um formulário?
Quando Maigret retornou à sua sala, os dois personagens que ali estavam davam a impressão de ser de cera.
Ele estendeu o mandato a Angèle.
– Suponho que sabe o que isso significa e compreende por que lhe pedi para trazer uma valise com objetos pessoais e mudas de roupa.
Ela não respondeu, não reagiu.
– Antes de tudo, vamos falar de Marcel. Em Toulon, encontrei-o num bar, o Amiral, que ele frequentou muito quando vivia na Côte. Ele conhece bem um certo Bob, o
barman. Marcel lhe falou dele?
Ela respondeu secamente:
– Não.
Mas sua atenção estava desperta e ela esperava a continuação com uma certa angústia.
– Um moleque como Marcel não tem como chegar facilmente a um homem da importância de Giovanni. Ele precisava de um intermediário e foi Bob que desempenhou esse papel.
O que este contou a Giovanni, eu não sei. Marcel tinha algo a vender, algo de muito importante, pois o ex-chefão o recebeu já na manhã seguinte. Está me acompanhando?
– Sim.
– Compreende que falo do revólver?
– Já disse e repeti que nunca vi esse tal revólver.
– Está mentindo outra vez. Giovanni ficou tão interessado que guardou a arma. Fui vê-lo um pouco mais tarde e tivemos uma conversa bastante interessante. Entre outras
coisas, lhe falei da origem do revólver e do papel que Marcel havia desempenhado na morte da sua tia.
“Veja, quando um gângster enriquece e se retira mais ou menos de cena, ele não gosta de se sujar.
“Giovanni percebeu que a posse dessa arma era um grave perigo e, tão logo deixei a casa dele, fez-se conduzir ao largo a bordo do seu iate.
“De modo que o famoso revólver do seu tio encontra-se agora a dezenas de metros de profundidade.”
Maigret esvaziou o cachimbo e encheu um outro.
– Houve outros acontecimentos em Toulon após a minha partida. Fiquei sabendo pelo telefonema de um colega de lá, ontem de manhã, um pouco depois que a deixei. Mas
repita que nada mais existe entre Marcel e a senhorita, e que o mandou definitivamente embora.
– Quero saber o que houve.
– O próprio Marcel era um pouco comprometedor. Como se diz no mundo do crime, só os mortos não falam.
– Ele está morto?
Ela ficara imóvel, de repente, e sua voz havia mudado.
– Isso não lhe importa mais, não é mesmo?
– O que aconteceu exatamente?
– Durante a noite, ele recebeu um tiro em plena testa. Calibre 38, que só os profissionais utilizam. Foi encontrado ontem de manhã flutuando no velho cais.
– É uma armadilha que armou para mim?
– Não.
– Jura pelo que há de mais sagrado?
– Juro.
Lágrimas rolaram então em suas faces e ela abriu a bolsa para pegar um lenço.
CAPÍTULO VIII
ELE FOI ATÉ A JANELA para deixar que ela tivesse tempo de se recompor. A chuva continuava caindo, fina, e viam-se muitos guarda-chuvas abertos ao longo das calçadas.
Ouviu-a assoar-se e, quando retomou seu lugar, ela colocava um pouco de ruge nas faces.
– Como vê, o negócio fracassou, e sua tia foi morta por nada.
Ela ainda fungava e foi com a mão trêmula que pegou um cigarro e o acendeu.
– Resta saber quem, se Marcel ou a senhorita, asfixiou a velha senhora.
Contrariamente ao que Maigret podia esperar, ela não respondeu de imediato. Não lhe era fácil defender-se, agora que o amante não vivia mais?
– Com relação a ele, obviamente os procedimentos judiciários estão encerrados. Não é o seu caso.
– Por que o senhor me detesta?
– Não a detesto. Faço o que tenho de fazer o mais humanamente possível. Acontece que, desde o primeiro dia, a senhorita me mentiu. Nessas condições, como quer que
eu tenha uma outra atitude?
– Sabe muito bem que eu o amava.
– E sei que ainda o ama, mesmo morto.
– É verdade.
– Por que fingiu aquela briga e aquele rompimento?
– Foi uma ideia dele, que esperava assim confundi-lo.
– Sabia o que ele foi fazer em Toulon?
Ela o olhou de frente e, pela primeira vez, procurou não mentir nem se esquivar.
– Sim.
– Desde quando sabe da existência desse revólver?
– Há treze ou catorze anos. Meu tio Antoine e eu nos entendíamos bem. Era um homem bom, muito solitário. Acredito que não encontrou em minha tia a companheira com
que sonhava. Então, passava a maior parte do tempo encerrado no seu quartinho.
– É lá que ia encontrá-lo?
– Na maioria das vezes. Sua única paixão era a bricolagem e quase todo ano enviava uma de suas invenções ao concurso Lépine.
– Foi assim que conheceu o revólver?
– Durante cerca de dois anos, vi-o trabalhar nessa arma.
“– Há um problema que ainda não resolvi – ele me disse. – Se um dia resolver, será um estrondo.
“E logo pôs-se a rir.
“– Quando digo que será um estrondo, é exatamente o contrário. Sabe o que é um silenciador?
“Respondi que já tinha visto no cinema e na televisão. Um pequeno objeto colocado no cano de uma arma para que não se ouça a detonação.
“– É mais ou menos isso – ele falou. – Claro que não se vende no comércio, pois é proibido. Mas imagine que o silenciador seja suprimido, que faça parte da arma
e se encontre no interior dela.
“Ele estava muito excitado.
“– Estou chegando ao ponto, só falta resolver alguns detalhes. Quando eu tiver vendido a patente, todas as armas, inclusive as da polícia e do exército, serão silenciosas.”
Ela se calou por um longo momento e depois murmurou:
– Ele morreu alguns dias mais tarde. Não entendo nada de armas de fogo e não pensei mais no tal revólver.
– Quando falou dele a Marcel?
– Há cerca de um mês. Nem isso: três semanas. Atravessávamos a Pont-Neuf e lhe mostrei as janelas do prédio do Quai de la Mégisserie. Disse que era ali que minha
tia morava e que um dia seria sua herdeira.
– Por que lhe falar dessa herança?
Ela corou e desviou a cabeça.
– Para tentar conservá-lo comigo.
Sabia que não tinha ilusões.
– Um pouco mais tarde, quando nos sentamos no terraço de um café, contei-lhe a história do revólver que de repente me veio à lembrança. Para a minha grande surpresa,
ele se mostrou muito interessado.
“– Você voltou a ver essa arma depois da morte do seu tio?
“– Não. Nem sequer voltei ao quartinho.
“– E sua tia, está sabendo?
“– É possível que ele lhe tenha falado, mas ela não deve ter dado mais importância ao assunto do que eu. Vou perguntar a ela.
“– Não! Não lhe pergunte nada.”
Angèle prosseguiu:
– O senhor talvez se surpreenda, mas não havia intimidade entre mim e ele. Exceto em raros momentos – ela acrescentou, constrangida.
– A senhorita possui a chave do apartamento?
– Não.
– A mesma chave abre o que chama o quartinho?
– Não. Há uma chave especial, mas não sei onde minha tia a guardava. Provavelmente na sua bolsa.
“Ele não voltou a falar mais do assunto durante alguns dias. Mas uma noite, quando cheguei em casa, vi que estava com duas chaves na mão.
“– O que está querendo fazer?
“– Encontrar esse revólver.
“– Por quê?
“– Porque vale uma fortuna. Quando souber que sua tia não está em casa e que não vai voltar, vasculhe o apartamento e o quartinho.
“– Mas por que, se um dia vou herdar tudo o que ela possui?
“– Mulheres como ela demoram a morrer. Talvez tenha que esperar uns dez anos, massageando todas essas mulheres quando não é mais jovenzinha.”
Ela olhou para Maigret e suspirou.
– Compreende agora? Não aceitei imediatamente. Mas não queria perdê-lo e ele não parava de insistir. Por fim peguei as chaves, uma tarde. Vi minha tia dirigir-se
ao Jardim das Tulherias e sabia que não voltaria antes das seis.
“Comecei pelo apartamento. Esquadrinhei tudo, com o cuidado de repor as coisas no lugar.”
– Não com bastante cuidado, pois ela percebeu.
– Dois dias depois, foi a vez de vasculhar o quartinho. Ao todo, fui quatro vezes ao Quai de la Mégisserie.
– E Marcel?
– Só uma vez.
– Quando?
Ela desviou mais uma vez a cabeça.
– Na tarde em que minha tia morreu.
– Que foi que ele lhe disse ao voltar?
– Eu não estava em casa. Estava numa cliente desde as cinco e meia da tarde, uma sessão que havia se prolongado. É uma pessoa que massageio há cerca de vinte anos,
a sra. De La Roche, que mora no Boulevard Saint-Germain, 61.
– A que horas voltou?
– Às sete. Ela me reteve, como sempre, com sua conversa fiada.
– Por que não me disse que tinha um álibi?
– Porque isso acusaria Marcel.
– Preferiu ser suspeita?
– Como o senhor hesitava entre nós dois...
– A arma estava de fato em cima do guarda-roupa?
– Sim.
– E seu amante a descobriu na gaveta da mesa de cabeceira?
– Sim. É o último lugar onde eu a teria procurado, pois minha tia tinha pavor de armas de fogo.
– Tomou nota, Lapointe? Pode ir datilografar o depoimento. Antes, telefone para a sra. De La Roche, no Boulevard Saint-Germain.
Eles ficaram frente a frente e Maigret sentiu a necessidade de levantar-se e de ir até a janela.
– A ação judiciária está encerrada – murmurou – no que se refere a Marcel, pois não se pode processar um morto. Mas a senhorita está viva. Nada teve a ver com a
morte da velha senhora, é verdade. Em todo caso, vamos averiguar.
Não era mais a mesma mulher que estava sentada diante da sua mesa. Ela perdera a rigidez. As feições, assim como o corpo robusto, pareciam ter murchado.
Houve uns cinco minutos de silêncio até Lapointe entrar novamente na sala.
– A senhora confirma – ele se limitou a anunciar.
– Obrigado. A senhorita percebe a situação na qual se encontra?
– O senhor me fez ler o mandato de prisão e não ignoro o que isso significa.
– No momento em que mandei redigi-lo, ainda não sabia quem havia asfixiado sua tia, se a senhorita ou Marcel.
– Agora sabe.
– Não estava no local. E o crime não foi premeditado. Portanto, não podia saber que ele aconteceria. Ou seja, a senhorita não é diretamente cúmplice. O que se pode
reprovar é não ter denunciado seu amante e ter guardado em casa a arma que foi o produto de um roubo.
Ela conservava o rosto inexpressivo. Era como se a vida não a interessasse mais, como se estivesse muito longe dessa história, talvez em Toulon, perto de Marcel.
Maigret foi abrir a porta da sala dos inspetores. Dirigiu-se ao que estava mais próximo. Era o gordo Torrence.
– Venha um instante até a minha sala. Não saia daqui e não deixe ninguém sair antes de eu voltar.
– Compreendido, chefe.
Subiu mais uma vez até o juiz de instrução, que mandou sair momentaneamente uma testemunha que ele interrogava.
– Foi ela?
– Não. Ela tem um álibi muito sólido.
Maigret contou-lhe a história o mais brevemente possível. Mesmo assim, isso levou um certo tempo.
– Não é o caso de mover um processo contra Giovanni – murmurou por fim.
– Não daria em nada.
– Examinando bem as coisas, ela não é mais culpada que ele.
– Está querendo dizer...?
O juiz coçou a cabeça.
– É realmente o que pensa? Soltá-la pura e simplesmente?
Ele não confessou que essa ideia lhe vinha indiretamente da sra. Maigret.
– Primeiro seria preciso estabelecer a cumplicidade dela, o que não é fácil, sobretudo agora que o revólver desapareceu para sempre.
– Compreendo.
Passou-se um quarto de hora antes que Maigret tornasse a descer à Polícia Judiciária, pois o juiz de instrução fez questão de falar com o procurador.
O comissário ficou um pouco chocado ao ver Torrence sentado à sua mesa, em sua própria poltrona.
– Ela não se mexeu, chefe.
– Não disse nada?
– Não abriu a boca. Posso ir?
Angèle olhava Maigret sem curiosidade, como se estivesse resignada a seu destino.
– Que idade tem exatamente?
– Cinquenta e seis anos. Não costumo dizer minha idade, pois algumas de minhas clientes me achariam muito velha.
– Em qual dos dois apartamentos vai morar, o seu ou o da sua tia?
Ela o olhou com espanto.
– Não tenho essa escolha, tenho?
Ele pegou então o mandato de prisão e o rasgou.
– A senhorita está livre – disse simplesmente.
Ela não se levantou em seguida. Como se suas pernas de repente tivessem amolecido. Lágrimas escorreram em suas faces e ela não pensou em enxugá-las.
– Eu não... não encontro palavras para...
– As palavras agora não servem para nada. Passe esta tarde para assinar o auto de perguntas do seu interrogatório.
Ela se levantou, hesitante, dirigiu-se lentamente até a porta.
– Sua valise! – ele lembrou.
– É verdade, ia esquecendo.
Mas havia muitas outras coisas que ela não esqueceria!
Georges Simenon
O melhor da literatura para todos os gostos e idades